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Doença Renal Crônica e

Injúria Renal Aguda


Fundamentos da Anatomia,
Fisiopatologia e Tratamentos
Autor: Cristina Martins. Nutricionista pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Doutora em Ciências
Médicas – Nefrologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS); Mestre em Nutrição Clínica pela
New York University (NYU), EUA; Dietista-Nutricionista Registrada pela Academy of Nutrition and Dietetics (AND),
EUA; Especialista em Nutrição Renal pela AND; Clínica Certificada em Suporte Nutricional pela American Society of
Parenteral and Enteral Nutrition (ASPEN), EUA; Especialista em Suporte Nutricional Enteral e Parenteral pela Sociedade
Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (SBNPE); Especialização em Nutrição Clínica pela UFPR; Especialização em
Alimentação e Nutrição pela UFPR; Assessora Científica da Fundação Pró-Renal Brasil - Curitiba; Diretora Geral do
Instituto Cristina Martins de Educação em Saúde; Presidente da SOLUS Soluções Estéreis – Curitiba; Representante
da AND e da Associação Brasileira de Nutrição (ASBRAN) para a padronização internacional do Processo de Cuidado
em Nutrição no Brasil.

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SUMÁRIO

OBJETIVOS DE APRENDIZADO ........................................................................................................... 4


PROBLEMATIZAÇÃO - ESTUDO DE CASO ............................................................................................ 5
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................... 6
ANATOMIA RENAL ............................................................................................................................... 6
FISIOLOGIA RENAL ............................................................................................................................. 8
EQUILÍBRIO HIDRELETROLÍTICO .................................................................................................... 8
Sistema Nervoso Simpático .................................................................................................. 9
Sistema Renina-Angiotensina ................................................................................................ 9
Peptídeos Natriuréticos ......................................................................................................... 9
Hormônio Antidiurético ou Vasopressina ............................................................................... 9
EQUILÍBRIO ACIDOBÁSICO ............................................................................................................ 10
FUNÇÃO ENDÓCRINA .................................................................................................................... 10
Secreção da Enzima Renina .................................................................................................. 10
Produção da Eritropoietina .................................................................................................... 10
Ativação da Vitamina D ......................................................................................................... 11
PATOLOGIA RENAL .............................................................................................................................. 11
GENERALIDADES ........................................................................................................................... 11
SINDROME NEFRÓTICA ................................................................................................................. 12
DOENÇA RENAL CRÔNICA ............................................................................................................. 12
Taxa de Filtração Glomerular ................................................................................................. 14
Hiperparatireoidismo Secundário e Doença Cardiovascular ................................................... 14
Disbiose Intestinal ................................................................................................................. 15
INJÚRIA RENAL AGUDA .................................................................................................................. 16
Classificação da Injúria Renal Aguda ..................................................................................... 17
Etiologia da Injúria Renal Aguda ............................................................................................ 18
Indicação de Terapia de Reposição Renal .............................................................................. 19
MÉTODOS DIALÍTICOS ........................................................................................................................ 19
HEMODIÁLISE ............................................................................................................................... 20
Acesso Vascular para Hemodiálise ........................................................................................ 20
Mecanismo de Hemodiálise .................................................................................................. 20
Modalidade e Programa de Hemodiálise ............................................................................... 21
Avaliação da Adequação da Hemodiálise .............................................................................. 22
DIÁLISE PERITONEAL .................................................................................................................... 22
Acesso Vascular para Diálise Peritoneal ................................................................................ 22
Mecanismos de Diálise Peritoneal ........................................................................................ 22
Modalidades e Programas de Diálise Peritoneal .................................................................... 23
Avaliação da Adequação da Diálise Peritoneal ...................................................................... 24
TERAPIAS CONTÍNUAS DE REPOSIÇÃO RENAL ................................................................................... 25
MODALIDADES E PROGRAMAS DE TERAPIAS LENTAS DE SUBSTITUIÇÃO RENAL ......................... 25
TRANSPLANTE RENAL ........................................................................................................................ 26
CONCLUSÃO ...................................................................................................................................... 28
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................................... 28
Doença Renal Crônica e
Injúria Renal Aguda
Fundamentos da Anatomia,
Fisiopatologia e Tratamentos

Cristina Martins

OBJETIVOS DE APRENDIZADO
Após a leitura do capítulo, você deverá estar apto a:
yy Identificar as estruturas básicas da anatomia renal.
yy Citar as principais funções dos rins.
yy Identificar as principais enfermidades renais.
yy Definir a síndrome nefrótica.
yy Conceituar a doença renal crônica.
yy Identificar as categorias da doença renal crônica.
yy Definir a disbiose intestinal como risco de desenvolvimento e progressão da doença renal crônica.
yy Reconhecer os níveis de proteinuria como fator de risco de dano renal.
yy Conceituar a injúria renal aguda.
yy Diferenciar as modalidades de diálise.
yy Identificar as diferentes vias de acesso para a diálise.
yy Descrever os princípios dos diferentes métodos dialíticos.
yy Identificar testes e resultados desejáveis de adequação dialítica.
yy Reconhecer características básicas do transplante renal.

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PROBLEMATIZAÇÃO - ESTUDO DE CASO

S.N.S., sexo masculino, 58 anos de idade. Há nove anos, em exame de rotina, foi
diagnosticada a DRC. Na época, o clearance de creatinina era 38 mL/min/1,73m2. Apresentou
proteinuria com média de 375 mg/24h em três medições. Paciente não fez biópsia renal.
A causa provável da DRC foi atribuída à hipertensão arterial não controlada por mais de 20
anos. Há dois anos, quando alcançou a TFG de 9 mL/min/1,73m2, iniciou a CAPD, com 4
trocas diárias de 2 litros cada, sendo 3 bolsas a 1,5% e 1 a 4,25% de glicose. A esposa
realizava o procedimento dialítico do paciente em casa. O último clearance semanal total de
creatinina em CAPD foi de 65 mL/min/1,73m2 e o Kt/V = 2,0. O resultado do PET foi “médio-
alto transportador”. Ao ficar viúvo, há seis meses, o paciente optou pela HD. Foi instalada
uma FAV enquanto estava em HD. Após dos meses, a FAV estava maturada e o paciente
iniciou o programa crônico de HD: 3 vezes/semana, 4 h/sessão. Três meses depois, Kt/V =
1,1. PRU da última sessão de HD = 59%. Nesse momento, o paciente está em processo de
triagem para o transplante renal.

1. Qual foi a provável causa da doença renal crônica de S.N.S.?


2. Ao ser diagnosticado, em qual categoria da doença renal crônica S.N.S. se encontrava?
Em qual categoria estava quando iniciou a diálise peritoneal?
3. O que significava a proteinuria de S.N.S. no momento do diagnóstico da DRC?
4. O que difere a doença renal de S.N.S. da injúria renal aguda?
5. O que pode ter levado S.N.S. a solicitar transferência da diálise peritoneal para a
hemodiálise?
6. Baseado nos testes de adequação, S.N.S. estava bem dialisado quando em diálise
peritoneal? Atualmente, ele está bem dialisado em HD?
7. S.N.S. está em processo de triagem para o transplante renal. De acordo com a fase, há
diferentes riscos e problemas. No momento, em que fase do transplante S.N.S. está?
Quais são as demais fases pelas quais ele deverá passar?

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INTRODUÇÃO de 11 a 13 cm de comprimento, de 5 a 7,5 cm de
largura e de 2,5 a 3 cm de espessura. Normalmente,
o rim direito é 1 cm menor do que o esquerdo. No

O
s rins são órgãos fantásticos e altamente recém-nascido, o rim pesa de 13 a 44 g. Com o
especializados. As suas funções são envelhecimento, há redução do peso dos rins. A Fig.
inúmeras e essenciais para a manutenção 1 mostra a anatomia dos rins normais.
da vida. A função de excreção mantém a homeostasia
de líquidos, eletrólitos e acidobásica. As ações de
fármacos dependem da função de filtração renal. Além
disso, os rins têm participações endócrina e enzimática
que são essenciais à vida. Portanto, quando esses
órgãos falham, dá-se início a uma cascata de distúrbios.
A doença renal crônica (DRC) é um problema de
saúde pública mundial. Milhares de mortes ocorrem
anualmente em consequência da enfermidade.
Além disso, uma parcela significativa da população
mantém a vida amparada pela diálise. A doença
tem aumentado de forma exponencial. E o fato é
atribuído ao melhor diagnóstico e ao aumento da
expectativa de vida das pessoas. O sedentarismo e
a obesidade, e todas as doenças associadas a eles,
como a hipertensão e o diabetes, têm contribuído
significativamente para o problema. O tratamento
é importante. Porém, as ações de prevenção da
Fig. 1 Modelo da anatomia dos rins (2)
doença são o aspecto mais crucial.
Portanto, baseado na complexidade, é essencial
entender as características básicas da anatomia A pelve renal tem o formato de funil e é a maior
e da fisiopatologia renal, das modalidades de cavidade do rim. As bifurcações da pelve renal são
tratamento dialítico e do transplante renal. Esse é chamadas de cálices maiores e menores. O lado
o objetivo dessa unidade. inferior da pelve renal continua até o ureter. Este
tem de 28 a 34 cm de comprimento e é a conecção
para a bexiga (1).
Em condição de repouso, os rins recebem
ANATOMIA RENAL aproximadamente 20% do débito cardíaco (1). O
sangue entra através da artéria renal, que se divide
Os rins, que são dois, estão situados no espaço
até se transformar em arteríolas e no glomérulo.
retroperitoneal (1). Eles têm o formato de feijão. E
Este é um novelo de capilares localizados entre
estão posicionados simetricamente: um de cada
duas arteríolas: aferente e eferente. Na arteríola
lado da coluna vertebral. Dependendo da posição
aferente, ocorre a secreção da renina. Cada rim tem
do indivíduo (em pé ou deitado), a borda superior do
uma artéria renal, que se origina da aorta. As veias
rim localiza-se ao nível da primeira lombar ou da 12ª
formam-se perto da superfície dos rins. O sangue
vértebra torácica. A borda inferior fica ao nível da quarta
sai dos rins pela veia renal. Anatomicamente, a
ou terceira vértebra lombar. Normalmente, o rim direito
circulação venosa geralmente segue em paralelo
encontra-se um pouco mais abaixo do que o esquerdo.
ao trajeto do sistema arterial.
Com a respiração profunda, os rins podem deslocar-se
O rim tem duas regiões: o córtex, que está situado
até, aproximadamente, quatro centímetros.
externamente, e a medula, localizada na área interna
O tamanho e o peso dos rins parecem estar
do órgão. A região medular está dividida em áreas com
relacionados com a superfície corporal do indivíduo
formato de cones, chamados de pirâmides renais.
(1). No adulto, cada rim pesa de 115 a 170 g, tem

