Explorar E-books
Categorias
Explorar Audiolivros
Categorias
Explorar Revistas
Categorias
Explorar Documentos
Categorias
Ética da virtude
Títulos
Hermenêutica
Lawrence Schmidt
Fenomenologia
David Cerbone
Utilitarismo
Tim Mulgan
Existencialismo
Jack Reynolds
Naturalismo
Jack Ritchie
Pós-estruturalismo
James Williams
Racionalismo
Charlie Huenemann
Idealismo alemão
Will Dudley
Ética da virtude
Stan van Hooft
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
12-11593 CDD-179.9
Diretor editorial
Frei Antônio Moser
Editores
Aline dos Santos Carneiro
José Maria da Silva
Lídio Peretti
Marilac Loraine Oleniki
Secretário executivo
João Batista Kreuch
Introdução
Virtude
Os propósitos da teoria moral
Estrutura do livro
2 A ética de Aristóteles
As metas da vida
Virtudes de caráter
O prazer como um problema ético
Sabedoria e razão prática
A natureza da felicidade
Sumário e conclusão
Virtude
A palavra “virtude” provém do Latim virtus, que significa “excelência”,
“capacidade” ou “habilidade”. Nesse sentido, ter virtude é ter o poder ou a
habilidade de realizar alguma coisa. Mais comumente, no inglês moderno, a
palavra veio a referir-se a uma disposição ou a um padrão no caráter ou na
personalidade de alguém que o leva a agir moralmente. Refere-se a traços de
caráter que consideramos admiráveis. Exemplos de virtude incluem a
generosidade, a honestidade, a coragem, a paciência, o bom humor e a
amizade.
Diferentes sociedades enfatizam diferentes virtudes. A nossa sociedade
expressa admiração pelos traços de caráter que conduzem ao sucesso em
atividades empreendedoras. Consideramos virtuosa a disposição para assumir
riscos e competir vigorosamente com os outros nos negócios. Também
louvamos esses traços no esporte. Em outros contextos, e mais
frequentemente entre as mulheres, louvamos virtudes como a afetuosidade e
o cuidado na criação dos filhos. Algumas religiões enfatizam a humildade e a
mansidão, ao passo que, se você estivesse no exército, seria instado a mostrar
coragem e assertividade, assim como obediência (se tanto não for
contraditório). Além disso, aquilo que as pessoas consideram virtuoso muda
ao longo do tempo. As virtudes que procuramos em nossos jovens hoje
diferem daquelas que foram buscadas em épocas anteriores (serem “vistos,
mas não ouvidos”, por exemplo).
Mas esses pontos parecem levar a algumas conclusões estranhas. Eles
sugerem que as virtudes são relativas aos contextos sociais e culturais. Entre
si, ladrões de banco provavelmente admiram a valentia ostentada durante os
assaltos a bancos e, portanto, pareceria que, embora a atividade seja imoral,
teríamos que aceitar que ladrões de banco poderiam descrever-se uns aos
outros como possuindo a virtude da valentia. Pode parecer que os termos que
descrevem virtudes são relativos aos grupos sociais nos quais são usados, e
não a padrões morais absolutos. Esses tipos de problemas conduzem-nos das
nossas intuições correntes acerca do que é certo e errado, e o que é virtuoso
ou não, em direção a uma análise racional dessas intuições. Isso quer dizer
que eles introduzem-nos à teoria moral.
Estrutura do livro
A ética da virtude emergiu nas poucas décadas passadas como uma
importante vertente dentro da teoria moral. Por conseguinte, deve cumprir as
quatro tarefas da teoria moral listadas acima. É a minha opinião que a ética da
virtude cumpre este desafio tão bem quanto, se não ainda melhor, a ética do
dever. No entanto, este pequeno livro não pode comprometer-se a justificar
esta afirmação ousada. Ele deve ter o objetivo mais modesto de explicar o que
é a ética da virtude e como ela aborda as quatro tarefas que eu descrevi.
O capítulo 1 detalhará uma série de distinções entre a ética da virtude e a
ética do dever. Este capítulo encerra grande parte da recente discussão sobre a
ética das virtudes, inaugurada por escritores como Elizabeth Anscombe,
Philippa Foot, Alasdair MacIntyre, Michael Stocker e Bernard Williams, e
explorada por autores como Rosalind Hursthouse, Christine Swanton e
Michael Slote. É neste capítulo que sugiro ser ética da virtude superior a uma
ética do dever, embora somente nos poucos capítulos seguintes eu possa
argumentar em favor desta reivindicação. Embora nem todos os eticistas da
virtude sejam inspirados por Aristóteles, ele é importante para o pensamento
da maioria deles. Sendo assim, o capítulo 2 detalha a teoria de Aristóteles. No
capítulo 3 eu mostro como David Hume contribuiu com um novo enfoque
sobre as emoções para a psicologia moral e a ética da virtude, discuto
Nietzsche a fim de explicar a importância existencial que a virtude adquiriu
com a sua ênfase na autoafirmação e, em seguida, mostro como essa
ostentação da autoafirmação torna difícil teorizar a preocupação com os
outros. Continuo explicando como a teoria da ética de Emmanuel Lévinas
implica que tal autoafirmação não pode acontecer sem a preocupação com as
outras pessoas. A noção de virtude requer uma descrição da existência
humana na qual a nossa responsabilidade para com os outros possa ser vista
como sendo mais do que um acréscimo moralmente exigido para as nossas
vidas. Ela é a base mesma da nossa identidade. Recorro ao pensamento de
Paul Ricoeur no capítulo 4 para mostrar como a ética da virtude pode levar
em conta as demandas da justiça e da moralidade objetivamente concebida.
Essa é uma tarefa que os críticos da ética da virtude alegaram estar além de
sua capacidade, pois parece depender de motivações virtuosas contingentes
no agente.
Se os capítulos 2-4 fornecem as bases teóricas para uma ética da virtude, os
capítulos seguintes fornecem algumas aplicações. Há pouco propósito em um
livro sobre ética se ele não mostrar como ela pode ser aplicada. No capítulo 5
descrevo algumas virtudes que considero importantes em nossos dias, e no
capítulo 6 ilustro como a ética das virtudes pode ser relevante para problemas
em ética aplicada. Esta última é outra tarefa que os críticos alegaram ser
difícil, com base em que os princípios morais que as pessoas devem seguir
precisam ser estabelecidos de forma objetiva. Este contraste entre a suposta
objetividade das normas postuladas pela ética do dever e a base motivacional
subjetiva da ética da virtude é apenas um dos muitos contrastes entre as duas
tradições que precisaremos explorar nos capítulos a seguir.
1
Distinguindo a ética da virtude da ética
do dever
Do que trata a I Define a esfera moral Estende-se para além da esfera moral
moralidade
II Presume a centralidade do Aceita que o sujeito é eticamente importante
altruísmo
III Pergunta “O que devo fazer?” Pergunta “O que devo ser?” ou “Como eu
devo viver?”
A natureza das normas I “Necessidade prática” vista “Necessidade prática” vista como expressão
como obrigação e obediência do caráter e resposta a valores
VI Imparcial Parcial
II Fundacionalismo Hermenêutica
III Universal Relativa à cultura
II
Grande parte da ética do dever incide sobre as nossas obrigações para com
os outros. O que a maioria dos eticistas do dever pressupõe é que o objetivo
da moralidade é ordenar os nossos relacionamentos com os outros e com a
sociedade. Eles argumentariam que a moralidade tem a ver com as nossas
obrigações para com as outras pessoas, e não com a nossa preocupação
conosco mesmos ou com os nossos próprios interesses. Para tais teóricos
essas preocupações vêm sob o título de “prudência”, enquanto a moralidade é
a estrutura normativa que conferimos ao nosso altruísmo. É errado mentir,
roubar e assassinar por causa dos danos que isto causa aos outros, e é
obrigatório ajudar aos outros e aderir às normas da justiça por causa do
beneficio que isso lhes trará. Embora alguns teóricos morais falem dos
deveres que temos para conosco mesmos – por exemplo, o dever de
desenvolver os nossos talentos – isto é visto por muitos teóricos como sendo
uma categoria problemática de deveres, a menos que possam ser
demonstrados como tendo valor para outras pessoas além do indivíduo em
questão.
Em contrapartida, a ética da virtude abrange o eu do agente entre as suas
preocupações. O especialista na ética da virtude não precisa explicar por que é
virtuoso desenvolver os nossos talentos demonstrando que fazê-lo traria
benefícios aos outros, por exemplo. Admiramos as pessoas que buscam a
excelência por si mesma, quer isso traga benefícios aos outros ou não. As
realizações de grandes artistas e heróis do esporte são admiradas e descritas
com termos de virtudes tais como “perseverança”, “tenacidade” e “coragem”,
mesmo que não possuam direta significância moral em ocasionar um
benefício facilmente identificável para outras pessoas. De fato, tem-se
sugerido que o objetivo de ser virtuoso não é tanto o de ajudar-nos a
satisfazermos as nossas obrigações morais em relação aos outros – embora
eles possam de fato obter este benefício –, mas o de assegurarmos que nós
mesmos floresçamos de diversas maneiras. Florescer neste contexto significa
mais do que apenas ter sucesso em nossos projetos e realizar nossas
aspirações. Também significa viver de acordo com os padrões de excelência
que nós mesmos estabelecemos e que nossas comunidades ou sociedades nos
confiam. Trata-se de estar em paz conosco mesmos e em harmonia com
nossas comunidades. É estarmos integrados, no sentido de evitarmos um
conflito interno entre nossos sentimentos, desejos e modos de ser. É ter uma
ideia do que nossas vidas significam, e do que é importante para nós e para
aqueles com os quais nos importamos. Discorrerei sobre estes ideais de
excelência humana em capítulos posteriores. Para o momento, o ponto a
salientar é que o florescimento do eu está entre os objetivos da ética da
virtude de uma forma que a ética do dever, com seu foco nos outros,
consideraria desconfortável. Portanto, para um especialista na ética da
virtude, estará entre os objetivos da teoria moral descrever em que o
florescimento humano consiste, e como as virtudes nos ajudam a alcançá-lo.
III
A questão central para uma ética do dever é: O que devo fazer? Quando um
agente moral, tal como concebido por uma ética do dever, encontra-se em
uma situação moralmente complexa, ele vai perguntar-se o que é do seu dever
fazer. Ele considerará quais normas morais ou princípios aplicam-se à
situação e procurará aplicá-las. A ética da virtude, ao contrário, irá considerar
que tipo de pessoa o agente deve ser e que tipo de vida deve levar. Embora
esta questão ainda seja “prática”, no sentido de abordar o que o agente deve
fazer em determinada situação, ela não a responderá consultando, sobretudo,
princípios, normas ou políticas que se apliquem a tais situações em geral. Ao
contrário, procurará respondê-la considerando o próprio caráter do agente,
ao lado de outras características moralmente marcantes da situação. Agentes
virtuosos buscarão expressar quem eles são, e desenvolver a si mesmos
naquilo que são e no que fazem. Se for uma questão de dizer a verdade
quando é difícil fazê-lo, o agente não considerará a ação objetivamente, sob o
princípio geral de que qualquer pessoa, em qualquer situação, deve dizer a
verdade, mas considerará, ao contrário, aquilo que uma pessoa honesta faria,
e será motivado a fazê-lo na medida em que quer ser uma pessoa honesta.
Preciso colocar este ponto cuidadosamente. Não gostaria de sugerir que
uma pessoa honesta diz a verdade por ser uma pessoa honesta. Isso seria uma
motivação inapropriadamente autocentrada. Não agimos virtuosamente para
sermos virtuosos. Ao contrário, uma pessoa honesta diz a verdade porque
ama a verdade. Ela reconhece o valor da verdade. Diz a verdade pela verdade.
É o seu amor à verdade – ou o seu respeito pela verdade, se “amor” for um
termo emocional demais – que a move a fazer a coisa mais difícil e virtuosa, e
não o seu desejo de ser honesta. Ela de fato expressa o seu desejo de ser
honesta dizendo a verdade, e desenvolve-se a si mesma como uma pessoa
honesta ao fazê-lo, mas a sua razão ou motivação para fazê-lo é que ela
considera que a verdade é importante em si mesma. Portanto, a distinção que
alguns eticistas da virtude fazem entre a ética do dever e a ética da virtude
dizendo que a primeira pergunta “O que devo fazer?” e a última pergunta “O
que devo ser?” podem ser um tanto quanto enganadoras. Em uma situação
prática difícil alguém é sempre levado a perguntar o que se deve fazer. É justo
que as pessoas virtuosas expressem quem elas são ao agirem, e, agindo,
desenvolvam quem elas são. Uma pessoa honesta expressa e desenvolve a si
mesma como honesta quando age em prol da verdade. Pode-se imaginar que
uma pessoa que não esteja totalmente formada na virtude, e esteja tentando
tornar-se virtuosa, possa decidir dizer a verdade de modo a se tornar honesta,
mas uma pessoa virtuosa relativamente madura simplesmente ama a verdade
e age por causa dela.
Terminologia moral
I
Uma ética do dever usa termos “deônticos” (do termo grego antigo que
significa “necessidade”), tais como “certo”, “errado”, “obrigatório” ou
“proibido”. Esses termos referem-se ao que é “necessário” fazer, o que
“devemos” fazer, ou o que “temos que” fazer. Eles descrevem as nossas
obrigações e deveres. Além disso, são usados para se emitir um juízo sumário,
após uma avaliação minuciosa, acerca do status moral de uma ação ou de um
tipo de ação. Por conseguinte, a ética do dever está mais preocupada com a
correção ou a incorreção das ações, tanto no caso individual, em que pergunta
se uma ação que um agente está considerando realizar ou realizou no passado
está certa ou errada, quanto no caso de normas gerais, em que pergunta se
ações tais como a obtenção de abortos, ou práticas tais como a criação de
animais em escala industrial, são certas ou erradas. Em contrapartida, a ética
da virtude usa termos “aretaicos” (do termo grego que significa “força” ou
“excelência”) como “virtuoso”, “bom”, “admirável” e, mais especificamente,
“honesto”, “corajoso” ou “modesto”. Esses termos também emitem um juízo
acerca das ações, mas, ao mesmo tempo, fazem referência ao estado interno
do agente.
II
A ética do dever está eminentemente preocupada com a ação, enquanto a
ética da virtude enfoca um tanto mais o agente. Embora use termos aretaicos
para descrever ações, a ética da virtude está mais interessada na condição
moral do agente do que em saber se a sua ação está certa ou errada. Ela enfoca
o caráter do agente e as virtudes que constituem esse caráter. As ações do
agente são vistas como expressões desse caráter, não sendo, portanto, o
principal objeto de atenção. Mesmo quando um eticista da virtude diz, por
exemplo, que uma determinada ação foi corajosa, esse juízo é essencialmente
sobre o estado da virtude do agente. Tal juízo não diz apenas que a ação
pareceu ser corajosa, mas que o agente foi corajoso em realizá-la. A noção de
“caráter” é, portanto, central para a ética da virtude.
Isso levanta a questão acerca do que queremos dizer com o termo “caráter”.
Compare o termo psicológico “personalidade” ou a maneira como os
criadores de cães falam da “natureza” amigável que algumas raças possuem.
Esses termos resumem o comportamento das pessoas ou dos cães aos quais se
referem. Nada há para se observar além desse comportamento. Se o
comportamento se adéqua a um padrão consistente, é descrito como
demonstrando certo tipo de caráter, personalidade ou natureza: diz-se de
alguém que sorri muito e lida facilmente com as pessoas que tem uma
personalidade extrovertida, diz-se de um cão que é bom com crianças
pequenas que tem uma natureza dócil, e uma pessoa que sempre diz a
verdade é descrita como sendo de caráter honesto. O que está sendo descrito
aqui parece ser o comportamento.
No entanto, parece haver mais aqui do que apenas uma descrição sumária
de comportamento tomada por si mesma. Como é evidente a partir do caso
da criação de cães, personalidades podem ser moldadas por causas, e podem
ter efeitos causais no comportamento. Que uma natureza dócil possa ser
criada demonstra que é genética. Embora só possamos saber o que tal
natureza seja pela observação do comportamento que ela origina, parece ser
algo definido na composição genética do cachorro: algo que tem efeitos
comportamentais. Talvez aquilo a que os psicólogos se referem como
“personalidade” também seja assim. Conquanto alguns de seus aspectos
sejam adquiridos através da experiência, também pode haver um elemento
genético. Você pode ter uma disposição natural a ser alegre, e se tiver muitas
experiências positivas durante a vida, isso reforçará a sua personalidade
alegre, ao passo que, se tiver muitas decepções, pode perder essa disposição
natural. Parece haver, portanto, algo real dentro de você, seja genético ou o
resultado da experiência, que é manifestado em seu comportamento. Pode
não ser possível identificá-lo à parte do comportamento que o manifesta, mas
será algo que estrutura o seu repertório comportamental e provê uma base
motivacional para as suas ações. Gostaria de sugerir que o conceito de
“caráter” opera basicamente da mesma forma. Embora não seja uma entidade
ou aspecto de nós que possamos identificar corretamente, faz sentido pensar
nele como mais do que apenas um resumo daquilo que caracteristicamente
fazemos. Ele é criado pela nossa formação e pelos nossos próprios esforços de
autoformação, talvez com base em predisposições naturais que adquirimos
geneticamente, e vem a expressar-se em muito do que fazemos. É preciso um
maior esforço para se agir de uma maneira que seja contrária ao nosso caráter
do que para se agir de uma maneira que seja consistente com ele. E isto
mostra que é algo real, com influências causais em nossas vidas. Talvez
devêssemos considerá-lo ser um tanto quanto como uma habilidade de tocar
um instrumento musical: uma disposição geneticamente conferida que
adquirimos por hábito ou treinamento e por um compromisso com seus
valores.
III
Diz-se que a ética do dever faz uso de conceitos “finos”, enquanto a ética da
virtude usa conceitos “grossos”. Essa é uma implicação de se dizer que a ética
do dever usa termos deônticos e está preocupada principalmente com o fato
de uma ação ser certa ou errada. Estes são conceitos “finos”, porque não nos
oferecem muito na forma de uma descrição da ação. Nós nada aprendemos
sobre uma ação quando a descrevemos como “errada”, exceto que ela é
moralmente proibida. Dizer do homicídio que é errado equivale a não
oferecer qualquer pista acerca daquilo que, em um ato de homicídio, o torna
errado, ou o que, no que toca ao agente, atrai a nossa condenação moral. Com
efeito, pode até mesmo ser uma tautologia que nada nos diz. Afinal, um
“assassinato” é definido como um homicídio errado de um ser humano.
Portanto, dizer que o assassinato é errado implica dizer algo verdadeiro por
definição. O que não nos fornece absolutamente qualquer informação
substantiva. Descrever uma ação como “corajosa” ou “generosa”, por outro
lado, implica transmitir consideravelmente mais informações. No primeiro
caso sugere-se que a situação em que a ação foi executada era uma de perigo
para o agente. Sugere-se que o agente agiu com firmeza e empenho perante
aquele perigo. Sugere-se que essa firmeza e empenho são maneiras excelentes
de alguém ser uma pessoa humana. Assim, porquanto muito significado é
comunicado através dessa descrição, a palavra “corajoso” é considerada um
conceito “grosso”. Termos de virtude são geralmente grossos desta maneira.
IV
Para a ética do dever, a bondade moral é definida em relação ao que é
demandado pela lei moral ou por princípios e regras morais. Para os seres
humanos, ser bom consiste em simplesmente agir corretamente pelas razões
corretas. Mas essa é uma concepção fina de bondade. Ela define a bondade
como pouco mais do que evitar atos ilícitos. O que, por outro lado, a ética da
virtude coloca diante de nós são ideais de bondade para os seres humanos. Ela
não pergunta o que seria moralmente correto tanto quanto pergunta o que
constituiria a excelência humana. Muito frequentemente, a ética da virtude
começa por articular uma teoria sobre os seres humanos para só então
construir ideais de excelência humana sobre essa base. Se o propósito de uma
faca é cortar as coisas, então uma faca excelente é aquela que corta bem as
coisas. Desta forma, entendendo-se em que consiste uma faca, e para o que
ela serve, podemos definir o que seria uma boa faca. Da mesma maneira, se
pudermos dizer em que consiste um ser humano, em termos da sua função,
seremos capazes de dizer o que é ser um excelente ou bom ser humano.
