Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SISTEMA
PENAL,
REPRODUÇÃO DA REALIDADE SOCIAL
Teorias do Conflito
Antes de mais nada, vamos recordar que os teóricos do conflito partem do
pressuposto de que há força e coerção na sociedade. Somente existe ordem porque há
dominação de uns e sujeição de outros. A sociedade está sempre sujeita a processos de
mudança e cada elemento da sociedade contribui, de certa forma, para sua
desintegração. Para essas teorias, o crime faz parte da luta pelo poder.
As teorias do conflito possuem forte tradição nos Estados Unidos, sobretudo em virtude
do contexto social de pós-guerras, em que disputas internas (raciais, de classe, de
desemprego, de marginalização, estudantis, feministas) assumiram prevalência se
comparadas a conflitos externos. Elas partem do pressuposto da existência, na
sociedade, de uma pluralidade de grupos e subgrupos que, eventualmente, apresentam
discrepâncias em seus valores. Para as teorias do conflito, portanto, a sociedade não é
monolítica, unitária. Ela está em constante mudança, cenário que é decorrente de visões
diferentes de uma mesma situação por grupos antagônicos que coexistem.
Assim, para as teorias do conflito, não é o contrato social que garante a manutenção do
sistema e que faz com que os grupos sociais evoluam. Esses papeis devem ser – e são –
atribuídos ao conflito. É, portanto, o conflito que promove as alterações necessárias para
o desenvolvimento dinâmico da sociedade. Por isso, diz-se que essas teorias são
progressistas, e não conservadoras.
Os teóricos do conflito demonstram, por exemplo, que o sistema penal trata os
suspeitos de forma diferenciada com base em sua raça, etnia ou classe social, já que
a sociedade não é hegemônica e que os agentes do controle social e outros grupos
poderosos podem impor definições de desvio que atendem a seus objetivos1.
Labelling Approach
Essa é uma teoria bastante cobrada em provas. Dedique bastante atenção a ela. Ela
também é conhecida como:
• teoria da rotulação;
• teoria do etiquetamento;
• teoria da reação social;
• teoria interacionista;
• interacionismo simbólico.
Conforme os teóricos interacionistas, para cada uma das ações desviadas é possível
encontrar inúmeras ações similares que não serão rotuladas de criminosas, por não
serem levadas em consideração ou por não se apresentarem de maneira evidente como
desviadas. Diante de cada fato, as instituições atuam como filtros, definindo sua
natureza. Frente às condutas humanas, portanto, as agências formais de controle social
atuam como uma grande peneira, a separar quais devem ser etiquetadas como
criminosas e quais não merecem o rótulo.
Howard Becker
Um dos principais autores do labelling approach é o norte-americano Howard Becker,
da Universidade de Chicago.
Obs.: Os interacionistas, como Becker, evitam termos tradicionais como crime,
criminoso, bandido, dada a carga valorativa pejorativa que possuem. Preferem utilizar a
nomenclatura deviance, que podemos traduzir como desviação. A conduta desviante é
criada pela sociedade, ao reagir a certas práticas, rotulando-as.
Em seu livro Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance, de 1963, Becker relata o
resultado da análise de grupos de usuários de maconha e de músicos de jazz que fez na
década de
1950. Ele explica que todos os grupos sociais constroem suas próprias regras. A pessoa
que quebras essas regras não é aceita como membro de um grupo. Ela é considerada
uma estranha,
ou melhor, é etiquetada como outsider, e começa, a partir daí, a sofrer um processo de
estigmatização.
O quanto alguém é considerado um outsider varia de caso a caso. Por exemplo: uma
pessoa que infringe as regras de trânsito é, em geral, menos outsider que um assassino
ou estuprador.
Erving Goffman
Outro nome de peso no labelling approach é o do canadense Erving Goffman, que
realizou suas pesquisas nos Estados Unidos. É autor, entre outros, de Estigma: Notas
sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, de 1963, e Manicômios, Prisões e
Conventos, de 1961, livros em que se debruçou sobre a questão prisional.