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

Os néfrons, que são as unidades funcionais dos rins, espessa da alça de Henle são coordenadas por
estão localizados no córtex e na medula. Há de 600 hormônios, incluindo a vasopressina (hormônio
mil a 1,4 milhões de néfrons em cada rim (1). Cada um antidiurético), o paratormônio (PTH), a calcitonina e
deles é composto por um glomérulo, que é envolto por o glucagon. O PTH estimula a reabsorção de cálcio e
uma membrana chamada cápsula de Bowman e por de magnésio. Na porção descendente, a água passa
um sistema de túbulos. Na medula, ficam os túbulos, passivamente. Já o sódio e o cloro praticamente não
que são os principais responsáveis pela reabsorção e passam. Os mecanismos de transporte da alça de
secreção dos rins. No córtex, há túbulos e glomérulos. Henle podem ser inibidos pelos chamados diuréticos
No glomérulo, ocorre a produção de um de alça, como a furosemida e a bumetanida.
ultrafiltrado do plasma. Cada glomérulo é formado O túbulo contornado distal é o segmento da
por uma rede de capilares especializados, nutridos alça de Henle. Ele desemboca no ducto coletor.
pela arteríola aferente e drenados pela arteríola No túbulo contornado distal, ocorrem a reabsorção
eferente. Essa rede capilar projeta-se para dentro de do cloreto de sódio, do cálcio e do magnésio e
uma câmara delimitada pela cápsula de Bowman. A a secreção do potássio. É o local de controle do
barreira de filtração glomerular permite a passagem sistema renina-angiotensina-aldosterona, o qual
seletiva de água e de pequenos solutos. tem a função de regulação do metabolismo do
Cada túbulo é dividido em segmentos: proximal, sódio e da pressão arterial.
alça de Henle e distal. Cada um tem características Alguns túbulos unem-se para formar ductos
morfológicas altamente especializadas e funções coletores. Estes estão envolvidos no processo
de transporte. O túbulo contornado proximal é de acidificação da urina. Semelhante ao túbulo
continuação direta da cápsula de Bowman. Nesse contornado distal, o ducto coletor participa da: 1)
local, inicia a reabsorção de pequenos solutos filtrados, reabsorção do bicarbonato e do cloreto de sódio, 2)
como glicose, sódio, bicarbonato, potássio, cloreto, secreção de hidrogênio, 3) reabsorção e secreção do
cálcio, fosfato, substâncias proteicas (ex.: albumina), potássio, 4) secreção da amônia, 5) reabsorção da
outros solutos e água. O túbulo proximal promove água (influenciada pela vasopressina), entre outros.
a reabsorção de 2/3 do ultrafiltrado, acoplado Os ductos coletores abrem-se e a urina cai em
ao transporte ativo do sódio. Nesse trecho, há a um receptáculo, chamado cálice menor. Os cálices
recuperação, pela reabsorção passiva, de grande menores unem-se para formar os cálices maiores,
parte da quantidade de água do filtrado. Portanto, que são em número de dois a quatro. Estes, por sua
qualquer doença que afete o túbulo contornado vez, unem-se para formar a pelve renal que, depois,
proximal causa desequilíbrio hidroeletrolítico torna-se o ureter. O ureter é um tubo muscular que
importante. O túbulo proximal é importante para se estende da pelve renal à bexiga. Os cálculos renais
a formação de amônia e para a secreção de íons podem obstruir o ureter em diferentes regiões.
hidrogênio. O túbulo está envolvido na secreção Os rins recebem em torno de 20% do débito
de ácidos e bases orgânicas. Essa porção é cardíaco (1). Isso representa um fluxo de sangue
frequentemente lesada por compostos nefrotóxicos, de 1.000 a 1.200 mL/minuto para um adulto. Esse
incluindo vários fármacos e metais pesados. sangue, que chega aos rins, passa pelos glomérulos,
A alça de Henle é o local de concentração da onde cerca de 20% do plasma são filtrados. Isso
urina, que pode ser diluída mais tarde, se necessário. totaliza uma taxa de filtração glomerular (TFG) normal
A alça de Henle é dividida tem três partes: a) porção de aproximadamente 120 mL/minuto (1). Então,
descendente fina, b) porção ascendente fina; e c) o volume filtrado por minuto significa em torno de
porção ascendente espessa. A porção ascendente 173 litros por dia (0,12 litros x 1.440 minutos). Mas
é relativamente impermeável à água, mas bastante resultará em, somente, de um a dois litros de urina.
permeável ao sódio e ao cloro (cloreto de sódio). A Fig. 2 apresenta o rim e o néfron normal em
Cerca de 35% do sódio e do cloreto filtrados são perspectiva.
reabsorvidos. Algumas funções da porção ascendente

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Fig. 2 Estrutura em perspectiva do rim e néfron normal

FISIOLOGIA RENAL ♦♦ regulação do balanço de cálcio e fósforo,


bem como o metabolismo ósseo (por conta
Os rins são órgãos reguladores que, seletivamente, da ativação da vitamina D).
excretam e conservam água e vários compostos
químicos. Embora muitas funções e inter-relações Em relação à função de equilíbrio, exercida pelos
renais ainda sejam desconhecidas, as quatro rins, é importante entender que, para manter a
principais são (1): homeostasia, é necessário estabelecer um balanço
yy Manutenção do balanço hídrico, da entre a taxa de aparecimento e de desaparecimento
osmolaridade, das concentrações de eletrólitos de determinada substância no organismo. Ou seja:
(ex.: sódio, potássio, cloreto, cálcio, magnésio e quantidade produzida + quantidade ingerida =
fosfato) e do estado acidobásico do organismo. quantidade consumida + quantidade excretada.
yy Excreção de produtos finais do metabolismo,
como ureia, ácido úrico, fosfatos e sulfatos. EQUILÍBRIO HIDRELETROLÍTICO
Os rins também excretam outras substâncias, O equilíbrio de água e de eletrólitos é,
fármacos e drogas. provavelmente, a função renal mais conhecida. Os
yy Produção e secreção de hormônios e enzimas rins mantêm constante o volume hidroeletrolítico
que atuam na: do corpo (sangue e/ou outros líquidos). A remoção
♦♦ regulação hemodinâmica sistêmica e renal da água é controlada pelo hormônio antidiurético
(renina, angiotensina II, prostaglandinas e (ADH: antidiuretic hormone), também conhecido
bradicinina); como vasopressina. Quando os volumes de sangue
♦♦ maturação de hemácias na medula óssea e de água corporal total estão baixos, o hipotálamo
(eritropoietina); desencadeia a secreção do ADH. Este age reduzindo

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

a taxa de fluxo da urina e aumentando a sua Sistema Renina-Angiotensina


concentração. Ou seja, a ação do ADH permite que Este sistema tem efeitos poderosos no controle
os rins diminuam as perdas urinárias de líquido, mas da pressão arterial e na homeostase do sódio.
continuem a excretar os solutos. Essas ações são coordenadas no rim, no sistema
Além da água, a função renal mantém a cardiovascular e no nervoso central. Juntamente
concentração de eletrólitos (ex.: sódio, potássio, com o impacto na pressão arterial, o sistema renina-
fósforo, cálcio, magnésio) dentro da faixa de angiotensina também influencia vários processos, de
normalidade no líquido extracelular. O sódio apresenta- resposta inflamatória e imunológica à longevidade.
se em maior concentração no meio extracelular do Em explicação simplificada, a queda da concentração
que no intracelular. O potássio, por sua vez, está de cloreto de sódio no filtrado glomerular estimula a
predominantemente no meio intracelular. produção da renina. Já a alta concentração do sal
A produção de urina é a tarefa mais elementar dos faz o efeito inverso. A redução da pressão arterial
rins. Junto com os pulmões, os rins são a principal via estimula os barorreceptores a ativarem a secreção
de excreção dos restos potencialmente prejudiciais da renina. E o aumento da atividade simpática renal
do metabolismo. Os rins eliminam várias substâncias ou da concentração de catecolaminas circulantes
resultantes do catabolismo das proteínas, dos lipídeos estimula a liberação da renina (enzima que cataboliza
e dos carboidratos. Os excessos não utilizados de a clivagem do aminoácido angiotensinogênio a
vitaminas e de minerais são excretados na urina. angiotensina I). Depois de secretada, a renina age
Os metabólitos de alguns medicamentos e venenos sobre o angiotensinogênio (produzido primariamente
também são eliminados pelos rins. no fígado, mas também nos rins) plasmático, que é
A formação da urina começa com a filtração de um transformado em angiotensina I. A ação da enzima
líquido quase sem proteínas, que vai dos glomérulos conversora de angiotensina (ECA) transforma a
para o espaço de Bowman. A barreira glomerular angiotensina I em sua forma biologicamente ativa, a
permite a livre passagem da água e de pequenos angiotensina II. As ações biológicas são executadas
solutos. Mas, retém a maioria das proteínas e grandes por meio de receptores específicos de alta afinidade
moléculas, assim como todas as células sanguíneas. à angiotensina II, separados em duas classes
O principal determinante para a passagem pelo filtro farmacológicas, AT1 e AT2 (Fig. 3). Cada um tem funções
glomerular é o tamanho da molécula. distintas ligadas a vias intracelulares específicas.
A urina é formada por 95% de água (1). Os Diretamente, a angiotensina II estimula a reabsorção
restantes 5% são solutos diversos: 60% de produtos de sódio, que é um potente vasoconstritor, sendo
nitrogenados (ureia, ácido úrico, creatinina e amônia) capaz de diminuir a taxa de filtração glomerular pela
e 40% de sais inorgânicos (cloreto de sódio, fosfato de diminuição do fluxo sanguíneo renal. Indiretamente,
cálcio, sulfato de cálcio, sódio, potássio e magnésio). a angiotensina II ativa a síntese e a secreção da
Pelo fato de ser o soluto extracelular mais aldosterona, que atua na reabsorção do cloreto de
abundante, a quantidade de sódio no corpo determina sódio e na secreção de potássio.
o volume de líquido extracelular. A regulação é
realizada por quatro sistemas diferentes: 1) sistema Peptídeos Natriuréticos
nervoso simpático, 2) sistema renina-angiotensina- Esses são uma família de hormônios vasoativos
aldosterona, 3) peptídeos natriuréticos e 4) hormônio que tem papel na homeostasia do sal e da água.
antidiurético (vasopressina). Outra ação é a capacidade vasodilatadora, que
diminui a pressão arterial sistêmica e aumenta a taxa
Sistema Nervoso Simpático de filtração glomerular.
Neste sistema há receptores vasculares que são
capazes de perceber uma queda do volume circulante Hormônio Antidiurético ou Vasopressina
e, com isso, aumentar o tônus simpático renal. Com Este hormônio estimula a retenção de líquido
isso, ocorre aumento da reabsorção renal de sal e pelo organismo. Sua secreção está diretamente
diminuição do fluxo sanguíneo renal. relacionada com a hiperosmolaridade do líquido
extracelular e com a depleção de volume. Em condição

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A formação e excreção do amônio aumentam
significativamente em situações de acidose
metabólica, sendo a principal via de eliminação
do excesso de íons hidrogênio.

