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O Jardim e a Praça

O Privado e o Público
na Vida oocial e liislórica

Nelson 8aldanha
SUMÁRIO

Nota do autor . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1. Abordagem e proposição geral do tema 13


2. Sobre os espaços na história 17
3. Ainda sobre os espaços na história . 21
4. A casa como tema histórico . 27
5. Vida pública e vida privada . 31
6. Dos jardins à ordem pública 35
7. Privatismo e publicismo 47
8. Platão e o intelectual moderno 51
9. Outra vez privatismo e publicismo . 57
10. Algumas digressões históricas 63
11. Outras digressões, com alusão ao direito e ao contra-
tualismo 71
12. Sobre as utopias 83
13. A burguesia, o liberalismo e o problema do equilíbrio ' 89
14. Alusão à experiência brasileira 103
15. O ho.inem: Constantes e dualidades 109
16. Fundo, planta e pedra . 115
NOTA DO AUTOR

No número 11 (janeiro/junho de 1983) da revista Ciência &


'Trópico, da Fundação Joaquim Nabuco, publiquei um breve
artigo contendo reflexões que, devidamente acrescentadas, re-
sultaram em um opúsculo editado em 1986, com o título de O
Jardim e a Praça, por Sérgio Fabris, em Porto Alegre. Posterior-
mente, à base de notas tomadas em ocasiões diferentes, inclusive
por conta de temas e de fontes referentes a outros trabalhos,
repensei e reescrevi inteiramente o texto, ampliando-o bastante,
sobretudo em algumas partes.
Tratando ele um assunto cuja análise em detalhe seria
interminável, o presente livro, que é uma espécie de longa
anotação, se cinge conscientemente a certos tópicos, mais próxi-
mos elo nücleo ele idéias que norteou o esquema inicial. Alguns
amigos viram no texto uma introdução ao urbanismo; outros
uma revisão elos "ismos" contemporâneos. Entretanto o autor o
considera, apesar de seu feitio um tanto assimétrico e aparente-
mente descontínuo, um esboço ele antropologia filosófica. Ou, se
se prefere, de uma teoria não dogmática do homem e da história.
1. ABORDAGEM E PROPOSIÇÃO GERAL DO TEMA

A estrutura de nossa e.\"Ístência aparece em


um primeira aspecto coma wna snma de cnntm.í-
dos que se entrecruzam, c se umoldum uns ciOS
outros; em um segundo aspecto, aparece como
uma soma de mundos, todos os quais abarcam
o mesmo conteúdo uíla./, mas cada um com sua
forma espedj"ica. Assim a religião, a arte, a
nwral, o conhecimento.

GEOilG SI~I~!E L

Começo aludindo a imagens mais ou menos consagradas. O


jardim se concebe, geralmente, como um trecho de espaço anexo
à casa, quase sempre à frente dela, mas em certos casos - como
nos chamados jardins ele inverno- dentro dela. O jardim é uma
parte do esp aço que circunda a casa (a casa ou outro tipo ele
edificação), uma parte específica pela posição e pelas caracterís-
ticas. A praça é pensada como um espaço amplo, que se abre, na
estrutura interna das cidades, como uma confluência de ruas, ou
de qualquer sorte uma interr upção nos blocos edificados. Um
espaço onde em geral se encontram árvores, bancos, eventual-
mente monumentos, em alguns casos pequenos lagos artificiais.
11 O ,J,I RDIM E A PRAÇA

Tenho de partir dessas alusões, por certo prosaicas edema-


siado genéricas, sem desatender ao fato de que há jardins de
diversos tipos, e praças de diferentes formas, inclusive variáveis
pela origem e pela função. Mas as duas imagens são aqui toma-
das como símbolos (evitarei dizer "meros" símbolos), de modo que
as diferenças dadas nos casos reais não deverão dificultar a
exposição.
De certa forma vale dizer que o jardim é, e ao mesmo tempo
não é, uma parte da casa. Não se inclui no âmbito edificado da
residência, mas integra seu espírito, inclui-se no conjunto (pe-
queno ou grande) que ela domina. O jardim faz parte daquilo que
Gaston Bachelard, naquele livro admirável que é a Poética do
Espaço, chama o "universo da casa", ao qual inclusive atribui
uma ordem própria. Por sua vez a praça integra organicamente
o conjunto formado pela cidade, mas ao mesmo tempo "está" nele
como um espaço - quase uma clareira- surgido pelo distancia-
mento entre determinadas porções construídas. A praça "nega"
a continuidade das edificações, mas ao mesmo tempo ela é, em
certo sentido, a essência da cidade.
Como disse, as alusões iniciais se referem a imagens. Refe-
rem-se a estampas, às quais se prendem tradicionalmente nossa
imaginação e nossas associações de idéias. As artes plásticas e
a literatura se encarregaram, através ele séculos, aliás de milê-
nios, de consolidar as respectivas figuras. A noção de jardim
carrega consigo exemplificações que provêm de alu sões literárias
antiquíssimas, e de citações pictóricas igualmente remotas: ele
é fechado, não muito extenso, arborizado, ocupado com plantas
ornamentais. O jardim é o lugar das flores, e p ertence a casas
particulares ou de qualquer maneira a construções específicas:
palácios, hospitais, conventos, universidades. Têm sido excepcio-
nais os casos de jardins públicos, nos quais se podem enquadrar
alguns suntuosos jardins da história antiga, bem como exemplos
modernos como o das Tuilleries. O problema, nestes casos, é em
certa medida uma questão de linguagem. Às vezes chamam -se
ou chamavam-se jardins a certos logradouros públicos, que em
verdade são "parques" ou coisa parecida. Isto aconteceu inclusi-
ve nos séculos XVII e XVIII: Francis Bacon escreveu um .r :nsaio
altamente lírico sobre jardins (Of Gardens), considerando-os
mais acolhedores do que as praças e falando das sebes encurva-
ABORDAGEM E PROPOSTÇ;\O GER1!L DO TEi\H 15

das que devem demarcá-los. No mesmo sentido valeria aludir ao


jardim do Luxemburgo, em Paris, celebrado inclusive em sentido
erótico pelos franceses elo século passado.
Em contrapartida a idéia de praça vai indicar a qui o espaço
púb lico, com específico desligamento em relação à moradia pri-
vada. As praças, nas cidades construídas em todos os quadrantes
c em todos os âmbitos culturais, se ligam a finalidades mais
"genéricas": ligam-se ao espaço comum - no sentido "comunitá-
rio" do termo -, ao âmbito político, à finalidade econômica, à
dimensão religiosa ou m ilitar da vida social. Poderia lembrar as
praças sagr adas dos aztecas ou os terraços votivos dos incas; a
ágora grega, arqui-exemplar, e sua continuação o forum romano
-ambos mistura de mercado e local de encontros, inclusive para
meetings políticos. A óbvia extensão espacial da praça não é
apenas extensão espacial: ela corresponde a um significado so-
cial, correlato do próprio espírito da cidade onde se insere.
Podemos deste modo dizer que a distinção entre as duas
dimensões pode dflr-se no sentido quantitat ivo e no qualitativo.
Sob ·o primeiro aspecto temos um problema de extensão espacial:
no caso da casa (e do jardim) um espaço menor, com coisas
ajuntadas, âmbito elo viver e sobretudo do viver noturno das
pessoas; no da praça, um espaço maior, que revela a cidade e
tende a confundir-se com ela. Sob o segundo aspecto, ocorre um
problema de caracterização e de conteúdo. E então temos o
espaço privado com um sentido de reduto, portanto algo "irredu-
tivelmente" preso ao existir mais íntimo do ser humano; ou
temos o espaço público como obra do viver social e do estender-se
dns relações que perfazem este viver, e qu e se desdobram em
termos de produção econômica, ordem política, criação cultural.
Este segundo é o espaço mais amplo e mais problemático do
humano, no qual se acha o pensar em geral, com heranças
históricas e "ismos" modernos, um espaço dentro de cujas ocor-
rências se inventaram a geografia e a história.
Aliás Aristóteles, expondo as idéias de Hipódamo de Mileto,
relatara que o famoso arquiteto projetara uma cidade com três
partes distintas: uma sagrada, ligada aos cultos; outra pública,
ligada aos militares; e outra privada, ligada sobretucl0 aos agri-
cultores. Obviamente a lguns conteúdos da utopia de Platão
provieram deste es quema, mas isto é outra história.
2. SOBRE OS ESPAÇOS NA HISTÓRIA

Evidente que o tema da contraposição e das relações entre


a vida pública, simbolizada aqui pela praça, e a vida privada,
simbolizada pelo jardim, nos levaria a divagações c derivações as
mais diversas. É um tema fascinante, e um modo de disciplinar a
reflexão sobre ele consistirá em dar-lhe um tratamento histórico.
Ele é necessariamente histórico. Seria inclusive válido, sem em-
bargo de parecer uma idéia "fácil", tentar entender a história como
história dos espaços, história das relações entre culturas e espaços,
c do modo como os homens vêm utilizando o espaço.
Poderia inclusive mencionar alguns estudos que abordam o
assunto . Entre eles o de Paul Claval, relativamente recente,
Espaço e Poder 1, no qual se colocam alguns temas centrais,
inclusive o das conexões entre o poder e a administração dos
espaços, mas sem situar devidamente- a nosso ver, ao m enos-
certas questões prévias, dentre as quais o próprio fato da distin-
ção vital entre os planos em que se "desdobra" o espaço social.
Ou ainda o livro muito importan te de Jürgen Habcrmas sobre o
chamado "espaço público"2, um pesado e complexo ensaio de

1. E spaço e Pocl.er, lrad . W. D u lr~ , l1io de Jan eiro, Zaha r, 1!)70.


2. S trukl.urwnndcl der Offcnt.lic hkcil , lrad. francesa L'l!:.~pnce public - Archéologie rlR.lapublicité
18 O J ARDIM E A PRAÇA

análise das relações entre a esfera pública c as características


da sociedade moderna.
Parece desde logo evidente que o "organizar-se", desde as
primeiras experiências grupais do ser humano, foi sempre, em
parte ao menos, um problema de distinguir lugares, valorizando
uns e abandonando ou evitando outros, e de construir espaços,
demarcando porções do território e amontoando pedras com fim
simbólico ou utilitário. Os horizontes sempre foram espaços, os
céus também, e o próximo se insere em algum ponto do espaço.
Amor e ódio se situam como formas de estar diante do próximo,
e as armas sempre se classificaram conforme seu alcance em
termos de espaço. Os laços de pArentesco, tão caros a certos
antropólogos como estruturas reveladoras, se compreendem
como linhas que interligam pessoas e grupos, aproximando/afas-
tando, como que em termos de espaço .
D emarcar .o tempo e demarcar o espaço foram certamente
necessidades primordiais para todos os grupos humanos desde
os inícios. O t empo teve (como ainda tem) ele ser tomado como
um outro espaço, e de ser assim cortado em pedaços: até certo
ponto serviram para isso as repetitividades fornecidas pela prÓ·
pria natureza, nas estações do ano e em outros tipos de ciclos
biológicos. Os maias, em uma imagem bastante curiosa, imagi·
naram a figura mítica dos "carregadores" do tempo, incumbidos
de levá-lo e transportá-lo em seu interminável percurso .
Deste modo espaço e tempo, considerados na crítica kantia·
na da razão como categorias a priori do entendimento, funciona-
ram desde as primeiras sociedades como pontos de referência do
viver concreto. Ou, por outra, como dimensões objetivas do mun-
do circundant e e também ela existimcia social. Dimensões no
sentido de pla nos, onde se intercalam níveis, o que significa a
possibilidade do desdobramento e das hierarquias. O espaço e o
tempo foram ocupados, desde os começos, com interdições e
obrigações, com o fazer e o não fazer, dias fastos e dias nefastos
entre os romanos, interdições e tabus entre diversos povos. O
convívio social, unitário e genérico sob certo prisma, sob outro se
apresenta diferenciado, recortado por dentro pelas diferenças de
ocupação, pelas castas ou pelas classes, por concentrações demo-

conw re dimension conslilutiuede la sociélé bow gcoise- Paris, Payo l, 1D78.


SODRE OS ESPAÇOS Ni\ EIISTÓ/1/i\ 19

morfoló gicas, por estrutur as e relaçõe s específ icas. Compe te


lembra r a distinç ão famosa , devida a Toenni es, entre as comu·
nidade s, com relaçõe s sociais diretas e espont âneas, e associ e·
da eles, com relaçõe s comple xas e indiret as. Lembr ar também que ···-;
todo o século XIX se ocupou um pouco com estes temas: o elas
varinçõ es do "tipo social" , criadas pela divisão do trabalh o (ou
mesmo pelas estrada s no entend er de Demou lins), o da estrati -
ficação , o dos padrõe s c formas da vida religios a, bem como da
econôm ica, da jurídic a, ela familia r.
Ao falar em planos da vida e do "espaço social", vale anotar
que esta última express ão não vai empreg ada, aqui, na acepção
que foi temati zada por uma certa sociolo gia, respeit ável mas
demasi ado fisicali sla, durant e determ inada época. Aqui tenta-
mos empreg ar umn configu ração mais existen cial e mais ligada
aos dados históric o-cultu rais.
E ao aludir aos planos do viver, t ambém indicam os com isto
uma alterna tiva elemen tar, aquela que se dá entre o viver
"geral" , isto é o viver de todos (ou com todos, na medida em que
t::~ l in1Rgem pode caracte rizar-se ), e o viver consigo mesmo
: o
viver pessoa l, que é o privado e que consist e no plano da convi-
vência mais íntima , mais direta, correla ta do existir individ ual.
Neste plano se situa a posição da família , apesar de uma ce:~a
ambigü idnde do fenôme no. Refiro-me ao fato de que a fam1ha
sempre se entend eu como concen tração do existir p rivado, dire·
tament e ligado aos afetos mais pessoa is e aos compo nentes
domést icos (de domus, casa); e de que entreta nto as constel ações
familia res parece m ter gerado em certos povos as comun idades
maiore s, passan do-se do clã ao Estado ou das fratria s à polis. O
tema nos levaria a mencio nar o dilema de Platão ao preten der
par a o homem p úblico a ausênc ia da família , fonte de egoísm os;
mas também a lembra r que hoje alguns jurista s acham que o
"direito de família " não é b em uma parte do direito privado ,
ficando em un1a r egião entre este e o público, ou antes- segun do
há quem pense - demon strando a inoperâ ncia desta clássic a
divisão das partes elo Direito. Ou ao menos sua crise.
Ao fAlar na "vid a com a família " será interes sante pisar um
pouco no terreno da crise do conceit o de família , atingid a pelo
lado privado e pelo lado público de sua estrutu ra; alcanç ada na
parte em que se ligava às tradiçõ es religio sas pelo process o
20 OJARVIM EA PRAÇA

histórico chamado de dessacralização da cultura. A crise da


família tem tido o que ver com uma série de coisas, que correm
por conta do racionalismo e das modernizações; com coisas posi-
tivas c coisa s questionáveis. Com a queda do princípio "virgin-
dade" c com a imagem monolítica e "indissolúvel" do casamento,
mas também com a diluição das estabilidades que davam ao
existir privado uma demarcação e uma dignidade muito valiosas.
As liberações e o relalivismo, peças importantes na experiência
histórica do homem moderno, têm tido como preço a perda dos
pontos de r eferência que balisavam a vida privada, em si m esma
e em suas conexões com a dimensão püblica, desde séculos, senão
milênios. Digo que também nessas conexões, porquanto as dilu-
ições, a que me refiro e que fragmentam a ordem tradicionr-tl, têm
o que ver com a reformulação das relações genéricas entre a
dimensã o pública e o plano privado do viver. E ao mencionar as
coisas que se perdem, ao mencionar a ordem familiar que se
desmonta, faço alusão ao gradativo desaparecimento da casa
(voltarei ao assunto mais adiante): a "casa de moradia" e o
modelo tradicional de família não poderiam sobreviver um sem
o outro .
Quero dtar aqui, ele passagem, um texto altamente suges-
tivo c inqui0tante de Leszek Kolakowski, que se r efere à impla-
cável dest:.:·uição, nas década s mais r ecentes, das formas
tradi cionais do viver. Destruição que inclui o fim do "espaço
huma no", envolvendo o apagamento das noções ele casa de famí-
lia e ela própria origem natal, bem como a antiga c fundamental
noção de infância3 •

3. "'A i\ ldcia Tnalca llçávcl", e 111 1\ncontros lnlcmaciorwis da UnB, Tirnsilin, 1080.
3. AINDA SOBRE OS ESPAÇOS NA HISTÓRIA

Aludimos acima ao desdobramento desses dois planos, dir--


sc-ia dois momentos, do viver (o público e o privado) dentro das
organizações grupais mais recuadas. Agora nos referiremos às
culturas "clássicas", especialmente à greco-romana. Há uma
série de temas um tanto conjecturais a considerar, inclusive em
torno de dados já registrados pelos estudos históricos: por exem-
plo a dualidade de cultos, que ocorreu tanto na Grécia quanto na
Roma antigas, o culto público e o culto privado. O tema foi, desde
1867, tratado com erudição e persuasividade por Fustel de Cou-
langes em sua sempre notável Cité Antique. A cidade tinha a sua
religião, com seus ritos e seus símbolos, suas festas, seu calen-
dário; a família tinha seu culto, com sua alusão aos mortos, seu
fogo sagrado, seus altares. Não havia, e é interessante assinalá-
lo, contradição entre os dois planos: o indivíduo integrava a
família (e não era imaginável sem isso), e ao mesmo tempo fazia
parte da cidade, cuja razão de ser eram os cidadãos . Esta com-
plementaridade, característica dos próprios conceitos então vi-
gentes, ficou como elemento essencial dentro da imagem que
possuímos da "antigüidade", constituindo um elos traços daquele
sentido geral de equilíbrio que atribuímos ao mundo clássico.
22 O JARDIM E A PRAÇA

Há algumas questões que parecem permanentes, e que


ressurgem quando nos debruçamos sobre o panorama das cultu-
ras ditas antigas, em sua respectiva fase "antiga", isto é, em seu
período de formação, no qual se estruturam formas sociais,
formas lingüísticas, valores e imagens fundantes. Caberia por
exemplo pensar na relação entre a dualidade jardim praça e as
formas de estratificação social. Evidentemente a vivência das
praças por parte das classes altas terá sido sempre diversa da
vivência por parte das classes baixas: a construção mesma dos
"logradouros" foi sempre obra da classe dominante. Só que em
alguns contextos, determinadas praças serviram às aristocra-
cias como local de presença festiva ou cerimonial, e em outros
elas foram como que evitadas pela aristocracia e d eixadas à plebe
para fesLas ou para a simples ocupação cotidiana.
Por outro lado seria o jardim, ao menos em sua expressão
mais requintada, uma criação elas classes altas ("classes" no
sentido mais amplo e flexível do termo); um prolongamento elas
intenções espaciais contidas na casa, algo como um lugar espe-
cífico de "meditação" ou de refúgio pessoal. A criação de jardins,
espaços privados, deve ter sido mais um símbolo das diferenças
sociais, e por outro lado mais um elemento de distinção entre
área pública e área privada: grades e muros, a circundarem o
jardim e simultaneamente a prendê-lo à casa, terão sido bastan-
te distintos da abertura das praças, lugares "de fora" (fora das
casas, como o explícito forum latino), e terão delineado com
nitidez as reservas de privacidade instaladas para si p elos pa-
triciaclos.
Com a referência a estes problemas, entretanto, vale inter-
calar aqui uma alusão a um fato de caráter muito genérico, um
desses acontecimentos centrais cujos contornos são certamente
conjecturais, mas cujo significado para a evolução histórica é
básico. Trata-se do advento da vida urbana, profunda alteração
ocorrida em momentos distintos dentro daquela evolução - a
variar conforme os contextos -, a partir da prévia transição do
..: nomadismo para a "revolução agrícola", e em correlação com o
surgimento elas primeiras instalações fortificadas. Em correla-
ção portanto com a fixação da divisão das ocupações, com a
formação das línguas, com dezenas de definições iniciais, rela-
IITNDA SOBRE OS ESPAÇOS Ni\ IITST6RJi\ 23

cionadas inclusive com os começos do intrigante e fascinante


costume de se darem nomes aos lugares e às coisas.
E da mesma forma que tudo isso deve ter constituindo uma
espécie de crise, ou de ruptura, em face dos modos anteriores de
vida, assim também veio a ser o ponto-início de um largo proces-
so que modernamente veio desaguar em outra crise, ou em uma
série de crises, desatadas dentro do mundo dito ocidental (dele
sobretudo) como uma constante e como um referencial para
interrogações novas.
O que se tem hoje como crise é de certo modo a saturação
das estruturas e dos resultados da própria vida urbana, após (e
através de) longos e complicados percursos. Se por um lado foi o
predomínio da dimensão urbana que ensejou por parte de muitos
a compreensão da própria história como história da liberdade, a
partir do paralelismo entre vida urbana e vida livre (Stadtluft
macht frei, dizia-se na Idade Média), foi por outro lado verdade
que, com a dinâmica das a lterações históricas, centradas nas
cidades, desencadearam-se as dificuldades e os dilemas da con-
vivência, os conflitos maiores, inclusive- acentue-se- no tocante
às relações entre vida pública e vida privada.

No ocidente intitulado moderno, que se m1c1ou com um


conjunto de r evoluções culturais e sociais (que em geral se
denomina por conta de uma delas, o "Renascimento"), veio a
consolidar-se, dentro do acervo de imagens que chegaria até
nosso século, a figura elas grandes casas senhoriais. O modelo,
em si, seria oriundo da Idade Média: tais casas sempre foram
uma espécie de miniaturas de castelos. Havia nela s, entretanto,
sobretudo a partir do Barroco, uma pretensão de imitar palácios,
com espaços para quadros e vitrais, escadarias ornamentais e
coisas deste tipo. As grandes casas, de cujo modelo alguma coisa
foi transportada para as residências rurais das Américas duran-
te a colonização, foram de a lgum modo também continuadoras
das sólidas abadias e dos "fortes" feudais. Foram por sua vez
substituídas pelos chalés oitocentistas, e depois, em nosso sécu-
lo, pelos ambíguos "palacetes" e pelos duvidosos "bangalôs".
A grande casa, proveniente do absolutismo e depois corres-
pondente à perduração da nobreza, revela o inegável sentido de
espaço e de projeção espacial, peculiar ao ancien régime. Casas
24 O JARDIM E i\ PRJ\Çi\

com terraços e páLios, porões, desvãos, andares superiores, pin-


turas n as paredes, colunatas e cavalariças (o pátio, la cour, afim
ao dos conventos, fazendo pendant com o jardim). Trata-se da
casa cuja figura, por vezes pouco definida e também pouco
esbelta, mas expressiva, aparece caracteristicamente na pintura
dos séculos XVII a XIX, tanto nos ambientes rurais - aquele
ambiente inconfundível dos desenhos franceses, bem como do
Moulin de Pontoise de Corot - quanto nos urbanos . No ambiente
urbRno há variáveis que vão das empertigadas fachadas de
Canaletto às casas ditas normandas. De qualquer m a neira a
presença dessas casas nos perímetros urbanos denota, durante
ccrLa fase sobretudo, a residência de senhores de terra que
possuem propriedades no campo mas mantêm um imóvel à sua
di sposição na cidade.
Este tipo de edificação se acha magnificamente descrito no
Gattopardo de G. Tomasi di Lampedusa, justamente o palácio
da família Salina em Donnafugata, que possuía "sete janelas
sobre a praça" e que por dentro apresentava uma enormida de ele
quarlos, escadarias, salões e tudo o mais. Aliás o livro começa
com a descrição ele um jardim muito característico, e por sua vez
a praça de Donnafugata, mencionada no capítulo li ("vasta,
sombreada por plátanos poeirentos"), aparece como a lgo melan-
colicamente provinciano, algo ancorado no tempo como um espa-
ço romanesco perdido sem remissão.
Ainda a propósito das grandes residências das famílias da
nobreza, seria interessante observar que o absolutismo europeu
condicionou um emprego correlato do termo casa, na acepção de
dinastia (casa elos Áustria, casa de York, casa dos Bourbon), uma
acepção evidentemente muito antiga, herdeira de todas as lin-
guagens palacianas da história. O termo foi u sado também para
aludir às Casas do Parlamento inglês, a dos Comuns e a dos
L ordes. E com isso se teve um curios o entrelaçamento d a dimen-
s ão pública (política) com o plano privado: o reinado de tal ou
qual casa, na pessoa de tal ou qual governante, era um d ado
. institucional e entretanto consagrava a eficiência do matrimônio
monárquico.
Por outro lado, àquele tipo de casa (correspondente às
m ansões da nobreza urbanizada), a ela e ao s eu jardim se
contrapôs, no mundo barroco, a praça principal das cidades
AIND,\ SOBRE OS ESPAÇOS NA H!S1'6RIA 25

(inclusive aplaza mayor trazida pelos espanhóis para a América


Latina), entendida como centro do recinto urbano .

Quanto aos jardins dessas vastas casas, eles chegam- com


elas - ao século XX, copiados ou conservados. E em certos filmes
europeus (refiro-me inclusive ao Jardim dos Finzi Contini e à
Comilança), certos ângulos de velhos jardins de casas do fim do
século passado, ou do começo do nosso, sublinham as nostalgias
c as ironias dos diretores.
Vai aqui outra anotação. A importância de uma "vivência
ele jardim" foi sublinhada por Carl Schorske em seu belo livro
Viena Fin-de-Siecle 1, no capítulo "A Tansformação do Jardim".
Ao mencionar o romance Der Nachsommer, de Adalbert Stifter,
o historiador se detém sobre alguns elementos ela narrativa,
destacando o confronto entre a educação burguesa, ali retratada,
e a que se apresenta em Flaubert. Alude então ao encontro do
personagem principal com a herdade chamada Rosenhaus, onde
havia um jardim bastante significativo, oferecendo a impressão
ele tranqüilo domínio da natureza, ordenada segundo um plano
estético racional e pedagógico.

