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E D

D UU CC AAÇ ÇÃ ÃO O C IC EI NE TN Í TF ÍI FC A
I C A

saber
Como nossos jovens
compreendem o mundo?
Que tipo de conhecimento científico
guardam do que lhes é ensinado
na escola? São eles capazes de usar
o que aprenderam para transformar
a realidade? Têm instrumentos
suficientes para alcançar uma
formação crítica que lhes permita
enfrentar os problemas do dia-a-dia?
Sem levar em conta pesquisas
ou avaliações criteriosas, a primeira
resposta que vem à mente não é das
mais felizes: nossos estudantes saem
da escola despreparados para a vida
real. Mas o desalento se agrava
quando nos confrontamos com
os dados disponíveis. Em pesquisa
recente feita pela Unesco para avaliar
as aptidões para ciências
e matemática, os jovens brasileiros
obtiveram o 42o lugar no ranking
entre os 43 países participantes.

Alicia Ivanissevich
Ciência Hoje/RJ

2266 •• CCIIÊÊNNCCIIAA HHOOJJEE •• vvooll.. 3344 •• nnºº 220000


E D U C A Ç Ã O C I E N T Í F I C A

fragmentado
UM RETRATO DO CONHECIMENTO
CIENTÍFICO DE NOSSOS JOVENS

Ciência e tecnologia são hoje ferramentas indissociáveis do dia- O objetivo do Pisa, realizado a cada três anos, é
a-dia. Ao atender o telefone ou ligar a televisão, ao saber em que medida os jovens de 15 anos, que se
abrir uma torneira ou escutar no rádio a previsão do aproximam do fim da escolaridade obrigatória, estão
tempo, ao ingerir um alimento industrialmente pro- preparados para enfrentar os desafios da sociedade
cessado ou sacar com o cartão magnético dinheiro do atual. Em outras palavras, o Programa mede o quanto
banco, talvez não percebamos o quanto a ciência e a eles são capazes de usar conhecimentos e aptidões
tecnologia estão envolvidas nesses atos tão simples. para tarefas relevantes em sua vida futura. A avalia-
Mas, se refletirmos um pouco, concluiremos que o ção é feita através de provas e questionários aplicados
processo de concepção e elaboração desses instru- a um número que varia, para cada país, de 4.500 a 10
mentos ou práticas exigiu um conhecimento cientí- mil estudantes, e abrange habilidades em três áreas:
fico e tecnológico prévio. O mesmo raciocínio não é leitura, matemática e ciências.
tão facilmente partilhado pelos nossos jovens. São Segundo o documento da Unesco Aptidões básicas
poucos os que conseguem relacionar o que aprendem para o mundo de amanhã, que apresenta os resulta-
em sala de aula com sua vida cotidiana. dos do Pisa, a avaliação oferece aos responsáveis pela
No Programa Internacional de Avaliação de Estu- formulação de políticas públicas uma lente que per-
dantes (Pisa), conduzido pela Organização das Na- mite visualizar os pontos fortes e fracos dos sistemas
ções Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura educativos à luz do desempenho de outros países.
(Unesco), envolvendo 43 países – 28 dos quais mem- Para o biólogo e educador Nélio Bizzo, da Facul-
bros da Organização para a Cooperação e o Desenvol- dade de Educação da Universidade de São Paulo
vimento Econômico (OCDE) –, o Brasil obteve o 42o (USP), onde também é vice-diretor, o Pisa reúne o que
lugar no ranking das aptidões para as ciências, fican- há de melhor em sistemas de avaliação educacional,
do à frente apenas do Peru. Divulgado no último 1o de e o Brasil teria muito a aprender nesse sentido, caso
julho, o estudo avaliou a capacidade, entre estudantes pudesse ter uma equipe fixa, que cuidasse, inclusive,
de 15 anos, de usar os conhecimentos científicos, da documentação do processo. “Infelizmente, isso
reconhecer perguntas relacionadas a ciências, iden- não foi feito de maneira adequada na última avalia-
ILUSTRAÇÕES ALIEDO