Além disso, o fosfato tampona o líquido intracelular


no rim. Outros compostos orgânicos, como o citrato,
também auxiliam no equilíbrio acidobásico. Por fim,
os metabólitos de aminoácidos podem moderar as
reações de ácidos e bases. Pequenas variações nas
concentrações, tanto de potássio quanto de hidrogênio,
podem criar situações de risco de morte. Por isso, há
um sistema de regulação altamente sensível e preciso
para a excreção de potássio e hidrogênio na urina.
Um distúrbio do potássio pode causar alteração na
acidez. Variações na acidez podem afetar o equilíbrio
do potássio. Os principais reguladores do equilíbrio
Fig. 3 Esquema do sistema renina-angiotensina-aldosterona
interno do potássio são: insulina, agonistas beta2-
adrenérgicos, aldosterona e pH. Dentre esses, a
de desidratação, a urina eliminada apresenta pequeno
insulina parece ser o principal, em curto prazo.
volume (menos de 1 litro por dia) e alta osmolaridade
(até 1.200 mOsm/kg H2O). Além dos íons, a ureia FUNÇÃO ENDÓCRINA
também é muito importante para a hiperosmolaridade.
Quando a ingestão de água é elevada, o fluxo urinário Secreção da Enzima Renina
pode chegar a 14 litros por dia, com osmolaridade Conforme já apresentado, um processo hormonal
inferior a do plasma. Porém, é importante ressaltar controlado pelos rins é o sistema renina-angiotensina-
que essas alterações no volume da urina não afetam aldosterona. Os glomérulos secretam a enzima
obrigatoriamente a carga de excreção diária de solutos. renina, que estimula, a partir do angiotensinogênio,
a formação da angiotensina I. Esta é convertida em
EQUILÍBRIO ACIDOBÁSICO angiotensina II, que é um vasoconstritor que estimula
Também, junto com os pulmões, os rins mantêm o a glândula adrenal a produzir a aldosterona. Quando
pH do sangue dentro de valores estreitos e rígidos, de o volume extracelular diminui, o sistema é ativado.
aproximadamente 7,4. Quando há grandes variações no A presença de quantidades elevadas de aldosterona
pH, é inevitável o colapso no funcionamento orgânico. no plasma leva os rins a reabsorverem mais sódio
Para manter o equilíbrio acidobásico, os rins controlam (excreta menos), retornando a pressão arterial ao
a taxa de excreção dos íons hidrogênio, sódio e potássio normal. Quando o volume extracelular aumenta, o
e a concentração do bicarbonato nos líquidos corporais. reverso acontece. Portanto, mesmo que a hipertensão
O bicarbonato carrega íons hidrogênio para o rim, não seja a causa básica da DRC, quanto mais o
onde são removidos e reabsorvidos, retornando para problema progride, maiores são as dificuldades para
a corrente sanguínea, quando necessários. Portanto, o controle pressórico, em virtude da perda de controle
a manutenção da concentração de bicarbonato pelos do sistema renina-angiotensina-aldosterona.
rins é obtida por dois mecanismos:
yy reabsorção de praticamente todo o bicarbonato Produção da Eritropoietina
filtrado. A eritropoietina (EPO) é responsável pelo controle
yy obtenção de “novos” íons bicarbonato, pela da produção de células vermelhas do sangue, por
excreção de íons hidrogênio, via tampões meio de seu estímulo, maior ou menor, à medula
não bicarbonato do lúmen tubular e via íons óssea. Portanto, a falta da EPO, no caso de doença
amônio (NH4 - formado da degradação da renal, resulta em anemia.
glutamina, levando consigo um íon hidrogênio).

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

Ativação da Vitamina D e a expressão do Klotho (3). O Klotho funciona como


A vitamina D refere-se a dois precursores um coreceptor que permite que o FGF23 suprima a
biologicamente inertes (pró hormônios): a vitamina D2 síntese e a secreção do hormônio PTH nas glândulas
(ergocalciferol) e a vitamina D3 (colecalciferol). Ambos da paratireoide. O Klotho transmembrana é necessário
têm comportamentos semelhantes e são chamados para o FGF23 ligar-se ao seu receptor nos rins e
de 25-hidroxivitamina D. A vitamina D entra no corpo glândulas da paratireoide. As ações do FGF23 nos
por dois caminhos: pele, após a ação de a luz solar, e rins e nas glândulas da paratireoide parecem servir
alimentação. A radiação ultravioleta do sol na epiderme para o objetivo primário de manter o equilíbrio do
converte a 7-dehidrocolesterol em pré vitamina D3. fósforo na doença renal, com o aumento da excreção
Esta é convertida em vitamina D3 biologicamente urinária e redução da absorção intestinal do mineral.
inativa. Independentemente da fonte, somente após A redução da absorção intestinal do cálcio ocorre
sofrer uma hidroxilação no fígado e outra no rim é que por meio da redução das concentrações da vitamina
a vitamina D se converte à sua forma ativa. Outros D3. Todo esse mecanismo envolve os ossos e os
tecidos e órgãos, que não os rins, também podem rins. Portanto, alterações no FGF23 e no Klotho
fazer a hidroxilação da vitamina D. Já ativada (1,25 plasmáticos são manifestações precoces, que
dihidroxicolecalciferol ou 1,25 (OH)2 vitamina D3 refletem o desequilíbrio do fósforo na DRC. Por isso,
ou calcitriol), ela participa da absorção intestinal do provavelmente, poderão ser objetivos terapêuticos
cálcio e do fósforo. Portanto, uma consequência da para melhorar o risco de complicações da doença.
deficiência da vitamina D3 é a hipocalcemia. Esta afeta
diretamente as glândulas da paratireoide, estimulando
a produção do hormônio PTH. O problema leva ao PATOLOGIA RENAL
chamado hiperparatireoidismo secundário, que pode
desencadear a osteodistrofia renal. Nesse contexto, GENERALIDADES
está envolvido o FGF23 (fibroblast growth factor 23), Nessa seção serão apresentadas um resumo
um hormônio circulante e produzido, principalmente, breve de enfermidades renais comuns.
nos ossos (Fig. 4). O FGF23 regula a homeostase A nefropatia por IgA (imunoglobulina A) é
sistêmica do fosfato, o metabolismo da vitamina D3 uma doença glomerular extremamente comum,

Fig. 4 Mecanismo de regulação da vitamina D3 ativa e do fósforo.

11
caracterizada por hematuria recorrente, que acontece primárias da hipoalbuminemia são as perdas
frequentemente após um quadro infeccioso. urinárias e o aumento inapropriado na taxa de
A estenose (redução da luz tubular) da artéria catabolismo da albumina. Embora a taxa de síntese
renal diminui o fluxo glomerular, levando ao estímulo da albumina esteja elevada, ela é insuficiente para
do sistema renina-angiotensina-aldosterona, o qual repor as perdas resultantes da excreção urinária e
resulta em hipertensão arterial sistêmica de causa do catabolismo. Devido à função de manutenção
renovascular. da pressão oncótica plasmática, a redução da
A síndrome de Falconi é uma disfunção, hereditária albumina plasmática pode ter papel importante na
ou adquirida (ex.: uso de metais pesados, outros patogênese do edema. Este também ocorre devido
agentes químicos, deficiência de vitamina D, mieloma à retenção renal primária de sódio.
múltiplo e amiloidose), do túbulo proximal do néfron. É Além da albumina, o fígado tenta compensar a
uma síndrome complexa e rara. Na síndrome, ocorre perda com o aumento da síntese de outras proteínas,
distúrbio na reabsorção de glicose, aminoácido, fosfato, como a lipoproteína de baixa densidade (LDL), de
bicarbonato e potássio. Ocorre, também, proteinuria e muito baixa densidade (VLDL) e lipoproteína(a). Estas
alteração na concentração e na acidificação da urina. contribuem para o desenvolvimento da dislipidemia
A síndrome pode evoluir para a DRC. (hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia). Há,
Há duas anomalias de desenvolvimento. Uma é a também, perda de inibidores de coagulação na
ausência congênita (agenesia) de um ou ambos os urina e síntese elevada de fatores pró coagulantes
rins. Outra anomalia é a hipoplasia renal. A agenesia pelo fígado. Com isso, ocorre a hipercoagulação.
unilateral não é muito rara, com incidência de 1/1.000 Também há perda de imunoglobulinas na urina, que
(1). Já a hipoplasia renal congênita é bastante rara. aumenta o risco de infecções.
Além disso, um indivíduo pode nascer com mais de
dois rins. Em geral, são rins menores. Porém, uma DOENÇA RENAL CRÔNICA
das malformações renais mais comuns é a fusão Os rins são órgãos extremamente ativos e
dos polos inferiores dos rins. Forma-se o rim em resistentes. Porém, quando falham, as consequências
ferradura, que está presente em 0,25% da população são devastadoras. Até que, pelo menos, 25%
(1). Rins desse tipo têm risco elevado de infecção e da função dos rins diminuam, nenhum problema
predisposição à formação de cálculos. perceptível se manifesta. As alterações estruturais nos
glomérulos (perda da barreira de filtração glomerular),
SINDROME NEFRÓTICA hereditárias ou não, estão associadas à proteinuria.
A perda da barreira pode levar a uma série A redução adquirida do tamanho renal está,
de doenças renais, como as glomerulonefrites principalmente, associada à nefropatia crônica.
primárias, glomerulosclerose focal e segmentar, Dependendo do grau, ocorre acúmulo de líquido
que apresentam um quadro de síndrome nefrótica no organismo, com consequente hiper-hidratação,
com proteinuria maciça. Portanto, a síndrome hipervolemia, edema, hipertensão arterial e outros.
nefrótica é uma glomerulopatia. Além disso, as concentrações séricas extremamente
A síndrome nefrótica é um dos maiores desafios elevadas de eletrólitos tornam a vida inviável.
da nefrologia, pois ainda tem muitos aspectos A DRC caracteriza-se pela perda lenta, progressiva
desconhecidos. Além de perdas persistentes e da função dos rins. Embora a maioria seja irreversível,
maciças de proteína na urina (>3,5 g/dia) e de alguns casos de DRC podem ser reversíveis,
hipoalbuminemia (<3,0 g/L), a síndrome nefrótica espontaneamente ou após tratamento.
caracteriza-se pelo edema periférico, dislipidemia É definida como anormalidades na estrutura ou
acentuada e hipertensão (1). A doença trombótica função dos rins, presente por tempo maior que três
também é observada. Há distúrbio do metabolismo meses, com implicações para a saúde (4). Essas
da vitamina D, do cálcio e de outros minerais. E, anormalidades são manifestadas por mudanças
menos frequentemente, anemia microcítica. patológicas, incluindo alterações na composição do
A albumina é a proteína mais abundante no sangue, da urina ou nos testes de imagem radiográfica.
plasma. Na síndrome nefrótica, a maior alteração é a Pelo fato de se instalar lentamente, há adaptações
redução na concentração plasmática dela. As causas orgânicas sistêmicas com o passar do tempo.