O conceito de estigma é central em sua obra. Ele explica que, entre os gregos, o termo
estigma servia para designar sinais corporais que eram feitos nas pessoas para indicar
que havia algo ruim ou inusual no status moral de seus portadores.
Implicações Político-criminais
No plano político-criminal, as teorias interacionistas propuseram a política dos 4 Ds:
• Descriminalização: como a reação social causa mais criminalidade, é prudente deixar
de considerar certas condutas como criminosas para diminuir os problemas de
estigmatização e ingresso na carreira criminal;
• Diversão: é necessário diversificar a resposta aos problemas da sociedade, para que se
utilize menos a resposta penal, dados os males que ela causa;
• Devido processo legal: as regras do processo legal precisam ser estreitamente
respeitadas para que o indivíduo seja tratado pelos mecanismos de controle social
formal com respeito e dignidade;
• Desinstitucionalização: os presídios são instituições totalizadoras que provocam a
mutilação do “eu” e a inadaptabilidade para o convívio social, de modo que deve ser
dada preferência, quando possível, a penas alternativas à prisão.
A reforma penal brasileira de 1984, com a instituição do regime progressivo de
cumprimento da pena privativa de liberdade e a adoção de penas substitutivas, pode ser
citada com um reflexo das ideias de desinstitucionalização do labelling em nosso
ordenamento. O mesmo vale para os dispositivos da Lei de Execução Penal (Lei n.
7.210/84) que ensejam o contato do preso com o mundo exterior; e para a Lei dos
Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei n. 9.099/95), que elimina da esfera penal
vários crimes e adota postura descarcerizadora.
Criminologia Crítica
Também chamadas de Nova Criminologia, Criminologia Radical ou, ainda,
Criminologia Dialética, as teorias de Criminologia Crítica nascem na década de 1970
com forte apelo às ideias de Karl Marx. Para os autores críticos, há relação direta
entre o modo de produção capitalista e o funcionamento dos modos punitivos. Não se
trata mais de descobrir as razões da delinquência ou de lutar contra o crime, mas
sim de abolir as desigualdades sociais para equacionar o fenômeno delitivo.
Além de Marx, outra fonte de inspiração para os teóricos críticos é a Escola de
Frankfurt, fundada em 1924, na Universidade de Frankfurt na Alemanha. A teoria
crítica dos filósofos alemães se opõe à teoria tradicional por não ser neutra, por analisar
as condições sociopolíticas e econômicas e buscar alterá-las.
As teorias críticas são dotadas de forte práxis (atividade prática, em oposição à
mera teoria), ou seja, elas querem não apenas denunciar as situações de desigualdade,
mas também alterá-las profundamente.
Na Criminologia Crítica, a própria Criminologia, como vinha sendo desenvolvida
tradicionalmente, passa a ser objeto de estudo. A Criminologia passa a questionar
qual deve ser o objeto e qual deve ser o papel da investigação criminológica. Os
teóricos críticos não querem defender a sociedade do crime, mas sim defender os
indivíduos da sociedade capitalista.
A Criminologia Crítica surgiu nos Estados Unidos, sobretudo com o pensamento de
William Chambliss, e logo se espalhou para outros países, difundindo a ideia de realizar
uma reflexão analítica sobre o real funcionamento do poder e das instituições de
controle social. Essas teorias opõem-se ao positivismo, que focava sua análise no
delinquente, e demandam que o Estado, que até então não era objeto da Criminologia,
passe a sê-lo. Para a Criminologia Crítica, portanto, deve-se contestar a função
conservadora do status quo que a Criminologia vinha realizando até o seu surgimento.
Para as teorias marxistas, o crime é um produto histórico, patológico e contingente da
sociedade capitalista. Na ordem social, classes antagônicas se confrontam. Uma dessas
classes se sobrepõe e explora a outra, utilizando, para isso, o direito penal e a justiça.
