Você está na página 1de 102

Edição

Janeiro 2016
Portugal €3,95
(Continente)
especial
HISTÓRIA
00009

601753 002591
5

MITOS E
LENDAS
de todos
os tempos

O papel dos mitos • Os deuses do Olimpo


Mistérios ibéricos • Locais mitológicos
Fábulas no feminino • Os maiores heróis
400
<h1>

dica s </h1>

hard e sen
p a ra a r
g ra m
e pro bsite!
um we uas páginas!
eos nas s k
Ponha víd otões de Faceboo
b r
Adicione sletter para envia
new
Prepare a site de venda
s!
Faça u m
nc as

design
pl.pt/web
as

servicos.m
baJá n
Para além do real 4
O papel dos relatos iniciáticos
Edições, Publicidade e Distribuição, Lda.
A morada dos deuses 8
Conselho de Gerência
Marta Ariño, Rolf Heinz, Carlos Franco Perez, João Ferreira Olimpo, Fuji, Kailash, Penglai
Editor Executivo
João Ferreira
Os deuses do Olimpo 16
Divindades da Grécia Antiga
Ancestral Ibéria 24
www.superinteressante.pt
Tartessos e outros enigmas
Diretor
Carlos Madeira cmadeira@motorpress.pt Em busca do paraíso 32
Coordenador Locais lendários de todo o mundo
Filipe Moreira fmoreira@motorpress.pt

Colaboraram nesta edição


Fábulas no feminino 40
Alberto Porlan, Alfredo Redinha, Bernardo Souvirón, Carlos Mulheres mitológicas
García Gual, Fernando Cohnen, Iria Pena Presas, Janire Rámila,
José Ángel Martos, Laura Manzanera, Maria Pílar Queralt
Hierro, Roberto Piorno e Vicente Fernández de Bobadilla. Criaturas fantásticas 48
Animais e seres singulares
Tel.: 21 415 97 12 – Fax: 21 415 45 01

Coordenadora de Publicidade
Susana Mariano smariano@gjportugal.pt

Assistente Comercial
Elisabete Anacleto eanacleto@gjportugal.pt

Rua Policarpo Anjos, 4


1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo
Tel.: 21 130 90 67 - Fax: 21 415 45 01

Assinaturas e edições atrasadas


http://www.assinerevistas.com
Sara Tomás assinaturas@motorpress.pt
Tel.: 21 415 45 50/00 - Fax: 21 415 45 01/04

Edição, Redação e Administração


G+J Portugal – Edições, Publicidade e Distribuição, Lda.
Rua Policarpo Anjos, 4 – 1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo

GETTY
Capital social: 133.318,02 euros
Registada no Registo Comercial de Lisboa com o n.º 11.754
Contribuinte n.º 506480909
Publicação registada na Entidade Reguladora
para a Comunicação Social com o n.º 118.348
Propriedade do título e licença de publicação:
Gruner + Jahr Ag & Co./GyJ España Ediciones, SL
Calle Albasanz, 15 – 28037 Madrid – NIPC D-28481877

Impressão
Lisgráfica, S.A.
Queluz de Baixo
Depósito legal n.º 122152/98

Distribuição
Urbanos Press – Rua 1.º de Maio
Centro Empresarial da Granja – 2525-572 Valongo
Documento 56
Todos os direitos reservados. Em virtude do disposto Figuras lendárias
no artigo 68º n.º 2, i) e j), artigo 75.º n.º 2, m) do Código
do Direito de Autor e dos Direitos Conexos artigos
10.º e 10.º Bis da Convenção de Berna, são expressamente O lugar dos heróis 76
proibidas a reprodução, a distribuição, a comunicação
pública ou colocação à disposição da totalidade
Entre o mito e a realidade
ou de parte dos conteúdos desta publicação, com fins
comerciais diretos ou indiretos, em qualquer suporte Histórias ocultas 84
e por quaisquer meios técnicos, sem a autorização
da G+J Portugal - Edições, Publicidade e Distribuição, Lda., Preciosidades destruídas em conflitos
da Gruner+Jahr Ag & Co., da GyJ España Ediciones, S.L.S en C.
ou da VISAPRESS, Gestão de Conteúdos dos Média, CRL.
Edição escrita ao abrigo do novo acordo ortográfico.
Os mitos no cinema 92
Silêncio, câmara. ação!
Relatos iniciáticos

Para além
do real
As histórias que nos relatam
factos extraordinários, cheios
de seres e lugares lendários,
acompanharam todas
as culturas da humanidade,
tendo criado um fabuloso
imaginário que sobreviveu
ao tempo. Transmitidos
de geração em geração,
ao longo de centenas
de anos, os mitos
conservaram-se graças à
tradição oral e, mais tarde,
aos textos escritos.

A
palavra “mito” tem muitos e diferentes sen-
tidos – pode ser uma narrativa sagrada, um
conto, uma ficção ou, ainda, uma persona-
gem popular. Daí que seja necessário pre-
cisar a sua definição. Trata-se, no sentido clássico do
termo, de uma história tradicional e memorável, em
que se dá conta das façanhas de seres extraordinários
(deuses e heróis) numa distante época de prestígio.
Os mitos são relatos fabulosos, vindos de épocas
remotas, que sobrevivem ao longo do tempo no imagi-
nário coletivo. São parecidos com as histórias sagradas
de uma tribo; são antigos, nasceram muito antes do sur-
gimento da escrita e viajam pelos séculos, de geração
em geração. Segundo o antropólogo belga Marcel
Detienne, “os mitos vivem no país da memória”. Dão
resposta aos enigmas da existência humana através
da evocação de figuras e gestas prodigiosas que ultra-
GETTY

passam as fronteiras da realidade quotidiana, grandes

4 SUPER
Éden primordial. Ao longo
dos séculos, as civilizações
encontraram alívio para a sua
angústia existencial em fábulas
míticas sobre eras paradisíacas.

Interessante 5
Os mitos são
relatos fabulosos
transmitidos ao
longo de gerações
proezas que marcaram para sempre o destino do mundo,
protagonizados nos primórdios da história humana;
são relatos assombrosos e feitos sobrenaturais que
exigem crença e prometem consolo e felicidade.
O conjunto de mitos de uma cultura vai dar forma à
sua mitologia tradicional. Em todas as civilizações, na
sua fase arcaica, existe uma vívida mitologia que lhe
é intrínseca. “Um povo sem mitos morreria de frio”,
escreveu o filólogo G. Dumézil (1898–1986). Esta estru-
tura narrativa dá resposta à natural inquietude dos
seres humanos, e o seu aglomerado de relatos fornece
uma visão fantástica do mundo, fala das suas raízes
ocultas, ou seja, reporta aos seres divinos e às ações
que os fundamentam. É como se o ser humano necessi-
tasse de dar sentido à sua existência com histórias que
têm um pano de fundo sagrado, com presenças divi-
nas que se encontram para além do presente efémero
AISA

e da nossa condição mortal.


É para esse caminho que apontam os grandes mitos,
esses relatos mágicos e basilares da cultura. Além dos tórias de deuses e heróis persistiram durante séculos,
mais importantes, há outros mitos que explicam misté- mantendo o seu estranho encanto e o seu fascínio graças
rios bem concretos: por exemplo, como surgiu o fogo, à literatura e à poesia.
como apareceu a primeira mulher, como eram e depois A palavra “lenda” vem do latim, não do grego. Por
desapareceram os monstros primevos, como surgiu sua vez, o termo “mito” deriva do grego mythos, que
determinado ritual, quem inventou a figura do rei, em latim se traduziu para “fábula”. Em latim, “lenda”
etc. As mitologias são muito diversas e dão uma ideia surge como legenda, significando, literalmente, “o
da fantástica capacidade de imaginação, no período que é para ser lido”, uma palavra que se destina a ser
arcaico, para forjar deuses e monstros com os mais aplicada a relatos não tão antigos e grandiosos como
aberrantes aspetos. os verdadeiros mitos: é posterior ao surgimento da
escrita, aparecendo na tradição popular, no latim tar-
NARRAÇÕES MARAVILHOSAS dio e em algumas crónicas medievais. As lendas, com
Tal como salientaram alguns antropólogos, os mitos o seu halo fantástico e maravilhoso, perduram dentro
dão fundamento aos costumes e às normas de uma das tradições. As personagens que nelas surgem cos-
coletividade na sua etapa primitiva, mas não se ficam tumam ser heróis (não são deuses) históricos ou quase
apenas por esse período. Na maioria das culturas, os históricos, evocando um espaço e um tempo con-
mitos estão ligados à religião e às crenças religiosas. cretos, com a narração a revesti-las de um prestígio
Formam a narrativa central das religiões e conjugam-se lendário. É o que sucede nos relatos da hagiografia
com os rituais e cerimónias que, por norma, evocam cristã, nomeadamente com as histórias em torno dos
e representam os momentos de maior destaque dos santos, que se tornaram muito populares: atualmente,
mitos. Não obstante, os mitos conseguem perdurar estas narrações estão em declínio no imaginário popu-
mais do que a religião que os incorpora, isto é, sobrevi- lar, encontrando-se mais esquecidas do que as figuras
vem ao eclipse ou desaparecimento das crenças que os pagãs da antiga mitologia greco-latina. Ao mesmo
sustentavam. Desenraizadas da ingénua fé primitiva, tempo, e em alguns casos, o termo “lenda” é usado
as histórias e as figuras míticas podem perdurar na como sinónimo de mito, como, por exemplo, quando
literatura e no imaginário coletivo. É o que acontece, se cita a lenda ou o mito de Alexandre, o Grande.
na cultura ocidental, com a mitologia clássica e o seu Mitologia e religião estão de mãos dadas em muitas
repertório de mitos herdados de gregos e romanos. culturas. Os mitos eram apresentados como uma mani-
A religião pagã foi abolida pelo cristianismo, mas as his- festação do mundo sobrenatural, uma santa e genuína

6 SUPER
ram-se temas da literatura, o que levou a que perdu-
rassem na tradição literária humanista.
Até que ponto as pessoas acreditavam ou acreditam
em mitos é algo muito difícil de precisar. Numa socie-
dade primitiva ou selvagem, estes relatos fabulosos
oferecem uma visão ingénua do mundo, a qual acaba
por se justificar tendo em conta que se trata de uma
comunidade ancestral. Contudo, numa sociedade mais
desenvolvida e moderna, a cosmovisão já se baseia na
ciência e na lógica. Não obstante, o olhar científico e a
tecnologia não dão resposta aos grandes enigmas da
humanidade, nomeadamente às questões sobre o sen-
tido de existirmos. É por isto que a religião e os mitos,
com a sua imensa variedade, sempre existiram, pro-
metendo-nos um sentido final. Como referiu Platão,
trata-se de uma “aposta arriscada”.
Devido à sua função social, os mitos também foram
usados, sobretudo no mundo moderno, como arma
política. Proporcionam imagens e figuras emotivas
que podem servir de propaganda ideológica numa
sociedade de massas. A forma como o nazismo mani-
pulou o mito da raça ariana para os seus próprios fins
é um exemplo sobejamente conhecido; embora haja
Rapto lendário. O que seria da dúvidas sobre se não é melhor falar, neste caso, de
arte ocidental sem mitos clássicos mitos políticos, ou, se quisermos ser mais específicos,
como o do sequestro de Helena de
da utilização política das estruturas míticas. Por vezes,
Esparta pelo príncipe troiano Páris?
não é preciso recorrer a uma história lendária por
inteiro, basta usar uma sequência ou imagem da mesma
para impressionar o novo público. Como sabemos, as
revelação dada a conhecer por alguns profetas elei- imagens heroicas e os clichés míticos chamam a atenção
tos, ou, ainda, veículos de uma mensagem divina. e servem de reclame. Aliás, a atual propaganda comer-
Nos mitos, anuncia-se e revela-se a verdade invisível cial, mais subtil e inócua, recorre a imagens míticas
aos que confiam nas sagradas palavras proféticas. De para promover determinados produtos.
modo a fixá-las para a posteridade, estas revelações
míticas podem codificar-se na forma de escrituras VIAGEM NO TEMPO
sagradas (em um ou vários livros, como os da Bíblia). É Quanto aos mitos clássicos – dos gregos e dos roma-
o que acontece com as chamadas “religiões do Livro”, nos –, dos quais só sobraram as transcrições literárias,
dando aos seus mitos um sólido monolitismo e um ou seja, despojados da crença religiosa, é vê-los per-
austero dogmatismo. durar com um renovado fervor: em incontáveis textos
poéticos, no teatro ou no cinema, e até nos romances
LITERATURA NÃO RELIGIOSA é possível deparar com os velhos e frívolos deuses, tal
Em muitas culturas, os guardiães das tradições ligadas como os admiráveis heróis (Ulisses, Aquiles, Medeia,
aos mitos, assim como quem os conta e comenta, são Helena de Troia, etc.). Modernizadas, atualizadas e, às
os sacerdotes. Na Grécia Antiga, com a sua religião vezes, tratadas com ironia, a verdade é que as perso-
politeísta, eram os aedos (os cantores de poemas épi- nagens dos heróis e deuses da Antiguidade resistem
cos) e os poetas quem estava encarregado de difundir ao esquecimento.
estas histórias. É normal que uma religião com diversos Foi nas artes plásticas que a mitologia clássica per-
deuses e muitos heróis, sem uma igreja dogmática ou durou com mais força, renovando o seu encanto no
um livro sagrado, como era o caso da grega, acabe Renascimento e nos séculos posteriores. Basta dar um
por ter uma mitologia mais rica do que uma religião passeio por qualquer grande museu e imaginar como
monoteísta. É precisamente esta liberdade narrativa, seria pobre a arte ocidental sem estas figuras nascidas
proporcionada pela narração poética, que faz reviver dos mitos. A mitologia enriquece o nosso imaginário
ao longo dos séculos o legado mítico helénico. Neste com um fantástico tropel de imagens festivas e mul-
género de tradição, as personagens que entram nos tiformes. As suas fábulas levam-nos, a bordo de um
relatos fantásticos alcançam novos perfis e caracterís- tapete mágico, a paisagens e cenas de extraordinário
ticas, ao mesmo tempo que se humaniza e dramatiza encanto, exercitando o nosso intelecto e fazendo-nos
os heróis e os deuses (como acontece com Prometeu embrenhar numa viagem sem paralelo.
e Dionísio, por exemplo). Na Grécia, os mitos torna- C.G.G.

Interessante 7
GETTY

Olimpo, Fuji, Kailash, Penglai

A morada dos deuses


Da Grécia ao Japão, passando pela Índia e pela China,
quatro montes acolheram os lares das divindades de
culturas muito diferentes. A proximidade entre a terra
e o céu torna-se patente nestes maciços impressionantes,
inspiradores para artistas de todas as épocas e disciplinas.

8 SUPER
ALBUM

A residência de Zeus. O monte Olimpo, o mais alto da Grécia, situado entre


as regiões da Tessália e da Macedónia, foi o local escolhido pelos antigos helenos
para alojar todos os deuses da sua riquíssima mitologia, mas não de qualquer
maneira: viviam em sumptuosas mansões de cristal construídas no cume.
Segundo a tradição, só doze formavam o Concílio dos Deuses, e poderiam ser
(não há consenso a este respeito) Zeus, Deméter, Artémis, Poseídon, Hermes,
Afrodite, Ares, Hefesto, Apolo, Héstia, Perséfone, Hera, Ateneia e Dionísio.
Para dar vida a estes seres supremos e à sua casa, muitos pintores retraram
o espaço com os seus míticos habitantes, como neste fresco de Luigi Sabatelli
no teto de uma das divisões do Palácio Pitti, em Florença.

Interessante 9
GETTY

10 SUPER
GETTY
Símbolo religioso e cultural. O monte Fuji, o mais alto do Japão, situado
a oeste de Tóquio, converteu-se com o passar do tempo num autêncio símbolo
do país nipónico. O vulcão é considerado sagrado desde o século VII, e foram
várias as religiões que lhe atribuíram um caráter sagrado, incluindo o budismo
e o xintoísmo. Até ao final do século XIX, as mulheres estavam proibidas
de o escalar. A culura popular também se fez eco da beleza do local.
É o caso da Grande Onda de Kanagawa, que integra a série de gravuras Trinta
e Seis Vistas do Monte Fuji, realizada no século XIX por Katsushika Hokusai.

Interessante 11
AGE

Cume sagrado para budistas e hindus


O monte Kailash fica no Tibete, e nele nascem alguns dos
maiores rios da Ásia, como o Indo. É considerado sagrado
por duas das religiões mais importantes do mundo, o budismo
e o hinduísmo. O ramo tântrico dos primeiros crê que habita
nele o buda Demchok. Para a mitologia hindu, Shiva (em cima),
deus da destruição, reside no cume e a montanha representa
o seu falo. Noutros credos, a espetacular paisagem é
vista como o paraíso. Todos os anos, milhares de pessoas
de diferentes religiões peregrinam a este lugar, realizando
uma rota a pé em torno da montanha para atrair a boa sorte.
Os budistas, além disso, celebram aqui o festival Saga Dawa,
no qual um pau de bandeira (tarboche) recolhe pequenas
bandeiras coloridas com variadas orações. Pelo seu caráter
sagrado, o cume jamais foi pisado por um ser humano.

12 SUPER
GETTY

Interessante 13
ALBUM

14 SUPER
GETTY
Local inspirador. Os oito imortais, um dos
grupos mitológicos mais importantes da China,
vivem no monte Penglai. O sítio e as personagens
que nele residem foram ao longo de séculos
inspiração para artistas de várias disciplinas,
como o pintor nanga Tomioka Tessai, que
realizou esta aguarela do monte dos imortais.
Apesar da fama do local, ninguém conseguiu
identificar o sítio exato da morada dos deuses.
A cidade portuária de Penglai (em cima),
situada na província Shandong, reclama o seu
protagonismo no relato mítico, afirmando que
foi ali que os imortais caminharam sobre as
águas. Este facto levou a que vários imperadores
procurassem na cidade a receita da imortalidade.

Interessante 15
16 SUPER
Divindades da Grécia Antiga

ALBUM
Os deuses
do Olimpo
A mitologia grega ocupa
um lugar privilegiado
na cultura ocidental,
tendo-a marcado de forma
indelével. Para entendê-la,
há que conhecer primeiro
as deidades então veneradas
e os cultos que se faziam
em torno delas.

T
odas as manifestações da cultura grega,
tanto as materiais como aquelas a que pode-
mos chamar “espirituais” ou “anímicas”, se
encontram demarcadas pela presença perma-
nente dos seus adorados deuses. A Antiguidade greco-
-latina é profundamente religiosa. Os seus deuses
aparecem em quase todos os versos, estátuas, vasos de
cerâmica, recantos de cidades e vias que se percorrem.
Qualquer tentativa de aproximação ou explicação do
universo mitológico da Grécia Antiga será estéril se
não tivermos como ponto de partida o estudo dos seus
deuses. A análise, apesar de preponderante, não é fácil
de fazer, pois na Grécia nunca houve um livro sagrado
nem um clero que guiasse os passos dos crentes por um
caminho pretensamente correto. No entanto, esta não
é a única grande característica. É somente um primeiro
traço que distingue a fé dos gregos da maior parte
das religiões existentes, sejam antigas ou modernas. É
preciso ter em conta, ao mesmo tempo, que esta mesma
característica foi responsável por converter a experiên-
A queda dos gigantes cia religiosa em algo direto, pessoal, um diálogo aberto
Fresco maneirista italiano do século entre o deus e o mortal.
XVI, no qual os deuses gregos Os deuses gregos conseguiram ser o reflexo mais
expulsam da morada olímpica
os seus grotescos inimigos.
humano (e exato) da psique daqueles que os criaram,
e, desde o primeiro momento, foram um exemplo para

Interessante 17
As divindades gregas não oprimiam
nem impunham uma atitude correta
a primeira civilização que prestou atenção, amor e res- ordenar esse caos primordial até convertê-lo num kos-
peito ao ser humano. Os gregos imaginaram deuses que mos (o universo). Segundo Hesíodo, após o Caos apa-
não são sobrenaturais, pois, como veremos mais adiante, receram Gaia (Terra) e Eros (Amor), o mais bonito de
são filhos da mesma mãe que a dos homens e das mulhe- todos os deuses, a força que haveria de unir os demais
res. São sobre-humanos, na medida em que são mais elementos para depois tecer o cosmos, a ordem do
fortes do que nós e vivem eternamente, sem envelhecer. universo. O poeta também escreveu que do Caos sur-
Tirando isso, não são mais do que os humanos e, às giram, espontaneamente, sem intervenção de quem
vezes, a sua imortalidade é um fardo que carregam. quer que seja, duas criaturas tenebrosas: Nix (Noite) e
As deidades gregas, definitivamente, não são opres- Érebo (as trevas subterrâneas), dois irmãos sombrios
soras nem exigem aos mortais um comportamento e cheios de mistérios. Érebo vive debaixo de Gaia, em
imperiosamente correto. Não falam com os humanos cada fenda, em cada caverna; Nix, por sua vez, encon-
através das páginas de uma Bíblia ou Corão, nem se ser- tra-se no extremo ocidental (a Ibéria), para lá da terra
vem de um clero encarregado de velar por uma ortodo- habitada pelo titã Atlas, onde os raios de Sol acabam
xia mais ou menos intransigente. Não são abstrações por morrer todos os dias.
implacáveis ou quimeras com características impossíveis. Destes seres primevos, que não deixam de ser abs-
trações ameaçadoras, surgiu uma primeira geração de
POEMAS DIVINOS deuses que a mitologia diz serem os filhos da deusa da
Os deuses gregos têm rosto e habitam nos versos dos noite. De acordo com a lenda, Nix deu à luz, depois de
poetas. Foi o poeta beócio Hesíodo que estabeleceu, ser fecundada pelo seu irmão Érebo, duas belas cria-
por volta do século VII a.C., numa das suas obras, Teo- turas: Hemera (o dia) e Éter, seres completamente dis-
gonia, a árvore genealógica dos deuses gregos. O que tintos dos seus pais. O primeiro dos gémeos, Hemera,
havia antes disso, no início dos tempos? De acordo com é a personificação da luz, uma divindade feminina
o que escreveu, “no princípio era o Caos”. A evolução nascida para estar com a mãe, procurando-a sem des-
de toda a religião grega consistiu, precisamente, em canso. Esta situação torna-se uma maldição para a mãe
e para a filha, com ambas condenadas a encontrar-se
durante não mais do que um fugaz instante, durante
Terra-mãe
Neste relevo alegórico, o amanhecer e o ocaso, os únicos momentos em que
veem-se a deusa Gaia o dia e a noite se encontram nos confins do mundo.
e os filhos, Cronos e Reia. Quanto a Éter, o irmão gémeo de Hemera, é o céu
superior, o lugar em que a luz é gerada, pura, infinita
e imensa. Um lugar que os mortais, ofuscados, pouco
AISA

conseguem compreender.

26 SUPER
Eros, o deus do amor
Nascido do Caos primitivo,
assegura a continuidade da espécie
e vive numa perpétua insatisfação.

FAMÍLIA CELESTIAL
Nix teve outros filhos, e
também eles tiveram um papel
importante neste início da cos-
mogonia grega: Hipnos (sono) e o
seu irmão Thánatos (morte) que, com-
preensivelmente, só pontualmente apa-
recem nos mitos. Thánatos representa, de
forma geral, a morte tranquila, não violenta,
uma espécie de plácido prolongamento do seu
sonolento irmão Hipnos.
Também são filhas de Nix três lúgubres mulhe-
res, ligadas à Lua e vestidas com túnicas da cor
da neve. São as moiras, e a sua tarefa consiste
em fiar a vida de cada um dos mortais, desde
o seu nascimento até à morte. A primeira
delas é Átropos (inamovível) e as outras
duas irmãs chamam-se Cloto (fiadeira)
e Láquesis (sorte). Nos seus teares,
urde-se o fio que representa a vida
de cada um de nós. Cloto tem a mis-
são de tecer o fio da vida, Láquesis
enreda-o e Átropo corta-o com
a sua tesoura, quando chega a
hora da morte.
Outras criaturas nascidas de
Nix foram, com o passar do
tempo, sendo postas de lado,
devido à força emergente
de outros deuses, mais
jovens, filhos de um novo
mundo que precisava de
novas divindades.
Todavia, Nix não foi
o eixo principal desta
geração de deuses
gregos. Essa função
PRISMA

coube a Gaia (Gea),


a Terra. De facto,
Hesíodo apresenta-
-a como o elemento
primordial do qual
O número de
deuses olímpicos
varia com a época
e os autores
iriam nascer todas as linhagens dos deuses. Por norma,
diz-se que os filhos de Gaia constituem a primeira
geração de deidades gregas. Foi deste modo que o
poeta grego, em Teogonia, definiu a deusa da Terra:
“De amplo peito, para sempre firme alicerce de todos
os imortais que vivem no cume nevado do Olimpo.”
Gaia, sem intervenção de qualquer figura mascu-
lina, pariu Urano (céu), Ponto (mar) e as montanhas,
criando o mundo. Destes filhos, o mais importante, de
longe, foi Urano.

NOVOS NASCIMENTOS
Urano é a personificação do céu, o amante fecun-
dado a partir da terra, de Gaia. Desde sempre que a
abóboda celeste é vista pelas religiões mediterrânicas
como elemento fecundador, pois é no seu seio que
se gera a chuva, essa espécie de sémen que fertiliza
a terra e torna possível a vida que brota dela. Assim
sendo, é perfeitamente compreensível, e lógico, que
da união destes dois elementos nascesse a primeira Traumático. A cena da expulsão de
geração de deuses propriamente ditos, com especial Cronos e dos seus irmãos para o Tártaro
impressionou gerações de artistas.
destaque para os titãs e as titânides, como Cronos e
Reia, que haveriam de ter um papel decisivo na histó-
ria da religião grega.
Para sermos mais concretos, o surgimento de Cronos que Cronos retesou os seus músculos e saiu da fenda
trouxe consigo a instauração, no mundo e junto dos onde estava escondido, brandindo com uma mão a
deuses, de uma das características que melhor definem inexorável foice de ouro e agarrando com a outra um
a sociedade patriarcal: a violência. A sua união com dos braços do pai.
Reia marca, efetivamente, o começo da religião grega
tal como a conhecemos. DESTRONOU O PAI À FORÇA
Tudo começou quando Urano se deixou consumir Aturdido pelo desejo de voltar a possuir Gaia, o deus
pelo ciúme e pelo medo de que um dos seus filhos se demorou a compreender o que estava a acontecer.
tornasse mais poderoso do que ele, o que o levou a De repente, sentiu uma picada, uma dor aguda no pre-
mantê-los escondidos no seio da sua mãe, sem os deixar ciso momento em que a foice de ouro, manejada pelo
ver a luz. Gaia, sobrecarregada com o peso dos seus filho, colheu cirurgicamente os seus órgãos genitais.
filhos, a ponto de rebentar, decidiu enfrentar aquele Um grito espantoso fez tremer o mundo, enquanto os
deus cruel, o marido que ela própria tinha parido. genitais de Urano caíam ao mar. O relato não acaba aqui:
Determinada, forjou um metal brilhante e sólido com os genitais começaram então uma viagem à mercê do
o qual fabricou uma foice. Em seguida, falou com os vento e das correntes. Quando chegaram à costa de
filhos e propôs-lhes um plano de vingança, mas todos Chipre, do outro lado do mar, ferviam de forma borbu-
se encheram de um temor que lhes refreou o ânimo. lhosa. Da espuma branca que os rodeava nasceu uma
Até que o mais jovem dos seus filhos varões, Cronos, bonita donzela que, com o tempo, se converteria na
decide aceitar o repto e levar por adiante o plano da mais bela das deusas. O seu nome era Afrodite.
mãe, pois não sentia no peito a mais pequena piedade Após o golpe que lhe foi desferido, Urano desapare-
pelo seu abominável pai. ceu do mundo. Por ordem do seu filho Cronos, perma-
Reza a lenda que, ao cair da noite, Urano apareceu neceu preso no Tártaro, um lugar ainda mais profundo
e abraçou violentamente Gaia. A Terra tremeu, apavo- do que o submundo, o Hades. A sua lenda deixou de
rada entre os poderosos abraços do deus. Foi então estar presente nas narrações dos edos e nos versos

20 SUPER
ALBUM
O ovo universal
N os mitos mais antigos, quando a som-
bra dos belicosos povos indoeuropeus
ainda não se fazia sentir sobre o Mediterrâ-
neo, o início do mundo deveu-se à dança de
uma mulher chamada Eurínome, que, por via
do seu movimento, fez dividir a água, o céu
e a terra. O Caos inicial foi ganhando forma
e o mundo começou a definir-se ao ritmo da
dança de Eurínome. Em torno dessa mulher
nasceram as correntes e, através delas, o ven-
to do norte, o Bóreas, espalhava as sementes
de todas as coisas. Contudo, Bóreas foi ar-
refecendo o corpo de Eurínome, que, entor-
pecida, parou a dança por um instante. Em
seguida, tomou nas suas mãos este vento ge-
lado e esfregou-o incessantemente, até con-
seguir que a sua fria alma se tornasse amena e
se condensasse, com o calor produzido pelo
esfregar das suas mãos a dar forma a um ser
de aspeto quase líquido, como um rio. Esse
ser extraordinário, recém-nascido, ganhou o
nome de Ofíon, e a figura de grande serpente
converteu-se num símbolo religioso antiquís-
simo. Ofíon enrolou-se em redor do corpo
de Eurínome, até que acabaram por copular,
fundidos no calor dos seus corpos. A dança-
rina ficou prenha com a semente da serpente
e, passado algum tempo, as convulsões do
primeiro parto depositaram no mundo (um
mundo ainda inicial e insípido) um ovo. Sete
voltas em torno deste ovo deu a serpente, e
dos poetas. O filho, cheio de orgulho, ocupou o lugar assim permaneceu até que ele chocou e se
do pai, dando início à segunda geração de deuses, partiu em dois, dando ao mundo a prole de
composta pelos filhos de Cronos. O problema é que, Eurínome. Assim nasciam o Sol, a Lua, os
herdada do seu progenitor, a natureza colérica de Cro- rios e as árvores, com as montanhas a emergi-
nos tornou-se desenfreada: libertou os seus irmãos, os rem da terra.
titãs e as titânides, mas deixou no Tártaro os ciclopes
e os centimanos, uma decisão que depressa instigou
a sua vontade de se vingarem. Desta forma, a religião
grega desterrava para fora do mundo os seres mons- poder, o destronaria e ocuparia para sempre o seu lugar.
truosos, que estavam muito longe da conceção antro- Cronos tremeu de raiva e pensou atirar os filhos ao
pomórfica. Estas antigas e inumeráveis personagens Tártaro, mas não o fez, talvez convencido de que, com a
foram desaparecendo, pouco a pouco, dos mitos, ajuda dos seus poderosos tios, a profecia se cumprisse
dando lugar a uma nova geração de deuses. inexoravelmente. Foi então que decidiu devorá-los
um a um, à medida que iam nascendo. Fez isso às suas
FILICÍDIO MÍTICO três filhas, Héstia, Deméter e Hera, e aos seus dois pri-
O Caos primordial foi reduzido a um mundo de sur- meiros filhos, Hades e Poseídon. Todavia, ao avizinhar-
preendente simplicidade: titãs e titânides sob o poder -se o parto do mais jovem, de seu nome Zeus, Reia pediu
de Cronos. Apartados desse mundo, prisioneiros nas ajuda à mãe, Gaia, a qual lhe deu abrigo seguro num
profundezas do Tártaro, ficaram os filhos de aspeto lugar da remota e selvagem Arcádia.
monstruoso do mutilado Urano. Perante esta conjun- Foi aí que nasceu Zeus, longe de todos, longe do
tura, o deus Cronos, decidido a encher a Terra com conhecimento de Cronos. Com o seu filho escondido e
os seus filhos, tomou a sua irmã Reia como esposa. O em segurança, Reia urdiu o seguinte e decisivo passo.
seu afã reprodutor só resfriou quando Gaia, a sua mãe, Com a ajuda da mãe, poliu minuciosamente uma pedra,
anunciou que um dos seus filhos lhe arrebataria o envolveu-a em panos e, a coberto da noite, entregou-a a

Interessante 21
Por detrás do

AGE
relato mitológico,
vê-se a sociedade
que estava
a forjar-se
Cronos, que, ao ver a esposa com o ventre desinchado,
exigiu de imediato o corpo do filho para o devorar, tal
como tinha feito com os anteriores descendentes.