1. Trnd. Denise l.luLLmunn, Campinas, Siio Paulo, ~d. Unicrunp - Compnnhia das Lclrus,1988.
4. ACASA COMO TEMA HISTÓRICO

O tema da casa, ligado óbvia e indissoluvelmente à proble-


mática da privacidade e da "intimidade", demandaria por certo
uma série de digressões . Não seria desperdício verbal aventar a
idéia de uma evolução da casa como testemunho (ou correlato)
ela evolução das formas sociais e também das formas da autoi-
magem do homem: tanto se tomarmos globalmente as diferenças
sociais, incluindo nelas a divisão de posições e funções, quanto
se levarmos em conta os estágios da experiência religiosa e da
própria "arte", com seus padrões e seus estilos. O que se edificl'l
para a privacidade é evidentemente uma parte muito especial
da instalação do ser humano no mundo, uma parte que exprime
em termos concretos e particulares (contraprova do abstrato e
do genérico) o próprio ser do homem, com suas fraquezas e seus
prolongamentos . O viver social consiste e subsiste em várias
dimensões, e uma delas ocorre nas casas: as sociedades ao
emergir para certo nível histórico são cidades, e as cidades
constam de casas, colocadas em ruas. E como as ruas - como as
praças- são já outra dimensão, ::t pública, eis que o plano público
e o privado se tocam, se completam, se complementam. Aliás o
caráter de determinados atos nem sempre se prende ao fato de
o agente se encontrar em sua casa ou em logradouro público.
28 OJIIJWJM E A PRAÇ:A

Pode-se, estando em casa, desempenhar uma tarefa com sentido


público, como se pode defender interesses privados atuando em
recinto público.
Deixamos de lado o problema grave e nebuloso de saber se
a vida pública surgiu "depois" da vida privada, ou se ambas
resultam de um desdobrar-se de formas; se primeiro foi o todo,
o conjunto, e depois o espaço pessoal.
Sobre a temática da casa anotou Gastou Bachelard, em seu
livro J1 Poética do Espaço!, a analogia entre a casa e o cosmos,
não apenas quanto à estrutura, portanto ao aspecto espacial,
mas também quanto ao problema temporal: inclusive porque a
carga de tempo que passa por uma casa se integra na própria
imagem que dela possuem seus habitantes.
Este é de fato um tema rico de sugestões. Os arquétipos e
as exemplaridades legados pelas diversas civilizações, sobretudo
pelas épocas aristocráticas cle cada uma delas (admitindo que
em cada grande ciclo cultural tenha havido uma época, geral-
mente inicial, dominada pela nobreza), ficaram como marcas por
assim dizer definitivas. Sabe-se que Édipo foi castigado inclusive
por haver violado a ordem das coisas, o equilíbrio elo mundo, e o
que certos autores enxergam no conflito entre Creonte e Antígo-
na é que a legislação daquele desrespeitava a "natural" correla-
ção entre as leis do cosmos e as normas ela coneluda humana.
Entretanto, a idéia de casa não configura apenas o lugar físico
do morar, idéia fixada a parLir da morada das grandes famílias
iniciais, mas também os conceitos específicos de "berço" e de
"teto". São conceitos vinculados aos valores feudais, ou seja,
vinculados à imagem do sangue e também à noção de "origem":
ter teto e berço, ou por outra ter eira e ter beira, foram sempre
marcas de nobreza dentro dos contextos feudais ou para-feudais.
Marcas qualificadoras, fora das quais, como algo excluído, fica-
vam os plebeus, os não-patrícios. Observemos outra coisa: como
a casa é o pouso, e ter casa sempre significou possuir um espaço
definido, as épocas aristocráticas sempre desconfiam do homem
errante. Ele é um marginal, a não ser que seja um santo.
Compreende-se então que a "burguesia", que em seus inícios
revelava certas forn1as erradias de viver, ou ao menos de vender

I. 'I'rud. brus., llio de Jnnciro, Livrariu Eldorado 'l'ijuca, s.d.


il CIISJ\ COMO TEMA JIJSTÓRJCO 29

(um tanto em contradição com o fundamental sentido de demar-


cação espacial ou "urbana" que lhe correspondia), fosse mal vista
pela nobreza dominante.
Sobre o problema das "primeiras formas urbanas", qu e
necessariamente acode quando se coloca o tema das origens das
instituições, nas primeiras culturas, vale registrar aqui dois
livros de orientação distinta mas ambos interessantíssimos: o de
Regis Debray, O Escriba - Gênese do Político, e o de Edgard
Morin, O Paradigma Perdido2 • O primeiro, baseado sobre certas
influências marxistas, coloca questões muito provocativas, alu-
dindo inclusive à possível disposição espacial d as estruturas
iniciais, onde provavelmente o senhor habitava o Centro, com
sua grande casa, em redor da qual se achavam, como em círculos
crescentemente alargados, as famílias nobres, os homens livres,
os escravos. No segundo temos a antropologia (física e cultural)
a serviço da indagação sobre origens: para Morin diversos tipos
ele sociedades se sucederam como camadas formativas desde os
começos, mas a história propriamente dita surgiu com os Esta-
dos, que eram. organizações específicas.
Certo que não é fácil, em termos antropológicos ou arqueo-
lógicos, fundamentar ele modo positivo estas alusões; mas elas
se encaixam, com sentido bastante inteligível, em uma série de
t estemunh.os . Deve ter havido, com efeito, a presença ela casa no
m eio elas formas iniciais: a casa maior c as casas menores . E eleve
ter havido, nas monarquias primordiais, que se prolongaram nas
grandes realezas pos teriores, um conteúdo de significações que
fundou muitas coisas, desde então permanentes. O que equivale
ao seguinte: temos ele reconhecer que a m aioria elas categorias
clássicas elo pensamento c da organização provém do t empo em
que os grupos humanos possuíam reis c rainhas.

2. () I~Rcriba- Gênese do l'olitico. Tn"l. M. de Cns lro, n io dc:.Jandro, T!ctour, 1983. Lc Paradigme
perdu, lutwlur e Jw maine, Seu i I, Paris, 1973.
5. VIDA PúBLICA E VIDA PRIVADA

As coisas que simbolizam o lado público e o lado privado da


vida podem ser arroladas segundo critérios bastante diversos.
Entretanto, sempre se pode situar o encaixe existencial de certos
objetos, conforme a correlação com aqueles lados. Deste modo
teremos em um sentido a cama e a mesa, a poesia lírica, o direito
privado, a psicologia, o médico de família, o jogo de cartas. Em
outro o comércio, a forca, a saúde pública, a b urocracia, os
bancos, o direito público, o circo, a poesia épica . Ou ainda,
refazendo a estampa, a sala, o leito de morte, o banho, o punhal,
os tapetes, os cosméticos; ou então o mercado, a espada, as
estradas, os templos, a política. Poderíamos pensar na evolução,
uma possível e conjecturai evolução dos âmbitos privados ao
espaço público; e aí o trânsito elo dinheiro privado aos dinheiros
públicos (embora seja válido pensar num trajeto oposto), bem
como a evolução dos cemitérios privados aos cemitérios públicos.
E aqui teríamos o jardim como correlato do foye r, ou ela "lareira";
depois, a evolução do culto doméstico ao culto público.
Também a dimensão sexual da vida, no sentido mais amplo
do termo "sexual", se acha relacionada ao dualismo público-pri -
vado. O jardim., inclusive como boosco deleitoso (e/ou reminiscên-
cia do paraíso), sempre serviu ele cenário acolhedor e conivente.
32 O JARDIM F: i\ PRAÇA

Podem-se recordar os casais famosos da literatura e da arte, com


seus momentos no jardim: Romeu e Julieta, Fausto c Margarida,
.1\!fário e Tosca. Talvez coubesse aventar que no jardim se ence-
nam os amore s não "publicáveis", não (ainda não) passáveis à
praça. Seria o caso ele distinguir entre suicídios no jardim, mais
recolhidos, mais discretos, elos suicídios na praça, mais dramá-
ticos. Em Proust, em certa passagem do Caminho de Swann, há
uma referência ao caráter "mitológico" do Bois ele Boulogne.
Encontramos n o livro ele Paul Veyne, A Elegia Erótica
Roma.na 1 , o problema elas relações entre a publicidade, rep resen-
tada pela literatura, que revela e divulga situações pessoais (a
poesia lírica por exemplo), e a viela privada. Para Veyne, os
autores antigos não se expunham, não revelavam facilmente sua
verdade pessoal, mesmo nos textos literários escritos na primei-
ra pessoa; na literatura moderna é que a "sinceridade" sentimen-
tal se teria tornado mais corrente e mais perceptível.
Caberia questionar, passando a um assunto afim, sobre até
que ponto o que se chama "vida sexual" constitui realmente ou
totalmente uma coisa privada.. Evidentemente a idéia provém
do caráter íntimo das atividades sexuais específicas, que sempre
se consideraram próprias para ocorrer "entre quatro paredes".
Contudo a família e os vínculos biológicos são em todas as
civilizações algo ostensivo, c mesmo os "caracteres" sexuais
externos se confirmam em todos os povos através do traje e ele
outros símbolos. O problema corresponde certamente a uma
variável histórico-cultural, havendo, é claro, ponlos extremos e
graus intermediários . Um extremo, o puritanismo vitoriano,
en gendrador de hipocrisias e repressões, com as pessoas cober-
tas d e pano dos pé s à cabeça e com mil eufemismos na linguagem;
outro, o u so de formas obscenas na antiga cloçaria de certas
regiões européias, ou en t ão os atuais espetáculos de "sexo explí-
cito", senã o mesmo o nudismo, inclusive o das praias de hoje.
Lembro-me do ens aio de Aldous Huxley "Modas em Matéri a
de Amor", inserido em seu livro Do What You Wilf2, onde alguns
problemas correlat os se acham colocados.

I. A ~ll!gia E rólim Uomana. O Amor. a l'oesia. e o Ocid.enle, Siio Paulo, Brasiliense, 1085, p. 252
c ss.
2 . Trad. Lnts . Salânicos e Visionários, Rio de J aneiro, American a , 1075.
VlD11 PÚBLTC11 E VIDA PRIVADA 33

O problema do sexo se desdobraria aqui no tema do "erotis-


n1o", termo que sempre me pareceu um tanto ambíguo, ora amplo
demais ora eufemístico. Sobre o erotismo muito se tem escrito,
inclusive com o livro ele Georges Bataille, e com o de Denis ele
Rougemont sobre a "história do amor no Ocidente". Ou se trata .
da história dos modos de amar no sentido psicológico, ou o
assunto são formas ele "expressar" o amor, inclusive em suas
projeções estéticas; e por aí deslizam as ambigüidades.
Recentemente Richard Sennett, em seu livro O Declínio do
Homem Público3 , colocando o problema da exibição pública da
"personalidade", tratou da evolução elas roupas a partir daRe-
volução Francesa: com o Termidor, as mulheres resolveram usar
menos roupas, desnudando-se mais e iniciando ciclos de moda
que iriam oscilar até nosso século.
De fato o problema das vestes, como o da vida sexual,
participa da área privada e da pública: projeta-se daquela sobre
esta e reflui desta para aquela, como em um movimento penclu-
lar. A tradição c01·rcsponde a uma distinção entre traje de casa
c traje de rua, distinção que se acentua nos contextos mais
formais, e que o professado "informalismo" de nossos dias ainda
não conseguiu extinguir de todo. Um pedaço de pano pode alterar
o "efeito" da figura humana, e nas civilizações mais conhecidas
a dignidade social sempre corrcsponde a um tanto mais ele tecido
ou de adornos sobre o personagem. Recordo uma passagem de
Anatole France em que alguém, olhando com enlevo o ar "subli-
me" de certos retratos ele intelectuais românticos, observa ele
repente que aquele ar dependia de uma escova de cabelos. O
senLiclo de tudo isso é o seguinte: somos socialmente uma ima-
gem, que é projeção do ser real através de expletivos destinados
a fixar n a dimensão pública os caracteres da individualidade .

3. 'l'rnd. L. W"t.11nnbc, São Pnnlo, Companhia das Letras, 1988, cap. 8.


6. DOS JARDINS À ORDEM PúBLICA

....,.

No meio da profusão de imagens com que representamos a


"história antiga", em especial sua parte que se entende com o
rótulo de "mundo clássico", encontra-se com certa constância a
figura dos jardins. Jardins orientais, registrados na pintura e na
literatura, quase confundindo-se com oásis e com o vago mistér io
dos muros árabes . Os jardins da Pérsia; os do Egito, que P ierre
Grimal, no pequeno livro L'Art des jardins, afirma terem sido
verdadeiros asilos da vida privada. Os famosos jardins da Babi-
lônia, incluindo os da princesa Semiramis, os quais impressio-
naram aos gregos mais pelo arrojo do que pela beleza
propriamente. Sempre o espaço privilegiado, e sempre que pos·
sível fechado: o cintamento, a vedação, o acesso através de
escadarias ou passagens especiais. E sempre o sentido de con-
forto e repouso, como em um paraíso (o termo vem do persa, de
um vocábulo que designava "jardim"); o oposto do calor do deser·
to, da vastidão das areias, do "descampado".
Certos povos antigos consideraram alguns ele seus jardins
recintos sagrados. Tratava-se justamente, conforme observou
Mircea Eliade, ele jardins onde se reproduzia em miniatura a
ordem elo mundo, com suas partes e as respectivns funções.
J6 O ,JJIIIDJM E 11 l'Ri1Çt1

De qualquer sorte, ficou desses arquétipos, isto é, com eles,


a idéia de que o jardim coloca ou recoloca o homem dentro do
plano "natureza". Sempre vale mencionar o belíssimo afresco,
que decorava uma sal::~ da Casa de Lívia em Prima Porta, perto
de Roma (e que hoje se conserva no Museu Nacional das Termas),
representando um jardim cheio de pássaros, com flores e romãs.
Do mesmo modo ficou a noção de "cultivar (cada qual) o seu
jardim", noção com certo sentido intimista e talvez biográfico. O
cultivo do jardim, como atividade privada, é algo contíguo à mesa
e aos implementas pessoais, diferentemente elos cultivos agríco-
las, que são externos. O verbo coZere, de onde viria o vocábulo
cultura, é sempre evocado nas etimologias em sua acepção agrí-
cola, mas parece que a acepção privada do "cultivo" não pode
estar fora ela idéia.
Richarel Sennett, no livro O Declínio do Homem Público
(mencionado mais acima), coloca um problema interessante ao
referir a idéia, própria segundo ele dos homens elo século XVIII,
de que a "natureza" e a "cultura" corresponcleriam respectiva-
mente ao privado e ao público. O esquema é sugestivo e chega
perto da verdade, salvo o fato de que o binômio natureza-cultura
só adquiriu vigência depois elo neo-kantismo, e seria impossível
encontrar esta idéia no século XVIII. Mas de fato a "viela privada"
sempre foi vista e sentida como um refúgio, um retorno ao
orgânico, e n este sentido a família sempre foi entendida como
fenômeno natural: não só pela dimensão biológica, mas pela
significação essencialmente privada.

Jardins: a imagem clássica, empregando aqui o termo em


conexão com o mundo greco-romano, inclui vez por out ra uma
alusão ilustre, que se prende ao nome de Epicuro. O epicurismo,
por sinal uma filosofia que historicamente teve menos fortuna
do que merecia (e que merece ser repensada hoje), tem entre
outros aspectos o sentido de cultivo da vida privada, com seus
prazeres mas também com a consciência dos limites deles. E o
jardim aparece aí como asilo do pensar, não só em face ela
agitação e das vanidades da vida pública mas diante das adver-
sidades políticas (todos sabem que a doutrina do Epicuro, neste
ponto, refletiu o apagamento do poder grego e da política grega):
DOS JARDINS A ORDEM PÚDLTCA 37

diante elo aniquilamento dos ideais públicos, os da ágora e ela


polis.
No testamento ele Epicuro figurou com especial destaque a
doação, a Remarco, de seu jardim (e da escola que nele existia).
O jardim configurou a convivência filosófica, e nisso o epicurismo
foi herdeiro do platonismo e elo aristotelismo, mas só nisso e no
sentido pedagógico daquela convivência. De certo modo a doutri-
na de Epicuro expressou também a valorização da amizade, tema
que seria retomado por Cícero e outros pensadores elo mundo
clássico . A amizade tem sido realmente uma variável histórica,
e cabe aqui aludir a isto: ela se delineia sempr e como um
componente da vida privada . É como se na vida pública as
alianças e coligações fossem tão somente articulações eventuais
ou estratégias objetivas, não penetrando no ser pessoal de cada
qual: recorde-se que Carl Schmitt, ao considerar que o elemento
definidor da política se acha na distinção entre amigo e inimigo,
prendeu o termo inimigo ao latim hostis, não a inimicus, acluzin-
do que se referia ao inimigo público n ão ao privado.
E mais, quando Platão, que condenava o tipo ele amor que
os modernos chamariam romântico, preten dia que os guardiães
de sua cidade tivessem filhos em comum, para que o vínculo
paternal-filial não estorvasse a clara visão dos filósofos, ele
p arecia d esvalorizar também a própria "amizade" em sentido
geral.
Evidentemente a tematização destas cois as em uma civili-
za ção como a grega (e romana), onde o lado personalíssimo elas
relações entre os sexos pesava menos elo que as normas institu-
cionais, e onde o intercurso homossexual era mais ou menos
corrente, tinha de ser diversa daquela que é possível fazer hoje.

Retorno ao p roblema do jardim. Sem dúvida o jardim con-


centra e registra a privacidade retendo uma porção da natureza,
enquanto que a praça vem a ser um espaço aberto na natureza,
senão mesm.o contra ela. Um espaço muitas vezes tido com.o
sagrado (morada de um deus, com seu t emplo), quase como um
modo ele compensar a violência, ou violentação, que o origina. Na
verdade o jardim é também cu ltural, e o que s e tem são dois
modos de ser elas relações entre o homem e o mundo. Na língua-
.18 OJAJWJM E A PRAÇA

gem de Ludwig Klages, dir-se-ia que o jardim corresponde à


alma, e a praça ao espírito.
A praça, caracterizada em todas as civilizações como espaço
"público", não tira seu s ignificado do mero fato da convergência
de vias "públicas". Ela pode ser anterior às ruas, ao menos
logicamente (ou estruturalmente) anterior. A rua, por sua vez,
possui a mesma essência da praça, posto que todo o traçado
urbano, que na praça se concentra, é a lgo público. A consagração
histórica do fenômeno urbano significa no fundo a consagração
ou consolidação da vida pública. Só que o jardim também terá o
que ver com o fenômeno urbano, mas em outro plano.
Por outro lado, como o termo público, que vem de "populi-
cus"- de populus, povo-, só aparece com os romanos, é obvia-
mente por projeção e extensão que o em:greg!_lmos para designar
experiências ocorridas em sociedades pré-romanas ou em qua·
drantes culturais estranhos ao percurso histórico dos povos
"clássicos".

Caberia dizer, e aqui retomamos as metáforas, que o jardim,


sendo fechado, é lírico, e que a prllça, sendo aberta, é épica. O
j ardim é côncavo, a praça é convexa. O jardim encerra a biogra-
fia, a praça a história; um é introvertido, a outra extrovertida.
Dois momentos, duas dimensões do humano e ele sua projeção
nas (ou sobre as) coisas . Dir-se-ia também que no jardim o espaço
se põe em função das plRntas, enquanto que na praça o espaço é
o principal: em função do espaço se colocam árvores e monumen-
tos.
O "ar aberto", atributo da praça, corresponde ao advento do
nível institucional da vida, à instauração de uma ordem. genérica
(e menos "pessoal") elas coisas, ou seja: uma ordem em que os
comportamentos se regulam em função de fins sociais definidos.
O que já levaria ao problema ele não ser, a liberdade, uma
descomprometida e anômica permissão total de agir, mas uma
condição social situada. A respeito da concepção grega, por
exemplo, Max Pohlenz escreveu muito sugestivamente que

a origem da ~on~ei ência da lilx~ rdnd e se acha no domínio privado, no colllrnstc em


<Jlle o "senhor" c sna família se vêem em l'ace elo ser·vidor, CJlle é pal'l.e de seus ueus o
CJ<re não tom dire ito n dispor de si mesmo. A e tnpn seguinte foi a reunião de servidores
ni'io-livres em nma categoria especio l, em l'uce clu qual os ltomcJrs CJUC 11gem por si
DOS JARDINS ;i ORDEM PÚBLICA 39

mesmos serão os "l ivres", sendo que com isso Lomnm plena consciência do que
rept·cscnta para eles o privilégio de intervir nos negócios da comunidade'.

Ao aludir ao "ar aberto", que nos levaria a identificar com


a praça a própria cidade, temos de ligar o assunto às diferencia- .
ções que, pelo curso dos séculos, atravessam a distinção genérica
entre o lado "grupal" e o lado "pessoal" da multi milenar expe-
riência do ser humano. Dentro da politicidade do homem, vemos
que o an imal propriamente "político" (ou social), isto é, o habi-
tante específico da polis não era a mulher - senão em certos casos
-, era especificamente o homem masculino. A casa era o reino da
mulher grega, que a governava, como foi o caso da matrona
latina. Daí que nos últimos Lempos da Antiguidade pagã a
filosofia aparecesse como consolação (consolatio): ela "fazia com-
panhia" ao homem que perdeu a polis c ficou em casa, que saiu
da praça e se recolheu ao jardim, diminuído em sua dimensão
pública embora podendo enriquecer-se epicuristicamente em
sua maturação privada .
Detenhamo-nos sobre este ponto. As imagens provenientes
ela hist ória "antiga" - na verdade a história elas primeiras
culturas, Antecessoras da "ocidental" - nos sugerem r epetida-
mente um tema central, o da correlação entre a política, com sua
óbvia condição urbana, e a sacralidade dos espaços fundamen-
tais. Espaços demarcados desde os primórdios como pontos de
referência, e associados, desde cedo, aos parâmetros celestes.
Segundo Mircea Eliade, as cidades no Oriente antigo eram
traçadas e edificadas conforme modelos cósmicos que funciona-
vam como arquétipos: as cidades babilônicas, por exemplo, ti-
nham como modelos determinados constelações, e entre os
hebreus se fa lava em uma Jerusalém celeste, copiada pela ter-
restre2 Parece inclusive que a noção de uma "cidade ideal" vem
daí, passando depois por Platão e por Agostinho, e a própria
teoria platônica das idéias tem que ver com a velha concepção
que imagina em um "lugar celesle" uma série de modelos eter-
nos.

l. 'l'rnrlu ~i mo.s parafraoli~.;<JHH.:ntc segundo n vcr~õo francc~o <lc ~J. Coffinct., J~a T..i lX!rlá Grccque,
Pnris, Pnyol. 1050, p. 18.
2. r.e Afytlw de l'elcrnel relour, Paris, Gallimard, 197S, Cfl]l. I.
40

A exemplaridade assumida pelas imagens provindas da


Grécia antiga parece entretanto ter sido a máxima. Isto apesar
de que às vezes se exagera nas referências às coisas gregas
(assunto ao qual já fez menção o professor Moses Finlay no livro
Uso e Abuso da História).
Assim, a exemplaridade que envolve a figura das cidades
gregas se tornou por sua vez extrema, inclusive com o eco da obra
sempre viva de Fustel de Coulanges, La Cité antique (de modo
nenhum superada pela "resposta" de Gustave Glotz em seu La
Cité greque).
Em texto interessantíssimo, Jean·Pierre Vernant assinalou
que nas cidades gregas se teria tido pela primeira vez o destaque
de um determinado plano da vida social como objeto de reflexão.
Ele se r efere ao próprio emergir de um pensamento político, que
teria vindo, no caso, completar a existência de um específico
domínio político dentro da vida social gcraP. Ocorre entretanto,
e é o mesmo autor que o mostra, que a formação de um modo
realmente urbano de viver- com seus espaços peculiares e seus
padrões de comportamento- importou em uma crise do sagrado.
Esta crise, acrescentamos nós, nos leva ao tema da diferença
entre o sagrado rural, talvez primevo, o das grandes pedras e elas
grandes águas, e o sagrado urbano; a "crise" equivaleria ao
gradativo predomínio deste, mais ligado ao poder urbano, ao
mesmo tempo que mais instável. A historicidade inerente ao
meio urbano predispõe (agregamos ainda) ao próprio conceito de
crise, que historicamente pressupõe o hedonismo latente na vida
urbana- coisa que Ibn Kaldum já perceber a-, bem como certas
tendências, já presentes no mundo "antigo" e ostensivos no
ocidente contemporâneo: a tendência à racionalização (com suas
ambigüidades), a tendência ao individualismo e à massificação.
Assim as crises, que se prolongam na modernidade, vêm a ser
crises (como já dissemos) da articulação entre vida pública e viela
privada.
É possível que em outros povos "antigos", que não os gregos
e os romanos, a relação entre viela pública e vida privada não
tenha tido recortes tão claros nem conotações axiológicas tão
perceptíveis, mas em todos os povos deve ter existido a diferença

3. Mito e P e11-Salllmlo Clil r c o.s Gregos, Süo Paulo, Difus ão Européin do LivrcYUSP, 1973, cap. l 11.
DOS J1\ RDTNS À ORDEM PÚBLICA 41

entre as duas dimensões do viver. O que se destaca, contudo,


como algo que entre os gregos teria surgido com nitidez maior, é
a origem de uma qualificação política da dimensão pública. A
política como ação, no sentido de Hannah Arenclt, ação casada
ao próprio questionamento das estruturas da ordem (portanto
ao uso hermenêutica da palavra e da discussão); algo substan-
cialmente, irredutivelmente distinto da dimensão privada do
viver.

Retomemos a referência à politicidade atribuída ao "ho-


mem", e à condição diminuidora (os romanos fa lariam em capitis
deminutio) que foi a do cidadão grego privado da praça e devol-
vido, após a invasão macedônica, R sua casa e seu jardim.
Ocorre pensar, e seria talvez um truísmo fazê-lo em termos
de "sociologia do conhecimento", na correlação entre as concep-
ções da verdade e os padrões sociais do viver. E como não
considero inteiramente destituído de senso o esquema da "lei"
elos três estados, de Comte (inspirada em Condorcet), poderia
aludir a uma verdade teológica, outra metafísica e ou tra socio-
lógica: esta sucessão de fases se apresenta exemplarmente no
caso do Ocidente, mas também é reconhecível, sobretudo quanto
às duas primeiras formas, no espírito "antigo". Todos sabem que
ao estágio inicial c01·respondeu, no caso grego, a idéia ela verdade
como "desvelamento" (aletheia), como uma fAce que se descobre
por conta de um fator especial, qual seja R nçi:io de um sacerdote
invocando um oráculo, ou uma "revelação" excepcional; e que
depois, com os progressos do modo urbano d e vida, veio a preva-
lecer o sentido ]Rico da verdade, com a valorização do diálogo e
da palavra-argumento, desenvolvida precisamente dentro do
espaço público. Num estágio teria predominado, por assim dizer,
um sentido a um tempo privado e religioso, no outro um sentido
público e político.

Será truístico, portanto, dizer que o emergir ela noção de


"coisa pública" implicou o mundo clássico a valorização da vida
pública. A casa se alarga e dá (liLeralmente) lugar à cidade:
"cidade", na cultura clássica, significando a própria sociedade
política. Os romanos, que tiveram para tudo isto uma profunda
e eficiente sensibilidade, completaram aquela noção com a de
42 O .!t\HJJIM E 11 PRAÇA

ordem, pública, correia La da idéia do direito, o jus que é também


função da cidade.