12
Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

Os fatores de risco para o desenvolvimento da DRC progressão da doença continua e, eventualmente,


são, principalmente, diabetes mellitus, hipertensão, chega à categoria G5. Com o envelhecimento, algum
tabagismo, doenças renais proteinuricas, dislipidemia, grau de diminuição da função renal é normal. Por
obesidade e condição inflamatória crônica. O diabetes isso, as categorias G1 e G2 podem ser encontradas
é, atualmente, a principal causa de DRC em países em indivíduos saudáveis com mais de 60 anos de
desenvolvidos e, rapidamente, vem se tornando idade, sem proteinuria (sem progressão). Esse
líder, também, em países em desenvolvimento. A quadro pode indicar risco cardiovascular. Por outro
caracterização da doença renal diabética é baseada, lado, um jovem de 35 pode estar na categoria G1,
em parte, no achado de excreção urinária elevada de mas apresentar proteinuria moderada. Esse indivíduo
albumina e no aumento da pressão arterial. tem mais risco de evoluir na DRC.
Nos glomérulos, de cada 100 mL de líquido, 10 a À medida que o dano renal progride, o corpo se
20 mg de proteínas são filtradas (1). Normalmente, a torna incapaz de excretar água, ácidos, sódio e outros
proteína filtrada é reabsorvida nos túbulos proximais. produtos (resíduos) do metabolismo. Com isso, o
O dano aos glomérulos promove o vazamento de organismo não consegue manter a homeostase.
proteína. A maior parte é de albumina. Portanto, O acúmulo de ácidos, por exemplo, refletido pelos
a albuminuria é um marcador de dano renal e níveis sanguíneos baixos de bicarbonato, traz a
achado diagnóstico importante. Níveis elevados acidose metabólica como consequência. Também,
de albuminuria sugerem doença renal diabética, em pessoas com diabetes, a redução da função
glomerular não diabética ou do transplante. renal pode promover a hipoglicemia. Esse efeito
Também estão associados à obesidade e à síndrome ocorre devido ao clearance alterado da insulina
metabólica. Além disso, a albuminuria é achado (prolongamento da vida-média do hormônio
importante de prognóstico. Níveis elevados estão circulante), uso de agentes hipoglicemiantes orais
associados com a progressão mais rápida da DRC e e diminuição da gliconeogênese renal. Então, não
com o aumento do risco de doença cardiovascular. é difícil que, conforme diminui a função renal, os
Porém, embora a albuminuria seja um achado pacientes com diabetes precisem reduzir as doses
comum na DRC, não é uniforme. A albuminuria é utilizadas de hipoglicemiantes orais e/ou insulina.
idealmente expressa em mg/g de creatinina. Diretrizes sugerem que a diálise seja iniciada quando
O KDIGO (4) recomenda classificar a DRC um ou mais dos seguintes fatores estejam presentes
com base na causa, na categoria da TFG e na (4): sintomas ou sinais atribuíveis à insuficiência renal
albuminuria (Quadro 1, Fig. 5). Essa classificação (serosite, anormalidades acidobásicas ou eletrolíticas,
permite identificar os riscos de desfechos negativos. prurido); incapacidade de controlar a condição
O estabelecimento da causa facilita o tratamento de volume ou a pressão sanguínea; deterioração
específico, com o objetivo de modificar as projeções progressiva do estado nutricional, sem resposta à
de risco. Para o diagnóstico da DRC, pelo menos intervenção alimentar; ou alteração cognitiva. Isso
um critério, como a albuminuria, deve estar presente frequentemente, mas não invariavelmente, ocorre com
por, no mínimo, três meses (4). a TFG entre 5 e 10 mL/min/1,73 m2.
Os pacientes com DRC apresentam perda TFG
durante meses ou anos. Na maioria dos casos, a

Quadro 1. Probabilidade para doença renal crônica, baseada na causa, na taxa de filtração glomerular e na
albuminuria (4)
Causa Categoria TFGe* Albuminuria (proteinuria)**
Doença glomerular 1 ≥90 A1 (<30) A2 (30-300) A3 (>300)
Doença túbulo-intersticial 2 60-89 - + ++
3A 45-59 + ++ +++
Doença vascular
3B 30-44 ++ +++ +++
Doença congênita 4 15-29 +++ +++ +++
Doença cística 5 <15 +++ +++ +++
*TGFe: taxa de filtração glomerular estimada em mL/min/1,73 m2; **mg/g de creatinina. Risco para DRC: (-) Baixo risco (ausência de DRC se não houver outros marcadores de lesão renal);
(+): Risco moderado; (++): Alto risco; (+++): Muito alto risco.

13
Fig. 5 Prognóstico de DRC pela TFG e categorias de albuminuria. Fonte: KDIGO, 2012 (4).

Taxa de Filtração Glomerular a produção do FGF23 por meio de mecanismos


A função renal, ou TFG, não deve ser avaliada diretos e indiretos. Os níveis do FGF23 aumentam
com base nos níveis séricos isolados de creatinina progressivamente na DRC. Nos estágios avançados da
e de ureia. A TFG deve ser medida pelo clearance doença, o PTH adicionalmente amplifica a expressão do
(depuração). Métodos que usam a creatinina FGF23 para compensar o aumento do efluxo de fosfato
sérica são recomendados para o diagnóstico, do osso, causado pelo renovação óssea excessiva.
classificação e acompanhamento da DRC (4). A O PTH estimula e aumenta os níveis plasmáticos de
maneira mais simples é fazer estimativa por meio FGF23 e de vitamina D3. O aumento plasmático da
de equações validadas (Quadro 2). Para a maioria vitamina estimula o FGF23 e, diretamente, suprime
dos pacientes nas categorias G4 e G5 da DRC, as os níveis de PTH. A elevação plasmática da vitamina
equações de estimativa são consideradas acuradas. D3 também estimula a produção do Klotho nos rins.
É recomendada a utilização da equação CDK-EPI O Klotho funciona como um hormônio regulador de
para a estimativa da TFG (4). Mas há necessidade fosfato e de cálcio para, diretamente ou indiretamente,
de utilização de outros métodos, como a cistatina C suprimir o PTH, a vitamina D3 e a produção e liberação
sérica, para a confirmação do diagnóstico da DRC. do FGF23. A ação do Klotho nos rins é prevenir a
retenção de fosfato e a perda de cálcio.
Hiperparatireoidismo Secundário e Doença Na DRC, esses mecanismos estão desordenados.
Cardiovascular
O Klotho renal está diminuído, seguido pela redução
O FGF23 parece ser uma resposta adaptativa
do Klotho plasmático. O FGF23 está elevado. O Klotho
inicial que conduz às reduções nos níveis de vitamina
aumenta a produção do FGF23 que, por sua vez,
D3, na absorção gastrintestinal de cálcio e de fosfato,
suprime a produção da vitamina D3 nos rins. O resultado
resultando no hiperparatireoidismo secundário da
é a promoção do hiperparatireoidismo secundário.
DRC (8). O passo biológico inicial, ou adaptação
Níveis plasmáticos baixos de cálcio participam do
coordenada, serve para proteger o organismo de
desenvolvimento do hiperparatireoidismo secundário.
efeitos adversos do excesso de retenção de fosfato.
A hiperfosfatemia aumenta ainda mais o FGF23 e os
O segundo passo envolve os efeitos do PTH na
níveis de PTH, e reduz os níveis de Klotho no sangue.
remodelação óssea que, adicionalmente, estimula

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

Quadro 2 Equações para estimar a taxa de filtração glomerular


Para pessoas >18 anos de idade:
Equação de Cockroft-Gault (7)
Homens: Clearance de creatinina (mL/min) = [(140 – idade) x peso]
creatinina sérica x 72
Mulheres: Clearance de creatinina (mL/min) = [(140 – idade) x peso] x 0,85
creatinina sérica x 72
É recomendado corrigir o resultado para superfície corporal de 1,73m2
Equação abreviada do MDRD (8)
TFG = 186 x (creatinina sérica)-1,154 x (idade)-0,203 x 0,742 (se mulher) x 1,212 (se negro)
Onde: NUS = nitrogênio ureico sanguíneo
Para crianças e adolescentes:
Equação de Schwartz (9)
TFG (mL/min/1,73m2) = k x comprimento (em cm)/creatinina plasmática (em mg/dL)
Onde k é uma constante de proporcionalidade, em função da excreção urinária de creatinina por unidade de tamanho corporal.
Valores de k:
Grupo de idade k (valor médio)
Criança nascida de baixo peso (<1 ano de idade) 0,33
Criança nascida de peso normal (<1 ano de idade) 0,45
Criança de 1-12 anos 0,55
Meninas de 13-21 anos 0,55
Meninos de 13-21 anos 0,70

Os níveis plasmáticos altos de PTH, fosfato e FGF23, Os microorganismos são abundantes no corpo
e baixos de vitamina D3 e de Klotho contribuem para humano. E a maioria deles vive no intestino. O equilíbrio
o desenvolvimento de complicações, como doença entre simbiontes e patobiontes assegura a integridade
óssea metabólica, hiperparatireoidismo secundário, da barreira intestinal e a função renal normal (10). Rins
cardiomiopatia e calcificação vascular. A Fig. 6 mostra saudáveis se comunicam com a microbiota intestinal
um esquema dos mecanismos envolvendo o FGF23 e por meio de sinais celulares e moleculares para
Klotho nos rins normais e na DRC. assegurar a homeostase normal da microbiota rim-
Outros fatores podem contribuir para o aumento intestino (Fig. 7). O desequilíbrio no intestino promove
do FGF23 plasmático. Entre eles, a inflamação e a perda da integridade da barreira intestinal, ativação de
deficiência de ferro. Por outro lado, há fatores que células imunológicas e secreção de citocinas que, mais
reduzem os níveis plasmáticos do FGF23, como tarde, deterioram a função renal e a simbiose.
a restrição da ingestão de fósforo alimentar, o uso Outro ponto é que, quando os humanos se
de quelantes de fósforo, de cinacalcet e outros alimentam, eles também nutrem sua microbiota com
calcimiméticos, e de nicotinamida. diversos nutrientes. A microbiota compete com o
hospedeiro para certos nutrientes (11). Um exemplo
Disbiose Intestinal é a suplementação oral da L-carnitina, que promove o
Evidências indicam que a microbiota intestinal tem crescimento de bactéria que a metaboliza, e pode levar
papel primordial na patogênese e no desenvolvimento à redução da absorção do nutriente. Alguns produtos
da DRC (9). Os desequilíbrios microbianos, conhecidos finais (moléculas de excremento) da alimentação
como disbiose, podem contribuir para o acúmulo das bactérias são absorvidos sistematicamente e
de toxinas urêmicas derivadas do intestino (ex.: metabolizados em toxinas urêmicas. Estas podem
sulfato de indoxil e sulfato p-cresol), altos níveis de se acumular, caso não sejam excretadas na urina.
lipopolissacarídeos e desregularização imunológica. A Fig. 8 apresenta um esquema da competição do
Todos esses têm influência direta e forte na patogênese hospedeiro com a microbiota pelos nutrientes e a
da DRC e de complicações associadas à doença. produção de toxinas urêmicas.