Desse modo, o sistema legal é um instrumento a serviço da classe dominante para
oprimir a classe trabalhadora.
A justiça penal possuiria administradores: os funcionários públicos não estão lá para
lutar contra o crime, mas sim para realizar a administração do fenômeno, recrutando a
população desviada dentre as classes trabalhadoras que são sua clientela habitual. Por
isso fala-se que é necessário formular uma definição proletária de crime.
A Criminologia Crítica, em certa medida, produz um retorno ao determinismo,
mas agora não um determinismo biológico, como dos positivistas. Trata-se de um
determinismo econômico- social, que deriva do modo de produção desigual do
capitalismo. Aqui, no entanto, costuma-se dizer que não há um determinismo tão rígido
como aquele do século XIX, pois compreende-se que nem todos os marginalizados
sociais cairão na engrenagem penal. Por isso, nas provas, algumas bancas falam em
determinismo econômico e social (Cebraspe, por exemplo), enquanto outras (MPE-GO,
por exemplo) defendem que existe livre-arbítrio, ou seja que os indivíduos são livres e
escolhem o caminho da desviação como solução das contradições capitalistas.
Em resumo, para a Criminologia Crítica não é possível fazer Criminologia sem
questionar os processos de criação da lei penal de acordo com os interesses da classe
dominante (chamados processos de definição) e os processos discriminatórios de
aplicação da lei em prejuízo das classes oprimidas (chamados processos de seleção).
Do ponto de vista metodológico, a Criminologia Crítica se distancia das técnicas das
ciências sociais. Não aceitam investigações puramente empíricas. Preferem o método
histórico-analítico, em que são analisadas as agências de controle social da sociedade
capitalista. Assim, por exemplo, no lugar de pesquisas estatísticas e empíricas, nascem
pesquisas analíticas, descritivas, situacionais, que consideram a historicidade da
situação social.
William Chambliss
William Chambliss é o principal nome da Criminologia Crítica nos Estados Unidos.
Autor de Law, Order and Power, de 1971, foi ao mesmo tempo pioneiro e
sistematizador da Criminologia Crítica em seu país. Resumidamente, Chambliss explica
que as ciências sociais são dominadas por duas grandes perspectivas de trabalho: o
modelo funcional, ligado ao trabalho de Durkheim, e o modelo dialético, derivado da
obra de Karl Marx.
Para a visão funcionalista, o crime ofende a moralidade do povo, mas é útil porque
une e concentra as consciências íntegras. Assim, o crime estabelece e preserva os
limites morais da comunidade. É o típico pensamento de Durkheim.
Para a visão dialética, os atos são criminosos porque é do interesse da classe
dominante assim defini-los. A rotulação de pessoas como criminosas serve aos
interesses da classe dominante.
É o típico pensamento derivado de Karl Marx.
Para compreender qual modelo explica mais corretamente a distribuição do
comportamento criminoso, Chambliss analisa e compara a aplicação de leis criminais na
Nigéria e nos Estados Unidos, países que herdaram o direito consuetudinário britânico.
Ele utiliza o método de observação participante e de aplicação de entrevistas de
informantes de todo os aspectos do direito criminal: criminosos, prostitutas, policiais,
empresários, servidores públicos, etc.
Analisando especificamente dados de Ibadan (Nigéria) e Seattle (EUA), ele percebe que
em ambos os países muitas leis são sistematicamente violadas impunemente por aqueles
que detêm os recursos políticos e econômicos da sociedade.
Alessandro Baratta
Alessandro Baratta foi um filósofo, sociólogo e jurista italiano. Seu pensamento, em
grande parte desenvolvido na Alemanha, onde recepcionou a teoria o labelling
approach, é central para a Criminologia Crítica e, posteriormente, para as teorias de
direito penal mínimo. Em 1982, publicou Criminologia Crítica e Crítica do Direito
Penal.