FILHO PROTEGIDO
Sacrifício a Deméter, divindade da agricultura, Entretanto, o menino Zeus crescia em Creta. Algum
protagonista dos mistérios eleusinos. tempo depois, graças à ajuda das amas, da mãe e da avó,
abriu-se um novo ciclo, com o jovem deus preparado
Deuses e mistérios para enfrentar o seu temido pai. Apesar de recente, a
história já começava a repetir-se. Numa noite de Lua

A par dos cultos olímpicos, que foram


sendo politicamente transformados na-
quilo a que poderíamos definir como sendo
Nova, após os prazeres do amor, Reia administrou a Cro-
nos uma droga purgante que o fez agitar-se e lhe pro-
vocou convulsões, acabando por vomitar o conteúdo
os cultos oficiais, desenvolveram-se na Gré- do estômago, ao ponto de fazer renascer os dois irmãos
cia Antiga outros rituais, menos conhecidos e as três irmãs de Zeus. O jovem deus, com os irmãos
mas mais próximos das pessoas comuns. A recém-libertados e agradecidos pelo seu salvamento,
literatura científica deu-lhes o nome de “cul- fez-se à luta e combateu o aterrador progenitor.
tos dos mistérios”. A palavra “mistério” tem Ao fim de dez anos, o mesmo tempo que durou a guerra
um sentido na nossa língua diferente do que de Troia, a luta entre deuses e titãs encontrava-se num
tinha na antiguidade, pelo que é mais con- impasse. Os titãs montaram o seu forte no monte Ótris.
veniente denominar esses rituais populares Os deuses, por sua vez, ficarem num outro, que viria
como sendo “de iniciação”, a exemplo do que a ser a sua morada para todo o sempre: o monte
lhes chamavam os romanos, que traduziam Olimpo. Pelo meio, a Terra sofria desalmadamente
o termo grego para initiatio. Na Grécia, eram com o que se ia desenrolando.
dois os deuses que estavam ligados aos mis- Era chegado o momento de Gaia dar ao neto um con-
térios: Deméter e Dionísio, dois nomes que selho que se revelaria decisivo: libertar os ressentidos
nem todas as fontes consideram olímpicos. irmãos do seu pai, os ciclopes e os centimanos, enclau-
Os mistérios eram uma forma de religião surados no Tártaro há muito tempo. Soltos, os seus tios
pessoal e votiva, que favorecia uma experiên- saudaram Zeus como o verdadeiro soberano e lança-
cia do sagrado diferente da proposta pela fé ram-se na refrega com fúria. Hesíodo descreve com
olímpica oficial. Por detrás deles, escondia-se vividez o fragor desse combate formidável: “O imenso
o desejo de curar e a aspiração de encontrar a Ponto [o mar] ressoou terrivelmente e a Terra retumbou
felicidade após a morte. A ânsia de encontrar com grande estrondo. O vasto céu gemeu estremecido e
no futuro o bem-estar favoreceu Deméter, o elevado Olimpo vibrou desde a raiz com o ímpeto
no seu santuário de Elêusis, uma localida- dos imortais. O violento sacudir dos passos chegou ao
de muito próxima de Atenas. A religião de tenebroso Tártaro. […] Toda a Terra e as correntes do
Dionísio, muito ligada ao vinho e aos aspetos oceano ferviam.”
irracionais do comportamento humano, Coube aos agradecidos ciclopes dar o passo que fez
seguia, ao fim e ao cabo, uma espécie de a diferença. Forjaram para Zeus o raio e o relâmpago,
caminho que tinha como meta a felicidade fizeram para Hades um elmo mágico que o tornava
eterna. Ao contrário de Deméter, Dionísio invisível (uma alegoria para o que haveria de ser o
não possuía um santuário. Os ritos a ele asso- mundo de Hades, a morte) e moldaram para Poseídon
ciados celebravam-se ao ar livre, em contacto o tridente com o qual este deus agitaria os mares e
com a natureza. faria mover a terra. Com estas armas, os três irmãos
inclinaram a seu favor a balança de uma guerra que

22 SUPER
Cruel. Goya representou a óleo garantiria o fracasso de qualquer tentativa
Cronos (romanizado como Saturno) de fuga.
a devorar um dos seus filhos. A religião grega acabou, deste modo, com
o Caos inicial. Os novos deuses, os vence-
dores, propuseram a si próprios a tarefa de
povoar com os seus filhos o mundo a que
acabavam de chegar. Para esta tarefa funda-
mental, Zeus voltou a destacar-se do resto
dos seus irmãos. Conforme reza a história,
utilizou a sua famosa promiscuidade como
se fosse uma verdadeira arma demográfica,
tendo levado alguns dos seus descendentes
para o topo do Olimpo, a eterna residência
das novas divindades.

PANTEÃO ADORADO
O número de deuses que a tradição reco-
nhece como olímpicos varia conforme as épo-
cas e os autores, embora pareça haver algum
consenso na quantidade de deidades que for-
mavam o Olimpo: seriam doze. Em primeiro
lugar, temos os seis filhos de Cronos: Zeus,
Hades, Poseídon, Héstia, Deméter e Hera.
Desta lista, existem fontes que nem sempre
consideram como olímpicos Deméter, Héstia
e Hades.
A esta meia dúzia de deuses há que juntar
os filhos de Zeus com diferentes mulheres
(tanto deusas como mortais): Apolo, Artémis,
Ateneia, Hermes, Ares, Hefesto e Afrodite,
uma deusa com o mesmo nome, embora mais
nova, que a Afrodite descendente de Urano.
Em relação a esta última, existe alguma con-
trovérsia, já que, na tradição homérica, é
considerada filha de Zeus e de Dione, uma
deidade praticamente desconhecida, com
uma identidade difícil de precisar. Por fim, há
autores que consideram igualmente olímpico
Dionísio, um outro filho de Zeus.
Por detrás deste relato mitológico, oculta-
-se, como sempre, uma realidade nada mís-
tica. A religião olímpica não é mais do que
o reflexo celeste da sociedade que estava a
forjar-se na Terra. À semelhança dos ideais
patriarcais da civilização micénica, magistral-
mente transmitidos pelas obras de Homero,
este credo moveu tudo o que era feminino
para uma posição de clara subalternidade
ALBUM

para com o masculino. Eis como os mitos aca-


bam por explicar, por um lado, o porquê de
uma irrupção de deuses masculinos indoeuro-
acabariam por ganhar com a preciosa ajuda dos cen- peus (especialmente Zeus) e, por outro, o desterro a
timanos, os monstruosos tios que, utilizando a multi- que foram vaticinadas as primeiras divindades femini-
tude de braços que tinham, lançaram uma incessante nas, nomeadamente a grande mãe Terra.
chuva de pedras que enterrou os titãs. Atualmente, milhares de anos depois, a sociedade
Zeus acabou por imitar o que o seu pai antes fizera: patriarcal que surgiu dos mitos e da própria história
prendeu no Tártaro os titãs, com Cronos à cabeça, e mantém-se plenamente vigente.
colocou como carcereiros os três centimanos, cujo ódio B.S.

Interessante 23
24 SUPER
Tartessos e outros enigmas

ARTURO ASENSIO
Ancestral
Ibéria
Tal como no resto
da Europa,
as culturas
primitivas da
península Ibérica
sucumbiram
ao poder de Roma
e do cristianismo,
mas o seu rasto
ainda hoje perdura,
na forma de mitos.

Deusas, sacerdotisas e bruxas. A mitologia ibérica


está repleta de figuras femininas, o que é próprio de sociedades
matriarcais. Crê-se que as bailarinas poderiam ter sido
originalmente sacerdotisas das religiões autóctones pré-cristãs.

Interessante 25
GETTY

A Ibéria era vista pelos antigos


como o Paraíso ou o fim do mundo

D
e certo modo, o impacto do Império Romano a machadada final, não só nos deuses romanos como
na Europa, durante a Antiguidade, asse- no mundo espiritual “bárbaro” que tinha sobrevivido
melha-se ao impacto do império espanhol a Júpiter e Marte.
na América, durante a era moderna. Assim Não obstante, estes vestígios não desapareceram
como os conquistadores varreram as culturas indígenas, por completo. As velhas crenças resistiram nos meios
as legiões de Roma submeteram e obliteraram as cul- rurais, longe dos grandes centros de poder, e aí perma-
turas autóctones dos povos europeus. Apesar de tudo, neceram de forma dissimulada. Na península Ibérica,
o processo não foi idêntico, embora o resultado tenha a presença do mundo romano estendeu-se ao longo
sido muito parecido: centenas de tribos europeias tive- de quase 700 anos, entre os séculos II a.C. e V, até ao
ram de aceitar a lei, os costumes e o idioma dos invasores, momento em que os visigodos atravessaram os Pire-
deixando para trás os seus hábitos e as suas crenças néus e invadiram o território hispânico. É um intervalo
ancestrais. Foi uma devastadora perda ao nível da diver- de tempo muito grande, equivalente a mais de 24
sidade cultural e espiritual, a qual ainda hoje lamenta- gerações. Os primeiros concílios cristãos, que tiveram
mos, pois o terramoto que foi a dominação romana início no dealbar do século IV, avisavam para a existên-
deixou-nos muito poucos dados fidedignos sobre cia de alguns rituais e hábitos condenáveis que, sem
as sociedades que os nossos antepassados tinham dúvida, faziam parte das tradições locais pré-cristãs,
construído antes de serem conquistados pelo grande como o culto a determinadas pedras, a prática da adi-
império. No que respeita à religião, Roma era muito vinhação ou as fogueiras que se acendiam nos cruza-
mais permissiva, mas a chegada do cristianismo deu mentos de caminhos.

26 SUPER
O rio Rio. O rio Ebro, aqui à passagem por Burgos,
deu nome à Ibéria e crê-se que o seu próprio nome
deriva do basco ibar, que significa... rio.

O que sabemos sobre o nosso passado, antes da território, temos as pujantes culturas que existiam
conquista romana, vem daquilo que os gregos con- na outra ponta do Mediterrâneo, as quais nos viam como
taram. Para estes, esta parte do mundo chamava-se as terras no fim do mundo, adjacentes ao oceano.
Ibéria, se bem que a primeira fonte a mencioná-la O facto de o Sol se pôr a Ocidente significava, para
chama-lhe “Hiberia”, com o “h” no início por motivos eles, que era aqui que a noite se situava, assim como
que ninguém sabe ainda explicar. Trata-se de um nome o “outro mundo”. Os egípcios chamavam aos seus
autóctone que estaria relacionado com o rio Iberus (o defuntos “ocidentais”, enterrando-os na margem
Ebro), o qual, por sua vez, deriva do basco ibar, que sig- oeste do rio Nilo. Por sua vez, os etruscos diziam que
nifica “rio”. Todavia, os gregos jamais meteram os pés os seus deuses viviam no Além, ou seja, a Ocidente.
em território basco, o que levanta uma dúvida: se o nome Para estas culturas, era nesta região misteriosa e
do Ebro, que os gregos conheciam por desaguar em extremamente remota que se situavam os seus lugares
Tarragona, no sul da península, era basco, como é que o paradisíacos. Para os gregos, eram os Campos Elísios e
souberam a partir dos povos mediterrânicos que viviam as Ilhas Afortunadas; para os semitas, de acordo com
na desembocadura do rio? A menos que, como cada o Livro dos Jubileus, o Jardim do Éden. Aqui encon-
vez mais se julga, o basco seja um vestígio arcaico da travam-se locais maravilhosos e abundantes, como o
língua que, com as suas variâncias dialectais, se falou Jardim das Hespérides, cujas árvores produziam frutos
na península Ibérica numa época anterior a Roma. de ouro, as ilhas Cassitérides, com as suas inesgotáveis
minas de estanho, ou o reino dos Tartessos e do seu
TERRA DE RIQUEZA INCALCULÁVEL soberano Argantonio, o rei da prata. Era também a
Há duas classes de mitos relacionados com a velha região onde se encontraria o rio do Esquecimento e o
Ibéria. De um lado, estão os que poderemos conside- país dos Sonhos, assim como o palco da mítica batalha
rar exteriores, ou seja, forjados pelos povos mediter- entre os deuses e os titãs, ou dos últimos três trabalhos
rânicos sobre nós; no outro, encontramos os mitos de Hércules. Quanto aos fenícios, concordavam com os
interiores, próprios dos povos ibéricos. Fora do nosso gregos em que se tratava de uma terra de riqueza incal-

Interessante 27
Em alguns
mitos hispânicos,
detetam-se
influências célticas
culável, mas, neste caso, acreditavam que se tratava
de Társis, o equivalente ao reino dos Tartessos, onde
os pastores locais davam de comer aos seus animais
em manjedouras de prata maciça. Também diziam que
os seus barcos carregavam daqui para fora tanta prata
que até substituíam as suas âncoras por outras feitas
de prata, de forma a aproveitar o peso. O Extremo Oci-
dente era também o local onde ocorreram as façanhas
do seu grande herói Melcarte, análogo de Hércules.
Existem lendas de antigas expedições feitas por
povos ibéricos, os quais teriam ocupado e colonizado
a Córsega, a Sardenha e a Sicília. De acordo com a tradi-
ção, a Sicília foi povoada pela nação dos sicanos, assim
chamados porque vinham de um rio ibérico com esse
nome: supõe-se que era o Júcar, que desagua a leste da
península, e que à época era conhecido como “Sicoris”.
Os sicanos acabaram por ser incorporados nos próprios Como Moisés. O mito fundacional
mitos gregos, pois foi entre eles que aterrou Dédalo, tartéssio é semelhante ao de Rómulo
e Remo e à história de Moisés salvo
com a ajuda das suas asas de cera, após fugir de Creta,
das águas (aqui, numa tela de Poussin).
onde tinha construído o labirinto para o rei Minos. O
rei dos sicanos, de seu nome Cócalo, acolheu o enge-
nhoso Dédalo e empregou-o, encarregando-o de fazer
construir as obras que embelezariam o seu reino. Tudo arqueológicas, por vezes, conseguem trazer à luz do
corria bem até Minos descobrir o que se passava, dia alguns aspetos, embora também possam ajudar a
tendo ido à Sicília, em pessoa, para recuperar o seu tornar tudo ainda mais confuso do que se deseja. Há
arquiteto e inventor. Cócalo deu-lhe as boas-vindas de demasiados monumentos misteriosos na península,
forma respeitosa, mas, com o pretexto de lhe querer para os quais foram apresentados interpretações muito
oferecer um banho retemperador, acabou por orde- diferentes. Peguemos, como exemplo, na estranha
nar às suas filhas que o assassinassem, fervendo-o em construção encontrada em Cancho Roana, em Bada-
água quente. joz (Espanha), uma estrutura que apareceu coberta
de cinzas e nas quais se encontraram vestígios de toda
AS VIAGENS DE ULISSES a espécie. Alguns investigadores acreditam que foi um
Outra semelhança entre os mitos gregos e a remota palácio, outros apontam para um templo, e há os que
Ibéria é a referência de que à sua costa chegaram alguns falam numa fortificação.
dos heróis da guerra de Troia, tendo fundando cidades Tão pouco sabemos o que quer que seja sobre a
em diferentes partes da península. Ulisses, Menes- estrutura social dos povos que habitaram a península
teu, Teucro e o próprio Menelau terminaram os seus Ibérica. No entanto, e a crer nos autores romanos,
dias de aventura na Ibéria, de acordo com a tradição parece que os iberos e os germânicos eram parecidos
mítica. A cidade de Lisboa, reza a lenda, teria sido fun- em duas coisas: ambos bebiam cerveja e (o que na
dada pelo primeiro, o grande herói da Odisseia. Esta altura era muito incomum) tanto na Germânia como na
parte do mundo, fabulosa e desconhecida, era um bom Hispânia as mulheres eram ouvidas durante as assem-
refúgio para aqueles a quem era necessário dar um bleias políticas, sendo-lhes concedido o uso da palavra.
destino, depois do famoso conflito homérico. Na verdade, estes nossos antepassados devem ter
Saber quais eram as crenças no interior destas cole- vivido num meio fortemente matriarcal, tal como
tividades já é algo muito diferente. As dúvidas esten- matriarcais eram as sociedades que lhes sucederam
dem-se a todas as facetas da vida, e as únicas certezas mais tarde, sobretudo na cordilheira cantábrica.
que temos procedem das velhas fontes e dos estudos Foi aqui que os conquistadores de Roma sentiram
feitos por académicos e especialistas. As descobertas maiores dificuldades. As condições do terreno e os

28 SUPER
AGE
Ruínas da entrada no fórum romano
de Carteia, onde Trebius Niger
situou o seu polvo lendário.

Um polvo gigante
S ó para dar o exemplo de uma lenda ver-
ALBUM

dadeiramente bizarra e ambientada na


Ibéria, oferecemos ao leitor a que foi redigida
por Trebius Niger, autor romano que fazia
poucos benefícios materiais que advinham do domínio parte do círculo de Lucius Lucullus, um pro-
sobre estas tribos da montanha fizeram diminuir o cônsul da Bética: “Diz-se que nas fábricas de
ímpeto de conquista, à semelhança do que muitos salga de Carteia [cidade romana situada na
séculos depois aconteceu com os muçulmanos. Isto região de Cádis] viveu um enorme polvo que
explica por que naquelas terras permaneceram durante tinha aprendido a deixar o mar e a meter-se
muito mais tempo as raízes das antigas crenças, nos depósitos. Os guardas estavam muito
algumas das quais sobreviveram até aos dias de hoje. irritados com os contínuos roubos. Prote-
geram o recinto com uma vedação alta, mas
UM DEUS SEM NOME o polvo passava por ela trepando o tronco
O historiador e geógrafo Estrabão explicou que de uma árvore e deixando-se cair do outro
havia uma sucessão de tribos desde a Galiza até aos lado. Até que, uma noite, os cães detetaram-
Pirenéus, como os kallaikoi (galaicos), os astures, os -no quando regressava ao mar, e os guardas
kantabroi, os ouaskones (bascos) ou os pirenos. No ficaram atónitos com o espetáculo. Antes de
entanto, para o erudito grego, estas diferenças nos mais, pelo tamanho do polvo, que era colos-
nomes não eram importantes, já que toda aquela sal, e, em seguida, porque a sua expedição
gente vivia da mesma maneira. Também escreveu que pelos depósitos cobrira-o de salmoura, que
os kallaikoi eram ateus e que as restantes tribos vene- exalava um cheiro insuportável. O polvo pôs
ravam um deus sem nome, o qual honravam dançando os cães em fuga, chicoteando-os com os seus
à porta das suas casas, nas noites de Lua Cheia. tentáculos. Só após muitos golpes de tridente
Parece não haver dúvidas de que a música e o canto os guardas conseguiram matá-lo. Os seus
foram extremamente importantes para os nossos tentáculos eram tão grossos que não era pos-
antepassados pré-romanos. Os autores antigos são sível envolvê-los com os braços, medindo 30
unânimes a esse respeito, fazendo referência às tribos pés [10 metros] de comprimento. O animal
nortenhas, andaluzas e mediterrânicas. Os vestígios pesava 700 libras [230 quilos] e as suas vento-
arqueológicos mostram, nos relevos e nas cerâmicas sas tinham o tamanho de alguidares.”
pintadas, uma multitude variada de instrumentos

Interessante 29
As crenças
nativas
foram varridas
pelo cristianismo
musicais. É possível que, a seus olhos, a música fosse
feita da mesma argamassa que os mitos, como algo
igualmente celestial. As bailarinas gaditanas (da região
de Cádis), cuja fama era então conhecida no mundo
inteiro, podem ter sido sacerdotisas.
Até muito recentemente, os camponeses diziam
que as construções megalíticas nas suas terras tiveram
origem nos mouros. Aliás, há dólmenes com nomes
que vão ao encontro dessa ideia, como “Mesquita dos
Mouros” ou “Forno dos Mouros”. Na Galiza, onde os
muçulmanos mal puseram os pés, são atribuídos aos
mouros, e no País Basco aos mairus, seres lendários de
gigantesca estatura.
Estes nomes vêm de um tempo em que o termo
“mouro” equivalia a gentio, alguém que não era cristão,
e foram cunhados nos estágios iniciais da cristiani-
zação, quando ainda restavam focos de resistência
autóctone aos novos tempos e crenças. Destes focos
haveriam de sair as bruxas, as lâmias e muitas outras
figuras e elementos que passaram a ser considerados
satânicos: para purgar a sua suposta culpa, seriam uti-
lizadas as labaredas das fogueiras medievais.

SOCIEDADE MATRIARCAL
Porque predominaram as bruxas em vez dos bruxos?
Uma das possibilidades aponta precisamente para a que explica as lendas com duendes de toda a espécie
condição matriarcal das sociedades antigas, a qual, e das formas mais curiosas, a que se juntam as ninfas
por sua vez, estaria ligado à personagem feminina da aquáticas e os homens selvagens da montanha. Os
Mãe Terra, enraizada na cultura humana desde os ciclopes também não escaparam a essa lista: é o caso,
começos da civilização. Esta antiga deusa-mãe, da no País Basco, do Tartalo, um ser enorme e cruel com
qual existem provas evidenciais nos primeiros grupos um só olho no meio da cara.
culturais a surgir no Ocidente, converteu-se, por exem- Ao que parece, também houve cultos locais ligados a
plo, na deusa Mari da mitologia basca, cujas sacerdoti- determinados lugares, na medida em que se encontra-
sas seriam as sorginak, as bruxas. Mari está associada ram vários altares dedicados a deidades cujos nomes
aos dólmenes, dos quais, segundo a crença, só se coincidem, em muitos casos, com as zonas perto
pode sair de costas viradas para a entrada, para não dos quais elas terão aparecido. Julga-se que seriam enti-
desagradar à deusa. Não é de estranhar, já que o período dades ou crenças de índole animista, tendo sido atri-
megalítico está ligado a vários tipos de lendas que surgi- buída uma condição sagrada a determinados espaços,
ram na península. Os megalitos bascos têm nomes como com as divindades locais a terem determinados benefí-
Mairubaratza (Jardim dos Mairu) ou Jentilbaratza (Jar- cios e dádivas, e a sua proteção era requerida erigindo-
dim dos Gentios), apesar de ocuparem terrenos que -se esses altares.
nunca poderiam ter sido jardins. Os seus nomes prova-
velmente devem-se a crenças vindas de épocas muito MAIS DENTES DO QUE O NORMAL
remotas, conservadas no seio de sociedades muito A sul, no estreito de Gibraltar, também conhecido
endogâmicas e resistentes a mudanças. como “Colunas de Hércules”, o primeiro local ibérico
Por outro lado, muitos dos mitos e crenças do norte a ser conhecido pelos gregos, floresceram outros
da Europa acabaram por ser partilhados pelos vários mitos que a presença romana e, mais tarde, a maome-
povos hispânicos, nomeadamente a mitologia celta, o tana (que durou tanto tempo como a do império dos

30 SUPER
fins do mundo (os confins do Mediterrâneo), parecia
fazer sentido que estivesse mais perto dos astros
quando estes estavam na sua fase descendente.
A lenda ibérica mais completa que chegou até nós,
após tantos séculos, foi escrita pela pluma de um
escritor greco-romano do século I a.C., de seu nome
Pompeu Trogo.

UM FILHO REJEITADO
Apesar de as suas obras se terem perdido, sobrevi-
veram alguns extensos fragmentos que acabaram por
ser reunidos pelo historiador romano Justiniano, no
século III. Nas frações que sobraram, é possível ler a
história dos longínquos reis de Tartessos, os famosos
Gárgoris e Habis. A crer na lenda, a filha do rei Gárgoris,
que ensinou os seus conterrâneos a recolher e a apro-
veitar o mel, teve um filho ilegítimo que o soberano
repudiou. Este ordenou que abandonassem a criança
num monte, mas as feras selvagens acabaram por
amamentá-lo, mantendo-o vivo. Em seguida, mandou
que o colocassem numa passagem de gado, para que
os animais o pisassem, e, perante o insucesso deste
intento, deu novas ordens para que o atirassem aos
cães esfomeados, embora com o mesmo resultado.
Foi ainda atirado ao mar, para logo depois voltar...
Nenhum destes métodos colocou termo à sua vida,
tendo vivido entre os animais, até que caiu na armadi-
lha de um caçador e foi conduzido à presença de Gár-
goris. O soberano, espantado pelo que ocorrera, aca-
Porta para o Além. A tradição bou por nomeá-lo seu herdeiro. Uma decisão acertada,
colocou as Colunas de Hércules pois Habis mostrou ser um excelente governante.
no estreito de Gibraltar. Na foto,
Estruturou a sociedade em sete grupos (castas),
monumento no porto de Ceuta.
promulgou leis que se revelaram adequadas para a paz
social, desenvolveu a agricultura e ensinou o seu povo
a lavrar a terra com a ajuda da tração animal.
césares) ajudaram a eliminar. Os últimos vestígios das Muito se especulou sobre o real sentido desta lenda,
crenças nativas seriam finalmente varridos pelo repo- a qual parece aludir a uma época remota, numa altura
voamento cristão. em que se deu o passo da pecuária para a agricultura:
Dos velhos mitos, só há memórias por causa dos his- ou seja, o Neolítico. O historiador espanhol Julio Caro
toriadores gregos e romanos, e as informações que Baroja, no século passado, interpretou-o como um mito
transmitiram contêm algumas curiosidades. De acordo fundador, semelhante ao de Rómulo e Remo (envol-
com Plínio, por exemplo, os túrdulos, que viviam a vidos no surgimento de Roma), também eles prote-
leste do atual Alentejo, ao longo dos vales do Guadiana gidos e salvos por um animal selvagem, neste caso
e do Guadalquivir, tinham mais dentes na boca do que os pela loba capitolina. O relato também faz lembrar a his-
restantes mortais. Sobre esta extravagante novidade, tória de Moisés, abandonado nas águas do Nilo pouco
não se conhece a origem, nem tão pouco o seu funda- depois de nascer. O facto de esta lenda estar relacio-
mento, pelo que passou a ser interpretada como uma nada com os descendentes dos tartessos parece vin-
metáfora. culá-la a uma outra história, contada por Estrabão: os
Outros relatos gregos asseguram que o Sol parece andaluzes (os turdetanos ou túrdulos) eram os mais
quatro vezes maior ao pôr-se em Cádiz, em compara- cultos de todos os povos ibéricos, dispondo de diversas
ção com qualquer outra parte do mundo. Esta perce- crónicas históricas e leis extremamente antigas, as quais,
ção pode estar ligada ao facto de, naquele tempo, não segundos eles, teriam 6000 anos. Caso algum dia se
se conhecerem outras terras para lá do oceano, acre- consiga encontrá-los e decifrá-los, estes escritos cons-
ditando-se que a estrela, quando descia a Ocidente, se tituiriam o maior tesouro cultural com que se pode
aproximava mais da Terra, o que permitia vê-la melhor. sonhar, pois aproximar-nos-ia da infância esquecida
Também se dizia que das Colunas de Hércules se via da civilização ibérica, ampliando o conhecimento que
com toda a nitidez as montanhas da Lua, provavel- temos de nós mesmos. É para isso que serve a história.
mente pela mesma razão. Como a Ibéria fica nos con- A.P.

Interessante 31
Locais lendários

Em busca
do paraíso
Muitos lugares lendários
constituem um enigma
a partir do qual nasceram
as mais fascinantes
elucubrações da história
humana. A mitologia
vive de reinos lendários,
procurados por
aventureiros determinados
e temerários, em geografias
desconhecidas. Jardim das Delícias. Este tríptico
do pintor flamengo Hieronymus Bosch

O
mostra, da esquerda para a direita,
o Génesis, o Paraíso e o Inferno.
Jardim das Delícias da tradição judaico-
AGE

-cristã, o monte Meru do budismo e do


hinduísmo, a cordilheira de Kunlun para
os taoístas… No paraíso terreno, não há alheios a qualquer tipo de preocupação, disfrutando
espaço para a dor ou a fome, nem para a velhice ou a dos efeitos do elixir da eterna juventude. Os Campos
morte, já que viver lá permite automaticamente ace- Elísios, ou as Ilhas Afortunadas, foram a versão greco-
der à juventude eterna. O mundo é um lugar inóspito, -latina desse éden inalcançável, mas nem por isso ine-
hostil, de sofrimento perpétuo, não havendo cultura xistente. Tanto assim que os mapas medievais situavam
que não tenha desenvolvido mitos sobre um éden no esse Paraíso na Índia, um país quase tão mítico e enig-
qual em tempos os humanos foram felizes, aquele mático como o próprio Éden.
lugar onde a qualquer momento poderão, quem sabe, Efetivamente, o Paraíso, enquanto ideia e mito,
regressar: trata-se de lendas muito tangíveis, que nos assumiu as mais extraordinárias formas. Os astecas
dizem ser possível chegar a esses locais. Para os cris- recordavam com nostalgia a terra dos seus ancestrais,
tãos, o Paraíso não era uma mera fantasia destinada Aztlan, que as tribos nauatles abandonaram no século
a aliviar-nos do pesado fardo que é o mundo real; era XIII para ir fundar a majestosa Tenochtitlán. Foi durante
igualmente uma terra com coordenadas geográficas o período de conquista dos espanhóis que a lenda
concretas, embora desconhecidas, situada num de Aztlan se materializou no imaginário coletivo indí-
recanto qualquer do Oriente. gena e junto dos recém-chegados ao continente. O
frade Diego Durán, assim como outros cronistas, ajudou
CAMPOS ELÍSIOS a perpetuar a memória de uma Aztlan paradisíaca, cujos
Gregos e romanos fizeram fabulações sobre uma habitantes gozavam da vida eterna.
pretensa Idade do Ouro, um passado mítico em que os Assim se fundiu a tradição autóctone dos astecas
homens e as mulheres estavam mergulhados no ócio, com o mito do Paraíso terreno que os espanhóis leva-

32 SUPER
ram para o Novo Mundo, numa busca das quimeras não se sabia muito bem onde ficava, mas dizia-se que era
bíblicas: basicamente, estas duas versões sobre uma um lugar de liberdade sem limites, um mundo virado
lendária Idade de Ouro foram mescladas. Apesar de o do avesso onde o peixe pesca o pescador e os homens
Éden ser algo muito real para os aventureiros europeus puxam os arados, guiados por bois. Se repararmos
do século XVI, não deixava de ser uma enteléquia mís- bem, Jauja é quase uma paródia do Éden bíblico,
tica apenas reservada aos eleitos, aos mais virtuosos. uma representação de como a cultura popular pode
De certo modo, o Éden era o paraíso dos ricos; o com- redesenhar os mitos e dar-lhes nova vida. Este tipo
pleto oposto da lendária Jauja, a réplica das pessoas de reinterpretações ainda se faz, forjando édens atra-
vulgares às lendas paradisíacas da elite. Referenciado vés da literatura.
pela primeira vez num poema do século X, o país de Atualmente, podemos sonhar com o paraíso ou com
Jauja era um paraíso ao alcance dos menos piedosos, uma vida de perpétua paz interior em Shangri-La. Este
um éden de prazeres ilimitados, de manjares que éden tibetano, que fica no topo dos Himalaias, nasceu
nunca mais acabam, mundano e desprovido das cono- em 1933 da imaginação de James Hilton, que criou este
tações místicas do Paraíso bíblico, pouco atrativas novo ícone paradisíaco no romance Horizonte Perdido,
para as pessoas comuns. numa pura demonstração de como a literatura pode
participar na forja e na reescrita dos mitos ancestrais.
RELATO MÁGICO E POPULAR Shangri-La é um paraíso new age com traços orientais,
O mito de Jauja, ao contrário dos mitos paradisíacos tendo-se tornado um sinónimo de éden no seio da
tradicionais, nasce e cresce junto dos que estão à margem cultura popular. É a prova definitiva de que o mito do
das elites e entre os desfavorecidos. Geograficamente, Paraíso terreno continua bem vivo entre nós.

Interessante 33
O sonho de
um Paraíso tem
várias ramificações
geográficas
ILHAS IMAGINÁRIAS
O sonho de um Paraíso remoto tem várias ramificações
geográficas. Todavia, este velho fascínio por uma terra
incógnita – que permitiu preencher os buracos negros
da cartografia primitiva com oníricas e inexploradas pai-
sagens verdejantes – ganhou força no ultramar. Uma
ilha imaginária é um espaço onde as metáforas têm
rédea livre, uma alegoria ao retiro perfeito, um espaço
simbólico de distensão entre o indivíduo e a sociedade,
o recanto ideal para projetar utopias filosóficas que no
mundo real se mostram irrealizáveis. Não espanta, por-
tanto, que a ilha seja o palco preferencial dos mitos,
como fizeram Hesíodo e Píndaro na Grécia Antiga,
quando moldaram a lenda das Ilhas Afortunadas.

PARAÍSO EM PLENO OCEANO


Estas ilhas, o paraíso dos justos, foram situadas ao
longo da história em pelo menos três locais diferentes.
Aí, as almas encontravam o sonhado descanso, que
tanto podia ficar num remoto e indeterminado lugar
do Atlântico, de acordo com as fontes gregas, ou, con-
forme as romanas, para lá das Colunas de Hércules (o
estreito de Gibraltar). Era norma dar a este mito um
ponto geográfico preciso. Daí que, com o tempo, as
Ilhas Afortunadas tenham acabado por coincidir com
o arquipélago das Canárias. Foram também várias as
tentativas para encontrar a lendária ilha de Thule. O
primeiro a tentá-lo foi o marinheiro helénico Píteas
(século IV a.C.), mas esta quimera prolongou-se por
séculos, devido aos escritos de Eratóstenes e Estrabão. No lombo de um peixe. A mítica
Localizada, de acordo com a lenda, num sítio remoto ilha de São Brandão era representada
do Atlântico Norte, Thule era uma ilha de gelo e fogo, com uma forte carga simbólica,
inspirada no monge que a “descobrira”.
um lugar onde o Sol jamais se punha.