15
Fig. 6 Papel fisiológico do Klotho no metabolismo mineral e consequências patofisiológicas de sua deficiência na DRC (8). HPTS = hiperparatireoidismo
secundário

Fig. 7 Esquema comparativo da microbiota do indivíduo saudável e daquele com alteração renal (10).

INJÚRIA RENAL AGUDA imprecisa. Por exemplo: em um dado paciente, pode


O termo “injúria (ou lesão) renal aguda” (IRA) haver diminuição aguda da função renal, como no
substitui a conhecida denominação “insuficiência caso de depleção de volume extracelular, sem que
renal aguda”, que também utilizava a sigla “IRA” haja lesão (injúria) renal.
(12). O uso do termo “lesão” ou “injúria”, ao invés A IRA é uma síndrome, caracterizada pelo declínio
de “insuficiência”, busca retratar a diversidade de rápido e repentino (dentro de 48 h) da função renal,
sinais e sintomas. O termo atual procura refletir as com acúmulo de metabólitos, toxinas e medicamentos
alterações transitórias da função renal com diferentes no sangue. Também há alteração nas funções
desfechos. Porém, mesmo a denominação recente é intrínsecas dos rins. O espectro de sintomas e eventos
é muito amplo e variável. Pode ocorrer anuria, mas

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

Fig. 8 Interação da microbiota do hospedeiro e modulação pelos nutrientes alimentares (11).

também volume urinário elevado. A redução da TFG A evolução da IRA pode ocorrer, mas não
pode ocorrer por período curto ou até a necessidade necessariamente, em quatro fases: a) instalação, b)
de terapia dialítica prolongada. oliguria/anuria, c) pós oliguria, e d) recuperação. A
A IRA é uma condição frequente de pacientes fase inicial é o período em que se dá a instalação
hospitalizados, particularmente daqueles graves. da doença. O principal achado é a diminuição da
Estima-se que de 10 a 30% dos pacientes em produção de urina. A segunda fase é de franca
unidades de terapia intensiva desenvolvam a IRA. escassez (oliguria = diurese de 100-400 mL/24h
Apesar dos avanços, a taxa de mortalidade ainda ou <20 mL/h) ou ausência (anuria = diurese <100
é elevada. A IRA pode ocorrer em rins previamente mL/24h) de urina. Porém, um número considerável de
saudáveis, em decorrência de uma enfermidade pacientes nunca se torna oligurico. A segunda fase pode
de base. Porém, também pode se sobrepor à DRC. durar de oito a 14 dias e é a que apresenta maior taxa
Em princípio, a IRA é reversível. Entretanto, como é de mortalidade. Na fase pós oliguria, o débito urinário
frequentemente causada por uma enfermidade grave, retorna gradualmente ao normal. Mas, também pode
a taxa de mortalidade é extremamente alta. aumentar significativamente (ex.: diurese de quatro litros
Na IRA, há desequilíbrio hidroeletrolítico e acúmulo por dia). Entretanto, os níveis séricos de creatinina e de
de produtos do catabolismo proteico, como ureia e ureia podem não diminuir por vários dias. Essa fase pode
creatinina. O declínio súbito (horas ou dias) da função durar em torno de 10 dias. Na fase de recuperação, há
renal coloca o indivíduo em perigo de vida, pois não melhora progressiva da função renal. O período pode
há tempo para adaptações. Logo, o funcionamento de durar de 10 dias a três meses. Porém, alguns pacientes
diversos outros órgãos e sistemas (coração, sistema evoluem para a DRC quando a condição perdura por
nervoso, pulmões, entre outros) é prejudicado. tempo maior que três meses.
Os sinais e sintomas da IRA são variados. Incluem
a anorexia e as manifestações gastrintestinais Classificação da Injúria Renal Aguda
(náuseas, vômitos) e neurológicas (letargia, A classificação da IRA considera o grau da disfunção
convulsões, polineuropatia periférica). O sangramento renal. Ou seja, o grau de aumento da creatinina e/ou
gastrintestinal é um achado comum devido à da duração da oliguria, incluindo a necessidade de
disfunção plaquetária urêmica e às alterações na terapia dialítica. Um esquema da classificação RIFLE
mucosa. E leva à anemia. (Risk, Injury, Failure and End-Stage Renal Disease)
está apresentado na Fig. 9 (12).

17
O RIFLE divide o grau de disfunção renal em: excessivo de diuréticos e naqueles pacientes com
a) risco; b) injúria (lesão); c) insuficiência; d) perda insuficiência cardíaca congestiva descompensada.
mantida, e e) condição terminal. O escore promove Nestes casos, a osmolaridade urinária está,
uniformidade no manejo do processo da doença, geralmente, maior que 500 mOsm/L. Além disso,
baseado na gravidade. A gravidade é a combinação ocorre diminuição da concentração do sódio urinário,
da creatinina sérica ou TFG e excreção urinária. e a relação ureia/creatinina plasmáticas fica maior
O AKIN (Acute Kidney Injury Network) modificou que 20:1. O parênquima renal está intacto. E a
a classificação RIFLE, incluindo somente RIF (Risk, correção do fluxo renal faz os órgãos voltarem a
Injury e Failure) e estabelecendo um terceiro nível funcionar. Porém, em caso de isquemia prolongada
de estágio, baseado na creatinina sérica (adição pode ocorrer necrose tubular aguda. A restauração
de aumento da creatinina de 0,3 mg/dL ou mais) e rápida (entre 24 e 48h) do fluxo renal diminui o risco.
excreção urinária (13) (Quadro 3). Porém, o critério INTRARRENAL OU INTRÍNSECA. Esta é a menos
AKIN é visto como menos sensível do que o RIFLE. comum. Há lesão do parênquima dos rins. Ocorre
aumento do sódio urinário, e a osmolaridade da urina
Etiologia da Injúria Renal Aguda fica entre 250 e 300 mOsm/L. A necrose tubular
Classicamente, a etiologia da IRA é dividida em aguda é a causa principal da IRA intrínseca. A condição
quatro categorias: a) obstétrica, b) clínica, c) pós- é quase sempre provocada por isquemia renal ou pela
trauma e d) pós-cirúrgica. A obstétrica tem se tornado ação de toxinas. Nesse caso, a restauração do fluxo
rara. Ambas, a obstétrica e a clínica, em geral, têm renal não reverte imediatamente o problema. Embora
bom prognóstico. Porém, a pós-trauma e a pós- seja, geralmente, reversível, a isquemia grave pode
cirúrgica grave têm alta taxa de mortalidade. levar à necrose do córtex do rim, que resulta em
Outra categoria de separação da etiologia da IRA insuficiência renal irreversível.
é: a) pré renal (diminuição do fluxo renal); b) intra- PÓS RENAL. Pode ocorrer quando ambas as
renal ou intrínseca (lesão do parênquima dos rins); c) vias de saída dos rins (ou uma via, em caso de rim
pós-renal (obstrução das vias urinárias). único) estão obstruídas. A condição está, geralmente,
PRÉ-RENAL. É o tipo mais comum de IRA. associada às obstruções do trato urinário baixo, como
Há diminuição do fluxo sanguíneo dos rins, baixo em casos de litíase.
débito cardíaco e redução do volume intravascular O Quadro 4 resume as categorias da IRA de
efetivo. Mas não há lesão renal. A razão pode ser acordo com a etiologia. As categorias pré e pós-
a desidratação. Também pode ocorrer devido ao uso

Fig. 9 Critério RIFLE de classificação da IRA. TFG = taxa de filtração glomerular; creat = creatinina sérica.
Fonte: Bellomo et al, 2007 (12).

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

Quadro 3. Sistema de estágios para a injúria renal aguda pelo AKIN (13)
Estágio da IRA Creatinina sérica Excreção urinária
I Aumento da creatinina sérica ≥0,3 mg/dL ou ≥150-200% <0,5 mL/kg/h por >6 h
do basal
II Aumento da creatinina sérica para ≥200-300% do basal <0,5 mL/kg/h por >12 h
III Aumento da creatinina sérica para ≥300% do basal ou ≥4 <0,3 mL/kg/h por >24 h, ou anuria por >12 h
mg/dL com aumento agudo de, pelo menos, 0,5 mg/dL

renal são reversíveis. Na pré renal, a restauração de aporte nutricional que pode precipitar a hipervolemia
do volume circulante melhora a perfusão renal. ou a uremia (ex.: em casos de hipercatabolismo grave).
Na pós-renal, a remoção da obstrução do trato A avaliação para a necessidade de terapia substitutiva
urinário normaliza o fluxo sanguíneo. Porém, é renal deve ser feita diariamente. Os níveis séricos
importante reconhecer que a IRA geralmente tem de ureia maiores que 210 mg/dL, na presença das
vários insultos fisiológicos distintos que ocorrem situações acima citadas, indicam a diálise.
simultaneamente. Exemplos são a hipoperfusão renal O momento da intervenção dialítica na IRA é
devido ao choque, hipovolemia, síndrome da resposta diferente da DRC. Em muitos casos de IRA, há falência
inflamatória sistêmica associada à sepse, infecção, de múltiplos órgãos. Com isso, pode haver excesso
obstrução vascular e causas iatrogênicas, incluindo de volume sem grande elevação da ureia plasmática.
medicamentos nefrotóxicos (antibióticos, antifúngicos, Portanto, há necessidade de remoção mais intensa
hipertensivos e agentes anti-inflamatórios) e exposição de líquido. Devido à instabilidade clínica do paciente
a contrastes radiológicos (14). agudo grave, a melhor opção de terapia de substituição
renal é a lenta e contínua. As características dessas
Indicação de Terapia de Reposição Renal opções de terapia serão apresentadas mais adiante.
A terapia de reposição renal na IRA é indicada
quando há evidência clínica de sintomas urêmicos
ou alterações bioquímicas no balanço de solutos e MÉTODOS DIALÍTICOS
hídrico. Exemplo: presença de hipercalemia, acidose
e/ou hipervolemia graves e refratárias ao tratamento O início do programa dialítico em momento
medicamentoso. Outras indicações incluem a adequado é essencial para evitar a piora dos
pericardite urêmica, a encefalopatia ou a necessidade sintomas urêmicos e as complicações graves. Os
riscos são: desnutrição, sobrecarga hídrica intratável,
Quadro 4. Etiologia da injúria renal aguda
hipercalemia incontrolável, sangramento, depressão,
Pré Renal
yy Contração do volume intravascular: hemorragia, queimaduras,
alterações cognitivas, neuropatia periférica, diminuição
vômitos/drenagem gástrica, diarreia (leva à desidratação), da capacidade funcional, infertilidade e maior
trauma
suscetibilidade às infecções. Também, a escolha da
yy Septicemia/choque séptico
yy Hipotensão modalidade dialítica em tempo adequado permite a
yy Insuficiência cardíaca implantação de acesso vascular ou peritoneal sem
yy Insuficiência hepática
emergências. A informação sobre as opções de diálise
Intrínseca
yy Necrose tubular aguda (isquemia prolongada, agentes e o apoio ao paciente e à família, em relação à liberdade
nefrotóxicos: metais pesados, aminoglicosídeos, contrastes de escolha, devem ser honrados pelos profissionais.
radiológicos, toxinas)
yy Lesão de arteríolas, como hipertensão arterial grave, vasculite, De modo geral, na DRC, a diálise é iniciada
doenças microangiopáticas (púrpura trombocitopênica, quando a TFG está entre 15 e 8 mL/min/1,73m2. Os
síndrome hemolítico-urêmica)
yy Glomerulonefrite aguda
pacientes diabéticos, que apresentam mais risco de
yy Nefrite intersticial aguda (induzida por drogas) complicações, têm indicação de iniciar mais próximo
yy Depósitos intra-renais (ex.: ácido úrico)
yy Embolização por colesterol (ex.: pós-angioplastia)
a 15 mL/min/1,73m2. O início da terapia pode ser
retardado enquanto o paciente estiver assintomático,
Pós renal
yy Obstrução ureteral (cálculo, tumor, compressão externa) aguardando o transplante, esperando a colocação
yy Obstrução vesical (bexiga neurogênica, hipertrofia prostática, do acesso permanente para diálise ou quando,
carcinoma, cálculo, estenose uretral, coágulo)