Nesse livro, ele defende que o processo de criminalização é o mais poderoso mecanismo
de reprodução das relações de desigualdade do capitalismo. Para ele, a luta por uma
sociedade democrática e igualitária passa pela superação do sistema penal.
Ele retoma a ideia de que a história do sistema punitivo é a história das relações entre
ricos e pobres. Na sociedade capitalista, há uma drástica repartição desigual de acesso
aos recursose às chances sociais. A mobilidade social é um mito: raramente as pessoas
das classes mais baixas conseguem ascender.
Sistema Penal e Reprodução da Realidade Social
Para Baratta, o sistema escolar – assim como o sistema penal – ajuda a refletir a
estrutura vertical e hierarquizada da sociedade. As sanções escolares negativas, tais
como repetição de anos, notas baixas em provas, expulsões, etc., são muito maiores
quando se desce aos níveis inferiores da escala social. E aí, diante dessas dificuldades,
advêm sanções negativas que refletem o quanto a escola é um instrumento de
transmissão da cultura dominante.
Voltando aos pressupostos do Labelling, Baratta usa a ideia de que as instâncias de
controle social formal criam a criminalidade, constituem o delito e que, nesse
processo, selecionam a população carcerária nos estratos mais baixos da
população. A desigual distribuição de definições criminais – muito maior entre os
pobres e muito menor entre os ricos – ocorre não de maneira fortuita, mas seguindo
regras próprias, que Baratta chama de “second code”. Esse segundo código social,
portanto, revela que o Direito Penal desenvolve um importante papel de reprodução das
relações sociais, especialmente na circunscrição e marginalização de uma população
criminosa recrutada nos setores mais débeis do proletariado.
O sistema penal age, então, de forma bastante similar à escola, reproduzindo a
estratificação e operando no sentido de mantê-la. Dessa similaridade decorrem, segundo
Baratta, os mecanismos de internação de menores delinquentes e o intercâmbio entre
internos dessas instituições e dos presídios. São a mesma população, submetem-se à
mesma lógica. Apesar de as instituições de internação de menores infratores
pretenderem ressocializar, não é isso que ocorre. A cada sucessiva passagem do menor
por uma instituição de assistência corresponde um aumento, em lugar de diminuição,
das chances de ser selecionado para uma carreira criminal.
Essas ideias questionam a neutralidade do Direito, demonstram a importância que a
estigmatização produz no indivíduo e colocam em xeque a função educativa da pena.
Cárcere e Marginalidade Social
Baratta é absolutamente crítico do cárcere. Ele diz que têm se mostrado infrutíferas
as tentativas de socialização e de reinserção através dessas instituições. Os institutos de
detenção são o momento culminante do mecanismo de marginalização. Neles, chamam
a atenção o constante regime de privações a que são submetidos os condenados e o
processo negativo de socialização. Trata-se de um processo de socialização em que há:
• desculturação, isto é, desadaptação às condições necessárias para a vida em
liberdade;
e
• aculturação ou prisionalização, que é a assunção de atitudes e modelos de
comportamento típicos da subcultura carcerária. Na prisionalização, que também pode
ser chamada de prisionização, o condenado é educado tanto para ser um criminoso
(copiando os criminosos com forte orientação antissocial) como para ser um bom preso,
passivo, conformista e oportunista.
A educação para ser um bom preso acaba se tornando o verdadeiro objetivo da
instituição, enquanto a função educativa real é excluída desse processo.
Na prática, portanto, as prisões produzem efeitos contrários à reeducação e à reinserção
do condenado, e, logo, favoráveis à sua estável permanência na população criminosa.
Por tudo isso, Baratta defende a adoção de uma política criminal alternativa, que não
pode ser confundida com política penal alternativa. Seu desejo não é apenas de melhorar
o Direito
Penal, mas de substituí-lo por algo melhor que o Direito Penal, parafraseando Radbruch.
Na política criminal alternativa haveria a diferenciação da criminalidade pela posição
social do autor.