Embora os filósofos tenham gastado uma quantidade enorme de tempo na
questão não é difícil desenvolver uma teoria intuitivamente aceitável do que
os seres humanos são. Tomando-se seres humanos adultos, plenamente
capazes, como um caso paradigmático, poderíamos sugerir que entre as
características centrais e distintivas de tais seres humanos está que eles são
racionais, sociais, criativos e comunicativos. Somos racionais porque
pensamos acerca do que podemos fazer, planejamos o nosso futuro e
buscamos estabelecer acordos satisfatórios para viver uma vida humana bem-
sucedida. Somos sociais porque vivemos em famílias, comunidades e
sociedades, e dificilmente poderíamos sobreviver sem esses arranjos sociais.
Somos criativos porque encontramos novas soluções para problemas práticos,
desenvolvemos as artes e procuramos continuamente melhorar as maneiras
como fazemos as coisas. E somos comunicativos porque usamos a linguagem
não apenas para aumentar a eficiência de projetos práticos, mas também para
expressar nossas ideias e sentimentos, desenvolver nossas culturas e,
geralmente, lubrificar as nossas vidas sociais. Não estou dizendo que estas são
as únicas qualidades importantes dos seres humanos, mas elas me permitirão
ilustrar o meu ponto. Também não estou sugerindo que sejamos inteiramente
originais em demonstrar essas qualidades. Muitos animais também podem
ser racionais, sociais, criativos e comunicativos de formas rudimentares. O
argumento não depende de que essas qualidades sejam exclusivas dos seres
humanos. Diz que, se estas são qualidades que marcam a existência humana,
então um bom ser humano é alguém que manifesta essas qualidades em um
grau excelente. Para os seres humanos a bondade não consiste apenas em
obedecer à lei moral ou em aderir a princípios morais. Ela consiste em fazer
bem o que, como seres humanos, nós somos capazes de fazer. Um bom
indivíduo consiste em alguém que é bom como um ser humano. Por
conseguinte, uma teoria plenamente desenvolvida da ética da virtude incluirá
uma explicação totalmente desenvolvida do que é ser um ser humano, e
sugerirá então que ser virtuoso consiste em ser um ser humano
excelentemente.
II
A ética do dever concebe as normas como absolutamente obrigatórias. Não
se trata de uma questão de se cumprir o dever porque se sente vontade.
Deveres não vêm em graus de rigor medidos pela intensidade do
comprometimento do agente em relação a eles. Deveres são vinculativos não
importa como alguém se sinta e quais sejam as circunstâncias, mas isso pode
levar a situações de conflito moral. E se dois deveres absolutos conflitarem? A
resposta é que, se você falhar em obedecer a um comando moral, deve ser por
uma boa razão moral. A única coisa que poderia aliviá-lo da obrigação de
devolver um livro emprestado seria se você tivesse outra obrigação mais
importante. Assim, se você estivesse a caminho de devolver o livro
emprestado e visse uma criança se afogando em um rio, e fosse um bom
nadador, você teria a obrigação de salvar a criança, mesmo se, ao fazê-lo, o
livro acabasse na água e fosse, portanto, completamente destruído. Mesmo
que agora não possa devolver o livro que tomou emprestado, você ainda terá
feito a coisa certa, porque cumpriu um dever mais importante – aquele de
salvar uma vida humana – do que o dever de devolver o livro emprestado.
Muitos eticistas do dever dizem que um dever, embora absoluto no sentido de
ser objetivo e vinculativo para todos, é também prima facie. Isso significa que,
em face dele, nós temos uma obrigação, mas se outros deveres ainda mais
importantes surgirem, ela poderá ser cancelada. E se pode ser cancelada desta
forma, ela então desaparece, não tendo absolutamente nenhum poder sobre
nós. Quando destruiu o livro emprestado enquanto salvava a criança que se
afogava, você fez a coisa certa. O dever mais importante cancelou o menos
importante, de modo que, nessa situação, você já não tinha a obrigação de
devolver o livro. Assim, não há necessidade de se arrepender por ter destruído
o livro emprestado.
Em contrapartida, a ética da virtude considera os deveres a partir do ponto
de vista do agente, e permite ao agente julgar o seu rigor. Você foi, sem
dúvida, corajoso em ter salvado a criança, e com certeza foi honrável ter
querido devolver o livro emprestado. Dado que você não poderia ter feito as
duas coisas, e dado que você é uma pessoa de bom caráter, foi apropriado ter
seguido o seu sentimento intuitivo de que salvar a criança era mais
importante. Mas devolver o livro não deixa de ser importante também. Segue-
se que também é apropriado que você se arrependa de ter destruído o livro,
mesmo quando você se congratula por ter salvado a criança. Embora tenha
agido corajosamente ao salvar a criança, você também expressa a sua virtude
lamentando a perda do livro e tentando fazer as pazes com o seu dono. Houve
um custo moral na sua ação, por mais admirável que ela tenha sido, e uma
pessoa virtuosa reconhece esse custo. Não foi obliterado por um cálculo
formal de deveres absolutos, prima facie, que decretam que a única coisa que
você tinha o dever de fazer era salvar a criança. Desta forma, as obrigações
que um agente virtuoso é capaz de sentir podem variar em rigor. Será uma
parte da sua virtude não apenas que você esteja comprometido com os valores
morais, mas que também possa fazer o julgamento a respeito de qual valor é o
mais importante. Além disso, expressa a sua virtude o fato de você sentir ter
que fazer algo para corrigir as coisas se uma obrigação moral menos rigorosa
não puder ser satisfeita em uma situação particular.
III
A ética do dever é universal na forma. É correto dizer que qualquer dever
que se aplique a qualquer indivíduo se aplicará a todos universalmente se for
um dever moral genuíno. Se for errado mentir nesta situação particular, será
sempre errado mentir. Também podemos colocar a questão pelo outro lado.
Dada a concepção dedutiva da razão prática, típica da ética do dever, se for
errado para qualquer pessoa mentir, também deverá ser errado eu mentir
nesta situação. Mentir é sempre errado prima facie.
Em contrapartida, porque a ética da virtude vislumbra indivíduos
respondendo a situações moralmente importantes a partir dos seus caracteres
bem-formados, o foco está sobre a particularidade dessas situações. O
indivíduo não é descrito como quem aplica um princípio geral, mas como
alguém que responde ao caso particular. Essa posição tem sido chamada de
“particularismo”. É bem-ilustrada pelos membros do povo da aldeia francesa
de Le Chambon, que corajosa e generosamente abrigaram refugiados judeus
durante a Segunda Guerra Mundial. Eles o fizeram como resposta simples e
direta a uma necessidade percebida em uma situação concreta. Não há relatos
dos moradores consultando princípios gerais ou deduzindo seus deveres de
normas universais. Mesmo o pastor da aldeia adotou a atitude simples e
direta, expressiva do seu compromisso cristão, de ajudar os refugiados
simplesmente porque aconteceu de eles aparecerem procurando ajuda. Os
moradores foram tomados de empatia para com os perseguidos, viram que
havia algo que eles poderiam fazer para ajudar, e foram motivados a fazê-lo.
Não há dúvida de que essas ações poderiam ser racionalmente justificadas
com base em princípios morais, mas os relatórios dos eventos não registram
ninguém referindo-se a tais princípios a fim de gerar um senso de obrigação.
IV
Outro contraste entre a ética do dever e a ética da virtude está entre a
ênfase na razão, que é típica da primeira, e o reconhecimento que a última
confere às nossas emoções. O exemplo mais claro deste contraste é
encontrado em Kant. Para ele, o nosso pensamento moral não deve ser
apenas racional, mas deve estar baseado em uma razão a priori, isto é, um
pensamento que é puramente formal e completamente destituído de qualquer
emoção, interesse ou inclinação. Nesta concepção da razão, o único critério
de correção é a consistência lógica, ao invés da sensibilidade ao que pode ser
sentido como sendo importante em uma situação, ou sentimentos para com
as pessoas envolvidas nela. O pensamento que fundamenta as nossas normas
deve ser o exercido por um imaginado “ser perfeitamente racional”, isto é, um
ser não motivado por qualquer querer, desejo, emoção ou vínculos afetivos a
nada nem a ninguém. Até a emoção do amor para com os outros é
considerada por Kant como sendo uma distração do pensamento lúcido que
estabelece o que é o nosso dever fazer.
Em contrapartida, a ética da virtude aplaude emoções positivas. Ao falar do
caráter em “Terminologia moral” § II, eu o entendi como incluindo
disposições comportamentais à ação, e motivos ocultos de ação, os quais, ou
estão impressos nos nossos genes, ou são desenvolvidos através da nossa
educação, ou ambos. Entretanto, além de disposições à ação, o caráter
também inclui atitudes, sentimentos e compromissos de valor, tais como
consideração e sentimentos de cuidado, amor e preocupação. Esses três
últimos são emoções. Às vezes uma emoção será uma expressão do caráter,
como quando dizemos que Tiago está entristecido com o sofrimento dos
outros porque ele é uma pessoa solidária. E às vezes uma emoção dará origem
a uma ação, como quando dizemos que Tiago estava tão aborrecido ao ouvir
acerca da situação dos moradores de rua, que deu dinheiro para uma
instituição de caridade empenhada em cuidar deles. Além disso, esta ação vai
reforçar o caráter de Tiago como uma pessoa solidária. Desta forma, a
emoção faz parte do laço dinâmico que conecta caráter e comportamento.
Tiago também pode muito bem refletir sobre essas questões e julgar que dar a
esta instituição de caridade é uma coisa boa a fazer, ou mesmo uma coisa
obrigatória a fazer, mas é difícil ver como este pensamento o motivaria a agir
se ele também não sentisse a emoção de cuidar dos desabrigados. Além disso,
ele poderia não refletir acerca do que deveria fazer se não estivesse
inicialmente movido por emoção. Emoções ou “sentimentos morais” que são
especialmente relevantes para a ética da virtude incluem sentimentos de
benevolência para com os outros, empatia pelo sofrimento alheio,
preocupação com as perspectivas das gerações futuras, um senso de justiça
em relação aos povos do Terceiro Mundo e cuidado com os entes queridos.
V
Essa menção da emoção, especialmente a emoção de cuidar, traz à mente
um debate que se tem travado na teoria moral há alguns anos. Ao estudar o
desenvolvimento moral das crianças, a psicóloga Carol Gilligan descobriu que
as meninas muitas vezes abordam questões morais de um modo diferente dos
meninos. Nas disputas do pátio, os meninos vão insistir em seguir regras e
receber o que é deles por direito, enquanto as meninas tentam resolver
diferenças através de compromissos, de modo a manter relações de amizade.
Gilligan se referiu a estas abordagens como uma “perspectiva de justiça” e
uma “perspectiva de cuidado”, respectivamente. Embora ela não tenha
insistido no fato de estas perspectivas serem confinadas exclusivamente a
meninos e meninas respectivamente, ela sugeriu que, como pesquisas
anteriores haviam sido feitas em grande parte com meninos, a imagem da
moralidade que surgiu enfatizou demais uma ética baseada em regras, direitos
e na busca da justiça em detrimento de um reconhecimento do cuidado e da
importância das relações interpessoais. Ficará imediatamente claro que essa
distinção ecoa aquela que estou mapeando, entre uma ética do dever e uma
ética da virtude. A ética do dever destaca as regras e obrigações, e a execução
da coisa certa, enquanto a ética da virtude reconhece a importância das
emoções, incluindo os sentimentos interpessoais de cuidado e afeto.
VI
Esse ponto destaca outra importante diferença entre a perspectiva da
justiça da ética do dever e a perspectiva do cuidado da ética da virtude. Diz-se
que os nossos deveres são imparciais. Se eu tenho o dever de ajudar aos
necessitados que eu puder ajudar, eu tenho esse dever em relação a qualquer
um que esteja em necessidade e a quem eu possa ajudar. O utilitarismo
clássico ilustra isso projetando um cenário no qual há duas pessoas em um
prédio em chamas, e você só pode salvar uma delas. Uma delas é um grande
cientista, que pode trazer muitos benefícios para o mundo, enquanto a outra é
a sua mãe idosa. Embora alguns utilitaristas contemporâneos moderem esta
visão, o pensamento imparcialista defendido por esta forma da ética do dever
diria que é seu dever salvar o cientista porque ele pode trazer grandes
benefícios para o mundo, enquanto a sua mãe não o pode fazer. O fato de
você ter uma relação estreita e emocional com a sua mãe é considerado como
sendo irrelevante, porque ser influenciado por ele tornaria o seu pensamento
parcial. Você estaria colocando a sua própria preferência – com base na qual
você se preocupa – acima do bem concebido a partir de uma posição de razão
imparcial. A ética da virtude, por outro lado, na medida em que abraça a
perspectiva do cuidado, não encontra dificuldade em admirá-lo se você salvar
a sua mãe e deixar o cientista queimar (embora também fosse virtuoso
lamentar a sua incapacidade de salvá-lo). Uma pessoa virtuosa é admirada
quando é apropriadamente parcial em reconhecer a teia de relacionamentos
interpessoais da qual é parte.
VII
Para se entender a importância de se reconhecer as emoções em
julgamentos práticos mais plenamente, eu preciso distinguir o que tem sido
chamado de “externalismo de razões” do “internalismo de razões”. A
primeira posição é defendida por muitos especialistas em ética do dever, ao
passo que a maioria dos eticistas da virtude assume a segunda. O
externalismo de razões diz que situações do mundo, incluindo as normas
morais e sociais, podem ser razões para as pessoas agirem de determinadas
maneiras. Se uma dada sociedade, ou a espécie humana como tal, adota o
princípio de que o assassinato é errado, e pode justificar este princípio com
alguns argumentos racionais, então essa norma é uma razão para qualquer
agente aderir a ele. Este é chamado de “externalismo”, porque não depende
do que qualquer determinado agente pensa ou sente acerca disso. Se você for
um criminoso considerando se pode matar alguém que esteja no caminho de
algum nefasto esquema que você esteja planejando, talvez você não tenha
sequer pensado no princípio de que o assassinato é errado. Você pode estar
pensando apenas na vantagem que pode obter matando o seu rival. No
entanto, mesmo que você não esteja pensando nesse princípio, e mesmo que,
por causa de sua má educação, você não o tenha internalizado, ele ainda é
uma norma ou uma razão que se aplica a você. Porém, porquanto não é um
conteúdo do seu pensamento ou do seu caráter, trata-se de uma razão
“externa”. A norma existe na sociedade e se aplica a você seja qual for a sua
própria visão.
Um exemplo ainda mais marcante de uma razão externa – embora não um
exemplo de uma que tenha significância moral – é o seguinte cenário. Você
está andando até a estação ferroviária para apanhar o trem das oito e meia.
Você faz isso todo dia, de modo que sabe quanto tempo leva a caminhada e o
quão rápido deveria estar andando. No entanto, sem que você saiba, ocorreu
uma mudança nos horários e o seu trem agora deve sair às oito e vinte e oito.
No ritmo atual dos seus passos você vai perder o trem. Conclui-se que você
tem um motivo para se apressar. Mas, é claro, na medida em que você não
sabe da alteração do horário, você não o faz. A razão se aplica a você, mas
você não age de acordo com ela. Repare que esta situação é descrita em
termos de você “ter” uma razão, ou em termos de “haver” uma razão para
você agir, mesmo se nenhuma tal razão esteja sendo entretida por você em
seu pensamento. Essas razões são “externas” a você.
Elas são também muito intrigantes como “razões”. Por que usaríamos a
palavra “razão” para uma situação acerca da qual você não está ciente? Muito
frequentemente, quando falamos de “razões” estamos falando sobre
pensamentos ou sentimentos que as pessoas têm que as motivam a fazer
alguma coisa. Se outro passageiro, que soubesse da mudança do horário,
perguntasse por que você não está se apressando para a estação, você diria
“porque o trem deve sair às oito e meia”. Este é o conteúdo do seu
pensamento. Não é verdade, mas é a sua visão sobre o assunto. Você só pode
ser motivado a agir pela visão que você tem, e não pela questão de fato, se
você não conhece esse fato. Essa é a posição do “internalista das razões”. É a
visão de que uma razão só é uma razão se estiver presente no pensamento ou
no sentimento do agente. Para ser uma razão, uma consideração tem que se
relacionar com um estado interno do agente. Não precisa ser um pensamento
explícito. Pode ser algum desejo que o agente tenha. Nesse sentido você de
fato “tem” uma razão para correr para a estação, mas isso é porque você tem
um desejo de pegar o trem. Essa razão não é dada pelo fato de o trem estar
adiantado; é expressiva do seu desejo. Para um internalista das razões, uma
razão para fazer alguma coisa é uma motivação para fazê-lo. É um estado
interno do agente. Não faz sentido referir-se a um estado de coisas que o
agente não conheça, ou a uma norma que o agente não tenha internalizado
como uma razão que o agente “tenha”, se essa razão não desempenha
qualquer papel na estrutura motivacional desse agente. Ter uma razão não é
apenas estar em uma situação na qual seria prudente ou moral responder; é
estar motivado a reconhecer que você está em tal situação e sentir o apelo
dessa situação sobre você. E você sentiria esse apelo em um caso porque você
queria pegar o trem, e, no outro caso, porque você tinha uma convicção de
que o assassinato é errado. O que é necessário para uma consideração operar
como uma razão é que deve haver algo em seu caráter que o motivaria a
responder a isso praticamente. Sendo uma razão prática, isso deve gerar
algum grau de “necessidade prática”. A importância dessa distinção entre
razões externas e internas é que ela aponta, mais uma vez, para o caráter do
agente como sendo central a qualquer descrição do agir moral a partir da
perspectiva da ética da virtude.
Essa distinção também resolve um problema que muitos teóricos morais na
tradição da ética do dever acharam intrigante. Esse problema é aquele de se
ligar o pensamento moral à ação moral. Uma coisa é concluir a partir de
princípios que uma determinada ação deve ser feita, e outra, bem diferente, é
estar motivado a fazê-la. Ou pelo menos é o que se diz. Se você distingue
razão de desejo e motivação, então você pode realmente sugerir que poderia
racionalmente chegar a ver que uma ação era a certa a praticar sem também
estar movido a fazê-lo. O externalismo de razões torna inevitável que haja um
hiato entre o fato de haver uma razão para você fazer alguma coisa – mesmo
que você reconheça essa razão apenas no pensamento – e o fato concreto de
você querer fazê-lo. Em contrapartida, se mesmo o seu pensamento for uma
expressão de caráter, e for motivado pelas mesmas motivações virtuosas que
motivam as suas ações, então o seu juízo de que uma ação é a correta a
praticar também será, ao mesmo tempo, uma decisão de praticá-la se as
circunstâncias o exigirem. A sua razão será uma motivação. Se, por acaso,
você não praticar a ação, o problema será de “fraqueza de vontade”, e não de
haver um hiato entre a faculdade putativa da razão e a da motivação. E
“fraqueza da vontade” é a falta de uma virtude como aquela da coragem, da
sinceridade, da determinação ou da persistência.
VIII
A distinção entre externalismo e internalismo de razões também questiona
a visão de muitos eticistas do dever de que a moralidade existe de alguma
maneira acima de nós, como algo que somos obrigados a obedecer e que os
teóricos morais podem definir com base na racionalidade pura ou metafísica.
Essa visão tem sido variavelmente chamada de “realismo moral”,
“objetivismo moral” ou “cognitivismo moral”. Ela começa com o ponto
básico de que, na linguagem ordinária, dizemos coisas tais como “é errado
roubar”. Se esta afirmação for verdadeira, e se alguém adere a uma teoria da
verdade como correspondência ou a uma teoria do significado como
referência, então deve haver um “fato moral” ao qual essa afirmação
corresponda ao descrevê-la corretamente. Esse fato moral é o fato de que
roubar é errado. Assim como o novo horário do trem lhe dá uma razão para
se apressar, este fato moral lhe provê uma razão para não roubar, esteja você
ciente ou não dele. Independentemente da sua atitude em relação a roubar, é
errado para você roubar por causa do fato de que roubar é errado. O realismo
moral desse tipo remonta, pelo menos, tão longe quanto Platão, para quem a
ideia de bondade era uma realidade que existia objetivamente fora do nosso
próprio mundo, de modo que o nosso conhecimento disso nos moveria a agir
virtuosamente. Quando Platão propõe, por meio de Sócrates, que o
conhecimento é uma virtude, ele não quer dizer apenas que é uma coisa
eticamente boa ser bem-informado; ele quer dizer que o nosso conhecimento
daquilo em que consiste a realidade da bondade moral nos tornará virtuosos.