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após orientação adequada, preferiu se mantiver em de grosso calibre no pescoço (veia jugular interna)
terapia conservadora. ou na virilha (veia femoral). Porém, o cateter deve
ser de uso temporário. Pode ser usado em caso
HEMODIÁLISE de indicação imediata da HD, quando o acesso
A hemodiálise (HD) é um processo de filtração permanente (FAV) ainda não está disponível.
do sangue que remove o excesso de líquido e O ideal é a implantação precoce da FAV antes da
metabólitos. O maior problema dessa modalidade é o necessidade de o paciente realizar a primeira diálise.
fato de, geralmente, ser intermitente. Ou seja, ocorre Com isso, pode ser evitada a inserção do cateter
acúmulo de substâncias tóxicas e de líquido nos temporário. As infecções no cateter estão associadas
intervalos interdialíticos. Na HD, um “rim artificial” com o aumento da mortalidade. Em relação à FAV,
(dialisador) é usado para depurar o sangue (Fig. 10). a estenose venosa, conduzindo à trombose, é a
principal complicação que leva à perda do acesso.
Acesso Vascular para Hemodiálise Após a criação de uma FAV, o acesso deve ser
A HD exige um acesso vascular. Este acesso é examinado por um profissional experiente após
chamado de “linha da vida”. Pelo acesso vascular, o quatro a seis semanas. Baseado no exame físico,
sangue é removido, enviado para dentro do dialisador, com ou sem ultrassom, decide-se se a FAV está
depurado e, então, retorna ao paciente. Há diversos pronta para o uso. Caso não esteja, o exame é
tipos de acesso venoso para HD (15). E todos requerem repetido a cada duas a quatro semanas. Pode levar
uma pequena cirurgia. A fístula arteriovenosa (FAV) é a quatro a cinco meses para o acesso estar adequado
mais indicada e preferida para a necessidade de diálise para uso. Em alguns casos, pode não funcionar. E
de longo prazo (Fig. 11). Na FAV, uma artéria e uma veia outra criação de FAV deve ser programada.
são ligadas internamente, em geral, no antebraço. Com
o tempo, a veia aumenta de calibre, ou “arterializa”. Mecanismo de Hemodiálise
Esse processo é chamado de maturação da FAV, e O dialisador, ou filtro, é composto por fibras ocas,
pode levar meses. Pelo fato da maturação ocorrer dispostas em paralelo (Fig. 12). As fibras têm poros,
naturalmente, o acesso é chamado de FAV nativa. pelos quais ocorre eliminação de água e de solutos
Este tipo de acesso vascular para HD está associado de peso molecular baixo e médio. O dialisador contém
ao menor risco de complicações e de necessidade de dois compartimentos: um para o sangue e outro
intervenção e à melhor patência em longo prazo. Em para a solução de diálise. Os dois compartimentos
uma sessão de HD, duas agulhas são inseridas na FAV: são separados por uma membrana semipermeável.
uma é usada para enviar o sangue para o dialisador e Então, o excesso de líquido e de produtos finais
a outra serve para retorná-lo ao paciente. do metabolismo passa do sangue, através dessa
Um cateter, ou cânula, na veia jugular interna ou membrana, para dentro do dialisato. Membranas de
na femoral também pode ser utilizado. O cateter é diferentes espessuras e áreas de superfície podem
um tubo simples e estreito, inserido em uma veia ser usadas, dependendo da quantidade de líquido e

Fig. 10 Máquina e sistema da hemodiálise

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

Fig. 11 Fístula arteriovenosa (FAV)

Fig. 12 Dialisador e membranas dialíticas (fibras ocas)

metabólitos a ser removida. Elas também são feitas tem prescrição relativamente fixa. Em média, cada
de materiais diversos, incluindo acetato de celulose, sessão de HD convencional tem quatro horas de
cuprofane, policarbonato e polisulfona. duração, três vezes por semana. Porém, embora
A solução, chamada de banho de diálise ou incomum, a HD também pode ser realizada na
dialisato, é composta de sódio, cálcio e potássio, residência do paciente. Neste caso, o programa pode
além de magnésio, cloreto e bicarbonato. Em oferecer maior flexibilidade e conveniência. Porém, o
alguns centros, a glicose também é utilizada. alto custo e a dificuldade de execução são os maiores
A concentração de eletrólitos e de minerais do limitantes da modalidade domiciliar da HD.
dialisato pode variar. Quanto menor a concentração, Um dos esquemas propostos como alternativa ideal,
mais eletrólitos ou minerais saem do sangue para o comparado à modalidade convencional intermitente,
dialisato durante o processo dialítico. é a HD diária de curta duração. O procedimento pode
Então, durante a HD, o sangue flui para uma ser realizado na unidade de diálise ou em domicílio.
direção, dentro das fibras ocas, enquanto o dialisato flui Os pacientes são dialisados diariamente, por duas
para o lado oposto, por fora das fibras. As moléculas a três horas, com folga aos domingos. Outra opção
grandes, como a albumina e as células vermelhas do é a HD diária noturna prolongada. Esta é específica
sangue, não atravessam a membrana semipermeável. para o tratamento domiciliar. O esquema proposto
Já aquelas menores, como a ureia, a glicose, o sódio, é de cinco a sete sessões semanais de oito horas
o potássio e as vitaminas, passam através dela. por noite, com fluxo de sangue mais lento do que
o convencional. Outro esquema proposto é a HD
Modalidade e Programa de Hemodiálise intermitente de longa duração. Neste caso, são
O programa de HD pode ser realizado de várias propostas três sessões semanais de oito horas cada.
maneiras. A mais comum é em um centro, dentro Com base nas necessidades de cada paciente,
de um hospital ou em uma unidade (clínica) são selecionados o tipo do dialisador, a composição
independente. Nesses casos, o procedimento é do dialisato, a taxa de fluxo de sangue e o tempo de
realizado por equipe especializada. E o esquema duração da diálise.

21
Avaliação da Adequação da Hemodiálise semipermeável (Fig. 13). A membrana peritoneal é
Eficiência ou adequação dialítica refere-se à uma camada de mesotélio, composta de muitos
capacidade da diálise em eliminar toxinas, mantendo vasos sanguíneos e capilares. Essa membrana regula
o equilíbrio hidroeletrolítico, acidobásico e nutricional. a troca de água e de solutos entre seus capilares
A quantificação da adequação dialítica e a prescrição intersticiais e o líquido de diálise. Ou seja, remove
da dose adequada são importantes para evitar os solutos acumulados no sangue, como a ureia, a
sintomas e outras complicações. creatinina, o potássio, o fosfato e a água.
KT/VUREIA. É um índice de eficiência dialítica
que utiliza a cinética da ureia como marcador. Integra Acesso Vascular para Diálise Peritoneal
a duração do tratamento e o volume de distribuição O acesso para a DP depende de um cateter na
da ureia. Em HD, o K é o clearance do dialisador cavidade peritoneal. O implante do cateter deve
(mL/minuto). Ele mede a concentração da ureia preceder o início do tratamento para propiciar boa
em amostras de sangue pré e pós-diálise. O t é o cicatrização e adaptação do paciente. Sempre que
tempo da sessão (minutos). O resultado é dividido possível, deve ser realizado, no mínimo, duas semanas
pelo V, que é o volume de distribuição da ureia (mL). antes do início do tratamento dialítico.
Este pode ser calculado por diversas equações ou, Há diversos tipos disponíveis de cateter. Cada
simplesmente, considerado como 58% do peso modelo foi desenvolvido na tentativa de alcançar
corporal do paciente. O objetivo do Kt/Vureia é >1,4 a cicatrização mais adequada do orifício de saída
(mínimo de 1,2) por diálise (16). Em HD, a avaliação e de reduzir os problemas com deslocamento da
é, habitualmente, obtida de uma única sessão de ponta do cateter, de obstruções e vazamento. Os
diálise e extrapolada para a semana. Isso implica que cateteres de silicone apresentam menor reação
todas as sessões tenham a mesma eficácia. O que inflamatória, boa resistência e boa durabilidade. Um
pode não ser verdadeiro. Os fatores determinantes cirurgião experiente ou nefrologista com formação
da concentração plasmática da ureia são: ingestão faz a implantação do cateter.
de proteínas, catabolismo proteico muscular e
tratamento dialítico. Mecanismos de Diálise Peritoneal
PORCENTAGEM DE REDUÇÃO DA UREIA (PRU). No procedimento de DP, uma solução de diálise
Este é outro método de avaliação da adequação (dialisato) é instilada, por meio de um cateter, dentro
dialítica. Porém, é mais simples que o Kt/Vureia. O da cavidade peritoneal (Fig. 14). As toxinas urêmicas
cálculo é feito comparando a ureia plasmática de atravessam a membrana peritoneal, por movimento
antes e após uma sessão de HD. A porcentagem de passivo, e vão dos capilares sanguíneos para dentro
redução, do início para o final da sessão, é a PRU. do dialisato. Este é um composto de eletrólitos, lactato
A recomendação é a redução de 70% (mínimo de e concentrações variáveis de glicose (ou substituto),
65%) para HD três vezes por semana. que o torna hiperosmolar. Então, o excesso de
líquido, de solutos urêmicos e de potássio passa, do
DIÁLISE PERITONEAL espaço vascular, para dentro da cavidade peritoneal,
A diálise peritoneal (DP) é uma modalidade que equilibrando a osmolalidade da solução. Uma vez
utiliza a membrana peritoneal como um filtro “natural”, no dialisato, as toxinas e o excesso de líquido são