Ainda uma anotação histórica. A v1gencia da dicÇ~tomia


direito público-direito privado varia conforme os contex tos his·
tóricos. Certos autores têm observado que na Idade Média euro-
péia, vale dizer durante os séculos em que prevaleceu o
feudalismo, aquela dicotomia praticamente inexistiu. Teria ha-
vido então um predomínio das estruturas privadas - laços pes-
soais, fidelidades pessoais -, ou então uma espécie de misto ou
meio t ermo, em que o poder do "senhor" feudal, com sua família
e seu entourage privado, era ao mesmo tempo um poder genérico
e institucional. O crescimento elo pensar secularizado, com o
racionalismo e o iluminismo (que inclus ive delineou com nitidez
a diferença entre política antiga e política moderna), consolidou
dentro do liberalismo uma visão renovada da antiga dicotomia,
vindo a Revolução Francesa a configurar em seus resultados
legislativos uma cluplicidade de planos: no plano do dir eito
público as constituições, no do direito privado as codificações.
Enqua nto isso, o senLimento de "modernidade", que surgiu
nos intelectuais do Ocidente a partir do século XVII mais ou
menos, e que incluía a consciência ele "posterioridade" em relação
aos "antigos", ressoaria na querela elo tempo de Perrault e
também, muito depois, na famosa conferência de Benjamin
Constant sobre a liberdade dos antigos e a dos modernos. A
partir de certos dados, e ele certas motivações, reforçou-se a idéia
de uma diferença muito grande entre o homem moderno e o
antigo. A Cité Antique, de Fustel ele Coulanges, trazia em certos
tópicos a noção de que aos antigos faltava de fato a plena
dimensão ela individualidade, noção aparentemente estranha,
mas não tanto: o grande historiador se referia ao caráter peculiar
da "liber dade greg::t", que era mais uma adesão do cidadão à sua
polis do qu e uma contraposição em face dela. D e qualq uer sorte
Fustel ressaltou o império das instituições sobre o arbítrio pri-
v::tdo, inclusive no plano da família e do "amor", onde não parece
ter havido a larga parte ele opção c fruição que a culLura contem-
poriinea confere aos indivíduos. Como se sabe, o problema de ter
ou não havido em plenitude a consciência da individualidade (e
da subjetividade), entre os antigos, foi já debatido por diversos
DOS JARDINS À ORDEM PÚJJL!Ct\ 43

autores mais recentes, inclusive com extensão ao tema da ine-


xistência de um "direito subjetivo" entre os romanos; mas não
nos estenderemos sobre isso.
O problema ela limitação ela idéia ele subjetividade entre os
gregos e romanos nos levaria entretanto a duas ponderações.
Primeira: entre os povos elo Oriente antigo o problema sequ er se
punha, pois, a não ser em pequena medida, as individualidades
não conseguiam con trapôr -se ao peso elas instituições . No caso
da polis e das civitas é qu e as questões emergem (passem estas
generalizações, merecedoras de ressalvas, como modo de esque-
matizar o tema). Segunda: o que a m entalidade liberal contem-
porânea enxergou mais no panorama antigo, de modo a
considerar minoritária a presença do indivíduo - e de sua liber-
dade pessoal - foi o vulto do Estado: tanto na polis grega,
aligeirada por sua correlação com as esbeltas colunas do Parte-
non e pelas alusões dos filósofos, como no imperium romano,
pesado e duro como os bronzes das estátuas dos Césares. O
Estado e a família primavam sobre o indivíduo, e este valia
m enos por si do que como elo ele uma cadeia, dentro da família,
ou como um componente condicionado, dentro do Estado.

Mas pRsscmos outra vez ao tema ela casa. A crise da casa, nas
cidades do século XX, tem sido correlata de várias outras crises, como
a da privacidade, a elo liberalismo, a ela família, a das "humanidades"
e outras mais. Talvez, crise de coisas que hoje parecem "conservado-
ras", mas que sempre tiveram o que ver com uma certa imagem ela
viela c com importantes realizações históricas.
De fato as casas se extinguem, ou, quando isto n ão ocorre
literalmente, perdem seu velho sentido ele "morada". Refiro-me à
substituição d a residência em casas pela r esidência em apartamen-
tos, a princípio preferidos por mais práticos e mais baratos, depois
por m ais seguros, e afinal impostos a quase todos pelos enormes
aumentos de população, nas décadas mais recentes. Outrora, nas
cidades, cada coisa tinha seu lugar, sem muitas mudanças, e em
cada bairro tinham seu lugar a igreja, a escola, a casa de Beltrano.
O mundo de hoje, invadido pelas comunicações que segundo Um-
bcrto Eco dividem os homens em "apocalípticos e integrados"", é

•J. t\J!fKX!IÍpliros c Tnleyrados, Siio Paulo, Pcrspccl ivn, I DR7.


·14 O ,JJ\TWIIlf E A PR.1lÇA

um mundo em permanente alteração, em que nada é duradouro.


Além de se extinguirem as casas, e com elas o espírito ele
estabilidade que parece ter havido em tempos anteriores, dá-se
que as pessoas já não gostam de ficar em casa: correm cada
"fim-de-semana" pnra fora e para longe delas, auxiliadas pelos
automóveis (Hesse já dissera que para o homem do novecentos
o auto é o "objeto-rei") e impelidas por uma compulsão. Alguém
já aventou a idéia ele associar este instabilismo espacial de hoje
a um novo nomadismo, uma volta ao viver nômade e errático de
outras eras .
Do mesmo modo que temos o paradoxo do jardim coletivi-
zado, e até massificado, com as "áreas de lazer" elas vilas popu·
lares e com os playgrounds dos edifícios tipo classe média, temos
também o problema da praça demasiado cheir~, com excesso de
pessoas em todas as ruas e logradouros, rompendo com a dispo-
nibilidade de espaço c de "ar livre", que sempre foi própria da
praça pública.
É a agonia dos velhos esquemas e d e certas imagens tradi-
cionais. O ideal do "homem", moldado pelo humanis mo greco-ro-
mnno e pelas adições ocidentais, e que com a burguesia dos
séculos XVIII c XIX se havia desdobrado no conceito de "cidadão"
(citoyen, Staatsbürger)r,, entrou também em um processo ele
corrosão. Aquele conceito, que no fundo era correlato do ideal
contratualista (segundo o qual as vontades individuais se arti-
culam com a vontade "geral"t tendia a fazer de todo ser humano
um homem público, Alçando ao nível global da sociedade política
a existênci a pessoal ele cada um. Este ideal entrou em crise por
conta dos problemas sociais vindos do século XIX, e com ele as
formas de vida histórica que o haviam acomprmhado.
Certo, Lodos sabem que por cima d a imagem da crise pode
colocar-se uma placa aludindo ao futuro, que poderá ou deverá
ser melhor; como da visão do declínio disso ou daquilo se pode
concluir que o que entra em declínio são coisas a serem substi-
tuídas; ocorre porém que não se enxerga quase nada p~ra além
da crise e do declínio, e este alcança justamente coisas que
vinham integrando a própria iml'lgem do homem e do "humano".

5. I lcrtwutll llcllet·, l?scrilos Po/(ticos, trad. cs p. S. de Arlechc, Madrid, 1\liunza E ditorial, 1!)85,
pp. 2•11 c ss.
DOS JA RDINS ,i ORDliM PÚJJDTCII 45

Coisas vindas de um longo e profundo processo histórico, descon-


tínuo e fragmentário mas expressivo e inteligível, e que inclui
conflitos e fundamentações, mitos e imagens, dados e teorias. O
que uns tantos apontam como melhor, festejando a crise e até
saudando o que alguns chegam a chamar de "derrota da inteli-
gência"6, é sempre algo vago, algo indefinido e no fundo d epen-
dente de elementos hermenêuticas que se acham dentro do
próprio processo histórico hoje entrado em crise.

Falei do humano, pouco acima. Em 1958, a grande pensa-


dora (os que chamam as poetisas de poetas deverão escrever "o
grande pensador") H annah Arendt publicava seu notável livro
The Human Condition, baseado em uma visão histórico-antro-
pológica da evolução ela própria experiência humana7 . Detendo-
se sobre os est::lgios dessa evolução, Arcndt analisa ali as
implicações da disLinção entre vida pública e vida privada, que
se relaciona com problemas histórico-sociais muito relevantes.
E ao aludir a o problema da sociedade de massas, observa que
esta chega a d estruir a ambas as esferas, a pública e a privada,
pois "priva os homens de seu lugar no mundo e também do seu
lnr privado": a complementação ideal entre as duas dimensões,
a privada em conexão com o trabalho e a pública em conexão com
a ação, depende d e certas estruturas que, se não mantidas,
tendem a elimim1.r o equilíbrio das coisas.
E videntem ente t udo isso soa a liberalismo. Mas não ao
liberalismo ele certos "liberais" de hoje, dispostos a aplaudir
ditaduras e a apoiar regimes militares, e sim ao liber a lismo
clássico, que e m nosso século inclui também o nome sério de Leo
Strauss e que remonta às fórmula s pedagógicas do iluminismo,
com a apologia do cives latino e da praça popular.
Trata tamb ém do tema - o da coisa pública - o d enso e difícil
livro de Jürgen Habermas, de 1962, Strukturwandel der Offent-
lichheit8, que já referimos. Partindo d a distinção grega entre
coisas comuns e coisas privadas, Habermas menciona a ágora e

(l,AlninFinkiolkraaL, l.n!Ji'fitilet/(• In pm8rP, Pnris, Gnllimard, 1<)87.


7. A Condição Humana, Hio de .T:t11eiro, Edusrv'ForellHe, 1981.
S. Trad. franccen , l."l.:spa('(' public, op. cit.
QJ,\RDIM E i\ PRtlÇA

com ela a noção de "ação em comum", observando por outro lado


a "força normativa" existente no modelo helênico da esfera
pública, sobretudo na forma em que este modelo veio a manter-se
a partir do renascimento. Para Habermas, o conceito feudal de
senhor (seigneur) teria sido neutro em relação às categorias
"público" e "privado"; e com a burguesia, realmente, é que se
teria tido o retorno da noção de esfera pública: a burguesia,
sempre interessada na circulação das mercadorias e também na
das informações, teria r edim ensionado essa noção, vinculando-a
a uma série de componentes novos, inclusive a "opinião pública".
Parece contudo haver um certo exagero nos termos em que o
problema é colocado por Habermas. O conceito medieval de
seigneurie, que de fato não se identificava com o poder elo Estado,
não era propriamente neutro em face elo binômio privacidade/pu-
blicidade; era referente a um. tipo ele estrutura ond e vínculos
basicamente privados se ampliavam até alcançRr sentido públi-
co, e em que vigências culturais muito amplas- como as imagens
do Sacro Império e da Madre Igreja - vinham por seu turno
penetrar certos atos privados.
7. PRIVATISMO E PUBLICISMO

Mas voltemos às imagens clássicas e mencionemos de novo


a ágora: praça do mercado, eixo social da polis, espaço centrRl e
vital, tornado historicamente símbolo da presença do "povo" na
atividade p olítica. Os gregos diziam qu e havia povos com ágora
e povos sem ágora, uns com liberdade e outros sem liberdade.
Naquele espaço central se sit uavam os elementos da vida públi-
ca: cenário, atores, ação. Nele estavam os debates e as facções,
as queixas e as decisões, e sobretudo a palavra como componente
d a dimensão pública: ao fazer-se pública a palavra, publicizava-
se a condição do homem. A polis, quase literalmente, teria tido
na ágora a sua pulsação. O espaço público, rea lizado a partir de
diversos espaços particulares convergen tes (inclusive o das ca-
sas inicia is, mencionadas por Fustcl), antecipava o modelo cor-
responden te a o idea l contratualista, antecipando também outros
ideais ocidentais.
Entretanto, como se sabe, a derrocada dos gregos diante da
Macedônia, no fim do século IV a.C., esvaziou a vida política
grega, e com e la a democracia da ágora com seu s temas e suas
arengas: acabou -se a importancia dos discursos políticos e do
h omem público por excelência, o político. Ao s ubmergir dentro
do domínio macedônico, a polis deixava de ser a medida das
18 O JA /1/J/M E 1\ PIIAÇA

crenças gregas (e aqui o termo pode entender-se no sentido


orteguiano da distinção entre idéias e crenças). Restava o cos-
mos, inacessível aos golpes dos hoplitas e abrigo maior da razão;
e restava a vida privada. Quase uma antecipação da frase de
Kant sobre o céu estrelado e a lei moral.
Na verdade o afundamento da experiência política atenien-
se - que aparece implícita ao falar-se padronizadamente da
"grega" - ocorreu aos poucos, no meio de coalisões militares e
confrontos internos, inclusive o confronto entre lideranças inte-
lectuais. O ideal clássico de liberdade perdeu-se no tempo de
Demóstenes, quando a autonomia das cidades helênicas se tor-
nou inviáveF. A "política", que um historiador autorizado como
Finlay considera uma invenção dos gregos, ou talvez dos gregos
e dos etruscos separadamente 2 , terá sido engulida naquela fase,
dentro de coordenadas desfavoráveis. Em troca, surgia (talvez
ressurgisse) a vida individual.
Ressurgia ou cobrava novo destaque. Aqui entra um tema
histórico-clouLrinário específico, o da evolução elo pensamento
antigo sobre a liberdade humana. Ou aludindo-se, um tanto
tardiamente, ao fato ele que nos próprios escravos a alma é livre,
ou discutindo-se a condição do indivíduo diante dos "liames
sociais" - como parece ter ocorrido em torno de Sócrates e ele
Diógenes-, chegou-se ao problema da dimensão pessoal, senão
mesmo "interior", da liberdade, pensada em gerações anteriores
como condição externa do homem, ou antes: de determinados
hom ens.
Se, como anotamos acima, o que restou depois de certos
fracassos foram o cosmos e a vida privada, entende-se- e isso se
encontra fácil nos compêndios - que as duas grandes filosofias
do período final da cultura helênica Gá paralela ao a largamento
da presença de Roma) tenham sido o estoicismo e o epicurismo.
Na fase pós-aristotélica o pensamento grego se concentrou sobre
certos temas, em particular o reexame do problema do conheci-
mento e a construção do "ideal do sábio". Vieram também as
cosmologias e filosofias da natureza (há uma ampla filosofia da
n atureza na obra de Epicuro), e as pequenas escolas preocupadas

I. :vi. G. L.llammond, i\ llistoi)'O{Greece, to 322 BC, Oxford, 195!J, cap. VI, fina l.
2. M. I. l-'inlay, A Polltioo110 Mundo Antigo, Rio de Janeiro, Zahnr, J985, p. G9.
I'RIVA1'IS MO E PUBLTCJSMO 49

com rever problem as. Daí a figura do sábio solitári o vivend o fora
do mundo . Isto é, fora da cidade e de suas ilusões .
A historio grafia sempre ressalto u, no meio dessas imagen s, o
estoicis mo e o epicuri smo como escolas maiore s. Do primeir o, a .
idéia sempre transm itida é uma visão global do mundo , com seu
logos e suas leis imanen tes, comple tada com a do sábio cuja
identifi cação com tais leis o torna imune ao sofrime nt o. Do segund o
sempre se destaco u a referên cia à valoriz ação do viver privado ,
como "refúgi o do sábio" diante da inutilid ade do esforço cívico ao
estilo antigo. Aos póstero s, sempre impres sionado s com o legado
político da Grécia e também com a carga de idéias gerais que o
acompa nhou, sempre pareceu mais import ante o pathos estóico,
mas na verdad e havia igualmente muito de helênic o no realism o
epicurista, que valoriz ava em cada ato uma quota de prazer vital.
De qualqu er modo pode-se dizer que, a o mesmo tempo em
que a polis, medida do existir para o homem grego, perdia sua
sobera nia e sua força normat iva, o pensam ento ético partia para
um relativ ismo muito flexíve l, que se acentu ou com as escolas
éticas c com os "proba bilistas ". Em relação a Platão, o contras te
era duplo: por um lado os relativi smos se opunha m ao modelo
absolut o em que se baseav a a teoria das idéias - Platão super·
valoriz ara o saber rigoros o, a epistem e -; por outro, a estima em
que se tinha agora a vida privad a era antagô nica ao ideal da
"Repúb lica" (Politéia), em que os pensad ores-go vernan tes prati-
camen te renunc iavam à vida privada .
No sistem a de Platão este cancela mento da vida privad a
(para os pensad ores-go vernan tes) decorri a, como conclus ão pe·
dagógi ca e admini strativ a, de um raciona lismo absolut o, quase
levado a um ponLo anti natura l, em que a total dedicaç ão àquilo
que depois se chama ria o "bem comum " reduzi a o viver do s ábio
a uma existên cia muito mais oficial e pública do que espont ânea
e privada . Talvez se possa p ensar que os relativ ismos pós-ari s-
totélico s terão sido um dos primei ros passos no sentido de uma
separaç ão entre vida intelec tual e vida política , tão juntas na
tradiçã o orienta l (China e Egito por exempl o) . Entre vida inte·
lectual e vida política as relaçõe s seriam sempre problem áticas
dali em diante, nas diversa s etapas da cultura ocident al, osci-
lando entre for mas de fusão, com o intelec tual a serviço do poder
ou coisa parecid a, e formas de contrap osição.
8. PLATÃO E O INTELECTUAL MODERNO

Vale estender-se um pouco mais sobre o tema do intelec-


tual, em relação à política. Platão representou, como foi dito
acima, a pretensão à absoluta racionalidade política, esta por
sua vez correlata de uma justiça entendida como razão. Como
razão e como ordem, coisas vinculadas ao estável senão ao
imutável: como ordem natural, a ordem racional das coisas
equivaleria à base do verdadeiro e do justo. Com isso se
varreriam as incômodas oscilações da "opinião", inerentes
aliás à democracia, em favor do saber seguro e infalível da
ciência; a episteme em vez da doxa. Superava-se todo compro-
metimento subjetivo. Um igualitarismo de oportunidades, ins·
Laurado a partir de v erificações ped a gógicas, era a
contrapartida, na "República" (Politeia), do desigualitarismo
funcional e inabalável do sistema, que consagrava em p arte a
estrutura social existente na sociedade grega- embora corri-
gindo-a a modo de evitar o poder do dinheiro e o das armas,
ambos substituídos pelo do intelecto.
Na base estava, claro, o ideal helênico e principalmente ate-
niense, segundo o qual a realização integral de cada homem estaria
em participar da política (ou seja, da vida dapolis e de seu governo);
só que no autor do Timeu a coisa chega a pontos extremos, enten·
52 OJJIIWIM E A PRAÇA

dendo-se como necessário para a devoção à sabedoria e ao gover-.


no o abandono dos laços privados e dos interesses particulares,
próprios das almas insuficientemente educadas.
Como acentuou oportunamente Ernest Barker, Platão viu
na casa o abrigo dos exclusivismos c dos sentimentos egoístas;
além disso viu na família uma espécie de rival do Estado, fonte
de um pernicioso divisionismo dentro da vida da cidade 1 • É fácil
ver, nestas concepções, um como que voltar-se do espírito helê-
nico contra si mesmo, pois a vida de família (e das casas) tinha
sido a própria origem da ordem social grega , e o racionalismo -
que Platão leva e eleva ao grau m áximo- foi também um produto
cultural tipicamente grego. É provável, de resto, que ao tempo
da República ainda estivessem relativamente nítidas na memó-
ria dos povos gregos as imagens da época em que o panorama
político e social se achava dominado por grandes famílias, que
exerciam seu poder em uma estrutura de tipo feudal e que se
transformaram, com a democracia (tão criticada pelo filósofo),
em núcleos de sentido oligárquico. Também em Rousseau - cujo
papel histórico-doutrinário me parece em diversos aspectos aná-
logo ao de Platão- o r epúdio das vontades "particulares" corre
paralelo à busca de uma ordem pública d efinitiva, uma ordem
que se vin culava à "vontade geral" e que arrastava Jean-Jacques
para perto do que Talmon denominou "democr acia totalitária".
Mas voltemos a Platão. Em sua visão utópica, que confir-
mou e ao mesmo tempo contrariou as imagens centrais da men-
talidade grega, aparece bastante claro um traço comum ao
intelectual e ao político, consistente no fato de que ambos corres -
pondero a formas de vida cuja essência (ou cuja plenitude) parece
incompatível com o que se chamaria a "normalidade" da existên-
cia, entendida em sentido privado. Entendamo-nos. Ao olhar
retrospectivo, as primeiras formas de organização urbana - as
do tempo de Menfis, de Cnossos ou de Lagash- apresentam em
seu centro uma certa junção entre o saber e o poder, que parece
ter sido perdida e que de vez em quando as utopias (dos intelec-
tuais) sonham resgatar. Ali, em principados e cortes de dois mil

L Erncst 13arker, Greeh Polilical 1'heo1)'.l'lato and i ts Predecessors, Londres, 1977, cnp. X. Cf.
tambérn a scgundn pHrlc do livro de Janine Chante ur, Platon, le desir et la. cité, Paris , Sircy,
1980.
PLATÃO E O IN TELECTUA L MODERNO 53

anos ou mais antes de Cristo, se instalou o poder político, com


sua armação de hierarqu ias, correlat as da ordem religios a; ins-
talou-se também a organiza ção do conhecim ento, que no início
deve ter sido menos crítico, e que também assumiu desde as
origens um sentido específic o em face dos afazeres "normai s" do
viver. Assim imagina mos os sacerdo tes e os magos, tal como os
monarc as respons áveis por decisões que não se tomam à mesa
'
junto com mulher e filhos: rostos antiquís simos, entre a~~lqUlS . '
-
simas pedras palacian as, insones diante de problem as m1htare s,
pragas misterio sas ou latentes conspira ções. Assim o sábio da
Repúbli ca platônic a, exercen do o governo longe do povo e da
família - longe da praça e do jardim -, solitário em relação às
vidas r ealment e "pessoai s" dos homens comuns. Solitário intelec-
tualmen te dado o nível demasia do "alto" do pensar que cultiva,
'
e que o qualific - que
a, e politicam en te, dado o caráter das decisoes
tem de tomar e que não compete m ao homem comum.
Conven hamos em que o intelect ual é realmen te um clérigo,
e sua condiçã o específi ca não configu ra uma "profiss ão" determi -
n ada, m esmo quando o intelect ual exerça esta ou aquela profis-
são. O político t ambém não represen ta uma "profissã o" em sentido
próprio (a não ser na acepção de professio, testemu nho, correlat a
de BeTU{ e com significa ção peculiar ). A condição do político, nos
países capitalis tas, atravess a outras condiçõe s profissio nais mas
não se identific a com elas, ou não deve idenLificar-se.
Se por um lado as diversas profissõ es, que são afaze~es
socialm ente caracter izados, possuem concretamente um sentido
p ú blico, elas em geral permite m ao "profiss ional" u m tipo_normal
de vida privada : horários , convívio de família, ocupaço es pes-
soais. Mas na vida política plena, bem como na vida intelect ual,
a n ecessida de d e dedicaçã o ou de concent ração dificulta o cum-
pr imento dos afazeres privado s. O que nos faz lembrar as obser-
vações d e Bernard Shaw, no primeiro ato de Homem e
Super-H omem, ao afirmar que o verdade iro artista, dedicad o que
est eja por inteiro à sua arte, termina por descura r dos laços de
família e até do amor pessoal ("feneça m mil mulhere s, se o
sacrifíci o permite represe ntar melhor o H a mlet ou pintar um
quadro m ais belo"). Só que no caso já entraria a que~t~o do
egoísmo , não dentro da família mas fora d ela; e do narc1s1smo,
posto entre devoção pública e ocupaçã o priva da, ou antes fora de
54 O JARDIM E A l'Ri\Ç!l

ambas, como em um limbo. Aliás Francis Bacon, em seu ensaio


"Of Marriage anel Single Life", já havia dito que os grandes atos
e as grandes obras sempre cabem aos homens descasados e sem
filhos, embora os que têm mulher e família sejam em princípio
melhores súditos 2 •
E aqui uma anotação sobre o intelectual moderno. No caso,
onde os exemplos se acham obviamente mais próximos pa~a nós
ele hoje, parece aguçar-se aquele conflito latente, que se arma
entre a condição elo intelectual, ou elo político, c o viver elos
homens "não especiais" que exercem as profissões especiais.
Aquilo que os românticos (sem aludirem ao depois chamado fator
econômico) designavam como "burguês", constituía na verdade
uma alusão ao prosaísmo elo homem privaclamente ajustado
(horários, afetos, obrigações), em contraste com o comportamen-
to do escritor (aliás parece vir desta visão romântica um certo
conceito que equivocadamente encara o intelectual como "eles-
programado" e boêmio).
Nietzsche, em carta de março de 1887 a sua irmã Elizabeth,
falou da hipótese de casar-se, ou de ter-se casado. Dizia: "Se eu
me casasse agora, isto seria apenas uma asneira, que me faria
perder uma independência que conquistei a preço de meu san-
gue.( ... ) Antes viver miserável, doente e temido em algum canto
do que arregimentado e situado dentro da mediocridade moder-
na":3 .
Ou então o conhecido trecho ele Fernando Pessoa, no poema
"Lisbon Revisited" de 1923:
Queriam-me casado, fútil, cotidiano e tributável?

U ma elas primeiras expressões, vinda aliás do pensamento


social româ ntico, da saturação do existir moderno em t ermos de
espaços e relações, terá sido a obra maior de Toennies, onde se
descreve a sociedade como modo de agrupaçào mais amplo porém
artificial, fundado sobre a "vontade reflexa", e a comunidade
como modo mais concreto, mais estreito, fundado sobre a "von-
tade essencial". Desta se passaria àqu ela, como tendência evo-
lucional genérica. Seria um trânsito do privado ao público?