A MÍTICA ATLÂNTIDA
Por vezes, lendas diferentes tendem a fundir-se, e bana, mencionada pela primeira vez por Megástenes,
a verdade é que o mito de Thule se assemelha ao da no século III a.C., uma ilha habitada por indivíduos que
Atlântida e, sobretudo, ao da paradisíaca Hiperbórea, tinham um só pé gigante, o qual usavam para se prote-
o reino dos deuses, berço da civilização e pátria da raça gerem do sol. Em Taprobana viviam, narra a lenda, for-
e da língua mais antigas de todas. Durante a época migas tão grandes como cães. A sua população nunca
medieval, situou-se a ilha nas imediações da península dormia e as leis não eram necessárias, porque reinava
escandinava. Houve quem a relacionasse com a Islân- a felicidade, nunca se cometendo qualquer tipo de
dia ou as ilhas Feroé, numa área onde proliferam incon- delito. Dizia-se ainda que era uma terra sem firma-
táveis mitos insulares nórdicos, como a Frislândia. mento. Na época medieval e moderna, houve quem
Até os nazis procuraram o rasto da suposta ilha de tivesse colocado este mundo de fantasia no Sri Lanka
Thule, no seu afã de encontrar as raízes do mito ariano. (Camões, por exemplo) ou em Sumatra, mas Tapro-
Foi no Índico, contudo, que a imaginação chegou bana era somente uma utopia com nome de ilha, à
mais longe, pois era aí que se poderia encontrar Tapro- semelhança da Ilha Perdida de São Brandão, encon-

34 SUPER
AHU/JOSÉ ANTONIO PEÑAS

trada no século VI por um monge irlandês: um lugar velho sonho impossível. Mais tarde, a imaginação fértil
que desaparecia debaixo das águas porque, na reali- dos primeiros conquistadores encontrou um espelho
dade, era o lombo de um peixe gigantesco. nos promissores relatos dos indígenas, que falavam de
lugares distantes onde o ouro abundava em quantida-
FÁBULAS DO NOVO MUNDO des imensuráveis. Em grande medida, a conquista da
As terras desconhecidas com que sonhava Cristóvão América foi a crónica de uma febre do ouro alimentada
Colombo eram uma projeção do tão desejado Paraíso por efabulações de toda a ordem. Assim que os conquis-
terreno. Numa época (século XV) em que ainda se fazia tadores espanhóis Hernán Cortés e Francisco Pizarro
uma interpretação literal do que constava nas Escritu- esmagaram os impérios astecas e inca, respetivamente,
ras, as Índias eram um desafio à imaginação. De certo começaram a proliferar lendas sobre paraísos de ouro
modo, o que o navegador genovês procurava era, escondidos na densa e impenetrável selva. Não obs-
segundo as palavras de Umberto Eco, um éden laico. O tante, não havia metais preciosos suficientes para
Novo Mundo deveria ser a porta de entrada para esse saciar a fonte de riqueza de tanto aventureiro.

Interessante 35
Os indígenas
americanos
alimentaram a
lenda do Eldorado
SONHOS DOURADOS
Na falta de um espólio que estivesse ao alcance da
mão, os conquistadores apegaram-se aos mitos que
davam conta de opulentas cidades de ouro, o seu único
consolo. A juntar a isto temos a lustrosa ideia de que
o Paraíso terreno era pródigo em riquezas de toda a
espécie, e que dentro das suas idílicas fronteiras os
habitantes usufruíam da vida eterna. A razão para esta
semelhança entre o Paraíso e o Novo Mundo está nos
pioneiros europeus que chegavam ao continente ame-
ricano, e que tanto trabalho tiveram na localização de
sítios tão idílicos como a Fonte da Eterna Juventude.
O aventureiro Ponce de León chegou às costas do
continente em 1512, e, desde então, navegou incansa-
velmente em busca de uma ilha de cujas fontes ema-
nava a água que dava a juventude eterna. A sua via-
gem terminou quando a flecha de um indígena o tres-
passou e matou, depois de ter explorado cada recanto
do Caribe, da costa setentrional da América do Sul
e da Flórida. Como seria de esperar, não teve êxito.
A grandeza e a miséria dos conquistadores espanhóis
residia na teimosia com que seguiam os seus sonhos,
mesmo quando a realidade demonstrava, repetida-
mente, que não passavam de fantasias.

EXPLORADORES AMBICIOSOS
A avidez dos espanhóis por deitar a mão ao ouro do
Novo Mundo levou a que os indígenas alimentassem
esta obsessão, dando-lhes histórias de cidades distantes
esculpidas em ouro: faziam-no na esperança de afastar
aqueles homens ambiciosos dos seus territórios, ao
mesmo tempo que procuravam evitar que os seus domí-
nios fossem saqueados. Foi assim que estes relatos se
AGE

fundiram com os mitos bíblicos, a lenda do paraíso


terreno unida às fábulas espalhadas pelos índios, um
cocktail explosivo. contornos, inflamando ainda mais a imaginação de
Por volta de 1530, amadureceu no imaginário coletivo exploradores como Lope de Aguirre, Francisco de
dos conquistadores o mito do Eldorado, uma cidade de Orel­lana ou o britânico Walter Raleigh, que procura-
ouro localizada no meio da selva, na região central de ram com afã pistas que conduzissem à cidade perdida.
Nova Granada (atual Colômbia). O mito foi construído Com o passar do tempo, a fábula do Eldorado ampliou-
com base no périplo de Gonzalo Jiménez de Quesada e -se, acabando por se confundir com outras lendas de
nos costumes dos índios muíscas, que ao elegerem um cidade perdidas no Novo Mundo, como Paititi, uma urbe
novo chefe o cobriam com pó de ouro, oferecendo- inca que surge mencionada nas crónicas de Vaca de Cas-
-lhe em seguida vários objetos forjados a partir desse tro e onde se presumia que tinham sido escondidos os
material precioso, que eram depois atirados para a tesouros de Cuzco, de modo a pô-los a salvo dos espa-
lagoa de Guatavita. nhóis, ou a Cidade dos Césares, escondida num dos
A lenda acabou por desfigurar-se e ganhar outros vales da Patagónia e cheia de grandes riquezas.

36 SUPER
Imortalidade. Representação
da lendária fonte da juventude.

UM REINO PERFEITO realeza justa, sábia e eficiente a administrar as rique-


O mito é, igualmente, um instrumento em que espe- zas tem sido o dínamo de alguns dos mitos geográ-
lhamos aquilo que deve ser um bom governo. Nele ficos mais recorrentes da Antiguidade Clássica. Não
estão contidos os sonhos de uma sociedade demasiado se pode alvitrar com toda a certeza que a Atlântida
imperfeita, a qual efabula reinos remotos em que os era um mero fruto da imaginação de Platão, ou, por
governantes são sábios, a riqueza é deslumbrante e exemplo, que o relato bíblico relativo às imponentes
todos convivem em harmonia, ou seja, um modelo de riquezas do reino de Sabá seja pura ficção.
virtude e equilíbrio. Se não é possível existir no mundo Em 2008, uma equipa de arqueólogos alemães loca-
real a sociedade perfeita, talvez se possa encontrá-la lizou as ruínas de um imponente palácio em Axum, na
nos interstícios das lendas. Desde o mito platónico da Etiópia, não tardando em identificá-lo como sendo a
Atlântida – cujos reinos formavam uma confederação morada real do filho da rainha de Sabá. Com o passar
submetida ao império da lei – que a utopia de uma do tempo, a lenda bíblica de Makeda, a rainha africana

Interessante 37
Algumas figuras
lendárias
podem ter
realidade histórica
por quem o rei Salomão caiu de amores, começa a per-
der a sua aura mítica para se afirmar como uma reali-
dade histórica. Sabá continua a ser um reino fabuloso
e um modelo do que devia ser, um ícone de prosperidade,
um país de sumptuosos jardins, incenso, especiarias
e metais preciosos em abundância. Durante séculos,
pensou-se que não era mais do que uma bonita lenda.
Atualmente, historiadores e arqueólogos apontam o
Iémen e a Etiópia como o provável local histórico de
um mito que, com os séculos, demonstrou não sê-lo.

NOS CONFINS DA TERRA


Extraordinariamente antigos são também os ecos
do fabuloso reino do Preste João. Mais uma vez, esta-
mos perante um país distante governado por uma
monarca sábio e piedoso, cujos domínios se estendiam
para além do mundo islâmico, no Extremo Oriente,
num território habitado por seres monstruosos e pon-
tilhado de sumptuosos palácios. Era um reino cristão
nos confins do mundo, referenciado pela primeira
vez numa carta, pretensamente escrita pelo próprio
Preste, dirigida ao imperador de Bizâncio, no século XII.
A lenda do reino de Preste João adquiriu uma forte cono-
tação política com o tempo. Levou, inclusivamente,
GETTY

a que se falasse de forma séria numa reunificação


entre a Igreja do Ocidente e a do remoto Oriente do
Preste João. As insistentes tentativas para localizar
aquele exótico reino cristão deram um impulso con- ção subterrânea, alegadamente mencionada em textos
siderável à exploração de África, principalmente por sânscritos muito antigos, textos que, é preciso dizê-lo,
aventureiros e diplomatas portugueses. Pensa-se hoje mais ninguém, além de Jacolliot, teve oportunidade de
que a fábula, que se manteve viva até ao século XVI, ver. Um mito extraordinariamente sugestivo e, feliz-
pode ter tido inspiração histórica nas comunidades mente para a boa saúde da lenda, irrefutável, embora
nestorianas da Ásia. os céticos não se deixassem levar muito pela conversa
História bem diferente é a de Agartha, outra cidade do francês. É preciso não esquecer que, com a exceção
lendária cujo mito nasce da necessidade de continuar de Júlio Verne (que o fez ficcionalmente), ninguém
a imaginar o incrível num tempo (século XIX) em que conseguiu explorar o centro da Terra. Como provar,
as explorações e os mapas já tinham desacreditado as portanto, que o esoterista estava errado?
lendas sobre longínquos reinos paradisíacos. Foi nessa
altura que os mitos começaram a penetrar nas profun- A HISTÓRIA ALIMENTA A LENDA
dezas da Terra oca. Aí, algures na Ásia (quiçá debaixo Nem todas as paisagens lendárias partem da ima-
da cordilheira dos Himalaias), existia e prosperava ginação; algumas ganharam forma física. Quer dizer,
Agartha, um país de cidades subterrâneas interligadas, estão de mãos dadas com um espaço geográfico bem
governado pelo rei do Mundo, figura que guardava real. São ruínas ou paragens em que a história e a fan-
sabedorias milenares. tasia caminham a par, criando um fascinante híbrido
Foi um romancista novecentista, o francês Louis que junta a realidade e a fantasia, algures entre a
Jacolliot, uma referência para os círculos esotéricos da memória histórica e a necessidade de adorná-la
época, o primeiro a propalar a existência desta civiliza- com apaixonantes especulações lendárias. É o caso

38 SUPER
do haxixe, despertando depois da letargia para enfren-
tar uma vida de penúria. O regresso ao paraíso tinha
um preço: assumir a função de assassino letal, num
exercício de devoção cega para com o líder da seita.

O REFÚGIO DO REI ARTUR


As ruínas de Alamut, assim como a narrativa que se
criou em seu torno, são apenas uma amostra de um
conto que tem uma base histórica e que, mais tarde,
acabou embelecido pelo mito.
No fundo, é parecido com outros lugares intima-
mente ligados à mitologia do Santo Graal. Ao con-
trário de Alamut, este mito sobrepõe-se a lugares
preexistentes que têm um frágil substrato histórico.
É o que sucede com Glastonbury, considerado por
muitos como a Avalon da lenda arturiana, cuja abadia,
provavelmente fundada no século VII, se converteu
num farol para os caçadores de mitos, uma paragem
obrigatória para os que tentam seguir o rasto do Graal.
Existe uma tradição, com uma base histórica muito
duvidosa, que atribuía a José de Arimateia (a persona-
gem bíblica que segurava o cálice em que Cristo verteu
o seu sangue) a fundação da abadia: este lugar santo
fechou as suas portas, para sempre, em 1539. Sete mon-
ges da ordem que vivia na abadia refugiaram-se num
mosteiro galês, levando consigo uma valiosa relíquia:
um modesto cálice de madeira que mais não era do
que o Santo Graal, tendo-se perdido o rasto deste objeto
no século XIX. Trata-se, no entanto, de uma lenda que
pouco deve à história real.
Mesmo assim, ela está muito longe da efabulação
que rodeia a igreja de Rennes-le-Château, a quintes-
sência dos mitos forjados, uma história que assenta
Alto refúgio. No norte do atual Irão, em falsidades de toda a índole. No centro de tudo está
a rocha de Alamut é o local onde, segundo a especulação sobre de onde veio o dinheiro com o
a lenda, vivia a seita dos assassinos.
qual o abade Bérenger Saunière, no século XIX, restau-
rou a igreja local, tendo ainda construído uma impo-
nente torre à imagem da de David em Jerusalém.
do castelo de Alamut, a sueste do mar Cáspio, uma A lenda, engordada através das mentiras e manipu-
imponente e inexpugnável fortaleza medieval da qual, lações de Pierre Plantard, uma personagem de caráter
hoje em dia, só sobrou um punhado de ruínas. Assente ambíguo que vinha dos círculos da extrema-direita e se
sobre um penhasco íngreme com 400 metros de dizia membro de uma sociedade secreta, o Priorado de
altura, que servia de defesa natural, este lendário antro Sião, com mais de dois milénios de existência, referia
só podia ser alcançado voando em cima de águias. que Saunière ficou rico devido à chantagem que fez
Foi dentro dos seus muros que se gerou o mito da seita junto do Vaticano. Ou seja, o dinheiro foi a paga para
dos hashshashin (a Ordem dos Assassinos), criada o abade não revelar a descoberta de documentos que
pelos cronistas que viajaram até à Terra Santa com o provavam que Jesus deixou descendência, fruto da sua
auxílio dos Cruzados. união com Maria Madalena, estando ela na origem da
Foram eles que dotaram de uma dimensão mística dinastia merovíngia. Esta linhagem teria perdurado
e mítica Hasan-i Sabbah, o homem que liderava a seita ao longo de vinte séculos, até aos nossos dias, graças
com mão de ferro e que instruía desde tenra idade os ao Priorado. Trata-se de um delírio que ganhou nova
seus acólitos, tendo ao seu dispor um viveiro inesgotá- dimensão graças a Dan Brown e ao seu livro O Código
vel de assassinos. Hasan era uma referência espiritual, Da Vinci. Apesar de se ter provado que o testemunho
mas também um hábil político e estratega, mestre em de Plantard é falso, a verdade é que Rennes-le-Château
maquinações e em assassinatos políticos. Conta a lenda continua a ser um local de peregrinação para os fãs do
que os seguidores da seita eram conduzidos ao topo best-seller do escritor norte-americano e das estapa-
da fortaleza, um paraíso de jardins idílicos onde se fúrdias teses de que ele faz eco.
davam a uma vida de prazeres, aturdidos pelo efeito R.P.

Interessante 39
Mulheres mitológicas
GETTY

Fábulas no feminino
Encantadora como uma sereia ou temível como a harpia;
protetora como Pacha Mamma ou subversiva como Lilith;
vingativa como Lorelei ou ingénua como Melusina…
Em terra, no mar ou no ar, são muitas as figuras míticas
que adotaram as formas de uma mulher.

A
água cobre 75 por cento do nosso planeta, homens. As versões mal intencionadas descrevem-nas
é fonte de vida e considerada por muitos como antropófagas, uma espécie de louva-a-deus que,
como um elemento feminino: seguindo este após enfeitiçar a sua vítima, acaba por engoli-la.
ponto de vista, parece lógico que sejam tan-
tos e tão variados os seres com forma de mulher liga- NO MAR E SEM ASAS
dos ao mundo aquático. Há as que são dóceis como No século IV, as sereias trocaram as suas asas por
uma fonte ou selvagens como uma cascata; generosas uma cauda de peixe. Na verdade, tratou-se de um mito
como a chuva ou sinistras como um temporal; acessí- pagão que a Igreja católica adotou, talvez para reparar
veis como as lagoas ou intransponíveis como os ocea- a inconsistência de se ter um ser marinho alado, ou
nos; combativas como o rio Amazonas ou inofensivas então para evitar que fossem parecidas com os anjos.
como as focas… Figuravam em manuscritos, escudos e vitrais como
As rainhas do oceano são, inequivocamente, as mulheres impuras, com um duplo apêndice caudal que
sereias. São poucos os mitos, vindos dos primórdios exibiam sem pudor. Por sua vez, os celtas chamavam-
dos tempos, que mantiveram o seu poder de encanto, e -lhes mermaids (“virgens marinhas”), não as vendo
um deles é o destes seres lendários. No século VIII a.C., como símbolos de perdição.
já circulavam relatos de criaturas cujo hipnótico canto Durante o Renascimento, a imagem das mulheres-
atraía os marinheiros. -peixe suavizou-se; passaram de causadoras dos
Nos antípodas das doces sereias, temos as repulsivas naufrágios para o papel de guardiãs do mar, sendo
mulheres-pássaro imaginadas pelos gregos, que não pintadas a azul e dourado, as cores da Virgem. Não
tinham pejo em descer a pique, vindas dos céus, para obstante, só durante o período romântico, quando as
atacar os marinheiros. Como se pode ver em algumas paixões perderam muita da negatividade a que esta-
cerâmicas, exibiam cabeça e busto de mulher, com vam associadas, é que se livraram da má reputação.
peitos generosos e enormes garras. Da sua natureza Associadas ao amor, deixaram de ser monstros para
aérea derivam, provavelmente, os seus dotes musicais se tornarem criaturas bondosas e protetoras. Tanto
e a atraente melodia que produzem. assim foi que o seu nome, através do sinónimo
Apesar do seu aspeto, não as podemos confundir com “sirene”, passou a estar associado a qualquer som que
as harpias, também elas de origem grega e igualmente alerte para um perigo.
aves. As harpias estão ligadas ao ar, têm uma natu- A lenda também diz que elas podem apaixonar-se
reza maléfica e personificam a força dos elementos. pelos humanos. Se esse amor for correspondido, então
Enquanto devoram tudo o que encontram pelo caminho, estes últimos obtêm uma alma imortal. Este é, preci-
vão lançando os seus terríveis gritos. samente, um dos temas mais recorrentes nas lendas e
Ainda assim, as sereias não são tão pacíficas como nos contos de hoje em dia.
se poderia crer, podendo tornar-se perigosas fadas da O mais conhecido de todos tornou famoso o nome
desgraça. No fundo, elas encarnam a tentação, sendo de Hans Christian Andersen em 1836, e a história foi
apresentadas como criaturas perversas que usam a imortalizada com uma estátua em Copenhaga. O conto
sua melhor arma, o canto libidinoso, para submeter os narra a história de uma pequena sereia que sacrifica a

40 SUPER
Submarinas. As sereias
são apresentadas como
mulheres belas e sedutoras.

Interessante 41
As rainhas
do oceano eram
mais atraentes do
que as terrestres
cauda para conquistar o seu príncipe, embora ele se
case com outra mulher. Após esta tragédia amorosa,
lança-se ao mar para morrer, mas o amor que tinha
dentro de si acaba por salvá-la e converte-a em sílfide,
um espírito do ar.
Quem também tinha bom coração eram as sereias do
Mediterrâneo, as nereidas, filhas das oceânides e netas
do deus Oceano. Velavam pelo bem-estar dos mari-
nheiros e cada uma delas representava um estado do
mar: Tália, o mar verde; Glauce, o mar azul; Cimódoce,
o mar ondulante.

VIAGEM A ÍTACA
As sereias e as ondinas são as ninfas gregas mais
conhecidas. O termo “sereia” deriva do latim siren ou
do grego seiren, e significa “atar uma corda”. Homero
explica na Odisseia como os companheiros de Ulisses
o imobilizaram com uma corda, para que pudesse dis-
frutar das melodias das sereias sem sentir a imperiosa
necessidade de se unir a elas. Prevenido por Circe, o
herói colocou cera nos ouvidos dos seus camaradas e
deixou que o atassem ao mastro da embarcação. As
sereias, desconsoladas pelo seu fracasso, precipita-
ram-se para o mar e pereceram nas mesmas rochas
contra as quais tantos barcos se tinham desfeito,
devido aos seus cantos.
Ulisses sabia que era impossível resistir ao prazer
daquele canto, a que se seguia, inevitavelmente, a
morte. Graças ao seu ardil, foi o único homem que
saiu de forma airosa de prova tão difícil. Quer dizer,
foi quase o único, pois também se salvaram da sua
AGE

melodia Jasão e os argonautas. Neste último caso, só


o conseguiram porque lutaram com a mesma arma das
sereias: a voz e a lira de Orfeu anularam o seu poder, nhas do oceano tanto podem ser compassivas como
evitando que o resto dos navegadores sentisse o aterradoras. Mais atraentes e voluptuosas do que as
impulso de escutá-las. mulheres que vivem em terra, acabam por ser, con-
As ondinas preferem a água doce e têm aparência tudo, mais possessivas do que estas. Ai daquele que
humana, estando desprovidas de escamas e cauda. O lhes for infiel, pois são capazes de tudo, incluindo
mesmo se passa com as mari-morgans da Bretanha, assassinar.
que seduzem os jovens pescadores e os levam para os Bastante mais pacíficas parecem ser as mulheres-
seus palácios submarinos, para depois se casarem com -foca das ilhas escocesas: conhecidas como selkies,
eles. Já as malvadas nixes, que deambulam pelas águas dizia-se que estavam revestidas por uma pele de foca,
paradas dos territórios germânicos e nórdicos, usam de forma a submergirem no mar. Aqui, a história passa-
a sua provocante dança para atrair os mortais até -se ao contrário: um pescador descobre uma selkie
às profundezas: o verde pálido e turvo daquelas águas e rouba a sua pele, e até a encontrar outra vez e voltar
era igual ao dos olhos das captoras. à água ela é obrigada a ficar em terra e a casar-se.
Inofensivas apaixonadas ou cruéis femmes fatales, Melusina e Lorelei, protagonistas de duas tristes his-
virgens submissas ou agressoras ninfomaníacas, as rai- tórias, suspiravam por casar com maridos humanos.

42 SUPER
Ninfa ingénua. A fada Melusina sofreu
um feitiço que, aos sábados, lhe transformava
metade do corpo em serpente. A cadeia de cafés
Starbucks adotou a lenda para o seu logotipo.

Uma lenda alemã dá conta de uma rapariga de pele


esbranquiçada e cabeleira loura, Lorelei, que vivia junto
ao rio Reno. Traída pelo homem que amava, acabou por
adotar a forma de uma sereia. Desde então, alimentada
pelo rancor, dedica-se a conduzir os navegadores até à
morte. A sereia do Reno tornou-se uma frutífera fonte
de inspiração; uma das pessoas que aí beberam foi
o poeta romântico Heinrich Heine, que lhe dedicou
alguns dos seus versos.
Enquanto Lorelei pertence à mitologia germânica,
Melusina, por sua vez, é de origem gaulesa. A versão mais
conhecida da sua história surgiu em 1393, por via de
um relato de Jean d’Arras: Melusina ou a Nobre História
dos Lusignan. Essencialmente, o livro narra a vida de
uma fada que se converte em mulher por amor, e, ao

Interessante 43
Se forem traídas Aguerrida. A deusa hindu Devi
era temível em combate, devido

ou abandonadas, aos seus múltiplos braços armados.

são capazes
de tudo
ser vítima de uma promessa incumprida, é condenada
a transformar-se em serpente da cintura para baixo a
cada sábado, até que um homem queira casar-se com
ela e aceite não a ver nesse dia da semana.

TRÍADE MALIGNA
Enquanto amálgama de três seres que são malditos
para a Igreja (mulher, serpente e fada), Melusina neces-
sita de redenção. Só um marido humano pode libertá-
-la da sua malformação, de uma existência sem alma.
No entanto, este acaba por faltar à sua palavra e, ao ver
que o seu segredo foi descoberto, Melusina transforma-
-se numa serpente alada e desaparece nos céus. Len-
das de todo o mundo reproduzem o mito de Melusina,
embora sob outras formas híbridas: pássaro, veado,
macaco, bisonte, etc. O mito continua vivo em pleno
século XXI, por exemplo no logotipo da rede norte-
-americana de cafés Starbucks.
As sereias, nixes e ondinas não se limitam às águas
ocidentais. No Haiti, a deusa do mar Sirène fundiu-se
com santa Filomena, exemplificando a amálgama de
elementos pagãos e cristãos que existem no vudu. As
apsarás são ninfas aquáticas que animam o céu hindu
com canções e danças, e os antigos habitantes da
China e do Japão acreditavam que rainhas-dragão
viviam nas profundezas do mar.
Entre as ninfas mais exóticas, encontramos a norue-
guesa Fossegrim, com cabelos de ouro e voz angeli-
cal, tal como Sacien, de rosto pálido e cabelo negro,
que vivia na Lapónia russa. Na mitologia eslava,
temos ainda Rusalka, que tinha no seu físico uma mão
humana e uma barbatana de peixe.
Também há seres femininos nos prados e nos bos-
ques, onde os solos são húmidos e os córregos abun-
dantes, assim como nas montanhas coroadas por
nuvens que prometem chuva. Também os há nas árvo-
res (as dríades) e no ar (as sílfides). Destas últimas, a
mais vivaça é a Sininho da história de Peter Pan, a mais
famosa das fadas da Disney.

UMA SIBILA EM TROIA


As sibilas eram videntes: protagonizavam as funções
de médiuns ou de feiticeiras rodeadas de magia, mas da dez que chegou ao tamanho de uma cigarra. Acabou
boa. Afortunadas com o dom da profecia, eram inter- os seus dias confinada numa gaiola. Também dedi-
mediárias entre os deuses e os homens. Do período cado a Apolo estava Delfos, com o seu oráculo: aqui,
romano, destaca-se a sibila de Cumas, que pediu ao os sonhos da médium (a Pítia) tornavam-se realidade.
deus Apolo uma vida longa mas não a virtude de con- A sacerdotisa entrava em transe enquanto respondia
servar-se jovem, tendo envelhecido com uma tal rapi- às perguntas num confuso linguajar. Alguns autores

44 SUPER
A pesca da sereia
A situação pode provocar risos, mas a ver-
dade que é houve muitas pessoas a afir-
mar que as sereias eram criaturas bem reais.
Entre elas, temos são Brandão, um monge
irlandês do século VI. Mais tarde, uma cró-
nica islandesa do século XIII dá conta de um
monstro marinho cuja descrição encaixa na
de uma sereia, seguindo-se
um bando de mulheres

AHU
holandesas que jurou ter
encontrado, em 1430,
uma “rapariga do mar”
presa na lama, a qual aca-
bou por viver como hu-
mana durante 17 anos.
Com as explorações ma-
rítimas, aumentaram os
relatos e testemunhos.
O diário de Cristóvão
Colombo assinala a con-
templação de três sereias
que não eram “tão belas
como os retratos que
geralmente se fazem delas”. Talvez o jesuíta
Pierre de Charlevoix estivesse certo e mais
não fossem do que peixes-boi, animais de
rosto humanoide e cujas fêmeas possuem
dois seios bem visíveis. Em 1748, o nobre
francês Benoït de Maillet (na imagem) espe-
culou de forma impressionante e proclamou
que as sereias era sobreviventes de uma raça
primitiva, metade macaco, metade peixe.
Mais longe foi o frei galego Benito Jerónimo
Feijóo, para quem elas eram o fruto de coitos
perversos entre diferentes espécies. Por cau-
sa disso, era da opinião que os marinheiros e
pescadores deveriam jurar que não iriam ter
relações sexuais com elas. Durante os séculos
XVIII e XIX, proliferaram os relatos de su-
postas capturas de sereias, as quais acabavam
nos “gabinetes de curiosidades”, os lugares
onde, à época, se depositavam os objetos es-
tranhos e bizarros, ou em feiras, para mostrar
ao público as aberrações. Inclusivamente,
chegaram a ser-lhes atribuídas propriedades
medicinais, o que despertou a imaginação de
ALBUM

muitos oportunistas. A sereia que circulava


em Londres no ano de 1832, por exemplo,
mais não era do que um macaco deliberada-
referem que a emanação de um qualquer gás que aí mente enxertado numa cauda de tubarão.
se produzia pode ser a causa para as suas alucinações. Tamanha era a fé na sua existência que, até
Cassandra foi outra personagem que recebeu de ao século XX, esteve em vigor uma lei que
Apolo capacidades de adivinhação. Entre os seus êxitos, reclamava para a coroa britânica “todas as
conta-se a revelação, aos troianos, do estratagema sereias encontradas em águas inglesas”.
grego do cavalo de madeira, embora, como se sabe, a

Interessante 45
Muitas culturas Baile celestial. No Cambodja, pratica-se
uma dança milenar chamada apsará, em honra

têm a figura dos seres sobrenaturais com o mesmo nome.

da mulher
criadora da Terra
previsão não os tenha salvo. Terminou como escrava e
amante de Agamémnon, rei de Micenas, tendo exercido
a sua habilidade até ao final da vida: previu a sua própria
morte às mãos de Clitemnestra, esposa do soberano.
No meio de tudo isto, temos um trio de deusas capazes
de forjar o destino dos humanos. Na Grécia Antiga, eram
conhecidas como moiras; para os romanos, eram as par-
cas; nos países nórdicos receberam o nome de nornas.
Teciam, enredavam e cortavam, conforme queriam, os
fios (a vida) dos fantoches mortais, os humanos.
Quem também ostentava um enorme poder eram
as discípulas de Merlim, nascidas a partir das lendas
arturianas. Apaixonado pela fada Viviane, o feiticeiro
ensina-lhe a sua magia e constrói-lhe um palácio de cris-
tal no fundo de um lago. Convertida na dama do Lago,
é Viviane quem dá ao rei Artur a espada Excalibur e
educa Lancelote, enquanto Morgana, a grande sacer-
dotisa da ilha de Avalon, vai criando obstáculos que
lhe permitirão tornar-se o melhor cavaleiro do mundo.

AMAZONAS E VALQUÍRIAS
As amazonas e as valquírias, essas, foram seres míticos
femininos mais virados para a guerra. As amazonas esta-
vam tão bem apetrechadas como Lancelote quando
partiam para o combate: sobre elas, a história e a lenda
confundem-se. Em 1994, foram descobertas em Pokro-
vka (Quirguistão) cinquenta túmulos com esqueletos
de mulheres, enterradas com espadas, adagas e flechas. é fruto da união de a (“sem”) com mazós (“peito”),
É possível que não pertençam às lendárias amazonas, numa alusão ao seu costume de amputar o seio direito
uma vez que não se encontravam onde o historiador para manejar melhor o arco. O historiador fala também
Heródoto as tinha situado no século V a.C., na desem- das androktones, as “assassinas de homens”. O acesso
bocadura do atual rio Don, perto da fronteira com o ao seu território, reza a lenda, era proibido, mas,
Cazaquistão. Ainda assim, o achado demonstra que uma vez por ano, visitavam a tribo dos gargáreos com o
houve mesmo mulheres guerreiras, pelo que a imagi- objetivo de procriar: se nascesse um menino, era sacri-
nação dos gregos não estava tão longe da realidade ficado; se era uma menina, ensinavam-na a combater.
como se poderia pensar.
Para o mundo clássico, as amazonas e as valquírias IMITAÇÃO DAS AMAZONAS
viviam na Ásia Menor, na região do Ponto Euxino (mar Segundo o mito, Aquiles matou a rainha das ama-
Negro), nos confins do mundo conhecido. No entanto, zonas, Pentesileia, mas as suas súbditas escaparam e
para os gregos os termos “poder” e “mulher” não se foram emparelhar com os citas, fundando depois a tribo
conjugavam. Daí que tivessem prestado tanta atenção dos sármatas. É o momento em que a ficção começa
a estas fêmeas donas de si próprias, símbolo do conflito a fundir-se com a realidade. Ao que parece, estas
entre as colónias do Egeu e os cavaleiros guerreiros guerreiras das estepes tiveram imitadoras de carne e
das estepes, sinal do antagonismo entre o que consi- osso. Marco Polo, por exemplo, viu no Oriente uma
deravam ser a civilização e a barbárie. ilha povoada de fêmeas belicosas, enquanto os homens
Heródoto refere que as amazonas eram capazes de do conquistador espanhol Francisco de Orellana lutaram
disparar com o arco enquanto galopavam. Uma das contra mulheres enquanto navegavam pelo rio Ama-
teorias sobre as origens do nome “amazona” refere que zonas, assim batizado em honra dessas lutadoras.

46 SUPER
Muitos povos têm como primeiro ser supremo uma

GETTY
figura feminina, encarregue de criar a Terra. A Grécia
Antiga tinha Gaia, que deu à luz a primeira raça de seres
vivos, os titãs, e Cibele, a Grande Mãe. Em Roma, tanto
temos Juno, deusa dos partos, como a Bona Dea, rodeada
de mistério. As matres celtas, por sua vez, costumam
mostrar o peito, ou então carregam um bebé. A lenda
que rodeia Luonnotar, a primeira deusa finlandesa, é
curiosa: uma ave pôs ovos no seu colo, com o céu e
a terra a surgirem a partir das cascas, enquanto das
gemas nasceu o Sol e das claras a Lua. Pouco depois,
foram concebidos os oceanos e os continentes.
Mudemos de continente. Nos Andes, ainda se tenta
garantir uma boa colheita venerando Pacha Mama, de
origem inca. Para os nativos do sudoeste dos Estados
Unidos, a criadora de tudo é a Mulher Aranha, embora
a sua história tenha variantes. Os navajos, por exemplo,
dizem que lhe coube tecer a escada pela qual as pessoas
subiram ao mundo, enquanto os keres referem que
gerou os fios do universo. Já os sénecas, que viviam no
território do que é hoje a metrópole de Nova Iorque,
deram o nome de Eagentci (“anciã”) à sua Primeira
Mãe. O seu marido, o Portador da Terra, atirou-a por um
buraco, e enquanto caía ela ia recolhendo sementes
que depois largou sobre a carapaça de uma tartaruga. É
por isso que as tribos iroquesas e algonquinas se refe-
riam à América do Norte como “ilha da Tartaruga”.