Fig. 13 Membrana peritoneal em perspectiva

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Fig. 14 Sistema de infusão e drenagem do dialisato na diálise peritoneal

drenados para fora do corpo. Já a glicose, o lactato mais curto. As bolsas são de 1, 2, 2,5 e 6 litros, com
e, potencialmente, o cálcio fazem o trajeto oposto, as mesmas concentrações de glicose disponíveis
entrando no sangue a partir do líquido de diálise para CAPD (1,5%, 2,5% e 4,25%). Cada ciclo (tempo
infundido na cavidade peritoneal. de infusão até a drenagem) noturno dura menos
A icodextrina ou uma solução de aminoácido pode que uma hora e meia (ex.: 5 ciclos de 1 hora e 19
substituir a glicose, como dialisato. As soluções de minutos, para 7 horas contínuas de diálise). Pacientes
aminoácidos ainda não estão disponíveis no Brasil. com perfil de membrana classificado como alto e
médio transportadores são os maiores beneficiados
Modalidades e Programas de Diálise Peritoneal por esse método. Na diálise peritoneal automatizada
A DP pode ser ambulatorial contínua (CAPD: contínua, o paciente passa o dia com a solução de
continuous ambulatory peritoneal dialysis). Nesta diálise na cavidade peritoneal. Na diálise peritoneal
modalidade, as trocas de bolsa são realizadas automatizada intermitente, durante o dia, o paciente
manualmente, utilizando a força de gravidade. permanece sem líquido de diálise na cavidade
A prescrição mais frequente é de quatro trocas peritoneal. A modalidade é geralmente utilizada para
diárias, mas pode variar de três a cinco, conforme a pacientes que possuem boa função renal residual e
necessidade do paciente. A troca noturna permanece também em casos de hérnias abdominais.
por oito horas na cavidade peritoneal. Cada interrupção A DPI manual, usada no passado, não é a boa
para a troca de dialisato (drenagem da solução escolha para a diálise crônica. O método é agressivo e
antiga e instilação da nova) leva em torno de 20 a pouco eficiente em longo prazo. A técnica era realizada
30 minutos. O tempo de permanência da solução em ambiente hospitalar. O paciente era, geralmente,
na cavidade peritoneal é mais longo. Os pacientes internado em dois diferentes dias da semana. A
com perfil de membrana peritoneal, classificado equipe especializada realizava a diálise durante o dia
como baixo ou médio-baixo transportadores (veja o todo. Em algumas clínicas, há a possibilidade de o
assunto mais adiante), são os mais beneficiados por paciente realizar a DPI automatizada durante o dia,
essa modalidade. Exceto durante a troca, o paciente ambulatorialmente, algumas vezes por semana.
mantém o líquido durante 24 horas diárias, todos os A CAPD e a APD são realizadas em domicílio.
dias da semana, mês ou ano. Elas permitem maior flexibilidade do que a HD e
A diálise peritoneal pode ser automatizada (APD: a DPI. Porém, exigem treinamento, cuidados e
automated peritoneal dialysis). Nesta modalidade, as cooperação do paciente, família e/ou cuidador.
infusões e drenagens são realizadas por uma máquina A CAPD é a mais utilizada (Fig. 15a). A APD é o
cicladora, enquanto o paciente dorme. O tempo de método mais moderno (Fig. 15b).
permanência da solução na cavidade peritoneal é

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A dose de diálise pode ser individualizada, do antibiótico é a intraperitoneal, de forma intermitente
variando no número de trocas, no volume de ou contínua. Preconiza-se que seja aceitável uma
cada uma e/ou na concentração da glicose. As peritonite para cada 18 meses em DP.
bolsas disponíveis, contendo a solução de diálise,
apresentam volumes de 1, 2 e 2,5 litros, e Avaliação da Adequação da Diálise Peritoneal
concentrações de glicose de 1,5%, 2,5% e 4,25%. Também na DP, a avaliação da eficiência dialítica
Comparada à HD, a DP é favorável para idosos, é muito importante e difere um pouco da HD. O
crianças (principalmente abaixo de dois anos de primeiro parâmetro importante é a característica da
idade), pacientes com doença cardiovascular membrana peritoneal.
avançada e para aqueles com dificuldade de acesso à TESTE DE EQUILÍBRIO PERITONEAL (PET). O PET
circulação. Os diabéticos encontram-se, geralmente, (Peritoneal Equilibration Test) avalia as características
nessa categoria. O método tem as vantagens de de transporte e de ultrafiltração da membrana
permitir maior atividade física e independência, não peritoneal, já que nem todas são iguais e, ainda,
utilizar agulhas para o acesso vascular e favorecer podem mudar com o tempo. O PET é utilizado para
dieta mais liberal, particularmente em alimentos ajudar na seleção da modalidade de tratamento, na
ricos em potássio, como frutas e hortaliças. Além quantificação da prescrição da diálise e para identificar
disso, não requer o deslocamento de três vezes pacientes com resultados subótimos de diálise. No
por semana a um centro de diálise. A modalidade teste, são avaliadas as concentrações de glicose e
permite viagens, dá mais flexibilidade ao trabalho, de creatinina do dialisato em relação à concentração
mantém a função renal residual por mais tempo e inicial de glicose dele e às de creatinina no plasma,
apresenta menos risco de hipotensão. Porém, com respectivamente. Os resultados são comparados às
o passar dos anos, um problema da DP é a fadiga curvas-padrão. Então, os pacientes são classificados
ao tratamento, chamada de “síndrome do burnout”, em quatro categorias: baixo, médio-baixo, médio-
do paciente, da família e do cuidador. alto ou alto transportador. A membrana peritoneal
As complicações infecciosas, como a peritonite, de um indivíduo alto transportador faz as trocas mais
são as mais frequentes na DP. E são as causas mais rapidamente do que a de um baixo transportador.
comuns de retirada de cateter, transferência de Portanto, o PET ajuda na avaliação da prescrição da
pacientes para a HD, óbitos e uso de antibióticos. Com diálise (se as trocas deverão ser rápidas ou lentas,
a confirmação da peritonite, é iniciado o tratamento por exemplo). Ele determina o regime dialítico mais
com antibióticos. A via preferencial para administração adequado às necessidades do paciente. Com o

Fig. 15a CAPD Fig. 15b APD


Fig. 15 Diálise peritoneal ambulatorial contínua (CAPD) e diálise peritoneal automatizada (APD)

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tempo de tratamento, a membrana peritoneal sofre hipotensão e não há necessidade de restrição hídrica.
alterações morfológicas e funcionais que devem ser Com as técnicas contínuas, é possível alcançar taxas
monitoradas para a otimização da diálise. de remoção semanal semelhantes às intermitentes. É
KT/VUREIA. Em DP, esse marcador é facilmente possível separar a remoção de solutos, como o sódio,
calculado. Porém, sua significância clínica não está da retirada de líquido. Por exemplo: a composição de
bem definida. O Kt é calculado da concentração de um dialisato pode ser mudada. Com isso, o balanço
ureia no plasma e no dialisato drenado em 24 horas. de solutos pode ser alterado, sem mudar o balanço
O V é o volume de distribuição de ureia, calculado por hídrico. O aspecto dá versatilidade à técnica e
equações, como a de Watson et al (17). O Kt/V de possibilita maior individualização para a necessidade
um dia é multiplicado por sete (para uma semana). O clínica do paciente. Além disso, a dose de diálise das
objetivo para o Kt/Vureia semanal é >1,7/semana (18). técnicas contínuas não depende do tempo, como
CLEARANCE DE CREATININA PERITONEAL as intermitentes. Porém, as técnicas contínuas
SEMANAL. O clearance de creatinina peritoneal têm outros problemas, como a necessidade de
diário pode ser medido a partir do volume do anticoagulação contínua, com aumento do risco
dialisato drenado em 24 horas. É dependente do de sangramento. Por isso, há necessidade de
volume do dialisato drenado em determinado tempo, monitoramento frequente e rigoroso do paciente.
do período cumulativo de permanência dele na
cavidade peritoneal e da concentração plasmática MODALIDADES E PROGRAMAS DE TERAPIAS
de creatinina. Em DP, o objetivo do clearance de LENTAS DE SUBSTITUIÇÃO RENAL
creatinina total é >60 L/semana/1,73m2 (18). Há vários tipos de terapias lentas e contínuas
(Quadro 4). Os mais comuns são a hemofiltração
venovenosa contínua (CVVH) e a HD venovenosa
TERAPIAS CONTÍNUAS DE contínua (CVVHD). A última é uma hemofiltração
com HD simultânea. Nesses casos, é utilizado um
REPOSIÇÃO RENAL filtro extracorpóreo bastante permeável à água e aos
solutos de baixo peso molecular. Há um circuito de
Os métodos contínuos de terapia de reposição
sangue que vai de uma artéria até uma veia (ou de
renal são indicados para pacientes com IRA, pelo fato
uma veia para outra) (Fig. 16). O procedimento requer
de, comumente, apresentarem grande instabilidade
o uso de uma bomba para dar fluxo ao sangue. E
hemodinâmica. Os princípios da remoção de solutos e
requer veias de grosso calibre (ex.: veia subclávia e
de líquidos das técnicas contínuas são os mesmos que
femoral). Estas devem estar em boas condições e ser
daquelas intermitentes. As terapias lentas permitem
capazes de prover fluxo sanguíneo substancial.
a filtração contínua de, principalmente, grandes
A taxa de ultrafiltração média de 3 a 4 mL/minuto
quantidades de líquido plasmático, de eletrólitos e
proporciona perda de 4,3 a 5,7 litros de líquido em
de toxinas urêmicas. Com isso, há menor risco de

Quadro 4. Tipos e características das técnicas de terapias contínuas de substituição renal (19)
Tipo Descrição Mecanismo de Remoção
SCUF Slow continuous ultrafiltration (ultrafiltração contínua lenta) Convecção (retira líquido mais eficientemente)
CAVH Continuous arteriovenous hemofiltration (hemofiltração arteriovenosa
contínua)
CVVH* Continuous venovenous hemofiltration (hemofiltração venovenosa
continua)
CAVHD Continuous arteriovenous hemodialysis (hemodiálise arteriovenosa Difusão (retira solutos mais eficientemente)
contínua)
CVVHD* Continuous venovenous hemodialysis (hemodiálise venovenosa contínua)
CAVHDF Continuous arteriovenous hemodiafiltration (hemofiltração arteriovenosa Conecção e difusão (retiram líquido e solutos)
contínua)
CVVHDF Continuous venovenous hemodiafiltration (hemofiltração venovenosa
contínua)
*mais comuns