2. The Moral anel !Tislorical Worhs of LordBacon, Londres, George 13cll, 1890, pág. 19.
3. F. Nietzsche, Lettres Choisies, Librairic S!.ock, Paris, 1931, p. 213.
PLATÃO E O INTELECTUAL MODERNO 55

Mas voltando ao tema do intelectual moderno, e da moder-


nidade (no sentido amplo do termo) como gestadora de crises,
temos que nos séculos ditos burgueses entram em crise certas
categorias históricas, entre elas o militar e o sacerdote. Catego-
rias predominantes nas épocas aristocráticas da história das
civilizações, inclusive registrando-se que, em certos contextos,
"militar" e "político" se identificavam.
Pode-se observar que tanto no militar (o "guerreiro") quanto
no sacerdote ocorreu sempre, ele algum modo, a participação no
poder político. Em ambos ocorreu sempre a ausência ele uma
existência privada em sentido pleno. Em ambos um afastamen-
to, senão mesmo uma posição de real ou pretensa superioriclacle
em relação aos afazeres comuns, ligados à manutenção material
da sociedade e definidos depois - ou desdobrados - como profis-
sões. No caso do militar, cuja atuação mais específica é social-
mente um afastamento (estar "em campanha"), teve-se
latentemente o herói, o vencedor armado, cantado sobretudo na
épica antiga e na medieval; o herói com seu distanciamento e sua
exemplaridade, sem as contingências nem os compromissos miú-
dos e constrangedores do cotidiano doméstico. No caso elo sacer-
dote teve-se sempre a respeitabilida de do homem ligado ao
sagrado; e o sagrado sempre esteve nas fundações, dentro do
mundo antigo. Mas a ambos sempre se atribuiu algo ele sacrifício:
a vida entregue à pátria, ou dada à religião. E t a mbém um severo
código de normas, cujo cumprimento dá direito à reverência (daí
o princípio, vigente nas aristocracias, segundo o qu a l o primeiro
a ser exigente consigo mesmo é o mais nobre: noblesse oblige). O
fechamento para o mundo, para o sexo- no caso do religioso e ao
menos em certas religiões-, enfim para a normalidade privada.
A queda do prestígio do sacerdote e do militar, nos séculos
mais recentes - r efiro-me à vigência histórica de determinados
conceitos, e não à eventual ocorrência de gover nos militares -,
corresponde basicamente ao p rocesso de secularização da cultu-
ra. Corresponde também ao desenvolvimento da mentalidade
capitalista. O ideal do progresso, com suas utopias e seu peda-
gogismo, lançou as linhas d e uma sociedade onde a ciência
conduzisse as crenças, e o domínio do dinheiro (uma realidade
antiplatônica) entronizou o pragmatismo, complementado pelo
tecnicismo, pelo cientificismo e pela especialização. O ideal do
56 OJAIWJM E i\ PRAÇA

progresso e o cientificismo levaram no século XIX ao evolucionis-


mo, espécie de dogmatização linear de uma série de evidências.
O evolucionismo condenou como coisas arcaicas o padre e o
soldado, inviáveis, dentro da t ipologia spenceriana, na sociedade
industrial e liberal. Ao mesmo tempo consolidava-se nas socie-
dades do Ocidente a presença das profissões "liberais", como
vocações e como forma de ganhar dinheiro, dentro de uma estra·
tificação social menos rígida - a de classes - e sem as conotações
próprias da condição do soldado e do padre, ou por outra: do
guerreiro e do santo. As profissões ditas liberais, diferenciadas
entre si dentro das especializações (Fachwissenschaften) do sa·
bermoderno e de suas projeções práticas, situaram-se aos poucos
em um conjunto social formado a partir de vidas privadas (voca-
ção c "carreira" individua l), dentro daquilo que desde Hegel se
ficou chamando sistema das necessidades .
9. OUTRA VEZ PRIVATISMO E PUBLICISMO

Retomo agora o tema do privatismo, com a alusão, feita


acima, ao epicurismo. Antes passamos pela tentação de empre-
gar a frase "de Péricles a Epicuro"; vem agora outra, a de
comparar o caso grego com o romano, em termos de oposição.
Enquanto os helenos teriam passado da dimensão pública à vida
privada, os romanos teriam ido desta para aquela: do arado
singelo ao Império monumental, passando pelas expansões ter-
ritoriais e pela adoção de instituições específicas. É claro, entre-
tanto, que o esquema seria falacioso, pois também os gregos
t iveram em seus inícios os grupos familiares, inclusive as fra-
trias. Além do mais a existência histórica de Roma começa
propriamente com a r ealeza e com a ordem implantada pelos reis
unificadores e urbanizadores.
Nem sempre se pode transformar a referência a certos
dados, sempre reinterpretáveis, em uma seriação, ou um "movi-
mento" histórico. O marco privado evolui junto com o domínio
público, e o predomínio de um ou de outro, dentro das fases em
que se desdobra a história deste ou daquele povo, desta ou
daquela civilização, não chega a configurar uma "linha" definida
e irreversível.
58 Q.JARDIJ\1 li A PRAÇ1\

Nem sempre, por outro lado, o limite entre a esfera pública e


a esfera privada é bastante firme. O termo latino fornm, que
designa algo historicamente correlato à ágora grega e que se
associa para nós à idéia de um espaço público, designou primeiro
o terreno fechado em torno de uma casa, e somente depois é que
passou a denominar a área de fora das casas, nomeadamente a
praça do mercado 1 •
Por sinal, ficou constando de um registro de Plínio que o
termo hortus, no tempo das Doze Tábuas, era utilizado para
aludir às propriedades rurais, passando depois, como se sabe, a
significar "jardim", justamente por conta do conteúdo central da
palavra hortus: um terreno fechado 2
Na variedade de formas espaciais existentes na experiência
social romana, cabe aliás destacar o caso das uillae, que repre-
sentou uma outra experiência no tocante aos espaços e às formas.
De certa maneira a uilla, edificação ou conjunto de edificações
que servia de centro a uma empresa rural ou a uma propriedade
"de lRzer" (algo ao modo das "granjas" de hoje), constituía uma
esLruLura intermediária entre o público e o privado. Nem foi por
acaso que de certas grandes uillae partiu em alguns lugares a
o:rgRnização do feudalismo. Residência de campo, podendo ser de
tipo propriamente "rústico" ou de Lipo mais urbano, com freqüên-
cia a uilla incluía um pátio central, misto de praça e de cour;
preservou-se nela o sentido romano da vida agrária, que para
Roma ficou representando as origens, e ao mesmo tempo o
sentido do luxo, Lendo havido uillae imperiais que chegaram a
ser verdadeiros palácios . Dentro do forum romano, perto do Arco
de Tito, tive uma vez a emoção de ver os restos de uma uilla
construída no século XVI por um cardeal, imitando em seus par-
ques com larAnjeiras o arranjo das villae do tempo de Horácio.
Estou mencionando o tempo de Horácio para citar o conhe-
cido estudo de Gastou Boissier sobre a casa ele campo do poeta,
que lhe foi presenteada por Mecenas e que ficava perto de Tívoli,
no vale de Licenza3 .

L F. Marlin, Les Moto lalins, Ed.llachclle, Paris, W76, pp. 86 c 87.


2. Picrre C ri mal, J.a CiuilisalioJL romaine, Paris, A•·lhaud, 1000, p. 207.
3. G. Boissier, "La Maison de campngne d'IIo race", "''P· I das NouuellesprOIILcnadesarchéologi-
ques. Ilomcccl Virgile, Paris, llachcttc, 1886.
OUTRt\ V/!:7. PR/VATJSMO E PUBLJC!SMO 59

Além desta característica econômico-social das villae, que


se constituíram em núcleos de produção e de aglutinação pré-
feudal na época de declínio do mundo antigo, há nelas também
este sentido misto, meio público meio privado, meio prefiguração
das signorie italianas, meio repetição das grandes casas dos
..
primórdios: e em algumas delas, as de maior extensão, conser-
va-se o gosto dos jardins (é Grimal quem o anota), como no caso
da villa laurentina, propriedade de um romano amigo de Plínio,
o Jovem, que elogiava nela a "presença da natureza". Neste
sentido as villae terão s ido um elemento estabilizador. Preser-
varam, nos séculos iniciais elo medievo- chamados pelos ingleses
de darh ages-, o essencial do acervo ele hábitos e de conceitos do
mundo clássico. E creio que foi no recesso das villae, com seus
paredões pintados e seus utensílios domésticos, que se refugiou
e se perpetuou o modo de vida privado romano: modo de educar
filhos, modo ele comer e de dormir, hierarquia familiar etc. Um
conjunto ele elementos que veio perdurando, fragmentariamente
ao menos, até o início de nosso século, dentro ela concepção
ocidental do habitar e do viver privado.

De novo sobre o epicurismo. Ele não foi "somente" um


resultado do esvaziamento da vida pública grega, dominada pela
vasta onda macedônica: foi um fenômeno elo declínio do mundo
antigo, com a saturação da vida urbana e com a transformação
da democracia em utilitarismo e em latente massificação. Hoje
vivemos também (os que somos, como diriam certos autores do
tempo de Ortega, "hombres de las postrimerías"), coisas deste
tipo. Os regimes políticos dependem às vezes m enos de suas
qualidades intrínsecas do que da viabilidade das técnicas de
"informação" e dos programas econômicos que os acompanham,
além de conotarem estruturas militares, que formam um apara-
to de persuasão paradoxal mas evidente. Vários escritores têm
escrito- além dos pensadores já clássicos como Spengler, Toyn-
bee e tantos mais - sobre o declínio da civilização. Cada geração
tem seus pessimistas, e recentemente alguns escritores france-
ses têm trazido fortes achegas à retórica do pessimismo4 • Este

1. i\nrlr(: llcrcoiT, Manuel d 'Tnslnlclion Ciuique fiOIJr Temps in/.!OUl'ernablrs, Paris, 13. CrnsHCt,
1ml5; i\lain Fil>kiclkrnut, Ln T)1i(a ile de /a J!I!IIS<Íe, cil.
60 OJARDifl.f B A PIIAÇA

pessimismo não é infundado, e dentro dele se lem colocado um


tema específico, o da decadência do homem público 5•
Seria então o caso de se falar, talvez, em um p ossível retorno
do (ou ao) epicurismo. Aliás, no começo do século, na geração de
Loti e Pierre Louys, um certo tipo de literatura orientalizante
cultivou um característico tom hedonista e de certo modo epicu-
rista, como no romance de Louys Aphrodite, em que o capítulo I
do Livro 11 se passa sensualmente nos jardins de la déesse. O
gênero não teve maior continuação, e na verdade não r epresen-
tava um pensamento fortemente fundado. A possível volta ao
epicurismo a que me refiro seria antes uma forma de descrença
nas estruturas "maiores" hoje vigentes, ou na possibilidade de
se realizarem nelas os valores humanos essenciais; uma tendên-
cia implícita e minoritária ao recolhimento, em face das estru-
turas tecnocráticas, da massificação e das falsificações
autoritaristas: algo comparável a um dos aspectos da posição que
Umberto Eco chamou "apocalíptica". Um dos lados do tema se
acha nos debates sobre politizaçi'io e despolitização: alguns teó-
ricos da direita, nos anos 20 e 30 - Carl Schmitt entre eles - I
pretenderam que o liberalismo seria uma atitude despolitizante,
sendo a verdadeira política a do confronto, com suas categorias
básicas expressadas nos termos "amigo" e "inimigo". Por sua vez
Hcrman Heller, que era um socialista moderado, encontrava no
burguês contemporâneo um tipo despolitizado, desligado de pre-
ocupações decisórias e preocupado com sua "condição privada de
possuiclor"6 . No caso, um tipo que na República de Platão jamais
poderia ter o poder. Entretanto trata-se de uma meia verdade,
já que o mundo histórico dos últimos séculos vem sendo (não só
econômica mas também culturalmente) um mundo burguês, com
liberalismos e anti-liberalismos, bismarquismos e outros ismos.
De qualquer sorte o tema de um possível retorno ao epicurismo
parece relevante: há muito o que resgatar, hoj e, dentro ela di-
mensão privada da vida, asfixiada pelos enormes travejamentos
da dimensão pública, e desvirtuada por uma série de distorções.

5. R ScnncLL, O Declínio do llomem. Público, cit.


G. I I. llellcr, Escritos Políticos, op. cit., p. 24G.
OUTRA VEZ l'RIVA'I'JSMO E PUBUCISMO 61

Outra observação. De alguma forma o problema da distin-


ção entre o plano público e o plano privado pode ser comparado
ao de uma alternativa, nem sempre bastante explícita mas
presente no pensamento contemporâneo através de alusões ine-
quívocas : a alternativa entre a "vida social" e a "vida simples",
aquela entendida no sentido da sofisticação dos elementos e das
condutas, esta no da fuga às complicações ou às "frivolidades".
De um lado as regras de convívio e os critérios de gosto, elabora-
dos pela própria civilização (no sentido clássico e qualitativo do
termo), regras e critérios que não se p odem ignorar e que se
testam em formas específicas do viver social: gestos, deveres,
linguagem. De outro o fato de que a adesão excessiva a estas
coisas pode (ou costuma) gerar certo grau de "artificialidade",
sen ão mesmo de "inautenticidade" dentro do existir. Com refe-
rência a este último termo vale recordar aliás a defesa, por parte
de Martin Heidegger - este um dos â ngu los menos acadêmicos
de seu pensamento - , da vida despojada, que renuncia aos
exageros da tecnologia e às alienações que acarretam.
Certamente que entre um extremo e outro se encaixam
vários graus . Estes se instalam a alguma distância da rejeição
total da técnica (e da própria evolução social), e t a mbém a
alguma distância da padronização e da "informação", ambas
en volventes e ambas tirânicas . E com elas, do consumismo e de
outros caracteres da sociedade atual.
Pois do mesmo modo cabe salvar a privacidade salvando
também a dimensão pública, ambas estimáveis mas passíveis de
extr emos, en tre os quais cabe situar graus, e situar-se n eles.
10. ALGUMAS DIGRESSÕES HISTÓRICAS

Mencionei, no início, o fato de que sob certo aspecto o


advento da praça corresponde, mais do que ocorre com o jardim,
a uma eliminação da natureza. Ou antes a um corte, mna abertura
nos espaços naturais, feita na verdade pelo próprio fenômeno ela
cidade, que se instaura como um outro tipo de espaço dentro dos
espaços físicos disponíveis no vale ou na montanha. O jardim refor-
mula a natureza, operando uma redução ou uma seleção quanto às
espécies vegetais e ao seu arranjo, em convívio com canteiros, muros,
colunas, estátuas (sempre me lembro do poema de Baudelaire que
começa com "Je n'ai pas oublié, voisine de la ville", e que menciona,
na casa a que alude, o arvoredo onde escondiam seus membros nus
mna Pomona e uma Vênus); o jardim a reformula, defendendo-a
como ao próprio sentido de privacidade que nele se recolhe. A praça,
parâmetro das ousadas coordenadas urbanas, se recorta como um
outro espaço, não natural, onde o que há de árvores e de flor es é
expletivo e complementar, embora às vezes pareça esteticamente
essencial.
Par~ce também, mas isto vai como anotação de passagem, que
a evoluçao em ambos os casos - o da praça e do jardim - veio
representando uma gradativa diminuição do papel (ou da presença)
da natureza: e aqui o termo natureza é usado no s eu sentido mais
O JARDIM E A PRAÇA

concreto, incluindo animais e arbustos, embora sem excluir a


relação com um signjficado mais profundo. E parece que este gradual
cancelamento da natureza, em seus componentes mais concretos, se
faz mais perceptível, senão mais ostensivo, no caso da praça. Ou seja,
nas representações da dimensão pública, inclusive nas ligadas ao
poder: edificações, ornamentação, linguagem de símbolos.
Nas representações antigas, os símbolos da ordem pública
envolviam indefectivelmente elementos da natureza, em seus
três "reinos": havia altares e tronos com pés de leão, colunas com
base em forma de lótus, capitéis com cabeça de touro ou com
folhas - as cl ássicas folhas de acanto -, as figuras dos deuses
eram concebidas e representadas com raios, conchas, frutos e
animais. Os reis eram assimilados em seu poder às entidades da
natureza; nas tumbas e nos palácios se retratavam cenas festi-
vas com ramagens e aves (vejam-se inclusive as descrições da
pintura cLrusca no texto de viagens de D. H. Lawrence Etrnscan
Places). Na Idade Média a pintura religiosa não desdenhou de
colocar coisas deste tipo junlo à figura dos santos - nem se
entenderia São Francisco de Assis sem seus pássaros-, e tam-
bém nas cortes do Renascimento sempre havia animais, ao
menos ao que nos mostram certos quadros onde aparecem cava-
los monumentais e cães solenes ou pachorrentos, compondo,
junto com anões e bufões, a imagem elo entourage monárquico. A
própria monarquia absoluta, que abriu largos espaços no âmbito
das capitais n a cionais, se fazia retratar, em momentos ele priva-
cidade, com elementos da naLureza.
Seria o caso de dizer-se que o mundo "moderno" (dito tam-
bém burguês), ao passar à fase chamada contemporânea, apres-
sou a eliminação dos ingredientes naturais. Ocorre lembrar o
contraste, expressado por Vico, entre o "poético" das fases ini-
ciais da história ele cada "nação" (hoje diríamos cultura, ou
civilização), e o prosaico das fases posteriores. Até o Romantis-
mo, com a restauração e o nacionalismo, ainda perduraram
componentes naturais. Mas durante o século XIX o que pareceu
predominar foi a gravidade cinzenta, correlata das grandes
máquinas e das securas vitorianas, e sem embargo do que de
positivo houve, inclusive na arte (não cabe aderir ao modismo de
detratar o oitocentos sem mais aquela) . Gravidade cinzenta que
foi uma espécie de acompanhamento do ideal formal da Repúbli-
ALGUMAS DIGRESSÕES HISTÓRICAS 65

ca e da pretendida impessoalização do poder. O poder, embora


vigente em toda a plenitude sob vigorosas formas políticas e
econômicas, assumia a partir do liberalismo um sentido de coisa
abstrata, e a isso vinham corresponder representações mais
"despojadas". As imagens do poder perdem então em cores e em .. ,;
ornatos: na mesma medida em que os prédios públicos abando-
nam os capitéis coríntios e os portais ainda meio barrocos do
edifício do Reichstag, os trajes se tornam mais monótonos, e os
retratos mais convencionais. Com o século XX viria o estilo dito
"funcional", terrivelmente desgracioso, e com ele o completo
cancelamento de figuras naturais (salvo em alguns painéis so-
breviventes): veio o tempo em que a caça e a invasão das máqui-
nas começou a eliminar as espécies animais, e em que se
incrementou o ritmo da destruição das reservas ecológicas.

Introduzo agora uma alusão ao problema do Classicismo e


do Romantismo: momentos do espírito moderno, a um tempo
irrepetíveis e paradigmáticos. No primeiro, a cristalização do
geometrismo racionalista, vindo sobretudo da época de Descar-
tes; no segundo a réuanche do sentimento, no sentido de ver no
homem mais do que o puro ser "pensante". O cotejo é convencio-
nal, mas segue válido; inclusive passa pelo teste histórico se
pensamos no Classicismo como próprio da burguesia das revolu-
ções (o espírito de secularização na política) e no Romantismo
como algo ligado às crises sociais subseqüentes (clamores igua-
litaristas, ressentimentos ela nobreza contra a revolução, sensa-
ção ele perda em sentido difuso).
Dir-se-ia, e isto vai com certas ressalvas, que de certo modo
o Classicismo abriu espaços públicos: construção de grandes
áreas dentro das grandes cidades (Sombart estudou o papel
destas na expansão do capitalismo), clarificação ela linguagem
nas artes e na política . E que o Romantismo constituiu um
refluxo: um ele seus lados, porque ele teve vários, consistiu em
um movimento de retorno ao passado feu dal, ao ruralismo (um
ruralismo nostálgico) e ao par ticular, portanto ao privado. Con-
tra, portanto, o publicismo-estatismo revolucionário e contra o
urbanismo "paleo industria l" elos séculos XVI II e XIX. Cert amen-
t e que as coisas d entro ela história não são tão nítidas: nos
refolhos ela onda romântica persistiu o liberalismo com a a pre-
66 O JARDIM E A PRAÇA

goação da liberdade, ao lado do conservadorismo e do monarquis-


mo; mas sempre temos de reforçar certos traços para fazer o
quadro mais inteligível.
Lewis Mumford destacou, entre as marcas da influência do
espírito romântico, amante do luar e das ruínas- também das
ravinas-, a tendência a retornar ao gótico, na arquitetura, parte
de uma genérica tendência a voltar ao passado 1 . Na Alemanha
cultivaram-se as estampas antigas, Bilder aus der Vergange-
nheit, e por toda a Europa se procurou imitar os "jardins ingle-
ses", caracterizados pela informalidade, pela espontaneidade e
pela irregu laridade. Algo como uma reação contra o espirit de
geométrie, contra a França imperial já derrotada mas a inda
representante das linearidades "claras e distintas".
A propósito de sociedade moderna e de época "burguesa",
vale porém repensar certas coisas. Nos casos grego e romano
(antigüidade), a estrutura social incluía o componente escravo
como algo natural. Em Roma, onde talvez tenha sido mais
caracterizada a existência de "classes", os conflitos só surgem
depois, e sem deflagrar ismos doutrinários. Não se teorizou (ou
quase não) sobre a dimensão econômica da sociedade nem sobre
o conceito de r evolução, este entretanto mencionado por Aristó-
teles na Política . Nas sociedades ocidentais modernas a presença
do componente burguês, vinculado ao processo ele secularização
cultural, tenderia historicamente a um peculiar equilíbrio entre
o lado público e o lado privado da vida, mas o fator "sistema
capitalista" leva constantemente o pensamento a dar conta da
dimensão econômica, forçando a criação de ideologias que são
"ismos" econômicos t anto quanto teorias políticas ou filosofias
sociais. Deste modo o socialismo, que s empre carregou uma parte
de utopia, tende modernamente a fazer pesar o lado público no
qual parecem mais urgentes os clamores igualitaristas, e pare-
cem mais releva ntes os projetos gerais de reconstrução. Enquan-
to nas utopias de outros tempos a condição do indivíduo
enquant o particular apareceu mais nitidamente como objeto de
reflexão, nas programações socialistas contemporâneas ela pa-
rece importar menos.

l. A Cu ltura das Ciwdes. t.rad. Nci l Silva, Belo Horizont e, Itatiaia, 19Gl. pas si m..
ALGUMAS DIGJIESSÕES HTSTÓRICAS 67

O que se menciona como nós "revolucionário" no tocante à


vida privada, como costumes sexuais e estrutura familiar, nem
sempre tem conexão simétrica com as atitudes revolucionárias
em política. Viola Klein, em seu livro sobre o caráter feminino, ..,
observou que o chamado movimento feminista vem sendo sobre- "
tudo um assunto das classes altas. Por vezes é nas sociedades
capitalistas, senão mesmo sob governos ditatoriais (ditaduras
"moclernizantes"), que ocorrem as transformações mais sérias na
área do viver cotidiano .
Vale ressaltar, a estas alturas, que a dimensão pública, dentro
ela história social moderna, apresenta duas conotações bastante
distintas. Por uma parte, ela corresponde ao racionalismo, trans·
formado durante o século XVII e sobretudo o XVIII em uma espécie
de militãncia histórica, que atuou como enciclopedismo e se desdo-
brou em crítica revolucionária, condicionando uma visão mais
aberta dos espaços urbanos e da relação entre saber e poder, poder
e governo, governo e obediência. Por outra parte, entretanto, ela
corresponde a uma conversão do populicus em estatismo, um
estatismo latente em Rousseau e no jacobinismo. Este estatismo,
que estava na monarquia absoluta, reponta na própria revolução
feita contra o absolutismo, e passa incólume através do não-esta-
tismo pleiteado pelos liberais clássicos, desembocando, nas propos-
tas sócio-políticas do século XX, na permanente ameaça
totalitária2 • A noção de público, com generosa raiz empopulus, pode
inclinar-se sobre a acepção lateral ele "coletivo", oposto ao privado,
e pode conduzir à precariedade ela própria dimensão individual do
viver, inclusive das liberdades individuais.
Contudo, sem o espaço público não teria sido possível a
estruturação das repúblicas contemporâneas, nem elas democra-
cias, nem elo parlamentarismo. Não se t eria tido a vigência
ambígua mas indeclinável da opinião pública, nem possivelmen-
te a racionalização dos ordenament os jurídicos. Com a moderna
opinião pública- cujas origens Pascal havia detectado - desen-
volveu-se a imprensa e renovou-se a linguagem política, com a
racionalização elo direito unificaram-se os procedimentos e as
garantias; mas a estatização e a tecnologia foram crescendo,

2 . l)omenico Fisichclla, Tota.lilal'ismo - Un Regime <Ü!l Noslro Tempo,Homa, Nuova Jt,alia


Scientific.a, 1987 .
68 O JilRDIM E 11 PR1\ÇA

permitindo, no século XX, as ditaduras mais caracterizadas, bem


como a massificação e a tecnocracia.
Em certa passagem de seu Comunidade e Sociedade, um
dos livros mais notáveis da segunda metade do século passado,
Ferdinand T oennies registrou uma impressionante dualidade de
aspectos na estruturação do império romano:

[ ... ]dois desenvolvimentos; de urna parte a cultura, a mobilização, a universa-


lização, tudo terminando pela sistcmoti7.açiio c codificação do direito; de outra parte
o desaparecimento da viJa c dos costumes no interior daquela brilhante culhn·a do
Estado, da g1·andc administmção pacíl'ica, c da jurisdiçiio rápida e segura3 .

Tentaríamos acrescentar a esta citação o seguinte: o próprio


fenômeno, ocorrido em várias culturas mas exemplarmente no
Ocidente, da passagem do direito "costumeiro" ao direito legis-
lado, confirma ao que parece primado da dimensão pública sobre
a privada. Os étimos latinos o ilustram: o verbo habeo, com
particípio passado em habitum, teve a mesma raiz que habitare e
habitudo, ele onde se percebe o parentesco entre o morar, ou seja o
estar na casa (habitatio) e o hábito, que se desdobra em costume.
Em alemão temos uma correspondência análoga ocorrente entre
wohnen (morar), gewohnen( habituar-se), e Gewohnheit, costume
(Gewohnheitsrecht, direito costumeiro). A passagem ao direito
legal terá constituído um triunfo da praça, do populicus, sobre o
âmbito privado, sobre o direito da casa e do foyer primitivo.
Talvez se possa então dizer, trazendo agora o enfoque para
a história moderna, que a observação de Tocqueville, segundo a
qual a Revolução Francesa não desmontou nem desmentiu a
organização administrativa do ancien régime, adotando-a e dan-
do-lhe continuidade, corresponde ao fato de que ao espírito
moderno (ou seja, pós-feudal), que tanto esteve presente no
tempo de Colbert como no de Napoleão, veio sendo correlato um
certo sentimento do domínio público. E talvez caiba registrar que
em nosso século, nas últimas décadas, vem -se dando uma espécie
de saturação deste domínio: saturação dos próprios espaços
físicos pelo excesso de gente, que se verifica por toda a parte com
a chamada explosão demográfica, e saturação do sentido de coisa
pública pelo acúmulo de reivindicações sociais e pela descarac-

3. S ociétéet Communcwté, trad. J. Lcif, Paris, PUP, HJ41, Livro !li, item XIX, p. 201.
ALGUMAS DIGRESSÕES HISTÓRICAS 69

terizante onipresença do Estado. Lembro-me sempre da frase de


André Piettre: "as sociedades nascem na religião e morrem na
burocracia". De fato a burocracia, fruto do p róprio racionalismo
que r eordenou o direito e fez as epistemologias contemporâneas,
é sempre o contraponto da massificação, que desequilibra as
relações entre dimensão pública e recint o privado, afetando em
suas distorções as estrutura s e os conv ívios .
11. OUTRAS DIGRESSÕES, COM ALUSÃO AO DIREITO
E AO CONTRATUALISMO

Insisto sobre o problema do espaço, c dos espaços. No


pensamento de Kant, como se sabe, o tempo e o espaço são
categorias a priori do entendimento: são algo que se acha "den-
tro" do ser humano. Cabe compreender est a idéia no sentido de
que para a teoria do conhecimento eles são condições dadas na
própria estrutura do entendimento. Entretanto, no plano da
experiência concreta do viver dos homens, o tempo parece mais
redutível ao plano interior do que o espaço. "Sente-se" o tempo
como a lgo tanto exterior quanto interior, algo que nos atravessa
(e que nos penetra), pois estamos no tempo mas ele nos ocupa
por dentro; enquanto que o espaço - que o grande intuidor que
foi Descartes chamou étendue - sempre o imaginamos como
exterior ao eu, senão mesmo como a própria exterioridade, com
a qual identificamos inclusive a mensurável materialidade do
corpo humano . A corporeidade é, de imediato, espacialidade.