tificar as questões envolvidas em pesquisas científi- ção – perdemos, por exemplo, os prazos para a entre-
cas, associar dados científicos com afirmações ou ga de diversos documentos na elaboração do teste
conclusões e comunicar esses aspectos da ciência. –, o que reduz nossa credibilidade”, analisa.
Apresentaram melhor desempenho – assim como na Bizzo argumenta que, por isso, o Brasil deixou de
avaliação das habilidades para matemática – Hong- propor questões para serem incluídas na prova, não
Kong (China), Japão e Coréia. pediu alterações dentro dos prazos e, quando pediu 

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que fosse trocada a cidade de ‘Melbourne’ por ‘Porto gressiva das condições para aprender (competên-
Alegre’, na pergunta que tratava de uma cidade cias) e para continuar aprendendo ao longo da vida.”
abaixo do Trópico de Capricórnio, recebeu uma Para Fagundes, é fundamental que o estudante
resposta negativa. Ora, explica Bizzo, “Melbourne não se limite a repetir o que está nos livros, mas que
está na latitude 37 S e Porto Alegre, na latitude 30 S. seja capaz de construir conceitos que possa usar para
Essa troca não alteraria em nada a questão, mas para compreender e explicar propriedades e funções de
nossos alunos fez muita diferença: eles não entende- objetos, situações e fenômenos, para então fazer des-
ram nem a pergunta”. Para o biólogo, as deficiências cobertas e criar tecnologia e mais ciência. Ela atribui
não se restringem aos alunos, mas começam já de as deficiências do aprendizado tanto às característi-
cima: “A posição relativa do Brasil espelha não só os cas do ensino no país quanto à ignorância sobre a
problemas dos alunos mas também da (des)orga- cognição humana e seu desenvolvimento. E faz um
nização brasileira em avaliação educacional.” diagnóstico: “A educação carece de mais ciência
Ao cruzar os dados do desempenho dos alunos humana para intervir com segurança na aprendiza-
com o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, o Pi- gem da ciência.”
sa mostra que grande parte dos países ‘pobres’ tive-
ram baixo aproveitamento. “O Brasil situou-se abai-
xo da linha de tendência, com aproveitamento in-
ferior ao que seu PIB per capita permitiria prever”, Termômetro
constata o sociólogo argentino Jorge Werthein, re-
presentante da Unesco no Brasil. “Por outro lado, quebrado
além de o Brasil se situar entre os países que gastam
menos, junto com Indonésia e Peru, os recursos não “Há algumas objeções quanto à forma dos exames e
parecem bem empregados, tanto que o rendimen- podem ser justos os argumentos de que eles não têm
to dos alunos em ciências ficou abaixo do que seria uma aplicabilidade universal, mas isso não invalida
esperado para o nível de despesa”, acrescenta. a percepção de que nossa educação vai mal”, observa
A psicóloga e educadora Léa da Cruz Fagundes, o físico e educador Luís Carlos Menezes, do Instituto
coordenadora científica do Laboratório de Estudos de Física da Universidade de São Paulo (USP). “Os
Cognitivos do Instituto de Psicologia da Universidade resultados do Pisa, aliás, não destoam de outras
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acredita que, avaliações, como o Sistema de Avaliação da Educa-
independentemente do lugar ocupado no ranking, ção Básica (Saeb) e o Exame Nacional do Ensino
o caso dos estudantes brasileiros é similar até ao de Médio (Enem). Todos os resultados convergem para
estudantes de países desenvolvidos. “Alcançar maior a idéia de que precisamos melhorar nossa educação.”
número de pontos não é evidência de que existam O próprio Saeb – confirma Bizzo – revelava que o
dois indicadores fundamentais: 1) conhecimento pior desempenho dos alunos era na área de ciências.
produtivo em vez de reprodutivo e 2) melhora pro- “Sabendo disso, paradoxalmente, o Ministério da
Educação (MEC) extinguiu a prova de ciências”,
lamenta o biólogo da USP, que é também vice-presi-
dente da Organização Internacional para Educação
em Ciência e Tecnologia (Ioste). “Sabíamos que o
Brasil inteiro estava mal na aprendizagem das ciên-
cias, mas o MEC renunciou a monitorá-la. Ou seja,
mandou-se quebrar o termômetro do doente que
tinha a febre mais alta.”
O Pisa mostrou uma realidade conhecida, mas
trouxe algumas novidades: O desempenho das es-
colas públicas é inferior ao das particulares, mas a
atuação destas não é tão boa quanto se esperava.
“A média das escolas públicas é baixa (366 pontos)
em relação à média do OCDE, ajustada em 500
pontos, mas a das escolas privadas (439 pontos) não
é alta. O dado novo é que precisamos melhorar o
ensino em todos os segmentos”, avalia Bizzo.
Mas onde estariam os focos do mau desempenho
brasileiro? Para Werthein, o primeiro deles, certa-
mente, se encontra na formação docente, muitas
vezes superficial e, sobretudo, desvinculada das