A criminalidade de rua, dos pobres – respostas individuais às adversidades do
capitalismo – seria despenalizada, ou seja, seria equacionada por controles sociais não-
estigmatizantes, tais como sanções administrativas ou civis. A criminalidade dos
poderosos e a criminalidade organizada – expressão da relação funcional entre
processos políticos e mecanismos legais e ilegais de acumulação de capital – seriam
destinatárias da ampliação do sistema punitivo, pois isso significaria proteção de
interesses comunitários tais como saúde, segurança no trabalho e integridade ecológica.
No limite, o objetivo último dessa reforma é a abolição da instituição carcerária,
em função da consciência do fracasso histórico da instituição. Para se chegar ao objetivo
final, talvez seja necessário passar por algumas etapas, como a ampliação do sistema de
penas alternativas; o alargamento das hipóteses de livramento condicional, suspensão
condicional da pena e sistema de progressão de regime; aumento das permissões de
saída; reavaliação do trabalho carcerário; e, especialmente, a abertura do cárcere para a
sociedade.
Criminalização primária e secundária
Baratta utiliza os conceitos de criminalização primária e secundária para explicar o
processo seletivo de criminalização. A criminalização primária é o ato de aprovar ou
sancionar uma lei penal que tipifica condutas. A criminalização secundária (punição
no caso concreto) é a ação punitiva exercida pelo sistema de justiça criminal sobre
pessoas concretas: é a aplicação da pena os processos de criminalização secundária –
punição no caso concreto – desenrolam- se com base em preconceitos e estereótipos.
Policiais, delegados, promotores e juízes procuram a verdadeira criminalidade naqueles
estratos sociais em que é normal encontrá-la.
A pessoa etiquetada com o rótulo de criminosa tem a sua identidade social alterada. Ele
não é visto mais da mesma maneira e nem se vê mais do mesmo modo. Fica muito fácil
que se instale, então, a delinquência secundária (reincidência) e que nasça uma carreira
criminal.
Michel Foucault
Michel Foucault foi um filósofo francês que, em 1975, lançou Vigiar e punir:
Nascimento da Prisão. É um estudo sobre a evolução histórica do cárcere e da
legislação penal. Seu pensamento surge na mesma época em que a Criminologia Crítica
se desenvolvia e apresenta, com ela, bastante conexão. A obra de Foucault foi uma das
responsáveis por descobrir o pensamento de Rusche e Kirchheimer.
Saímos do suplício, rituais bárbaros e ostensivos que evocavam o poder do Monarca;
passamos, a partir do século XVIII, pela reforma pretensamente humanista, que
incorporou uma ideia de suavidade penal, com a humanização e universalização das
penas, já nas mãos de um juiz que divide seu poder com os juízes auxiliares; e
chegamos, a partir do século XIX, à universalização da pena de prisão.
Ou seja, agora relacionando com as escolas criminológicas: Foucault faz uma análise
da suposta suavização penal passando pelos momentos históricos dos suplícios, das
penas proporcionais ao delito (conectadas à Escola Clássica, direcionadas à alma)
e, por fim, da disseminação do cárcere como punição por excelência (conectada ao
pensamento positivista, como veremos, e com um regresso de direcionamento ao corpo
do homem delinquente).
Quando o emprego da prisão se dissemina, ainda que não sejam empregados castigos
violentos e sangrentos, trata-se, novamente, do corpo do condenado: da sua
utilidade, da sua docilidade, da sua submissão. Há uma tecnologia política do corpo:
uma microfísica do poder que sabe muito sobre o corpo (bem a cara do positivismo!) e
que controla suas forças. O discurso de que a nova punição é sobre a alma não consegue
mascarar que continua (ou volta) a haver, sobretudo com a disseminação da pena
privativa de liberdade, uma pesada tecnologia do poder sobre o corpo.
