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A participação de consórcios
empresariais em procedimentos
licitatórios: Livre escolha da
Administração licitante?
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tária. No âmbito do Direito Administrativo, a Lei das 34), em consonância com a necessidade de motivação
Licitações (art. 33) e a Lei das Concessões (art. 19) ex- das decisões administrativas2.
pressamente autorizam que o ente promotor da licita- A discricionariedade administrativa, como se
ção admita a participação de consórcios. sabe, consiste na “margem de escolha deixada pela lei
Contudo, como pretendemos expor adiante, a ao juízo do administrador público para que, na busca
depender das circunstâncias e de suas implicações, essa da realização dos objetivos legais, opte, entre as op-
facultas agendi ora pode tornar-se impositiva, ora pode ções juridicamente legítimas, pela medida que, naquela
ser completamente suprimida. realidade concreta, entender mais conveniente” (ARA-
GÃO, 2013, p. 161). Neste prisma, não se pode, no âm-
2. UM DEBATE EM EVOLUÇÃO bito de um Estado Democrático de Direito, confundir
discricionariedade com cheque em branco ou escusa
A jurisprudência e a doutrina costumavam as- universal para arbítrios vários3.
severar, sem maiores temperamentos e problematiza- Regressando ao eixo temático proposto, verifi-
ções, que a possibilidade da participação de consórcios ca-se que, em um primeiro momento, consagrou-se a
em procedimentos licitatórios se sujeitaria a uma de- necessidade de se “demonstrar com fundamentos sóli-
liberação discricionária da Administração licitante. dos a escolha a ser feita pelo gestor durante o processo
Contudo, com o decorrer dos anos, o Tribunal de licitação no que toca à vedação da participação de
de Contas da União e os mais proeminentes adminis- consórcios” (TCU, Acórdão 1.165/2012, Plenário. Rel.
trativistas passaram a relativizar a discricionariedade Min. Raimundo Carreiro).
sobre o tema, que outrora, equivocadamente, dispunha Nessa mesma linha, Marçal Justen Filho alerta
de feições quase absolutas. que a discricionariedade em voga:
Aliás, a título de parêntesis, cabe pontuar que,
nos últimos anos, grande parte da doutrina vem su- evidentemente não significa autorização para
perando a rígida e clássica, porém anacrônica, dico- decisões arbitrárias ou imotivadas. Admitir ou
tomia entre os atos administrativos discricionários e negar a participação de consórcios é o resulta-
vinculados. De tal sorte, sobretudo tendo em vista o do de um processo de avaliação da realidade do
reconhecimento da eficácia normativa dos princípios mercado em face do objeto a ser licitado e da pon-
jurídicos, vem se desenvolvendo a teoria dos graus de deração dos riscos inerentes à atuação de uma
vinculação à juridicidade1 e delineando-se o instituto pluralidade de sujeitos associados para a execu-
da discricionariedade justificável (MORAES, 2004, p. ção do objeto. Como toda decisão exercitada em
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EDITAL. ALTERAÇÃO. EXIGÊNCIA. SERVIÇO Portanto, sempre que o objeto licitado for mar-
DE VIGILÂNCIA ARMADA. OPERADOR DE cadamente vultuoso ou de composição complexa e
EMBARCAÇÃO FLUVIAL. Constitui ato de inomogênea, o ente licitante deverá obrigatoriamente
improbidade administrativa inserir o Presi- admitir a participação de coligações empresárias no
dente da Comissão de Licitação, de ofício, certame. Em outras palavras, tem-se que o ordena-
sem solicitação de alguma Secretaria Muni- mento jurídico brasileiro e o seu conjunto de princípios
cipal, no edital de licitação, exigência mani- informadores impõem a admissão de consórcios em
festamente descabida para o fim de frustrar grandes ou heteróclitas licitações – sob pena de restar
a competitividade do certame. Hipótese em asfixiado o princípio da competitividade e, em algumas
que, no edital para contratação do serviço de vi- circunstâncias, a própria licitação acabar convertida em
gilância armada volante, se incluiu a de operador procedimento inidôneo e ineficaz.