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ciências a serem trabalhadas com os alunos. “Como


em outros países, há uma cisão entre teoria e prática.
O professor pode saber discutir teorias sobre edu- Um quarto
cação e desigualdades sociais, mas possivelmente
terá dificuldades em tornar interessante e motiva- de analfabetos funcionais
dor o estudo das ciências para alunos menos privile-
giados”, exemplifica. Conforme sugere a educado- Ao tomar posse do Ministério da mo, o resultado pode mudar enor-
ra argentina Cecília Braslavsky, diretora do Escritó- Educação, no início do ano, Cris- memente. Segundo o conceito usa-
rio Internacional de Educação da Unesco, os currícu- tovam Buarque assinalou como do pelo Instituto Brasileiro de
los são compartimentados entre as diversas ciên- prioridade o combate implacá- Geografia e Estatística (IBGE) –
cias, com muita dificuldade de se estabelecer a in- vel ao analfabetismo. Em sua “alfabetizada é a pessoa capaz
terdisciplinaridade e a transdisciplinaridade ne- opinião, esta seria a forma de de ler e escrever pelo menos um
cessárias ao século 21. ‘concluir’ a abolição da escrava- bilhete simples no idioma que
“Por outro lado, os censos escolares mostram que tura no Brasil. Não por acaso o conhece” –, o Brasil tem hoje 16
os laboratórios de ciências, os computadores e as Brasil foi o primeiro país no mun- milhões de analfabetos com mais
bibliotecas são recursos ainda escassos em nossas do a lançar separadamente (a de 15 anos. Mas, de acordo com o
escolas, notadamente no ensino fundamental”, apon- 20 de maio) a Década das Na- conceito de analfabetismo fun-
ta o representante da Unesco no Brasil. “Como apren- ções Unidas para a Alfabetiza- cional, que inclui todas as pes-
der ciências apenas com um quadro e giz, olhando a ção (2003-2012). De fato, como soas com menos de quatro séries
nuca dos colegas e ouvindo a voz do professor?”, imaginar jovens ‘cientificamen- de estudos concluídas, e que se
questiona. “A América Latina herdou uma tradição te preparados’ em um país com ajusta melhor à realidade con-
educacional verbalista, enquanto as ciências decola- alto grau de analfabetismo? temporânea, temos hoje mais de
ram com a experimentação.” Dependendo da forma ado- 30 milhões de analfabetos – um
tada para medir o analfabetis- quinto da população.