Sobre a demarcação do espaço, ou seja, dos espaços : a


"exterioridade" do espaço sempre enseja uma visão objetiva. O
espaço se entende como objeto, e sempre em rel ação com planos
e n íveis. Daí a constante relação da demarcação dos espaços, nas
72 O JARDIM R A PRAÇA

sociedades humanas, com a visão hierárquica dos homens e das


coisas. Foucault tocou no problema dos espaços em Les Mots et
les Choses e em Surueiller et Punir, estudando neste a implacável
organização do espaço que em certa época foi vigente em escolas,
hospitais, quartéis e prisões, mesmo após o iluminismo.
A propósito das conexões entre espaço e hierarquia, e com
o que a sociologia acadêmica denominou durante decênios "dis-
tância social", cabe fazer algumas anotações.
Desde os contextos mais antigos, as instituições sociais têm
condicionado a feitura de construções (edificações) específicas,
destinadas a conter (ou a simbolizar e abrigar), em seus insubs-
tituíveis espaços, as diversas funções que correspondem à domi-
nação social. Assim os templos, os tribunais, os teatros, as
escolas. Nos templos a ostensiva distribuição das partes, na
horizontal e na vertical, separando o recesso, ou seja o interior
- com o lado misterioso do sagrado - das diversas secções
acessíveis ao público. Nos tribunais a representação das várias
funções nas várias porções de espaço: o lugar do juiz, ou dos juízes,
o dos advogados, o dos réus se for o caso, o do público para quando
prevista a sua presença. Nos teatros o palco, que é um espaço
distinto inclusive por sua significação de cena imaginária, coloca-se
abaixo ou acima dos lugares de onde será visto (outro problema, o
da diversidade de níveis nestes lugares, conforme a visibilidade,
inclusive frisas e camarotes). Nas escolas antigas, o estrado para
a figura do mestre, as cadeiras padronizadas para os alunos, o
espaço de recreação - coisas hoje contestadas mas tendendo a ser
substituídas por alguma outra forma de ordenação espacial.
Estas demarcações espaciais correspondem à representa-
ção do poder: o poder tem qualquer coisa de cênico, como perce-
beu e mostrou Georges Balandier'.E não cabe pensar, qual fazem
a ligeiradamente certas pessoas desconhecedoras da história,
que a fixação de níveis deste tipo é própria da sociedade "bur-
guesa", e de seu "aparato" estatal. Na verdade todos os contextos
anteriores à época dita burguesa tiveram este caráter, com o
recurso às proporções espaciais para a imponência do poder e
para a persuasão das mentes.

1. O l'oâer em Cena, trad. Luiz Mourn, 13rasílin, UnB, I!)82.


OUTRAS DIGRESSÕES ... 7:3

Quando se menciona a dimensão privada do viver, está-se


colocando o tema da família (e das estrutura s de parentesc o), que
sempre constitui u, em qualquer sociedade , o marco básico da
vida das pessoas. Com isso se coloca, por extensão, o tema do ser
das pessoas, dado em sua existênci a concreta e em suas conota-
ções mais estreitas. Dispensá vel porém será, ao m enos no mo-
mento, desdobra r daí o problema da distinção entre pessoa e
indivíduo , inclusive porque no caso a individua lidade e a "pes-
soa lidade" se encontra m em um mesmo plano.
O que se denomin a indivíduo , em sentido :mtes psicológic o
do que propriam ente ético (neste seria realment e mais cabível
emprega r o termo pessoa) e o que se denomin a coletivida de são
coisas que possuem diferente s estrutura s. Na estrutura daquilo
que se conceitua como indivíduo , ou como individualidade, acha~
se um conjunto de elemento s do viver, que se desenvolv em, quer
corporal quer animicam ente (esta palavra vai no sentido de
Jung), a partir de experiênc ias que se ligam ao "mundo circun-
dante", ou seja a um contexto caracteri zado. Este contexto cor-
responde por sua vez, e isto explica e complica, à noção corrente
ele "sociedad e", ou por outra, à coletivida de tomada em uma
acepção global, específica e provida de conteúdo s peculiare s. A
coletivida de terá então de ser entendid a como oposta aos indiví-
duos, mas também composta por eles, sendo o "social" evidente-
mente uma condição e um r esultado em relação ao núcleo pessoal
do viver, este de resto não totalmen te isolável.
Habitual mente pensa-se, ou afirma-se , que os indivíduo s
estão dentro do social, como se este se encont rasse "fora" c1os
indivíduo s . Sempre o uso das a lusões espaciais . Pois bem: a
partir da correlaçã o entre os binômios pessoa/pr ivado e socieda-
de (ou coletivida cle)/público, a utilização da metáfora se revela
imperfeit a: o público se concebe em geral como algo que está fora,
ou para fora, e o privado como algo que se acha dentro ou para
dentro, mas este não se acha propriam ente dentro daquele. Mais:
a ambas as noções é cabível atribuir um dentro e um fora, o que
complica o lance.
Contudo, a permanec ermos com esta metáfora , valerá ob-
viamente pergunta r: o "privado" e o ''público" correspon dem ao
dentro e ao fora de quê? Talvez ela casa: a experiênc ia das
origens, ao menos em alguns contextos , avaliza a metáfora . A
71 O JARDIM E A PRAÇA

vida d esenvolvida à volta da casa e da família prolongou-se


gradativamen te, passando em certos casos "dos clãs aos impé·
rios" (na expressão adotada por Moret e Davy), ou passando ao
m enos pelas dimensões da aldeia e da cidade. As grandes civili-
zações da a ntigüidade mais antiga for am basicamente cidades.
Ao advir a cidade, o homem redimensiona sua visão do mundo,
seu sentido de espaço, sua auto-imagem dentro da convivência
grupal. A casa entretanto prossegue, r evalorizando·se como in-
terioridade, como recinto do existir m ais "direto", que evoluirá
dentro do que lhe está fora, isto é, do espaço urbano e da ordem
pública. Evoluirá paralelamente a esta ordem, s ofrendo trans·
formações históricas paralelas, mas sem se confundir com ela. A
casa (o "lar" segundo o étimo clássico convertido em imagem
conven cional), não é entretanto uma realidade meramente "in-
dividua l", mas de certo modo também grupal, e deste modo
possui u m fora c um dentro, um sistem a de conexões com a ordem
pública e uma estrutura interna, onde vigoram padrões variá-
veis mas sempre específicos.
Evidentemente a evolução de ambas as esferas, a pública e
a privada, depende de p adr ões culturais e de condições econômi·
cas. Trata-se de um quadro antropológico, onde se tem o ser
humano construindo seus mundos- arte, produção, crenças - e
pra ticando seus ritos pessoais, domésticos e cotidianos. E aqui
se tem também o problema da propriedade, que igualmente
evolui por dentro de ambas as esferas . Estar sentado debaixo de
um arbusto em seu próprio jardim, ou parar sob uma árvore no
meio de uma praça, são duas coisas d istintas também sob esse
prisma: achar-se em t erritório priva do, de propriedade de al-
gu ém, ou em esp aço público, coisa de todos (da comuna, como se
dizia no tempo das cidades livres italianas).

Anotemos algo sobre o privado e o público em Direito.


Observamos, acima, que o privatismo-localismo do costume foi
suplantado, em diversos contextos his tóricos, pelo pub licismo-
generalismo da lei. É comum, por outro lado, afirmar-se que n as
épocas em que prevalece o feudalismo, como a Idade Média, n ão
se definem reciprocamente a esfera pública e a privada; ou então,
aquela não se r ealiza plenamente (daí a a lusão à inexistência de
Estado no medievo). E n tretanto a coisa não é t ã o simples. Pois
OUTRAS DiGRESSÕES.. . 75

se diz também que nos séculos feudais o conceito de pacto, ou de


contrato, foi altamente relevante; entretanto a noção de contra-
to, no sentido moderno e contemporâneo tem muito o que ver com
o liberalismo, no qual o espaço público- que Habermas vinculou
ao espírito burguês- se articula com a própria reformulação das
liberdades individuais, em um sentido que na Idade Média seria
impensável. No esquema famoso de Sumner Maine, from status
to contract, configurava-se a inelutável evolução das sociedades,
p assando de contextos em que o grupo é tudo e o indivíduo função
dele, para situações em que a vontade individual - livre e
contratante - emerge como resultado histórico tido por definiti-
vo. O tema voltará um pouco adiante.
Hegel, que via no lado prático ela realidade humana sobre-
tudo a ética e a política, percebeu de pronto, no liberalismo, uma
tendência oposta ao Estado. Daí sua ênfase sobre o aspecto
público da organização das existências, e daí sua recusa do
contratualismo rousseauniano, segundo ele demasiado privati -
zante, bem como do "moralismo" kantiano, de índole subjetiva e
individual. Já nos escritos teológicos juvenis, havia Hegel anali -
sado o contraste entre religião pública e religião privada, che-
gando a considerar "infelizes" as épocas em que a vida privada
se torna predomin:=mte, sendo ao contrário felizes aquelas em
que o povo como um todo "exerce a virtude pública"2 •
Não sei se posso atrever-me a dizer que Hegel foi mau leitor
de Rousseau, mas o certo é que neste o contrato foi só uma
referência conceitual, dominando em seu pensamento a imagem
clássica da unidade cívica urdida em torno da moral pública.
Rousseau foi na verdade um fascinado pelas virtudes antigas, as
romanas por exemplo. De qualquer modo as alusões feitas são
bastantes para que reconheçamos em Hegel um certo platonismo
(o Estado, a Ética, a Moral pública), ou um anti-epicurismo
implícito.
Mas retornemos à noção de pacto. Se a Idade Média foi
época de pactos, isto é, acordos de vontades em sentido ainda
pré-liberal, foi também, segundo se costuma afirmar, época de
"cartas" (como a Magna Carta Inglesa de 1215 ou a Bula de Ouro

2. c r.l\orhc r lo 13obbio, "Direi lo Privado c Dir eito Pt'oblic;o cmllcue l", C ll l ~nsa ios /':.WYllhidos, Sã o
Pnulo, Ed. Ca.rdim, 1988.
7(] O .JARDIM E A !'RAÇA

da Hungria de 1222), e não propriamente de constituições, estas


surgidas das r evoluções modernas como obra do lado publicizan-
te do espírito burguês . Na verdade não parece tão óbvio, como
pretendeu Hegel, que a "burguesia" tenha tido apenas tendências
privatizantes; aliás Habermas, conforme já mencionamos, situou
em conexão com o papel histórico do burguês a estruturação de
um específico espaço público, ou de uma peculiar "publicidade".
O que ocorre é que o espírito moderno, burguês-leigo-racional,
reformulou a seu modo um problema que em cada grande contex-
to histórico se reelabora: o das relações entre dimensão pública e
dimensão privada.
O Estado Moderno, com seu sentido de concentração e ao
mesmo tempo sua formalização normativa, passou a ser um
Estado "constitucional" na proporção em que esta formalização
se tornou essencial para sua existência. E isto foi obra do libera-
lismo, que pretendeu redimensionar a posição do indivíduo dian-
te do Estado, convertendo àquele em "cidadão" e a este em
sistema de funções, tornadas transparentes justamente pela
formalização normativa.
Pactos e contratos, que costumam ser ligados à idéia das
vontades privadas, podem dar-se também, historicamente, entre
povos, como entre impérios, como entre monarcas. A Idade
Média - não deixando sem registro o abuso que consiste em
usar-se esta expressão como designadora de algo muito uniforme
-terá sido em grande medida um período de lealdades pessoais,
onde pactos e alianças se mantinham sem o Estado por perto.
Entretanto o mundo moderno, com o capitalismo e como laicismo
"burguês", manteve em larga escala a utilização dos contratos,
só que reformulanclo seu alcance e metendo-os dentro de uma
sistemática jurídica inteiramente nova, como não podia deixar
ele ser.
Não se pode forçar as generalizações, nem pensar em dife-
renças muito extremadas entre duas épocas sucessivas, pois
quase sempre o que ocorre são transições, são variações de
ênfase, são combinações diferentes. Entretanto é certo que em
dados períodos as alterações se aprofundam, e elementos que
existiam em determinado contexto se apresentam, no contexto
seguinte, basta nte transformados. Deste modo será válido falar
ela influência elo processo de secularização geral que, ao esten-
OUTRAS DIGRESSÕES.. . 77

der-se dentro do Ocidente a partir dos fins do medievo, modificou


as estruturas do pensar, as do poder, as da economia e também
as do existir privado. Com ele a burguesia se consolidou, e com
ela o capitalismo; implícita ou explicitamente se consagrou a
noção de ordem pública. As revoluções "burguesas" (liberais)
entronizaram a praça como lugar e fonte, ou símbolo, de decisões
históricas . O iluminismo, que Kant em ensaio famoso vinculou
à divisa sapere aude, estabeleceu o princípio segundo o qual o
conhecimento deve ser público: contra o saber oculto e esotérico
que tin ha sido em parte o da Idade Média. No fundo uma atitude
utópica, no sentido da absoluta difusão das "luzes", e consoante
com o ideal pedagogista do século XVIII, que pretendia que o
progr esso - destino inexorável dos povos levasse todos os
homens à plena posse da ciência .
Detenhamo-nos por um pouco sobre a imagem, sempre
discutível, do trânsito do medieval ao moderno. Esta imagem,
oriunda do humanismo e de seus prolongamentos- inclusive com
os termos empregados por Cellarius -, veio sendo mantida até
nosso século apesar do desgaste da expressão "moderno", e com
ela vieram mantendo-se velhos clichês, alguns verdadeiros ou-
tros nem tanto.
Certos estudiosos têm, como já dissemos, difundido a idéia
ele que na Idade Média teria prevalecido o aspecto privado das
relações e das estruturas. Garcia-Pelayo chegou a adiantar que
nos séculos feudais a única coisa realmente "pública" teria sido
a Igreja. Entretanto, como as imagens referentes a d eterminado
contexto são mais isso ou mais aquilo em comparação com as de
algum outro, o que ocorre é que a p resença do Estado nos séculos
finais da história romana, repetida de certo modo a partir do
absolutismo "moderno" n as grandes nações européias, faz com
que se veja o longo trecho medieval (confuso e variado mas com
alguns traços constantes) como um tempo onde houve "menos"
presença de estruturas estatais, e mesmo de espaços públicos no
sentido moderno. Além disso a configuração do privatismo me-
dieval se corrobora com o localismo ou "part icularismo", que foi
naqueles séculos o complemento dos vínculos p essoais e da
mar ca da terr a sobre os valores sociais. Não é por acaso que o
trânsito ao "mode rno" envolveu entre outras coisas o advento de
um novo sentido de vida urbana, aderido a o crescente papel da
78 O JARDIM/:: 1l PRt\ÇJ\

burguesia c do dinheiro. Talvez se possa realmente encontrar,


na urbanística moderna, um sentido de espaço bastante distinto
do que existiu nas cidades medievais; e é interessante aludir
aqui ao famoso ensaio de Werner Sombart sobre a relação entre
o capitalismo e o espírito do luxo, no qual se acham estudadas
as características das grandes urbes que foram, dos séculos XVI
e XVII em diante, centros de prazer e de poder: cidades com
largas áreas e com um novo padrão de mentalidade.
A tentação das divisões triádicas, que sempre atuou sobre
os diversos autores que trataram da história "geral", se refletiu
em diversos esquemas: no de Vico (história divina, heróica e
humana), no de Comte (épocas teológica, metafísica e positiva),
no de Morgan (selvageria-barbárie-civilização) e também no de
Engels e Marx, que falavam de escravismo, feudalismo e capita-
lismo, resolvidos na solução socialista. Entretanto a diferença
entre o mundo medieval e o mundo moderno tem dois aspectos.
Por um lado eles são, no caso do Ocidente, uma continuidade,
são etapas de uma mesma cultura; por outro eles representam
dois p adrões de vida histórica muito distintos, e neste sentido o
fosso entre feudalismo e capitalismo- ou sociedade moderna, ou
burguesa - é mais profundo do que o que pode existir entre
capitalismo e socialismo. Estes dois são no fundo resultantes do
processo geral de secularização, que tanto afeta a esfera cultur'a l
como a econômica, enquanto o mundo feudal foi anterior àquele
processo.
Retornando ao tema do advento do sentido de espaço públi-
co no mundo contemporâneo (aceitando-se a convenção cronoló-
gica que o instala a partir do trânsito do século XVIII a o XIX),
temos isto: o desdobramento da coisa "Estado" em diversas
formas institucionais e sob diversos ismos políticos, com osten-
sivo crescimento do lado público do viver (inclusive sua presença
dentro da linguagem), e entretanto a persistência do padrão
privado como conjunto de elementos vindos da antigüidade clás-
sica: matrimônio, mulher, crianças, cama, mesa, aniversários,
laços domésticos. A dualidade, que nem sempre representa atri-
to, prossegue através do oitocentos e desemboca em nosso século.
Neste, entram em crise a vida da família e os valores domésticos
tradicionais, enquanto os regimes autoritários reforçam as pa-
redes do Estado, cujo intervencionismo se torna geral. A figura
OUTRAS DIGRESSÕES... 79

do espaço público terá tido, no século XX, sua "esquerda" e sua


"direita": assim a Praça Vermelha em Moscou com suas monu-
mentalidades, assim o tema do Lebensraum (espaço vital) no
nazismo, assumido inclusive por Carl Schmitt, que publicou em
1950 seu livro sobre o "Nomos da Terra" (Der Nomos der Erde)
e em 1958 seus concisos "Diálogos sobre os novos Espaços"
(Gespraeche über den neuen Raum).
Quanto à idéia iluminista, mencionada linhas acima, se-
gundo a qual o saber tende a (ou deve) tornar-se algo público,
vale acentuar a lgumas de suas correlações históricas. Ela se
situa dentro da luta ent r e a concepção hermetizante e esotérica
elo saber, o saber como uma r evelação a que poucos têm a cesso,
e a concepção "aberta", latentemente racionalista (e cientificis -
ta). Esta luta, que na Grécia antiga ocorreu ao tempo ela sofística,
no século V a.C. , com o cultivo elo debate e com o r e lativismo
epistemológico, reaparece no Renascimento onde certos restos
de ocultismo coexistem com os começos ela metodologia científi-
co-natural moderna. Aliás Marguerite Yourcenar acenou com
alguns lances do tema em passagens de seu romance histórico A
Obra em Negro. No fundo, a concepção que aqui chamamos
aberta - à falta ele melhor termo - vai desdobrar-se, do século
XIX p ara o XX, em um largo processo de ampliação de informa-
ções, ele debates e ele formas de expressão, processo que corres-
ponderá à democratização dos produtos culturais e também à
difusão das "comunicações". Embora que por outro lado as com-
plicações da ciência possam estar levando a um outro modo de
"fechamento", com o saber privativo de poucos - refiro-me às
ciên cias naturais, sobretudo.
Sobr e a democratização elos produtos culturais, Karl Man-
nheim escreveu em 1933 um sugestivo ensaio, com o título de
Demokratisierung des Geistes, que o tradutor espanhol preferiu
verter para Democratización de la Cultura, evitando a tra dução
ele Geist por "espírito", mais correta mas no contexto inviável:
trata-se, no estudo de Mannheim, da influência da democracia,
como fenômeno histórico abrangente, sobre expressões culturais.
Pois naquele ensaio3 o autor tenta estudar a cultura democráti-
ca, que veio crescendo com a própria presença histórica da

3. Inserido em E nsa)·os de Sociologia de la Cullura, lrnd. M. Snlirez, Mnclricl, 1\guillar, J057.


80 O JARDIM E A 11/lAÇA

democracia política, em confronto com a cultura aristocrática.


Ao atribuir à mentalidade democrática um pendor mais otimista
e ao mesmo tempo mais aberto às mudanças sociais, Mannheim
coloca observações que revelam o relativismo que se acha dentro
daquela mentalidade, e que a nosso ver tem relação com um certo
sentido de posteríorídade histórica (em relação aos padrões aris-
tocráticos, especialmente), e também com o fundamental proces-
so de secularização.
Este relativismo, próprio da Grécia antiga nos últimos
tempos, tem muito a ver com a proliferação de ismos trazidos
pelo pensamento leigo moderno, e se apresenta por assim dizer
como lâmina de dois gumes: de um lado a validade dos criticis-
mos está ligada a ele, mas de outro há o acúmulo de sutilezas e
a crescente sensação de crise.
Quanto ao problema do "papel social da ciência", latente na
idé ia de uma publicização do saber, ele chegou em nosso século
a impasses dramáticos, com o problema - entre outros - dos
possíveis princípios éticos do trabalho do cientista, com freqüên-
cia s ervindo ao poder e a discutíveis propósitos políticos.

Mas voltemos aos contratos e a o contratualismo, menciona-


dos algo acima. Os civilistas do século XIX, montados sobre
fontes romanas mas em sintonia com o espírito de seu tempo,
pensaram nas vontades individuais como conteúdo específico do
contrato, e neste como expressão p erfeita delas: complemento,
de certo modo, de idéia rousseauniana da lei como expressão
(perfeita) da volonté générale. Pois n ã o faltou ao século XIX um
modo de acoplar esta idéia com a genérica e onipresente idéia de
evolução. Quase todos os grandes pensadores daquele século
acreditaram em alguma forma de evolução: evolução da s elvage -
ria à civilização, das sociedades monocelulares à complexidade
m oderna ou qualquer fórmula comparáve l. O liberalismo adota-
va o "princíp io" da evolução como sucedâ neo ou prosseguiment o
da lei do progresso. E em Sumner Maine, que já citamos e cuja
vivência na Índia reforçou suas crenças evolucionistas, encon-
tramos a célebre expressão from status to contract, onde a noção
de contrato era tomada em sentido amplo, envolvendo o aspecto
jurídico e as implicações sociais: do status, condição das pessoas
d entro daqueles grupos em que a ordem coletiva (e dentro dela
OUTRAS DIGRESSÕES... 81

o esquema de relações familiares) tudo definia e pré-definia no


tocante aos comportamentos, passava-se historicamente ao re-
gime social do contrato, em que as liberdades pessoais se torna-
vam plenas. A alu são ao status abrangia, neste tipo de pensar,
os períodos primitivos e as sociedades antigas, mas também
cabiam na imagem os séculos de cultura aristocrática, ao menos
no sentido da pré-determinação familiar das posições sociais e
dos comportamentos (Mannheim, no ensaio que citei mais acima,
acentua este dado dos contextos aristocráticos, o da tendência à
visão mais estática do que dinâmica das estruturas). Neste
sentido, a interpretação cabível seria mais ou menos esta: a
cultura democrática se considera mais dinâmica em relação aos
estágios "pré -democráticos", e neste dinamismo cabem, como
preço, as instabilidades e as crises latentes.
Quanto ao contatualismo, velha teoria surgida na Grécia
antiga e apartada aos conceitos e preceitos do moderno liberalis-
mo, a referência aos consentimentos individuais como base para
a legitimidade do poder, c portanto para a obediência, é nele,
antes de tudo, um legado teórico. Por mais relevante que a teoria
tenha sido em certo tempo, e por mais simpática que seja como
configuração doutrinária, permanece nela uma certa ambigüida-
de: as anuências individuais fundamentam a própria existência
de uma vontade "geral", que é já de nível social, mas dependem,
para terem sentido (e eficácia), de um plano m eta-individual do
viver. Esta quase petição-de-princípio se acha no próprio interior
do argumento, e permanece mesmo quando se descarta- como
deve descartar-se - a interpretação empírica do contato, que o
"refutava" em termos antropológicos.
De qualquer sorte a chamada crise do contrato, ou crise da
"soberania" do contrato, que vem sendo denuncia da há quase
cem anos como crise do individualismo e do voluntarismo jurídi-
cos, é algo mais do que isso. Trata-se da crise do chamado
paradigma dogmático4, o do próprio modelo priva tísLico do pen-
samento jurídico, diante do crescimento do Estado e da "publici-
zação" do próprio conceito de Direito. Crise, também, do ideal
codificador vindo do iluminismo e maturado durante o século

4. Cf. Zuleta P ucciro, Paradigma fiDRmrit ico y ciencin del derecho, 8d. J1.,v. du Derecho Priuoclo,
Madrid, 198 1.
82 OJAJWIM Jo: A PRAÇA

XIX: estaríamos dentro, segundo certos autores, de uma fase de


"decodificação" dos ordenamentos .
Esta alusão ao Direito r equer, entretanto, algumas anota-
ções mais. Citei, no começo, o importante estudo de Jürgen
Habermas sobre o espaço público, onde a noção genérica de
esfera pública se considera, em sua concentrada versão burgue-
sa, como categoria histórica específica5 . O Livro apareceu em
alemão em 1962. Em 1979, o próprio Habermas coordenou a
edição de um volume coletivo, referido à comemoração do livro
de Jaspers sobre a "situação espiritual do tempo"; volume no
qual se incluiu um estudo de Jürgen Seifert intitulado "Casa ou
Forum", dirigido a analisar a diferença entre duas concepções de
constituição: a constituição como casa, isto é, como s istema
fechado de valores, totalidade imodificável, ou como forum, isto
é, texto aberto, projeto democraticamente passível de ser refeito
com o concurso de todosn. Em 1980, tocando em temática análo-
ga, Peter Haberle estudou a função da dimensão pública n o
Estado democrático, afetando também o sentido do ordenamento
constitucional: a publicidade seria por excelência o princípio
jurídico-constitucional da democracia7 •
Não podemos ir atrás do assunto em todas as suas correla-
ções, mas será sugestivo citar de novo o breve e incitante livro
de Georgcs Balandier O Poder em Cena. Logo no capítulo primei-
ro ele nos fala das cidades, que apresentam "múltiplas cenas
construídas pelos regimes sucessivos" - e neste caso o grande
exemplo para ele é Roma -, c também, especificamente, do
espaço público que abriga os símbolos do poder, quase como o
palco de um drama, que se desenrola em termos inconfundíveis.

5. L'l!:space public, 1\rchéologie de lapublicilé ele., cit.


6. J. Scifcrt, "llaus ode r Forum- Wcrtsystem odcroffcnc Vcrfassung", em Slrichworle zu.rGeistige
Situation dcs Zeit, vol. I (Frankfurt, Suhrkamp, 1979).
7. Die Ver{assungdes l'luralismus, Konígstcin, i\i.henacunt, 1980, item Gdo cap. TT.
12. SOBRE AS UTOPIAS

....,.