MULHERES REBELDES
Há outros mitos primevos em que a rebeldia é decisiva.
Basta dar uma vista de olhos pelas biografias das três
primeiras mulheres que pisaram o planeta: de acordo
com o cânone ocidental, todas elas foram transgres-
soras. A primeira companheira de Adão, a fada Lilith,
acabou por ser uma protofeminista. Rebelou-se contra
o papel secundário a que ficou confinada, em virtude
do seu sexo, e ousou abandonar o homem para seguir
Engana-se quem pensa que as amazonas eram as o seu próprio caminho. É por isso que surge represen-
únicas mulheres dotadas de força e habilidade para o tada como um demónio que come crianças, maligna e
combate. A deusa hindu Devi também estava talhada obscura (lilith, em hebraico, significa “noturna”).
para a guerra, sendo capaz de usar qualquer arma e de Eva e Pandora completam a tríade de mulheres mal-
transformar-se num exército graças aos seus mil braços. dosas. Eva atreveu-se a provar o fruto proibido e trouxe
Quem também tinha um aspeto combativo eram as o pecado ao mundo. Pandora, que para os gregos foi o
valquírias nórdicas, cuja função era selecionar os guer- primeiro ser humano do sexo feminino, abriu a ânfora
reiros que mereciam entrar em Valhalla, a morada dos proibida e encheu o planeta de guerra e dor. Ambas se
deuses. Estas donzelas escudeiras serviram de musas perderam pela curiosidade, característica que nunca é
para Richard Wagner, aparecendo na tetralogia operá- interpretada como vontade de conhecimento, mas sim
tica O Anel dos Nibelungos. como debilidade. Deste modo, além de culpabilizadas
pelos males do mundo, foram tratadas como sendo
SENTIMENTO MATERNAL moralmente inferiores aos homens, o que justificaria a
Há quem duvide do real poder das guerreiras, mas necessidade de as controlar, submissão essa que, con-
é bem mais difícil colocar em causa a capacidade pro- sequentemente, se aplicaria às restantes mulheres.
tetora das mães. Símbolos da fertilidade é o que mais Os seres míticos femininos oferecem-nos mil e um
existe desde o Paleolítico: é o caso da Vénus gorda e rostos: independentes ou submissas, luxuriosas ou
voluptuosa datada dessa época. Destas figuras encon- castas. Acompanham-nos desde os primórdios dos
tradas por toda a Europa – a estatueta de Willendorf, tempos, mas, longe de viverem no passado, estão
na Áustria, é a mais conhecida – dependia a sobrevi- ancorados no presente. São eternos.
vência das primeiras comunidades agrícolas. L.M.

Interessante 47
Animais e seres singulares

Criaturas
fantásticas

No início do século XX, um conjunto de descobertas


arqueológicas trouxe numerosas pistas sobre o que
se pensava serem animais de uma época remota, feras
dotadas de estranhas formas que, ainda no século
anterior, eram vistas como verdadeiros monstros.

48 SUPER
O herói e o monstro
Esta ilustração mostra
o encontro de Ulisses
com o ciclope Polifemo,
tal como contado
na Odisseia de Homero.

Interessante 49
O poeta italiano
Boccaccio
confundiu
Polifemo
com um elefante

E
m 1902, o arqueólogo alemão Robert Kolde­
wey encontrou a Porta de Ishtar, no local da
antiga cidade da Babilónia. Trata-se de um
arco semicircular, flanqueado por paredes
gigantescas, que servia de entrada para uma via de con­
siderável comprimento, ladeada, por sua vez, por pare­
des recobertas de tijolos azuis esmaltados. As paredes
da porta estavam cobertas, de cima a baixo, com filas
alternadas de duas diferentes imagens: um touro
feroz e um animal enigmático parecido com um dragão.
Os baixos-relevos do sirrush, como é conhecido,
mostram o corpo de um animal coberto de escamas,
com uma cauda comprida e um fino pescoço que sus­
tém uma cabeça de serpente, adornada com um corno.
Da sua boca sai uma língua bífida que faz lembrar a do
dragão de Komodo, um lagarto de grande porte que
vive em algumas ilhas da Indonésia central. Porém, a
característica mais singular do sirrush babilónico são
os seus pés. As patas anteriores são de um felino e
as posteriores de um pássaro, com quatro dedos
cobertos de estranhas e grossas escamas.
Se a Porta de Ishtar tivesse sido descoberta um
século antes, o estranho animal teria entrado no catá­
logo de bestas fantásticas da arte mesopotâmica, no
qual se incluem os touros alados e outros animais
gigantescos com cabeças humanas. Contudo, a desco­
berta deu-se no princípio do século XX, quando Othniel
Charles Marsh, um erudito paleontólogo norte-ameri­
cano, já era considerado o “pai dos dinossauros” e o para as culturas que os criaram. Desde os primór­
mundo académico conhecia os fósseis de criaturas de dios da humanidade que os mitos têm influenciado o
outros tempos. desenvolvimento dos povos, dando resposta a muitas
Seria o sirrush a representação de um animal verda­ perguntas, descrevendo o bem e o mal e oferecendo
deiro que existiu durante a época babilónica, ou mais uma interpretação alegórica do mundo. “Um país sem
não era do que uma simples representação fantasiosa de lendas morreria de frio”, afirmou o filólogo e historia­
artistas mesopotâmicos? Koldewey escreveu, em 1913, dor francês Georges Dumézil.
que o dragão de Ishtar correspondia em muitos traços
aos sáurios que se extinguiram durante o período jurás­ O CICLOPE CANIBAL
sico. No entanto, o mais provável é que o sirrush fosse, As histórias sobre heróis e criaturas fantásticas
simplesmente, uma criatura fantástica cujo significado nasceram sob a forma de relatos populares e foram
simbólico ainda hoje nos escapa. De facto, os vestígios transmitidas oralmente, de geração em geração, até
arqueológicos da Mesopotâmia fornecem evidências ao momento em que foram escritas por alguém, como
de outros seres híbridos e criaturas fantásticas, como aconteceu com a Ilíada e a Odisseia de Homero, em
os maravilhosos unicórnios e os touros alados. cujas páginas aparece um bom número destas figuras.
Todos os animais imaginários que chegaram até É o caso do ciclope Polifemo, que se destacava por ter
nós, vindos da Antiguidade, tinham um valor simbólico um único e grande olho redondo na cabeça.

50 SUPER
O enigmático sirrush. Pormenor
da decoração da Porta de Ishtar,
com a figura representada com cabeça
de serpente e patas de águia e leão.

Após comer vários cativos, Polifemo é convidado pela descoberta, Boccaccio assegurou que os ossos
por Ulisses a beber vinho. O gigante fica bêbado e encontrados na gruta revelavam que o gigante devia
adormece. Chegado esse momento, Ulisses e os seus medir, quando vivo, cem metros de altura, suficiente­
companheiros endurecem ao lume uma vara comprida mente grande para devorar um homem de uma só vez.
e usam-na para furar o olho do monstro. Assim que se No começo do século XX, coube ao paleontólogo
livram dele, os prisioneiros escapam no seu barco, dei­ austríaco Othenio Abel (1875–1946) explicar que os
xando para trás a terra dos ciclopes. Séculos depois, ossos correspondiam ao crânio de um elefante, um
Virgílio (70–19 a.C.) escreveu que a figura mítica do Poli­ animal desconhecido para os gregos do período homé­
femo era, na realidade, uma personificação do vulcão rico e, ao que parece, também do imaginativo Boc­
Etna (na Sicília). Segundo o poeta romano, o grande caccio. A verdade é que, se olharmos de frente para
olho não era outra coisa senão a cratera, enquanto o o crânio do paquiderme, sem as presas, nota-se uma
terrível alarido do gigante, depois de ferido, represen­ certa semelhança com o de um humano. Na sua parte
tava o rugido do vulcão em erupção. frontal, a meio, a caveira exibe dois grandes buracos
No século XIV, o poeta italiano Giovanni Boccac­ parecidos com uma enorme cavidade ocular: afinal,
cio atirou borda fora a perspicaz hipótese de Virgílio mais não é do que a abertura nasal do elefante.
ao afirmar que os vestígios de Polifemo tinham sido Algo semelhante ocorreu em Mileto, uma antiga
encontrados numa caverna siciliana. Entusiasmado cidade grega que atualmente está situada em território

Interessante 51
Os animais Parecido. Atentando bem nas características
de um rinoceronte (neste caso, indiano), vemos

fantásticos que corresponde à descrição do unicórnio.

tinham um valor
simbólico
turco, onde o historiador e geógrafo Pausânias, do
século II, registou a descoberta de um esqueleto com
dez cúbitos de altura. Dada a sua fantástica morfologia,
o grego concluiu que o esqueleto só podia ser o do
herói Ajax. Os ossos fossilizados de antigos animais,
os restos de um mamute e os monumentos megalí­
ticos eram vistos, na antiguidade, como vestígios de
extraordinárias civilizações anteriores ao Dilúvio.

TÚMULOS DESCOBERTOS
Muitos mitos têm as suas raízes em fenómenos úni­
cos da natureza e, igualmente, em humanos reais que
faziam parte de povos desaparecidos. O historiador
grego Heródoto disse, no século V a.C., que nas regiões
remotas do norte da Turquia viviam as amazonas,
uma nação de mulheres muito belicosas que foram
assimiladas pelos citas entre os séculos VII e V a.C.
Desde Homero e até ao fim do mundo antigo, persistiu
a crença de que elas existiam mesmo. De acordo com
Heródoto, as amazonas cavalgavam com um grande
à-vontade e manejavam com destreza a lança e o arco.
Na mitologia grega, o combate com as mulheres guer­
reiras simbolizava a luta dos gregos contra a barbárie. obra de Ovídio, uma joia da literatura em que apare­
Em 1993, a arqueóloga russa Natalia Polosmak achou cem deuses e seres fantásticos romanos em parelha
os restos mumificados de uma mulher com múltiplas com os de diversos povos: entre eles, os gigantes,
tatuagens na pele, pertencente à antiquíssima tribo Zeus (Júpiter), Medeia, Hermafrodito e os centauros.
Pazyryk, um povo nómada que viveu nas atuais regiões O mesmo ocorre com a História Natural de Plínio, o
fronteiriças da China, do Cazaquistão e da Mongólia. Velho, que deu crédito à suposta existência de animais
O seu corpo foi enterrado juntamente com seis cavalos incríveis, como o unicórnio.
sacrificados. O seu túmulo e outro encontrado na Este historiador romano escreveu que um povo da
mesma zona levaram alguns arqueólogos a pensar que Índia costumava caçar uma besta extraordinariamente
talvez as duas mulheres pudessem ser combatentes selvagem, o monóceros (o unicórnio), que tinha a
da tribo Pazyryk, tendo vivido há vinte séculos, na cabeça de um cervo, pés de elefante e cauda de porco.
mesma altura em que o historiador grego descreveu Plínio afirmava que o resto do seu corpo era como o
as lendárias amazonas. de um cavalo, emergindo do centro da sua fronte
um corno negro com dois cúbitos de comprimento.
PARA ALÉM DO REAL “Dizem que este animal não pode ser apanhado vivo”,
Ao longo da história da humanidade, foi-se criando salientava o historiador.
um vasto catálogo de seres mitológicos aos quais se Hoje em dia, se compararmos esta descrição do
atribuiu uma série de qualidades mágicas ou sobrenatu­ unicórnio com uma fotografia do rinoceronte indiano,
rais. Estas criaturas fabulosas convidaram os humanos veremos que Plínio não estava muito longe da reali­
a ir além do que é real e objetivo. O repertório de ani­ dade. Ao fim e ao cabo, estava a descrever a aparência
mais fantásticos serviu para nos afirmarmos como seres de um animal que nunca chegou a contemplar com os
humanos e alertar para os perigos e tentações que, ao seus próprios olhos, mas do qual tinha conhecimento
longo da vida, se escondem à espreita. por via do testemunho de alguns viajantes que o viram
Os romanos não tiveram problema algum em adotar nos campos selvagens do Oriente. Mesmo assim,
os mitos e lendas de outras culturas, uma prática parece certo que Plínio não se baseou em fontes
que se encontra patente nas Metamorfoses, a magna judaicas, as quais diziam que o tamanho do unicórnio

52 SUPER
TRISHA SHEARS

ALBUM

Mapa do mar do Norte, do século XVIII.

era tão incrível que Noé não conseguiu encontrar um


Mapas fabulosos
lugar para ele na Arca. Séculos mais tarde, os árabes
contavam que o unicórnio atacava os elefantes com o
seu corno gigantesco.
A s criaturas fantásticas e diabólicas do
período medieval, destinadas a mostrar
aos crentes as perversões do pecado e alertá-
-los para as tentações que se escondem à
UNICÓRNIO IDEALIZADO espreita, não estavam apenas presentes nos
Os gregos e os romanos que deram de caras com os manuscritos e nos pórticos das igrejas. Os
rinocerontes indianos devem ter ficado enormemente geógrafos da Idade Média estavam cons-
desiludidos ao ver o seu aspeto bruto, tão afastado da cientes da desordem instalada no mundo e
figura idealizada e maravilhosa do unicórnio descrito expressaram-no nos mapas, dando uma posi-
em alguns textos antigos. O viajante veneziano Marco ção específica para as diferentes criaturas que
Polo descreveu-o como um animal mais pequeno povoavam a Terra. Num mapa inglês pintado
do que os elefantes, cujo pelo era como o do búfalo por volta de 1260, as criaturas que o ilustra-
e com uns pés semelhantes ao de um paquiderme. vam tornavam-se cada vez mais disformes à
Pouco tempo depois, a mitologia cristã voltou a con­ medida que se afastavam da Cidade Santa de
verter o unicórnio numa figura poderosa e atrativa que Jerusalém, o centro nevrálgico do planisfério
simbolizava a força viril. O fabuloso animal só perdia terrestre. As formas estranhas tornam-se
o poder quando colocava o corno no regaço de uma mais bizarras conforme se aproximam dos
jovem virgem. limites do mundo conhecido. Na parte ci-
O seu corno (o licórnio) passou, assim, a ter proprie­ meira do mapa, aparece a representação de
dades milagrosas capazes de combater a impotência Deus; em baixo, a dos dragões infernais. Era
sexual, tendo sido utilizado como antídoto contra todo comum os dragões estarem acompanhados
o tipo de venenos, o que aumentou a procura e fez de algumas das criaturas fantásticas descritas
disparar o seu preço nos mercados. Esta poção, com por Plínio, o Velho, como gigantes, unicór-
as suas alegadas propriedades curativas, perdurou nios, pigmeus e homens com olhos no peito.
por muitos anos. Os cornos de mamute, os do rinoce­

Interessante 53
A floresta
medieval foi
ponto de encontro
entre real e magia
ronte lanudo da Idade do Gelo e os dos grandes cetáceos
chegaram a ser confundidos com os dos unicórnios.
Druidas, boticários e curandeiros trituravam-nos até
se transformarem em pó. Os últimos lotes de medica­
mentos que continham licórnio apenas desapareceram
das farmácias londrinas no final do século XVIII.

O PREÇO DO LICÓRNIO ATUAL


Apesar de tudo, o comércio ilegal mantém-se vivo
nos dias de hoje. Alguns asiáticos chegam a pagar 40
mil euros por um quilo de corno de rinoceronte. Uma
só peça pode vender-se por mais de meio milhão de
euros no Extremo Oriente. Após ser triturado, o pó é
misturado com vinho e outros produtos de modo a
ser utilizado como afrodisíaco, ou, ainda, como trata­
mento no combate ao cancro, à semelhança do que
tem vindo a ocorrer no Vietname, nos últimos anos.
Na época medieval, foram coligidos muitos bestiários
de animais fantásticos e monstruosos, cujas anomalias
foram utilizadas pela Igreja para instruir moral e reli­
giosamente os seus paroquianos. Nessas compilações, das com um corpo de ave similar ao abutre, cabeça
aparecem todos os tipos de criaturas exóticas, como de mulher e garras afiadas. Em português, o termo
o basilisco, o grifo, a catóblepa (semelhante a um “harpia” está associado a uma mulher ambiciosa e
antílope), a sereia ou a fénix. O monstro era alegorica­ má, que com arte e manha obtém o que pode, mas as
mente interpretado como pecado, embora por vezes harpias não eram bondosas nem malvadas. Limitavam­
também fosse visto como virtude: é o caso dos grifos, -se a transportar as almas dos humanos até ao outro
aves fabulosas com bico de águia e corpo de leão que mundo, para que cada uma recebesse o tratamento
vigiavam o ouro de Apolo e o vinho de Dionísio. que merecia. Era frequente as harpias serem confun­
Séculos mais tarde, os grifos passaram a ser vistos didas com as sereias, as quais também tinham uma
como os predadores que atacavam os prospetores atitude ambígua, entre o sedutor e o criminoso. Esta
de ouro nos desertos do norte da Índia e da Etiópia. segunda característica destacava-se nas sereias que
Outros autores, por sua vez, asseguram que estes ani­ lançaram a tentação ao herói Ulisses, com cantos des­
mais fantásticos buscavam o precioso metal. Na herál­ tinados a atraí-lo aos seus domínios e assassiná-lo.
dica, o grifo representa a majestade e a nobreza, dado De entre todos os animais do bestiário medieval,
que o seu corpo é a combinação das duas criaturas há um que brilha com uma força muito própria: o dra­
mais nobres à face da Terra: a águia e o leão. gão, que durante a Idade Média era visto como uma
O basilisco foi outra das figuras datadas do período imagem viva de Satanás. O combate que se dá entre o
medieval: um animal dotado de uma cabeça mons­ cavaleiro e o dragão tem um sentido alegórico. É uma
truosa, com crista de galo, que se ligava a um corpo luta de vida ou de morte entre a virtude e o diabo. Nas
de duas patas e com cauda de serpente. Os basiliscos sagas germânicas, Sigurdo, com a sua grande espada
eram capazes de matar através do seu olhar gélido e Gram, mata de um só golpe o dragão. Na épica anglo­
do hálito fétido. Estavam encarregues de transportar -saxónica, o herói Beowulf combate dois temíveis
as almas dos pecadores até ao Inferno, pelo que sim­ dragões, derrotando-os apesar das graves feridas que
bolizavam a morte. sofre durante a refrega.
Na Idade Média, o bosque era o lugar de encontro
PORTADORAS DE ALMAS entre o mundo natural e o sobrenatural. Nesse
Nos bestiários medievais, também havia lugar para ambiente mágico, viviam as criaturas lendárias da
as criaturas femininas, como as harpias, representa­ mitologia nórdica, como os elfos e as fadas, e também

54 SUPER
O Leviatã,
criatura do oceano
E sta besta marinha surge no Antigo
Testamento, reencarnando a serpente
de Adão e Eva, e, de acordo com os antigos
livros de orações judaicas, é um peixe mons-
truoso que nasceu no quinto dia da Criação.
A sua história está igualmente relacionada
com o Talmude, onde se diz que o Leviatã
será destruído e a sua carne servida como
banquete. Na origem deste animal, poderá
estar uma antiga lenda de Canaã, uma região
do Médio Oriente que abarca parte do atual
território de Israel e da Palestina, em que se
conta a derrota de um monstro de sete cabe-
ças às mãos de Baal, o deus supremo e pai de
todas as deidades. A lenda tem, igualmente,
uma certa semelhança com a épica da criação
babilónica, na qual o deus Marduk assassina
Tiamat, a deusa do caos, personificada na
forma de um monstro marinho. Se no cristia-
nismo o Leviatã passou a representar a figura
Atualização. A figura de Drácula do diabo, no satanismo aparece como um
é uma versão moderna dos monstros
dos quatro príncipes do Inferno, juntamente
mitológicos da antiguidade.
com Satã, Lúcifer e Belial. Com o passar do
tempo, o Leviatã converteu-se no símbolo
dos seres marinhos fantásticos que muitos
as dos mitos celtas da mitologia anglo-saxónica, como marinheiros creem ter visto, entre os quais se
as personagens da corte do rei Artur, das quais se des­ conta, por exemplo, o Kraken, uma criatura
tacava o mago Merlim, outra das grandes lendas que mítica das lendas escandinavas.
chegaram vivas aos nossos dias, tendo passado, inclu­
sivamente, pela tela do cinema.

LENDAS OBSCURAS A ânsia do protagonista deste romance de fabricar um


Numa das versões do mito, assegurava-se que Merlim ser humano a partir de retalhos de cadáveres conver­
foi engendrado por um demónio para atrair os seres teu este mito moderno numa nova versão da figura de
humanos para o lado escuro que existe no interior de Prometeu: segundo a interpretação grega, Prometeu
cada um de nós. No entanto, e com o passar do tempo, era o criador da humanidade.
o mago converteu-se no guia espiritual de vários reis, Desde então, o catálogo de seres míticos e lendários
como Uther Pendragon e o famoso Artur de Camelot. não parou de crescer. Os monstros e os seres prodigio­
Dizia-se que Merlim estava em contacto com os gno­ sos advertem-nos sobre o lado escuro da nossa exis­
mos, as fadas e os dragões que viviam nos bosques. tência. Mostram-nos a imagem do “outro”, a imagem
Outra versão do mito assegura que o mago Merlim do estranho. No rol de monstros modernos, surgem
acabou os seus dias confinado a uma jaula de cristal, novos nomes, como o Golem de Gustav Meyrink e o
por culpa da sua jovem e bela companheira Nimue, a Drácula de Bram Stoker.
dama do Lago. Outros autores também contribuíram para renovar
No século XVII, o enciclopedismo e o ceticismo racional a galeria de criaturas fantásticas, como J.R.R. Tolkien,
colocaram um ponto final na crença em seres fantásticos. autor de O Senhor dos Anéis, Michael Ende, com A
Todavia, foi na “época das luzes” que o subgénero História Interminável, C.S. Lewis, pai de As Crónicas de
literário ligado às criaturas imaginárias teve um novo Nárnia, ou J.K. Rowling, criadora do imaginário mundo
impulso. Os escritores usaram os seres fantásticos de Harry Potter. Nas suas obras, regressam à vida os
para parodiar a sociedade, como fez o jornalista Jona­ dragões, os unicórnios, grifos, elfos, magos e outras
than Swift em As Viagens de Gulliver, ou para simboli­ criaturas fantásticas, devolvendo aos nossos dias os
zar os perigos que vinham com os avanços científicos, velhos mitos da Antiguidade clássica e da Idade Média.
exemplificado pelo Frankenstein de Mary W. Shelley. F.C.

Interessante 55
Documento

O primeiro
herói
M
enos recordado na atualidade do que
devia, Gilgamesh é o pai de todos os
heróis mitológicos que vieram mais
tarde. Na realidade, trata-se do primeiro
mito de que há registo histórico; não é por acaso que
vem da Suméria, o berço da civilização, em terras da
Mesopotâmia. A Epopeia de Gilgamesh foi escrita,
muito provavelmente, por volta da primeira metade
do segundo milénio antes de Cristo, mas a sua história
já era conhecida muito antes, nas lendas orais meso-
potâmicas, referindo-se a um mítico rei que viveu há
cerca de 4500 anos. Por ter começado a circular tão
cedo, os investigadores conseguiram detetar a sua
influência nos relatos da Bíblia e na própria Odisseia
de Homero. Estamos, portanto, perante um mito que
marcou indelevelmente a nossa cultura.
A história de Gilgamesh é uma viagem espiri-
tual repleta de aventuras incríveis, durante a qual o
monarca sumério tentou alcançar a imortalidade. Ao
longo da sua jornada, acaba por encontrar o sentido da
vida e da amizade e muitos outros ensinamentos que
o transformam profundamente.

SOBERANO SUMÉRIO
Gilgamesh reinava sobre Uruk, uma importante
cidade da Antiguidade mesopotâmica. Não era total-
GETTY
mente humano, mas também não era divino: dois ter-
ços de si eram de um deus, mas a outra parte era mortal. Alto relevo assírio de Gilgamesh.
Apesar de ser capaz de grandes e gloriosos feitos, era,
no entanto, um senhor nada simpático para com os
seus súbditos, não só porque se envaidecia com os mhat, a cujo poder de atração era impossível resistir.
seus êxitos, mas também porque reclamava para si o Após várias noites juntos, Enkidu civilizou-se e, inclu-
“direito da primeira noite”, também conhecido como sivamente, abandonou os campos para casar com
“direito do senhor” ou “direito de pernada”, que lhe Shamhat. Contudo, Gilgamesh decide reclamar o seu
permitia ir para a cama com as esposas dos sumérios direito e Enkidu, de novo enfurecido, ergue-se contra
na primeira noite após o casamento. o suserano, envolvendo-se os dois num terrível combate.
As notícias sobre os abusos de Gilgamesh chegaram
até aos deuses, motivando a decisão de o castigar. Foi PROEZAS ENTRE AMIGOS
então que a deusa-mãe Ninhursag criou, a partir do No final da luta, os dois combatentes, ambos dotados
barro, um ser semisselvagem, chamado Enkidu, que de uma força formidável, acabam por se tornar amigos.
depressa começou a aterrorizar a população que Gilgamesh, que sonhava a todo o custo com a glória,
vivia nos campos e bosques situados perto de Uruk. propôs a Enkidu que partissem para uma aventura: ir à
As tropelias de Enkidu chegaram aos ouvidos do rei, Floresta dos Cedros e cortar as grandes árvores que aí
levando-o a conceber um ardiloso estratagema para se encontravam. Tratava-se de um lugar parecido com
amansar a besta. O plano consistia em domar os seus o Paraíso do Antigo Testamento, onde, segundo a mito-
impulsos enviando-lhe uma prostituta sagrada, Sha- logia suméria, teve lugar a Criação. Ao chegarem a esta

56 SUPER
Figuras lendárias
floresta mágica, deram de caras com o maior inimigo
que poderiam encontrar: o monstruoso gigante Hum-
baba, o feroz guardião das árvores, que tinha uma cara
Pátria próspera
de leão e dentes de dragão.
É curioso verificar como Gilgamesh estava disposto
a correr o risco de morrer no afã de ser reconhecido
N o curso inferior do rio Eufrates, a ci-
dade de Uruk foi uma das primeiras
urbes avançadas do mundo mesopotâmico,
pelo seu heroísmo. As suas palavras foram: “Se cair, tendo, inclusivamente, dado o nome a uma
terei conquistado a fama. As pessoas dirão: ‘Gilga- época histórica: o Período de Uruk (4000 a
mesh caiu lutando contra o feroz Humbaba!’ Estou 3100 a.C.). Tudo o que se conhece sobre a
decidido a embrenhar-me na Floresta dos Cedros. O cidade indicia que foi a capital mais povoada
meu coração está feliz: ouço esta música, vejo uma do mundo nessa altura, com um número es-
flor e quero dar início a toda a minha glória.” timado de residentes de 50 a 80 mil pessoas.
Os dois amigos conseguem derrotar e matar Hum- Uruk deve ter sido uma urbe grandiosa, pelo
baba. Fizeram o mesmo com o Touro do Céu, enviado menos para os padrões da época, pois sabe-se
pela deusa Ishtar, muito irritada porque se insinuou ao que ocupava uma área de seis quilómetros
atraente Gilgamesh e foi rejeitada por ele. Entretanto, quadrados e que tinha muralhas. Foi precisa-
os deuses não estavam contentes por Gilgamesh e mente nela que começaram a surgir os traços
Enkidu andarem a matar os seres que tinham criado, determinantes das cidades avançadas, com
pelo que decidiram que um dos dois teria de pagar pelo a presença de novos grupos sociais, como
que fora feito. O escolhido foi Enkidu, e os deuses militares e funcionários ao serviço do estado.
provocaram-lhe uma doença que o mataria. Gilgamesh, na lista de reis sumérios, surge na
Este acontecimento modifica por completo a per- primeira dinastia de Uruk, tendo sido o quin-
sonalidade de Gilgamesh, que, assustado pela pos- to soberano a governar. No entanto, a sua
sibilidade de também morrer, decide dedicar-se por existência histórica, tal como a dos seus pre-
completo à busca da fonte da imortalidade. Para o decessores, não chegou a ser confirmada com
conseguir, pede ajuda a Ziusudra, um antepassado seu provas arqueológicas. Aliás, duvida-se de que
e o único humano que, a par da esposa deste, sobrevi- tenha sequer existido, embora na Epopeia de
vera ao dilúvio que ocorrera no princípio dos tempos, Gilgamesh se mencionem dois reis de exis-
além de ser imortal. Ziusudra tentou dissuadi-lo da tência comprovada que eram governantes de
demanda, pois a imortalidade era uma oferta que tinha uma outra importante cidade suméria, Kish.
recebido, única e irrepetível. Com isto, o herói começa Este facto tem permitido aos mais entusiastas
a dar-se conta dos limites da condição humana. manter a esperança de que Gilgamesh tenha
mesmo existido.
ARGUMENTO POÉTICO
A esposa de Ziusudra convenceu o marido a revelar
a Gilgamesh onde se localizava uma planta que conce-
dia a juventude, embora não permitisse obter a imor- também se revelaria impossível. A conclusão do poema,
talidade. Crescia no fundo do mar e, por ela, Gilgamesh no que respeita a este pormenor, é que o ser humano
foi até lá. Conseguiu o que queria, mas na viagem de sofre de uma doença desde o momento em que foi
regresso a Uruk deteve-se para tomar um banho, altura criado, e essa doença não é outra senão a morte.
em que uma serpente, que também procurava a planta As lições que o herói aprende não se ficam por aqui.
para se manter jovem, a roubou. No final do poema, O selvagem Enkidu torna-se civilizado e plenamente
o herói, após falhar a demanda da imortalidade, humano através do amor e da relação carnal com
reúne-se no submundo com o seu amigo Enkidu, ao que Shamhat. Esta evolução parece ser, nos dias de hoje,
parece por vontade própria, o que aponta para um pos- uma constatação de grande profundidade filosófica.
sível suicídio. Todavia, este último pormenor parece Os estudiosos relacionam este aspeto da epopeia com o
ter sido alterado com os séculos, talvez por não agradar despertar da consciência humana, numa época em que
muito aos que escutavam esta fenomenal epopeia. mal tínhamos suplantado a pré-história. Outros aspe-
Não é de somenos, já que a história de Gilgamesh tos presentes na narração do mito revelam um cariz
está impregnada de lições sobre a condição humana e sociopolítico, como a rivalidade entre agricultores e
sobre o despertar da civilização, as quais ainda hoje nos criadores de gado, um dos grandes conflitos sociais
impressionam. A obsessão de Gilgamesh pela glória, da história.
uma atitude muito própria da juventude, acaba por Assim, o primeiro dos grandes mitos universais revela
abrandar a partir do momento em que vê de perto a já uma cultura madura, preocupada com os problemas
morte, com o falecimento do seu amigo Enkidu. Isso fundamentais da existência humana, algo que, quase
dá lugar a uma nova obsessão, a imortalidade, que cinco mil anos depois, não deixa de surpreender.

Interessante 57
Documento

Para lá Ísis foi


venerada
como esposa

da morte
e mãe
arquetípica

O
par formado por Ísis e Osíris é protagonista Egito, mas Seth,
de uma história de amor que extravasou a sabendo que ele
própria morte, capaz de fazer as delícias vinha a cami-
de qualquer guionista de Hollywod que nho, quis
lesse atentamente o relato. É verdade que tem alguns desfazer-
pormenores politicamente incorretos para os nossos -se dele de
dias, já que, além de marido e mulher, Ísis e Osíris eram uma vez por
irmãos, por exemplo, mas as uniões incestuosas faziam todas. Des-
parte do corpo de crenças do Antigo Egito, sobretudo pedaçou-o
quando se tratava da realeza, pois era exigido que a em 14 par-
mãe do futuro faraó tivesse sangue real. Deste modo, tes que fez
não é de estranhar que estas tradições fossem encon- dispersar

GETTY
tradas e justificadas pela própria mitologia. por todos os
Osíris, o homem desta relação, era o filho mais velho lados. Seth
do deus da terra, Geb, e da deusa do céu, Nut. Diz a foi especial-
lenda que, durante a Criação, um outro deus, Tot, con- mente perverso
seguiu ganhar e dar a estas duas divindades (do céu e no destino que
da terra), mediante um jogo, um tempo precioso: cinco deu ao membro
dias que o casal aproveitou ao máximo para engendrar viril de Osíris:
quatro filhos. Ísis, a futura esposa de Osíris, acabou por para que não pudesse ter mais
ser o terceiro rebento. Um dos outros descendentes, filhos, atirou-o ao Nilo para que
e causador de todos os problemas, foi Seth, um deus os peixes o comessem.
irascível e irracional, incapaz de controlar os seus sen- Mesmo assim, nem toda a
timentos e paixões. maldade de Seth conseguia
Nos textos egípcios, atribui-se a Osíris um papel fazer face ao amor de Ísis, que,
fundamental que poderíamos hoje considerar como ajudada pelo guardião Anúbis –
GETTY
evolutivo, na medida em que se preocupou em afastar fruto do deslize carnal de Osíris
os egípcios da vida selvagem, fazendo-os conhecer os com a deusa Néftis (também
frutos da terra, dando-lhes leis e ensinando-os a respei- sua irmã) –, recolheu todos os
tar os deuses. Este mesmo esforço civilizador esten- pedaços e recompôs o corpo do
der-se-ia depois por toda a Terra. Para essa tarefa, amado. Para substituir o pénis
empreendeu uma longa viagem que o afastou do do deus, fabricou uma imitação.
Egito. Na sua ausência, deixou os assuntos do país a Com a sua poderosa magia, Ísis
cargo da esposa, Ísis, o que só fez aumentar a inveja devolveu a vida a Osíris, apesar
de Seth, que aspirava a ocupar o seu lugar. de este agora ser o deus dos mor-
tos, concedendo-lhe o vigor sexual
A FORÇA DO AMOR para que juntos pudessem conce-
Quando Osíris regressava, Seth armou-lhe uma ber um filho. Desta união nasceu
emboscada: construiu um sarcófago ricamente orna- Hórus, que enfrentou mais tarde,
mentado e convenceu o irmão a entrar nele. Quando em dois combates, o seu tio Seth.
o fez, Seth, com a ajuda dos seus sequazes, fechou Após o último confronto, dispu-
o sarcófago com clavas e atirou-o ao rio, onde desli- tado num barco sobre o Nilo, Hórus
zou até ao mar. Ísis, desesperada, procurou-o durante acabaria por ser reconhecido como
muito tempo e encontrou-o na distante cidade de rei legítimo do Egito pelos deuses,
Biblos, a qual mais tarde se converteria na capital embora estes tivessem impedido
dos fenícios. Ísis resgatou Osíris e levou-o de volta ao que ele matasse Seth.