Mais do que difundir as diversas experiências de produzir ma-

saliva e giz teriais práticos e simples para realizar experimen-


tos em sala de aula ou nos laboratórios de informáti-
ca. E sugere, onde for possível, investir firme em
A lista de problemas da nossa educação é extensa e equipamentos e na capacitação dos professores para
o diagnóstico, notório. A formação inicial dos profes- utilizá-los. “Isso pode ser caro em alguns casos, mas
sores é insuficiente e deficiente, e a permanente não é muito mais caro crianças morrerem porque a
quase inexiste. Os salários nesse setor são baixos jovem mãe não aprendeu noções mínimas de conta-
e o material didático é insatisfatório. Há deficiên- minação por germes?”, indaga.
cias de aprendizagem em todas as esferas: nas esco-
las públicas e privadas. Nosso nível de analfabetis-
mo funcional é elevado, e os investimentos na área
educacional há muito não são prioritários (ver ‘Um Mãos à obra
quinto de analfabetos funcionais’).
“Não dá para tentar mudar a educação na base do Embora nossa Lei de Diretrizes e Bases (LDB) seja
improviso, do jeitinho ou do sacrifício. Temos que dar bastante avançada diante das legislações de outros
um real salto de qualidade, que implica reformular países, suas metas não vêm sendo cumpridas como
objetivos e métodos, não só no papel, mas mobilizan- deveria ocorrer. “Não estamos garantindo os princí-
do a comunidade escolar”, avisa Menezes. “Saliva e pios básicos da educação”, diz Menezes. “Há uma
giz não resolvem”, completa Bizzo, para quem o nova clientela que necessita de outra linguagem,
professor deve ser tratado como um profissional que diferente da que atendia a velha clientela, e a escola
desempenha um trabalho muito específico e ne- está despreparada para essa tarefa.” Para ele, o prin-
cessita de materiais de apoio. Ele defende a adoção cipal motivo desse despreparo é a falta de um pro-
no país de “um sistema que incentive, monitore e jeto pedagógico escolar – o conjunto de atividades
premie o sucesso de alunos e professores” e a intro- destinado a desenvolver, nos alunos, as qualidades
dução de uma série de medidas, entre elas a experi- que a instituição quer estimular – conscientemente
mentação no ensino de ciências. “Bons livros didá- concebido e proposto. “As escolas trabalham por
ticos ajudam, mas não resolvem o problema da prá- inércia, não têm condições humanas nem materiais
tica pedagógica e do ensino deficiente.” para propor e escolher o seu projeto pedagógico”,
Werthein reforça a necessidade de incentivar e adverte o físico da USP. 

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nas ouvir o mestre explicar em que consiste ele).”