de embarcação fluvial, o qual jamais foi presta- Não em outro sentido, o Tribunal de Contas da
do. NULIDADE DO CONTRATO. SERVIÇO União vem reiteradamente determinando que, em ca-
PRESTADO RESSARCIMENTO DESCABIDO. sos dessa natureza, o Administrador ou bem parcela
A procedência da ação com o ressarcimento do o objeto licitado em diversos procedimentos, se possí-
dano pressupõe que o ato cuja nulidade se decla- vel for, ou bem realiza uma só concorrência, devendo,
ra seja lesivo ao patrimônio público. Ausente a neste caso, impositivamente admitir a participação de
comprovação, não é devido o ressarcimento. Não empresas em consórcio. Ilustrativos dessa tendência
há causa de imputação de responsabilidade à em- jurisprudencial são os seguintes julgados:
presa contratada, que não praticou qualquer ato
ilícito. Os valores percebidos em razão de efetiva 9.1.1. considerando o disposto no art. 23, §
prestação de serviço não necessitam ser devolvi- 1º, da Lei 8.666/93, com a redação dada pela Lei
dos. APELO DO MUNICÍPIO DESPROVIDO. 8.883/94, e na Súmula 247 do Tribunal, reali-
UNÂNIME. APELO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ze o parcelamento do objeto da licitação a
PROVIDO. POR MAIORIA. (TJ/RS, Apelação Cí- ser promovida com vistas à contratação das
vel Nº 70052803954, Vigésima Segunda Câmara obras, serviços e fornecimentos necessários à
Cível, Rel. Des. Eduardo Kraemer, Julgado em Implantação e Complementação do Centro de
28/11/2013). (Grifo dos autores). Lançamento de Alcântara e Centro Espacial de
Alcântara, devendo proceder anteriormen-
te, para fundamentar a escolha da forma de
configuração dos “blocos” ou “lotes” a se-
rem formados em função do parcelamento,
a estudos técnicos que considerem as ca-
racterísticas de mercado e que indiquem a
alternativa de divisão que melhor satisfaz
aos princípios da competitividade, da iso-
nomia e da obtenção da proposta mais van-
tajosa para a Administração, respeitadas as
limitações de ordem técnica, sem prejuízo da
possibilidade alternativa de realizar concor-
rência única para a contratação de todo o
complexo ou conjunto com um só licitan-
te, mas, neste caso, desde que admitida ex-
pressamente a participação no certame de
empresas em consórcio, como forma de as-
segurar o parcelamento material do objeto,
respeitando as regras prescritas no art. 33 da
Lei 8.666/93. (TCU, Acórdão 108/2006, Plená-
rio, Rel. Min. Lincoln Magalhães da Rocha, com
nova redação conferida pelo Acórdão 766/2006,
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também do Plenário, Rel. Min. Augusto Nardes). objeto então licitado, tal prática implicaria constrição
(Grifo dos autores). excessiva do caráter competitivo do procedimento.
Confira-se trecho da mencionada decisão:
***
O parecer técnico não recomenda a limi-
A jurisprudência deste Tribunal já se firmou tação do número de empresas por consórcio.
no sentido de que a admissão ou não de consórcio Mesmo que recomendasse, isto não seria su-
de empresas em licitações e contratações é com- ficiente para se justificar limitação não pre-
petência discricionária do administrador, deven- vista na Lei. Além de não prevista na Lei, tal
do este exercê-la sempre mediante justificativa limitação, no presente caso, conforme expos-
fundamentada. Não obstante a participação de to na análise inicial desta ocorrência, é fator
consórcio seja recomendada sempre que o objeto de forte restrição ao caráter competitivo do
seja considerado de alta complexidade ou vulto, certame. Dadas as peculiaridades, a dimen-
tal alternativa também não é obrigatória. Devem são, a quantidade e a diversidade de obras,
ser consideradas as circunstâncias concretas serviços e sistemas, alguns bastantes espe-
que indiquem se o objeto apresenta vulto cíficos, que compõem o objeto da licitação,
ou complexidade que torne restrito o uni- limitar o número de empresas por consórcio,
verso de possíveis licitantes. Somente nessa ainda mais em apenas três, certamente limi-
hipótese, fica o administrador obrigado a tará em muito o número de consórcios que
autorizar a participação de consórcio de em- se formarão com possibilidade de cumprir
presas no certame, com o intuito precípuo de todas as exigências de qualificação técnica,
ampliar a competitividade e proporcionar a quanto mais se perdurarem as que constaram do
obtenção da proposta mais vantajosa. (TCU, edital da Concorrência 002 [003]/AEB/06.
Acórdão 2.831, Plenário, Rel. Min. Ana Arraes).