Entretanto, h á um gênero lítero-político-filosófico em cujas


expressões sem pre ocorre o problema dos espaços, os geográficos
e os urbanos, e onde a opção entre dimensão pública e dimensão
privada aparece com freqüência. Trata-se das utopias. Nelas,
quase sempre, o público prima sobre o privado, por conta da
implacável p lanificaçã o que Lende a pesar sobre os indivíduos.
Alguns autores , como por exemplo Gerhard Ritter, têm
contraposto dentro da cultura política moderna a linha "maquia-
vélica" e a linha "utópica". Esta contraposiçã o se revela questio-
n ável, posto que sempre há nas utopias um autoritarismo que
não contrasta muito com o absolutismo implícito do "Príncipe"
de Maquiavel; mas há a lgumas diferen ças que possibilitam o
cotejo. Inclusive o problem a do otimismo e do pessimismo: há
quem pense que as utopias s ão sempre um sinal de otimismo -
e isto é verdade em princípio :-, enquanto que Maquiavel teria
sido um pessimista. Aliás j á foi dito, não me recordo por quem,
que os grandes pensadores políticos são sempre ser pes simis tas,
descrentes da "bondade natural" do homem; e ist o também é
verdade ao menos em parte.
Só que o otimismo das utopias é r elativo: com freqüência
seus autores descrêem do espontâneo arranjo de soluções entr e
84 O JARDIM E A PRAÇA

os homens e apelam para o Estado (ou para um governo absoluto)


com o fim de organizar definitivamente as coisas. Geralmente as
utopias são uma construção a -histórica; suas descrições não
incluem a a lusão às "origens", e se mantêm num presente do
indicativo mais ou menos abstrato. Vejam-se por exemplo as .
explanações do Genovês n a Cidade do Sol de Tommaso Campa-
nella (talvez a mais utópica das utopias e a meu ver a mais
infantil e mais absurda); vejam-se as de Rafael Hitlodeu na
Utopia de Morus.
Deixemos de lado certas classificações (Ernst Bloch por exem-
plo falava em utopias da ordem e utopias da liberdade) e tentemos
manter uma visão unitária. Há em geral um temp o utópico que não
é histórico, nem sequer empírico: algo como wna dimensão isenta de
mutações. Reflexo, na verdade, do ilustre modelo platônico, onde as
reHlidades concretas se entendem - refiro-me à Politeia, que a
tradução habitual chama "República"- como expressão empobrecida
de um paradigma, isto é, de um ideal. Por outro lado as utopias são
uma imagem anti-sociológica das coisas, quase como se repudiassem
auant la lettre a visão sociológica que ainda estava por vir (falo das
utopias dos séculos XVI, XVII e XVIII). Configuram sociedades onde
nada muda, onde não há "processos sociais".
Nas utopias clássicas o poder público é totalitário e é padro-
nizador. Campanella pretendeu regulamentar comidas e vestuá-
rio bem como casamento e vida sexual. Também Morus pensou
n~a padronização do sexo e da procriação, chegando a exageros
ingênuos, ou mesmo grotescos (extremo oposto da desordem e da
procriação irracional, que ocorre nos países subdesenvolvidos).
O modelo de Esparta, tomado como algo positivo por Platão,
perpetuou-se através dele nas utopias clássicas. Nas utopias do
século XX, em especial o Braue New World de Huxley e o 1984 ele
Orwell atua com sentido negativo um outro modelo, o das
ditadu;as das décadas trinta c quarenta: a de Stalin, a ele Hitler,
a de Mussolini. Sem a mediação histórica do iluminismo e do
liberalismo, dos estudos antropológicos e do relativismo, não se
teria chegado a uma visão crítica do modelo utópico, nem ao seu
uso para fins de advertência: advertência contra a padronização
e o esmagamento do ser humano pelo poder sem limites.
Esta advertência, como se sabe, tem sido feita em outros
moldes e por outras formas de expressão, em nosso século. A
SOBRE AS UTOPIAS 85

redução do indivíduo humano a um número, e à condição vaga-


mente predatória de "consumidor", tem sido relacionada de
modo um tanto óbvio ao novo mal do século, a massificação, e
também ao inaudito crescimento do volume das decisões esta-
tais, mesmo nos regimes não "autoritaristas". Em torno do
primeiro aspecto giraram as patéticas obras de Chaplin, bem
como as reflexões exemplares de Ortega. Estas tiveram várias
continuações, no tocante à análise do esvaziamento da vida e da
rede de complicações que exaurem nas pessoas a possibilidade
de fruir com plenitude as d imensões da existência. Citaria de
passagem o livro de Hem·i Lefebvre, La Vie quotidienne dans le
monde moderne1, que estuda a "sociedade burocrática de consu-
mo", o de William White Junior, The Organization Man 2, que
focaliza os efeitos do excesso de sistematismo e de organização,
e o clássico A Multidão Solitária de David Riesman, escrito em
colaboração com Nathan Glazer e Reuel Denney3 • Sem falar nas
ondas de Toffler, detalhadas e discutíveis, nem nos recentes
estudos sobre o "pós-moderno".

Retalhamos aqui dois pedaços da realidade moderna para


apontar-lhes a contradição. O crescimento do volume das deci-
sões estatais> que controla aspectos os mais variados da vida dos
grupos e das pessoas, é menos um aumento da "polit icidade" da
vida destes grupos do que um sintoma das necessidades de um
governismo tremendamente concentrador. E le, entretanto, coli-
de com as tendências à proteção (inclusive constitucional) da
vida privada, esta todavia ameaçada, por outro lado, pela inva-
são das comunicações e p ela destruição do velho conceito de
residência como válida e efetiva privacidade . Há sempre uma
engrenagem meio perversa increment ando nos homens a neces-
sidade de saber coisas sobre a vida dos outr os, sobretudo a das
"celebridades" (inclusive as que o são por poucos dias)1 •
O tema da padronização das vidas, que há de ter ocorrido
em todos os t empos- inclusive por conta do que Gabriel Tarde

I. Co!. ldécs, Gallirnard, NB,l•', lUGS.


2. N. York, Doubleday Anchor IJooh, W56 .
3. SiioPanlo, PerspectivA, 197 1.
-1. Sobre o problema, Celso Lafcr, Jl Reconstrução dos D ireitos IIu.man.os, um Diálogo com o
I'ensa.mento de lla.nnah Arenf"i.t, Silo Pnulo, Companhia das Letra s, lUSS, cap. Vl!l.
86 OJAIWIM E A PR;IÇA

(hoje tão pouco citado) chamou lei de imitação-, e que aparece


como algo valioso nas utopias clássicas, ou na maioria delas,
parece assumir um aspecto ostensivo no século XX, justo porque
resulta da massificação e do burocratismo-con sumismo (deca-
dência do Ocidente?); e também porque contradiz o quinhão de
consciência histórica que vem aumentando no homem, ou pelo
menos em alguns homens. Sabemos da grande variedade de
formas correspondente aos diversos contextos em que vei<;> ocor-
rendo a experiência cultural, mas temos de nos ater a uns poucos
e obrigatórios figurinos no tocante ao pensar, ao vesLir e ao agir.
Seria o caso de entender, com cético desespero ou mórbida
satisfação, que ocorre um retorno aos moldes primitivos (ou pelo
menos "arcaicos") de vida, com a a bsorção de ca da um pelo todo.
Jean Baudrillard caracterizou como um "confuso amontoado do
social" a realidade das massas, como força de inércia6 •
O esquem a simplificador, que sempre tenta as mentes (mes-
mo as que se dedicam ou deveriam dedicar-se ao trabalho de
pensar), ocorre no caso de certos marxistas como uma visão
linear da história, redutora e maniqueísLa, da qual tem resulta-
do a acusação, sem rnais, de conservadores, aos pensadores que
vêem de modo negativo a ascensão das massas ou que de algum
modo consideram os tempos correntes (isto é , o século XX da
primeira guerra em diante, mais ou menos) como tempos ele
crise: Max Weber, Alfred Weber, Mannheim, Jaspers, Ortega,
Huizinga. O a ssunto, por outro viés, foi colocado por Umberto
Eco em seu Apocalípticos e Integrados, distinguindo entre os que
dissentem, e falam de decadência , e os que n ão dissentem , e se
integram t r anqüilamente à nova cultura de massas. Seria inter-
minável e impertinente arrolar aqui as obras tematizando e que
vêm teorizando a crise, desde Comte e outros do oitocentos até
Spengler e os que se lhe seguiram, com a contrapartida dos
otimistas (socialistas ou capitalistas) que enxergam na confusão
de hoje o desenlace de um prefixado script histórico ou então
saídas (issues!) muito pragmáticas para a prosperidade social.
Bem assim mencionar os graves proble~as éticos tratados por
um Bloch ou por um Gehlen - para citar autores de posições

5. À l'ombre des majorilés si/endeuses, ou: la {indu social, lrad. bras., São Pnulo, IJrasiliense,
1985.
SOBRE i\S UTOPIAS 87

diferentes -, problemas situados na "era da técnica" ou na


"sociedade afluente", e de qualquer sorte chegando já, dramati-
camente, ao conturbado limiar do ano 2000.
A estas alturas vale registrar um outro paradoxo, vigent e
entre os diversos contrastes das décadas mais recentes. Refiro-
me ao fato de que o ideal revolucionário, que em si mesmo é
a-histórico e negador do passado (o passado histórico como amas
d'iniquités), segue animando muitos setores em muitas nações;
e de que entretanto o que nossa época vem consagrando como
tendência geral é o imediatismo, como negação do passdo em
outro sentido e até como negação do futuro. Dir-se-á que este
imediatismo é capitalista e irmão do pragmatismo ianque; mas
apesar disso ele se acha instalado como um dado genérico em
quase todos os quadrantes. O imediatismo se acha tanto no
consumismo como no culto da velocidade e na paixão pelas
novidades da tecnologia; acha-se na destruição das coisas está-
veis e no uso geral do descartável. Poucos se recordam, e nem
sempre é agradável lembrar isto, que nos períodos de estabilida-
de é que a humanidade consolidou seus arquétipos e estruturou
suas conquistas em todas as áreas (mesmo que a semente e a
fonte dessas coisas tenham provindo, em a lguns casos, de sacu-
didelas revolucionárias).

Com isto retornamos ao tema das utopias. Talvez se possa,


efetivamente, afirmar que elas surgem (sobretudo as a ntigas e
as pós-renascentistas) como expressão do triunfo de uma m en-
talidade que sobrepõe o público ao privado. É como se o próprio
pensamento utópico se formulasse a partir da experiência da
praça, e isto deve ter relação com uma certa artificialidade que
existe nas utopias . Elas nos lembram museus de cera, ou um
misto de narrativa mítica com bur ocratismo sublimado. Há nelas
algo mórbido, e isto vem do distanciamento em relação ao con-
creto-existente, ao que está no viver privado e empírico, de cuj as
precariedades a utopia busca limpar-se . Seu componente padro·
nizador, encaixado e enquadrado em esquemas genéricos, tende
a apagar diferenciações e espontaneidades. Sua dimensão mítica
(ou "fabuladora") se revela em termos laten temente dogmáticos,
que alimentam o totalitarismo e impõem a aceitação de fins e de
88 O JARDIM E A PRAÇA

normas elaborados não apenas de cima p ara baixo, mas também


de fora para dentro.
O não-privatismo das grandes utopias, traçadas como uma
espécie de macroarquitetura do social, aparece em certos enfo-
ques como correlato de uma "tendência" evolu tiva. Ass im August
Bebel, pensador socialista do século passado, dizia , em seu livro
sobre o futuro da mulher, que a vida social no futuro será
crescentemente pública, alterando inclusive a posição das mu-
lheres : a viela doméstica se r eduzirá ao mínimo, cedendo lugar a
largos espaços para leituras, debates e atividades sociais6 •
Ao "publicismo" abstrato elas utopias corresponde o fato ele
serem em princípio a-(ou anti) históricas, sendo em certo sentido
conservadoras. Nelas se congela uma dada forma de ordem como
sendo ideal e imutável. Mas se trata de um conservadorismo
abstrato, que não se confunde com o conservadorismo romântico
nem com os tradicionalismos pós-românticos: nestes se valorizam,
precisamente, o lastro histórico e o cerne privado da vida elas
comunidades. No conservadorismo propriamente dito, que não
abjura da evolução mas tenta conjugá-la com a preservação do
estável, há uma peculiar permanência da dimensão privada, vin-
culada h istoricamente a algum traço residual do feudalismo, e de
qualquer sorte não redutível ao racionalismo dito burguês, analí-
tico em vez de s intético e universalizante em vez de particularista.
Ficou dito, acima, que as utopias têm algo de narrativa
mítica. Isto se aplica inclusive aos relatos messiânicos, inclusive
os que falam de terras da fartura, com rios d e l eite e de mel. Elas
têm realmente um la do religioso, e de le decorre o hierático
dogmatismo que se encontra d escrito nas utopias literá rias: em
Ca mpanella, por exemplo, o poder supremo do "Metafísico" equi-
valia à exist ência de verdades indiscutíveis e de preceitos gerais
inquestionáveis. Verdades sagradas: algo genérico, infenso às
r efrações da vida privada, das dúvidas, do diálogo e da "opinião".
Podemos ver como pólo oposto o conceito variável ou pelo menos
"r elativo" de verdade, advindo da dessacra lização, expresso
como empirismo no iluminismo inglês e como criticismo na
filosofia de K a nt.

G. \Vomall i11 lhe Past_ Preselll Glui Future, trnd. A. Walther, 3• ed., Londres W. Rccves, s. ri., p.
221.
13. ABURGUESIA, OLIBERALISMO E
0 PROBLEMA DO EQUILÍBRIO ...
#'

O que se depreende de tudo isso, no meio de oscilações e de


predomínios, é entretanto a permanência da distinção entre
duas dimensões do viver: a que circunda o indivíduo como algo
concreto e imediato, e a que se estende ao seu redor como
projeção de planos mais amplos e mais complexos. Em uma visão
equilibradora, os dois modos (para usar um termo spinoziano)
deveriam ser complementares, sendo ambos necessários ao exis-
tir dos grupos humanos e ao desenvolvimento da condição hu-
mana. Mesmo porque as formas de vida são sempre formas de
equilíbrio. Na medida em que a distinção en t re público e privado
se entende como uma constante histórica, será sempre ilustrati-
vo reportar-se aos momentos mais exemplares da antigüidade
clássica e do "Ocidente", nos quais aquela constante se apresenta
nítida e persuasiva: nas cidades gregas e romanas, na Idade
Média Cristã (e também entre árabes e persas), no Renascimen-
to.
No Renascimento, entre as coisas que se retomaram do
acervo cultural greco-latino, ressurgiu por exemplo o tema da
comparação entre a vida social e a vida solit ária. Sêneca havia,
!)0 O JARDIM E 11 PRAÇII

em varias de suas Cartas a Lucillius, tratado do assunto em


termos de elogio da solidão e de desestima ou desprezo da
multidão e mesmo dos grupos mais restritos. E Pierre Charron,
em seu livro de ensaios chamado De la sagesse (publicado em
1601), comparou as duas formas de vida, a solitária e a social,
advertindo contra as "más companhias", e distinguindo entre os
contatos moderados, que são úteis, e os excessos que dizia platô-
nicos, consistentes em ter tudo em comum 1 •
O Lema da oposição entre vida social e vida solitária é
paralelo, digamos assim, ao da complementaridade entre vida
pública e vida privada. A vida privada, que também tem uma
estrutura, se desenrola em espaços específicos, onde o humano
se concentra em conexão mais direta com o eu individual e onde
o eu se cultiva através de conexões culturais concretas e pes-
soais. Coloca-se nesta esfera o fenômeno milenar do residir,
obviamente ligado à casa- a casa e seus espaços, a propósito dos
quais citamos mais acima o conhecido livro de Bachelard. Na
esfera oposta, a do viver público, paira a existência grave e oficial
das chamadas instituições; as instituições ordenam o conviver,
assumem o lado "genérico" da experiência humana e dão ao
"social" o seu perfil peculiar. A filosofia de Heidegger, que subli-
nhou o tema da "vida autêntica", contemplou também o conceito
de morar (wohnen) como componente fundamental do estar no
mundo. O viver privado possui obviamente algo de centro e de
refúgio, essencial referência posta entre o indivíduo e a "realida-
de" - cósmica, social, pública. Mas a vida histórica evidentemen-
te não ocorreria sem a existência ela esfera pública, embora seja
certo que ela também inclui o viver privado: na esfera pública se
acham as definições sociais fundamentais, com o poder e seus
símbolos, as hierarquias, as edificações, as distâncias rituais, e
isto desde Ur e Ugarit até Atenas e Esparta, Roma e Cartago,
França e Inglaterra. O lado público, na medida em que recorta
o "social", define e abriga os chamados papéis, que o homem
desempenha e que inclui seus ídolos (no sentido baconiano),
destacando-se os idola fori, as representações inerentes a cada
contexto social (ou profissional).

1. Séncqnc, Lcllres à Lucillius, trad. F. c P. Richa rei, cd. hilingiic, Paris, Carnicr, s.d., passim; P.
Cluwron, De la Sabidurla, lrad. Elza Fabcrnig, D. i\ ires, Losadn, 19~8, caps. L c LI.
A 13URGUESJA, O LIBERALISM O... 91

O liberalism o e a burguesi a, sobre os quais têm caído


críticas de todas as procedên cias, tiveram o que ver, entretant o,
com o relativism o que nos permite hoje repensar tudo isso.
Denuncia da por Marx que a confundi u sem mais com o capita-
lismo, repudiad a por Nietzsch e que nela enxergou a negação dos
valores criativos, a burguesi a constitui u na verdade o persona-
gem central do vasto processo de seculariz ação cultural que veio
a permitir o advento de todos os cr iticismos modernos , não só o
de Marx e o de Nietzsch e mas também o criticismo propriam ente
dito, o de Kant, com suas conotaçõe s específica s. O liberalism o,
detestado pelos nazistas como despolitiz ante e pelos socialista s
que apesar de tudo aproveita m dele o esquema constituc ional e
a idéia de Estado-d e-Direito , ensejcu a abertura relativist a para
os diferente s ismos que se acotovela m, desde os tempos de
Hobbes em torno das indagaçõ es basilares da teoria política.
Não cabe confundi r o liberalism o propriam ente, o que está den-
tro da valorizaç ão da liberdade desde os huguenot es (Ortega
referiu-o como posição demasiad o elegante para manter-s e por
muito tempo), com suas "implicaç ões" capitalist as ou com o
simples ideal econômic o da livre concorrên cia. Nem tão pouco,
seja dito de passagem , com as alegações "neo liberais" que hoje
servem a muitos para aderir a regimes autoritár ios ou aceitar
imperiali smos bem armados.
Foi por assim dizer implícita a busca, dentro da mentalid a-
de liberal vigente nos dois últimos séculos, de um equilíbrio entre
ordem pública e ordem privada. Ao anarquism o coube de certa
forma recusar a esfera pública, com a rejeição a todo governo,
todo comando externo ao indivíduo : tanto no exacerba do egoísmo
de Stirner quanto no exagerad o antiestat ismo do entretant o
liberal Spencer. Aos socialism os coube enfatizar o lado público
das coisas, ao dar destaque aos problema s econômic o-sociais
(vimos como Bebel anunciav a o advento de uma época en: ~ue o
viver público seria dominan te). Interrom pida a tra)etona do
liberalism o iluminist a, pelas coisas advindas da Revoluçã o
Francesa e pelos tumultos sociais do século XIX, ficou faltando à
experiênc ia histórica do Ocidente contempo râneo ret omar a ten-
tativa de equilibra r nos seres humanos a carga privada e a carga
pública - cargas e encargos.
92 O JARDIM E A PRAÇA

Mais sobre o liberalismo. Na medida em que a tendência do


esquema político liberal foi no sentido de eliminar os "corpos" e
as "ordens" postas entre o cidadão e o Estado, ele sublinhou o
confronto entre o perfil privado e o perfil público dos homens.
Com o tempo, deslocadas as linhas clássicas, ressurgiram corpos
de outra espécie - basicamente grupos econômicos - , e se des-
montou o desenho que o liberalismo havia traçado. Em artigo de
revista publicado em 1970, Rolf-Dieter Herrmann tentou articu-
lar o problema do chamado domínio público com o tema da
estrutura sociopolítica das democracias ocidentais contemporâ-
neas, acentuando o desaparecimento do confronto entre o indi-
víduo e o Estado ("a silhueta do homem privado ousadamente
levantada em face do Estado"), que teria ocorrido nos tempos da
Revolução Francesa2 • Para Hermann, a alteração histórica en-
volve, no caso, uma revisão da própria experiência do poder, e
também da noção do que seja público: para ele, o marxismo teria
ensejado uma excessiva ampliação do "público", dissolvendo a
própria diferença entre o social e o estatal, e também repudiando
o ideal liberal de discussão.
Realmente caberia reexaminar o papel social ou antes his-
tórico dos grupos e dos "grêmios", mediadores entre o ponto de
referência da vida privada, o indivíduo, e o amplo horizonte ela
vida pública, composto pela ordem política geral (estatal e mes-
mo internacional). Os grupos, que reuiennent au galop logo que
podem, invadem a sociedade e dão no "organizacionismo", que
William White estudou e que m encionamos acima. A reflexão
sobre o assunto nos encaminharia , entretanto, a rever os chama·
dos processos de socialização, nos quais interfere a presença dos
grupos - e grande parte da sociologia norte-americana neste
século surgiu como "sociologia dos grupos" -, e nos quais o
indivíduo, como ponto de referência, se comunica com esta coisa
meio abstrata que é a genérica "sociedade". Por outro lado o
assunto nos conduziria de novo ao tema elas grandes massas
urbanas, que vimos mencionando, com o agravante dos pavoro-
sos aumentos de população por toda a parte; e ao tema da crise
das formas seculares de vida, crise da qual surgem expressões
as mais variadas.

2. "Vie publique- Vie privéc", con Diogéne, Paris, n. G!.l, jan.-mar., 1.970.
A BURGUESIA, O LllJERJ\LISMO. .. 93

Como entendemos burguesia não no apertado sentido de


classe responsável pelo capitalismo e pelas estruuras de domi-
nação que ensejou e enseja, mas no de tipo histórico que- sem
deixar de ser "classe" - protagonizou no Ocidente (como de certo
modo no mundo antigo) o processo de secularização da cultura,
podemos estimar na presença histórica da burguesia uma busca,
correlata daquela que estava ínsita no credo liberal, de equilí-
brios muito peculiares. Por exemplo o equilíbrio entre Estado
nacional e cosmopolitismo (estudado por Meinecke em obra
clássica), o equilíbrio entre racionalidade e sentimento, que
aparece sob versões diferentes em Rousseau e em Goethe, ou
ainda o equilíbrio entre praça e jardim: entre a dimensão pública
e a dimensão privada.
Não se pode negligenciar com um piparote o sentido assu-
mido pelo trabalho intelectual dentro dos contextos dominados
pelo sapere aude de origem iluminista e de base burguesa -
dentro do sentido em que entendemos acima o conceito de bur-
guesia. A própria noção de "trabalho intelectual" só seria possí-
vel dentro de conotações laico-racionais do tipo das que surgiram
nos séculos ditos modernos, ou na Grécia a partir da geração de
Sócrates. Sabe-se que o nobre, ao desdenhar o trabalho, desde-
nhava inclusive o trabalho intelectual: na Idade Média os cléri-
gos é que, em geral, se dedicavam a copiar manuscritos e a
repassar informações, tanto que a eles se deve em grande parte
a permanência dos textos antigos3 • Sabe-,s e t ambém que o aris-
tocrata grego, mesmo que apreciasse poemas de Arquíloco ou
obras de Fídias, não se "rebaixaria" a escrever versos ou a
cinzelar pedras, e Nielzsche registrou isso em um pa sso famoso
de seu fragmento sobre o Estado grego. A perda, na modernida-
de, da hierática atitude do nobre diante do mundo, foi compen-
sada de algum modo com a possibilidade de se compreender
historicamente as atitudes, coisa que por parte do nobre hierátíco
teria sido impossível. Com isso aludimos ao relativismo, que veio
crescendo por dentro do pensar moderno, laico-racional e críti-
co-comparativo, um relativismo que se opunha aos dogmatismos
também hieráticos e que se expressaria depois, já sobretudo no
começo do século XX, nas tipologias: psicológicas, sociológicas,
94 O JARDIM E A PRAÇA

teórico-políticas. Aquele "saber classificatório", que Foucault


divisou nos começos da modernidade e que era ainda um uso
descritivo da razão, evolui com o relativismo até o pensar tipo-
lógico, que representa um uso moderador da faculdade de julgar.