Bizzo acredita que as causas de nossas deficiên-
cias remontam a um projeto, de 40 anos atrás, de um
Brasil exportador de matérias-primas, que não apos-
tava em tecnologia. Para Léa Fagundes, que estuda a
questão do aprendizado em ciências e matemática
desde 1965, o quadro não mudou muito desde en-
tão. “O problema está na concepção de ensino/apren-
dizagem, na concepção de ‘educar’, que precisa ser
Werthein diz que convém não esperar que se renovada. Não se trata de fazer transmissões. Esse
tenha uma sociedade mais justa para mudar a educa- tem sido o grande equívoco na educação e no ensino
ção. “Esta precisa ser renovada já. Os padrões míni- das ciências. Aprende-se ciência aprendendo a fazer
mos de oportunidades educacionais, estabelecidos ciência.”
na LDB, até hoje não foram definidos”, lembra. “É Infelizmente, esse sistema de ensino – que não
preciso romper o círculo vicioso de escolaridade oferece ao aluno o conhecimento e a crítica indis-
pobre para os pobres e da escolaridade rica para os pensáveis para formar seu próprio pensamento e en-
ricos. E apoiar financeiramente vocações que per- frentar com êxito os problemas futuros – ainda pre-
mitam às ciências contar com professores compe- valece no país. “Continuamos formando professores
tentes nessas áreas de crônica escassez.” que assistem, passivos, à aula, e que provavelmente
As críticas ao nosso ensino de ciência – e as reproduzirão essa grotesca versão de educação com
tentativas de reforma – não são novas. Em 1962, o seus alunos”, lamenta Menezes. “Isso na era das
‘papa’ da divulgação científica, o médico José Reis, telecomunicações, com redes de informática am-
apontava alguns dos problemas na introdução do plamente disseminadas. Há um descompasso enor-
livro Iniciação à ciência, de E. N. Andrade e Julian me entre a prática dos docentes e as necessidades da
Huxley. “De tal modo é ainda livresco, pretensioso, vida atual, o que mostra o quanto a escola está pa-
estéril o ensino da ciência, que continua a incorrer teticamente despreparada.”
no vício há tanto estigmatizado (...) de diminuir a Não basta incluir aulas de laboratório no currícu-
originalidade do aprendiz. (...) Porque ciência é, lo escolar ou aliviar o volume de informações teóri-
no fundo, originalidade, é iniciativa de investigar. cas fornecidas ao aluno. É preciso formar pessoas que,
Menos que o simples propagar de um corpo estáti- diante do inesperado, sejam capazes de usar em seu
co de conhecimentos científicos – que é o que entre benefício o conhecimento adquirido. “Em geral, o
nós se costuma fazer, e ainda assim mal – interessa estudante não vive a ciência nem lhe pratica os mé-
incutir no aluno, pela experiência, a idéia da ciência todos de maneira ordenada, isto é, sabendo por que
como ‘processo’.” e para que faz”, alertava Reis, na mesma introdução.
Adiante, analisando adaptações nacionais para Embora essas palavras ecoem com um descon-
livros estrangeiros de ciência, Reis indica outra ques- fortável tom de atualidade, seria injusto dizer que,
tão relevante: “(...) as crianças e os jovens continuam nessas quatro décadas, não houve avanços na nossa
tão fora da ciência como antes, pois o que importa na educação. O atendimento escolar foi, de fato, am-
verdade não é conhecer exemplos – não é citar a pliado. “Praticamente universalizamos o acesso ao
sapucaia, que é nossa, em vez do carvalho, que é ensino fundamental e, na última década, as matrícu-
europeu (...) – mas aproximar o estudante da nature- las no ensino médio triplicaram”, ressalta Menezes.
za e fazer que ele aprenda, ‘naturalmente’, a usar o “Mas não estamos atendendo a nova clientela com
método científico na solução dos problemas (e apren- a qualidade necessária, o que leva ao desestímulo
der a usar o método científico é aplicá-lo, e não ape- e aumenta a repetência e a desistência dos alunos.”

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‘Ciência de todos’ disso, para facilitar o acesso ao saber científico,


sobretudo pela população mais desfavorecida, o ‘A
ciência é de todos’ se dispõe a apoiar comunicado-
Cientes do fraco desempenho dos alunos brasileiros res sociais e a mídia na divulgação – fácil e acessível
em avaliações como o Enem e o Pisa e buscando um – de temas científicos de interesse social.
amplo acesso à formação científica de qualidade, os Para debater com a comunidade científica esse
ministérios de Ciência e Tecnologia (MCT) e da novo programa, os ministérios envolvidos reuniram,
Educação (MEC) lançaram em agosto deste ano, com na primeira semana de setembro, representantes de
o apoio da Unesco, o projeto ‘A ciência é de todos’. Seu cerca de 20 entidades, como a Academia Brasileira
objetivo central é elevar, através da popularização de Ciências (ABC), a Sociedade Brasileira para o
do saber científico, os níveis de desenvolvimento Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira
humano, de empregabilidade e de qualidade de vi- de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec), as
da da população. Para atingir essa meta, os ministé- sociedades brasileiras de Física (SBF), Matemática
rios pretendem “introduzir mudanças no ensino das (SBM) e Química (SBQ), além de professores univer-
ciências na escola brasileira, especialmente no ensi- sitários. Os presentes à reunião comprometeram-se
no médio”, e colocar à disposição da sociedade “os a discutir o projeto em suas entidades e a apresentar
mecanismos de acesso a uma cultura científica”. sugestões para enriquecê-lo. No entanto, a maioria
É claro que, para ter uma educação científica de dos participantes considerou “exíguo” o limite de
qualidade no ensino médio, o governo entende como tempo para envio das propostas (menos de um mês).
necessário trabalhar duas dimensões essenciais: a A idéia inicial do MCT era implantar o ‘A
formação continuada de professores e a adequação ciência é de todos’ em 400 escolas públicas
dos espaços de aprendizagem nas escolas. Além de ensino médio ainda este ano. 