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24 horas (19). Esse volume é suficiente para manter TRANSPLANTE RENAL
o balanço hídrico da maioria dos pacientes.
A falta de acesso vascular pode limitar a aplicação O transplante (tx) renal é a modalidade
das terapias contínuas. Caso não seja possível terapêutica de primeira escolha para os pacientes
obter um acesso arterial, são usadas as formas com DRC. O tratamento tem se caracterizado por
venovenosas. De qualquer forma, o acesso venoso é avanços e modificações significativas nos últimos
crucial. E, felizmente, há disponibilidade de cânulas anos, particularmente em relação à compreensão
de duplo lúmen para facilitar o acesso. da imunologia e aos agentes imunossupressores.
Em alguns centros, devido às dificuldades técnicas Entretanto, nem todos os pacientes podem se
de manter a terapia contínua por dias, é utilizada a beneficiar do tx renal. A escolha do tipo do doador,
HD lenta intermitente. Esta é instalada pela manhã vivo ou cadáver, é um fator importante. Além disso,
e retirada ao final da tarde, reiniciando na manhã o procedimento não está livre de problemas, como
seguinte. O procedimento é realizado por vários dias, infecções oportunistas, neoplasias e rejeição crônica.
enquanto houver necessidade. Ocasionalmente, a DP Pode haver três tipos de doadores. O doador vivo
pode ser utilizada, pois o método é lento e contínuo. relacionado é um parente (avós, pai, mãe, irmãos,
Porém, em muitos casos, há dificuldade de acesso filhos, tios, sobrinhos, primos até segundo grau,
peritoneal devido à presença de drenos ou fístulas, ou inclusive cônjuges), maior de idade e capaz. Durante
em situações de pós-cirurgia abdominal. a sua vida, ele pode doar, gratuitamente, um de
As técnicas de terapia contínua renal substitutiva seus rins ao paciente. Outro tipo é o doador vivo não
são, particularmente, úteis na UTI. Elas facilitam relacionado, que é um indivíduo que não tem nenhum
o manejo de líquidos, possibilitam maior aporte dos graus de parentesco definidos acima e que, sendo
nutricional e ajustes nos parâmetros hemodinâmicos. maior e capaz perante a lei, decide espontaneamente,
E também facilitam o manejo de solutos. sem coação e sem remuneração financeira, doar um
Na CAVHD, o dialisato contém de 0,5 a 2,5% de seus rins a outra pessoa. Este tipo de doação
(de 154 a 270 g/dia) de glicose, que é absorvida necessita de autorização judicial. Nos dois casos
durante o procedimento (19). Esse aspecto contribui acima, o doador tem que ser saudável, sem doenças.
para o aporte energético, mas pode descontrolar a O que deve estar comprovado por meio de avaliação
glicemia dos pacientes. médica e laboratorial. Outro tipo é o doador cadáver,

Fig. 16 Esquema da hemofiltração arteriovenosa contínua

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Doença Renal Crônica e Injúria Renal Aguda. Fundamentos da Anatomia, Fisiopatologia e Tratamentos

definido como alguém com morte cerebral. A função De acordo com a fase, o tx renal traz diferentes
do coração e dos pulmões deve estar mantida com o riscos e problemas. As três fases distintas são: pré
suporte artificial. Em geral, dois médicos, nenhum da tx, pós tx imediato e pós tx tardio. Na fase pré tx,
equipe de transplante, declaram a morte cerebral. encontram-se os pacientes na categoria 5 da DRC,
Todo paciente renal crônico pode se submeter a um particularmente aqueles em diálise. O pós tx imediato
tx desde que apresente algumas condições clínicas, refere-se ao período de quatro a seis semanas após
como: suportar a cirurgia, com duração de quatro a seis a cirurgia. E o pós tx tardio refere-se ao resto da
horas; não ter lesões em outros órgãos (ex.: cirrose, vida do paciente, ou enquanto o rim transplantado
câncer ou acidentes vasculares); não ter infecção ou (enxerto) estiver funcionante.
focos ativos na urina, nos dentes, tuberculose ou Após a cirurgia, iniciam-se os cuidados médicos
fungos; e não ter problemas imunológicos adquiridos e nutricionais, que vão durar para toda a vida do
por muitas transfusões, por exemplo. De maneira transplantado. Durante os primeiros 15 a 20 dias do
geral, a idade não é o fator maior de contraindicação. pós tx imediato, exames clínicos e laboratoriais são
Porém, é considerada. Já a presença de diabetes é feitos diariamente, com a finalidade de diagnosticar e
um fator contraindicativo importante devido à taxa prevenir rejeições agudas. Após a alta, o transplantado
geral menor de sobrevida (alta prevalência de doença faz exames clínicos e laboratoriais semanalmente,
vascular). Aliás, a doença cardiovascular avançada é por 30 dias, depois duas vezes por mês. Os três
contraindicação de tx para qualquer indivíduo. Certas primeiros meses são os mais difíceis e perigosos. É o
doenças recorrentes, como o lúpus e a oxalose, período no qual ocorre o maior número de rejeições
também podem contraindicar o tx renal. Indivíduos e complicações infecciosas. A partir do terceiro mês,
com história de hipertensão descontrolada, doença iniciam-se os exames mensais, durante seis meses. O
renal, uso recente de drogas endovenosas, alto risco controle espaça-se a partir desse período, conforme
para AIDS ou HIV+, ou que faleceram de causas a evolução clínica e o estado do rim. O paciente não
desconhecidas são, geralmente, contraindicados pode interromper ou modificar a medicação, ou deixar
como doadores. Indivíduos vivos, com história familiar de fazer os exames indicados. A rejeição pode ocorrer
de doença renal (ex.: rins policísticos), usualmente, a qualquer momento, mesmo após muitos anos de
não são aprovados como doadores. Mesmo quando um transplante bem-sucedido (rejeição crônica).
não há sinais atuais da enfermidade. Enquanto o objetivo do sistema imunológico é
O tipo sanguíneo (ABO) e a compatibilidade entre o proteger o hospedeiro contra patógenos infecciosos,
receptor e o doador são essenciais para o sucesso do o mesmo mecanismo funciona diretamente contra um
tx. O sistema antígeno leucocitário humano, ou HLA órgão transplantado, usualmente resultando em sua
(human leukocyte antigen), é o nome do complexo destruição. Portanto, todo paciente transplantado utiliza
principal de histocompatibilidade humana. O HLA é vários medicamentos imunossupressores. O regime de
um exame igual ao de paternidade e/ou maternidade. imunossupressão envolve um equilíbrio delicado entre
Os testes de cross-match (combinação cruzada) são prevenir a rejeição do órgão transplantado e minimizar
executados para minimizar o risco para o paciente e os efeitos colaterais. Um dos vários fatores adversos da
aumentar as chances de sucesso do tx. A fonte do terapia imunossupressora é o potencial de alteração do
órgão afeta a taxa de sucesso de um tx. O tx de rim estado nutricional do indivíduo. E o efeito é exacerbado
de doadores vivos, com compatibilidade HLA, são quando o paciente está em hipercatabolismo e com o
mais bem sucedidos do que aqueles de doadores estado nutricional vulnerável.
falecidos. A combinação idêntica vem de um parente A terapia imunossupressora é dividida em duas
próximo. Porém, de nem todos. fases, chamadas de indução e de manutenção. Os
O rim transplantado é colocado na fossa medicamentos de “indução” são potentes e usados no
ilíaca do paciente e o ureter é fixado à bexiga ou momento do tx. Geralmente, consistem de anticorpos
anastomosado ao ureter do receptor. A artéria e monoglonais (ex.: OKT-3) ou policlonais (globulinas
a veia renais são unidas à artéria e à veia ilíacas antitimocíticas). Eles também são utilizados para
externas, respectivamente. Usualmente, o receptor tratar episódios graves de rejeição aguda, resistentes
fica com três rins, dois nativos (não funcionantes) e aos tratamentos mais convencionais, como
o enxerto (rim transplantado). corticosteroides. Altas doses de corticosteroides,

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como a metilprednisona por vários dias, seguida Na DRC, há perda lenta e progressiva da função
pela prednisona, é chamada de “pulsoterapia”. Esta renal. Já a IRA é a redução abrupta da função renal. A
é comumente prescrita em casos de rejeição aguda. nefropatia diabética e a hipertensão são as principais
A terapia de “manutenção” (corticosteroides, causas da DRC. A diminuição do tamanho renal está,
micofenolato mofetil, azatioprina, tacrolimo, principalmente, associada à nefropatia crônica. Os
ciclosporina, sirolimo) é aquela administrada rins são capazes de adaptar-se à perda crônica de
após o tx, usualmente por toda a vida do órgão néfrons. A homeostasia é mantida até fases avançadas
transplantado. A ciclosporina e o tacrolimo têm da DRC. A capacidade de concentrar e diluir a urina
índice terapêutico muito estreito para a eficácia diminui progressivamente. E há adaptação aos níveis
e toxicidade. Portanto, há necessidade de elevados de potássio, com aumento da excreção
monitoramento rotineiro de seus níveis sanguíneos. renal e intestinal, frente à ingestão do mineral. A
A escolha dos medicamentos depende do local hipocalcemia está frequentemente associada aos
(centro de tx), das características individuais do distúrbios do PTH ou da vitamina D. A hiperfosfatemia
paciente, do órgão transplantado e do tempo do tx. diminuiu a produção de calcitriol e a reabsorção
O tx renal não está livre de complicações. E intestinal de cálcio. A insuficiência renal é a
exige cuidados para o longo da vida do enxerto. principal causa da hiperfosfatemia. Há uma relação
Porém, sem dúvidas, é o método mais efetivo e de estreita entre os rins e a microbiota intestinal. A
menor custo para a reabilitação do paciente com disbiose pode ser uma causa importante para o
DRC. A técnica cirúrgica e os cuidados do tx renal desenvolvimento e progressão da DRC.
estão bem estabelecidos. Porém, somente 10% dos A HD é a terapia de substituição renal mais
pacientes que estão na lista de espera conseguem comumente usada na fase avançada da DRC. A
receber o tx renal, principalmente devido à falta de maior limitação é o método ser intermitente. A DP
infraestrutura na área da saúde. utiliza a membrana peritoneal para a realização da
diálise. O método é contínuo e pode ser manual
ou automatizado. As terapias lentas e contínuas
CONCLUSÃO de reposição renal, como a hemofiltração e a
hemodiafiltração, são os mais utilizados na IRA de
Os rins são órgãos altamente complexos e pacientes gravemente enfermos.
especializados. Portanto, noções da anatomia e da
fisiopatologia renal permitem melhor compreensão
das doenças e seus tratamentos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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