58 SUPER
Figuras lendárias
Para muitos historiadores, este relato parece conter
desenvolvimentos políticos que foram chave na funda-
ção do reino: ele surgiu após a unificação do Alto Egito
Deusa entre os nobres
(a zona sul, perto do centro de África) e o Baixo Egito
(a área do delta do Nilo, próxima do mar). Por volta de
3000 a.C., na etapa inicial da história egípcia, as duas
A paixão por Ísis não se cingiu ao Egito.
A adoração por esta grande feiticeira e
o culto em torno da sua figura estenderam-
regiões estavam em guerra. O mito de Osíris pode estar -se até ao outro lado do Mediterrâneo após
relacionado com uma luta entre irmãos pelo poder, Alexandre, o Grande, ter conquistado o país
mas também pode referir-se à rivalidade territorial que dos faraós e começado a praticar a política de
se deu entre essas duas grandes regiões. É possível espe- integração das outras religiões no helenismo:
cular com base nas provas existentes, mas a verdade a ideia era assimilá-las e integrá-las num mes-
é que não se sabe com exatidão o que aconteceu. mo acervo cultural, para que a dominação
dos diversos povos que conquistava fosse
ENGENHOSA FEITICEIRA mais fácil. No caso de Roma, os primeiros
Há mais, pois nem tudo estava ligado à política, como sacerdotes isíacos apareceram no século II
é óbvio. Um pormenor que chama particularmente a.C., num contexto de crise provocada pelas
a atenção é o imenso encanto e fascínio que a deusa derrotas contra Aníbal de Cartago, as quais
Ísis alcançou junto dos egípcios. A popularidade de Ísis levaram muitos romanos a desconfiar do
assentava nos seus poderes sobrenaturais. Era conhe- poder dos seus deuses e a procurar consolo
cida como “a grande maga”, sendo muito conhecida espiritual nos que eram externos ao panteão
a história mitológica que explicava como tinha obtido romano. Mais tarde, a popularidade de Cleó-
esses conhecimentos a partir da feitiçaria. Ísis conse- patra, devido à sua relação com Júlio César
guiu-o, de acordo com a narração conhecida como e Marco António, favoreceu igualmente a
A Astúcia de Ísis, graças a um engenhoso ardil. Para adoração de Ísis, já que as rainhas da dinastia
aumentar os seus poderes, a deusa necessitava de ptolemaica – de que Cleópatra foi o grande
conhecer o nome secreto do criador do mundo, Rá, o expoente – definiam-se a si próprias como “a
deus Sol, o mais importante dos imortais do panteão nova Ísis” ou “a jovem Ísis”. Otávio Augusto,
egípcio, mas não seria fácil, porque Rá não estava dis- que derrotou a última rainha egípcia na ba-
posto a revelá-lo a ninguém, uma vez que esse nome talha naval de Áccio, travou estas práticas ao
secreto o tornava invencível. tachá-las de externa superstitio (superstições
O truque utilizado por Ísis para o obter passou estrangeiras), embora não tenha acabado
por fabricar uma serpente com barro e saliva, com o com elas para sempre. A aristocracia roma-
fluido a vir do próprio Rá: ele era tão velho que à noite na acabou por acolher de braços abertos
babava-se. Em seguida, colocou a serpente no caminho a religião egípcia, que se caracterizava por
que o deus solar percorria todos os dias, para o morder. misteriosos rituais de iniciação que apenas
O plano resultou. Rá, cheio de dores por causa da mor- estavam reservados a uns poucos. Era preci-
didela, foi acudido por Ísis, conhecida pela sua capa- samente isto que os encantava, já que dava ao
cidade de curar os doentes. Examinou-o, mas depois culto uma aura de exclusividade que conver-
avisou que só conseguiria curá-lo se ele dissesse o seu tia os patrícios romanos numa fraternidade
nome, porque “um homem vive quando alguém diz que se manteria após a morte, no Além.
o seu nome”. Rá, incapaz de suportar a dor, disse-lhe
todos os seus nomes (tinha um para cada hora do dia),
incluindo o mais secreto de todos. Ísis usou todos esses
nomes, misturando-os, de modo a criar um conjuro e o novo conjuro fez efeito. Assim se curou o deus, mas,
secreto que curasse Rá. Para descontentamento de em troca, Ísis, cujo coração se dizia ser mais astuto do
todos, especialmente do deus afetado, acabou por que o de milhões de homens, conseguira conhecer o
não fazer efeito. segredo mais escondido do universo, tendo-o usado
para obter um poder único entre todos os deuses.
NOME FALSO Para a mentalidade atual, esta história pode causar
Havia uma explicação. O zeloso Rá, apesar de se alguma estranheza, mas tinha o seu fundamento se
queixar da dor, não queria revelar o seu nome secreto. tivermos em conta uma importante crença mitológica
Dera a Ísis um nome falso, na esperança de que tam- do mundo egípcio: o nome de uma pessoa contém a
bém servisse. Ísis, que já imaginava uma artimanha sua essência e é o que lhe confere identidade. Deste
desse género, insistiu que, se não revelasse o seu nome modo, o todo-poderoso Rá tinha, entre os seus diver-
oculto, então o sofrimento de que padecia não desa- sos atributos, o poder de usar uma miríade de nomes
pareceria. Entre sussurros, Rá acabou por revelá-lo, distintos.

Interessante 59
Documento

Formosa
e terrível
A
ntes de Afrodite e Vénus, existiu Ishtar. A
deusa do amor, que tanto protagonismo tem
nas mitologias grega e romana, não é uma
criação original, já que as civilizações ante-
riores, incluindo as que remontam aos princípios da
história, tiveram o seu equivalente. Foi o caso da Ishtar
mesopotâmica, cujo culto se estenderia por todo o
Médio Oriente, ou a ainda mais distante Inanna dos
sumérios, o seu antecedente mais remoto.
Ainda que tivessem como principal atributo o serem
patronas do amor e da paixão, estas “avós” de Vénus
tinham uma personalidade muito menos dócil do que
a bela donzela pintada no quadro de Botticelli, nascida
da espuma do mar: Innana e Ishtar eram, ao mesmo
tempo, deusas da sexualidade e da guerra.
As tabuínhas babilónicas do rei Assurbanípal refe-
rem-se a Ishtar como “irresistível em combate” ou
ALBUM

“indomável na guerra”, além de que, numa multitude


de composições literárias, ela participa em episódios Ishtar surge sempre como uma bela mulher.
bélicos, dotada de uma imagem viril, como se tivesse um
aspeto dual: mais feminina umas vezes, sobejamente
masculina noutras. Este pormenor levou a maioria dos a trindade celestial. Estes povos referiam-se a ela
investigadores a conjeturar que, na sua fase primitiva, como Ashtar e davam-lhe uma personalidade diferente
Ishtar foi uma deidade masculina que evoluiu até se conforme aparecia de manhã ou à tarde: ao amanhecer,
converter, por volta da Idade do Bronze, numa deusa. era uma estrela flamejante e, portanto, feroz; à tarde,
De qualquer forma, na sua faceta bélica, surgia como o seu fulgor era mais suave e indulgente.
uma guerreira temível e sem piedade. Um texto refe-
rente a Anat, antiga deusa semita copiada de Ishtar, dá- FINS TRÁGICOS
-nos um relato do seu desempenho em plena batalha. Não obstante, a característica de Ishtar que mais rios
Realmente, era capaz de atos ferozes e capazes de de tinta fez correr é a de ser igualmente a deusa da
produzir temor: “Então Anat lutou no vale, bateu-se sexualidade, a máxima expressão do prazer e da
entre as duas cidades. Esmagou o povo do litoral, voluptuosidade. Na Mesopotâmia, atribuiu-se-lhe rela-
destruiu as gentes do sol nascente. A seus pés, como ções de amor com vários deuses. O primeiro de todos
bolas, rolavam cabeças; por cima, como se fossem foi Anu, deus do céu, de quem primeiro foi serva e amante,
gafanhotos, voavam as mãos. […] Atou cabeças nas para logo depois se tornar sua esposa. Também Dumuzi,
costas, amarrou mãos à cintura; afundou os joelhos o deus pastor dos sumérios, partilhou com ela os afe-
no sangue dos guerreiros e os membros nas entra- tos mais íntimos. No entanto, este casamento teve
nhas dos combatentes. Com o seu chicote, expulsou um desenlace trágico, pois Ishtar foi ao submundo para
os velhos e com o nervo do seu arco a população.” enfrentar a irmã e rival Ereshkigal, numa luta terrível
Além de guerreira, a primitiva Ishtar tinha outra em que a deusa do amor acabou por morrer. O seu trá-
característica: era uma deusa astral, vinculada ao pla- gico falecimento originou um importante dano colate-
neta Vénus. A devoção popular por este corpo celeste ral: na Terra, homens e animais perderam o interesse
é muito antiga, existindo sinais dela tanto na Mesopo- em acasalar, devido ao desaparecimento da deusa
tâmia como, por exemplo, nas civilizações do deserto que lhes provocava o desejo sexual. Perante tamanho
árabe, onde, desde tempos imemoriais, se lhe rendia desastre para a perpetuação da espécie humana, o
culto em conjunto com a Lua e o Sol, formando assim deus criador Enki decidiu ressuscitar Ishtar, mas na con-

60 SUPER
Figuras lendárias

AISA
Demónio asiático
U m dos muitos maridos que, com o passar
dos séculos e das culturas, foram consig-
nados à deusa do amor foi o também divino
O culto a Baal teve o seu primeiro grande foco
na Antiguidade, junto dos habitantes de Canaã,
que antes dele tiveram como principal divinda-
Baal. Mais especificamente, ele costuma estar de o seu pai El, que progressivamente foi sendo
associado a Astarte, o epíteto que Ishtar tem substituído pelo filho. Quando os judeus re-
no mundo fenício, assim como a Tanit, o no- gressaram da escravidão no Egito, encontraram
me utilizado pelos fenícios cartagineses para a em Baal um importante inimigo na implantação
mesma deusa (a ele, chamavam Baal Ham- da fé de Yahweh. O bezerro de ouro que
mon). O culto em torno deste deus, Aarão, o irmão mais velho de Moisés,
assim como da sua esposa, espalhou-se construiu durante o episódio do Êxo-
pela área geográfica mediterrânica, do, para grande desgosto de Deus,
disseminando-se através dos navios pode ter simbolizado Baal, pois
dos empreendedores comerciantes habitualmente surgia representado
semitas. Estes converteram-no na como um jovem touro. Vários dos
sua principal deidade, sob o nome de livros da Bíblia (Juízes, Jeremias…)
Melkart, tendo-lhe consagrado um referem-se à adoração de Baal como
importante templo em Cádis, para uma prática depravada que incluía a
cá das Colunas de Hércules. Se aten- prostituição e, ainda, o sacrifício dos
tarmos nos traços definitórios de filhos. Na mitologia romana, é pre-
Baal, vemos que é uma figura muito ciso não esquecer, Baal converteu-
menos recomendável do que a sua -se em Saturno, o terrível deus que
esposa, um deus irascível e de hu- devorou os seus filhos. A extinção
mor inconstante, uma personagem do culto a Baal deve ter sido um dos
obscura e nada fiável que se pode grandes objetivos dos profetas do
revelar um perigo para os demais. Antigo Testamento.

dição de ela enviar alguém para o submundo em sua servia de tiro de partida para uma festa orgiástica anual
substituição, com a ingrata troca de papéis a recair em que se destinava a celebrar a fertilidade.
Dumuzi. Estas práticas escandalizaram as civilizações ociden-
Este marido não foi o único a ter um fim amargo. tais, à medida que estas entravam em contacto com o
Alguns dos seus amantes foram cruelmente transfor- mundo oriental, embora a que talvez tenha ficado mais
mados por Ishtar: a um pastor, por exemplo, conver- na memória foi a prostituição ritual que acontecia nos
teu-o num pássaro de asa quebrada. Quem recusasse templos de Ishtar, costume que se estendeu por todo
sê-lo sofreria terríveis castigos; ao jardineiro do seu pai, o Mediterrâneo à medida que os navegantes fenícios
que a rejeitou, metamorfoseou-o numa rã. Quanto a iam fundando novas colónias. Na península Ibérica, edi-
Gilgamesh, por quem caiu de amores, tendo-lhe pedido ficaram-se vários templos à deusa na região da Andalu-
que plantasse a sua semente no seu corpo (“oferta” que zia, principal zona de influência fenícia. Neles tinham
este recusou por recear um fim semelhante ao dos lugar personagens com atividades muito variadas,
outros), enviou-lhe um touro vindo do céu com o intuito desde barbeiros a escribas, mas a que mais chamava
de acabar com ele. a atenção era a das sacerdotisas que celebravam “o
mistério do amor carnal”, mulheres que, com o passar
RITUAIS SEXUAIS do tempo, ficaram para a história com a denominação
Os mesopotâmicos celebravam rituais de fertili- de “prostitutas sagradas”. Era ainda aí que acontecia
dade, plenos de orgias, em honra de Ishtar. O mais a entrega voluntária a um estrangeiro das raparigas
importante deles era o hieros gamos, que tinha lugar que tinham alcançado a puberdade, as quais tinham
durante a festa do Ano Novo e representava a união de uma coroa de louro na cabeça, a troco de uma moeda
um deus com uma mulher humana. Esta boda sagrada oferecida a Ishtar.
ocorria num dos espaços principais dos zigurates, Todas estas práticas inflamaram as fantasias luxu-
tendo como figurantes um sacerdote e uma sacerdotisa. riosas dos ocidentais, de Heródoto a Flaubert, tendo
Esta representação, que, porventura, não ia além disso ajudado a deixar para a posteridade o mito da terrível
mesmo, ou seja, não chegava realmente a consumar-se, e desejada Ishtar.

Interessante 61
Documento

Líder nórdico
O
maior atributo que um godo podia exibir
(assim como um viking) era a valentia.
Conta o historiador romano Tácito que para
os povos germânicos era uma desonra, e
até um sinal de fraqueza e preguiça, “adquirir com suor
o que se pode conseguir à custa do sangue”. Daí que
não seja estranho que o cume do panteão mito-
lógico nórdico estivesse ocupado por um ser
muito bélicoso: Odin, a divindade da guerra e
da morte.
Para os antigos nórdicos, Odin foi um
dos três protagonistas da criação do
mundo. Para tal, ele e os seus dois irmãos,
Vili e Vé, tiveram de se bater contra
Ymir, o fundador da raça dos gigantes.
O trio de irmãos conseguiu derrotá-lo e
matá-lo e, em seguida, pegou nas diferen-
tes partes do seu corpo e foi até ao abismo,
criando sobre ele os diferentes elementos
que constituem o nosso mundo. Com a carne
do gigante, fez-se a terra; com o seu sangue,
os mares e os lagos; com os seus ossos, erigi-
ram-se montanhas; com os seus dentes e alguns
pedaços de ossos, criaram-se as pedras; do seu
cabelo cresceram as árvores, e, finalmente, os ver-
mes da sua carne deram origem à raça dos anões. Odin
e os seus irmãos não desaproveitaram parte que fosse
do corpo do vencido Ymir. Odin era
Face à necessidade de criar um espaço que ficasse guerreiro,
por cima das cabeças dos humanos, decidiram utilizar a sábio e poeta.
abóbada craniana do gigante, com quatros anões, que
simbolizavam os pontos cardiais, a ficarem com a
tarefa de o fixar. Claro que, ao abrirem o crânio de Ymir, roubaram as fagulhas da sua espada e com elas criaram
o seu cérebro acabou por espalhar-se pelo ar, dando os astros do firmamento. Quanto ao Sol e à Lua, colo-
lugar às nuvens. caram-nos sobre duas carroças que giravam sem ces-
O novo mundo recebeu o nome de Midgard, que sar sobre a Terra Média, ao longo da abóboda celeste.
significa, traduzido de uma forma simples, “Terra Para que se movessem continuamente, fizeram
Média”, que J.R.R. Tolkien popularizou através da tri- com que os dois astros fossem perseguidos por dois
logia O Senhor dos Anéis. O escritor britânico, grande lobos que nunca chegavam a apanhá-los, exceto em
estudioso da mitologia nórdica, recorreu a muitos algumas ocasiões, quando um deles era ocultado pelo
dos seus elemento, integrando-os nas suas magistrais outro, no que hoje em dia sabemos serem os eclipses.
sagas literárias. Apesar de ser um deus guerreiro, Odin também era
sábio. Diz-se que, para conseguir a sua sabedoria, foi
AVENTURA PERIGOSA até à nascente guardada por Mimir, seu tio materno. A
A Criação, no imaginário nórdico, adquiriu a forma fabulosa fonte de água estava localizada nas raízes da
de uma impetuosa aventura infestada de perigos. Para árvore Yggdrasill, um ser mítico que era considerado
criar o Sol e a Lua, Odin e os outros deuses decidiram o centro do universo, e em redor do qual existiam
partir em direção ao lugar mais alto de todos, ainda todos os mundos da mitologia nórdica. De início,
mais do que a Terra Média. Era o Muspelheim, o reino Mimir recusou-se a deixá-lo beber daquela água, capaz
de fogo habitado por gigantes. Ao líder destes, Surt, de lhe dar o conhecimento, mas Odin insistiu. No fim,

62 SUPER
Marcas na história

Bebedeiras de hidromel
P arece que Odin só consumia hidromel,
um delicioso néctar que tinha roubado
a um gigante. Aliás, esta bebida era apreciada
tendo um espetacular traço arquitetónico, a
que se juntavam outros dois adjetivos: mag-
nificência e majestosidade. Com 540 portas,
por muitas culturas da Antiguidade. É obtida a das quais podiam sair 800 homens de uma só
partir da fermentação de uma mistura de água vez, as suas vigas eram feitas de lanças e o teto
com mel, sabendo-se que, por exemplo, o im- estava coberto de escudos. No seu interior,
perador romano Júlio César a tinha como uma estava também alojado o palácio Bilskirnir, do
das suas bebidas preferidas. O hidromel era deus Thor. Os guerreiros podiam disfrutar do
igualmente a bebida que as valquírias distri- repouso em Valhalla, mas tal não significava
buíam pelos guerreiros que conseguiam entrar que tinham abandonado de vez a batalha, dado
em Valhalla, lugar que reunia todo o tipo de que era precisamente aí que aguardavam pela
extravagâncias e que servia de prémio aos que chegada do Ragnarök, a luta final – com cono-
tinham matado de forma valorosa. O hidromel tações de apocalipse – que colocaria os deuses
que se bebia em Valhalla era o mais delicioso Aesir contra os gigantes. O culminar do Rag-
de todos, quanto mais não seja porque brotava narök dar-se-ia quando Odin enfrentasse um
das tetas da Heidrún, uma cabra mitológica que lobo de terrível ferocidade, Fenrir, o qual esta-
vivia no telhado do palácio, alimentando-se va destinado a comer o deus, mas, em troca, a
com as folhas de uma árvore mágica. O grande terrível besta seria morta por um dos filhos de
GETTY

salão de Valhalla surge sempre descrito como Odin, Vidar.

Mimir acabou por aceder ao pedido, mas, em troca, casamentos entre as duas famílias. Alguns estudiosos
exigiu ao sobrinho um sacrifício: um dos seus olhos. veem nesta história uma alegoria relacionada com a
O deus acabou por renunciar a uma das partes do seu chegada dos novos deuses indoeuropeus, os quais
corpo, pelo que, em jeito de tributo, abandonou na foram adotados pelas divindades escandinavas.
nascente um olho. Odin teve três esposas. A primeira, Jörd, deu-lhe o
A sua condição de sábio levou os investigadores filho mais velho, o famoso Thor. Este surge represen-
que estudam Odin a avançar com a hipótese de que, tado com um martelo de guerra, fabricado pelos anões,
nos primórdios das civilizações nórdicas, era um deus uma combinação que acabou por torná-lo popular até aos
xamânico, um grande mago capaz de prever os dias de hoje, com alguma ajuda da banda desenhada
acontecimentos futuros. Com o tempo, evoluiu para e da indústria cinematográfica. Thor, pelos vistos, her-
o protótipo do deus guerreiro, talvez por causa dos dou do pai a belicosidade, e na maior parte dos poemas
acontecimentos históricos que esses povos acabaram épicos, tanto noruegueses como islandeses, vemo-lo
por viver e ao seu contacto com outras civilizações, a lutar com gigantes, os tradicionais inimigos dos deu-
nomeadamente as indoeuropeias e asiáticas que ses nórdicos, retirando-lhes a vida com o seu tremendo
vieram do Oriente. Talvez este encontro com outras martelo, o Mjölnir. Dizia-se que os trovões e os raios
civilizações tenha o seu reflexo na própria mitologia, eram um produto do golpe de martelo, por isso o deus
num episódio que relata uma épica batalha familiar: Thor está associado a estes fenómenos atmosféricos.
a guerra dos Aesir, a tribo de deuses a que pertencia Também as valquírias estão muito relacionadas com
Odin, contra os Vanir, o outro grande clã de imortais. Odin. Seres femininos de grande beleza e de natureza
mágica, uma das suas funções primordiais era sele-
DISTÚRBIO A NORTE cionar metade dos mortos de uma batalha e levá-los
A guerra entre os dois bandos desencadeou-se para Valhalla, o majestoso e enorme salão dos mortos,
quando a deusa Gullveig, dos Vanir, visitou os Aesir. em Asgard, o mundo superior onde viviam os deuses
Estes, incapazes de a suportar, atiraram-na para uma da família Aesir. Aí, os guerreiros que tinham lutado
fogueira e trespassaram-na com lanças. A deusa, toda- valentemente gozavam da presença das valquírias. São
via, ressuscitou. Apesar de terem voltado a tentar vários os relatos nórdicos em que elas aparecem, deci-
matá-la em mais duas ocasiões, Gullveig ressurgia dindo sobre o destino final dos guerreiros tombados,
sempre. Este foi o gatilho que levou a uma prolongada sendo representadas, em muitos casos, sobre cava-
guerra, com os Vanir a pedirem os mesmos poderes que los brancos tão belos como elas, estando igualmente
os Aesir tinham. A querela acabou por ser sanada graças associadas a animais de requintada presença, como os
a uma grande conferência de paz, em que se celebraram cisnes.

Interessante 63
Documento

O deus
artesão
A
pesar de a grande cidade francesa de Lyon,
a holandesa Leiden e a pequena localidade
asturiana de Lugones, em Espanha, estarem
afastadas umas das outras por centenas de
quilómetros, têm em comum o facto de terem sido
habitadas, na Antiguidade, pelos povos celtas. A sua
toponímia tem a marca da veneração que este povo
tinha por Lug, porventura o mais internacional dos
deuses celtas.
Um dos traços fundamentais da cultura dos celtas
está na unidade linguística que criaram ao longo de
uma vasta geografia, embora esta uniformização não

JOSÉ ANTONIO PEÑAS


se tenha projetado a outros níveis civilizacionais, pois
existem indícios de que não havia uma organização
política entre os vários povos celtas. No primeiro milé-
nio antes de Cristo, ocuparam boa parte da Europa,
especialmente a região mais ocidental, o que provocou,
como seria de esperar, uma dispersão das suas cren-
ças e mitologias, que evoluíram de uma forma diversa,
influenciadas pelas tradições locais. O ramalhete de per-
sonagens fantásticas que encontramos, por exemplo,
entre os celtas gauleses (talvez os mais conhecidos,
devido à banda desenhada com o herói Astérix), nem A chama
sempre tem uma correspondência direta com os res- da lança de Lug
tantes povoamentos celtas. só se apagava
em contacto
DIVINDADE INTERNACIONAL com sangue
Daí que seja especialmente interessante o caso de Lug, humano.
já que é a única deidade celta que sabemos ter sido
objeto de adoração ao longo de toda a geografia celta,
como demonstra a origem toponímica de muitas das harpista, guerreiro, poeta e, finalmente, mago. No
localidades europeias em que meteram os pés. entanto, nada disto era suficiente para impressionar o
Quem era Lug? Alguns chamaram-lhe “artesão poli- guarda que estava à porta e lhe respondia que já havia
valente”, incluindo o nome de “politécnico”, pois era alguém na corte com as habilidades que o aspirante ia
um deus que dominava todas as ciências, ofícios e ati- demonstrando. Até que Lug lhe perguntou se algum
vidades artesãs. Estas múltiplas habilidades foram-lhe deles, além de brilhar na função que exercia, conseguia
úteis para chegar ao poder e governar o mundo, a reunir tantas competências numa só pessoa.
crer na sua biografia mitológica. Diz-nos ela que Lug
se apresentou na residência do rei Nuada, soberano ENTRADA NA CORTE
de um dos clãs divinos, mas foi-lhe negada a entrada. Foi assim que Lug acabou por ser admitido no séquito
Longe de se indignar com o sucedido, como acontece de Nuada. Entretinha os membros da corte com a música
com outras divindades mais arrogantes, preferiu argu- da sua harpa, atrevendo-se, ainda, a disputar com
mentar que podia ser útil na corte do monarca. Inicial- o rei algumas partidas de um popular jogo de mesa
mente, não lhe ligaram muito, apesar de ter exercido germânico, o hnefatafl, que tinha alguns pormenores
diferentes ofícios, mesmo os mais modestos. Primeiro, semelhantes ao xadrez, embora neste jogo o ponto de
foi carpinteiro, depois ferreiro, em seguida espadachim, início das peças fosse o centro do tabuleiro, além de

64 SUPER
Figuras lendárias
que as brancas, para ganharem o jogo, têm de cumprir
um objetivo diferente das pretas. Saber jogar este tipo
de entretenimentos era considerado, entre os povos
De Brigid a Brígida
celtas, germânicos e vikings, como sinal de nobreza, pois
requeria compreensão estratégica, um atributo régio
muito valioso para vencer a guerra.
A pagã ilha irlandesa de Lug, com as suas
muito singulares tradições e clãs de
deuses, acabou por converter-se na muito
As múltiplas habilidades e a juventude de Lug cau- católica Irlanda. A explicação para esta trans-
saram admiração no rei Nuada, ao ponto de o tornar formação pode ser encontrada nos monges
comandante-chefe dos seus exércitos. O intuito era e na própria hierarquia eclesiástica, que com
pô-lo a orquestrar as tropas na grande batalha que o seu uma atitude muito pragmática optaram por
clã, os Tuatha Dé Danann, uma das sociedades divinas revestir a história de muitos dos principais
primordiais da história mitológica da Irlanda, queria tra- mitos autóctones com façanhas cristãs, exal-
var contra os fomorianos, outro clã de deuses (e ao qual tando-as depois como exemplos a seguir. No
pertencia a família materna de Lug). Até então, a relação caso do deus Lug, parece que as celebrações
de forças era esta: os Tuatha Dé Danann estavam sub- que instituiu por ocasião das colheitas foram
metidos à opressão dos fomorianos. transformadas nas festas de São Lourenço.
Por exemplo, em Lyon (França), as festivida-
REBENTA A GUERRA des em sua honra, a Lughnasa, que se prolon-
O episódio mais relevante deste confronto seria a gavam por três noites, foram recicladas nas
batalha de Magh Tuireadh. Foi aí que Lug deu de caras de Saint Laurent. Outra personagem celta
com um velho conhecido, o seu avô Balor, líder do clã oportunamente acoplada ao cristianismo foi
materno, o qual, longe de guardar sentimentos afetuo- Brigid, esposa de Bres, o líder dos fomoria-
sos para com o neto, tinha tentado matá-lo quando era nos, que sobreviveu ensinando as técnicas do
criança. Balor tinha ouvido uma profecia que vaticinava campo aos irlandeses. Brigid era uma deusa
o seu assassinato por um dos netos. O medo levou-o a muito venerada pelos druidas, pois guardava
tentar adiantar-se ao oráculo e assassinar o pequeno poderes ocultos como a capacidade de sarar
Lug, utilizando para isso o seu olho diabólico, que, con- graças ao conhecimento que tinha das ervas
forme reza a lenda, era capaz de matar alguém com uma curativas. Entre os celtas continentais, era
simples mirada. Milagrosamente, o petiz sobreviveu conhecida como Brigantia, um nome que
à tentativa e acabou por ser criado pelo rei do mar, também deixou a sua marca na toponímia do
Manannán Mac Lir. noroeste da península Ibérica (Bragança, por
Durante a batalha, Balor parecia invencível. A sua pri- exemplo). A história de Brigid foi incorpora-
meira grande vítima foi o próprio rei Nuada, derrotando- da com a de santa Brígida, pioneira da Igreja
-o com o seu temível olho. Logo de seguida, tentou na Irlanda. O debate sobre a historicidade de
fazer o mesmo com o jovem Lug, mas este, que já tinha santa Brígida avivou-se no século XX, e ainda
em mente uma estratégia, levou consigo uma funda, não se chegou a uma conclusão.
tendo-a usado para lançar um projétil de pedra que
acertou em cheio no olho de Balor, fazendo-o sair pela
parte de trás da cabeça. Desta forma, o olho projetou
o seu olhar em direção a todos os que se encontravam contestaram que uma só era suficiente para eles.
atrás do rei, ou seja, os elementos do seu exército, que Sucede que Lug era mais previdente e menos vingativo
acabaram eliminados de forma fulminante. do que os seus súbditos, acabando por perdoar Bres
em troca de um serviço diferente: ensinar os irlandeses
PACIFICADOR a arar, semear e colher os campos.
Dos líderes inimigos que participaram na batalha, só Após ser coroado, o impressionante rei Lug impul-
sobrou Bres, um antigo rei dos Tuatha Dé Danann que sionou durante o seu governo um conjunto peculiar
fora expulso do trono por favorecer os fomorianos de medidas que acabariam por influenciar a vida social
(considerados os deuses da morte, do mal e da noite). dos celtas: é o caso dos Jogos de Tailteann, uma com-
Quanto Lug finalmente o colocou à sua mercê, Bres petição desportiva semelhante aos Jogos Olímpicos
começou a implorar pela vida e ofereceu-se, caso o gregos. Disputavam-se na segunda quinzena do mês de
perdoassem, para realizar um conjuro que permitiria julho e duravam até ao início da colheita de trigo, em
às vacas da Irlanda dar sempre leite. Para os Tuatha, agosto, período em que pouco se trabalhava no campo.
contudo, a proposta não parecia suficiente, pelo que Entre as provas que se disputavam encontravam-se o
disseram a Lug para o matar. Então Bres propôs outro boxe, a corrida, os saltos, o tiro com arco e a esgrima.
conjuro, desta vez para que os campos dessem quatro Além dos desportos físicos, também havia jogos de
colheitas por ano, mas depressa os orgulhosos Tuatha estratégia e a recitação de histórias e poemas.