Ciência Hoje vai à escola


É verdade que não se transforma o dia-a-dia à luz da ciência. ção dos alunos, revelou
ensino de ciências só com material O PCHAE está sendo aplicado como e quanto os docen-
de apoio para alunos e professores. de forma pioneira nos municípios tes ampliaram sua for-
Mas também é certo que boas obras paulistas de Embu das Artes, Ita- mação básica e como
didáticas podem representar um pecerica da Serra, São Carlos e Bo- transformaram os con-
diferencial valioso na educação em tucatu, atendendo a mais de 26 mil teúdos aprendidos em no-
ciências. Visando integrar a ciência alunos e cerca de 650 professores vas experiências e práticas educa-
ao cotidiano das crianças – futuros do primeiro ciclo do ensino funda- cionais. As crianças passaram a
jovens e adultos –, o Instituto Ciên- mental. Para que se possa explorar perceber a ciência de forma dinâmi-
cia Hoje criou em fevereiro de 2001 todo o potencial pedagógico da re- ca e como algo presente no dia-a-
o Programa Ciência Hoje de Apoio vista, o PCHAE proporciona um cur- dia. Os professores relataram ainda
à Educação (PCHAE), implantado so de formação aos professores, maior interesse e participação nas
a partir de agosto do mesmo ano. partindo de sua realidade, e res- aulas; aumento das atividades de
Através do uso individual da revista gata instrumentos de trabalho leitura e escrita espontâneas; am-
Ciência Hoje das Crianças pelos es- presentes no dia-a-dia da escola. pliação da compreensão científica
tudantes em sala de aula, o projeto O objetivo é ampliar a percepção dos fenômenos físicos, ambientais
oferece uma ferramenta lúdica para do mestre como agente de trans- e sociais da região onde os alunos
o entendimento de fenômenos do formação social e permitir que alu- moram; e adoção do trabalho cole-
nos e educadores pesquisem e tivo como prática corrente. Ocorreu
aprendam juntos a partir do con- ainda maior participação dos pais e
teúdo da publicação. irmãos mais velhos na vida escolar
Os resultados obtidos até agora do aluno, e a absorção de alguns
são animadores. A análise das ati- conteúdos científicos pelas famílias
vidades dos professores nas ofi- gerou mudanças de postura, como a
cinas e dos relatos de práticas em adoção de novos comportamentos
sala de aula, associados à produ- na educação dos filhos.