(Grifo dos autores). Quanto aos precedentes do Tribunal, ainda
não formam jurisprudência pacífica a respeito,
Nessa linha, mostra-se oportuno registrar que pois há decisões nos dois sentidos, conforme se
o TCU, acertadamente, já reputou ilegal até mesmo constata do Acórdão citado na análise inicial. O
a injustificada restrição do número de empresas inte- que o TCU tem considerado fundamental é
grantes de cada consórcio, em dado procedimento li- se verificar, no caso concreto, se a limitação
citatório – por entender que, ante às características do provoca restrição ao caráter competitivo do
certame. No presente caso, em se prevalecendo admissão do pacto consorcial pode viabilizar a coliga-
o não-parcelamento do objeto, certamente essa ção de empresas que antes seriam adversárias naturais,
restrição ocorrerá, pelos motivos já expostos. restringindo-se assim o número de potenciais licitantes
e, conseguintemente, a própria competitividade do cer-
Ademais, essa limitação vai de encontro tame, o que, por fim, acaba dificultando sobremanei-
à essência do entendimento prevalecente no ra, senão impossibilitando, a contratação da proposta
Acórdão Plenário 108/2006. Ali, conside- mais vantajosa possível para a Administração Pública.
rou-se que a participação de consórcios na Nesse sentido, merece nota o alerta de Carva-
licitação supriria a exigência legal do parce- lhosa (2004, p. 393), segundo o qual o instituto da as-
lamento, uma vez que o consórcio significa- sociação consorcial pode ser convertido em eficiente
ria um parcelamento material, na medida em ferramenta “de cartelização de atividades setoriais.
que cada empresa participante se encarregaria Diferentemente dos monopólios individuais – trustes
de determinada parte do objeto contratual. – o consórcio pode objetivar a constituição de um mo-
Mas a Lei 8.666/93 determina que obras, serviços nopólio coletivo. Este se constitui pela regulamentação
e compras devem ser divididos em tantas parcelas associativa da conduta mercadalógica das empresas até
quantas se comprovarem técnica e economica- então concorrentes”.
mente viáveis. O parcelamento é a regra e deve ser Ressoa evidente, nessa perspectiva, que a decisão
levado até o limite da viabilidade técnica e econô- administrativa não pode se fundamentar em considera-
mica. O objetivo é ampliar ao máximo possível a ções abstratas e genéricas. Deve-se pesquisar, concreta
competição para cada parcela. Para os consór- e individualmente, quais serão as prováveis implicações
cios realmente atenderem ao objetivo da Lei, da admissão ou da exclusão de empresas consorciadas
consoante o entendimento exarado naquele em cada licitação específica, dadas as características pe-
Acórdão, deve ser permitida a participação culiares do segmento de mercado pertinente.
de tantas empresas quantas forem as parce-
las técnica e economicamente viáveis. Não há 3. CONCLUSÕES E APONTAMENTOS
nada no processo administrativo da Concorrência
002 [003]/AEB/06, nem nos pareceres técnico e Mostra-se possível, a partir das considerações
jurídico, que demonstre, técnica e economicamen- até aqui desenvolvidas, asseverar que o princípio da
te, quantas e quais são essas parcelas. Portanto, competitividade5 deve figurar como o fiel da balança
limitar o número de empresas por consórcio para que se admita ou se vede a participação de em-
é limitar o parcelamento material de que fala presas consorciadas em licitações públicas. Sempre
o Acórdão Plenário 108/2006, sem que haja acompanhada de substanciosa e específica fundamen-
embasamento técnico e econômico para essa tação, a aludida decisão deve, justamente, mirar na
limitação. (TCU, AC 397/2008, Plenário, Rel. Min. ampliação do universo de potenciais concorrentes do
Augusto Sherman). (Grifo dos autores). certame, buscando estimular a competitividade do pro-
cedimento licitatório e, assim, assegurar a contratação
Dessa feita, se o TCU entende ser ilícito limitar mais vantajosa para a Administração.
o número de empresas por consórcio quando presen- Nesse prisma, registre-se a importante lição de
tes os caracteres da complexidade e da vultuosidade Alexandre de Aragão:
do objeto, a fortiori, também é indiscutivelmente ilegal
proibir a formação de consórcios in totum, quanto o ob- Como a competitividade é o próprio espírito
jeto licitado for de tal natureza. da licitação, ela também é um importante guia
Por outro lado, embora seja menos frequente, é hermenêutico, de maneira que, diante de diversas
possível que, em alguns casos, não reste outra escolha interpretações em tese possíveis em determinada
à Administração licitante a não ser vedar a formação situação, se deve optar pela que mais competiti-
de consórcios. Pense-se, por exemplo, em um servi- vidade trouxer (in dubio pro competitionem). (2013,
ço, extremamente técnico (e.g., o fornecimento e a p. 297).
operação de uma modalidade específica de satélites
militares), que somente seja prestado por duas ou três Não raro, infelizmente, deparamo-nos com ins-
empresas especializadas. Num cenário como esse, a trumentos convocatórios inquinados, nesse particular,
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