Interessante 65
Documento

O regresso
da serpente
H
ernán Cortés, o rude conquistador espanhol,
não imaginava a receção que o esperava
em Tenochtitlán, a capital asteca a que
tinha chegado com apenas um punhado
de soldados. Para sua surpresa, o imperador Mocte-
zuma recebeu-o com amizade e extrema reverência,
dizendo-lhe: “Chegaste à tua cidade, vieste aqui para
te sentares no teu solo, no teu trono. Ó, por pouco
tempo reservaram-to, cuidaram-to os que já se foram,
os teus substitutos. Os senhores reis… Chega à terra
e descansa. Toma posse das tuas casas reais, dá fresco
ao teu corpo.”
O ingénuo Moctezuma estava convencido de que a
figura que tinha à sua frente era nada mais nada menos
do que o deus Quetzalcóatl. Segundo uma profecia
ancestral, este ter-se-ia ido embora para Oriente, acos-
sado pelos deuses obscuros e farto de ver os astecas a
desobedecer aos seus ensinamentos e regras morais.
Antes de partir, prometeu voltar acompanhado dos Representação de Quetzalcóatl em jade.
filhos e, então, dominaria o povo desobediente. Uma
das partes da profecia que se revelaria chave nos even-
tos futuros é a que dizia que o deus apareceria com o olmeca”, igualmente com a forma de serpente e plu-
aspeto de um homem branco e de barba. Cortés cum- magem de pássaro, características que condensavam
pria os requisitos. os poderes fundamentais do mundo natural: as forças
germinativas da terra, simbolizadas na serpente, e o
MOMENTO DESEJADO poder fecundador do céu, por via do pássaro que traz
Naquela época, a sociedade asteca esperava ansio- consigo a chuva, esse elemento imprescindível para os
samente um acontecimento sobrenatural, e os seus ciclos agrícolas. Ao que parece, esta deidade estava
magos anunciavam o regresso iminente da divindade. vinculada, nos seus primórdios, ao milho, a cultura
Quetzalcóatl, apesar de não ser o deus principal dos básica a que se dedicava a civilização olmeca.
astecas, era, em troca, o mais sábio e bondoso de todos
eles. Daí que fosse considerado o redentor mais ade- JOVEM SOBERANO
quado. Não espanta, portanto, que esta coincidência Os toltecas, a seguinte grande civilização a instalar-se
de acontecimentos tenha acabado por dar um sentido em solo mexicano, engrandeceram o culto a Quetzal-
inesperado e engrandecer o mito desta divindade. cóatl ao apresentá-lo como uma personagem histórica,
Quetzalcóatl – com as suas diversas formas animais o rei fundador da dinastia da qual eles eram os pros-
– tinha atrás de si um largo passado. Era uma divindade seguidores. Segundo a tradição, Quetzalcóatl foi um
que já era adorada há mais de um milénio pelos povos príncipe que durante a juventude se tinha retirado para
predecessores dos astecas, em território mesoameri- viver sozinho, consagrando-se ao estudo e à meditação.
cano, e os sinais da devoção que lhe era feita podem ser A população de Tula, a cidade mítica em que teriam
encontrados, inclusivamente, nas cavernas rupestres tido origem os toltecas, impressionada pela sua sabedo-
da região. Os olmecas expressaram graficamente um ria, pediu-lhe que fosse o seu governante. Este reinado
ser mágico com aspeto de serpente e plumas verdes, de Quetzalcóatl seria evocado pelos posteriores mexi-
tal como aparece nas grutas de Juxtlahuaca, no estado cas (os astecas) como uma verdadeira época dourada
mexicano de Guerrero, datadas de 1200 a.C. Mais cheia de riquezas, prosperidade e felicidade.
tarde, abundariam as pinturas do chamado “dragão Acima de tudo, o que Quetzalcóatl lhes trouxe foi uma

66 SUPER
Figuras lendárias

Sacrifícios humanos
A história de Quetzalcóatl dá-nos uma visão
humanista da mitologia meso­americana,
mas também é preciso ter em conta a sua encar-
tentam matar o bebé logo ao nascer, mas este
consegue salvar-se e, no fim, será ele quem, en-
tre a espada e a parede, chacinará os seus irmãos.
niçada antítese, representada por Huitzlipochtli, Assim, e logo desde o início, mostra ser uma di-
um deus sanguinário da guerra que teve origem, vindade lutadora, decidida a guerrear e ganhar.
de modo autóctone, entre os astecas, um povo Muito provavelmente, esta história era para os
que migrou do norte e tomou o poder no centro astecas uma analogia do seu percurso histórico.
do México, a partir do século XII. Enquanto Identificado com o Sol, Huitzlipochtli é visto
Quetzalcóatl provinha de uma tradição anterior, como um deus que está em constante luta para
o mito de Huitzlipochtli não precedia de outras completar o caminho que o astro percorre, des-
civilizações mesoamericanas. Era a principal de que nasce ao seu ocaso. Para o ajudar nesta
divindade asteca quando chegaram os conquis- batalha diária, eram oferecidos aos deuses os
tadores espanhóis. Este deus, reza a lenda, nasce famosos sacrifícios humanos. Os sacrificados,
CORBIS

em circunstâncias muito peculiares: a sua mãe, por norma, eram cativos de outras tribos, cap-
Coatlicue, a deusa da Terra, fica grávida de uma turados durante os confrontos armados. Em
bola de plumas azuis que caíra do céu. Os outros algumas cerimónias, o prisioneiro escolhido ti-
rebentos da deusa, ao verem a sua mãe prenhe nha direito, previamente, a todo o tipo de luxos
e sem saberem como, ficam envergonhados e durante um ano, preparando-o para o sacrifício.

conceção do mundo, uma cosmovisão muito completa, embriagasse e esquecesse o que tinha visto. Sucede
fruto das reflexões a que se entregava incansavelmente, que Quetzalcóatl começou a agir de uma forma pouco
a tal ponto que às vezes nem se dava bem conta do que honrada, chegando a ter relações com a própria irmã.
ocorria em seu redor. O mundo, de acordo com a vene- Foi assim que caiu em desgraça e foi expulso do poder,
rada divindade, era uma imensa ilha, cercada por água, colocando um ponto final na época dourada de Tula.
cuja superfície estava dividida em quatro quadrantes
que convergiam no umbigo da Terra. A deidade VIAGEM AO CÉU
máxima que criou tudo era um ser dual, contendo em Após um longo périplo fora da cidade, em busca
si os princípios masculino e feminino. do país do vermelho e do negro, Quetzalcóatl decidiu
Todavia, o rei tinha advertido o seu povo de que o imolar-se. Fê-lo a bordo de uma balsa que construíra com
mundo era formado por diversas eras, e a cada uma cor- serpentes e que o levou pelo mar adentro. Quando
respondia um sol. Estes sóis acabariam por atravessar estava completamente incinerado, o seu coração sepa-
um declínio de morte e destruição, após o qual o mundo rou-se do corpo e ascendeu aos céus, convertendo-se
renascia. A crer no sábio governante, naquele momento na estrela da manhã (o planeta Vénus).
vivia-se na era do Quarto Sol, e a única forma de obter Os astecas, ao assumirem o controlo sobre o terri-
a plenitude passava por cada pessoa aumentar a sua tório central do México, converteram-se nos sucesso-
sabedoria, mediante rotinas adstritas à vida sacerdotal, res dos toltecas, integrando muitas das suas tradições
para assim transcender o mundo presente e alcançar religiosas e mitológicas. A crença no advento da era do
Tlillan-Tlapallan, um lugar mítico situado para lá das Quinto Sol seria uma delas, abrindo assim caminho, sem
águas que rodeavam o mundo e no qual reinava o saber. o saberem, para a conquista espanhola daquela parte
Esse lugar mágico também era conhecido como “o país do continente americano.
do vermelho e do negro”. O interesse pela figura de Quetzalcóatl chegou a
Para seu infortúnio, Quetzalcóatl teve um final infeliz. estender-se até outras civilizações próximas dos mexi-
Acossado pelos deuses obscuros, que encarnavam as cas, nomeadamente os maias. Durante o período clás-
paixões mais mundanas, a sua força começou a fraque- sico desta apaixonante cultura (no século X), encon-
jar. Um dos ardis que as malvadas divindades usaram tramos múltiplas referências à serpente emplumada,
para o debilitar consistiu em oferecer-lhe um espelho a que os maias chamaram Kukulcán. Os templos da
para que se olhasse nele. Esperavam convertê-lo num esplendorosa cidade de Chichén Itzá foram decorados
ser vaidoso, mas a observação da sua própria imagem com cenas que mostravam as mandíbulas abertas e o
acabou antes por destroçá-lo: sentia-se acabrunhado corpo ondulante do deus, deixando para a posteridade
pelo que entendia ser a fealdade do seu ser. Face a isto, um testemunho do magnetismo que exerceu junto dos
os outros deuses ofereceram-lhe bebidas para que se muitos povos da região.

Interessante 67
Documento

O deus dos Estátua


de Vishnu
sobre uma

avatares
flor de lótus.

C
om um corpo que faz lembrar um mutante das Na sua primeira encarnação,
histórias dos X-men, Vishnu, o deus hindu dos Vishnu teve de lidar com um dilú-
quatro braços, é uma personagem mitoló- vio universal, à semelhança do Noé
gica cuja constituição física salta logo à vista, bíblico. Convertido num pequeno peixe,
não só por causa do seu quarteto de poderosos braços, avisou um homem reto e sábio, o legisla-
mas também porque a pele é azul, características com dor Manu, sobre a catástrofe que aí vinha.
que tradicionalmente surge representado. Atualmente, Este cuidou dele até se tornar um
Vishnu é o deus mais popular da Índia. Devido às suas peixe gigante, capaz de manter
intervenções providenciais, em momentos em que o à tona o barco em que se refu-

AGE
mundo atravessava uma crise espiritual (o equilíbrio giou Manu, e dentro do qual
ameaçava desfazer-se), é-lhe atribuído, pelos hindus, estavam, igualmente, as semen-
uma grande importância. Ao mesmo tempo, as suas tes de todas as plantas e um par
façanhas são objeto de celebradas histórias que foram de animais de todas as espécies. O peixe, de
sendo recriadas ao longo dos séculos. seu nome Matsya, ajudou a levar o barco até à segu-
Nem sempre Vishnu teve a importância que tem hoje rança das altas montanhas do norte (a cordilheira
em dia. No mais antigo texto indiano que ainda existe, dos Himalaias, presumivelmente). Após o cataclismo,
os hinos religiosos de Rig Veda, compostos por volta Manu tornou-se o patriarca de toda a humanidade.
de 1500 a.C., surge como uma deidade secundária, e o O segundo avatar de Vishnu ajudou os deuses a
protagonismo recai antes em Indra, Soma ou Mitra e obterem a água da imortalidade, adotando para essa
Varuna. Com o passar do tempo, esta relação de forças missão a forma de uma tartaruga. Sobre a sua cara-
acabou por se modificar e a lenda de Vishnu engran- paça, as divindades colocaram um enorme batedor
deceu, chegando a superar a das outras deidades. Esta do tamanho de uma montanha. Revolveram com esse
transição é percetível em textos sagrados escritos misturador o oceano, transformando-o na preciosa
muito depois, como é o caso do Padma Purana, com- água que concedia a vida eterna a todos os mortais
pilado nos séculos VIII a XII. que a provassem.
A imagem peculiar de Vishnu revela um deus prepa- Vishnu disse adeus à água na sua terceira reencarna-
rado para a luta contra o mal. Dos quatro objetos que ção. Nesta nova vida, converteu-se num grande javali
tem nas mãos, dois deles são armas que utiliza contra e utilizou as suas presas para cavar no solo um buraco
os demónios: o sudarshana chakra – um disco de pon- que ia até ao submundo, para onde um demónio tinha
tas serradas com que os degola – e o maço de ouro levado a Mãe Terra. Conseguiu encontrá-la, elevando-
para esmagar os seus crânios. O terceiro é uma concha -a com o seu enorme focinho.
branca, ou shankha, uma espécie de corneta cujo som
anuncia a vitória depois de matar um inimigo. Por último, SUCESSIVAS TRANSFORMAÇÕES
temos algo que não tem qualquer conotação com a A aventura seguinte consistia em punir o rei Hira-
guerra, o padma, a flor de lótus, sobre a qual a deidade nakashyap, que quis alcançar a mortalidade e, assim,
costuma sentar-se quando quer descansar. Esta bela desafiar a supremacia dos deuses. Acontece que o rei
flor, que surge por cima das águas paradas e enlodadas, conseguiu que Shiva (como era conhecido este avatar)
simboliza a pureza: o seu aroma é uma fonte de prazer lhe concedesse, se não a imortalidade, pelo menos a
para todos os devotos de Vishnu. “não morte”, o que acabava por ser o mesmo. Astu-
tamente, o monarca solicitou-lhe: “Que eu não morra
INTERVENÇÕES ÉPICAS nem de dia nem de noite, nem dentro nem fora, nem
As nove intervenções do deus nos acontecimentos na terra nem no ar, e que não me mate nem um ani-
humanos, quando estes estavam face a situações mal nem um ser humano.” Apanhado por este jogo de
excecionais, foram realizadas ao longo de sucessivas palavras, o deus satisfez-lhe o pedido.
reencarnações (avatares) e cada uma delas está asso- Assim que conseguiu o que queria, o rei começou
ciada a uma história épica. a tiranizar os seus súbditos e a exigir-lhes que o tra-

68 SUPER
Figuras lendárias

Herói romântico
O jovem e bonito flautista Krishna, que to-
cava alegremente pelos campos da Índia
enquanto pastoreava as suas vacas, tornou-se
uma menina recém-nascida, ficando entregue
a uma mãe adotiva. O pequeno Krishna endoi-
deceu-a com as suas traquinices: a mais famosa
um dos heróis preferidos dos indianos e, com foi quando lhe roubou a manteiga para a comer
toda a certeza, a personagem mais atrativa de às escondidas. Cresceu e converteu-se num
toda a sua mitologia. Este rapaz travesso e irre- atraente adolescente, tendo-lhe sido entregue a
quieto foi o oitavo avatar do deus Vishnu, sendo tarefa de levar as vacas a pastar. Krishna passou
o mais querido de todos. Personifica a satisfação muito do seu tempo a namoriscar as pastoras (as
e o amor, um sedutor maroto que protagonizou gopis) que partilhavam os mesmos pastos que
centenas de divertidas histórias que ainda hoje ele: sentiam-se atraídas pela sua simpatia e pela
são narradas aos meninos e meninas da Índia. irresistível música da sua flauta, mas o seu cará-
A epopeia do seu nascimento tem pormenores ter travesso continuou a vir ao de cima, como
semelhantes aos de Moisés ou Jesus Cristo, na conhecida história em que roubou a roupa a
tendo sido perseguido pelo seu tio, um rei a uma das jovens gopis enquanto esta se banhava
quem foi anunciado que um dos filhos da sua no rio, tendo subido a uma árvore e recusado
irmã acabaria com ele. Para o evitar, encarcerou- devolver-lhe as peças. Muito tempo depois, o
-a juntamente com o seu marido e assassinou, herói Krishna acabaria por se tornar filósofo e
sucessivamente, todos os bebés que nasceram rei, e os seus ensinamentos, cheios de profundi-
durante o cativeiro. O pequeno Krishna sobrevi- dade, foram inseridos no Mahabharata, um poe-
veu porque o guardaram dentro de um barco e, ma épico de cem mil versos que é um dos textos
depois de transportado pelo rio, foi trocado por mais importantes da tradição indiana.

tassem como se fosse todo-poderoso. A principal tantes deste deus, ao ponto de surgirem em alguns
oposição ao seu despotismo veio do próprio filho, que, dos textos literários mais influentes da Índia. Estamos a
apesar de ser uma criança, se negou a adorá-lo e pre- falar de dois avatares de Vishnu que acabaram por ser os
feriu continuar a venerar Vishnu. Em resultado disso, mais celebrados heróis da épica hindu: Rama e Krishna.
o soberano torturou-o. O filho aguentou os tormentos a Rama era o filho de um rei que tinha várias esposas,
que foi submetido, até que o deus, encolerizado, apa- tendo sido desterrado devido à ambição de uma das suas
receu ao entardecer, ou seja, nem de dia nem de noite, madrastas, a qual queria colocar o seu próprio descen-
com o aspeto de um ser terrível, que não era um animal dente como sucessor do monarca. Durante o seu exílio
por inteiro mas também não era humano. Deste modo, na selva, esteve acompanhado pela esposa, até que esta
pôde matá-lo sem violar o que lhe tinha concedido. foi capturada pelo rei dos demónios, que vivia no Sri
Todas as reencarnações que se seguiram tinham uma Lanka. Rama, auxiliado pelo seu irmão mais novo, tra-
forma humana, mas alguns dos entusiastas em teorias vou contacto com a tribo dos homens-macaco, que o
alternativas da história preferiram focar-se nas figuras ajudaram a resgatar a mulher: para tal, tiveram de inva-
anteriormente adotadas, pois, segundo eles, mostram dir a ilha a sul da Índia. Após um sem-fim de aventuras,
uma impressionante coincidência com o modo como a Rama recupera a esposa e consegue chegar ao trono.
vida se desenvolveu na Terra, quer dizer, com a teoria Como rei, foi um exemplo máximo de virtuosismo na arte
da evolução: primeiro, surgiram seres na água (o peixe), de governar. Daí que a expressão “o reinado de Rama”
depois evoluíram para criaturas anfíbias (a tartaruga), seja hoje um sinónimo da forma ideal de governar.
e em seguida para animais terrestres (o javali), para O oitavo avatar de Vishnu, conhecido como Krishna,
logo depois adotar uma forma semi-humana, metade tornou-se ele próprio outro mito (ver caixa). O nono
animal, metade humano, no que seria o último passo foi um pouco mais controverso, já que se tratava do
evolutivo até chegar ao Homo sapiens. Seja ela muito Buda em pessoa, tendo rejeitado o hinduísmo e criado
ou pouco convincente, a verdade é que a teoria não a sua própria religião, embora os praticantes hindus
deixa de ser atrativa para a especulação. o vejam como uma reencarnação do deus. Como em
tantas outras religiões, espera-se que o mito finde o
AVATARES MÍTICOS seu ciclo no final da época em que vivemos, quando
Após aparecer como um anão e um guerreiro, enfren- marcar presença com a sua décima e definitiva trans-
tando igualmente, em ambas as vezes, reis tirânicos, figuração: trata-se de Kalki, que, montado num cavalo
sucederam-se as reencarnações mais populares e impor- branco, acabará com os demónios e o mal.

Interessante 69
Documento

Fundador do mundo
O
s mitos sobre a criação da humanidade e
os relatos que dão conta das origens dos
povos incas combinam-se nas lendas de
Viracocha, do qual se diz que brotou do
grande lago Titicaca. Acima de tudo, Viracocha foi o
deus criador, mas o seu modus operandi foi distinto do
deus cristão. Esculpiu em pedra as figuras dos primeiros
homens e mulheres, colocando-as nos lugares onde
depois viveriam. A tarefa era metódica: povoou com
as figuras, ainda não humanizadas, os vários lugares
e regiões, como se criasse um mundo em forma de
maqueta. Finalmente, com ajuda de dois filhos (ou auxi-
liares) que criou antes dos demais, começou a dar-lhes
vida e a animá-las. Tudo isto foi feito a partir de Tiahua-
naco, uma cidade contígua ao lago Titicaca, conside-
rada pelos antigos incas como a origem da sua cultura.

GETTY
O construtor Viracocha não teve pressa no que fazia.
Daí que este mundo primevo estivesse mergulhado na
escuridão, pelo menos até decidir criar o Sol e a Lua.
Entretanto, só estava iluminado pelo brilho de Titi, um
puma flamejante que vivia no topo do mundo, cujo
nome na língua aimará motivou a denominação que se
deu ao lago Titicaca, situado entre os territórios dos
atuais Bolívia e Peru.
A tarefa de criação levou Viracocha e os seus dois
filhos para longe de Tiahuanaco, tendo fundado o
mundo tal como ficou conhecido para os povos andinos,
no que foi, possivelmente, uma viagem em que se
refletem as mais ancestrais conceções sobre as suas
origens. Um dos filhos seguiu o caminho de Antisuyo,
a zona norte do império inca, e o outro o de Contisuyo,
a região ocidental. Viracocha, por sua vez, marchou Viracocha representado numa peça de cerâmica.
em direção a Cuzco, o lugar que mais tarde se converteria
na capital inca. Durante o caminho, teve de enfrentar
algumas das suas criações, como, por exemplo, um pelos incas, nomeadamente quando viram os espa-
grupo de índios que não o reconheceram e queriam nhóis, numa repetição do que tinha sucedido no
matá-lo. O assunto ficou resolvido quando, antes de México, com Quetzalcóatl.
levarem por avante a sua intenção, o deus lhes lançou Antes disso, contudo, existe ainda uma outra história
o fogo de um imenso vulcão. importante para os incas, em que se relata nada mais
Viracocha prosseguiu a sua viagem até alcançar a linha nada menos do que a criação do seu próprio povo. É
do equador. Foi então que quis abandonar esta Terra. preciso salientar que Viracocha era uma deidade andina
Antes de o fazer, porém, avisou aqueles que criara de uma cultura anterior, pelo que faltava forjar a cone-
de que no futuro chegaria alguém que se identificaria xão que o inserisse na tradição inca.
como Viracocha, mas que não deveriam acreditar nele.
Após este vaticínio, juntou-se aos filhos na zona da atual ELO DE LIGAÇÃO
cidade de Portoviejo (no Equador): os três embrenha- A ligação dos dois mitos ficaria a dever-se a Manco
ram-se nas águas do oceano Pacífico e desapareceram Capac, personagem lendária sobre a qual se diz ter
para sempre. sido o primeiro rei dos incas. A história refere que ele
A profecia de Viracocha acabaria por ter uma notável tomou para si o báculo sagrado que Viracocha deixara
influência histórica ao ser interpretada de forma literal para trás, antes de partir. Seguiu-se uma aventurosa

70 SUPER
Marcas na história

Brancos e barbudos
O s cronistas espanhóis que relataram a con-
quista do Peru entusiasmaram-se quando
descobriram a descrição física que os incas
taque, na civilização andina: a do inca Viracocha,
rei que adotou o nome do deus. Além do mais,
há que contar com um soberano importante que,
davam de Viracocha: “Um homem branco de durante o seu reinado, de 1400 a 1438, prognos-
corpo crescido”, escreveu um deles; “um homem ticou que uma crise abalaria no futuro o império,
alto de corpo e que tinha uma roupa branca que intuindo o seu final, com as portas a abrirem-
lhe dava até aos pés, trazendo-a apertada; e que -se para uma nova fase política. Tratava-se de
trazia o cabelo curto com uma coroa [de cabelo] um padrão que parecia estar a repetir-se com a
à maneira dos sacerdotes”, relata outro. A coin- chegada dos conquistadores espanhóis: apare-
cidência física entre os espanhóis e o principal ceram numa altura de grande ansiedade, com
deus criador revelou-se providencial para justifi- o império dividido entre dois candidatos que
car, aos indígenas, a presença e as ambições dos lutavam pelo poder, Huáscar e Atahualpa. Deste
conquistadores. Os habitantes de Cuzco ficaram modo, a chegada dos espanhóis obedecia a uma
muito impressionados não só pelo facto de os es- lógica imaculada, em que a história se repetia em
panhóis serem brancos, mas, também, por terem movimentos pendulares idênticos. Os aconteci-
barba. Tratava-se de um atributo físico raríssimo, mentos encaixavam com tanta perfeição que era
conhecendo-se apenas um caso destes, com des- tentador acreditar na fantasia.

viagem que o levou, assim como aos seus três irmãos rios, o que parece ter sido o exílio forçado dos incas
e respetivas esposas, até Cuzco. Manco Capac era con- que habitavam a região de Tiahuanaco, pressionados
siderado o filho do deus Sol e da deusa Lua, que, con- pela expansão da tribo dos aimarás – no atual distrito
denados a viver um amor impossível, se tinham encon- argentino de Tucumán. No entanto, durante o seu
trado durante um momento único, previamente pro- périplo, os incas também acabariam por converter-se
fetizado, durante o qual a Terra escureceu (supõe-se, em invasores, quando se instalaram no cale de Cuzco.
portanto, que seria um eclipse). Após se unirem, do
lago Titicaca surgiu um jovem bonito, Manco Capac, e SOBERANOS DIVINOS
uma bela donzela, Mama Ocllo, sua esposa. Apesar dos atributos míticos, é bem possível que
O deus Sol, seu pai, entregou a Manco o báculo (o Manco Capac tenha sido uma personagem real e histó-
bordão de ponta dobrada) de Viracocha, objeto que rica, cujos feitos foram sendo embelezados pelos seus
lhes deveria indicar o caminho a seguir. Orientado por sucessores. Há diversos investigadores a frisar que a
ele, o casal iniciou uma peregrinação em busca de uma tradição local de Cuzco sempre o considerou, unani-
terra fértil onde pudessem estabelecer-se. Onde o memente, como fundador da cidade, o que justifica o
báculo se enterrasse, seria o lugar assinalado para assen- costume de venerar os pontos onde realizou algo de
tarem. Manco e a sua família empreenderam então destaque, como fundar um templo, ou os locais onde
uma viagem muito para norte do lago, que durou meses. se diz que dormiu a sua bela esposa, Mama Ocllo.
Claramente, estamos perante a explicação mítica da A mitificação dos reis incas, vistos como os filhos do Sol,
trajetória empreendida pelos próprios incas. Segundo foi uma característica peculiar da monarquia de Cuzco,
o relato, cruzaram os países de várias tribos (os urus, num processo que foi muito mais longe do que qualquer
os collas e os aimarás), e alguns deles não os rece- outra civilização existente em seu redor, só comparável
beram de bom grado. Por isso, houve ocasiões em ao que sucedia com os imperadores chineses.
que tiveram de prosseguir o seu êxodo pelo interior Era tão grande a divinização que quem detinha o título
de cavernas. Por onde passavam, Manco não deixou de inca (ou seja, de soberano) convertia-se num ser
de verificar se estava no seu destino, deixando cair praticamente inacessível, apenas visível para o seu povo,
o báculo, mas o resultado era sempre negativo. Só sacralizando tudo aquilo com que entrava em contacto.
quando alcançaram o vale de Cuzco, local onde existia Dizia-se que emanava dele uma energia tão portentosa
um pântano, é que o báculo finalmente se afundou no que era necessário levá-lo pelo ar, já que o seu contacto
terreno, quase desaparecendo. Tinham encontrado a com o solo poderia ocasionar catástrofes. Quem se
sua terra prometida, tão fértil que podiam lavrar aí os aproximasse dele tinha de o fazer descalço, com um
seus frutos. Ao lugar deram o nome de Cuzco, que na peso às costas em sinal de submissão e sem poder
língua inca significa “o umbigo do mundo”. olhá-lo de frente. Foi assim que todos os monarcas
Esta narração mítica condensa, com tons lendá- incas foram transformados em mitos vivos.

Interessante 71
Documento

O sábio

AGE
hierarca
O
s protagonistas da mitologia chinesa não
são os heróis passionais nem os deuses cria-
dores que dominam as tradições europeias
e americanas. Aliás, o objetivo dos mitos
chineses não é desvendar a origem do mundo ou da vida,
mas antes explicar os começos da civilização, com
todos os seus avanços. Por isso, as suas principais perso-
nagens lendárias são os imperadores que deram início
ao grande estado central chinês, os grandes líderes que o
dotaram das forças produtivas que permitiram alimentar
a sociedade e organizá-la a grande escala. Consequente-
mente, as suas principais figuras míticas acabam por ser
os sábios, em vez dos guerreiros. Não é de estranhar,
numa sociedade que sempre admirou mais o conheci-
mento do que qualquer outra qualidade humana.
Estas personagens lendárias ficaram conhecidas para
a posteridade como “os três augustos e os cinco impe-
radores”, oito monarcas que criaram as bases da arqui-
tetura política e social chinesa. Todos eles precederam
a dinastia Xia, a primeira de que há registo nas listas
reais elaboradas pelos historiadores da Antiguidade:
os Xias reinaram a partir de 2100 a.C.

FIGURA DE PROA
Deste lote de monarcas, o que sempre concentrou
maior admiração e veneração foi o chamado “Impera-
dor Amarelo”, nome que vem da cor de uma das Cinco
Fases em torno das quais se organizou o mundo. O ama-
relo era a tonalidade da fase terrestre, à qual se tinha
adstrito o reinado deste soberano. As outras fases
correspondiam a elementos como a água, o metal ou a Huangdi, conhecido como Imperador Amarelo,
madeira. Este importante imperador ficou igualmente distinguiu-se como sábio e inventor da fase terrestre.
conhecido como Huangdi.
A informação de que estamos perante uma figura
mitológica é relativamente recente, datando do início de alguma forma à do imperador Yan, outro dos cinco
do século XX. Até então, foi sempre considerado uma governantes mitológicos. Ambas estavam estabeleci-
personagem histórica que reinou durante cem anos das na área do rio Amarelo, primeiro foco em torno do
(2698–2598 a.C.). Os relatos dizem que nasceu em Shao qual se estruturou a vida civilizacional em território chinês.
Qiu, uma localidade que significa “colina da longevi-
dade”, situada nos arredores da atual cidade de Qufu, CHOQUE ENTRE LÍDERES MÍTICOS
no sudoeste da província de Shandong. O seu mauso- Apesar de o imperador ser mais recordado pelos seus
léu fica em Yan’na, cerca de 200 quilómetros a norte êxitos civilizacionais, para consolidar o seu poder teve
de Xi’na, lugar que, desde épocas longínquas, era visitado primeiro de combater. O seu principal inimigo foi Chiyou,
e objeto de homenagem por parte dos seus sucessores. líder de algumas tribos aparentadas com a atual minoria
As crónicas tradicionais relatam que o Imperador étnica dos miao. O confronto entre ambos marcou a luta
Amarelo era o líder de uma tribo, aliada ou associada pela supremacia dos chineses da etnia han, maioritá-

72 SUPER
Figuras lendárias
ria nos dias de hoje. Num primeiro momento, Chiyou veitar a água para outros fins ao mesmo tempo que se
derrotou o imperador Yan, obrigando-o a refugiar-se minimizava o risco de inundações.
em território do Imperador Amarelo, tendo-lhe pedido A inovação de Yu foi consequência de um drama pes-
ajuda. Este dispôs-se, firmemente, a deter o seu pode- soal. O seu pai, Gun, foi condenado à morte pelos deuses
roso inimigo, que também era uma figura com aspetos por lhes ter roubado a terra que depois foi usada para erigir
mitológicos: dizia-se que Chiyou tinha uma constituição diques, o único expediente que lhe ocorreu para deter
bizarra, formada por uma cabeça de bronze, quatro as destrutivas inundações. Para o castigar, os deuses
olhos e seis braços. mantiveram-no numa montanha, sozinho, até morrer. A
A batalha entre os dois teve lugar em Zhoulu, no tradição diz que Yun nasceu diretamente do seu corpo,
noroeste da China, e foram as qualidades do Impera- sem qualquer intromissão feminina. Yu, o Grande, não
dor Amarelo como grande sábio a decidir o desenlace, era somente um brilhante hidrólogo, mas também um
pois conseguiu que a balança se inclinasse a favor das sofisticado organizador político que dividiu o território
suas forças ao introduzir uma arma inovadora, capaz de em nove regiões administrativas, tendo também criado,
dar resposta a uma dificuldade inesperada. O malvado em jeito de simbolismo, nove vasilhas de bronze que
Chiyou tinha utilizado os seus poderes mágicos para lan- representavam a legitimidade dos imperadores: estes
çar sobre todo o campo de batalha uma espessa névoa não podiam permitir que as vasilhas se perdessem.
que impedia o exército adversário de se orientar. Para Após o Imperador Amarelo e o reinado de Yu, os res-
compensar a desvantagem, o Imperador Amarelo tantes governantes da história chinesa, pelo menos os
introduziu no campo de batalha o denominado “carro de maior destaque, foram sempre vistos como tendo
que aponta para sul”: tratava-se de uma espécie de car- as mesmas qualidades e o mesmo brilho intelectual
roça que incorporava sobre o eixo das suas rodas um dos seus antecessores mitológicos.
mecanismo que automaticamente indicava o sul. Basi-
camente, era uma bússola. Ligado ao eixo por rodas AUTOR DO LIVRO DE MEDICINA
dentadas, o aparelho terminava numa estatueta que A história glorificada do Imperador Amarelo contém
tinha o braço estendido, de modo a que o condutor um curioso capítulo. Ao que parece, a primeira grande
soubesse onde estava o sul, evitando assim perder-se. compilação escrita da medicina tradicional chinesa teve
o título de O Cânone Interno do Imperador Amarelo,
CRIATIVIDADE SEM LIMITES tendo sido redigida sob a forma de uma conversa entre
Sabe-se que “o carro que aponta para sul” foi um o mítico governante e seis dos seus ministros. Ao longo
eficaz GPS para os antigos chineses, contemporâneos deste diálogo, eram formuladas perguntas e respostas
do Imperador Amarelo, tendo-o utilizado não só em sobre questões concretas, além de explicar a teoria e a
operações militares, como também para se orientarem prática da acupunctura, com exemplos de tratamentos
nas viagens que faziam pelo deserto de Gobi. A lenda, de doenças em que se usava essa prática.
inevitavelmente, atribui ao imperador a invenção da O texto terá sido coligido vários séculos depois do
engenhoca. O mesmo sucedeu com muitas outras (suposto) nascimento do mítico imperador, pelo que
invenções dessa época, que definiram a civilização chi- é um mistério o motivo pelo qual ele foi transformado
nesa, como é o caso do seu calendário e das observações no protagonista e possível autor. Seja como for, houve
astronómicas que faziam, a que se juntava a matemática, muita gente a acreditar que era uma obra produzida
o cultivo de cereais básicos e, inclusivamente, o cuju, pelo sábio líder. Uma das possíveis razões para se ter
um antigo jogo com bola que se julga ser o antepassado atribuído ao Imperador Amarelo este tratado médico
mais antigo do futebol. poderá ter sido, julga-se, porque os autores queriam
A sua criatividade não conhecia limites e parecia ser ocultar os seus nomes. Tratava-se de uma obra que
contagiosa. À sua esposa, a imperatriz Leizu, é atribuída rompia com muitos preceitos estabelecidos, rejei-
a invenção do cultivo da seda, graças a uma observação tando as explicações xamânicas que atribuíam as cau-
casual: enquanto tomava chá no seu jardim, uma cri- sas das doenças a demónios, além de prometerem a
sálida caiu no recipiente e o calor fê-la desenrolar-se, sua cura através da magia.
aparecendo uma quantidade tão grande de seda que O seu conteúdo afasta-se dos conceitos religiosos e
cobriu todo o lugar. explica as enfermidades que o ser humano sofre como
Entre os sucessores do Imperador Amarelo, desta- uma consequência da sua dieta, da idade, do ambiente
cou-se o primeiro soberano da dinastia Xia, figura con- em que vive ou das emoções que sente. Mais especifi-
troversa no que toca à sua historicidade, uma vez que camente, os fatores ambientais (o calor e o frio, entre
não há registos escritos dessa época, apenas referências outros) são explicados como fazendo parte dos esta-
em textos posteriores. Este primeiro hierarca Xia, recor- dos, forças e fases do mundo – quer dizer, das leis da
dado com o nome de Yu, o Grande, é celebrado por natureza –, os quais influem não só sobre a totalidade
ter sido quem começou a utilizar canais de drenagem do cosmos, como também sobre as partes individuais
para controlar as cheias dos rios, o que permitiu apro- dos humanos.