Mas ao atribuir uma realidade objetiva à bondade e a outros valores, ele
também inaugurou aquela tradição da filosofia na qual se tornou a tarefa do
pensamento independente e teórico descobrir essas realidades e descrevê-las
para o do benefício do povo comum que não tinha a sofisticação teórica para
descobri- las por si próprios. Como Sócrates defende, para a maioria das
pessoas a sua imersão em desejos corporais e preocupações as impede de
discernir as realidades puras e absolutas que devem influenciar suas vidas. A
despeito do fato de Platão mencionar a virtude, ele era um realista moral.
Em contrapartida, a tradição da ética da virtude é mais inclinada a sugerir
que, se a moralidade existe, ela existe dentro de nós. Somos criados nela. Ela
está sempre já presente em nossas vidas de uma forma ou de outra. E por
causa disso responderemos, ou seremos motivados a responder, eticamente a
situações que vemos como demandando tal resposta. O nosso juízo quanto ao
que uma situação exorta-nos a fazer será uma expressão dos nossos caracteres
e uma resposta ao que é eticamente saliente na situação diante de nós, ao
invés de uma conclusão obtida dedutivamente a partir de “razões externas”
que os teóricos morais verão como aplicáveis a nós.
Se for levantada a questão de saber se os nossos ideais éticos e normas
morais são “reais” e objetivos, e não meramente questões de opinião
subjetiva, então eu diria que este é um falso dilema. Teorias da construção
social da realidade oriundas da sociologia sugeririam que a moralidade pode
existir nos caracteres de indivíduos virtuosos, sem por isso ser meramente
subjetiva. Embora nem todos os eticistas da virtude concordassem comigo
neste ponto (e a maioria dos eticistas do dever certamente não o fariam), eu
argumentaria que a moralidade não tem que ser uma realidade que exista fora
da experiência humana a fim de ser objetiva. Um exemplo para brevemente
ilustrar como isso funcionaria seria o dinheiro. Pegue uma nota de um dólar.
Em que ela consiste na realidade? Você poderia responder a esta pergunta
dizendo que ela consiste em um pedaço de papel com marcas impressas nele.
Isso é o que ela é como um objeto físico. Mas ela também é um meio de troca
e, como tal, tem um valor em um sistema de troca. Você não a enrolaria para
utilizá-la como um prendedor de porta da maneira como você poderia usar
um pedaço de papel. Ela “realmente” é dinheiro. É um “fato” que ela tem um
valor monetário definido. Mas em que este fato está baseado? Ele parece estar
baseado em uma série de convenções econômicas e instituições. Na ausência
destas seria apenas um pedaço de papel. Se após algum cataclismo mundial
voltássemos a uma vida primitiva de troca e escambo sem dinheiro, essa nota
não teria qualquer valor e não mais seria dinheiro. Assim, a “realidade” do
dinheiro é uma realidade estabelecida por convenções humanas e arranjos.
Essa realidade faz parte do contexto em que vivemos e não a questionamos.
Pareceria absurdo destruir notas de dólar. Mas esta realidade não está baseada
em qualquer realidade metafísica que esteja além do nosso mundo cotidiano.
Não é estabelecida pela teoria pura. É estabelecida pela, e dura tanto quanto,
aceitação implícita das convenções pertinentes por parte das pessoas em geral.
Eu sugiro que a moralidade é “real” apenas neste sentido. A sua realidade
não decorre de realidades metafísicas ou universais, ou da razão pura; ela
nasce de uma convenção. Todas as pessoas bem-intencionadas concordariam
que roubar é errado e não conseguiriam sequer pensar em roubar algo de
valor considerável. Mas isso não acontece porque fazê-lo está de acordo com
algum princípio que decorre de uma realidade além daquela deste mundo. É
por causa de uma convenção bem-arraigada. Pode-se acrescentar que se trata
de uma convenção muito racional, de modo que qualquer sociedade que
tentasse viver por outra diferente não sobreviveria como uma sociedade, mas
isso apenas demonstra que a construção social da moralidade produziu
aquelas normas que mais favorecem a sobrevivência da sociedade e dos
indivíduos que a integram. Que não há nada necessário ou inevitável acerca
disso é demonstrado por muitas convenções que são seguidas com a mesma
seriedade que a moralidade, mas que são obviamente arbitrárias. Por que
domingo é o dia de descanso? Por que não a terça-feira? Por que devemos
mostrar respeito aos outros curvando-nos? Por que não mostrar-lhes o
polegar para cima? Por que o homossexualismo é considerado imoral por
tantos?
Que as nossas convenções sociais e morais sejam uma questão importante,
mesmo se não têm fundamentos metafísicos ou, a priori, é ilustrado por um
dos princípios centrais da ética do dever: que todos os homens são criados
iguais. Essa proposição foi apresentada como tão certa a ponto de ser
autoevidente. E, no entanto, está longe de ser evidente. Olhe ao seu redor e
você verá pessoas que são desiguais quanto a muitas características
importantes: características tais como sua riqueza, sua saúde, seus talentos,
seu gênero, sua raça, suas convicções religiosas e morais, e sua nacionalidade.
No passado, se você tivesse nascido em uma família aristocrática, você teria
status mais elevado, e mais direitos legais, do que se tivesse nascido em uma
família camponesa. Empiricamente falando, seres humanos não são todos
iguais. Como é então que tomamos como autoevidente que eles são iguais? É
porque, durante a nossa história, gradualmente desenvolvemos o conceito de
estado de direito, e junto com ele a ideia de que todas as pessoas têm status
igual perante a lei. Como o dinheiro, esta é uma convenção humana, mas
uma que se tornou tão arraigada, e tão importante para nós, que a
consideramos autoevidente. Povos com uma história diferente não a veem
como autoevidente. Como consequência, alguns teóricos morais tentam
desenvolver teorias que sugerem que somos iguais não porque construímos o
conceito de uma pessoa com a igualdade de direitos morais no curso da nossa
história específica, mas porque somos todos criados por Deus, ou porque
todos os seres racionais têm igual dignidade como fundadores da lei moral. A
questão que isso levanta é a de saber se a realidade da nossa igualdade moral e
legal é fundada sobre tais teorias ou se emerge da história humana. A ética da
virtude pode permanecer confortável com a última sugestão.
II
Há uma maneira mais formal de colocar este último ponto. Usando termos
técnicos, podemos dizer que a ética do dever é muito frequentemente
“fundacionalista”, enquanto a ética da virtude tem uma abordagem
“hermenêutica”. Dizer de uma teoria que ela é fundacionalista implica sugerir
que ela procura estabelecer as bases ou fundação daquilo sobre o que versa
essa teoria. Na teoria do conhecimento, por exemplo, uma pergunta que é
frequentemente perguntada é se o nosso conhecimento pode ser baseado em
intuições claras e indubitáveis. Empiristas afirmam que a experiência dos
sentidos provê essa base, ao passo que Descartes sugeriu famosamente que a
única proposição indubitável é “penso, logo existo”. Foi na fundação dessa
proposição que Descartes foi tentar estabelecer tudo o que podemos saber.
Assim, a epistemologia cartesiana é um exemplo de fundacionalismo.
Tradicionalmente, a teoria moral tem sido fundacionalista neste sentido, e
tem procurado descobrir ou postular os fundamentos de nossas obrigações
morais. Tais fundamentos precisavam ser objetivos, absolutos e universais a
fim de fornecer a base do nosso sistema moral. Foi dito que os juízos morais
estão fundamentados em uma “visão a partir de lugar nenhum” ao invés de
estarem baseados na perspectiva de qualquer indivíduo particular ou grupo. É
por isso que eles apelam para a metafísica ou para fundações a priori, e
também porque usam apenas conceitos finos.
A abordagem “hermenêutica” contrasta com essa ideia porque não procura
basear a obrigação moral em qualquer fundamento exterior à prática da
moralidade. Ela começa por sugerir que os nossos juízos morais são
interpretações que usam conceitos grossos baseados em atitudes que nós já
temos. Assim, por exemplo, se eu julgar que a ação de Horácio em defender a
ponte contra o exército invasor é corajosa, é porque eu já tenho uma série de
atitudes pertinentes a essa situação. Eu já considerava o exército invasor como
injustificado em seu ataque, e considerava a cidade que Horácio está
defendendo como digna de tal defesa. Além disso, eu já tenho o conceito de
coragem, e, em particular, sou capaz de distingui-lo do de estupidez. Afinal,
dada a esmagadora multidão que Horácio está enfrentando, seria fácil chamá-
lo de tolo. Eu chamo-lhe corajoso porque partilho, ou pelo menos aprecio o
seu compromisso com a defesa da sua cidade. Assim, interpretar a sua ação
como sendo corajosa, ao invés de temerária, requer que eu tenha o conceito
grosso de coragem, e também a minha partilha de algumas das atitudes de
Horácio. Não há algum ponto de vista neutro ou desprovido de valor a partir
do qual eu possa fazer esse julgamento. Não há um valor absoluto ou
fundacional, ou padrão de comportamento que exista em si mesmo e que
possa ser aplicado de forma objetiva a esta situação. Eu mesmo estou
envolvido na situação, mesmo que seja um observador dela bem distante no
espaço e no tempo. Eu tenho uma atitude em relação à causa e à ação de
Horácio. Eu simplesmente não poderia entender Horácio se eu não me
imaginasse em seu contexto. Esse juízo não é objetivo.
Mas essa inevitável falta de objetividade é ainda mais profunda. Não só
preciso de algum entendimento implícito do que é a coragem para fazer o
julgamento de que Horácio foi corajoso, mas eu mesmo preciso ser corajoso
em algum grau para fazer esse julgamento. Um covarde veria a ação de
Horácio como imprudente. Seria uma ação com a qual tal pessoa não poderia
se relacionar ou se identificar. Se a vejo como corajosa, é porque, de certa
forma, eu posso me identificar com ela. Eu partilho, não apenas as atitudes de
Horácio, mas também a sua coragem, no sentido de que eu poderia imaginar
a mim mesmo querendo agir de forma semelhante. Tomemos outro exemplo.
Imagine-se como um turista visitando um templo budista em algum país
estrangeiro. Não sendo um budista, você não tem qualquer entendimento do
significado das estátuas e decorações. Agora alguns outros turistas entram.
Eles estão fumando e falando alto, e fotografando tudo ao seu redor,
incluindo alguns adoradores locais. Em suma, eles estão agindo
grosseiramente. Agora, se você mesmo fosse grosseiro, você não perceberia
isso. Você veria o seu comportamento como corriqueiro. Mas se você tem a
virtude da reverência, e é sensível tanto à beleza quanto ao significado
religioso desse lugar, então você vai considerar o comportamento deles
grosseiro, e, possivelmente, sentir-se constrangido por eles. Mais uma vez, é
evidente que esta reação não é objetiva. Mas o meu ponto consiste em que se
trata de uma reação já expressiva da virtude que falta aos outros turistas.
Portanto, você precisa ter a virtude a fim de reconhecê-lo e fazer julgamentos
acerca disso. Covardes completos sequer reconheceriam a si mesmos como
covardes, mas se enganariam pensando que eram, por exemplo, prudentes.
Eles teriam que ter alguma centelha de coragem em seu caráter até mesmo
para censurarem-se por serem covardes. Não há qualquer fundamento
objetivo, racional a partir do qual tais julgamentos possam ser feitos.
Enquanto tudo o que você precisa para fazer um julgamento correto ou uma
decisão sobre o dever é ser racional, para fazer um julgamento adequado
acerca da virtude é preciso que você seja virtuoso. Isso mostra que tais
julgamentos não são fundacionais. Eu devo já ter um entendimento do que é
coragem, e uma apreciação da importância da coragem, para julgar que
Horácio é admirável.
Além disso, o entendimento que tenho daquilo em que consiste a coragem
vem de fazer julgamentos deste tipo. Não é que me tenha sido dada alguma
definição objetiva ou absoluta de coragem e a tenha então aplicado bem-
sucedidamente a casos particulares. Ao contrário, quando eu era criança,
experimentei as ações dos outros, ou histórias sobre eles, e outras pessoas os
chamavam de exemplos de coragem, e, quando perguntadas, explicavam-me
por quê. Por vezes, pessoas mais velhas chamaram certas ações de
imprudentes, outras vezes elas as descreveram como corajosas, e outras ainda
como heroicas. Por vezes eu mesmo fiz coisas que mereceram a designação de
“corajosas”. A partir desses casos, da reflexão, da literatura e do cinema, eu
vim a aprender o que é a coragem. Não há uma definição canônica de
dicionário que nomeie a essência da coragem, ou a coragem como uma coisa-
em-si. Há apenas a maneira como as pessoas falam e concordam acerca da
coragem. Conforme eu cresço, começo a compartilhar este conhecimento
comum incorporado na forma como usamos as palavras pertinentes. Mesmo
se sou esforçado em oferecer uma definição clara de coragem, posso usar a
palavra e seus conceitos relacionados perfeitamente bem na linguagem
ordinária, e reconhecer casos dela no mundo ao meu redor. Sem um
conhecimento claro da essência em que a coragem consiste, o meu
pensamento não é fundacional. Eu não sei exatamente o que faz uma ação
corajosa. Mas posso fazer os julgamentos pertinentes, e o faço de fora de um
entendimento de fundo implícito. Por sua vez, meus juízos particulares, e
minhas próprias ações, contribuem para esse entendimento de fundo. Toda
vez que experimento um ato de coragem em toda a sua singularidade e
particularidade, em mim mesmo ou nos outros, isso contribui para o meu
entendimento geral do que é a coragem. Desta forma, o meu pensamento é
circular. Ele fica dentro do que tem sido chamado de “círculo hermenêutico”.
Preciso de um entendimento apreciativo para fazer os julgamentos, e os meus
julgamentos contribuem para a minha compreensão em desenvolvimento
dessa virtude, e para o meu compromisso com ela.
Porque tantos filósofos pensam de maneira fundacionalista, eles acham
essa circularidade desconfortável. Entretanto, nada há de misterioso nisso.
Imagine que você esteja lendo um livro e se depara com uma palavra que você
não entende. Você a procura em um dicionário. Mas o que o dicionário lhe dá
é outra palavra ou conjunto de palavras. Claro, é esperado que você vá
entender essas palavras, mas, se você não o fizer, então também pode
procurá-las até encontrar palavras que você entenda. Desta forma, é à
compreensão da língua portuguesa que você já tem que se está recorrendo a
fim de ajudá-lo a entender palavras ou frases particulares. E a sua
compreensão da língua portuguesa consiste em, e é acrescentada por, sua
compreensão de determinadas palavras ou frases. Mesmo se fosse o caso de
você estar lendo um texto em alemão, e precisasse procurar uma palavra em
um dicionário de português-alemão, a sua compreensão da palavra alemã
desconhecida dependeria de você já ter um conhecimento das palavras
pertinentes em português. Portanto, a sua capacidade de operar com a
linguagem depende de você já ter algum conhecimento da linguagem com a
qual você então faz julgamentos individuais acerca do que as palavras
significam, e esses julgamentos individuais contribuem para a sua
compreensão total da língua.
E há ainda outro ponto. Quando você procura uma palavra no dicionário, e
são apresentadas outras palavras ou frases que são sinônimos da palavra que
você estava procurando, a base dos significados dessas palavras ou frases é
como outras pessoas usam essas palavras. O dicionário não lhe diz como uma
palavra se conecta com aquilo a que ela se refere. Ele diz-lhe como ela se
conecta com outras palavras e como as outras pessoas usam essas palavras. É
o uso real de palavras por parte da comunidade linguística que estabelece o
sentido das palavras, ao invés de sua ligação com realidades que existam fora
da linguagem. Em nenhum momento você pode sair do círculo da linguagem
e mostrar que uma palavra significa o que significa porque tem alguma
conexão inevitável ou necessária com a realidade. Por que a palavra
portuguesa “casa” se refere a um tipo específico de edificação? O que há
acerca dessa ortografia ou desse som que a liga a essas edificações? Se
houvesse uma ligação necessária, como seria possível que outras línguas usem
palavras diferentes? A única maneira de se assegurar de que você está usando
a palavra certa para expressar uma ideia ou transmitir alguma informação é
observar a maneira como os outros, que são conhecidos por serem usuários
competentes da língua, usam essa palavra. E como sabemos que esses outros
estão usando a palavra certa? Porque o fato de ser a palavra certa está baseado
no fato de que elas – pessoas que são conhecidas como usuários competentes
da língua – a estarem usando. Esse é um processo circular no qual estamos
envolvidos o tempo todo. Alguns filósofos tentaram romper com esse círculo
a fim de estabelecer uma fundação para a linguagem por meio de algum
vínculo necessário entre as palavras e aquilo a que elas se referem, mas tal
projeto não nos é necessário se quisermos usar a linguagem efetivamente.
Aprendemos a língua observando como os outros a usam, participando, e
sendo corrigidos ou incentivados enquanto o fazemos. Quando chegamos a
nos espantar como pudemos nos tornar competentes no uso da linguagem,
nós já o somos. E quando chegamos a nos perguntar por que as palavras
possuem os significados que possuem, elas já os possuem.
O mesmo se passa com a moralidade. Dada a forma como somos educados
na ética de uma comunidade, quando chegamos a nos perguntar o que é certo
ou errado, e por que, já temos convicções éticas e intuições, e já entendemos
amplamente o que é a moralidade e o que exige de nós. Ao invés de
estabelecer os fundamentos da moralidade, o nosso pensamento moral não
pode senão o pressupor. Não é necessário buscar fundamentos para as nossas
morais. Se estivermos em dúvida acerca do que devemos fazer, simplesmente
olhamos para as pessoas que consideramos eticamente competentes e
fazemos o que elas fariam ou fizeram. A comunidade me oferece as minhas
próprias convicções éticas e intuições ao me prover com exemplares éticos.
Assim como é desnecessário, ou mesmo impossível, romper com o círculo da
linguagem a fim de estabelecer os fundamentos dos significados das nossas
palavras, da mesma forma é desnecessário, ou mesmo impossível, romper
com o círculo de uma ética da comunidade a fim de estabelecer os
fundamentos dessa ética.
III
As noções de senso comum, intuição moral, tradição e comunidade
permitem-me voltar para um problema com a ética da virtude que muitos
teóricos morais têm identificado: o problema do relativismo. Como
mencionei em “A natureza das normas” § III, a ética do dever concebe as
normas como universais. Devolver um livro emprestado seria uma obrigação
para qualquer um em qualquer lugar: isto é, tal dever consiste em uma
obrigação objetiva ou universal, não relativa às circunstâncias ou à cultura de
qualquer agente em particular. O que é moralmente obrigatório ou proibido
em uma comunidade deve ser moralmente obrigatório ou proibido em
qualquer comunidade. Roubar é errado em qualquer lugar em qualquer
tempo. Se uma prática não é moralmente obrigatória ou proibida
universalmente, então essa prática é relegada ao costume local, e não à
moralidade. A razão pela qual a ética do dever insiste na universalidade das
suas normas é porque ela é fundacionalista em seu pensamento. Se tiver
identificado a base das normas morais, quer nos comandos do único Deus
verdadeiro, ou nas demandas que são necessárias para a consecução dos
objetivos inerentes à natureza humana, ou nos imperativos que são
enunciados por uma razão a priori, ou no pensamento beneficente de
indivíduos imparciais em qualquer lugar, então essas normas devem ser
universais. Tais fundamentos são universalmente válidos.
Embora um eticista da virtude não discordasse disso inteiramente, e
sugerisse que muitas virtudes, como a de ser honesto, também são traços de
caráter universalmente admirados, ele também apontaria para as virtudes que
são relativas a culturas específicas. Ser devoto, por exemplo, é uma virtude
somente entre pessoas que partilham crenças religiosas. A modéstia para as
mulheres é muito admirada, e até mesmo imposta, em algumas comunidades
tradicionais, enquanto as sociedades seculares modernas levam isso menos a
sério. Além disso, a maneira pela qual uma virtude particular é concebida, e a
maneira como é expressa, pode diferir de cultura para cultura. Por exemplo,
em sociedades guerreiras, a coragem será concebida em termos de quão bem
um guerreiro resiste a perigos físicos e a lesões no campo de batalha, ao passo
que, nas sociedades pós-industriais contemporâneas, a coragem pode ser
exibida na maneira como uma pessoa está disposta a prejudicar a sua carreira
buscando expor a corrupção corporativa. Mais uma vez, se lembrarmos que a
ética da virtude se preocupa com um leque de atividades mais amplo do que
apenas o moral, poderemos considerar que aquilo que a cortesia exige difere
de uma cultura para outra. Às vezes isso é meramente uma questão de
diversidade de regras de etiqueta, mas às vezes é uma questão de atitude.