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Mal foi concebido, o projeto arrebanhou críti- chamar ‘Ciência de todos’. Os ministérios acreditam
cas. A Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia que, com sua nova forma, o Programa poderá atender
(Sbenbio) foi uma das primeiras a se posicionar, seus objetivos e beneficiar alunos e professores de
ressaltando que as premissas de inovação do ensino ciências das escolas envolvidas, assim como a popu-
de ciências propostas pelo programa pareciam res- lação ligada ao projeto e a sociedade em geral – afinal,
suscitar iniciativas dos anos 1960/70, hoje “supera- uma escola com maior qualidade no ensino de ciên-
das”. Segundo a entidade, ‘A ciência é de todos’ me- cias repercute direta ou indiretamente na qualidade
rece elogios quando coloca como central a questão da de vida dos cidadãos.
formação de professores, mas, ao enfatizar a experi-
mentação e o laboratório, deixa entrever uma for-
mação instrumentalista e manipulatória ultrapassa-
da. A Sbenbio sugeriu que o documento destacasse Amanhã de manhã
as diferentes posições sobre ensino de ciências, for-
mação de professores e popularização da ciência. Governo, instituições de ensino, alunos e professo-
A SBPC também fez suas considerações. “Uma res, todos concordam que reformas urgentes são mais
análise geral do documento mostra sérias deficiên- que necessárias. Mas é preciso definir as formas e os
cias do ponto de vista conceitual, tanto no aspecto da meios através dos quais as mudanças serão feitas.
educação em ciências quanto no da popularização da Temos hoje 35 milhões de alunos no ensino funda-
ciência, e graves incertezas e lacunas no campo mental e 8 milhões no ensino médio. Muitos deixa-
operacional”, destacou o físico Ildeu de Castro Morei- rão a escola básica em quatro anos, quando uma no-
ra, membro da comissão da SBPC encarregada de va leva de professores estará saindo da universida-
examinar o projeto. Em sua opinião, o programa dá de. Para recuperar esse atraso, serão necessários
ênfase à educação formal, sobretudo à formação de passos largos e resultados imediatos.
professores, sem considerar adequadamente as- “Não podemos correr o risco de perder toda uma
pectos ligados ao aluno e à sua realidade. Já a edu- geração de crianças que passam pela escola sem
cação informal, ou divulgação científica em sentido aprender nada de útil, e condenar o país a ter mais de
amplo, é “quase um apêndice do documento”. 30 milhões de trabalhadores incapazes de desen-
Segundo Moreira, os poucos parágrafos dedica- volver tecnologia avançada no futuro”, alerta Bizzo,
dos à popularização da ciência expressam uma visão que defende um ensino de ciências associado à expe-
limitada das atividades de divulgação, reduzindo-as rimentação. Em sua opinião, a experimentação in-
à perspectiva de diminuir o chamado ‘analfabetismo centiva a inovação pedagógica, melhora o desem-
científico’ – conceito impreciso e de utilidade duvi- penho do estudante em outras áreas do conhecimen-
dosa. Nesse sentido, o físico lembra que a própria to e traz nova dinâmica na socialização dos alunos,
SBPC e a Associação Brasileira de Centros de Museus em sua classe e até entre diferentes salas e faixas
de Ciência sugeriram ações para construir um pro- etárias. “A cidade que quiser ter produção de alta
grama nacional de popularização da ciência, algu- tecnologia em duas décadas deve oferecer ensino
mas até incorporadas ao programa eleitoral do can- com experimentação para suas crianças
didato vitorioso à presidência da República. de 10 anos amanhã de manhã!”
Sobre a educação formal de ciências, Moreira O maior problema a enfrentar,
sublinha que o programa está centrado no ensino para Menezes, é a enorme distân-
médio, mas não se pode deixar de lado o ensino cia que existe entre o centro for-
fundamental, onde ocorre a iniciação escolar nas
ciências. E indica algumas questões que merecem
ser aprofundadas: a formação inicial do professor;
a necessidade de estimular nos alunos a curiosida-
de, a criatividade e a capacidade de raciocínio; a
valorização de atividades experimentais (que não
se resumem à mera distribuição de material didá-
tico); e outros aspectos, como o bom uso da educa-
ção a distância e a maior interação entre as escolas
e os cursos universitários de licenciatura.
Munidos das considerações levantadas pelas
sociedades e entidades afins, o MCT e o MEC apre-
sentaram em 17 de novembro, para a comunidade
científica, uma nova versão da base conceitual, da
estrutura e das ações do Programa, que passou a se