Interessante 73
Documento

O espelho
dos reis
H
á 500 anos, o rei Artur já era objeto de polé-
mica: “Várias pessoas mantêm a opinião de
que não houve esse tal Artur, e que todos
os livros que foram feitos sobre ele não pas-
sam de fingimentos e fábulas, já que algumas crónicas
não fazem qualquer menção dele nem se lembram dos
seus cavaleiros.” Quem dava conta desta divisão de
opiniões era o impressor William Caxton, no prefácio
da edição que publicou em 1485 de A Morte de Artur,
obra medieval da autoria de Sir Thomas Malory, a mais
influente e lida das recriações literárias da vida do rei
de Camelot.
ALBUM

Ao longo do seu texto, Malory dava conta da falta de


referências sobre a personagem, por parte de muitos Artur da Britânia foi evocado a partir da Idade Média
dos historiadores e cronistas da sua época. Não obs- como um valoroso cavaleiro de grande sabedoria.
tante, e apesar de ter feito essa constatação, preferiu
debruçar-se sobre as provas que demonstravam a sua
existência, como a possibilidade de se poder ver o seu dos saxões, em finais do século V ou princípios do VI.
túmulo no mosteiro de Glastonbury. O sepulcro foi loca- Esta vitória foi só o princípio. O mais importante foi o
lizado por monges, embora tudo pareça indicar que o que sucedeu após o confronto, quando se iniciou uma
atribuíram a Artur deliberadamente, para que fosse nova etapa sob o auspício de Artur. O seu reinado foi
ao encontro da identificação anteriormente feita por o de um governo reto e exemplar, em que as decisões
Godofredo de Monmouth, que tinha incluído o mítico eram tomadas por consenso dos pares, os quais se reu-
soberano na sua obra História dos Reis da Bretanha. niam, para limar as suas diferenças, em redor de uma
O mito do rei Artur já tinha captado o imaginário do mesa redonda que se converteria no símbolo do diálogo.
mundo cristão com uma força indelével. O próprio Clax- Este atributo, a par do “acordo” nas tomadas de decisão,
ton explicava porquê: era considerado um dos “nove era considerado uma das duas formas superiores de
dignos e melhores que alguma vez houve”. Ou seja, um governar um reino.
dos reis ou chefes mais valentes e sábios da história. Esta pretensa época de ouro terá sido um fugaz
Esta espécie de ranking, feita pelos nossos antepassa- momento de harmonia num mundo em desapareci-
dos, incluía “três pagãos, três judeus e três cristãos”. Os mento, inicialmente criado pelo Império Romano e
pagãos eram heróis gregos e romanos: Heitor de Troia, depois cristianizado, mas que estava a desintegrar-se
Alexandre, o Grande, e Júlio César. Os judeus eram, fruto do seu próprio esgotamento e da pressão dos
como seria de esperar, personagens bíblicas: Josué, o povos germânicos, como era o caso dos saxões que
rei David e Judas Macabeu. Por fim, dos três cristãos, Artur deteve. Foi assim que o monarca conseguiu pro-
o mais importante, dizia Caxton, era Artur, seguido de longar um sonho, entrincheirando-o num dos cantos
Carlos Magno e do cruzado Godofredo de Bulhão. da Europa, a ilha da Britânia.

BRAVO GUERREIRO POÉTICA ARTURIANA


A admiração por Artur deve-se a vários motivos, Com base nestes êxitos importantes, a literatura
sendo isso, porventura, uma das grandes razões que medieval iria mais tarde (a partir do século XII) conver-
levaram o seu nome a elevar-se na memória coletiva ter Artur no epicentro de um leque de feitos imaginá-
e a ficar no coração de milhões de aficionados da sua rios, engrandecendo a sua lenda através de todo o tipo
história. Tudo começou, possivelmente, quando se lhe de façanhas: algumas eram épicas, outras eram mágicas
atribuiu a vitória na batalha do monte Badon, em que e até piedosas, tendo-se incluído um trágico triângulo
os romano-britânicos detiveram a incursão invasora amoroso de impossível solução.

74 SUPER
Figuras lendárias
Sobre os ombros do rei Artur edificou-se uma pirâmide
literária, com os temas mais fascinantes da literatura
ocidental reunidos no pequeno mundo de uma corte
Últimas notícias
medieval, inspirada em princípios férreos como a luta
contra o mal e a busca da virtude. Estes foram, aliás, os
principais eixos da ética de Artur, os quais se conver-
E specialistas em língua céltica apresen-
taram recentemente uma hipótese
curiosa. De acordo com a sua interpretação,
teram num espelho para os governantes. À sua volta, a palavra excalibur, o nome da espada do rei
surgem, contudo, todas as fraquezas da condição Artur, é uma contração das palavras latinas
humana, impedindo que tal ideal durasse muito mais. O ensis caliburnus, sendo caliburnus, por sua
próprio soberano, reza a história, foi produto da paixão vez, uma derivação do grego chalybeios, que
desmedida e ilegítima do seu pai, o rei Uther Pendragon, significa “aço”. Isto levou alguns autores a
pela bela nobre Igraine, mulher do duque da Cornualha. pensar que a poderosa espada pode ter vindo
A única forma que tinha de a possuir era recorrer a truques da região mediterrânica, assim como o seu
e enganos propiciados pelo mago Merlim, que, em dono, provavelmente um romano. Este foi
troca dos seus serviços, se converteria no mentor do um dos últimos contributos para a teoria de
futuro monarca. que Artur foi um líder militar do império,
A força do amor e o modo como este pode interpor-se “o último dos romanos”, identificado como
na lealdade que um cavaleiro deve ao seu rei e amigo sendo Ambrósio Aureliano, o general que,
– drama que sucedeu com o cavaleiro Lancelote, per- segundo a crónica de são Gildas (século VI),
didamente enamorado pela rainha Genebra (também teria liderado a vitória sobre os saxões, na
conhecida pelo nome inglês de Guinevere) –, mostra batalha do monte Badon. Valerio Manfredi,
outra faceta das eternas debilidades humanas. É o peso escritor e arqueólogo italiano, adotou esta
de submeter-se ao império dos sentimentos, pois quem tese no reu romance A Última Legião: “Cor-
cai nas suas redes sofre com a fricção que depois se dá responde à verdade a tradição segundo a qual
com a lealdade que se deve a outro (neste caso, ao os romano-britânicos do século V pediram
esposo da pessoa amada, que também é rei e amigo). várias vezes a ajuda do imperador contra os
Foi uma lealdade que tentaram manter, mas sem serem invasores do norte e do sul.” A investigação
capazes de o conseguir, desembocando numa traição arturiana move-se em muitas direções, algu-
que provocou grande dor no rei Artur. mas delas surpreendentes. Um dos esforços
O drama familiar do soberano não se limitou à esposa, mais curiosos é o de localizar a Távola Re-
tendo-se prolongado ao filho ilegítimo que Artur donda. Em 2011, arqueólogos da Universi-
não quis reconhecer como seu, o amargurado Mor- dade de Glasgow (Escócia) revelaram que
dred, que surge mencionado nas primeiras aparições um montículo circular, chamado King’s Knot
do rei, nas narrativas do século VI. O desentendimento (Nó do Rei), situado nos jardins reais do
entre pai e filho acabou com os dois a assassinarem-se castelo de Stirling, na cidade escocesa com o
mutuamente, bem ao jeito de uma tragédia grega. mesmo nome, é muito mais antigo do que se
pensava até agora (as estimativas anteriores
O PARADOXO DO PARAÍSO ficavam-se pelo século XIV), o que poderá
Do ponto de vista coletivo, os escritores do ciclo artu- ajudar a explicar por que existem centenas
riano, com a sua perspicácia psicológica, não se limita- de tradições locais a afirmar que ali esteve a
ram a celebrar o período de paz conseguido pelo rei, Távola Redonda.
na medida em que também exploraram o paradoxo de
este aparente Éden trazer consigo a semente dos futuros
problemas, devido ao tédio e à apatia em que estavam
submersos os cavaleiros. Eram homens preparados foi levado a cabo por apenas um autor. Tratou-se do
para a guerra, mas, na ausência de batalhas para travar, resultado de sucessivas contribuições de escritores
acomodaram-se aos seus assentos na Távola Redonda. ingleses, como Thomas Malory, que escreveu A Morte
Até que surge uma missão que incorpora a procura do Rei Artur, e de autores franceses, entre os quais se
do ideal cristão: a busca do Santo Graal, um mito cem inclui Chrétien de Troyes, que construíram um mito
por cento medieval que não aparece na Bíblia. Segundo cuja base de sustentação não se fica pela personagem
a lenda, o cálice da Última Ceia foi entregue pelo principal. Coube aos que são secundários a tarefa de
Cristo ressuscitado a José de Arimateia, tendo-lhe orde- engrandecê-lo, através de personagens tão ou mais
nado que o levasse para a ilha da Britânia. Procurar a atrativas do que Artur, como os magos Merlim e Mor-
sua localização exata era, por si, um sinal de grandeza gana, a que se juntam seres sobrenaturais como a
cavaleiresca, pois era uma missão difícil e gloriosa. dama do Lago, numa ligação com o mundo pré-cristão,
O engrossamento literário do mito arturiano não o dos mitos celtas.

Interessante 75
Estátua de Aquiles
no Palácio Achilleion,
em Corfu (Grécia).

Entre o mito e a realidade

O lugar dos heróis


A história foi sempre fecunda em personagens
prodigiosas. A tradição oral e a literatura converteram
homens e mulheres em heróis e heroínas.

AQUILES tor, enfrentou este príncipe de Troia e matou-o: em


Um dos protagonistas da Ilíada é Aquiles, filho do seguida, amarrou o cadáver à sua briga e arrastou-o
mortal Peleu, rei dos mirmidões, e da deusa Tétis. Cres- pelo campo de batalha. A sua ira, o desejo de vingança
ceu com o seu amigo Pátroclo, ambos sob os cuidados e o amor pelo seu companheiro fazem de Aquiles o
do centauro Quíron, que os alimentou com entranhas único mortal do poema de Homero com emoções
de leão e a medula dos ossos, para aumentar a sua similares às dos deuses, apesar de ao longo do relato
bravura. Também lhes ensinou a disparar o arco, a arte o herói esquecer, progressivamente, a sua condição
da eloquência e técnicas de cura. No poema homérico, de semideus e se humanizar. Na Aquileida, um poema
aparece como um valente guerreiro que, ao comando posterior à Ilíada escrito por Estácio, no século I, é dito
dos mirmidões, ajuda o exército grego na Guerra de que Tétis quis torná-lo imortal e, para tal, o mergulhou
Troia. Após a morte do seu amigo Pátroclo por Hei- no rio Estige, agarrando-o pelo calcanhar, sendo por

76 SUPER
Mel Gibson
em Braveheart.

causa disso que se tornou a parte mais vulnerável do 1995. Nenhuma documentação sobre esta persona-
seu corpo. Anos mais tarde, uma flecha envenenada gem foi conservada, pelo que a maior parte dos dados
feriu-o nesse local, causando a sua morte imediata. proveem da obra The Actes and Deidis of the Illustre
and Vallyeant Campioun Schir William Wallace, escrita
BEOWULF por Blind Harry dois séculos depois do nascimento de
Escrito antes do Cantar del Mio Cid e da Chanson de Wallace. Pertencente a uma família de nobres terrate-
Roland, o poema épico anglo-saxónico Beowulf, de nentes, Braveheart, um autodidata que aprendeu a arte
autoria anónima, encontra-se conservado na British militar, defendeu em 1296 a independência da Escócia
Library, em Londres. Não se conseguiu determinar com contra a Inglaterra, comandando um exército que der-
exatidão a data em que foi redigido, embora se saiba rotou os ingleses na batalha de Stirling. Todavia, no
que terá sido nos séculos VIII a X. Segundo o extenso primeiro de abril de 1298, foi derrotado na batalha de
poema de 3182 versos, a figura lendária Beowulf era Falkirk, por culpa da excelente pontaria dos arqueiros
um jovem guerreiro, um herói godo que socorreu os galeses. Wallace acabou por ser executado em 1305. O
dinamarqueses quando estes sofriam terríveis ataques seu corpo foi desmembrado, e os pedaços espalhados
de um gigantesco ogre, tendo-o morto. Mais tarde, por diferentes pontos do reino, como forma de escár-
depois de proclamado rei dos gotas (povo da Suécia nio para com os inimigos de Inglaterra.
meridional), lutou até à morte contra um feroz dragão
que aterrorizava a região de que era soberano. Alguns BRUNILDA
autores ligam o mito de Beowulf à história bíblica de A personagem de Brynhildr, ou Brunilda, aparece
Judite (ver adiante), mas as partes reais da narrativa repetidamente na mitologia nórdica, mas a sua encar-
derivam da história britânica e dinamarquesa dos séculos nação mais conhecida é a da valquíria apaixonada por
V a VII. Sigurdo, na epopeia A Canção dos Nibelungos. É muito
provável que o mito de Brunilda se tenha inspirado
BRAVEHEART na princesa visigótica e rainha merovíngia Brunilda da
As façanhas do escocês William Wallace (1270–1305) Austrásia (543–613), filha de Atanagildo, o rei godo da
popularizaram-se através do cinema, graças ao filme Hispânia, e esposa de Sigeberto I da Austrásia. Brunilda
Braveheart, dirigido e interpretado por Mel Gibson, em foi uma figura-chave nas disputas que então ocorreram

Interessante 77
O gigantesco
Ferrabrás
era um príncipe
sarraceno
entre os reis merovíngios e os francos. Neste caso, a
lenda refere que Brunilda serviu de mediadora entre
os dois reis, mas, ao apoiar o monarca que o deus Odin
detesta, recebe o castigo de permanecer presa num
sonho profundo, pelo menos até ser resgatada. Quem
acabou por salvá-la foi Sigurdo: assim que chegou à pri-
são onde ela estava, acordou-a e prometeu casar com
ela. Não obstante, vencido por uma poção de amor,
acabou por desposar Gudrun: pelo meio, e recorrendo
a alguns estratagemas, conseguiu casar Brunilda com o
seu cunhado Gunthar. Quando se deu conta de que fora
vítima de um engodo, ela não pensou duas vezes em
ALBUM

Ferrabrás.
trair a sua antiga paixão, que caiu às mãos do cruel
Gutorm. Após a morte de Sigurdo, Brunilda suicidou-se
e foi sepultada ao lado do amado.
siderado o fundador do reino das Astúrias, D. Pelágio
CASANOVA instalou a sua corte em Cangas de Onís, onde acabou
O mito literário de Don Juan nasce com Tirso de por falecer em 737.
Molina e o seu Burlador de Sevilha. Séculos mais tarde,
é retomado, entre outros, por Molière e Lord Byron, ENEIAS
tendo ainda inspirado a ópera de Mozart Don Giovanni. Elo de ligação entre as lendas gregas e romanas,
Se houve uma personagem histórica identificável com Eneias aparece na Ilíada como líder do exército
Don Juan, foi o veneziano Giacomo Girolamo Casanova troiano, enquanto a Eneida, escrita por Virgílio, o poeta
(1725–1798). Escritor e diplomata, Casanova assegura favorito de Augusto, o converteu no fundador de
nas suas memórias ter conquistado mais de mil mulheres Roma. Filho do príncipe Anquises e da deusa Afrodite,
ao longo da sua vida. Na autobiografia Histoire de Ma Eneias fugiu de Troia após a sua queda em mãos gregas.
Vie, descreve com minúcia os galantes encontros que Foi guiado por Afrodite e teve a companhia da sua
teve, os mesmos que tornaram o seu apelido sinónimo esposa, Creúsa, e do filho, Ascânio. Creúsa morreu
de um sedutor impenitente. durante a viagem, mas antes profetizou que o seu
marido seria o pai de uma grande nação. Após uma
D. PELÁGIO conturbada viagem, Eneias conseguiu chegar ao
D. Pelágio (ou Pelayo, ou Paio; morreu em 737) um Lácio (região que fica no centro da península itálica),
nobre visigodo que se refugiou nas Astúrias, foi consi- casando com a princesa Lavínia, filha do rei Latino: os
derado o primeiro herói da reconquista cristã da penín- áugures tinham-na proibido de casar até que chegasse
sula Ibérica. Lutou ao lado de D. Rodrigo na batalha de um homem estrangeiro, que a faria mãe de uma nobre
Guadalete (711) e, quando a capital visigoda caiu sob o estirpe. Da união nasceu um varão que se chamou Sílvio,
poder dos árabes (714), fugiu para as Astúrias e refu- personagem que a Eneida converteu em progenitor do
giou-se nas montanhas, tento encabeçado a partir daí povo romano.
um levantamento contra os muçulmanos (718) que
culminou em 722 na batalha de Covadonga. A tradi- FERRABRÁS
ção assegura que Pelágio, com somente 300 homens O nome do mítico batalhador Ferrabrás surge docu-
às suas ordens, venceu um exército inimigo com- mentado pela primeira vez no poema épico francês
posto por 180 mil combatentes, embora este seja um Chanson de Fierabrás, uma conhecida mas anónima
número que já foi demonstrado ser falso. canção de gesta de finais do século XII. O protagonista
A vitória de Covadonga deveu-se, fundamental- é descrito como um gigante de procedência sarracena
mente, à estratégia aplicada pelas tropas cristãs, que dotado de uma tremenda força física, alguém que unia
atraíram o inimigo ao estreito vale de Cangas, lugar um grande coração à habilidade no manuseio das armas,
onde era impossível qualquer tipo de manobra. Con- transformando-o num militar invencível. Filho do emir

78 SUPER
Balão, governador do Al-Andalus, enfrentou o len-
dário comandante do exército carolíngio. Após ser
derrotado, converteu-se ao cristianismo e acabou a
combater nas fileiras do exército do rei Carlos Magno.

GILLES DE RAIS
Gilles de Montmorency-Laval, barão de Rais, mais
conhecido como Gilles de Rais (1405–1440) ou Barba
Azul, obteve a glória militar lutando ao lado de Joana
d’Arc, na Guerra dos Cem Anos. No entanto, ficou na
história como sendo um psicopata, com centenas
de vítimas à sua conta. Depois do conflito que opôs
a França à Inglaterra, o nobre bretão retirou-se para
as terras que possuía na região francesa da Vendeia,
onde acabou por cometer os mais horríveis crimes. Foi
aí que se iniciou no ocultismo, chegando a sacrificar
centenas de crianças, o que bate certo com a informa-
ção de que entre 1432 e 1440 desapareceram na Breta-
nha francesa mais de mil crianças com menos de dez
anos. Descobertas as suas malfeitorias, foi condenado
a morrer na forca a 26 de outubro de 1440.
Pocahontas e John Smith (óleo
sobre tela de Victor Nehlig, 1870).
HUA MULAN
A lendária princesa chinesa Hua Mulan popularizou-
-se graças ao filme de animação Mulan, produzido pela
Disney em 1998. A protagonista desta história reen- (meados do século II a.C.) com o intuito de motivar
carna a velha peripécia da mulher que, disfarçada de os hebreus face aos avanços do Império Romano. A
guerreiro, conseguiu comandar um exército exclusiva- figura de Judite foi repetidamente utilizada em deter-
mente masculino. A lenda surge relatada na Balada de minadas épocas da história, simbolizando a rebelião
Mulan, escrita no século VI, da qual já só existe uma dos oprimidos para com a tirania dos poderosos.
versão posterior, recolhida por Kuo Maoch’ien, no
século XII. A narrativa refere que Mulan viveu durante LANCELOTE
o período Wei (386–534) e, depois de relatar a gesta O ciclo literário arturiano faz parte da chamada
épica da heroína, conclui com o regresso da jovem à Matéria da Bretanha, uma coletânea saxónica de len-
aldeia, com o imperador a descobrir o seu paradeiro e das celtas e bretãs, escrita no século XII. O seu con-
a convertê-la na sua concubina. A verdade é que ainda teúdo está recheado de heróis e personagens míticas,
hoje se desconhece se o poema, e, portanto, a figura entre eles um de significado especial: Lancelote, um
de Mulan, se baseiam em factos verídicos. Seja como dos cavaleiros da Távola Redonda. Filho do rei Ban de
for, a história da jovem guerreira é muito similar à da Benwick, Lancelote foi raptado pela dama do Lago,
imperatriz Fu Hao, esposa do imperador Wu Ding da que o instruiu no manejo das armas e o conduziu à corte
dinastia Shang, que de simples concubina chegou a do rei Artur, onde foi armado cavaleiro. O monarca
general do exército chinês, tornando-se a líder militar confiou-lhe a missão de escoltar até Camelot a sua
mais poderosa do seu tempo. futura esposa e rainha, Guinevere. Durante a viagem,
Lancelote rendeu-se aos encantos de Guinevere, mas,
JUDITE por uma questão de consciência, prefere manter-se leal
Segundo o livro bíblico que leva o seu nome, Judite ao seu rei. Assim que se celebraram as núpcias reais,
foi uma viúva hebraica que durante a guerra entre partiu em busca do Graal.
Israel e a Babilónia conseguiu libertar o seu povo. Contudo, Artur acabou por descobrir a relação que
Bonita e culta, o general babilónico Holofernes apaixo- houve entre o seu cavaleiro e a esposa, condenando-a
nou-se por ela durante o assédio à cidade de Betúlia. a morrer na fogueira. Lancelote consegue salvá-la e,
Quando se deu conta do enamoramento, Judite, dis- para tal, não tem problemas em enfrentar alguns dos
posta a salvar a sua pátria, fê-lo acreditar que estava seus antigos camaradas. Após a morte do rei Artur,
aberta aos seus avanços. Quando estavam na tenda de Guinevere fechou-se num convento, enquanto Lance-
campanha do general, Judite embebedou-o e, quando lote levou uma vida de eremita.
estava prestes a cair ao chão devido à bebida, decapi-
tou-o. A morte de Holofernes provocou a debandada POCAHONTAS
do exército babilónico e deu a vitória a Israel. Filha mais velha de Powhatan, chefe índio da con-
O livro de Judite foi escrito no tempo dos macabeus federação algonquina da Virgínia, em território norte-

Interessante 79
AGE
Estátua de Rolando na Praça do
Mercado de Bremen (Alemanha).

A lenda ROBIN DOS BOSQUES


A figura heroica de Robin dos Bosques sempre
de Rolando esteve associada ao folclore tradicional inglês da Idade
Média. Diz a lenda que o herói teve de enfrentar o

impôs-se aos corrupto poder local e, ao mesmo tempo, viver escon-


dido no bosque de Sherwood, roubando aos podero-
sos para dar aos pobres. Segundo a tese de Joseph
factos históricos Hunter (1783–1861), Robin Hood foi, na realidade, um
ferreiro que em 1322 levantou armas contra Eduardo II
de Inglaterra. Dado que a revolta foi esmagada, supõe-se
-americano, Pocahontas (1595–1617) é sem sombra que se tenha refugiado nas imediações de Nottingham,
de dúvidas a mais conhecida das nativas americanas vivendo à custa de assaltos a viajantes e dividindo por
durante a época da colonização britânica. Matoaka entre os mais humildes o fruto da peculiar justiça que
era o seu verdadeiro nome e Pocahontas (“pequena aplicava.
silenciosa”) o seu mote. Pouco ou nada se conhece da
sua infância, somente a defesa que fez do colono bri- ROLANDO
tânico John Smith, em 1607, quando este esteve perto Rolando, o conde da Matéria de França (uma coletâ-
de ser executado pela tribo do seu pai, após ter sido nea do ciclo literário carolíngio), era sobrinho de Carlos
capturado. Foi o próprio Smith quem narrou os factos, Magno e morreu na batalha de Roncesvalles, em 778.
mas suspeita-se de que eles foram exagerados quando Pese embora os seus méritos militares, esta personagem
chegava a parte de expor as suas aventuras pelos terri- ficou no imaginário popular graças a uma canção de
tórios inexplorados da América do Norte. gesta francesa, a Chanson de Roland, datada do século
Apesar de não haver certezas sobre este episódio, XI. Em torno desta figura lendária, converteu-se uma
o certo é que a jovem algonquina desempenhou um simples escaramuça, entre vascões e carolíngios, numa
papel importante nas relações entre a sua tribo e os batalha contra os árabes, com Rolando a comandar
colonizadores britânicos. Capturada pelos ingleses, as tropas, dando assim à narrativa um tom de cruzada.
conheceu o britânico John Rolfe, com quem casou. Em Pelo menos, é o que revela a Vita Caroli Magni, de Egi-
1616, viajou até Inglaterra e foi recebida pelo rei Jaime I. nardo, uma crónica em latim do reinado de Carlos
Morreu meses depois, aos 22 anos, em março de 1617, Magno. A lenda, é claro, impôs-se sobre a história e dei-
vítima de tuberculose. xou marcas na toponímia da zona: perto de Hendaia,

80 SUPER
Lara Croft.

Mitos do nosso tempo


Super-Homem - É o pioneiro dos super-heróis sim numa intemporal e misteriosa Gotham City.
modernos da ficção. Nascido da caneta do Além do mais, carece de poderes sobre-huma-
norte-americano Jerry Siegel e da capacidade nos, recorrendo apenas à ciência e à tecnologia
de desenho do canadiano Joe Shuster, em 1938, para levar a cabo os seus intentos. Tal como o
manteve desde então a sua icónica aparência: Super-Homem, primeiro era uma personagem
fato justo de cor azul, capa vermelha e, no peito, de BD, mas foi no cinema e na televisão que se
um enorme “S”. Enviado do planeta Krypton popularizou.
para a Terra, é adotado por um casal de agricul- Homem-Aranha – Foi criado por Stan Lee e
tores. A coberto do nome Clark Kent, trabalha Steve Ditko em 1962. Ao contrário dos outros
como jornalista no Daily Planey, numa cidade super-heróis, que revelam confiança e determi-
fictícia facilmente identificável com Nova Ior- nação, Peter Parker (o seu verdadeiro nome) é
que. Aí desenvolveria um eterno romance com um adolescente tímido e inseguro. A picadela de
a sua colega Lois Lane, enquanto trabalha secre- uma aranha concedeu-lhe poderes que o con-
tamente em defesa dos mais fracos. Adaptado verteram num herói capaz de detetar o perigo,
várias vezes para o grande ecrã e para a televisão, dotado de grande flexibilidade e capaz de lançar
na década de 1960 o escritor Umberto Eco com- peculiares teias de aranha que lhe permitem
parou o herói de Krypton com as grandes figuras agarrar-se ao teto e subir superfícies verticais,
mitológicas da Antiguidade. assim como armar armadilhas aos seus inimigos.
Batman – Nascido à sombra do Super-Homem, Lara Croft – Toby Gard (nasceu em 1972)
o homem morcego brotou da imaginação dos criou a famosa protagonista dos videojogos
norte-americanos Bob Kane e Bill Finger, em Tomb Raider como alternativa feminina a outro
1939. Por baixo do fato e da máscara desta grande mito contemporâneo: Indiana Jones.
personagem misteriosa, esconde-se o milionário Tal como ele, Lara Croft é arqueóloga e tem
e filantropo Bruce Wayne. Depois de presenciar, atrás de si uma complexa história familiar.
em criança, o assassinato dos pais, decide dire- Nasceu em 1968, no seio de uma família aris-
cionar os seus objetivos de vida para o combate tocrática do Reino Unido, tendo sobrevivido a
à criminalidade: para o conseguir, submete-se a um acidente de aviação nos Himalaias, o que a
um duro treino físico e mental. Depois de adotar tornou, desde logo, uma órfã cheia de dinheiro.
a figura de um morcego, refugia-se na cave da Consagrou a sua vida à aventura e à arqueolo-
mansão Wayne (a batcaverna), dentro da qual gia, o que levou ao aparecimento, em diferentes
desenha as máquinas que usa para combater os jogos da saga, de jazidas arqueológicas e objetos
inimigos. Ao contrário de outros super-heróis, míticos como a Lança do Destino ou o Amuleto
Batman não se move numa época concreta, mas de Hórus.

Interessante 81
GETTY
A loba capitolina
amamenta
Rómulo e Remo.

O sanguinário conde Vlad


terá empalado 80 mil pessoas
na fronteira entre Espanha e França, podemos encontrar segredo por um pastor, quando se tornaram adultos
os “Rochedos de Rolando”, uns penhascos que se diz e descobriram as suas origens decidiram fazer justiça,
serem as rochas que o herói atirou, ou a “Brecha de acabando por executar Amúlio e repor no trono o seu
Rolando”, um desfiladeiro rochoso na província espa- avô. Em seguida, despediram-se e partiram de Alba
nhola de Hueca que, conta a lenda, foi aberto por ele Longa, a fim de fundar uma nova cidade.
para que o seu exército pudesse continuar a marcha Foi nessa altura que surgiram as primeiras diver-
até terras francesas. gências entre os dois irmãos: Rómulo queria construir
Roma no monte Palatino, enquanto Remo queria que
RÓMULO E REMO a cidade se chamasse Remora e fosse erigida sobre
De acordo com a tradição, Ascânio, filho de Eneias, o monte Aventino. Para dirimir a disputa, decidiu-se
fundou a cidade de Alba Longa, tornando-se o seu pri- que quem observasse mais abutres tomaria a decisão
meiro rei. Quatro séculos depois, o seu descendente final. Remo viu seis, mas Rómulo dobrou o número,
Numitor foi destronado pelo seu irmão Amúlio, que pelo que foi encarregue de situar e traçar os limites da
liquidou todos os filhos varões de Numitor e conver- nova urbe. Durante a cerimónia de fundação, Rómulo
teu em vestal a sua única filha, Reia Sílvia. Marte, deus ordenou que ninguém passasse para lá dos limites
da guerra, seduziu-a, tendo nascido dessa união os demarcados, mas Remo desafiou a ordem e acabou
gémeos Rómulo e Remo. Amúlio mandou que assassi- ferido pelo irmão. Morreu pouco tempo depois e foi
nassem as crianças, mas o carrasco que tinha a missão sepultado, a mando do seu irmão, no lugar exato
de o fazer, incapaz de cometer tal crime, abandonou-os onde este tinha querido fundar Remora.
no rio Tibre dentro de uma cesta. Arrastados pela cor-
rente, chegaram a um dos cotovelos do rio, entre os TOMOE GOZEN
montes Palatino e Capitólio, onde acabaram alimen- A guerreira samurai Tomoe Gozen (1157?–1184?)
tados por uma loba chamada Luperca. Criados em viveu durante o século XII e tem um lugar importante

82 SUPER
Vlad III da Valáquia.

na história do Japão. Foi uma das poucas mulheres vencer como aliado das forças gregas, fez-se ao mar
que fizeram parte da elite militar do país nipónico. O para regressar ao seu reino. Na Odisseia de Homero,
Conto de Heike, um poema épico da literatura clássica o regresso a Ítaca é descrito como um enorme périplo
japonesa, descreve-a como “peculiarmente bonita, em que o herói sobrevive a incontáveis aventuras: cegou
de pele branca, cabelo longo e belas feições; também o ciclope Polifemo, conversou com o adivinho Tirésias,
era uma excelente arqueira e, como espadachim, uma aportou na ilha onde reinava a sedutora ninfa Calipso,
guerreira que valia por mil, pronta a enfrentar um esquivou-se às perigosas sereias que faziam naufra-
demónio ou um deus”. gar os navegadores e, finalmente, no país dos feácios,
Pensa-se que nasceu de uma família de samurais, consegue, graças à princesa Nausícaa, um navio que o
com os quais aprendeu a arte de manejar a naginata, leva a casa, reunindo-se com a sua esposa Penélope e
uma arma de haste semelhante à alabarda ocidental o seu filho Telémaco. Segundo algumas lendas, teria
mas formada por uma lâmina curva no extremo de um chegado à península Ibérica, onde teria fundado a
cabo de madeira, normalmente usada para o caso de cidade de Lisboa.
ser preciso proteger o lar. Lutou nas Guerras Genpei
(1180–1185), uma luta entre clãs durante a qual faleceu VLAD, O EMPALADOR
o seu marido. Uma vez viúva, abandonou as armas e Vlad III (1431–1476), também conhecido como Vlad
retirou-se para um mosteiro. Se bem que não haja pro- Drăculea (filho do dragão), foi príncipe da Valáquia
vas documentais que atestem a sua existência, a ver- (Roménia) entre 1456 e 1462, tendo servido de inspi-
dade é que as ações narradas em O Conto de Heike são ração ao escritor Bram Stoker quando este compôs a
consideradas reais, embora seja provável que algumas personagem de Drácula. Nasceu em Sighișoara (Tran-
informações, respeitantes às façanhas de Tomoe Gozen, silvânia) e morreu no decurso de uma batalha, nas ime-
tenham sido empoladas. diações de Bucareste. Violento, imprevisível e bata-
lhador, a sua crueldade é evidenciada pelo facto de,
ULISSES durante sete anos, o tempo que durou o seu governo,
Arquétipo do navegador heroico, Odisseu, rei de terem morrido empaladas cerca de 80 mil pessoas. A
Ítaca, é também conhecido como Ulisses, o nome lenda de Vlad III também conta que bebia o sangue
que recebeu nas fontes romanas que contam a sua das suas vítimas enquanto estas agonizavam.
história. Participou na Guerra de Troia e, depois de M.P.Q.H.

Interessante 83
ROCÍO ESPÍN
Fábulas pouco conhecidas

Histórias ocultas
Existe uma infinidade de povos
que conservam mitos ancestrais
como parte do seu acervo cultural.
Muitos deles estão fixados em lugares
tão recônditos do planeta que as suas
histórias ainda estão por descobrir.

84 SUPER
P
ara conhecer a essência dos mitos, a primeira Na Austrália, os aborígenes acreditam que, durante
coisa a ter em conta é que se trata de relatos o primeiro estágio em que o mundo foi criado, conhe-
dotados de uma natureza única, com a sua cido por eles como Época do Sonho, os seus ante-
própria idiossincrasia. Os seus protagonistas passados protagonizaram grandes feitos heroicos.
não são pessoas comuns, antes personagens extraor- Tratava-se de seres com traços humanos, embora não
dinárias que vivem num mundo repleto de magia, chegassem a sê-lo, com as suas virtudes e defeitos, e
muitas vezes povoado por deuses, onde os animais a capacidade de adotar a forma de diversos animais e,
podem falar e determinados locais assumem um signi- também, de morrer como eles.
ficado especial. Já dizia Aristóteles: “Mesmo o amante
do mito é, em certo sentido, filósofo, pois o mito é EXEMPLO DA NATUREZA HUMANA
composto por maravilhas.” Estes ancestrais criaram o mundo, estabeleceram as
São estas características que encontramos em qual- normas, os rituais culturais que os seus descendentes
quer relato fantástico de qualquer povo, incluindo os deveriam seguir e, mais importante, serviram-lhes de
que vivem nas zonas mais recônditas do planeta, da exemplo para entenderem a natureza humana. Neste
Finlândia a África, passando pela Oceania, com a sua sentido, um dos mitos mais conhecidos fala de dois
cultura maori e a Austrália aborígene. São estes, pre- espíritos, Ngurdyawok e Nawalabik, cujas vidas se
cisamente, os lugares onde nos centraremos, pene- assemelham às dos humanos, com prazeres e vícios
trando em mitologias que são tão desconhecidas idênticos aos nossos.
como apaixonantes. Ngurdyawok sentia-se atraído pelas duas esposas

Região ártica. A cultura inuit guarda uma rica matéria


mitológica que permitiu apaziguar as suas incógnitas
existenciais. O caribu (à esquerda) foi a última (e fundamental)
espécie surgida nos mitos esquimós da Criação.