É que, em realidade, já na segunda metade do século XVIII, ainda na Era Clássica,
surge uma preocupação em controlar o corpo em larga escala. Não se trata de cuidar do
corpo, mas de esquadrinhá-lo detalhadamente, de exercer sobre ele uma coerção sem
folga. Essa é a ideia do corpo dócil: um corpo que se analisa, que se manipula, que se
modela, que se treina, que obedece ao adestramento. Para que isso funcione, é
necessário atentar aos detalhes: inspeções minuciosas, regulamentos detalhados e
controle das mínimas parcelas da vida e do corpo começam a ter lugar. Ganha força,
então, a ideia de poder disciplinar e de sociedade disciplinar, que vai se fortalecendo nos
séculos seguintes.
Quando fala do nascimento do poder disciplinar, Foucault não se refere
especificamente às prisões. Ele exemplifica com a vida nos quarteis, instituições
médicas, escolares e industriais. Mas ele demonstra que, com o passar do tempo, o
cárcere se revela uma importante e útil ferramenta para implementar o poder disciplinar.
Foucault faz uma distinção entre infrator (ou condenado) e delinquente. A partir do
momento em que o infrator é condenado, ele passa a ser objeto do saber sobre o corpo.
E aí, nesse processo, o aparelho penitenciário efetua uma substituição: das mãos da
justiça ele recebe um condenado (infrator), mas no lugar do condenado ele coloca o
delinquente, que é o indivíduo a ser conhecido, analisado, retreinado. O condenado ou
infrator é caracterizado pelo ato que cometeu. O delinquente, pela sua vida. A
operação penitenciária deve totalizar a vida do delinquente, tornar a prisão uma espécie
de teatro artificial e coercitivo onde toda a existência do delinquente será refeita. O
castigo da justiça ao infrator diz respeito a um ato. A técnica punitiva, a uma vida.
Por trás do infrator, revela-se o caráter delinquente, e nesse processo joga importante
papel a investigação biográfica. O infrator, que era apenas autor de um ato, se distingue
do homem delinquente, que está amarrado ao seu delito por instintos, pulsões,
tendência, temperamentos.
Quem quer que passe pelo cárcere leva consigo as marcas dessa coerção máxima
estatal consubstanciada na pena privativa de liberdade. Afinal, a prisão deixa
traços no corpo, impõe hábitos, determina comportamentos, envolve disciplina.
A disciplina é feita com o adestramento dos corpos, por meio de:
• vigilância hierárquica: redes verticais de relações de controle, em que os
controladores operam vendo tudo o que acontece. São verdadeiros observatórios da
multiplicidade humana.
• sanção normalizadora: sistema de recompensa e de punição instituído para corrigir
desvios, especialmente mediante micropenalidades baseadas no tempo (atrasos,
ausências), na atividade (desatenção, negligência), e em maneiras de ser (grosseria,
desobediência).
exame: os exames altamente ritualizados sobre os corpos são cerimônias de poder e
demonstração de força. Os corpos são analisados, as celas são revistadas e formam-
-se verdadeiros arquivos com documentos sobre detalhes e minúcias dos corpos e dos
dias. O indivíduo é mensurado, descrito, comparado e isso se constitui em renovação
constante do ritual de poder. O exame, com todas suas técnicas documentárias, faz de
cada indivíduo um caso.
O poder disciplinar, que começa centrado em locais determinados (“disciplina-bloco”
de quarteis, colégios, grandes oficinas) passa a ser transportado para todo o corpo social,
formando o que Foucault chama de sociedade disciplinar (“disciplina-mecanismo”). O
panoptismo também se espalha pela sociedade, ajudando na multiplicação das
instituições de disciplina, sobretudo quando se verifica a acumulação de capital e as
grandes explosões demográficas
(acumulação de seres humanos). Trata-se de uma tecnologia minuciosa e calculada da
sujeição de grupos populacionais, sem a necessidade de emprego da forma de poder
tradicional, ritual, dispendiosa e violenta. O controle policial permanente, exaustivo,
onipresente, produtor de inúmeros relatórios e registros é parte importante desse
fenômeno de generalização do panoptismo.