Algumas culturas esperam que os seus heróis ostentem orgulho e
demonstrem desdém para com os simples mortais, enquanto outras culturas
recomendam uma atitude igualitária e a virtude da humildade.
Em suma, a ética da virtude aceita que as virtudes que são admiradas pelas
pessoas são muito frequentemente específicas de comunidades históricas e
geográficas particulares. Haverá algumas virtudes que seria difícil imaginar
não serem universalmente admiradas: virtudes como a honestidade, a
coragem e a paixão pela justiça. Mas que estas sejam tão amplamente
admiradas é uma questão contingente, e não depende de alguma prova
metafísica ou racional de que sejam válidas para todos. Simplesmente
acontece de ser o
caso que, dados os tipos de seres que nós somos, e dados os tipos de
sociedades nas quais vivemos, essas virtudes serão amplamente admiradas, e
as pessoas que não conseguirem demonstrá-las serão amplamente
desprezadas.
Esse ponto tem sido desenvolvido em termos mais teóricos por Alasdair
MacIntyre. Ele argumentou que, como os fundamentos metafísicos e
racionais aos quais recorreu a maioria das teorias morais perderam apoio
com os pensadores contemporâneos, tornou-se necessário extrair os padrões
e as normas pelas quais devemos viver das comunidades e práticas das quais
fazemos parte. Eu já destaquei como a educação e a formação ética que os
jovens recebem à medida que se tornam adultos em comunidades e
sociedades específicas moldam os seus caracteres de acordo com os ideais e as
normas que operam nessas comunidades e sociedades. Esse é um ponto que
pode ser confirmado por estudos sociológicos e psicológicos. A contribuição
singular que MacIntyre faz para esta discussão é a sua noção de uma
“prática”. Uma prática é um conjunto de atividades estruturado por arranjos
sociais e centrado em objetivos que lhe são internos. Tomemos como
exemplo uma profissão como a medicina. A medicina é um conjunto
estruturado de atividades exercidas por pessoas que são educadas e
certificadas para fazê-lo na busca de objetivos que são específicos dessa
profissão. No caso da medicina, estes objetivos centram-se na manutenção e
restauração da saúde, bem como no alívio do sofrimento resultante de
doenças. Observe-se que essas metas são “internas” à prática. Médicos e
outros profissionais de saúde também podem estar envolvidos em suas
atividades a fim de obter renda e status social, mas esses objetivos não são
internos à prática, porque eles não são objetivos específicos dela, enquanto
curar os enfermos é. Dadas essas metas internas, maneiras específicas de agir
tornam-se virtuosas na prática. Ser competente nas habilidades específicas
associadas ao exercício da medicina, manter-se informado do conhecimento
pertinente, ser cuidadoso e solícito para com os pacientes e sentir empatia
pelo seu sofrimento são todos traços de caráter e modos de agir que
conduzem aos objetivos da prática e melhoram a maneira pela qual é
realizada. Como tais, são virtudes. O ponto-chave é que são virtudes devido
ao que a prática é. Eles conduzem aos objetivos que são internos à prática. São
virtudes para os médicos, embora não necessariamente exclusivas dos
médicos. Desta forma, as virtudes são relativas às práticas.
Mais uma vez, temos aqui um exemplo do círculo hermenêutico. Nós
entendemos esses traços de caráter e maneiras de se comportar como sendo
virtudes para médicos e profissionais de saúde no contexto de uma ampla
compreensão da prática da medicina. E a nossa compreensão e apreciação da
prática da medicina são melhoradas e aprofundadas através do nosso
reconhecimento dos médicos que nos impressionam com sua virtude.
Mas há um problema que está surgindo aqui. Um teórico do dever pode
dizer que é realmente possível explicar quais traços vêm a ser admirados
como virtudes com referência às práticas nas quais as pessoas se empenham.
Esse teórico pode concordar que as virtudes podem ser entendidas no
contexto das práticas que elas melhoram. Ele pode até mesmo concordar que
nossas virtudes são traços de caráter que adquirimos em nossa educação a
partir de um processo que inclui ser elogiado por ostentá-los. Será inevitável,
dado esse processo, que, se formos bem-educados, iremos adquirir esses
traços que são admirados como virtudes em nossas comunidades. Mas nada
disso mostra que essas virtudes devem ser moralmente aprovadas. Se eu fosse
educado em uma comunidade de ladrões e me visse a mim mesmo como
estando comprometido com a prática do furto, eu poderia muito bem
considerar que a desonestidade, o desrespeito aos direitos de propriedade e o
ardil eram virtudes que melhoraram a minha prática, conduziram aos meus
objetivos e ganharam a admiração da minha família e comunidade. Mas isso
faria desses traços virtudes morais? O roubo não é moralmente errado? E,
nesse caso, não se seguiria que todos os traços de caráter que conduzem aos
valores e objetivos inerentes à prática do roubo deveriam ser desaprovados?
Mais uma vez, considere o ponto acerca da ética da virtude inspirando-se
em figuras exemplares. Na Alemanha da década de 1930 Hitler foi uma figura
impressionante para muitos. Ele foi uma inspiração para a quase totalidade da
sua nação. Os historiadores descrevem como muitas pessoas passaram a
segui-lo e a serem impressionadas por ele. Mas segue-se que deveriam tê-lo
feito? Segue-se que estavam certos em modelarem-se segundo ele e seguirem
a sua liderança? Parece que o apelo à tradição e ao senso comum como a
matriz para os julgamentos morais dos agentes virtuosos conduz à dificuldade
do relativismo. O que os nazistas admiravam como sendo virtude pode ter
sido entendido com referência à visão de mundo e às tradições do
pensamento nazista, mas certamente deve ser possível para nós julgar essas
“virtudes” e posturas morais como tendo sido imorais. Que uma virtude seja
considerada boa relativamente às intuições do senso comum das pessoas que
estão fazendo esse julgamento não garante que esse julgamento esteja correto
pelos padrões que a teoria moral endossaria a partir do seu ponto de vista
mais metafísico ou puramente racional.
Essa é uma questão complexa, na qual a posição da ética da virtude como
teoria moral pode ser dita manter-se de pé ou cair. A objeção padrão ao
relativismo na teoria moral é que ele deixa pretensos reformadores morais
sem qualquer base independente sobre a qual disporem a sua crítica das
práticas que eles veem como imorais. Se não houver princípios universais,
objetivos ou absolutos, então só podemos aceitar as práticas prevalecentes e
padrões das nossas comunidades. Se o tipo de relativismo ao qual a ética da
virtude está sujeitada admite esse tipo de objeção, então seria de fato verdade
que a ética da virtude fracassa em satisfazer duas das principais tarefas da
teoria moral: dizer-nos o que devemos moralmente fazer e explicar a
obrigatoriedade das nossas normas morais.
Mas precisa a ética da virtude sucumbir a essa objeção? São as nossas
intuições e pressuposições imunes à crítica ou à revisão simplesmente por
serem socialmente construídas através das nossas tradições? Nenhum
indivíduo é constrangido a pensar exatamente da maneira como é ensinado a
pensar, e nenhuma comunidade adota crenças que são as continuações exatas
das suas tradições. Tradições comunitárias não são nem unificadas nem
hegemônicas. Porquanto indivíduos têm que tomar decisões em
circunstâncias particulares, sempre há uma centelha de criatividade a partir
da qual a crítica pode surgir. A fonte dessa crítica será outras intuições e
insights que são obtidos contra o fundo dos modos de vida que se
entrecruzam com aqueles da comunidade em questão. Desta forma, por
exemplo, em um tempo em que a escravidão era amplamente aceita como um
requisito infeliz, mas inevitável para a prosperidade econômica, os primeiros
lampejos de crítica vieram de indivíduos de certas igrejas cristãs, cuja criação
na virtude os havia deixado com uma pouco articulada sensação de que essa
prática estava errada. O clérigo anglicano Thomas Clarkson foi conduzido
por uma forte impressão dos males da escravidão a começar, junto com um
grupo de quakers, uma campanha para abolir o tráfico de escravos. O seu
sentimento de que a prática estava errada, e a sua decisão de se opor a ela,
surgiu dos seus caracteres moldados pela sua formação pouco convencional
nas suas igrejas. Relatos de testemunhos oculares de comerciantes de escravos
os moveram emocionalmente à empatia e à preocupação, e sua compreensão
da exploração econômica do trabalho dos escravos os levou à justa indignação
contra a injustiça envolvida na escravidão. A sua razão prática foi exercida
com o objetivo de formar um curso de ação viável, à luz dessas emoções
conflitantes e entendimentos; e as suas campanhas políticas, para pressionar
por reformas, usaram a retórica para apelar para a emoção tanto quanto para
a razão. Foi a partir da configuração contingente e histórica dessas
comunidades cristãs que a crítica da escravidão surgiu, e não das crenças
puramente teóricas e metafísicas enunciadas por teóricos fora de qualquer
contexto cultural e moral preexistente. Ninguém pode pisar fora do círculo
hermenêutico a fim de estabelecer uma visão moral a partir de lugar nenhum,
mas alguém pode criticar os valores e os padrões dominantes da sua
comunidade a partir dos insights criativos e sensíveis que surgem do seu
caráter moldado em comunidades específicas.
O meu argumento defende que a objeção ao relativismo da ética da virtude
com base em que não permitiria a crítica racional das práticas imorais falha
por dois motivos. Primeiro não há fundamento incontroverso, objetivo,
metafísico ou a priori a partir do qual estabelecer essa crítica. E, em segundo
lugar, o caráter moldado pela comunidade ou tradição pode motivar essa
crítica devido à sua inerente criatividade e sensibilidade ao valor.
Psicologia moral
I
Mencionei na introdução que as teorias morais ou são baseadas ou
implicam teorias da natureza humana ou uma “psicologia moral”. A teoria
moral de Kant, por exemplo, implica que a pessoa humana tem faculdades
distintas, tais como “razão” e “inclinação”, e então insiste que as decisões
morais devem ser tomadas exclusivamente com base na razão. Kant insistiu
que a única característica dos seres humanos que tinha valor moral era a sua
vontade, que foi concebida como a faculdade da sua decisão racional. Mesmo
agir por amor não era moralmente digno, uma vez que o amor era um
sentimento que reduzia a nossa capacidade de pensar com clareza. Essa forma
de dualismo, que postula uma distinção entre a razão e motivos não racionais,
tais como a emoção, o desejo e a inclinação, é característica da maioria das
teorias morais centradas no dever, de Platão até hoje. Mesmo hoje, a maioria
das pessoas interpreta a luta moral que por vezes sofre em situações de
dificuldade, como sendo uma luta entre a razão e as inclinações básicas. Esse é
o motivo pelo qual a maior parte das teorias do dever enfatiza dessa forma a
razão e considera como sua tarefa controlar e canalizar os desejos que surgem
em partes menos dignas do nosso ser.
Além disso, esse dualismo razão/desejo está mapeado na clássica distinção
alma/corpo, e na distinção cartesiana mente/corpo. A razão é dita ser uma
característica da alma ou da mente em sua forma pura, ao passo que as
emoções são ditas surgirem do corpo e das nossas naturezas biológicas. A
bondade moral era vista como uma qualidade da alma, enquanto o corpo era
a fonte de distração e tentação. Isso até mesmo levou alguns teóricos a sugerir
que as mulheres não eram capazes de serem morais, já que as suas motivações
eram dominadas por seus corpos, sentimentos e emoções.
Este não é o lugar para debater essas questões filosóficas muito amplas, mas
é importante notar que a ética da virtude pensa acerca do agente humano em
termos mais holísticos. Na medida em que as virtudes bem-arraigadas são
hábitos adquiridos através da instrução e da prática, elas estão inscritas no
corpo. Assim como os músicos treinados terão suas competências
incorporadas às suas próprias mãos – é inútil pensar acerca de uma sonata e
imaginar sua beleza se os seus dedos não são capazes de executá-la –, assim
uma pessoa de bom caráter responderá direta e visceralmente a situações que
exigem preocupação ética. Tão logo uma pessoa generosa vê outra em
necessidade, sente uma inclinação em seu corpo a ajudar, bem como é
movida a pensar sobre o que pode fazer. Eu já salientei a importância das
emoções em uma pessoa virtuosa. É porque se preocupam com os outros que
as pessoas gentis são movidas a ajudar, e esse cuidado é sentido no corpo
como angústia pelo sofrimento dos outros e alegria com o seu alívio,
juntamente com os sentimentos de estar motivado a se engajar na deliberação
prática.
Uma analogia suplementar para se explicar este ponto surge do esporte.
Embora não seja central à esfera da moralidade como concebida pela ética do
dever, o esporte ilustra muito bem a natureza da virtude. Ele envolve
características que as pessoas admiram: habilidade, velocidade, tenacidade,
coragem, trabalho em equipe, determinação e uma disposição a sacrificar o
prazer ao treinar em prol da conquista. Muitos desses admiráveis traços são
virtudes que também podem ser exibidas em outros campos de empenho,
mas o ponto-chave que eu quero destacar neste momento é que essas
qualidades estão inscritas e exibidas nos corpos dos atletas e das atletas aos
quais admiramos. É a sua aptidão e sua habilidade em jogar o jogo e em
competir que manifesta essas virtudes. Elas não são apenas qualidades
mentais e, em particular, não são puramente qualidades da razão ou do
pensamento. Embora estejam presentes em suas mentalidades e atitudes, o
lugar preeminente dessas qualidades é nos corpos dos atletas e na maneira
como eles jogam o jogo. Desta forma, como uma esfera específica da virtude,
o esporte ilustra a celebração do corpo que o holismo da ética da virtude
permite.
II
Ao enfatizar a razão prática em detrimento de outras motivações, a ética do
dever partilha com a tradição filosófica padrão do Ocidente uma fé
considerável na lucidez da consciência. Desde quando Sócrates disse:
“Conhece-te a ti mesmo” tem sido assumido que a reflexão concede-nos
acesso privilegiado ao nosso próprio pensamento. Descartes encorajou essa
tradição de pensamento com a sua concepção de uma mente que era como
um palco de teatro no qual a percepção e o pensamento introduzidos
interpretavam-se a si mesmos perante o “olho da mente” empenhado na
introspecção. Presume-se que pessoas lúcidas podem se conhecer a si mesmas
e entender as suas próprias motivações e propósitos. Essas pessoas também
podem pensar de modo imparcial e saber que estão sendo imparciais. Elas
podem pensar logicamente e saber que estão sendo lógicas. E, com adequado
autocontrole, elas podem deliberar sem nenhuma distração oriunda dos
desejos ou inclinações que podem estar escondendo-se nos mais escuros
recessos das suas mentes. A noção de razão prática que é central para a ética
do dever presume essa concepção da pessoa humana. Foi alegado que, a não
ser que se adotassem tais pressupostos, os agentes não poderiam ser
considerados responsáveis pelas suas ações. A menos que os motivos da ação
fossem claros para os próprios agentes, teríamos que pensá-los como estando
nas garras das inclinações, emoções ou desejos dos quais não tinham qualquer
conhecimento. E se não tinham qualquer conhecimento deles, então
tampouco poderiam ser responsáveis por eles, visto que não os poderiam ter
controlado. Seguir-se-ia que suas ações seriam tão involuntárias quanto as
ações impulsivas do bêbado ou do insano.
A partir de Sigmund Freud não temos sido tão confiantes assim acerca da
lucidez da consciência. Nós agora sabemos que podemos ser movidos por
votivos – sejam estes descritos como “pulsões” ou “instintos” – dos quais não
temos conhecimento ou só podemos nos tornar conscientes após
considerável esforço. Além disso, os filósofos questionaram a concepção
cartesiana de uma mente transparente à sua própria introspecção. Segue-se
que já não se pode sustentar que o primeiro passo no sentido de se tornar
moral consiste em pensar de forma racional e autoconsciente de uma maneira
que podemos saber ser abstraída dos nossos motivos internos e ocultos. Em
vez disso, o primeiro passo para se tornar moral é ser treinado para agir bem
e, assim, internalizar os motivos que nos levam a agir bem. Esse pode ser um
processo do qual o agente não está plenamente consciente. É suficiente que os
pais e professores deste agente moral iniciante tenham alguma ideia do que
estão fazendo. Quando pessoas jovens passam a conhecer a elas próprias e ao
seu mundo em seus próprios termos limitados, elas descobrem que têm
atitudes éticas, convicções morais e relações interpessoais já estabelecidas, e
seu pensamento prático está situado dentro de um campo motivacional pré-
formado, do qual eles mal se dão conta. A ênfase que a ética da virtude coloca
sobre o caráter reconhece a relativa falta de autoconhecimento que é típica da
condição humana. Como a boa literatura e o cinema ilustram, nós
frequentemente não entendemos as nossas próprias motivações. Segue-se que
não é possível saber se a sua deliberação moral está inteiramente livre de
preconceito ou se a sua postura ética é totalmente imparcial. (Para lhe ser
justo, mesmo Kant admitiu nunca podermos ter a certeza de que agimos
motivados pelo dever.) Você pode apenas esperar que as inclinações e os
preconceitos desenvolvidos em você como parte da sua criação tenham sido
éticos. Se você vem a pensar que não o são – e este pensamento inicialmente
surgirá de um sentimento visceral de inquietação perante os compromissos
éticos que lhe parece vir naturalmente – então você terá que empenhar um
esforço considerável para modificar a si mesmo para melhor. Nós nunca
conhecemos totalmente a nós mesmos e nunca controlamos totalmente a nós
mesmos a partir de uma posição de razão pura e autoconsciente.
III
Outro pressuposto profundamente arraigado da ética do dever é que os
agentes morais são indivíduos concebidos como “átomos sociais”. O que
quero dizer com isto é que o agente moral individual é visto como decidindo
o que fazer de uma maneira pura e abstrata, sem referência a quaisquer
vínculos emocionais que possa ter. A noção de um “átomo social” capta isso
porque na física clássica um átomo é uma entidade fechada em si mesma e
autossuficiente, que pode entrar em interações com outros átomos somente
impactando- os ou sendo impactados por eles externamente. Não há qualquer
ligação interna entre os átomos: nenhum laço de afeto ou vínculo
comunitário. Isso é mais bem-ilustrado pela história do edifício em chamas
que contém o brilhante cientista e a sua mãe idosa. O pensamento
imparcialista exige que você salve a pessoa que poderia trazer os maiores
benefícios para os outros. Você é exortado a desconsiderar o seu apego pela
sua mãe. Dado que o seu apego pela sua mãe dá origem a uma inclinação ou
emoção que não deve ser permitido influenciar a sua tomada de decisão
moral, tais apegos devem ser desconsiderados. A ética do dever
frequentemente vislumbra o agente moral ideal como sendo um indivíduo
isento do tipo de vínculo que distrairia a tomada de decisões daquilo que o
dever exige.
O discurso dos direitos, deveres e obrigações é um discurso que busca criar
conexões entre pessoas concebidas como átomos sociais baseado em razões
externas decorrentes da teoria moral. Muitos teóricos morais explicam essas
conexões utilizando o modelo de um contrato. Estou obrigado a fornecer-lhe
um saco de batatas e você tem o direito de reclamá-las de mim se nós
tivermos firmado um contrato pelo qual você me paga por essas batatas. Nem
todos os contratos são explícitos e escritos em um pedaço de papel, e o
“contrato social” que é postulado pelos teóricos morais como estabelecendo a
sociedade civil como um sistema mútuo de obrigações e direitos é um
contrato implícito desta maneira. Como resultado desse contrato, o único
vínculo que eu tenho com você no mundo da ética do dever é a obrigação que
tenho em relação a você, ou o direito que você pode reclamar contra mim que
o pensamento puro e imparcial terá estabelecido teoricamente. Qualquer
outro vínculo físico ou afetivo deve ser ignorado.