Interessante 85
Muitos mitos
parecem estranhos
quando vistos
fora da cultura
em que nasceram
de Nawalabik. Um dia, enquanto ambas recolhiam mel
das colmeias, este último atacou o seu companheiro,
decapitando-o com um machado. Ao regressar à
povoação, contou às duas mulheres que o amigo fora
caçar sozinho e, dito isto, foi apanhar ouriços-do-mar.
No entanto, as mulheres acabaram por descobrir a
verdade pela boca de dois pássaros, tendo reunido os
seus familiares para capturar Nawalabik e castigá-lo.
Durante três dias, o assassino conseguiu esquivar-se
aos perseguidores, até que, uma noite, enquanto dor-
mia na sua própria cabana, o sogro matou-o com um
garrote. O cão de Nawalabik, após presenciar a cena,
manchou-se com o sangue do seu dono e fugiu para a
povoação onde vivia o irmão do defunto. Os guerreiros
aí existentes, todos eles parentes de Nawalabik, segui-
ram o cão até ao lugar onde se encontrava o seu corpo
e enterraram-no com grande solenidade. No ato
seguinte, marcharam em direção ao povoado dos
parentes de Ngurdyawok, surpreendendo-os enquanto
ZAJCSIK

festejavam com uma dança cerimonial. Agachados nas


sombras, esperaram que o baile terminasse e, quando
chegou o momento, vingaram a sua morte assassi-
nando todos os habitantes. lhe escapou, uma viagem eterna com a vã intenção de
cumprir o que lhe foi confiado pelo Criador.
TEMPO IMPOSSÍVEL DE MEDIR Esta história cumpre também outra característica
Tal como neste relato, a segunda característica dos dos mitos: explicar os fenómenos que ocorrem no
mitos é situarem num tempo impossível de medir mundo. A isto dá-se o nome de “finalidade etiológica”.
através de um relógio ou com um calendário. A fábula Porque existe a luz? O que provoca os eclipses? Como
mítica é anterior ao tempo, tal como o conhecemos, surgiram os seres humanos e os restantes animais? Os
e, nesse espaço, o prazer, o sofrimento, o ódio e a vin- mitos respondem a estas questões através da imagina-
gança podem durar uma verdadeira eternidade. São ção e não através da ciência.
histórias que não precisam de terminar bem; de facto,
muitas delas são tristes e têm finais infelizes. PESCAR OS ANIMAIS
Entre os komo, na Serra Leoa, é célebre a fábula Entre os inuits (nome comum que se dá aos diferentes
sobre a criação da noite. O relato descreve como o Cria- povos esquimós que habitam as regiões árticas da
dor providenciou durante o dia, aos seres humanos, América e da Gronelândia), um mito afirma que no
a luz do Sol, enquanto à noite lhes dava a claridade da começo dos tempos só havia um homem e uma mulher.
Lua, para evitar que estivessem no escuro e passassem Foi então que a mulher pediu ao deus do céu que lhes
frio. Todos os dias, o Criador pedia a um morcego que desse companheiros que pudessem conviver com eles
transportasse um cesto cheio de escuridão do Sol para no planeta. Este deus, chamado Kaila, disse-lhe que
a Lua, para que jamais tivesse um lugar onde assentar. abriria um buraco no céu, a partir do qual ela poderia
Porém, em determinada ocasião, o morcego, exausto, pescar. Cada vez que a mulher lançava o anzol, extraía
deixou cair a carga no solo. Os outros animais aprovei- um animal diferente. O último de todos foi um caribu,
taram o momento para abrir o cesto, deixando escapar animal sagrado para os inuit desde então, porque foi
a escuridão. Desde então, o morcego dorme durante o um presente do próprio Kaila para alimentar e vestir
dia e desperta à noite para procurar a escuridão que se os humanos.

86 SUPER
ALBUM
Cena da adaptação cinematográfica
de O Hobbit – Uma Viagem Inesperada,
de Peter Jackson, estreada em 2012.

Mitologia e cultura
P ara além da sua função tradicional, os
mitos serviram de fonte de inspiração
para muitos outros autores, os quais deixa-
ram atrás de si obras imortais. Muito pro-
vavelmente, o melhor exemplo é o de J.R.R.
Tolkien (1892–1973), o escritor e filólogo
britânico que se serviu de vários mitos proce-
dentes da Escandinávia e da cultura celta pa-
ra escrever O Hobbit e a posterior trilogia O
Morcego da Serra Leoa. Responsável
mítico por proporcionar a noite ao povo komo.
Senhor dos Anéis. Reza a história que, maravi-
lhado pela sonoridade do finlandês, idealizou
a partir dela a língua élfica, que tão importan-
te foi para a totalidade da sua obra. Outro au-
No outro extremo do planeta, os aborígenes austra- tor, o seu amigo C.S. Lewis (1898–1963), fez
lianos creem que o céu não é mais do que uma extensão o mesmo com a saga As Crónicas de Nárnia.
do mundo terreno. Para eles, as formações de maior Os norte-americanos Stan Lee (nascido em
tamanho, como a Via Láctea, são rios celestiais ou grandes 1922) e Jack Kirby (1917–1994) também se
canoas. Esta relação céu-terra é usada para explicar inspiraram na mitologia nórdica para criar a
alguns dos grandes mistérios da natureza. Em muitas personagem de banda desenhada Thor, um
culturas desta região, acredita-se que os espíritos dos dos grandes heróis da editora Marvel. No en-
bebés caíam dos céus e, se alguém morresse, a sua alma tanto, a saga que maior repercussão teve na
faria o caminho inverso, regressando ao céu primal. atualidade foi, sem dúvida, a que está ligada
Por vezes, os mitos parecem-nos estranhos, como ao rei Artur, desde livros de banda desenha-
acontece com a lenda dos inuit aqui contada, mas a da, como Camelot 3000, até às constantes
verdade é que eles são muito importantes para a cul- revisões pela indústria da Sétima Arte, que
tura a que pertencem. O seu valor transcende o passar serviram para dar a conhecer a sua mitologia
do tempo e das gerações. Mais: absorvem novos às novas gerações. Entre as adaptações mais
elementos e voltam a ser contados, renascendo em famosas, encontramos Merlim (uma minis-
novas versões. série de Steve Barron, estreada em 1998),
Lancelot, o Primeiro Cavaleiro (Jerry Zucker,
RIQUEZA FINLANDESA 1995) ou Excalibur (Jerry Zucker, 1995).
Uma das regiões mais próximas de nós, com uma Entretanto, é preciso não esquecer que toda
grande riqueza mitológica, ainda que desconhecida, a literatura greco-romana foi beber a uma
é a Finlândia. Com uma história que remonta há 7000 grande fonte, a Ilíada, e que metade do firma-
anos, os vários povos que compunham o atual país mento foi batizada com nomes mitológicos,
nórdico criaram as suas próprias versões e lendas assim como os doze signos do zodíaco.
sobre a origem do mundo e do ser humano.

Interessante 87
GETTY

Em África, as línguas escritas


só apareceram a partir do século VIII
Em 1835, o filólogo e lexicólogo finlandês Elias Lönn- Apesar de ter sido Lönnrot a compilar a história, a
rot publicou uma grande quantidade de mitos, canções maior parte dos mitos que nela surgem descritos care-
e poemas recolhidos durante sete anos, num périplo cem de autor. A razão? Porque remontam a épocas em
que o levou a viajar por todo o país. Fê-lo num livro a que a escrita ainda não existia, tornando quase impos-
que deu o título de Kalevala. Lönnrot não se limitou a sível o rastreio da sua origem ou obter a fonte original.
resgatar do esquecimento as lendas autóctones, tam-
bém conseguiu unificá-las juntando-lhes contribuições CONTADORES DE HISTÓRIAS
suas, dando nova vida à mitologia antiga. O seu desejo É por esta razão que os depositários destes saberes
consistia em criar um poema heroico semelhante relatam estas narrativas com as mesmas palavras que
à Ilíada de Homero, que pudesse ser cantado pelas escutaram na infância, outorgando ao mito um cará-
sucessivas gerações de finlandeses. Conseguiu-o gra- ter quase sagrado. Em determinadas culturas, inclusi-
ças ao protagonista da história, Väinämöinen, o maior vamente, criou-se a figura do contador de narrativas
dos sábios e dos magos, que, além de músico e guer- mitológicas, adestrado na arte da memorização literal.
reiro, tinha uma voz portentosa. Esta tradição estava fortemente enraizada em África,
Composto por 23 mil versos, a primeira parte de onde as línguas escritas só apareceram nos séculos VIII
Kalevala relata a criação da Terra por Väinämöinen a e IX, graças à expansão do Islão em direção ao interior
partir dos caos primevo, com as seguintes a dar conta do continente.
das proezas desta personagem. Basicamente, centrou- No continente africano, os relatos fantásticos que
-se na luta entre dois povos, os pohjola, do norte da se recolheram são classificados sob vários e diferentes
Finlândia, incluindo a Lapónia, e os haleva, do sul. cabeçalhos, para lhes dar coerência. Os seus mitos dão

88 SUPER
Antípodas. A conceção aborígene australiana
da natureza baseia-se na correspondência
terrestre com o céu. A Via Láctea, por exemplo,
é interpretada como um rio ou uma canoa.

conta, sobretudo, da história e da origem das diversas não é difícil encontrar obras de arte sagradas, gravuras
etnias, utilizando-se os antepassados como veículo de nas rochas, danças e canções relacionadas com eles.
união entre o passado e o presente. As palavras não tinham monopólio sobre estes tipos
Eram os membros mais importantes da comunidade de conhecimento; às vezes, elas apenas servem para
que estavam encarregues de transmitir oralmente tais lançar insinuações sobre a totalidade do mito que se
histórias, tanto no interior das casas como para toda a esconde atrás dos seus sons, deixando o resto para
aldeia, durante alguma celebração especial. Esta tarefa a dança e a música, permitindo deste modo que as
conferia-lhes um papel crucial na formação dos jovens, pessoas deem um passo em frente e experimentem
os quais se entretinham, por sua vez, a aprender a histó- as suas próprias crenças.
ria do seu povo, ao mesmo tempo que compreendiam Para as mulheres do povo oromo, fixado na região
como se deu a criação do universo e do mundo que centro-sul da Etiópia, no norte do Quénia e em algumas
os rodeava. partes da Somália, as canções acompanham, através
No que toca a este último aspeto, um dos relatos de cerimónias tradicionais, toda a sua vida. Canta-se no
míticos africanos mais conhecidos vem dos abaluyia, nascimento, quando abandonam a casa dos pais para
um povo do Quénia, para quem Wele é a deidade irem para a do esposo ou quando se tornam mães,
suprema, criadora do universo e, também, do dia e momento em que soam melodias de louvor e júbilo pela
da noite. Segundo se narra, quando Wele pôs o Sol maternidade, assim como de tristeza pelas estéreis.
e a Lua no céu, reparou que o primeiro empurrava a
segunda para longe de si, e, em resposta, a Lua atirava UM ESPAÇO REAL
o Sol para baixo. Para resolver a celeuma, Wele decre- Para um mito ser capaz de se repercutir com força,
tou que o Sol sairia de dia e que a Lua o faria durante tem de acontecer num espaço real, embora num
a noite, de modo que os astros jamais coincidiriam no tempo indeterminado. É o que sucede nas referências
mesmo tempo e espaço. narrativas: neste riacho nasceu uma princesa, naquele
Não se pense, todavia, que os mitos não conseguiram bosque morreu o maior herói do nosso povo, nesta
escapar ao controlo da palavra. Tanto assim foi que gruta está escondido um grande tesouro ou, igual-

Interessante 89
O objetivo
dos mitos era
transmitir uma
sabedoria difícil
de encontrar
mente, nesta terra que pisas ainda se podem ver as
pegadas de um gigante.
É o que sucede em territórios como o País Basco, onde
ainda hoje se acredita que o monte Amboto alberga
uma divindade feminina chamada Mari. O mesmo
sucede junto dos povos eslavos, em que a terra ainda
é considerada a casa de Mati Syra Zemlia, a Mãe Terra
PRISMA

Húmida, uma deusa a que sempre se prestou culto:


neste caso, acreditava-se que a terra estava grávida na
A conceção do mito primavera, estando proibido cavá-la com uma enxada
ou um arado até ao equinócio. Se estes preceitos fos-

O psiquiatra e psicólogo Carl Gustav


Jung (1875-1961, na foto) acreditava
que os mitos eram necessários para a saúde
sem respeitados, então Mati Syra Zemlia concederia
uma primavera abundante e fértil. Para não a enfure-
cer, os eslavos pronunciavam juramentos sagrados
da psique humana. No seu entender, não só enquanto seguravam nas mãos ou na boca uma porção
expressavam as verdades armazenadas no da Mãe Terra Húmida. Os votos matrimoniais eram
nosso subconsciente, como os seus protago- igualmente cumpridos com um bocado dessa terra
nistas, fossem eles heróis, deuses ou animais, sagrada colocado sobre a cabeça.
encarnavam aspetos tão humanos como a Outros dos poderes atribuídos a Mati Syra Zemlia era
criatividade, a inteligência, a alegria ou a dor. o da adivinhação, o que obrigava os camponeses que
Em sentido contrário, os monstros seriam re- quisessem conhecer o futuro a escavar a terra com
flexos dos medos da mente, dos seus fantas- cuidado. Em seguida, falavam para o buraco aberto,
mas. Qual a sua finalidade? Jung pensava que dando conta da sua pergunta e que dela esperavam
a verdadeiro objetivo do mito era mostrar uma resposta. O apego por esta deidade não desapa-
que existem forças alheias ao nosso controlo recia sequer na hora da morte, com os moribundos
a assolar-nos constantemente, sem que pos- a confessar-lhe os seus pecados caso não tivessem
samos fazer o que seja para o evitar, pouco encontrado antes um sacerdote. ALBUM

importando se as nossas histórias acabam


em tragédias ou em triunfos. Isto explicaria LEGITIMAÇÃO POLÍTICA
os eternos temas do mito: a sorte, o destino, Existem, também, outros mitos que se destinam a
a tragédia, o inevitável. Segundo esta teoria, legitimar determinado povo ou uma família dominante.
os seres humanos podem caminhar, embora Trata-se de uma mensagem poderosa, pois se o poder
não possam escolher o rumo dos seus pas- de um regente chega por via de um desejo divino ou
sos, dado que isso já está escrito por uma primevo, quem ousaria contradizer este direito obtido
mão oculta. Sucede que, com a aparição da no passado?
imprensa no século XV, desaparece a arte de No reino de Tonga, na Oceania, a tradição local dá
criar novos mitos e de fazer variar os que exis- conta da existência de Eitumatupua, um deus datado
tem, atirando para o esquecimento todos os do início dos tempos que costumava descer à terra.
que não foram impressos ou que não sobrevi- Numa das suas visitas, conheceu e fecundou Ilaheva,
veram na memória dos anciãos. Pelo menos, filha do nobre Seketoa, homem de elevada posição
foi o que aconteceu até aos dias de hoje, pois dentro do reino. Da união entre Eitumatupua e Ilaheva
as novas tecnologias permitiram a difusão nasceu Ahoeitu, o primeiro Tui tonga, herdeiro de um
de novas versões, ressuscitando as teorias de lugar divino no céu e de um outro secular na Terra.
Jung e a ligação à psique humana. Os povos que adotam estas tradições muitas vezes
também partilham outras características dos mitos:

90 SUPER
Väinämëinen. O grande
guerreiro, sábio, herói e mago
finlandês é o protagonista
do relato mítico Kalevala.

dar sentido à prática de determinados rituais e impor caçado com a ajuda de uma rede que o prendeu ao
condutas sociais, com castigos divinos para quem não solo, tendo-o obrigando a não girar tão rapidamente,
as cumpre ou recompensas para quem segue as dire- de tal modo que as colheitas puderam ser controladas
trizes fixadas pelos antepassados. É um modo perfeito pelos humanos e não pelos elementos. Foi igualmente
de introduzir os rapazes e as raparigas na vida adulta, ele quem ensinou os seus compatriotas a pescar com
já que são poucas as coisas do quotidiano que estão a um anzol oxidado mas mágico, tendo-o usado para
salvo da influência do mito. retirar do fundo do mar as ilhas e os arquipélagos poli-
Foi desta maneira que o mito conseguiu perdurar nésios de Tonga, Fiji e Samoa.
geração atrás de geração, estimulando a imaginação Era esta a verdadeira finalidade do mito: propor-
dos jovens que desejavam emular os seus heróis e cionar aos jovens e aos anciãos, às mulheres e aos
enfrentar grandes e imponentes inimigos. Heróis homens uma sabedoria difícil de encontrar por outros
como Maui, o homem que trouxe o fogo aos povos da caminhos, ao mesmo tempo que ensinavam de onde
Oceania graças a um pedaço de carvão aceso que rou- se vinha, quem eram os seus antepassados e qual era
bou a um ancião, envolvendo-o depois, com cuidado, o seu lugar no mundo.
numa folha. O mesmo Maui enfrentou o Sol, tendo-o J.R.

Interessante 91
Silêncio, câmara, ação!

Os mitos no cinema
Através da literatura, transmitiram-se os mitos
que serviram, e ainda hoje servem, de matéria-prima
para a Sétima Arte. Deuses e heróis foram transportados
para o grande ecrã na forma de valorosos defensores
da nossa sociedade.

92 SUPER
A força das ideias imortais
Por detrás das grandes sagas
cinematográficas, perpassa muitas
vezes um fundo mitológico antigo.

Interessante 93
Alguns filmes
combinam
figuras de várias
mitologias

S
e não fosse Perseu, o Kraken teria devo-
rado Andrómeda e não teria sobrado pedra
sobre pedra da cidade de Argos. O semideus,
que chegou mesmo a tempo voando sobre
Pégaso, o cavalo alado, com a cabeça da Medusa num
saco, conseguiu converter em pedra o monstro e salvar
a população. No fim, para não variar, tudo acaba bem.
É um filme, pelo que se perdoa o desenlace. Nas histó-
rias originais, Perseu e o Kraken dificilmente se teriam
encontrado, já que um é um semideus da mitologia
grega e o outro um animal das lendas nórdicas (pos-
sivelmente inspirado pelo avistamento de lulas gigan-
tes), que só recebeu o seu nome atual no século XVIII.
Isto é cinema, e a Sétima Arte nunca mostrou grande
respeito ao recriar a história, quanto mais as fontes
clássicas da mitologia! Heróis, deuses e semideuses têm
sido despojados dos aspetos mais negros do seu pas-
sado e da sua personalidade, de forma a aparecerem
perante os espetadores como paladinos sem mácula.
Hércules não matou a sua esposa e os seus filhos, e Odin
não é, ao seu estilo, tão trapaceiro como Loki (que,
aliás, não é meio-irmão de Thor).
As possibilidades oferecidas pelos efeitos especiais
são uma tentação demasiado forte quando é preciso
criar ameaças muito mais terríveis do que as que se
encontram nas crónicas. O confronto entre Perseu e o Choque em cadeia. Em 2010, o mito de
Kraken aconteceu nas duas versões cinematográficas Perseu foi revisitado em Confronto de Titãs,
ALBUM

com Sam Worthington no papel do semideus.


de Confronto de Titãs, realizadas em 1981 e 2010. A apa-
rição das duas personagens mitológicas deveu-se, no
primeiro filme, ao desejo dos produtores de introduzir
todos os monstros presentes nas fontes consultadas, heróis de carne e osso da história a acabarem por ser
desde que o orçamento o permitisse. substituídos pelos da mitologia.
O principal responsável foi Héracles, ou Hércules,
INSPIRADOS NA ANTIGUIDADE o nome latino pelo qual é mais conhecido nos ecrãs.
Quanto às civilizações, o cardápio tem-se revelado Em 1958, a adaptação dirigida por Pietro Francisci,
pequeno: Grécia e o mito arturiano representam a com o culturista Steve Reeves no papel principal, teve
maior parte do bolo. A mitologia grega começou a grande êxito em Itália e a nível internacional, promo-
aparecer no grande ecrã na época do cinema mudo vendo a sua continuação e um sem-fim de imitações
italiano, em produções nas quais encontramos, pela nos anos subsequentes. O problema é que cada uma
primeira vez, personagens como Maciste e Hércules, era mais absurda do que a anterior (num dos filmes,
lugares como Troia e viagens como a da Odisseia. aparecia no mundo dos maias, noutro enfrentava
Estas transposições alcançaram o seu apogeu nas Sansão, misturando, sem dar grandes satisfações, a
décadas de 1950 e 1960, com o auge do chamado mitologia grega com a bíblica), pese embora tenham
peplum, um subgénero que engloba todas as produ- dado emprego, enquanto protagonistas, a muitos ex-
ções que têm como pano de fundo o mundo antigo. -campeões do músculo.
As películas protagonizadas por César, Espártaco e Antes de Héracles, as viagens mitológicas também
Cleópatra não tardaram a juntar-se às que iam buscar tinham chamado a atenção da indústria cinematográ-
as personagens principais ao mundo helénico, com os fica, começando com a que será a mais conhecida de

94 SUPER
todas, a Odisseia de Homero, obra adaptada por Mario BOBINAS CHEIAS DE MITOS
Camerini em 1954 com o título de Ulisses. O filme con- Em 1963, dá-se o salto para o reino da pura fantasia,
seguiu resistir muito bem ao passar do tempo, muito com Os Argonautas, dirigido por Don Chaffey. O argu-
graças aos cenários naturais dos mares gregos, onde, mento segue com relativa fidelidade A Argonáutica de
em parte, foram feitas as filmagens, e ao forte elenco Apolónio de Rodes, que relata a busca do tosão (velo)
encabeçado pelos atores Kirk Douglas, Silvana Man- de ouro, embora não passasse de uma desculpa para
gano e Anthony Quinn. encher o ecrã, fotograma a fotograma, com as cria-
O mito de Orfeu e Eurídice foi outra produção que turas animadas que o mestre dos efeitos especiais
conheceu duas versões muito interessantes: a pri- Ray Harryhausen criara. Curiosamente, esta película
meira foi realizada em 1950 por Jean Cocteau, com é recordada pelas cenas que maior liberdade têm em
a ação transportada para a cidade de Paris daquela relação à mitologia, como o despertar do gigante de
época, embora mantendo o espírito da história original bronze Talos – muito diferente da figura mitológica –
e preenchendo-a com a visão pessoal do realizador ou a luta de espadas contra os esqueletos que nasce-
e a sua forma única de filmar; a segunda, intitulada ram a partir dos dentes da Hidra.
Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, levou a história Em 1981, chegou ao público a primeira versão de
para o Brasil contemporâneo, tendo obtido o Oscar Confronto de Titãs, em que Harryhausen deu vida a uma
de Melhor Filme Estrangeiro e popularizado por todo nova linhagem de monstros destinados a recriar (mais
o mundo a bossa nova. ou menos) o mito de Perseu e Andrómeda. O remake

Interessante 95
Nos últimos anos,
surgiram
adaptações
de adaptações
realizado em 2010 incorporou Hades e tornou-o o vilão
da história, mas persistiu na ideia de que o Kraken
devia aparecer, desta vez recriado como um leviatã
de proporções olímpicas, derrotado por Perseu numa
sequência de cenas que recriam a estética dos video-
jogos, e na qual não faltou um esquadrão de harpias
para animar a luta.
O outro mito preferido dos cineastas, o do rei Artur
e dos cavaleiros da Távola Redonda, foi apresentado
em todos os formatos, do clássico filme de aventuras
(Os Cavaleiros da Távola Redonda, Richard Thorpe,
1953) ao musical (Camelot, Joshua Logan, 1967), pas-
sando pela adaptação da Disney (A Espada Era a Lei,
1963), incluindo algumas visões mais pessoais que pro-
duziram resultados talvez mais interessantes, como o
sanguinolento Lancelote do Lago (1974), de Robert
Bresson, ou a fascinante combinação de misticismo e
carnalidade lograda por John Boorman, em Excalibur
(1981). Mais recentemente, tivemos acesso à inevitável
versão pós-moderna, realizada por Antoine Fuqua, em
2004. O filme, Rei Artur, dá uso às escassas referên-
cias históricas sobre a sua figura, situando-o como um
general bretão dos últimos anos do Império Romano.
Um processo de desmistificação similar ao de Hércules
(2014), protagonizada por Dwayne Johnson.

VARIAÇÕES DO MESMO MITO


Em muitas das películas sobre Artur, surge o Santo
Graal como o objetivo a alcançar por parte dos cava-
leiros. Contudo, o simbolismo deste objeto, ele pró-
prio um mito perdido da Cristandade, é demasiado Cruzada. Steven Spielberg aventurou-se
no mundo mitológico com o seu Indiana
forte para se ficar por aqui. Isto explica por que
ALBUM

Jones (1989) em busca do Santo Graal.


apareceu em histórias muito diferentes do que se
poderia imaginar para uma demanda santa, como em
Indiana Jones e a Grande Cruzada (Steven Spielberg,
1989), terceiro filme da saga. BASEADO NO FANTÁSTICO
O Código Da Vinci (Ron Howard, 2006) já faz refe- Nova Iorque foi igualmente o cenário de Q – A Ser-
rência a uma outra variante do mito, a que interpreta pente Voadora (1982), de Larry Cohen, uma das escassas
palavras como “Santo Graal”/“sangue real” como uma adaptações da mitologia asteca, com o deus Quetzal-
alusão a uma suposta descendência de Jesus Cristo, cóatl convertido num monstro devorador que tem o seu
tema que foi abordado por estudiosos e romancistas ninho no topo do edifício Chrysler. Outra adaptação
de best-sellers como Dan Brown. muito particular e que não pode ser esquecida é a da
Esta breve lista não ficaria completa sem a visão extre- Odisseia, realizada pelos irmãos Coen em Irmão, Onde
mamente peculiar que Terry Gilliam deu sobre o Graal, Estás? (2000), que converteu a viagem de Ulisses num
por via de um dos seus maiores êxitos: O Rei Pescador périplo pelos Estados Unidos durante a Grande Depressão.
(1991). Aqui, a busca é feita na Nova Iorque dos anos Recentemente, o cinema fixou a sua atenção noutros
90, com o enredo invadido por uma atmosfera de loucura mitos, embora esteja mais atraído pelas possibilidades
que, mesmo assim, não abafa a magia da história mítica. de entretenimento que podem ser extraídas dos por-

96 SUPER
menores mais básicos das histórias e das personagens, banda desenhada Marvel Comics fez nos anos 60,
tudo complementado por mundos e cenários criados quando adaptou a história para os quadradinhos.
em computador.
Foi assim que o poema épico Beowulf, nunca antes GUERRA DE CARTAZES
transposto para a Sétima Arte, conheceu várias adap- Desde então, o esquema básico tem vindo a ser
tações cinematográficas nos últimos 15 anos. A de repetido continuamente, com todo o tipo de variações
Robert Zemeckis (2007) foi, talvez, a que mais se des- que foram permitidas aos guionistas: Thor e Odin,
tacou. Quatro anos depois, pudemos ver pela primeira pai e filho, são bons e nobres, enquanto Loki, o meio-
vez no cinema o deus viking Thor, numa realização a -irmão malvado, se quer apoderar de Asgard. Nas fon-
cargo de Kenneth Branagh. O problema está em que tes originais, Odin chega a ser tão mau como Loki; este
as personagens interpretadas por Chris Hemsworth último, por sua vez, é bem menos sanguinário do que
(Thor) e Tom Hiddleston (Loki) não se baseiam nas na lenda, embora tenha uma tendência para meter os
lendas nórdicas, mas na adaptação que a editora de outros em apuros.

Interessante 97
A trama da saga de Harry Potter segue
Herdeiros da lógica o esquema da “viagem do herói”.

A mitologia não precisa de Hércules ou Zeus


para estar presente no cinema moderno. Em
O Herói de Mil Faces (1949), uma obra clássica da
próprio George Lucas reconheceu, em várias oca-
siões, que Campbell foi uma das grandes influên-
cias ao criar o seu universo galáctico. Não é de es-
literatura, Joseph Camp­bell estabeleceu uma fór- tranhar que Thor seja conhecido hoje em dia pela
mula a que deu o nome de “a viagem do herói”, sua versão de super-herói (Hércules também che-
um esquema básico de personagens e situações gou a ser reciclado como personagem da Marvel),
que, com diferentes nuances, pode ser encontra- pois estas personagens, com o Super-Homem à
da em todas as sagas heroicas, da Antiguidade cabeça, tomaram o lugar dos mitos da Antiguida-
aos nossos dias: protagonistas órfãos, de pais de. Godzilla e os dinossauros de Parque Jurássico
desconhecidos, ignorantes de que guardam no foram, por exemplo, os substitutos dos monstros
seu interior um poder único que os levará a con- que surgem nas lendas. Uma das últimas sagas
seguir façanhas impossíveis. Contarão para a sua cinematográficas para o público infantil, Percy
demanda com um companheiro ou ajudante que Jackson, dá um passo à frente e transforma as suas
estará sempre a seu lado, um mentor, substitutivo personagens em versões adolescentes, do século
da figura paterna, que os guiará com a sua sabe- XXI, dos deuses gregos. Seja na forma de super-
doria e um interesse romântico. Estes elementos -heróis, ou escondidos com outros nomes, parece
(e outros) estão presentes em sagas como as de que a Sétima Arte continuará a dar-nos mitologia
Harry Potter, O Senhor dos Anéis ou Star Wars. O por muito tempo.

Apesar de todas as alterações,


os mitos mantêm-se imortais
Indo pela mesmo caminho, é um erro pensar que mortais. Mais: a duração da guerra é encurtada de
300 (Zack Snyder, 2006) pretende ser uma recriação da anos para semanas, e personagens que morrem no
mítica batalha das Termópilas, quando o próprio reali- livro sobrevivem na versão para cinema, e vice-versa.
zador declarou abertamente que o que estava a levar ao Parece que a Sétima Arte está fadada, quando recorre
grande ecrã era o comic de Frank Miller: esta versão aos mitos, a pensar mais no entretenimento e nos
em banda desenhada, por si só, adotou de uma forma elementos capazes de hipnotizar e cativar o público,
bastante livre o relato original, convertendo os espar- mas não há razões para escândalo: foi precisamente
tanos numa mescla de super-homens com fuzileiros esse um dos principais papéis dos mitos e das lendas
norte-americanos. durante séculos. Primeiro foi a palavra falada, em
A representação de batalhas míticas no cinema cos- seguida o papel, e agora as salas de cinema e o DVD. O
tuma estar sujeita a importantes metamorfoses. Por importante é que os mitos, com todas as suas altera-
exemplo, Troia (Wolfgang Petersen, 2004) prescinde ções, sigam caminho, mantendo-se imortais no ecrã e
dos deuses que, na Ilíada de Homero, a obra em que na memória coletiva.
se baseia o filme, têm um papel tão central como os V.F.B.

98 SUPER
AGORA MAIS FÁCIL
ASSINE A www.assinerevistas.com

✆ 21 415 45 50
LINHA DIRETA ASSINANTES

PEÇA A SUA REFERÊNCIA

2ª A 6ª FEIRA, 9H30-13H00 E 14H30-18H00


[Fax] 21 415 45 01
[E-mail] assinaturas@motorpress.pt

* Valor por exemplar na assinatura por 2 anos. Promoção válida até à publicação da próxima edição.

Sim, quero assinar a Super Interessante durante: 1 ano 25% desconto por 31,50€ (ex. 2,63€)

2 anos 35% desconto por 54,60€ (ex. 2,28€)
(oferta e preços válidos apenas para Portugal)
Favor preencher com MAIÚSCULAS
Nome Morada
Localidade Código Postal -
Telefone e-mail Profissão
Data de Nascimento - - Já foi assinante desta revista? Sim Não Se sim, indique o nº NIF (OBRIGATÓRIO)

MODO DE PAGAMENTO
Cartão de Crédito nº válido até - CVV Indique aqui os 3 algarismos à direita da assinatura no verso do seu cartão
NÃO ACEITAMOS CARTÕES VISA ELECTRON

Cheque nº no valor de , €, do Banco à ordem de G+J Portugal


Remessa Livre 501 - E.C. Algés - 1496-901 Algés

Para autorização de Débito Direto SEPA entre em contacto através do email assinaturas@motorpress.pt ou através do telefone 214 154 550

Valor das assinaturas para residentes fora de Portugal (inclui 20% desconto) 1 Ano 12 Edições - Europa - 54,66€ - Resto do Mundo 67,74€
Ao aderir a esta promoção compromete-se a manter em vigor a assinatura até ao final da mesma. A assinatura não inclui os brindes de capa ou produtos vendidos juntamente com a edição da revista.
Os dados recolhidos são objeto de tratamento informatizado e destinam-se à gestão do seu pedido. Ao seu titular é garantido o direito de acesso, retificação, alteração ou eliminação sempre que para isso contacte por escrito o responsável pelo ficheiro da MPL.
Caso não pretenda receber outras propostas comerciais assinale aqui Caso se oponha à cedência dos seus dados a entidades parceiras da Motorpress Lisboa, por favor assinale aqui

EH09
Interessante 31
VO PARA S
SÓ DORE
25
ANOS D
DO

NO CIONA HUBBLE

OLEC
C

REVELADOS OS SEGREDOS
DO UNIVERSO
NAS BANCAS A 18 DE DEZEMBRO
32 SUPER

Você também pode gostar