Dentro da alusão à cultura burguesa - incluindo nela as


roupas do século XIX e as ambigüidades bovaristas -, vai aqui
uma nota sobre o problema da educação. Sempre ocorreu na
história uma opção, expressa sob várias formas, entre a educação
privada e a pública, aquela representada principalmente pela
família e e sta pela "escola", mormente a escola pública. Em um
breve e notável ensaio, incluído em um volume coletivo sobre
problemas de população, André Mnurois aludiu de modo muito
convincente (a não ser para os que detestam a priori a noção de
"elite") e muito oportuno o problema do humanismo, que segundo
ele só se mantém através da continuidade das gerações e dentro
da estrutura da família, ligada à comunidade. Os séculos onde
se cultivou o humanismo clássico for;:~m épocas de cidades peque-
nas, onde havia espaço para o convívio e tempo para a leitu ra1 •
Descontado destas frases um possível saudosismo, permanece
válida a sensação de perda que Maurois quis expressar; pois
também cabe pôr de lado o preconceito anti-elite e perceber que
a grandeza criadora foi mais forte e mais fecunda nos tempos
onde não havia superpopulações e onde as estabilidades sociais
permitiam uma maior maturação das coisas.
Mas tratemos de novo do tema da tendência do espírito
burguês (na medida em que isto existiu ou vem existindo) ao
equilíbrio entre os lados privado e público do viver. Vale repetir
que o conceito de burguesia aqui conotado não é o mesmo que
aparece na literatura socialista hoje largamente esparsa e em
grande medida criada por cissiparidade em relação aos textos
anteriores, sem maior repensamento crítico. Valeria também
fazer constar que não nos referimos, ao falar em equilíbrio,
àquela idéia - típica nos "clássicos" e peculiar em Aclam Smith
- segundo a qual os interesses elo indivíduo e os ela coletividade
se equivalem (ou se complementam), na medida em que a divisão
A BURGUESIA, O LIBERALISMO. .. 95

do trabalho atende a todos. Esta idéia contudo revela, mesmo


tendo algo de ilusório, aquela tendência básica a que aludimos.
Um dos equívocos mais insistentes em torno da idéia de
burguesia vem sendo o de considerá-la como uma classe social
que "sucedeu" à nobreza como grupo dominante, e que vem assim
dominando o operariado, que por sua vez lhe sucederá. Trata-se
de um eco elas visões triáclicas que sempre fascinaram os ho-
mens, e dos específicos triadismos que o século XIX formulou
para esquematizar a evolução. E este e quívoco se articula com
vários outros. Marx entretanto tratou de pelo menos três modos
diferentes o problema de como enumerar e caracterizar as clas-
ses, e a sociologia posterior situ ou o fenômeno "classe" como um
dos modos de dar-se a estratificação social.
Historicamente, a burguesia não "sucedeu" à nobreza (aris-
tocracia) como "classe dominante": até porque es ta nunca foi
classe no sentido restrito do t ermo. Não houve "dominação" da
nobreza sobre a burguesia, e sim sobre a p lebe - tanto na
antigüidade quanto na Europa ocidental - , o que é outra coisa.
O chamado mundo burguês, cujo início correspondeu ao declínio
elo feudalismo e cuja ascensão fo i paralela à do capitalismo, vem
sendo o mundo ela cultura urbana e clessacralizacla. Somente o
economicismo que se instaurou na vida contemporânea (na vida
e na m entalidade), permitiria p ensar-se no capitalismo como
centro e causa geral ele fenômenos como "burguesia", "laicização"
e outros. Vem daí a acepção ele burguês como sinônimo ele
capitalista. De sorte que noções como burguesia e capital foram
criação elo próprio "mundo burguês", ou seja, o mundo elo racio-
nalismo moderno. Do mesmo modo as versões modernas ela
dialética, e os conceitos ele revolução e de proletariado.
Hegel tratou da famüia e ela viela p rivada nos §§ 158 e
seguintes da Filosofia do Direito (de Berlin, ou seja: as Grundli-
nien d e 1821). O fato de t er o filósofo mencionado a família como
"substancialidade imediata d o espírito" n ão o impediu de, no
concernente ao Estado (§§ 258 e segs.), repelir todo privatismo,
inclusive criticando na teoria política de Rousseau a presença do
componente contratual, a seu ver privatizante. De qualquer
sorte H egel h erdou ele Rousseau a questão ela dualidade existen-
te entre o indivíduo (o "burguês") e o cidadão, correspondent e ao
dilema entre pertencer à dimensão privada e à pública. O pen-
!)(i OJARDIM EA PRAÇA

sarnento de Hegel vai aqui referido porque, de certa maneira, a


dialética das relações entre o espírito objetivo e o espírito subje-
tivo, dentro do sistema hegeliano, poderia comparar-se a uma
teoria da dimensão pública e da dimensão privada, pois o Direito
e o Estado são, para Hegel, manifestações da Idéia objetiva. Mas
não nos estendamos sobre isto: vale remeter, de passagem, a
uma nota muito interessante do livro de Gérard Lebrun, O
Avesso da Dialética5 •
Com freqüência se exagera ao acentuar certos aspectos da
época moderna e dos séculos ditos burgueses. É como se o mundo
medieval tivesse sido carente de "espaços", de "racionalidade" e
de outras coisas. Há entretanto alguns traços que caracterizam
o advento da racionalidade pós-renascentista, coligada à secula-
rização e a uma idéia peculiar de Estado: acaba-se inclusive o
sistema oficial de privilégios, e com ele a educação aristocrática,
islo é, a educação dos aristocratas. Mencionamos acima o am-
biente burguês-comercial, que foi o de Vien a em meados (ou na
segunda metade) do século XIX e que vem referido no capítulo VI
do livro Viena Fin-de-Siecle de Carl Schorske (aliás intitulado,
sintomaticamente, A Transformação do Jardim) : um ambiente
mais prosaico e menos hierático- ou menos vertical- do que os
contextos aristocráticos, mas povoado de vivências novas, inclu-
sive de novos espaços.
De qualquer sorte os modos nobre e burguês, tornados,
através dos processos históricos, modelos genéricos (que no caso
do nobre tem sentido quase arquetípico), podem encontrar-se,
fragmentariamente ou em forma de detalhes, expressados em
diversos pontos da vida contemporânea, através de valores,
padr ões e atitudes que não se reduzem ao conceito de classe.
A noção paradigmática e arquetípica de nobre continua em
vigência dentro das formas de estimação e de linguagem, desig-
nando atitudes e qualidades: caráter nobre, gesto nobre, inten-
ção nobre. A noção se acha penetrada por conotações como
"desinteresse", "altaneria", "retidão", "altivez" e outras. Entre-
tanto há, na configuração da idéia do nobre - ou do aristocrata,
que aqui usamos como sinônimo - um aspecto que Ortega fixou

5. 'l'rad. 11. J . Ribeiro, São Pau lo, Companhi" da~ Lctrns , ID88, p. 311. Sobre Hegel, v. também
,José Guilherme Mcrquior, O Argumento L iberal, Hio dc J nnciro, Nova Fronteira, Hl83,passím.
ll BURGUESIA, O LTDERALTSMO... 97

e que, ao menos em parte, talvez corresponda à realidade. Para


Ortega, o nobre é sempre "duro, sombrio, caçador". Estes traços
nos revelam o contraste com a "frivolidade" e a flexibilidade que
o nobre atribui (ou atribuía) ao plebeu. Recordemos Hamlet,
quando, referindo-se a Polonius, dizia ser este um velho tolo, que
gostava de piadas chulas e de gigas grotescas. Aliás o próprio
Hamlet, no monólogo famoso, refletia sobre o que seria "mais
nobre", enfrentar o mundo e vencer a adversidade ou sobrepor-se
a esta por uma atitude indiferente, que não permitisse mistura
(a velha hybris grega!) com coisas inferiores.
Este desdém do nobre pelas garrulices "plebéias" nos recor-
da, embora se trate de outro plano, o desdém com que certos
romanos mais austeros aludiam ao amor dos gregos pelas dan-
ças, pelas festas e pela alegria: greculus histrio6 •
De todos os modos parece comum, em certas épocas, o
conflito entre atitudes (ou entre Weltanschaungen) gerar posi-
ções como o do nobre "sombrio". Assim encontramos em Umberto
Eco, logo no prefácio de Apocalípticos e Integrados, junto com a
alusão ao contraste entre a cultura de massa e o crítico apoca-
líptico, a referência à atitude deste, que "opõe, à banaHdade
imperante, a recusa e o silêncio" . Silêncio que terá sido, por parte
de certas nobrezas destronadas, a resposta à adversidade, como
o sentiram os românticos desde a primeira hora e como expres-
sou Vigny no verso famoso:
Seulle silence est grand, tout le reste est faiblesse.

Mas retornemos outra vez ao tema da tendênci a ao equilí-


brio, próprio do laicismo a cujo processo histórico corresponde no
Ocidente a presença do burguês. Este equilíbrio por vezes apa-
rece como algo demasiado prosaico, algo insípido, e disso se terão
apercebido aqueles que no come ço do século passado acusaram
os burgueses de carentes de espírito. E a isso corresponde tam-
bém, de certo modo, o fato de a economia burguesa ter criado a
contabilidade empresarial e as técnicas orçamentá r ias: o modo

6. D.ll. Lawrence, uus pti.ginus sobre sua vingCln o os s ítios arqueológicos de Ccrvctcrl, observou
quo os romanos tcrio m sido urna espécie de "prussiAnos" da nntigüidade, a os quais desagradava
(com o aos h istoriadores tipo Mommscn) a vida "vício.n" dos etruscos: D. II. Laummcc a11dituly,
Pcnguin Books, 1972, parte 3, " J,;trnsctln Placcs"
!18 O JARDIM e A PIIAÇA

de viver dito burguês seria no caso um constante evitar riscos, e


como a .vida é feita de riscos ela perde em substância com os
excessos de cautela.
Uma via)ante, Karen Blixen, refletindo sobre os africanos,
observou certa vez que a compreensão do trágico só existe nas
autênticas aristocracias e no verdadeiro proletariado: o trágico
aparece, para este e para aquelas, como parte da vida e até como
parte de Deus, enquanto que para a burguesia o trágico é algo
des~gradável, algo a ser evitado. Encontrei isto citado em um
livro de Guillermo Floris Margadane. Se afastarmos da obser-
vação o equívoco esquema "nobreza-burguesia-prol etariado", po-
deremos aceitar o registro como basicamente válido e
surpreendentemente interessante. Na verdade, o que ocorre é
que a secularização da cultura veio a apagar nas sociedades o
patlws aristocrático-religioso, que é requisito do trágico (e que o
foi concretamente no caso dos gregos), trazendo crescentemente
o predomínio das formas menos "heróicas" de vida- isso pionei-
ramente Vico percebeu - e entronizando a padronização cultural,
jurídico-política e econômico-social. Padronização que acarreta-
ria o pragmatismo, o utilitarismo e o imediatismo do mundo de
hoje.
Feitas ou admitidas estas ressalvas, mantemos todavia o
mérito da valorização do equilíbrio, existente no "espírito" bur-
guês na medida em que tal espírito é uma realidade histórica.
Muitos autores, que sem mais aquela combatem a burguesia,
confundem o seu conceito com o dos freqüentadores de café-con-
certo do século XIX, ou o dos que iam ao jardim do Luxembugo
procurar grisettes e lorettes 8 • Estes segmentos da sociedade con-
temporânea participam entretanto do modo laico-burguês de
vida do mesmo modo que o trabalho científico, cujo mérito nin-
guém nega, ou os progressos da higiene, dos quais se beneficiam
os próprios detratores da burguesia.
É certo, entretanto, que o padrão burguês de pensar, mesmo
se o entendemos em sentido positivo, corresponde sempre a algo
"não extremado". Assim o teríamos mais em Montesquieu do que

7. lntmducciónalallistoria UniuersaldelDerccho, Xalapa, México, Ed. U ni v. Vcracruzana, 107•1,


p. 4G5.
8. Cf. Cuide eles Plaisirs de l'aris, l"ouvcllc Eclition, Paris, s.J., pp. 210 c ss.
11 BURGUESIA. O Lll3ERALTSMO. .. 99

em Rousseau, como em outro contexto mais em Aristóteles do


que em Platão, e de certo modo mais em Tomás do que em
Agostinho. Não se negará a necessidade de ocorrerem posições
radicais e criadoras como as de Platão e de Rousseau, que
montaram esquemas fundamentais; mas aquela criatividade e
estes esquemas necessitaram, para frutificar historicamente, de
combinar-se com formulações complementares ou paralelas, ou
subseqüentes, dotadas de mais flexibilidade pedagógica e de
maior adaptabilidade ao real.

Quanto ao problema da limitação do Estado, formulado


dentro do racionalismo "burguês" pelos liberais clássicos, ocorre
observar que o pleito em favor da restrição do Estado não deixou
de coadunar-se com a permanência, aliás redimensionada, do
sentido do "público". Como se sabe, a obra legislativa da Revo-
lução Francesa se fundou sobre uma espécie de retomada da
clássica divisão romana do Direito em público e privado, basean-
do-se este sobre o legado romano e aquele, ao menos em parte,
sobre o Direito Natural. Neste caso poderíamos aludir mais uma
vez à tendência do "espírito" burguês ao equilíbrio. Ela se ex-
pressaria inclusive no fato de que, enquanto por um lado o
sempre alegado "individualismo" moderno veio realizando-se
através dos modelos domésticos, inclusive com certos requisitos
estéticos no tocante aos interiores e aos trajes, por outro lado o
sentidodo espaço público se desenvolveu exemplarmente, ligado
inclusive ao processo de reformulação das práticas políticas, com
o advento da democracia, das técnicas eleitorais, dos ismos e da
administração racional contemporânea.
Ainda dentro do tema dos "limites do Estado" (expressão
demasiado amenrt para o anarquismo radical e inaceitável para
os autoritaristas de todos os matizes), vale referir uma questão
que viria eclodir sobretudo nas décadas 30 e 40 de nosso século:
a planificação. Dentro da própria área de influência da economia
capitalista, privatizantc, e em parte sob O< impacto da dout rina
keynesiana que tentou abolir a incompatibilidade entre o Estado
e o capitalismo, buscou-se um modo de adaptar a idéia dos
planos, adotados na União Soviética desde os anos 20. Buscou-se
discutir e refazer as lindes entre o chamado setor público e o
setor dito privado: alguns autores em matéria de finanças públi-
100 OJAJWI/11 E 11 PRIIÇA

cas chegariam a negar a separação tradicionalmente existente


entre os dois.
No debate sobre planificação, onde entrariam entre outras
figuras Jaspers, Von Mises, Laski, Hayek, destacou-se pela
profundidade de suas análises Karl Mannheim, grande pensador
(um dos criadores da "sociologia do conhecimento") ao qual certos
professores desavisados e imbuídos de marxismo mal digerido
vêm atribuindo, com azedo tom acusatório, posições "conserva-
doras". Segundo Mannheim, o crescimento das cidades no Oci-
dente moderno incrementou caracteristicamente uma v as ta rede
de "negócios carentes de intimidade": negócios em cuja estrutura
prevalecem formas totalmente objetivas, com o advenlo de con-
tratos impessoais, senão anônimos, e com o indivíduo solto
diante (ou dentro) desta vaga coisa que é o "público". O inverso,
portanto, do que havia sucedido no medievo. Daí a preocupação
de Mannheim com as implicações do problema da planificação
em termos de psicologia social, no sentido das alterações sofridas
pela personalidade humana dentro das sociedades planificadas.
Daí seu interesse pelo estudo das relações entre economia e
educação, desenvolvido com base na idéia de que em cada grande
tipo de sociedade predomina um padrão de personalidade, bem
como um modo de afirmação pessoal. Reordenar a sociedade,
planejar e estabelecer coordenadas significará portanto algo
bastante complexo9 •
A exacerbação do lado público das coisas, no mundo de hoje,
se exemplificará inclusive com o grande porte das organizações
econômicas internacionais, que destruíram as demarcações na-
cionais, realizando em grau ostensivamente extremo- embora
sob formas diferenciadas - o que talvez estivesse latente nos
grandes "impérios" do passado.

Entretanto um dos temas que me parecem mais centrais,


dentro do enovelado de assuntos que perfazem a fisionomia do
"mundo contemporâneo", é ainda o da perda das estabilidades.
É certo, como foi dito mais acima, que as transformações histó-
ricas não poderiam dar-se se as estruturas fossem inquebráveis,

9. Cf. "/\ Sociedade Planejada e o Proble1na da Personalidade flumaua", em Ensayos sobre


Sociologiay Psicologia Social, México, FCE, I 003.
A BURGUESIA. OLTBERi\lJSMO. .. 1 01

e que toda estabilidade deve ter limites, inclusive os limites que


lhe atribuem a consciência ética e o pensar crítico, que são
obviamente variáveis no tempo e no espaço. Mas é que um dos
aspectos mais dignos de registro, dentro do que se chama de crise
do mundo moderno (ou do "contemporâneo"), é a condição da
autoimagem do homem, formada através de séculos ou de milê-
nios, dentro do quadro de instabilidades hoje existente. A maio-
ria das representações fundamentais, algumas mesmo
arquetípicas, que vieram perfazendo a quela a utoimagem, foi
elaborada em épocas em que (ao menos segundo nos parece,
vistas de hoje) predominaram certos traços estáveis: a casa, a
família, as relações de paternidade, a diferença entre velho e
moço, enfim uma série de imagens, valores e preceitos .
Ainda até duzentos anos atrás, mais valores e mais pre cei-
tos vieram agregando-se. O passar do tempo certamente afeta
as formas de vida, através dos contextos culturais e das organi-
zações de poder; mas uma relat iva continuidade pareceu vir
acumulando-se, feita ele denominadores comuns vindos das mo-
narquias antigas e da Europa cristã. Coisas contrastantes vie·
ram coabitando dentro dessa continuidade, confirmando a
autoimagem do homem. Garantia-a, a esta, a noção l atina ele
Humanitas e questionava-a, explorando-a, a legião de a rqueólo·
gos e filólogos que a erudição ocidental produ ziu . Valores novos,
fabricados pelo mundo pós-renascentista, e preceitos novos se
agregaram ao conjunto. Mas depois de certo tempo os questiona-
mentos se tornaram maiores, o niilismo tomou corpo, e entroni·
zou-se a noção de crise. Decadência elo Ocidente, s aturação elo
espírito secular, crise da burguesia e elo capitalismo ou o que
seja, para quase todos há algo de podre no reino dos seres
humanos.
Voltando aos séculos pós-renascentistas, valerá anotar isto .
Entre os séculos XV e XVII, quando certas formas do mundo
antigo parecem r epetir-se - sem entretanto abolição total das
criações m edievais-, e quando s e consolidam dentr o de vigências
estáveis certos u sos, inclusive os que definem paradigmatica-
mente o lado privado e o l ado público da vida, é que se iniciam
a s grandes movimentações que alterarão os mapas e os usos:
n avega ções, alterações culturais, colonia lismo econômico. Toda
uma nova Voelkerwanderung, com suas conseqüências no plano
102 O JARDIM E A PRAÇA

militar, no político, no social, no ético. A partir daí começam a


periclitar as estabilidades. Deve ter sido assim em outras épocas,
como com o surgimento do império macedônio ou com o fim do
mundo romano; só qu e é este out ro desatar-se de resultant es o
que chega até nossos dias, e nos alcança.
Enquanto o ser humano, ao que parece na maioria dos
contextos passados e até mais ou menos o século XIX, se recon he-
ceu a si mesmo dentro de certos parâmetros (aos quais não teria
talvez trazido grande alteração o advento do "antropocentrismo"
pós-medieval), o sécu lo XX introduz nas imagens a dissimetria e
o desequihbrio. O homem mesmo era um parâmetro, inclusive
no sentido das proporções físicas, diante das casas (paredes,
tetos e portas), dian te do casaria e das árvores; mas em nosso
século chegaria o colossalismo dos edifícios, com a brutal su bs-
tituição dos estilos pelos taman hos, com os espigões, com a
desmedida. Há nisso por certo uma conexão com o excessivo
crescimento das populações (tema estranhamen te mantido como
tabu), com a massifi cação, com os regimes autoritários, com a
sociedade industrial e pós-indust rial, e provavelmente com a
perda de substância por parte da dimensão privada do existir.
Tecnologia, burocratização, violência, ruas sempre cheias. H enri
Lefebvre falou inclusive no cibernântropo, ao tomar posição
"contra os tecnocratas", relacionando-o com a destruição do
humano e com entronização do "consumo de massa". Parecerá
talvez uma cantilena nostálgica, ou uma laudatio temporis acti
colocar tintas tão sombrias nestas alusões, mas realmente a
questão existe e a generalizada sensação de mal-estar não é
infundada.
14. ALUSÃO À EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

Observemos agora algo sobre como as coisas se vêm passan-.


do no Brasil. O panorama histórico nos revela, entre gravuras
oitocentistas e folhagens tropicais, o perfil patriarcal da vida
privada, que pareceu-, ao menos- predominar sobre as longín-
quasausteridades da ordem pública. Cita-se então, por parte de
diversos autores, a fan1osa frase do viajante: "neste país nenhum
homem é república". A frase, por debaixo da qual perp assa um
grifado normativo, indicaria que o país deveria ter tido mais
líderes com "espírito público" (ou com dimensão maior), para que
o viver nacional se tivesse estruturado como proj eto. Sej a permi-
tido repetir aqui o persuasivo conceito ortegueano, talvez old
fashioned mas não desaplicável, segundo o qual uma nação é
sempre um projeto vital.
O reparo do encasacado turista do século XIX pode certa-
mente ser completado com registros mais r ecen tes. Por exemplo
algumas páginas sutis e perenes de Sérgio Buarque de Holanda
em seu Raízes do Brasil, ou certas p a r tes do livro de Nestor
Duarte, A Ordem Privada e a Organização Política Nacional,
que inclusive analisam as relações entre vida rural e vida urbana
na história social brasileira . Há também alguns relevantes tópi-
cos em Gilberto Freyre, referentes ao desdém do brasileiro colo-
101 O .Ji\RDIM E J1 PRJIÇ1l

nial pelos espaços públicos, pelo que não fosse o específico recinto
da casa de moradia e suas adjacências imediatas: inclusive no
plano da higiene, vez que o lixo - inclusive algumas formas
terríveis de lixo - era jogado à rua (ou ao rio) sem nenhuma
cerimônia e sem nenhum respeito ao que fosse público, comunal,
de todos. No capítulo II de Sobrados e Mocambos, o grande
escritor caracterizou entretanto o lento trifundo da praça, no
sentido ela viela urbana, sobre o engenho ou sobre a viela ele
engenho. O triunfo da praça, isto é, da vida urbana, foi correla-
iivamente o d a rua, isto é, da viela em espaço público: a rua teria
inexistido dentro do engenho, isto é, dentro da área específica de
dominação da família patriarcaL A este fenômeno, próprio do
século XIX, teria porém corresponcliclo, segundo Gilberto Freyre,
a existência (em contrapartida) de um viver mais de casa do que
de rua no sentido da concentração ele elementos culturais pecu-
liares.
O tema é vasto, e com ele navegaríamos por águas antropo-
lógicas, sócio-históricas, histórico-políticas. Imaginamos a figu-
ra dos heróis fundamentais ele outros contextos, inclusive os
fundadores de cidades- ou ele comunidades nacionais- e encai-
xamos sobre o modelo nossos figurantes históricos, a ver se
resulta algo no sentido clássico de transcender a privacidade. O
combate contra a concepção elo "herói na história", empreendido
por certos entusiastas elo coletivismo, despercebeo fato de que o
herói, n este sentido "fundante" (como Numa, como Meroveu,
como Bolívar), se identifica justamente com os traços mais gené-
ricos e mais "públicos" ela comunidade. E por isso mesmo não
exclui o lado social, grupal, do processo histórico; antes existe
com ele.
Pois encaixamos sobre esses modelos clássicos, carregados
de exemplaridade, os nossos Bonifácios e os nossos Canecas: eles
são certamente admiráveis, mas não convencem de todo como
criadores de um ethos político, porque o palco é vasto demais (um
país enorme e heterogêneo) e porque o movimento cênico é
excessivamente desigual em ritmos e em direções.

De certa forma o problema do privatismo brasileiro, que se


prende ao "p ersonalismo" ainda hoje perceptível, deverá ser
entendido em conexão com fenômenos idênticos, correntes em
ALUS,iO À EXPERIÊNCIA JJRASTDEJJIA 105

toda a América Latina: latifúndios, famílias dinásticas, caudi-


lhismo político, partidos formados por coalisões pessoais, escas-
sa e descontínua presença do povo e do sentido da coisa pública
como tal.
Por outro lado, vale notar que o fato de não termos t ido, no
Brasil, uma vida pública com plenitude não significou que tives-
se ocorrido a vertente opost a. Ou seja, não quer dizer que tenha-
mos vivido a ordem privada em seu sentido fundamental, ao
menos no sentido do modelo clássico. E ambas as coisas, que são
duas carências, elevem ter decorrido ele distorções dadas na
colonização e no povoamento.
Há de qualquer sorte, em torno ela tendência nacional ao
privatismo (o gigantismo de Brasília c ela burocracia nacional é
outra coisa), a lgumas outras observações a fazer. Vejamos por
exemplo este paradoxo: um povo em que sempre foi uma cons-
tante a violência privada, sob diversas formas (crimes de fim-de-
semana, assassinatos, rixas, facilidade do uso ele armas, trânsito
violento), e que entretanto não tem o hábito da violência pública.
Não o tem em geral, sem embargo de revoluções e de sedições
aqui e ali ocorrentes na história; não o tem no sentido do enfren-
tamento com a milícia nem no da própria disposição revolucio-
náriR (que de resto implica radicalismos e disciplinações muito
especiais).
Podemos evidentemente relacionar o predomínio elo sentido
privado, no país- que, quem sabe, tenderá doravante a alterar-
se-, com a permanência das estruturas feudais em nossa histó-
ria social: ainda hoje essas estruturas continuam presentes em
largas partes do território nacional. Elas não só impedem a
reforma agrária, como se alongam pelos perímetros urbanos,
manipulam eleições no interior e geram impunidades. O proble-
ma se liga inclusive ao hábito muito br asileiro de confundir
instituições com pessoas. Hábito comparável, de certa forma, ao
difundido equívoco de se julgar regimes ou credos pelas pessoas
que os adotam, isto é, pelo viver privado delas: descrer do fat o
de alguém ser comunista por vestir-se bem, elo regime represen-
tativo pela incompetência de alguns deputados, refutar a reli-
gião cristã mencionando padres relapsos. Acrescente-se a isso o
despreparo ou a clesinformação de certos setores, gerando visões
completamente esdrúxulas elas coisas. Como no caso das pessoas
]{)(j O JAIWJM I!: A l'HAÇr1

que pensam que democracia e socialismo significam uma iguali-


tarização absoluta no plano privado, quando o problema da
igualdade tem outro sentido (alguns parecem crer que a "demo-
cratização" consiste em andarem todos de calçajeans e sandálias
de borracha, de preferência os homens com barba para ninguém
resultar diferente).
Foi com as estruturas ainda feudais e com o sentido perso-
nalista das coisas que, no Brasil, esbarrou o ideal iluminista do
cidadão, oriundo da conversão do "súdito" em contribuinte e em
eleitor. Um ideal cujo alcance estaria em ver em cada indivíduo
sua dimensão pública. Um ideal, aliás, basicamente leigo e
urbano; e ao anotar isto passamos a outra reflexão.
A distinção entre vida urbana e vida rural, configurada há
milênios, vigorou na antigüidade e na Idade Média. As primeiras
civilizações foram (ou giraram em torno de) cidades, e o urbano
em sentido específico correspondeu a um padrão qualitativo de
vida ("urbanidade" e "modos urbanos"), sendo o viver no campo,
ao n1enos em certos casos, considerado algo negativo ("rusticida-
de", "vilão"), isto apesar do perpétuo fascínio do bosque e dos
prados sobre a mente humana, e até da imagem do camponês
como gente pura e ainda não corrompida. A partir do surgimento
elas grandes cidades, as pessoas se educam para viver de modo
"urbano" (por ou para viver na cidade). Mas no Brasil aquela
distinção milenar vem sendo desfeita, sobretudo em certas áreas
-o Nordeste inclusive-, onde o empobrecimento e as migrações
c arreiam para as cidades levas de pessoas que não têm condições
ele viver adequadamente em um perímetro urbano. O problema
não é propriamente ele classe, nem ele pobreza material apenas,
pois numa cidade como o Rio os sambistas do começo do século
já tinham comportamento urbano (como os fadistas de Lisboa ao
tempo de Eça ou os tocadores ele tango em Buenos Aires antes
mesmo de Gardel).