Em contrapartida, a ética das virtudes concebe os seres humanos como
interdependentes e sociais em seu próprio ser. Nós não somos primeiramente
entidades distintas que, em seguida, entram em arranjos quase contratuais.
Somos criados dentro de vínculos familiares e comunitários. A ética da
virtude reconhece que não entramos na esfera da moralidade como
indivíduos autônomos completamente formados. Nós somos, primeiramente
que tudo, crianças. Como crianças, vivemos uma vida de dependência dos
nossos pais ou de outras pessoas que desempenham o papel dos pais. Estamos
carentes e formamos laços de dependência e afeição com aqueles que
satisfazem as nossas necessidades. Nossos pais e professores fornecem não
apenas nutrição e sustento, mas também a formação dos nossos caracteres.
Eles nos ensinam como nos comportarmos, quais exemplares de
comportamento virtuoso emular, quais modos de vida admirar e quais coisas
de valor respeitar e responder. Na medida em que essas lições são ensinadas
dentro do contexto de relacionamentos cuidadosos e carinhosos, eles são
investidos de um senso de importância. Nosso amor pelos nossos educadores
torna-se exprimível na maneira como aderimos às normas e ideais que eles
nos ensinaram. Tornamo-nos inclinados a fazer o que é virtuoso antes
mesmo de avaliar racionalmente por que é virtuoso. Essa inclinação é um
votivo que precede o desenvolvimento dos nossos poderes racionais e que
nunca pode ser completamente substituído por esses poderes, embora
possamos vir a sentir que essas inclinações devem ser criticadas e
remodeladas. Insistir que devemos abordar a tomada de decisão moral com
uma razão a priori é ignorar a maneira como nos desenvolvemos como seres
humanos.
II
Um ato supererrogatório é um ato que é bom executar, mas não é exigido
por dever. Ajudar alguém quando há várias outras pessoas ao redor que estão
dispostas a ajudar seria um exemplo. Outro exemplo seria estudar muito para
um teste que você já está seguro de passar. Tais ações estão fora do âmbito do
dever e precisam ser entendidas em termos de tais conceitos grossos da
virtude humana como “generosidade” ou “diligência”. Deste modo, a noção
de “ação supererrogatória” opera de maneira diferente nas duas tradições da
teoria ética.
A principal razão para esta diferença é que a noção de “bom” opera
diferentemente nas duas tradições. De fato, como indiquei em “Terminologia
moral”, § IV, na ética do dever é amplamente substituída pela noção mais
jurídica de “certo”. É de primordial importância fazer a coisa certa e evitar
fazer a coisa errada. Ser uma boa pessoa consiste em simplesmente ser
inocente de qualquer delito. Embora também possa ser possível ser bom
fazendo coisas que estão acima e além do chamado do dever – isto é, praticar
ações supererrogatórias –, a questão central é fazer a coisa certa. Eticistas da
virtude, por outro lado, reconhecem que as pessoas admiram umas às outras
por uma grande variedade de boas qualidades. Nós admiramos a coragem, a
tolerância, o respeito, a integridade, a humildade, o orgulho justificado, a
fortaleza e um conjunto de traços positivos de caráter. Não gostamos, e até
mesmo desprezamos, a desonestidade, a improbidade, a subserviência, a
vaidade, a preguiça e toda uma variedade de vícios. E os nossos sentimentos
de aprovação ou desaprovação admitem vários graus de intensidade. Ao
contrário do isso/aquilo dos juízos de bem/mal ou certo/errado, nossas
avaliações de virtude são qualitativas ao longo de vários eixos. Haverá nossa
compreensão da situação e, portanto, de qual virtude está sendo exibida.
Haverá a nossa avaliação da importância do que é eticamente saliente na
situação. Haverá também a nossa compreensão da pessoa e da sua história
pessoal, de modo a que apreciemos quão fácil ou difícil é para ela agir
virtuosamente. Em suma, os julgamentos dos outros que fazemos de uma
perspectiva da virtude são complexos, multiplamente nivelados e sensíveis.
Como as decisões que tomamos a partir dessa perspectiva são peculiares a
situações específicas e não gerais na forma. E somos tão propensos a elogiar
as pessoas que manifestam virtude quanto a impor vergonha àqueles que não
conseguem fazê-lo. As pessoas podem ser boas de muitas maneiras e nem
todas estas incidirão sobre deveres específicos. Portanto, a ética da virtude
verá muitas boas ações como sendo supererrogatórias, mas não verá isso
como um problema. As ações acima e além do chamado do dever são apenas
o que você esperaria de pessoas boas e virtuosas.
Resumo e conclusão
Esse capítulo detalhou vinte e três contrastes entre uma ética do dever e
uma ética da virtude. A melhor maneira de resumi-los é consultar a Tabela 1.
No entanto, minha intenção não era apenas a de mostrar uma série de
diferenças entre as duas tradições. Foi também a de sugerir o seguinte:
• A ética da virtude faz um trabalho melhor na realização das quatro tarefas
da teoria moral: entender a moralidade, prescrever normas, justificá-las e
descrever o modo como elas dizem respeito às nossas vidas.
• Entende a moralidade como uma construção social que tem a função de
ordenar a vida social e dar sentido às vidas dos indivíduos.
• Prescreve normas na medida em que estipula quais traços de caráter e
quais comportamentos característicos são admiráveis, e justifica essas
normas, mostrando como esses traços e comportamentos são propícios a
uma vida social ordenada e a uma existência pessoal significativa.
• Ainda mais importante é o fato de que a ética da virtude fornece uma
descrição das nossas vidas sociais, e depende de uma concepção filosófica
da existência humana, que está em conformidade com a vida real.
• Essas sugestões tenderam a desafiar algumas das doutrinas centrais da
tradição da ética do dever: aquelas do realismo moral e da objetividade das
normas morais, da centralidade da razão em nossas vidas e do conceito de
ação correta.
Mas este capítulo não foi capaz de argumentar detalhadamente em favor de
nenhuma destas sugestões. Na verdade, não é o propósito deste livro proceder
a uma crítica aprofundada das diversas formas de ética do dever. O que eu me
proponho a fazer nos capítulos que se seguem é proporcionar uma
fundamentação teórica mais aprofundada para as observações que fiz sobre a
ética da virtude e também mostrar que algumas das tarefas centrais da teoria
moral podem ser realizadas por ela. Por conseguinte, volto-me no próximo
capítulo para as ideias de Aristóteles, em cuja teoria eu me baseio em termos
gerais a fim de justificar a minha própria posição. Através dessa discussão
demonstrarei particularmente que a ética da virtude está mais de acordo com
a nossa compreensão de nós mesmos como agentes morais do que a ética do
dever.
2
A ética de Aristóteles
As metas da vida
Neste capítulo procederei a uma visita rápida a uma obra central de
Aristóteles (384-323 a.C.): a Ética a Nicômaco. Esse livro não versa
primariamente acerca da moralidade tal como a entendemos hoje. O que
Aristóteles entende por “ética” pode ser discernido se considerarmos a raiz
grega antiga do termo: ethos. Esse termo refere-se aos costumes de uma
sociedade, incluindo a atitude característica perante a vida que é adotada pela
maioria dos membros dessa sociedade. Falar sobre ética neste sentido consiste
em falar acerca do comportamento habitual dos membros de um povo, dos
padrões de excelência humana aos quais eles se submetem, e das atitudes por
meio das quais eles expressam o seu caráter como um povo. Estas incluirão as
atitudes que eles têm uns para com os outros. Qual tipo de pessoa os
membros de uma determinada sociedade admiram? Quais tipos de ações eles
louvam e quais desprezam? Além disso, Aristóteles oferece-nos uma teoria
acerca dos seres humanos e do que significa para eles prosperar: uma teoria
que embasará bons conselhos acerca de como viver bem a vida. Ele não toma
a si mesmo como alguém que esteja estabelecendo a lei moral para os seus
concidadãos da antiga Atenas. Ele presume que todos compreendem quais
ações são erradas, e que ninguém seria tentado a pensar que matar alguém,
por exemplo, poderia ser qualquer parte de uma resposta à questão de como
devemos viver nossas vidas. O que pensaríamos hoje como proibições morais
deste tipo não foi objeto de discussão no texto de Aristóteles, porque atitudes
em relação a elas não eram opcionais, ou tampouco uma questão de
julgamento individual. Para Aristóteles a questão era “Como devemos viver
bem?” ao invés de “Qual é a coisa moralmente correta a se fazer?”
Se, então, nossas atividades têm algum fim que queremos por si
mesmo, e por causa do qual queremos todos os outros fins – se não
escolhemos tudo por causa de outra coisa (porque isso envolverá uma
progressão infinita, de modo que o nosso objetivo será vão e inútil) – é
evidente que este deve ser o Bem, que é o bem supremo
(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1094a17-22).
Aristóteles inicia o seu livro dizendo que o bem, ou objetivo que visamos
em qualquer projeto dado, pode ser ele mesmo questionado acerca daquilo
para o que é bom. Se eu disser que estou estudando filosofia a fim de
aumentar minhas perspectivas de trabalho, posso prosseguir perguntando por
que eu iria querer aumentar minhas perspectivas de trabalho. E se eu
responder dizendo que quero mais dinheiro, posso então prosseguir
perguntando por que eu quero mais dinheiro. E se eu disser que é porque eu
quero viver na suntuosidade, posso perguntar por que quero viver na
suntuosidade, e assim por diante. Em algum momento é provável que eu
atinja uma resposta do tipo “Porque eu quero ser feliz”, e este é um ponto
além do qual o meu questionamento não pode ir. Por que não? Porque não
faz qualquer sentido perguntar “Por que eu quero ser feliz?” Esta é uma meta
ou um bem que não precisa de nenhuma outra razão ou justificação. A série
de questões “Por que este é um bem ou uma meta que vale a pena?” chega ao
fim quando você identifica um objetivo que se justifique a si mesmo, ou que
não precise de nenhuma justificação suplementar. Aristóteles afirma que há
um ponto-final em qualquer uma dessas séries de questões: uma coisa que
todos nós queremos por causa dela mesma. E ele chama isso de “o Bem”.
Aristóteles explica que o Bem para os seres humanos consiste na
eudaimonia (uma palavra grega que combina eu, que significa “bom”, com
daimon, que significa “espírito”, e é mais frequentemente traduzida como
“felicidade”). Embora ele tivesse argumentado de uma maneira puramente
formal que o Bem era aquilo a que todos nós ambicionamos, ele agora dá uma
resposta mais substantiva: a de que esta meta humana universal é a felicidade.
No entanto, ele é rápido em apontar que essa conclusão é ainda um tanto
quanto formal, uma vez que pessoas diferentes têm diferentes opiniões acerca
do que é felicidade. Algumas pessoas dizem que é prazer mundano, enquanto
outras dizem que é a salvação eterna. A teoria de Aristóteles vai se mostrar
“naturalista”, uma vez que não depende de qualquer conhecimento teológico
ou metafísico. Ela não depende do conhecimento de Deus ou de normas
morais metafísicas e universais. Depende apenas do conhecimento da
natureza humana e de outras realidades mundanas e sociais. Para ele é o
estudo da natureza humana e da existência mundana que desvendará o
significado pertinente à noção de eudaimonia.
O pensamento de Aristóteles é teleológico (das palavras gregas, telos, que
significa “objetivo”, e logos, que significa “conhecimento”). Isso significa que
ele entende as coisas em termos dos objetivos que elas perseguem e das
funções para cuja execução elas foram projetadas. Note-se que uma “meta”,
neste sentido, não precisa ser um propósito conscientemente entretido pela
coisa que se diz ter o objetivo. Assim como uma planta manifesta o objetivo
de crescer e propagar-se a si mesma (basta ver o esforço de uma erva daninha
que abre à força o seu caminho através do concreto de um estacionamento), e
um animal manifesta o objetivo de sobreviver o tempo suficiente para
propagar-se para a próxima geração, assim também os seres humanos
manifestam objetivos. Aristóteles toma como exemplo um flautista. O
objetivo, propósito ou função de um flautista é tocar a flauta e fazê-lo tão bem
quanto possível. De modo semelhante, sugere Aristóteles, os seres humanos
têm um objetivo ou uma função. De uma forma puramente esquemática,
poderíamos dizer que a meta de uma existência humana é fazer aquelas coisas
que são distintamente humanas, e fazê-las bem, isto é, ser bom como um ser
humano. Ora, as atividades distintamente humanas são atividades racionais,
uma vez que Aristóteles pensa que um ser humano é um animal que se
distingue dos outros animais por ser racional. Assim, o desempenho das
funções de um ser humano, ou ser bom em ser um ser humano, consiste no
exercício da racionalidade em ações que são racionais. Aristóteles refere-se à
atividade racional que nos fará felizes como atividade virtuosa. Nós seremos
felizes, diz ele, quando agirmos de acordo com a virtude, e seremos os mais
felizes quando agirmos de acordo com a mais elevada forma de virtude. Esse
esquema teleológico fornece a estrutura básica do livro de Aristóteles.
Portanto, qualquer discussão sobre ética, na medida em que concerne à
natureza e aos objetivos da vida humana, deve discutir o que é ser um ser
humano e o que é satisfazer as tendências inerentes à nossa natureza como
seres humanos. Aristóteles nos oferece a sua concepção do que é um ser
humano descrevendo a alma humana. Ele identificou quatro “partes da alma”
como constituintes de um ser humano completo. Estas eram a vegetativa, a
apetitiva, a deliberativa e a contemplativa. Visto que essas categorias são tão
importantes, devo investir algum tempo descrevendo-as e antecipando
algumas das maneiras pelas quais Aristóteles fará uso delas mais adiante no
texto.
O nível vegetativo
O nível vegetativo da nossa existência é o que descreveríamos hoje como o
funcionamento biológico do nosso corpo. Consiste naqueles diversos
processos de crescimento, metabolismo, circulação sanguínea e assim por
diante, que constituem o funcionamento dinâmico da nossa existência
corporal. O aspecto vegetativo do nosso ser consiste no corpo concebido
como uma máquina. Note-se, porém, que, enquanto o corpo como máquina
foi concebido pelo modernismo cartesiano como uma entidade objetificada e
puramente biológica – um corpo sem personalidade ou subjetividade –,
Aristóteles não teoriza o corpo dessa maneira abstrata. Sua terminologia pré-
moderna, “partes da alma”, deixa claro que ele está falando sobre um aspecto
de um todo. A alma é o todo, princípio animador singular e distintivo da
pessoa, e delinear uma “parte” dele implica não identificar uma entidade que
constitui uma porção de um todo maior da mesma forma que um motor é
uma parte de um carro: a parte que o faz mover-se. Em vez disso, deveríamos
pensar que Aristóteles identifica diferentes tipos de funcionamento que
compõem a totalidade da pessoa viva, ativa e pensante. A “parte” vegetativa
da alma, ou o corpo vivo, compreende aqueles aspectos da existência
dinâmica da pessoa humana que centralmente envolvem o seu corpo. Esses
aspectos não podem ser distinguidos clara ou definitivamente de outros
aspectos da existência humana.
Aristóteles compreende a parte vegetativa da alma como um modo de
funcionamento da pessoa que visa a um objetivo específico. Para ele todas as
partes da alma têm uma tendência ou objetivo intrínseco que é distintivo
delas, e que elas buscam cumprir. Eu não uso a minha pele para me proteger
de infecções e outras feridas; a pele em si mesma tem esse propósito, esse
objetivo. Esse é o seu objetivo intrínseco, e ela é boa como pele na medida em
que cumpre este objetivo.
O nível apetitivo
A postulação aristotélica de uma “parte apetitiva da alma” é baseada no fato
óbvio de que os seres humanos desejam coisas e se esforçam para alcançá-las.
Da mesma maneira que compartilhamos a parte vegetativa da nossa alma
com as plantas, assim compartilhamos a parte apetitiva da nossa alma com os
animais. É evidente a partir da mera observação que os animais desejam
coisas. De fato, pode-se dizer que as suas vidas inteiras são governadas por
desejos. Quando o nosso gato de estimação não está dormindo, está
constantemente ativo, em busca da satisfação de uma variedade de desejos
que ele parece ter. E isto também se aplica aos seres humanos.
Que temos apetites e desejos é inegável. Está na natureza do tipo de ente
que somos sermos desejosos, estarmos voltados para as coisas que queremos e
para um futuro que buscamos, e nos esforçarmos pelos objetos da nossa
inclinação. Não somos apenas seres passivos aos quais as coisas acontecem e
que só podem agir se provocados a fazê-lo por forças externas. Nossos desejos
e motivações são as fontes internas da energia e do entusiasmo com os quais
encaramos a vida.
O aspecto apetitivo do nosso ser também nos permite compreender a
emoção e o sentimento. Na medida em que o desejo gera movimento em
nosso ser na direção da cognição, da ação e da reação, existe um aspecto
dinâmico da nossa existência cujo fluxo é muitas vezes experimentado como
sentimento. Não estamos simplesmente ativamente comprometidos com o
mundo e com os outros, mas experimentamos esse comprometimento como
desejo, curiosidade, anseio e prazer. Quando o desejo é frustrado sentimos
dor ou angústia. Quando tais sentimentos estão integrados com a cognição
experimentamos emoções. Emoções tais como medo, raiva ou alegria
combinam uma apreensão cognitiva da situação na qual nos encontramos
com sentimentos incipientes. Não fôssemos seres desejosos, tais reações não
ocorreriam em nós. E tampouco ocorreriam não fôssemos seres inteiros e
integrados. A dimensão cognitiva da existência precisa estar presente para
que a emoção seja possível. Mesmo um animal precisa apreender o perigo em
seu ambiente de alguma maneira a fim de manifestar a sua tendência à
sobrevivência sentindo medo e fugindo.
Observe-se que o aspecto desejoso do nosso ser também é
fundamentalmente teleológico. Na verdade, é quase definidor do que a
teleologia significa para Aristóteles. Ser desejoso de algo é a maneira humana
ou animal de ter uma tendência a um objetivo. Quer esteja ou não presente à
consciência, o desejo constitui a orientação do organismo para aquilo que
satisfaria a sua necessidade ou atenderia a sua tendência. Mas estes seriam
objetivos externos do organismo. O objetivo interno do desejo ou apetite
pode ser entendido, não como um desejo de algo fora do organismo, como o
desejo de uma criança por sorvete, mas como um comportamento do
organismo em prol da sua própria realização. Para distinguir esta ideia da
noção de senso comum de desejo, onde desejo é sempre um desejo de algum
objeto, Aristóteles sugere que o aspecto apetitivo do nosso ser é a tendência
do organismo a buscar a sua própria realização através da excelência dos seus
desejos. Essa realização não é apenas a excelente busca dos seus desejos ou a
consumação bem-sucedida deles, mas também o ter desejos que aperfeiçoem
o seu ser. Desejar as coisas certas é tão importante quanto obter o que é
desejado. Desta forma, uma pessoa que deseje drogas que viciam não
cumprirá o objetivo interno do seu ser, tenha ela obtido ou não aquilo que
deseja. Trata-se de um desejo autodestrutivo.
Como veremos mais adiante, é este ponto que permite Aristóteles tirar as
implicações éticas de que deveríamos desejar bem, e ele entende isso não
apenas em termos dos objetos externos do nosso desejo, mas também em
termos de qualidades internas, tais como a intensidade do desejo, e se o desejo
desenvolve o nosso ser. Nossos desejos devem ser uma expressão de
inclinações autorrealizáveis, e não devemos ser excessivos ou deficientes em
nossos desejos. Em um tom menos moralista podemos tirar a conclusão de
que o fato de termos desejos é parte do que constitui a riqueza e o estímulo de
nossas vidas. Podemos desfrutar o ato de desejar.
O nível deliberativo
Aristóteles distingue as partes vegetativas e apetitivas da alma da parte
racional. Ele pensa neste último aspecto do nosso ser como sendo o que nos
distingue como seres humanos, e diz que os animais não o partilham. Ele
então prossegue sugerindo que o problema ético que todas as pessoas
enfrentam é o de manter a parte racional da sua alma no controle da parte
desejosa. Segundo essa visão, viveremos nossas vidas bem se a nossa razão
controlar as nossas inclinações. Essa é uma visão que foi desenvolvida por
Platão e que desde então tem sido adotada pelo cristianismo e por Kant como
uma descrição da nossa psicologia moral. No entanto, a visão de Aristóteles
da psicologia interna dos seres humanos se mostrará consideravelmente mais
complexa do que essa. Primeiro, a parte racional da alma é ela mesma
dividida em dois diferentes tipos de função – a “deliberativa” e a
“contemplativa” – e, depois, a maneira como exercitamos o autocontrole se
mostrará muito mais sutil do que seria sugerido pelo modelo de Platão.