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mador de professores e a escola. “Por conta de sua bilizados como meios de educação pública”, enfa-
excessiva distância da escola e da conseqüente per- tiza Werthein. “As ciências devem ser vistas como
da de contato com a realidade da educação de base, algo importante, que tem a ver com a vida cotidiana.
há uma verdadeira paralisia desses centros forma- O que não impede o desenvolvimento da pesquisa
dores que, com exceção de um ou outro espaço de de nível internacional, até porque as vocações ten-
inovação, reproduzem uma visão anacrônica de dem a surgir e a ser cultivadas na escola (às vezes,
educação. É preciso ressensibilizar essas instâncias é verdade, apesar dela...).”
para termos uma real mudança na educação”, afir-
ma. E o físico da USP convida o ensino superior a fa-
zer uma autocrítica: “A universidade não pode ficar
alheia a isso, como se não fosse um problema seu. Horizonte
Temos que ser co-responsáveis pelo desempenho
do sistema escolar.” Ele reforça também a necessida- de esperança
de de acabar com a concepção de professor ‘trans-
missor’ e de aluno ‘receptor’ de conhecimento: “Na Entre sugestões e críticas, frustrações e sucessos, a
formação docente e na escola, devemos ter um efeti- balança pode – e deve – pender para um cenário
vo protagonismo de alunos e professores.” otimista. “Temos belos exemplos. Professores mag-
Para Léa Fagundes, a contribuição dos cientistas níficos reinventam suas condições de trabalho e
é valiosíssima, necessária e mesmo indispensável, algumas escolas públicas mantêm um real engaja-
mas como contribuição interdisciplinar à dos edu- mento com a comunidade, até em regiões muito
cadores. E arrisca uma proposta: “Não será o caso de carentes e sob circunstâncias adversas. No outro
melhorar a formação do educador como pesquisa- extremo do espectro social, está ocorrendo uma
dor e a do pesquisador como educador?” reformulação conceitual em algumas escolas de eli-
A Conferência Mundial sobre a Ciência para o te, que não pensam apenas em preparar o aluno para
Século 21, realizada em Budapeste (Hungria) em o vestibular”, comemora Menezes.
1999 e a respectiva Reunião Regional de Consulta da Ele identifica um sentido de cidadania na base so-
América Latina e do Caribe, promovida no mesmo cial de algumas escolas e acredita que um novo pro-
ano em Santo Domingo (República Dominicana), fessor está se formando nesse bolsão de resistência
enfatizaram a alta prioridade que deve ser dada pa- social, política e cultural. “O engajamento e intimi-
ra melhorar a educação científica em todos os níveis, dade da escola com a comunidade é um ingrediente
com especial atenção para a eliminação dos efeitos para alcançar a solução. Isso tudo no mesmo país me
de preconceitos de sexo e de grupos em desvanta- anima e me emociona”, relata o físico da USP.
gem. “A formação inicial e continuada dos professo- “Precisamos mudar a estrutura da escola, a gestão
res, cada vez mais vinculada aos ambientes de pro- dos espaços e dos tempos, a organização dos currícu-
dução de conhecimento, tem um papel axial. Além los e das práticas pedagógicas”, frisa Léa Fagundes,
disso, museus e centros de ciências devem ser mo- lembrando que o trabalho de aprender é exigente, Sugestões
para leitura
demanda esforço, concentração e disciplina e pre-
cisa ser contextualizado para estar relacionado com ABRAMOVAY, M.
a vida e o ambiente natural e cultural do estudante. e CASTRO, M.G.,
Ensino médio:
“O que precisa mudar é a oferta de fontes confiá- múltiplas vozes,
veis, a difusão da pesquisa científica, o livre acesso Brasília, MEC/
ao que é produzido pelos pesquisadores.” UNESCO, 2003.
MORIN, E., CIURANA,
Para Werthein, é importante ter em mente que o E.R. e MOTTA, R.D.,
investimento em educação e ciência e tecnologia Educar na era
planetária, São
também faz pleno sentido do ponto de vista econô- Paulo-Brasília,
mico. “Um país que investe nesses campos está mais Cortez Editora e
bem preparado para o futuro, conseguirá superar os Unesco Brasil,
2003.
desafios da nova ‘sociedade do conhecimento’, con- REIS, J., ‘Comentário
tará com profissionais capacitados e poderá honrar do tradutor’ in
Inicação à Ciência
seus compromissos internacionais”, adverte. Bizzo (E.N. Andrade
reitera: “Daqui a 20 anos, nenhum país, nenhum e J. Huxley), vol. 1,
Rio de Janeiro,
estado, nenhuma cidade poderá manter sua identi-
Inep, MEC, 1962.
dade cultural e sobreviver em um mundo globaliza- UNESCO, Notícias
do se não tiver pessoas com formação científica e Unesco, no 21,
Brasília, agosto
tecnológica equivalente àquela que está sendo ofe- 2003.
recida hoje nos países desenvolvidos.” ■

dezembro de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 33

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