Foucault explica, ainda, que a prisão tem sido denunciada como o grande fracasso
da justiça penal. Mas ele chama atenção para o fato de essa não ser uma crítica recente,
já que ela aparece muito cedo, praticamente superposta ao próprio nascimento da
detenção punitiva.
As prisões:
• não diminuem a taxa de criminalidade;
• provocam a reincidência;
• fabricam delinquentes (porque não pensam no homem em sociedade e
porque impõem limitações violentas, funcionando abusiva e
arbitrariamente);
• favorecem a organização (solidariedade e hierarquia) de delinquentes; e
• fabricam indiretamente mais delinquentes ao fazer cair na miséria a
família do detento.
Afinal, a prisão não se destina a suprimir infrações, mas sim a distingui-las, distribuí-las
e utilizá-las. A penalidade é uma maneira de gerir as ilegalidades, de traçar
limites de tolerância, deixando algumas pessoas dentro da economia geral
das ilegalidades, e excluindo outras. Ela demarca qual a forma particular de
ilegalidade sobre a qual quer jogar luz. A delinquência (aqui usando o conceito
específico de Foucault, que contrapõe delinquente e infrator; que separa a delinquência,
como sinônimo de vida criminosa, da infração, sinônimo de ato criminal isolado) é a
ilegalidade que o sistema carcerário recortou e organizou. É o que ele chama de
ilegalidade dominada, que funciona, aliás, como um agente para a ilegalidade dos
grupos dominantes. Para que a ilegalidade dos grupos dominantes funcione e tenha
seus lucros, seja na prostituição, no tráfico de armas e de drogas, controla-se e
maneja-se a ilegalidade dos “delinquentes”. A criminalidade de necessidade (dos
pobres, dos necessitados) mascara, com os holofotes que atrai, a delinquência de
cima. A delinquência da riqueza é tolerada pelas leis, pelos tribunais e pela
imprensa.
Assim, para Foucault, se há um desafio global em torno da prisão, ele reside na
alternativa: prisão ou algo diferente da prisão?
Criminologia Cultural
Em tempos mais recentes, sobretudo a partir de meados dos anos 90, surgem muitos
textos e obras sobre Criminologia Cultural. Alguns autores abordam os cultural studies
dentro da Criminologia Crítica, e por isso vou falar brevemente sobre eles.
A Criminologia Cultural é um ramo da Criminologia que se debruça sobre a
criminalização da cultura diferente, como a de grafiteiros, punks, neonazistas, roqueiros,
mendigos, prostitutas etc. Trata-se, então, de um grupo de teóricos preocupados com a
subcultura de que falava Albert Cohen, mas agora dentro de um enfoque conflitual da
sociedade.
A Criminologia Cultural tem um grande referencial teórico e metodológico no labelling
approach, mais especificamente no livro Outsiders, do Howard Becker, que, como já
explicamos, analisou os grupos de usuários de maconha e músicos de jazz.
Em resumo, a Criminologia Cultural não é uma nova teoria: ela incorpora para o mundo
contemporâneo, multicultural, uma série de orientações teóricas da Criminologia, tais
como subculturais, interacionistas, críticas, para tentar compreender a convergência de
processos culturais, criminais e de controle do crime.
A Criminologia Cultural, sem se preocupar com classificações pormenorizadas dos
grupos subculturais, parte da ideia de que o mundo é desigual e injusto, e procura
entender como o poder é exercido, como ele é resistido pelos grupos culturais, e como
se dá o mecanismo de criação de regras, de violação de regras e representação do crime.
O foco, na Criminologia Cultural, é o estilo, a linguagem, os significados simbólicos
do crime para esses grupos, e o modo empregado pelas autoridades para criminalizar
essas condutas diante da existência de múltiplos sistemas válidos de valores.
Q4ESTA6 31