A terceira parte da alma que Aristóteles identifica é a parte “deliberativa”
ou “calculativa”. Ele tem em mente a nossa capacidade de pensar acerca do
que fazemos, planejar as nossas ações, ser estratégico na abordagem das
nossas necessidades e rever a efetividade que fizemos. Ao invés de serem
movidos por instintos ou hábitos, os seres humanos podem ser racionais e
reflexivos em sua abordagem das exigências da vida. É esse aspecto do nosso
ser que tenta os filósofos modernos às maneiras dualistas de pensar. É esse
aspecto do nosso ser que nos leva a postular uma “faculdade” denominada
“razão” ou uma “substância pensante” chamada “mente”. Aristóteles não
comete tal erro. Ele a vê como apenas um aspecto ou nível do nosso ser
inteiro, tanto quanto via o aspecto vegetativo e o apetitivo. Deliberação ou
pensamento racional é apenas uma das funções que os seres humanos inteiros
desempenham e através da qual podem realizar-se a si mesmos em seu ser.
Observe-se que a função deliberativa também é teleológica nas duas
maneiras que eu havia identificado: ter objetivos internos e externos. A nossa
deliberação, como Aristóteles o dirá mais tarde, trata dos meios necessários
para alcançarmos os nossos objetivos. É estratégica. Nesse sentido, é
direcionada para um objetivo. Mas também é teleológica no sentido de que o
nosso fazê-la bem constitui uma realização do nosso ser. Na medida em que
somos seres racionais, gostamos de exercitar nossos intelectos. Que joguemos
xadrez e outros jogos mentais demonstra que obtemos uma satisfação do
mero exercício das nossas funções deliberativas, estejam ou não direcionadas
a algum propósito externo a nós. Essa realização interna é o objetivo inerente
ao aspecto deliberativo do nosso ser.
A parte deliberativa do nosso ser está inextricavelmente ligada à ação. Para
Aristóteles é distintivo dos seres humanos que ajamos racionalmente. Nós
nos engajamos em ações e práticas que possuem objetivos, e a nossa
deliberação é nosso pensamento sobre o modo como esses objetivos práticos
podem ser alcançados. Ora, esses objetivos são, mais uma vez, de dois tipos.
Há os mais óbvios objetivos externos, que são os fins que buscamos em nossas
ações, e há os objetivos internos, que são as satisfações que vêm de se fazer
bem o trabalho. Elas são internas no sentido de que o agente as experimenta
mais ou menos autoconscientemente como sentimentos de realização, ou de
satisfação no exercício da tarefa. Assim como um artesão, saboreando a mera
atividade física de trabalhar com seus materiais, seria um exemplo da
realização dos aspectos apetitivos do seu ser, visto que a sua satisfação decorre
do fato de ele sentir-se a si mesmo capaz de superar dificuldades e de usufruir
uma forma de bem-estar físico na relação com os seus materiais, assim um
trabalhador cujo trabalho envolva pensar, calcular e planejar gosta de superar
as dificuldades que os problemas intelectuais colocam. Sendo seres racionais,
realizamos a nós mesmos quando pensamos com clareza, coerência e
efetividade, de modo a aumentar a nossa capacidade de atingirmos os nossos
objetivos. Essas habilidades racionais são os objetivos internos ou
“excelências” do nosso funcionamento como seres deliberativos nas esferas
práticas da vida.
O nível contemplativo
A quarta parte da alma ou aspecto de nosso ser que Aristóteles identifica é
o que ele chama de parte contemplativa. Ele vê a contemplação como um
aspecto adicional do nosso raciocínio, mas é distinta da parte deliberativa em
termos daquilo de que trata, isto é, em termos dos seus objetos. Enquanto a
razão deliberativa concerne aos meios que precisamos para alcançar nossos
objetivos e às coisas que podemos mudar no mundo pelas nossas ações, a
razão contemplativa concerne às coisas que não podemos mudar. O que
Aristóteles tem em mente aqui inclui os objetivos e valores que perseguimos
(os quais ele crê serem dados pela nossa natureza humana), as leis da natureza
física, que ordenam o modo como o mundo funciona, e a natureza e a
vontade dos deuses. Em suma, Aristóteles sugere que o aspecto contemplativo
do nosso ser é separado da nossa vida ativa, e é satisfeito pelo pensamento
acerca das coisas eternas e imutáveis. Exemplos de tal pensamento incluiriam
a física teórica, a matemática, a filosofia e a teologia. Penso nisso como uma
forma de pensamento teórico, que tem como objetivo a compreensão do
universo e da nossa existência nele, e que tem como sua satisfação interna e
realização a criação de um sentido de inteireza e significado em nossas vidas.
Estamos interessados em tais grandes questões como a origem e a natureza do
universo, a fonte e o sentido da moralidade, a existência ou inexistência de
Deus e a significância da beleza e da verdade em nossas vidas, porque pensar
sobre essas coisas (obtenhamos ou não respostas) é parte do que confere
sentido às nossas vidas. Além disso, ter uma teoria acerca dessas coisas (quer
a adquiramos da nossa cultura ou por nossos próprios esforços) confere às
nossas vidas uma integridade ou estrutura na qual os acontecimentos do dia a
dia podem ganhar seu significado como parte de um todo coerente. Permite-
nos sentir que somos parte de uma história ou de uma realidade mais ampla.
A satisfação deste aspecto do nosso ser não consiste necessariamente em se
obter respostas comprovadamente verdadeiras para as nossas questões
teóricas. Ao contrário, a satisfação deste aspecto do nosso ser consiste em
contemplar bem. Isso significa sermos honestos com nós mesmos e sermos
consistentes. Significa não nos agarrarmos a falsas esperanças ou teorias
meramente confortantes se elas forem inconsistentes com as nossas outras
crenças. Significa ter uma fé que não seja superstição. Significa não ser
superficial ou leviano. E significa ser capaz de afirmar a vida com o nosso
intelecto mais espiritual, assim como com a nossa mais profunda emoção.
Virtudes de caráter
Conforme acabamos de ver, Aristóteles distinguiu as funções vegetativas e
apetitivas da alma das funções racionais (as quais ele mais tarde divide em
calculativas e contemplativas). Na medida em que escolhe desconsiderar a
parte vegetativa da alma ainda mais, podemos resumir a distinção de
Aristóteles como sendo uma dupla distinção entre as funções desejosas e as
funções racionais. Cada um destes tipos de função pode ser exercido bem ou
mal. Ao exercê-los bem, exibimos virtude. Portanto, existem dois tipos de
virtude, correspondendo aos dois tipos de função. Existem as virtudes
“intelectuais”, que consistem no bom exercício das nossas funções racionais, e
existem as virtudes de caráter (frequentemente traduzidas erroneamente
como “as virtudes morais”) que consistem no bom exercício das nossas
funções apetitivas. Nesta seção exploraremos as virtudes de caráter.
As virtudes intelectuais são o resultado da aprendizagem, e as virtudes de
caráter são o resultado do treinamento do hábito. Nós não nascemos
virtuosos. Isso é interessante porque é plausível que nasçamos com certos
traços de caráter e talentos. Algumas crianças parecem “naturalmente” mais
barulhentas do que outras e algumas parecem mais curiosas a partir de uma
tenra idade. Enquanto teóricos debatem profundamente a questão da
“natureza ou criação”, parece que alguns padrões básicos de personalidade
são genéticos. Está certamente claro que os nossos talentos o são. Que os
dedos de algumas pessoas movam-se mais facilmente sobre o teclado do
piano, ou que algumas pessoas sejam altas e ágeis o suficiente para serem boas
no basquete, parece ser um produto de dotação natural. Isso não implica
negar que prática e treinamento podem compensar uma falta de vantagem
natural em alguns casos, mas há outros casos nos quais o talento natural
contribui claramente para as realizações que uma pessoa exibe na vida. No
entanto, essas habilidades naturais não são consideradas virtudes, mesmo
embora elas sejam admiráveis e possam contribuir para a eudaimonia.
Mesmo se ser um bom pianista requer que tenhamos algum talento, também
é óbvio que isso requer prática. Basicamente o mesmo se passa com a virtude,
diz Aristóteles. Embora não nasçamos com virtude, a natureza confere-nos a
habilidade básica para nos tornarmos virtuosos, mas precisamos praticar a
virtude a fim de adquiri-la. Precisamos criar o hábito de agir virtuosamente, e
esse hábito se tornará então uma disposição para agirmos dessa maneira. Nós
adquirimos, por exemplo, a virtude da coragem, fazendo coisas corajosas.
Devemos tanto evitar sermos temerários quanto covardes. Se agirmos de
alguma dessas maneiras, adquiriremos o hábito de agir dessa forma e não
vamos adquirir a virtude da coragem, enquanto se enfrentarmos o perigo
bravamente em uma série de ocasiões gradualmente nos tornaremos
corajosos.
Mas se nos tornamos virtuosos realizando ações virtuosas, como podemos
começar a tornar-nos virtuosos? O que nos levaria àquela primeira ação
corajosa ou generosa se de antemão não fôssemos virtuosos? A resposta de
Aristóteles a isso é que os outros têm que nos treinar. Temos que ser
recompensados por praticarmos a ação virtuosa e punidos por praticarmos a
ação viciosa. Desta forma adquiriremos o hábito sem primeiro saber em que
consiste a virtude e sem ter a disposição para agir virtuosamente. Os
primeiros passos em direção à virtude são o resultado do incentivo e do
treinamento.
Como eu saberia se o meu treinamento na virtude estava completo?
Quando eu poderia saber que havia me tornado virtuoso? Outros podem
dizer-me através de palavras, ou pelo modo como me confiam tarefas difíceis,
mas eu também seria capaz de dizê-lo pelo modo como reajo a situações de
tentação. Se eu reagir a situações de perigo com o sentimento de que quero
fugir e me esconder, então não sou corajoso, ao passo que se enfrento a
situação sem aflição, eu o sou. A discussão posterior de Aristóteles sobre a
coragem deixa claro que ele não sugere que ser corajoso implique não sentir
nenhum temor. É bastante apropriado sentir medo em face do perigo. Não
fazê-lo seria não compreender a situação em que se encontra ou ser insensível
ao que nela há de importante. É o modo como lidamos com o medo que nos
define como corajosos. Se ele leva-nos a querer correr, então a nossa
disposição não é corajosa, enquanto se nos sentirmos dispostos e aptos a
enfrentar o nosso medo, então isso mostra que adquirimos o hábito ou
disposição de sermos corajosos. Da mesma forma, uma pessoa que queira dar
dinheiro aos necessitados e positivamente gosta de fazê-lo é verdadeiramente
generosa. Se você tem que se forçar a dar a uma causa que julga ser digna,
então você está tendo que lutar contra inclinações que mostram que você
ainda não é uma pessoa generosa. Uma pessoa generosa não sentiria a
inclinação a ser mesquinha, e uma pessoa corajosa não sentiria a inclinação a
fugir do perigo. Portanto, ser virtuoso é mais do que adquirir um hábito ou
uma disposição a agir de certa maneira. Trata-se de querer agir dessa forma.
Pois também é fácil ficar com raiva – qualquer um pode fazer isso – ou
dar e gastar dinheiro, mas sentir ou agir em relação à pessoa certa, na
medida certa, no tempo certo, pelo motivo certo, da forma certa – isso
não é fácil, e não são todos que podem fazê-lo. Portanto, fazer essas
coisas bem é uma realização rara, louvável, e boa (ARISTÓTELES.
Ética a Nicômaco, 1109a26-29).
O sábio, então, deve não só saber tudo o que decorre dos primeiros
princípios, mas também deve ter verdadeira compreensão desses
princípios (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1141a17-18).
Aristóteles alude aqui à sua divisão da parte racional da alma em uma parte
calculativa e uma parte contemplativa. A prudência (phronesis) é a maior
virtude da parte calculativa da alma, ao passo que a sabedoria (sophia) é a
maior virtude da parte contemplativa. A prudência preocupa-se com a ação
nas circunstâncias específicas nas quais nos encontramos, com a maneira
como percebemos sensivelmente estas circunstâncias, e com o quanto de
relevância ética reconhecemos neles para nós mesmos e para os outros. Em
contraste, a sabedoria está preocupada com o geral e o universal. Trata-se da
nossa compreensão articulada dos princípios e valores que surgem a partir da
nossa natureza como seres humanos e sociais. É por esses valores que
devemos viver.
Aristóteles pensa que a “prudência” ou “sabedoria prática” (phronesis) é a
mais importante das virtudes intelectuais. Ele a contrasta com ainda outra
habilidade intelectual: a inteligência. Essa é a qualidade exibida por uma
pessoa cínica que é muito boa em conseguir o que quer. Ela entende o
sistema, percebe as oportunidades que ele a concede, evita qualquer
ilegalidade ou outros problemas, é rápida em suas reações, e é muito bem-
sucedida. Mas seus objetivos, indiscutivelmente, não são nobres. Tudo o que
ela quer é riqueza para si própria. Ela é inteligente, mas não prudente. Assim
como o assaltante de banco que reprime o seu medo não é corajoso porque as
metas em nome das quais ele controla o seu medo não são nobres, assim o
empresário que usa todas as suas artimanhas e esperteza para adquirir a
riqueza não é prudente. Os objetivos que ele está perseguindo não
conduzirão, diria Aristóteles, à sua eudaimonia. Eles não são éticos. O ponto
positivo que Aristóteles está apresentando aqui é que a prudência é uma
virtude inerentemente ética. Como ele o coloca “Não se pode ser prudente
sem ser bom” (1144a36). (Lembre-se que “bom” não significa apenas
“moralmente bom” no sentido moderno, mas significa também ser bom em
ser um ser humano, ou seja, viver bem uma vida humana.)
Com efeito, o ponto que Aristóteles, em seguida, passa a defender é que, ser
prudente não é apenas uma condição necessária para ser bom, é também uma
condição suficiente. Qualquer pessoa que seja prudente será, por conseguinte,
boa. Você pode ter uma variedade de disposições naturais ou hábitos
treinados para fazer algo virtuoso, mas a menos que você possa constatar em
uma situação que agir virtuosamente é aquilo que é demandado, a sua ação
aparentemente boa só ocorrerá devido a este hábito ou disposição. Faltará a
motivação para a bondade que perceber a situação sensivelmente e ver o que
você deveria fazer nela traz consigo. Portanto, um adulto maduro (alguém
que já não esteja apenas agindo por hábito) precisa de prudência a fim de ser
virtuoso. Você não pode ser bom sem ser prudente. A prudência é uma
condição necessária para ser bom. Mas há mais. Mesmo se você não tem
hábitos estabelecidos, ou disposições naturais para agir virtuosamente, se
tiver prudência perceberá o que uma situação demanda, e estará motivado a
fazê-lo. Você sentirá quão gratificante é agir assim, mesmo que não esteja
inclinado a agir dessa maneira, ou mesmo se não entender completamente
por que deveria agir dessa forma (como uma pessoa sábia o faz). Neste caso a
prudência irá produzir o resultado virtuoso. Desta forma, a prudência é
suficiente para ser virtuoso. Ela fornece a intuição e a motivação para agir
bem. E, portanto, não se pode ser prudente sem ser bom.
E segue-se disso que a prudência é tudo que uma pessoa precisa a fim de
ser virtuosa. Se você puder avaliar uma determinada situação à luz do que é
eticamente importante nela, e à luz do que produziria felicidade genuína em
si mesmo e nos outros, então você fará o que é virtuoso (desde que não haja
fraqueza da vontade, obviamente). Na ausência do que Aristóteles chama de
“incontinência”, a prudência é o todo da virtude. Ainda que possamos
classificar as virtudes da forma como Aristóteles o faz, usando uma variedade
de nomes diferentes para designar diferentes tipos de atos virtuosos em
diferentes tipos de situação (generosidade, coragem, justiça e assim por
diante), todos eles reduzem-se à prudência. São todos casos de um agente
sensível, perspicaz e empático vendo o que uma situação demanda e o que
seria gratificante para ele ou ela, ou para a comunidade, fazer nessa situação e,
em seguida, dispor-se a fazê-lo. A prudência confere-nos a capacidade de
julgar o que seria excessivo em uma determinada situação, e o que seria
deficiente.
Obviamente há um problema de galinha e ovo aqui. Se a prudência é
necessária e suficiente para se agir de maneira virtuosa, e a prudência consiste
em uma consciência sensível e perceptiva (isto é, virtuosa) daquilo que é
eticamente importante em uma situação prática, então como eu posso me
tornar prudente? Ser prudente não consistiria em já ser virtuoso? Apenas uma
pessoa boa veria o que seria eticamente exigido em uma situação. Apenas
uma boa pessoa veria que o mendigo merece ajuda. E assim precisaria já ser
boa a fim de ver o bem que poderia fazer, e então fazê-lo. De onde então viria
a prudência necessária para se agir bem? Para responder a esta pergunta é
importante ver que Aristóteles está falando de indivíduos maduros aqui. Tais
indivíduos já terão sido treinados nos hábitos que constituem as virtudes de
caráter. Eles já terão desenvolvido o hábito de agir de modos adequados e
moderados em relação aos desejos. Acrescente a isso a influência da educação
e da discussão racional dos princípios pelos quais devemos viver, e as pessoas
maduras serão capazes de passar de uma motivação virtuosa baseada nos
hábitos que a educação lhes forneceu a uma motivação baseada na
consciência sensível da situação particular. A prudência constrói sobre a
virtude que já existe de uma forma irrefletida, e lhe concede uma nova força
motivacional e autonomia. Quando jovem a sua virtude consistia em ser bem-
treinado. Como um adulto, a virtude constrói sobre isso e torna-se baseada
em seu prudente discernimento. Pode até mesmo haver momentos nos quais
você julga que a resposta apropriada é uma que não é como aquela dos jovens
bem-treinados. Pode-se, por vezes, ir contra alguma convenção, ou contra as
normas sociais, mas isso ainda pode ser virtuoso se estiver baseado em uma
consciência eticamente sensível do que realmente importa nessa situação. A
importância das virtudes intelectuais é que elas constituem a nossa
autonomia como agentes éticos.
A natureza da felicidade
O último livro do texto de Aristóteles versa sobre a felicidade
(eudaimonia). Embora já nos tenha oferecido um breve esboço daquilo em
que a felicidade consiste no livro 1, é neste último livro do seu tratado que
Aristóteles leva toda a sua teoria a uma conclusão aprimorada. A felicidade é
o coroamento de uma vida bem-vivida e bem-sucedida. Sendo o propósito de
sermos éticos sermos felizes, então um tratado sobre ética deve dizer-nos o
que é a felicidade. Um candidato à definição de felicidade será o prazer ou
satisfação. Aristóteles discutirá essa tese cuidadosamente antes de considerá-
la inadequada. Outro candidato é ter amigos. É nesses livros que Aristóteles
mostra a profunda humanidade e mundanidade do seu pensamento. Ao
contrário da imagem platônica do filósofo ou “amante da sabedoria” como
uma figura solitária, ansiando por escapar das vicissitudes da vida de modo a
contemplar as realidades eternas em uma vida de isolamento do mundo
cotidiano, Aristóteles reconhece que uma vida plena e feliz envolve ter
amigos. Os amigos são uma espécie de espelho no qual se pode ver a própria
virtude, e eles proveem deste modo um meio humano no qual a bondade que
se desenvolveu na vida seja recompensada através do companheirismo dos
igualmente bons. A pessoa que é bem-sucedida na vida, e que adquiriu
virtude, é considerada por Aristóteles como ainda incorporada a este mundo.
E trata-se, portanto, de um mundo bastante agradável.
Este foco no mundo da nossa existência cotidiana é muito importante para
Aristóteles. A felicidade ou eudaimonia não é algo alcançado através de uma
busca de se afastar dessa vida, como Platão havia sugerido com a sua parábola
da caverna. Deve ser encontrada na vida. Aristóteles não olha para cima e
para longe do mundo na busca dos mais elevados objetos de conhecimento e
das mais profundas fontes da virtude. Ele vê tais objetos e fontes como
existindo aqui nesta terra. Encontrá-los contribui para a nossa felicidade, mas
nós não precisamos procurá-los em uma realidade transcendente.