Não sei até que ponto terão sido estudadas e compreendidas


as razões pelas quais teria faltado ao Brasil, desde cedo, o
sentido daRes pública, seja em que medida isto de fato ocorreu.
Em outros países latinoamericanos a imprensa e a Universidade
surgiram bastante cedo; entre nós (que entretanto tivemos ve-
reanças municipais durante a colônia) estas duas coisas tarda-
AJ.US1lO 1i EXPli!UÊNCJA JJRASJLR!RA 107

ram escandalosamente. Talvez tenhamos tido, além disso, e


além do muito marcado feudalismo, um excessivo predomínio do
clero, que teria sido normal em outro contexto e que entre nós
gerou uma deformação das hierarquias eclesiásticas, desarticu-
ladas de uma ordem política correlata. O clero não tinha junto
de si, na colônia, uma aristocracia verdadeira, originária. Nossa
"nobreza" sempre foi uma casta de senhores rurais truculentos
(o adjetivo é de Sílvio Romero), cujo poder, se no sentido formal
teve semelhanças com o de toda outra nobreza - inclusive a da
Europa medieval-, era totalmente distinto quanto ao significado
histórico-social.
Estas carências e estas deformações convergem para difi-
cultar a estruturação daquilo que foi modelar na antiga Roma:
a correlação entre um povo com presença contínua na vida
política e uma elite (inclusive a do Senatus) séria e levada a sério.
Retomando por um instante a referência ao fato de haver
faltado aos brasileiros o hábito (e por assim dizer o sentido
institucional) da violência pública, vale reiterar que o sentido da
possibilidade concreta da luta tem com freqüência faltado. Em
um p·aís cuja população vem crescendo em proporções desequili·
bradaras, a consciência de povo não se tem desenvolvido corre-
lativamente. Com o Estado Novo o "povo" foi um lance de retórica
política, inclusive ecoando nas canções "patrióticas" dos anos 40;
nos dezoito anos de duração da constituição de 1946, a pouca
densidade dos d ebates tornou como que desnecessária a pressão
popular. Com o golpe de 1964, o povo foi um conceito sobre o qual
se fizeram diversas colagens, com slogans oficiais recobrindo a
repressão e a desinformação. E de 1980 para cá a reabertura dos
d ebates vem en sejando vários equívocos, inclusive com a confu-
são entre as linhas ideológicas (o Pl' dividido, o PC dividido) e
com os sindicatos oscilando entre ascender à representação par-
lamentar e manter a atividade pedestre: de todos os modos a
idéia de revolução ora está com a extrema esquerda ora dá lugar
ao conceito de "ocupar espaços", enquanto a extrema direita
continua pensando no putch como sempre.

Um privatismo sem jardins: dir·se-ia ser este o caso brasi-


leiro. Sem jardins pelo fenômeno da pobreza ou por falta de
influências adequadas. Os jardins dos subúrbios das cidades do
108 OJ;\RDIM 1.; 11 1'/li\ÇA

Centro-Sul se devem claramente a influências européias, en-


quanto no Nordeste as cidades menores apresentam rudes e
singelas moradias quase sem flores, como certas casas de pro-
víncia da parte mais pobre de Portugal. -
Somos diversos "países" - vá o recurso à ambigüidade
semântica -, somos um território exageradamente extenso, e
como referência espacial isto ajuda pouco a aglutinar comunida-
des com senso político homogêneo. Não podemos, e é erro em que
certos autores vêm incidindo, entender as estruturas sócio-polí-
ticas nacionais sem levar em conta os dados do passado; n em
podemos prender-nos totalmente a eles. Por isto é realmente
difícil o trabalho de repensar o problema político (sócio-político)
do país. E é urgente fazê-lo, obviamente, para que se formulem
esquemas onde uma ordem pública complexa e flexível caiba a
todos os "países" existentes no Brasil, sem destroncar-se do
passado e configura ndo um projeto nacional adequado em termos
de valores e de inst ituições.
15. 0 HOMEM: CONSTANTES E DUALIDADES

Regressando agora às perspectivas mais gen éricas, pense-


mos de novo no tema do homem: o homem e sua auto-imagem. A
evolução das relações entre esta e aquele constitui a nosso ver o
verdadeiro objeto da chamada antropologia filosófica.
O que o homem tem feito e tem sido, e o que pensa e imagina
com respeito ao seu fazer e ao s eu s er, e is o problem a do qual um
dos tópicos estivemos abordando sob diferentes ângulos. O que
consideramos como "natureza" humana, ou como realid ade hu-
mana, se compõe de algumas cons tantes que são algo h istórico -
e é com esta ressalva ou esta paráfr a se que podemos a ceitar o
paradoxo veicula do por Ortega a o dizer qu e "el h ombre no t iene
natur aleza sino que tiene historia". Const antes h istóricas, ist o
é : obviamente "antropológicas", algo que s e constata s empre ou
quase sempre em todas as comunida des humanas, d entro de
quadrantes e de época as mais diversas.
Fora disso seria o humano uma simples abstração, e ao
escrever isto recordo a advertência do autor de El Ocaso de las
Revoluciones: quando uma idéia s e s epa ra do contexto onde foi
elaborada, ela passa a s er uma a b stração. A figura do homem
teve de ser transformada em abstraçã o, dado que cada época a
veio r etomando de dentro (e por cima) dos context os anter iores.
110 O JARDIM E A PRAÇA

Mas ela sempre constituiu correlativamente uma imagem sen-


sível (se não me engano Jung escreveu que as representações
fundamentais são simultaneamente idéias gerais e imagens
sensíveis), sobretudo se se tem em conta o seu "forro": a noção
de humano. A consciência que os homens possuem de fazer parte
d e uma espécie, com caracteres tais e com tal ou qual situação
no mundo, é fruto (mas ao mesmo tempo condição) deste perpe-
tuar-se da imagem do homem, que veio das mais velhas culturas
e vem atravessando épocas e contextos. As alterações históricas
se inscrevem sobre - ou dentro de - um conjunto de traços, nos
quais se delineiam constâncias e inconstâncias. Nesses traços se
entrevê o ser-do-homem, e aquelas alterações são correlato de
uma série de paradoxos e antinomias que terminam por ser
constitutivos do humano. Assim o homem se apresenta sempre
colocado entre isto e aquilo: entre o passado e o futuro, entre
projetos e lembranças, entre ir e voltar, entre tempo e espaço,
nascer e morrer, pequeneza e grandeza, bem como entre paz e
guerra, masculino e feminino , uno e múltiplo, renovação e ruína.
Do mesmo modo entre a casa e o mundo, entre côncavo e convexo,
entre o jardim e a praça. "Colocado", mas por si mesmo, visto que
todas estas são coisas que ele mesmo p1·oduz . Deste modo o
homem se reconhece em seus próprios dualismos, em seus para·
doxos e suas contradições; ele toma estas coisas como demarca-
ções necessárias à compreensão de si mesmo.
Menciono estas dualidades constitutivas, integrantes do ser
do homem (do s er c do estar), para destacar esta bipartição- de
que este texto vem tratando - entre o viver privado e o viver
público. O viver "consigo m esmo" (ou com os seus, como se diz),
e o viver com o grupo, ou no grupo, aliás os grupos: obviamente
o homem é o cria dor da vida social c os homens são obra dela
(saiamos assim, p or um pouco, da pergunta circular).
Para a experiência clássica, isto é, a dos "antigos" e de até
umas tantas gerações, o equihbrio entre esfera pública e esfer a
privada se dava mais ou menos deste modo: da famHia partici-
pavam tanto a mulher como o homem, mas somente os homens
participavam do "povo" e da vida pública. Poderia pensar-se, pelo
fato de a mulher "governar" a casa, na expressão romana, sendo
a vida militar e administrativa coisa de homens, que o lado
privado é mais feminino (e o público, masculino), mas a verdade
O IIOMEM: CONSTANTES E DUIILIDIIDES 111

é que a família não existiria sem o pater. Sabe-se evidentemente


que em contextos outros as mulheres tiveram presença política
(tem sido moela citar tribos onde o conselho das mulheres esco-
lhia os chefes, bem como o caso de certos grupos germânicos,
onde as mulheres faziam parte do conselho de guerra), mas me
refiro ao que ficou como imagem clássica dentro elo legado gre-
co-romano e também posterior. O fato é que com sua dupla
presença o elemento masculino teria tido a incumbência do
equilíbrio - mesmo que isso em certos casos tenha sido só
aparência, e as mulheres tenham exercido influência informal
em certas ocasiões.
Os igualitarismos contemporâneos, trazendo consigo o "fe-
minismo" - em alguns casos ligado ao próprio socialismo -,
ensejaram a participação das mulheres no povo e na vida públi-
ca. Só que, de certo modo, a troco da crise da família.
Mas voltemos aos dualismos. Casa e "mundo" são em ver-
dade espaços, são lugares onde se esLá, são p lanos do comprome-
timento do homem consigo mesmo e com seus símbolos. Planos
da ação e da linguagem, embora o termo ação caiba melhor, como
bem viu Hannah Arendt, ao plano público. A linguagem de cada
um nasce na casa, mas a linguagem da casa nasce de uma
situação social: eis uma circularidade que pode ser dialética e
pode ser hermen êutica.
Insistamos na alusão ao mundo clássico. Em Roma a expe-
riência dos parques públicos, apesar de certa ambigüidade (eram
jardins, mas alguns eram propriedade privada do imperador)
ensejou a consagração de um modelo de."lazer" que se perpetua-
ria: o dos passeios ao longo de vastos jardins, vastas áreas com
edificações características 1 • O conceito de donws como casa par-
ticular, questionado por certos autores, prevaleceu precisamente
em contraste com o sentido público das áreas abertas ao passeio
(certos historiadores citam o gosto de Horácio em deambular
pela Via Sacra?.
Portanto as estampas provindas da antigüidade assinalam
dois componentes característicos: o irredutivelmente privado e
o necessariamente público.

1. l .éon Homo, Nome Império,/~ ~t l'urlmnisme rlons l'nntiquité, Paris, AlLiu :\1ichcl, 1071, p. 400.
2. Lc.:-ou 1Tomo, op. cit., passim.
112 OJARDJM E A PRAÇ1l

Referimos, acima, a possível correlação entre o dualismo


dimensão pública/dimensão privada e a diferença, aliás sempre
meio imprecisa, entre o "objetivo" e o "subjetivo". Não é uma
correlação plena, mas os dois dualismos parecem corresponder-
se em parte. Toda a extensa região da subjetividade, indefinível
em suas lindes mas inteligível como alusão, com seu conteúdo de
imagens e de sentimentos, símbolos e representações, pode ser
creditada ao lado "privado", se o tomarmos como recinto funda-
mental das relações que criam a consciência. Há porém que
dar-se um desconto, pois essas relações se ligam ao âmbito
extra-casa, e porque neste âmbito vigoram também símbolos e
representações . Para citar ainda uma vez Platão, aquela corre-
lação foi uma das coisas que percebeu o autor do Timeu . Ele quis
cancelar as oscilações da subjetividade (e da opinião, doxa),
eliminando, para os sábios ao menos, a vida privada. Com isso
resguardava a ciência e a política, resguardando a objetividade
e a coisa pública.

Tudo isso leva a lembrar que, para aludir à "condição" do


homem não basta mencionar o seu estar no mundo (o sempre
citado i'n-der-Welt sein, de Heidegger). É preciso dizer de seus
enraizamentos e de suas constantes universais; da ligação dos
homens a contextos e a urdiduras institucionais: família ou clã,
Igreja ou Guilda, partido ou clube, empresa ou o que for. As
referências que se têm como "valores sociais" c01·respondem sem
dúvida à imagem que o homem tem, em cada época ou contexto,
de si m esmo e da sociedade. Isto é mais ou menos evidente, mas
há que ser sublinhado. Dir-se-á que aquela imagem depende
muito do poder, e portanto corre por conta dos homens que
dominam, mas aqui se trata de r epresentações muito genéricas:
"o homem" abrange tais e tais homens, tais e tais situações, tais
e tais estimações sobre dominação e formação de imagens.
Há valores sociais cuja variabilidade histórica tem que ver
com as alterações ocorr idas no espaço público, e também com o
sentido das relações entre a vida pessoal e as instituições . Há
períodos históricos em que uma estrutura político-social comple-
xa, mas flexível, propicia uma vida institucional estável: foi o
que ocorreu em Roma nas melhores fases do Império.
O 110MEM: CONSTANTES E D UALIDADES 113

Podemos lembrar que valores como justiça, liberdade e


igualdade se compreendem mais adequadamente olhando-se os
contextos históricos, do que apenas revolvendo suas dobras con-
ceituais. Em alguns momentos, o êxito de certas teorizações se
acha ligado à visão histórico-real das coisas, explícita ou implí-
cita: assim quando Locke, refutando Filmer, teve o cuidado de
distinguir entre o poder paterno e o poder político, parecia ter já
na cabeça a concepção racional-burguesa do espaço público, e a
noção laico-moderna da especificidade da ação política.
Tais problemas se r eferem ao tema do ser social do homem.
O tema veio desde a frase famosa de Aristoteles sobre o "animal
político" e chegou à noção hegeliana de sociedade burguesa, de
onde Marx tiraria sua afirmação - aliás inteiramente válida -
segundo a qual o homem é um conjunto de relações sociais. Na
verdade o problema se encontra posto entre a tentação de regis-
trar as vari áveis históricas e a certeza de um núcleo invariável.
O que s ignifica que oscila entre as projeções metafísicas e o
material empírico.
Entretanto, a propósito da condição "social" dos seres hu-
manos, cabe reconhecer que certos aspectos permanecem inde-
cisos. Em El Hombre y la Gente, Ortega conseguiu, com sua
maneira cheia de zigueza gues e iluminações, demonstrar quão
vago permanece, inclusive nos compêndios, o conceito de "socie -
dade". Preferiu ele fal ar de coisas mais concretas como nação,
lei, estado, a falar de la gente, algo meio intr aduzível em portu-
guês (como "people" em inglês ou como "Leute" em a lemão),
embora possamos empregar a expressão em certos casos: a gente
diz, toda a gente sabe. Pois Ortega, como aliás ocorreu com
Gabriel Mareei em Les Hommes contre l'humain, distingue entre
o homem e o humano, achando porém que o humano, em la gente,
isto é, nas coletividades (algumas consagradas como nação,
classe, Volhsgeist), existe sem o homem. Pois o homem, para ele,
será sempre o possuidor d e uma alma, e de uma concretude vital
definida. Por certo exagerava, mas nos leva a uma advertência
válida: não devemos aban d onar o problema, pois ele existe (as
sociologias r ealmente deformam certos conceitos), nem restrin-
gir o humano ao que está nesta ou naquela dimensão. O "huma-
no" está também nos entes coletivos, e com ele o "homem" - pois
Ortega exagerava -, posto que o homem cria esses entes; como
IH O JARDIM R A PUAÇA

está no indivíduo, cada indivíduo. Está no comício ena imprensa,


nas modas e nas vigências (esta aliás uma expressão orteguia-
na), bem como no homem que almoça em casa, n a mulher que
ouve rádio e no menino que apanhou resfriado.

Ficou dito, acima, que toda forma de vida é um processo de


equilíbrio. Pois será pertinente observar, na larga sucessão das
épocas históricas, uma sucessão de buscas de equilíbrio. Nas
crenças, que mesmo consagrando dominações combinam terras
e céus; nos ritos, nas estruturas, nas formas de enumerar e nas
de julgar, temos sempre o homem n ecessitando encontrar pontos
de apoio, pautas, coordenadas. Equihbrio e desequilíbrio são -
quase diria dialeticamente - componentes do viver humano,
momentos do seu ser: como, no romance famoso de Chesterton,
a esfera e a cruz.
Parece que começa a ficar fora de moda, salvo entr e espe-
cialistas, aludir à história antiga; mas pensemos por um pouco
na enorme .imaginação dos antigos (babilônios, persas, gregos),
dividindo a noite, m edindo o tempo, repartindo o orbe conhecido,
povoando os céus com cavalos e outros animais, e equilibrando
estas figuras todas em uma vasta herm enêutica simbológica.
Neste rico imaginário, que veio até nós dentro de diversos lega-
elos históricos, o equilíbrio das figuras ocorre a troco de deforma-
ções que confirmam o modelo: desequilíbrios que integram e
animam o jogo maior. Com estas alusões podemos dizer então
que o homem, medida das coisas em algum sentido, vem sendo
medido ora pela regra geral ora pelas exceções, ora por um ora
por outro dos componentes dos dualismos que o compõem; mas
ele deve ser medido pelo conjunLo do que tem inventado, e do que
tem sofrido. Tanto o jardim como a praça, tanto a vida interior
quanto os espaços externos são medida do humano.
Aliás as dialéticas modernas têm também um sentido de
equ ilíbrio: a síntese é sempre uma medida, uma convergência, de
onde se parte para outras negações mas como via para novas
convergências. Valorizar este aspecto, mesmo sem aderir intei-
ramente ao hegelianismo (no qual cabe valorizar sobretudo a
noção de aufheben), será evitar as tendências maniqueístas
la tentes em certas doutrinas, e impedir que conveniências par-
tidár io-ideológicas trunquem o processo em determinado pont o.
16. FUNDO, PLANTA E PEDRA

Pensar no "ser humano" não deve ser apenas pensar em sua


figura específica, mas também nos complementos e implementes
que, com o passar do tempo, se incorporaram a ela. Eles repre-
sentam coisas que os homens, em grupo ou individualmente,
fazem, ou coisas em que crêem: pensamos a figura do homem
com indicações referentes ao tempo, às paixões, ao trabalho.
Deste modo pensamo-la com armas e vestes, barcos e casas.
Pensamo-la sobre paisagens ou entre paredes, com ou sem árvo-
res, com ou sem instrumentos, inclusive estes instrumentos do
viver que são os "móveis" da casa .
Mas deixemos de lado por um momento os estereótipos das
estampas - o intelectual com livros, o militar com a espada - , e
fixemos a alusão à paisagem, que aqui vai entendida em sentido
amplo, como o fundo sobre o qual se desenha a imagem: claro ou
escuro, rio ou mar, parede urbana ou bosque rural. Quero dizer
o seguinte: há em cada época uma correlação entre a concepção
dominante a respeito do homem (e do mundo) e a estética de sua
figura, que se representa em ligação com determinado tipo de
paisagem. No caso egípcio todos recordam a combinação entre as
figuras de perfil e as colunas hieráticas, com base em forma de
lótus. Nos r elevos assírios, a presença ele árvores perto dos heróis
116 OJ,\RDIM E A PRAÇ;\

(Gilgamesh por exemplo), nivelando a solidariedade da natureza


à imponência do poder. Encontra mos plumas e estrelas na figura
das divindades, tanto no caso de Marduk como no dos deuses
aztecas. Encontramos a terra na representação dos ritos de
fecundidade , e na Índia estátuas que Octávio Paz achou seme-
lhantes a árvores 1 • Na literatura latina diversos autores têm
estudado a variação dos "lugares" utilizados pelos poetas, desde
a paisagem épica e o locus horridus de certas tragédias ao locus
amoenus e à paisagem idílica da poesia bucólica2 •
Em Bizãncio o fundo dos quadros religiosos foi freqüente-
mente dourado, e este uso passou aos ícones russos . Os pintores
do Renascimento colocaram em certos quadros paisagens com-
p let as - embora nem sempre muito verossímeis - , em outros
apenas pedaços destinados a completar o espaço da tela: as
figuras, roliças e com vestes cheias de dobras, se encaixavam
organicamente sobre o fundo. No século XVIII, Watteau e Fra-
gon~ard inventaram arvoredos elegantes, coerentes com esbel-
tas mulher es e vagos pares perdidos n as margens dos quadros.
Mas o romantismo revigorou as figuras , com cores fortes: alguns
pintores apelaram para o exótico (Delacroix por exemplo), colo-
cando nos quadros leões e palmeiras. S eria a percepção da
expansão do Ocidente- a França com suas colônias-, ou talvez
a antevisão do pluralismo étnico e geográfico que viria com o
século XX. O impressionismo, que diluiu as paisagens no reti-
cente c no indeciso, fez o m esmo com as figuras. O art nouveau,
enchendo as figuras femininas de flores c de ornatos (penso em
Mucha), foi também uma arte de portões de ferro e de escadarias
vertiginosas, sempre com curvas e exotismos: a idéia era conci-
liar a fantasia e o real, as grades das estações ferroviárias e os
florões d os terraços. E por aí segue. Mas, para fazer p r evalecer
o tom pessimista, vale aludir às figuras estáticas de De Chirico,
imóveis sobre espaços desolados: não seria difícil relacioná-las à
lonely crowd de Riesman ou às alusões de Chaplin à d esumani-
zação do mundo industrial. Isto é sempre meio vago, porém
válido e inteligível.

1. Conjunções e Disjunçóes, São Paulo, Pers pectiva, l97!J.


2. Cf. por exemplo Hoss ana Mugcllcsi, l'aesaggi La tini, Plore nçn, Snnsoni, l!J75.
FUNDO, PLANTA E PEDRA 117

Vago porém válido, como forma de interpretar, seria tam -


bém concluir mencionando o esvaziamento da paisagem, duran-
te o curso de nosso século. Falei, em certa parte deste ensaio, do
desaparecimento dos "reinos" animal e vegetal das representa-
ções da coisa pública, após a implantação das repúblicas contem-
porâneas: pois o esvaziamento da paisagem, nas cidades
modernas ("florestas de cimento" etc.), será um correlato do
fenômeno. Vale interrogar se o mal estar do homem neste século
terá ou não relação com isto: o homem desenraizado de seus
velhos contactos com a madeira e com o couro, compelido a viajar
em veículos feitos de matéria estranha e com vestes de plástico,
entre computadores e robôs. Em torno, a ideologia do êxito e o
espírito de concorrência anestesiam as mentes, para que a an-
gústia não se espalhe e as engrenagens não parem.

Penso entretanto em um trinômio milenar: a pedra, a folha


e o fundo - isto é, o céu remoto ou o espaço implícito. Esta
combinação reúne, sobre um fundo que não interfere, dois dados
fundam entais que são a cultura e a natureza. Ou seja, a pedra
(ou o cimento, a cal, o ângulo pintado), posta pelo homem, e as
folhas que preexistem: a combinação varia, mas é sempre inte-
ligível. Dentro da floresta, ou no vale encurvado, surge a cidade.
As folhas convivem com os muros, ou tentando refa zer seus
espaços (e restaurar a floresta primitiva), ou adaptadas e dimi-
nuídas como ornamento. Assim foi sempre o convívio nas praças,
tal como nas estradas - as grandes vias do passado -, ou nos
jardins, tal como nos canteiros e nos nichos votivos. As folhas
pr eexistem . A não ser no caso das ruínas, e daí o vago constran-
gimento que e las causam: as folhas vêm depois, como no soneto
L'oubli, de Heredia, que assim conclui
L1 !erre m~tcrnelle (...)
fail à chaquc priule111ps (.. .)
au c hapitenu brisC vcrdir une autrc acanthe.

A intimidade do homem com a folha e com a pe dra, isto é,


com as plantas e com os minerais, foi sempre a base da formação
de uma série de conhecimentos e de valores, em termos de
relacionamento com a natureza e consigo mesmo, inclusive ao
ensejar a multiplicação de formas . As formas configuram símbo-
118 Q,JJIRDlM E 11 PRAÇII

los e orientam a articulação do espírito com a vida e com a


realidade. Orientam, isto é, explicitam e tornam inteligível. No
convívio com vegetais e minerais os homens criaram a medicina
e inventara m as armas, vestiram-se e plantaram. Fizeram colu-
nas e tetos, mediram a terra, atribuíram sacralidade aos bos-
ques, levantaram altares, discutiram sobre os deuses, sobre a
vida e a morte, o tempo e o espaço, o poder e as guerras.
Fixemo-nos na imagem do beiral de telhado, junto ao qual
oscilam folhas coniventes: a obra humana se "acrescenta" ao
dado natural. Violenta-o, se abre clareiras e monta cidades;
dentro destas, entretanto, recolhe de novo a natureza, reduzida,
em forma de jardim. Fixemo-nos também (de novo) na estrutura
das representaçõs da figura humana e de sua sobreposição ao
complemento, t a l como aparece nas imagens antigas e nos retra-
tos modernos (uso estes t ermos reportando-me ao texto de Spen-
gler, incluído na Decadência, sobre "o nu e o retrato"). O
complemento, fundo da imagem ou do retrato, se estende, como
espaço aberto (onde pode ocorrer o referimento à transcendên-
cia), ou se fecha, como recinto cerrado. A figura se acha solta
sobre o mundo ou ancorada em sua privacidade. Acha-se posta
contra uma série de casas ou sentada em uma poltrona: dimen-
são pública ou dimensão privada. No Ocidente, depois do essor
das Universidades e da imagem do Doutor Fausto em seu entu-
lhado gabinete, começou a fixar-se a moda de se retratarem os
intelectuais contra um fundo de livros, de preferência arrumados
em respeitáveis estantes.
A figura humana vem sendo portanto representada em
conexão com complementos plásticos que expressam sua relação
com a imagem do mundo vigente em cada contexto. Isto inclui o
velho sábio oriental identificado com árvores e com rios, e tam-
bém o busto clássico correlato de colunas de pedra, o Fausto
entre reto~tas e pergaminhos, o empertigado estadista do oito-
centos, adepto da ordem, ou então o escritor de nossos dias que
se faz retratar d escabelado e "informal".
Permanece todavia, implícita embora, a velha e inegligen-
ciável idéia do homem' como microcosmos, que esteve em tantas
r eferências antigas e reapareceu em Pascal, reapareceu em
Lotze e em tantos mais. Ela permanece como um dado que requer
sempre ver sões doutrinárias novas. E como o pensamento de
FUNDO, PLANTA E PEDRA 119

pendor metafísico tende sempre aos dualismos, os dualismos que


toda cosmologia filosófica atribui ao "mundo" são correlatos
daqueles que se podem atribuir a o "homem" quer por conta de
uma visão essencialista quer à b ase de uma reflexão histórica e
empírica. Com isso reiteramos a a lusão aos dualismos constitu-
tivos, de que falamos acima e que integram a imagem do homem,
recheada de binômios e atravessada de paradoxos .
O humano é certamente a lgo unitário, visto no tempo como
constante e constatado dentro dos quadrant es do mundo através
de uns tantos "denominador es comuns". E ntretant o ele é com-
plexo, variável e formado de ant agonismos. À medida que a
consciência filosófica se convence disso, ela deve tender ao rela-
tivismo e à aceitação das diversidades, que diferem do uno mas
acabam revelando-o: daí que seja perfeitam ente legítimo admitir
o pluralismo das interpretações, podendo-se acolher cada inter-
pretação do homem (e de sua história) naquilo que enriquecer
coerentemente a compreensão de seu ser. P arece -nos inclusive
que uma das tarefas da filosofia, neste segundo t om o do século
corrente, e que não foi entretanto cumprida (embora a chamada
teoria hermenêutica tenha fornecido alguns elementos para tan-
to), teria sido o esforço no sentido de ent ender a própria possibi-
lidade de diversificação das interpretações como correlato da
diversificação real do humano, refratado entre suas finitudes e
fragmentado entre pendores opostos.
A reconciliação do "homem moderno" com o homem genéri-
co, que é histórico sendo t rans-histórico, dependerá da superação
de alguns reducionismos, e da recondução de certos dualismos-
não todos - às sínteses positivas que lhes correspondem. As
sínteses não fundem: reúnem, mantendo distinções. A diferença
en tre as fissuras destrutivas e as cont radições fecundas caberá
a uma teorização que não seja unilateral e que ilumine a autoi-
magem do homem de modo ao mesmo tempo crítico e criador. As
contradições fecundas são as que cabem dentro do ser do homem
como complementa ridades, e ao compreendê-las veremos que
algumas dualidades se tocam e se completam, conforme o mo-
mento e a perspectiva : assim se tocam os começos e os fins, as
causas e os efeitos, as teses e as antíteses, o sagrado e o profano,
as essências e as existên cias . A liberdade pode ser disciplina, a
autoridade p ode ser o diálogo, o poder pode ser justiça; o público
120 O Ji\RDJM E A PRAÇA

e o privado se complementam. Deste modo é correto pretender


que no jardim exista algo de praça, e que a praça tenha algo de·
jardim.

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