No entanto, embora este seja o grande impulso do pensamento de
Aristóteles ao longo de todo o texto, o livro final da Ética parece ter um
enfoque diferente. Neste livro Aristóteles parece direcionar nossa atenção
para longe deste mundo de uma maneira que é reminiscente de Platão.
Entender a posição de Aristóteles corretamente exigirá uma leitura cuidadosa
do seu texto.
O tema do livro 10 é a eudaimonia como o bem supremo que é nosso
objetivo inerente perseguir. Aristóteles começa por rejeitar os pontos de vista
daqueles que dizem que este objetivo é o prazer. Ele argumenta que o prazer
não pode ser o supremo bem, porque nós podemos fazer julgamentos acerca
de quão bom ou virtuoso ele é em circunstâncias particulares. Porque
podemos perguntar se qualquer prazer particular é nobre, egoísta, digno ou
ético, devemos estar presumindo que não se trata de um bem inequívoco em
si mesmo. Se ele só é bom se for ético de alguma maneira, e se ele pode ser
julgado brutal, autoindulgente ou excessivo, então deve haver um padrão
mais elevado segundo o qual os prazeres podem ser avaliados como bons ou
maus. E se é assim, então ele mesmo não pode ser o bem supremo. Então, na
seção IV, Aristóteles começa a desenvolver a sua própria visão. Ele diz-nos
que “o prazer aperfeiçoa a atividade” (1074b24). O prazer não é parte do
resultado de uma atividade, de tal modo a só vir a existir quando a atividade é
concluída. Ele não é o produto de uma atividade. Ao contrário, trata-se de um
acompanhamento dessa atividade quando está sendo bem-feita. Chamar o
prazer de “perfeição” de uma atividade implica sugerir que se trata de uma
qualidade fenomenológica que essa atividade tem para o agente quando está
sendo bem realizada por ele. A atividade pode levar algum tempo (como jogar
xadrez, porque tem diversas fases), mas a perfeição da atividade (o fato de ser
bem-feita) é completada em qualquer dado momento. “Perfeição” não é uma
medida do resultado da ação, mas da maneira como é realizada. Mais uma
vez, podemos usar o exemplo do jogo de xadrez para ilustrar isso. Quando
jogamos xadrez há pelo menos duas marcas de sucesso. A mais óbvia é
ganhar. Este é o resultado, e não é realizado até que o jogo acabe. Mas a
pessoa que perde o jogo também pode ter tido algum sucesso. Ela pode ter
jogado melhor do que nunca havia jogado antes. Ela pode ter usado algumas
jogadas novas e aprendido algumas novas estratégias. Ela pode ter terminado
satisfeita com a maneira como jogou, mas este não é um resultado no mesmo
sentido que uma vitória é um resultado. O sucesso é, neste caso, algo que foi
realizado ao longo de todo o jogo ao invés de apenas no final. Ela jogou bem,
e isso foi uma realização dos objetivos do jogo que transpirou ao longo de
todo o jogo. Esta é uma “perfeição” do jogo. Em qualquer momento durante o
jogo, essa perfeição está sendo realizada enquanto os jogadores jogam bem.
Nós também podemos desenvolver este pensamento em termos da nossa
distinção entre objetivos internos e externos de uma atividade. Suponha que
você esteja jogando em um torneio de xadrez que tem um prêmio de mil
dólares. O objetivo externo de se jogar este jogo de xadrez é ganhar os mil
dólares. Este não é um objetivo que pertença ao jogo como tal, ou que é
definido nas suas regras. Neste sentido, é “externo” ao jogo. Em
contrapartida, jogar bem e superar o seu oponente é um objetivo interno do
jogo. É disso que trata o jogo e o que constitui “jogar bem”. Qualquer um que
jogue terá isso como um objetivo; é um objetivo “interno” ao jogo. Ganhar o
jogo é mais bem-pensado como um objetivo interno neste sentido. É definido
pelas regras do jogo, e é um objetivo que todo jogador tem que ter para estar
genuinamente jogando. (No entanto, também é um pouco como um objetivo
externo, uma vez que se trata de um estado do jogo que somente ocorre ao
seu término.) Um objetivo externo é aquele que é estranho ou não essencial a
ele, enquanto um objetivo interno é aquele alcançável em cada momento da
atividade, sendo-lhe intrínseco. Fazer algo bem é atingir uma meta interna da
atividade, não importando o resultado. Nesse sentido, a “perfeição” de uma
atividade é a realização dos seus objetivos internos.
O ponto de Aristóteles é que desfrutar de uma atividade (ou ter prazer
nela) é uma realização dos objetivos internos dessa atividade. É uma perfeição
dessa atividade. “Realização” é uma palavra cujo uso é particularmente
adequado. Eu a chamei mais cedo de uma “qualidade fenomenológica”,
porque a satisfação é um objetivo interno ou perfeição que é manifestado pela
maneira como se experimenta a atividade. Desfrutar de uma atividade é
experimentá-la como realizando os objetivos internos dessa atividade.
Quando Aristóteles fala de “prazer” neste contexto, ele quer dizer a
“perfeição de uma atividade” neste sentido. Ele até mesmo prossegue dizendo
que o prazer é uma perfeição de toda uma vida desta maneira. Embora isto
não queira dizer que o prazer seja um bem supremo (porque está sujeito a
avaliação ética), quer dizer que seja uma qualidade muito importante e
essencial de uma vida bem-vivida, e não deve, por si só, causar-nos qualquer
dilema ético (como pode acontecer com um puritano). Se uma atividade é
boa, então o prazer que se sente ao fazê-la bem também é bom.
Introdução
A história do pensamento moral no Ocidente a partir de Aristóteles tem
sido marcada por uma redução gradual da importância da noção de virtude
em favor da noção de dever. Ao invés de considerar a virtude como valiosa
em si mesma, as pessoas começaram a pensar na virtude meramente como
uma ajuda para se cumprir um dever. Isso ocorreu sob a influência de duas
ideias fundamentais apresentadas por Platão: que devemos viver nossas vidas
sob a orientação de realidades transcendentes; e que a faculdade pela qual
poderíamos nos tornar conscientes dessas realidades é a razão. Platão sugeriu
que a bondade e a justiça, por exemplo, não eram apenas conceitos, mas
verdadeiras realidades, cujo conhecimento nos levaria a agir bem, e que
alcançaríamos este conhecimento controlando os nossos desejos e emoções.
O nosso conhecimento nos conecta a essas realidades mais elevadas, mesmo
enquanto os nossos corpos vivem em uma caverna de escuridão e
ofuscamento. Os seres humanos têm os seus pés na lama desta terra, e seus
intelectos em uma realidade mais elevada. Embora estejamos presos nesta
existência mundana, falível, finita e vulnerável, o nosso pensamento pode nos
levar para um reino de perfeição e ideais divinos. O mais nobre e virtuoso
modo de viver, portanto, consiste em rejeitar as coisas deste mundo e deixar
os nossos espíritos se elevarem na direção do reino puro das ideias e
perfeições das quais este mundo é meramente uma cópia pálida. Essa visão de
mundo chega até nós por meio das nossas tradições religiosas, bem como
através dos escritos de muitos filósofos, começando com os estoicos.
O termo “estoicos” refere-se a um grupo de filósofos de língua grega
compreendidos entre Zenão de Cítio (c. 333-c. 261 a.C.), que ensinou em
Atenas, e Epicteto (c. 55-135 d.C.), que era um escravo na cidade de Roma. A
palavra refere-se a uma praça na antiga Atenas conhecida como a Colunata
Pintada ou “Stoa”, onde Zeno ensinava. Os estoicos sugeriram que os seres
humanos deveriam modelar as suas vidas conforme a ordem eterna da
natureza. Se os deuses governavam a natureza de acordo com a justiça, então
deveríamos conduzir as nossas vidas em sintonia com ela e aceitar com
serenidade tudo o que acontece. Afinal, tudo o que acontece está destinado a
acontecer. Se sofrermos decepção, só pode ser porque desejamos que as coisas
fossem diferentes do que são. A melhor maneira de viver, portanto, consiste
em reprimir os desejos, extirpar as emoções e ser guiado pela razão, que foi a
faculdade que nos permitiu perceber a ordem na natureza. Embora o termo
“virtude” tenha sido usado para descrever este estado de equanimidade, a
estrutura do pensamento aqui foi aquela de colocar-se sob a égide de uma
realidade transcendente, controlando as paixões, ao invés daquela de perceber
e realizar cada aspecto da sua própria natureza, como havia sido para
Aristóteles.
Com o advento do cristianismo e dos escritos de filósofos-teólogos, tais
como Agostinho (354-430 d.C.) e Tomás de Aquino (1224-1274), o conceito
antes vago de uma realidade transcendente que devemos seguir a fim de
vivermos bem a vida passou a ter um significado muito mais específico: Deus
– o Deus que fora considerado na tradição hebraica como o doador da lei
moral. Embora Agostinho e Tomás de Aquino enfatizassem o amor de Deus
como um sentimento apropriado e uma motivação para se agir bem, o
objetivo de se fazê-lo tornou-se agora o de obedecer à lei. Tomás de Aquino
realmente seguiu os estoicos ao dizer que essa lei poderia ser descoberta na
natureza das coisas pela razão, mas essa lei agora adquiriu um novo tipo de
normatividade que veio de Deus. Mais uma vez, a estrutura do pensamento
moral foi aquela de usar a razão ou a fé para descobrir qual era o nosso dever
fazer olhando para uma realidade transcendente, enquanto controlando os
desejos e as emoções. Agostinho ensinara que o amor das coisas deste mundo
só poderia distrair-nos do amor de Deus, ao passo que Tomás de Aquino
falou da graça de Deus concedendo-nos as virtudes da fé, da esperança e da
caridade, pelas quais poderíamos dirigir o nosso pensamento para coisas mais
elevadas e fora deste mundo.
Os temas que emergem a partir desses desenvolvimentos são os de que é
nosso dever fazer a vontade de Deus, ou viver de acordo com a natureza
concebida como uma ordem cósmica providencial, e de que as virtudes são
estados de caráter que nos ajudam a alcançar este objetivo. O ideal da
excelência humana tornou-se aquele de uma pessoa que controlou, ou até
mesmo suprimiu, os seus desejos mundanos e obedeceu às leis que Deus ou a
natureza havia estabelecido. Desenvolvimentos posteriores na teoria moral,
culminando em Kant, reforçaram esses temas das maneiras que eu já
expliquei no capítulo 1. Se a ética da virtude deve ser revivida, portanto, será
necessário restabelecer dois pontos colocados por Aristóteles: o primeiro é
que estamos em casa neste mundo (ao invés de estarmos aprisionados nele,
como Platão ensinou), e podemos encontrar a nossa perfeição e realização
vivendo uma vida plenamente humana, sem qualquer apelo necessário a
justificativas sobrenaturais ou normas; e o segundo é que as emoções são tão
importantes para este projeto quanto o é a nossa razão, e pode guiar-nos tão
adequadamente quanto ela em direção à vida moral.
Outro tema que se torna mais importante ao longo da história da ética
ocidental é aquele dos nossos relacionamentos com outras pessoas. A
concepção aristotélica de virtude pareceu versar sobre indivíduos vivendo
bem e realizando as suas potencialidades como seres humanos racionais,
embora isto de fato inclua levar os outros em consideração em uma variedade
de maneiras. Aristóteles vê cada indivíduo como estando essencialmente
ligado à sua comunidade e como fazendo contribuições a ela através da sua
prudência e de outras virtudes. Ele destaca a virtude da justiça, que implica
dar a cada pessoa o que lhe é devido. E a sua análise da amizade realça a
importância da sociabilidade e das nossas relações com os outros. No entanto,
Aristóteles não enfatiza os nossos sentimentos de preocupação para com os
outros ou as nossas responsabilidades para com eles. O objetivo de se ser
virtuoso é alcançar a própria felicidade. A ética, como Michel Foucault o
colocou, era um “cuidado de si”. A concepção moderna de moralidade como
estando essencialmente preocupada com as nossas responsabilidades e
deveres em relação aos outros não encontra expressão nesta filosofia.
Tampouco os estoicos falam muito sobre isso. Para eles, o importante é a
nossa própria paz de espírito. Os filósofos da moral cristã certamente
salientaram o nosso dever de amar os outros como a nós mesmos, mas isso é
por uma questão de servir a Deus e alcançar a nossa própria recompensa
eterna no céu. O problema com o qual isso nos deixa é simplesmente o de
como conceber as nossas relações com os outros – sejam eles nossos amigos e
familiares ou estranhos distantes – em termos éticos.
Neste capítulo explorarei a obra de David Hume, Friedrich Nietzsche e
Emmanuel Lévinas, que discutem as seguintes questões:
• A ética é uma questão transcendente ou mundana?
• Qual é a relação entre as emoções e a razão em nossas vidas éticas?
• Como nos relacionamos eticamente com as outras pessoas?
David Hume
Trata-se de um longo caminho da cosmovisão religiosa de Aquino até o
secularismo quase iconoclasta de David Hume (1711-1776), um colaborador
notável do Iluminismo Escocês. Hume insiste que todo o conhecimento
plausível deve estar baseado na experiência direta, e, destarte, põe em causa
não somente especulações metafísicas, tais como pronunciamentos teológicos
acerca da natureza e da vontade de Deus, mas também quaisquer teorias
acerca de alguma natureza humana inerente e universal baseada na existência
de uma alma racional. Ambos, Deus e a alma, são postulados metafísicos dos
quais não podemos ter experiência sensorial direta, sendo, portanto, bases
suspeitas para a teoria moral. Mesmo se fosse possível atingir certo
conhecimento acerca de tais assuntos, as proposições expressando esse
conhecimento nos diriam qual é o caso acerca, por exemplo, dos desejos e
tendências humanos, mas isso nada nos diria acerca do que devemos fazer.
Para usar um exemplo contemporâneo, mesmo se fosse verdade que, devido à
sua constituição genética pela história evolucionária, os humanos do sexo
masculino fossem inclinados a serem agressivos, não se seguiria que eles
devem ser agressivos. Hume insiste em que não se pode deduzir uma
afirmação do que se deve de uma afirmação de como é. Portanto, não
somente as especulações metafísicas e antropológicas de teóricos morais tais
como Platão, Aristóteles, os estoicos, Agostinho e Tomás de Aquino não são
confiáveis como conhecimento, mas são também irrelevantes. Nada pode ser
deduzido delas quanto ao modo como os seres humanos devem se comportar.
A base para as nossas normas morais terão que ser encontradas em outros
lugares.
Hume também põe em causa a tradicional psicologia moral proveniente
dos gregos antigos na qual a razão era considerada um poder que deveria
controlar o desejo e as emoções, às quais ele se refere como “as paixões”. Para
Hume, a razão é simplesmente a capacidade de pensar logicamente. Você é
razoável quando é lógico. Você está usando a razão corretamente quando
executar cálculos aritméticos sem erro e quando deduzir conclusões a partir
de premissas de acordo com as regras corretas da lógica. Mas isso é apenas
uma questão de se derivar dados concludentes corretos a partir dos dados
inseridos. Por si só, isso não nos pode dizer o que devemos fazer a não ser que
os dados inseridos já o digam ou impliquem. Por si só, a razão não pode
fundamentar quaisquer normas, imperativos, afirmação de “dever” ou ideais
de virtude. Assim, se a razão devesse controlar as emoções por si só, não
haveria quaisquer valores em nome dos quais, ou em busca dos quais,
exerceria esse controle. Seria como um computador assumindo o controle da
sua vida. A não ser que esse computador tivesse objetivos ou quisesse alcançar
alguns resultados, ele seria um ser cego, pouco importando quão racionais
fossem as suas operações.
Hume argumenta que uma pessoa virtuosa é aquela que tem sentimentos
de empatia e preocupação pelos outros. Esse sentimento vai permitir essa
pessoa aprovar boas ações, em si mesma e nos outros, e desaprovar as más
ações. O que há acerca da mentira que provoca a nossa reprovação moral?
Não se trata da razão considerando meramente a inconsistência lógica desse
ato, mas de uma antipatia pelo artifício, ou por ver alguém aproveitar-se. Se o
conhecimento moral está baseado na experiência, e não nas especulações
metafísicas, então a experiência à qual Hume recorre é aquela do nosso
sentimento de aprovação ou desaprovação em relação às ações que as pessoas
praticam. Deste modo, a moralidade não tem um fundamento objetivo, mas
subjetivo: os nossos sentimentos morais.
Obviamente, uma pessoa má pode sentir aprovação pelas más ações que ela
observa ou determina. Em tais indivíduos o mero sentimento de aprovação
pode não ser virtuoso. Deve haver, portanto, algum teste que possamos
aplicar para discernir quais sentimentos de aprovação são moralmente bons.
A resposta de Hume para este problema é uma forma incipiente de
pensamento utilitarista. Nós aprovamos aquelas ações que levam à felicidade
geral ou utilidade. Não seríamos virtuosos se sentíssemos aprovação por ações
que prejudicaram os outros ou causaram problemas sociais. Mas não é a
razão pura que decide esse assunto. Não pode ser concluído a partir da razão
pura que devemos nos preocupar com os outros. A nossa preocupação com
que as pessoas não sejam prejudicadas, ou que a sociedade não seja
interrompida, é uma preocupação que surge da nossa empatia geral para com
os outros. Sem essa preocupação nós não nos importaríamos com o que
acontece como resultado do que as pessoas fazem. Portanto, o teste pelo qual
distinguimos os sentimentos morais dos imorais é a conformidade desses
sentimentos com o nosso sentimento mais geral de empatia para com outros
e a nossa preocupação com eles. A versão de Hume do utilitarismo não sairia
do chão a menos que ele postulasse uma motivação moral positiva para essa
maneira de pensar.
Friedrich Nietzsche
Se a visão de Hume da humanidade foi otimista, a de Friedrich Nietzsche
(1844-1900) pode parecer exatamente o oposto. Ao invés de assumir que os
seres humanos estão benevolamente disponíveis uns para os outros,
Nietzsche sugere que a motivação básica que impulsiona os seres humanos –
e, de fato, todos os seres vivos – é o que ele chama de “vontade de poder”.
Trata-se de uma pulsão ou um instinto de autoafirmação e competitividade.
Todas as coisas vivas querem fazer mais do que meramente sobreviver ou ser
contentadas; elas querem alcançar a excelência, ser melhores do que as outras
da sua espécie, dominar e apropriar-se do seu próprio lugar no mundo.
Qualquer forma de subserviência ou humildade é antitética à sua natureza.
Lutar e vencer são exatamente os mais profundos motivadores de todas as
coisas vivas. Para criaturas como nós, que somos autoconscientes, esta
superação e esforço são direcionados contra nós mesmos, assim como contra
os outros. Esforçamo-nos por vencer a nossa própria preguiça e o nosso
desejo de conforto. Procuramos superar a nossa dependência daqueles mitos
e crenças infundados que nos dão conforto na vida e asseguram-nos
orientação providencial para a justiça cósmica. Procuramos superar as
consolações falsas das teorias que se propõem a dar-nos segurança, incluindo
teorias metafísicas sobre Deus ou a natureza humana.
Ao invés de subscrever a visão clássica da natureza humana, que postula
uma faculdade da razão com a tarefa de controlar uma faculdade de desejar,
Nietzsche vê os seres humanos como seres escuros, complexos e
multifacetados, nos quais desejos e considerações de muitos tipos competem
uns com os outros por dominação e controle. Desejo e razão não são
distintos. Ao contrário, estamos sujeitos a pulsões e tendências que tanto são
racionais, no sentido de serem efetiva e cognitivamente orientadas para um
objetivo, quanto desejosas, no sentido de que buscam o que querem. Cada
uma delas persegue os seus próprios objetivos, e muitas não estão sequer
aparentes para os nossos poderes de reflexão e autoconhecimento. Para
Nietzsche, o que Kant e os filósofos anteriores haviam denominado vontade
não é uma faculdade separada que ordena os nossos desejos à luz da razão,
mas meramente a mais dominante das nossas motivações e pulsões em
qualquer ocasião dada. Vontade de poder é a energia de todas essas pequenas
vontades anárquicas enquanto elas (ou seja, nós) se esforçam pelo domínio
umas das outras e das coisas mundanas com as quais entramos em contato.
Entre essas vontades pode muito bem haver algumas que sejam benevolentes,
ou que sejam formas do sentimento de humanidade, mas também haverá
vontades competitivas e agressivas. A mais profunda e fundamental delas será
a vontade de afirmar a si mesmo como separado e melhor do que os outros.
Obviamente, pode ser que nada disso seja verdade. Como descobriríamos
se o é ou não? É uma questão que pode ser decidida através de metodologias
científicas? Por que mesmo quereríamos estar certos acerca desse assunto? Se
você preferisse a visão otimista de Hume, que confere preeminência ao
sentimento de empatia, ou se preferisse a visão de Aristóteles, segundo a qual
as nossas almas são predominantemente racionais, como você defenderia o
seu caso? E como você justificaria a crença estoica em uma ordem racional na
natureza ou a crença cristã em um Deus que inscreveu a lei moral nas nossas
naturezas humanas? Nenhuma dessas grandes teorias é demonstrável, e
Nietzsche não pretende que a sua alternativa seja em qualquer medida mais
provável. Tais teorias, diz ele, são histórias que contamos a nós mesmos para
dar sentido às nossas vidas. Precisamos de alguma visão metafísica
abrangente a fim de conferir sentido à vida humana. Esse mundo é um lugar
terrível. Catástrofes naturais acontecem, pessoas atacam e roubam umas às
outras, travamos guerras, metade do mundo morre de fome enquanto a outra
metade vive no luxo, e pessoas morrem sem justiça. Precisamos de histórias
para conferir sentido a tudo isso e tornar as nossas vidas miseráveis
significativas. Platão e muitas religiões dirigem a nossa atenção para longe
deste mundo e postulam um glorioso além pelo qual devemos nos esforçar e
procurar atingir depois das nossas mortes. Desta forma o mundo não
importará tanto. Aristóteles exorta-nos a vivermos dentro dos parâmetros
finitos da existência humana, a moderarmos os nossos desejos e a dirigi-los
através da razão. Os estoicos exortam-nos a extirparmos as nossas emoções de
modo a evitar o desapontamento e a tristeza. Tomás de Aquino diz que
estamos destinados à vida eterna. Hume afirma que a maioria de nós está
motivada a criar tanta felicidade e harmonia nesta terra para nós mesmos e
para os outros quanto é humanamente possível. Antecipando o conceito de
hermenêutica, Nietzsche diz que todas essas crenças são consolações. Seu
valor repousa não em sua verdade, que não pode ser comprovada, mas no
grau em que podem tornar as nossas vidas vivíveis.
A visão do próprio Nietzsche não é mais certa. Mas tem uma vantagem. É
mais honesta. Enquanto as concepções anteriores douravam a pílula,
conferindo qualidades sobrenaturais à humanidade, a visão de Nietzsche nada
nos esconde acerca da nossa própria brutalidade. Além disso, muitas das
visões anteriores expressavam ódio contra essa nossa vida mundana. A tarefa
da humanidade era rejeitar o mundo em favor de uma existência idealizada,
ou post-mortem, em um sobrenatural reino de perfeição. Nietzsche não só
aceita a humanidade com todas as suas mazelas, como também celebra a
existência mundana, finita e falível que nós temos aqui na terra.
Então, como devemos viver? O que é viver bem a vida, dado que somos
impelidos pela vontade de poder? Devemos tornar-nos quem somos.
Devemos realizar o nosso potencial. Devemos dar expressão à nossa vontade
de poder. Devemos ser honestos acerca do que repousa dentro de nós. Mas
será que dar expressão a esse modo competitivo, agressivo e autoafirmativo
de ser conduz a uma vida em sintonia com a moralidade? Isso depende do
que você entende por “moralidade”, diz Nietzsche. Se a sua concepção de
moralidade é parte dessa história além-mundana, racionalista, otimista e
benevolente que contamos a nós mesmos para nos dar conforto e uma
promessa de uma recompensa justa, então pode não parecer. Mas se a sua
concepção de moralidade é a de que ela própria é uma expressão da vontade
de poder vivida em um mundo finito e falível, então bem pode ser.
E existem tais concepções de moralidade. Nietzsche chama uma delas de
“moral de senhores”. É o estilo de vida de um tipo de pessoa que não tem
medo de expressar a sua vontade de poder. Essa pessoa vai dominar as outras,
ou pela força da personalidade, ou pela força das armas. Tal pessoa se
regozijará na companhia de outros tipos fortes, e desprezará os tipos fracos e
miseráveis. Conforme as culturas e as sociedades evoluem através da história,
esses tipos de pessoa virão a dominar e a exercer poder social. Elas serão os
guerreiros, os conquistadores e os aristocratas. Não se inclinarão para as
pessoas comuns e tampouco temerão o sofrimento e a morte. Não guardarão
rancor ou ressentimento, porque terão confiança no seu próprio poder e
excelência. O seu único medo será o de que o seu tipo degenere-se em
decorrência do luxo, da preservação do fraco ou da autoindulgência. Por esta
razão direcionarão o seu poder para o seu próprio controle e formação, bem
como para a manutenção e o crescimento das suas proezas.
Emmanuel Lévinas
Esse é o problema para o qual o filósofo francês Emmanuel Lévinas (1906-
1995) pode nos dar uma solução. A escrita de Lévinas é complexa e difícil, e
eu posso oferecer apenas uma exposição seletiva das suas opiniões aqui. Além
disso, ele não nos oferece uma ética no sentido de um conjunto de prescrições
quanto ao que devemos fazer ou quais traços de caráter contariam como
virtuosos. O que ele nos oferece é uma compreensão filosófica da existência
humana na qual essa existência é vista como sendo de caráter
primordialmente ético. Enquanto Sartre havia presumido que somos seres
para os quais a maneira pela qual nos apropriamos do mundo para nós
mesmos quando o percebemos se estende a tudo nesse mundo, incluindo as
outras pessoas, Lévinas sugere que isso não se estende ao rosto de outra
pessoa.
Tentemos entender essa sugestão mais completamente, dando alguns
passos atrás das relações interpessoais e considerando o nosso conhecimento
do mundo. A maneira pela qual os filósofos têm tradicionalmente entendido
o conhecimento e a percepção é sugerindo que assimilamos as coisas aos
nossos esquemas cognitivos. É como se impuséssemos categorias e
classificações às coisas a fim de integrá-las ao nosso mundo familiar. Nós
cognitivamente tomamos posse daquilo que percebemos e sabemos. Eu não
quero dizer com isso que nós literal ou legalmente os possuímos, é claro.
Quero dizer que assimilamos o que estava até então desconhecido e, portanto,
além da nossa capacidade de apreensão em um ambiente vivido no qual tudo
tem o seu lugar e a sua relação comigo. Mais uma vez, podemos utilizar a sua
caneta como um exemplo. Quer ou não você possua legalmente a caneta, o
ponto-chave é que ela é um item familiar em seu mundo. Se você está sentado
em seu escritório, então a sua mesa, os livros à sua frente, o pôster de uma
estrela pop em sua parede, e até mesmo os edifícios que você vê através da
janela, são todos eles um ambiente familiar para você. Esse ambiente contém
coisas que você usa, e também coisas que não são juridicamente suas, mas que
são partes familiares do “seu” mundo. Você olhar para elas como o seu
próprio domínio. Essa era, obviamente, a questão de Sartre em relação ao
parque. Os próprios processos de cognição, de conferir sentido ao mundo,
implicam que você imponha os seus conceitos e categorias a ele e, portanto,
aproprie-se dele como o seu mundo.
Mas agora se imagine jantando com uma pessoa da qual você é muito
próximo. Mais uma vez você está em um ambiente familiar. Tanto quanto lhe
diga respeito, você está assimilando esse mundo do restaurante para si
mesmo. Mas, e quanto ao seu companheiro sentado à sua frente nesta mesa à
luz de velas? Você também o assimila ao seu mundo? Quando você o olha no
rosto e nos olhos, os apropria ao mundo vivido dos objetos familiares que
constituem o seu meio ambiente conhecido e confortável? Lévinas diria que
não. Ele insistiria que a face da outra pessoa, e particularmente os seus olhos
(tradicionalmente considerados como as “janelas da alma”), não são
assimiláveis desta maneira. Eles são um mistério. São infinitos, no sentido de
serem inapreensíveis às categorias cognitivas com as quais nos apropriamos
do nosso mundo vivido. Elas estão além do alcance da nossa capacidade de
compreendê-los. Lévinas está aludindo a mais do que à importante questão de
que as pessoas são difíceis de conhecer. Todos parecem estar mantendo a sua
própria natureza oculta dentro de si mesmos. Na verdade, quanto mais
próximos estamos de alguém, mais difícil essa pessoa parece de ser conhecida.
O cônjuge com quem você pode ter vivido por muitos anos continua a ser um
mistério para você. Tudo isso é relevante, mas Lévinas está se referindo ao
exato momento no qual você olhou para o rosto daquela pessoa. O que você
vê ali tem tamanha profundidade e mistério que sempre lhe escapará ao
alcance cognitivo. Você não pode assimilá-lo. Deve deixá-lo ser o que é.
O rosto está presente na sua recusa a ser contido. Não é visto nem
tocado – pois na sensação visual ou tátil a identidade do eu envolve a
alteridade do objeto, que se torna precisamente um conteúdo (LÉVINAS,
E. Totalidade e infinito, 194).
Resumo e conclusão
Esse capítulo continua o nosso levantamento da história da ideia de
virtude, mas também começa a desenvolver um argumento acerca de alguns
dos princípios teóricos da teoria da virtude: o de que a ética não é uma
questão transcendente, mas mundana; que as emoções são mais importantes
do que a razão nas nossas vidas éticas; e que os nossos relacionamentos com
os outros não se tornam éticos mediante normas e princípios morais, mas são
éticos desde o início. Mais especificamente, o argumento aborda os seguintes
pontos:
• De acordo com Hume, não é possível derivar princípios morais apenas da
razão.
• A empatia é uma emoção interpessoal importante, e uma possível base
para uma atitude virtuosa em relação aos outros.
• O conceito nietzscheano de vontade de poder é importante para se
compreender a importância da autorrealização como um motivador da
virtude.
• A distinção nietzscheana entre moral de escravos e moral de senhores
introduz a ideia de que diferentes perspectivas morais, e as virtudes que
promovem, podem coexistir, e que algumas virtudes são mais admiráveis
do que outras, dependendo da perspectiva que se tem.
• A concepção nietzscheano-existencial dos seres humanos como
indivíduos autoafirmadores e livres – que é um desenvolvimento da teoria
moral iluminista que sustenta grande parte da ética do dever – torna difícil
ver como a preocupação com os outros pode ser uma postura ética básica
na vida humana.
• Lévinas argumenta que, porquanto não podemos assimilar os outros em
nossa própria visão do mundo, o nosso modo de ser mais primordial já é
ético. Somos constituídos pelos outros como responsáveis por eles.
Esse capítulo contribuiu para duas das tarefas da teoria moral que eu
identifiquei na introdução: entender o que é a moralidade e mostrar qual
lugar as normas pelas quais vivemos têm em nossas vidas. A moralidade, eu
posso agora sugerir, é o conjunto de normas que dá forma às nossas atitudes
fundamentalmente éticas em relação aos outros. O seu lugar em nossas vidas
não é aquele de um conjunto externo de regras ou princípios aos quais
devemos ser obedientes, mas aquele de uma forma internalizada dada pelo
nosso projeto de nós mesmos e nossa preocupação primordial com os outros.
A virtude não é apenas esse conjunto de traços de caráter que são exigidos de
nós ou aplaudidos pelos outros. É a estrutura que os outros nos dão na
medida em que respondemos ao apelo que nos dirigem. É a nossa maneira de
sermos éticos. Tal como a empatia de Hume, é um pré-requisito para sermos
morais na medida em que provê a base motivacional para cumprirmos o
nosso dever. Mas, ao contrário da empatia de Hume, não se trata de um
sentimento que podemos ou não ter dependendo da nossa educação ou
constituição genética, mas um modo do nosso próprio ser. Essas explorações
teóricas explicam por que o internalismo de razões (conforme explicado no
capítulo 1, “A natureza das normas”, § VII) é importante para a ética da
virtude. A noção de Hume de empatia foi uma tentativa incipiente de se
explicar como foi que a preocupação ética com os outros precisou fazer parte
das motivações internas dos agentes virtuosos, enquanto a análise de Lévinas
explica como tais motivações são parte da própria estrutura do nosso ser. Sem
essas abordagens nós não teríamos nenhuma razão para sermos virtuosos,
exceto a obediência ao comando externo.
O que eu ainda não fiz em minha exposição é indicar quais virtudes
devemos prescrever e por que (embora tenhamos visto algumas sugestões
sobre esse assunto a partir de Nietzsche – sugestões com as quais podemos
não querer concordar). A fim de abordar essa questão teremos que explorar o
conceito de justiça e o que ele exige de nós. Essa é uma das tarefas do capítulo
4.
4
Reconciliando a virtude e a justiça
Introdução
Concluí o capítulo 3 com a sugestão de que o objetivo da ética era não só o
de alcançar a autorrealização (o que é uma possível interpretação da noção
aristotélica de eudaimonia, bem como da vontade de poder nietzscheana),
mas também o de realizar o nosso modo primordial de ser como seres sociais
que se preocupam com os outros e são responsáveis por eles. Essa sugestão
certamente melhora o quadro aristotélico da ética da virtude na medida em
que abrange a preocupação com os outros mais completamente do que o
próprio Aristóteles havia feito, mas ainda restringe-se àqueles outros com os
quais eu tenho contato direto e amigável. Lévinas havia falado do
relacionamento face a face, e a descrição aristotélica de philia, que é
frequentemente traduzida como “amizade”, também permanece neste
âmbito. Ela descreve a natureza e as bases dessas relações que estão
disponíveis para as pessoas nas comunidades nas quais todos experimentam
algumas relações face a face uns com os outros: relações que variam desde
aquelas de utilidade e prazer mútuos, até aquelas de amizade próxima baseada
no caráter.
As sociedades modernas colocam um problema diferente. Em nações-
estados e outras sociedades grandes e impessoais as normas sociais não
podem ser baseadas em relacionamentos éticos face a face entre as pessoas.
Elas devem estar baseadas em princípios que todos possam aceitar com base
em um discurso público que adira a padrões de imparcialidade, objetividade e
racionalidade. Ao invés de aderir às normas de philia ou amor e cuidado
entre os indivíduos moldadas pela tradição, elas devem aderir às normas da
justiça e da moralidade articuladas em termos que possam ser
universalizados. Alguns filósofos sugerem que o discurso objetivo e baseado
em princípios da ética do dever é relevante para a política pública e o direito
penal, enquanto a ética da virtude é mais importante para as vidas éticas dos
indivíduos e das comunidades. Seguindo a inspiração de Aristóteles, eles
dizem que a ética da virtude versa sobre como podemos alcançar a
eudaimonia individualmente, ainda que aperfeiçoada pelas relações de philia
com alguns outros em particular, enquanto a moralidade e a lei articulam
aquelas normas que são necessárias para a harmonia social geral. Neste
contexto mais amplo, a virtude só é importante na medida em que ajuda as
pessoas a obedecer à lei e a cumprir o seu dever. Neste capítulo argumentarei
que a ética da virtude é primária e pode ser expandida da esfera da realização
pessoal e das relações interpessoais para aquela da vida pública e cívica.
O círculo em expansão
Uma maneira pela qual podemos expandir o nosso pensamento do nível
individual e interpessoal, no qual a virtude é constitutiva da eudaimonia, para
o nível social mais impessoal é usar e expandir a concepção aristotélica de
philia. Aristóteles estava tentando explicar como é que podemos nos
relacionar com outras pessoas e por que elas são importantes em nossas vidas,
mesmo quando é a nossa própria eudaimonia que estamos implicitamente
buscando. Algumas pessoas nos são úteis, outras dão-nos algum tipo de
prazer, e algumas poucas selecionadas são nossos amigos. Amizades, por sua
vez, estão baseadas em um reconhecimento mútuo por parte dos amigos das
suas virtudes e bondade de caráter. Nós desfrutamos da companhia dos
nossos amigos porque eles são um reflexo das nossas próprias virtudes e,
assim, reforçam o nosso sentido de realização. Dessas maneiras ambos
precisamos e apreciamos a sociabilidade com os outros, e a nossa
preocupação ética é expandida a esses outros. Se formos eticamente bons,
fazemos coisas boas pelo bem dos nossos amigos. Por conseguinte, a nossa
preocupação ética amplia-se para além da nossa própria eudaimonia
meramente a fim de abranger o bem-estar dos outros.
Alguns filósofos sugerem que a nossa preocupação com outros que nos são
estranhos, e a nossa preocupação com a justiça social, pode ser explicada
como mais uma expansão desses laços de sociabilidade. Por exemplo,
formamos laços com todas aquelas pessoas que compartilham conosco uma
identidade comum, quer essa identidade esteja baseada na religião, na
nacionalidade, na etnia, na vizinhança, no gênero ou na história comum. E
essas várias associações que conferem identidade podem ainda sobrepor-se
em uma variedade de maneiras. Somos membros de comunidades de vários
tipos e de diversos níveis de importância para nós. Os pontos de vista
compartilhados inerentes a estas comunidades fornecem uma base para o
cuidado mútuo e, portanto, expandem o âmbito das nossas preocupações
éticas. Dentro das comunidades, é virtuoso preocupar-se com os nossos
companheiros nessas comunidades.
A ética do cuidado de Carol Gilligan, que eu discuti no capítulo 1, é
igualmente relevante aqui. Apesar de “naturalmente” nos preocuparmos com
aqueles que nos são próximos porque, por exemplo, são membros de nossas
famílias, também é virtuoso nos preocuparmos com aqueles pelos quais
temos responsabilidades profissionais, por exemplo, como professores ou
como enfermeiras. Com efeito, o círculo daqueles dos quais é virtuoso cuidar
não precisa estar confinado apenas a essas duas esferas. Quanto maior for o
círculo daqueles com os quais você se importa, mais você é virtuoso. Você
deve se preocupar com a fome no Terceiro Mundo e com as vítimas de guerra
e desastres naturais. Mesmo quando você nada tem em comum com essas
pessoas ou não compartilha nenhuma associação comunitária formadora de
identidade com elas, elas são seres humanos, e, como tais, devem suscitar o
seu cuidado e preocupação. Todos aqueles que compartilham uma
humanidade comum devem ser os objetos do nosso cuidado. De fato, a sua
preocupação com os outros poderia se estender até além da espécie humana.
Qualquer ser que possa sofrer, seja um primata inteligente ou uma galinha,
deve suscitar a sua preocupação. Mesmo que esta última forma de cuidado
ainda não seja muito difundida nas comunidades humanas, o círculo em
expansão de preocupação ética vai e deve abrangê-la no tempo oportuno.
Os fundamentos teóricos para estas sugestões de como a busca ética da
eudaimonia pode se estender aos outros em círculos cada vez mais amplos de
preocupação podem ser encontrados na noção de Hume de um sentimento
de empatia inerente aos seres humanos ou na concepção de Lévinas de
sermos abertos ao apelo do outro em seu mistério infinito. Também é
sugerido pela concepção cristã do amor por toda a humanidade à qual
estamos intimados pelo amor de Deus por nós.
Mas existe um problema. Ao modelar a nossa preocupação com os outros-
em-geral na nossa preocupação, cuidado ou o amor para com aqueles outros
particulares com os quais temos relacionamentos face a face, essas teorias não
compreendem a natureza da postura ética que está em questão. Não é
cuidado, amor, preocupação, empatia, benevolência nem qualquer forma de
philia que está em causa neste contexto mais amplo; é a justiça. As sociedades
modernas não são comunidades no sentido de grupos vinculados por formas
ampliadas de philia. Elas são agregações pluralistas vinculadas por normas
gerais apoiadas pela força da lei. Essas normas são o produto de um debate
público que está idealmente estruturado pelas normas da justiça e da
imparcialidade, ao invés de sentimentos de cuidado e empatia. O discurso da
política liberal, pluralista prescinde das relações de philia precisamente
porque requer um domínio público negociável no qual todos estejam sujeitos
à lei, independentemente de laços de amor, associação comunitária ou
relações de cuidado. Nesse discurso, o status moral de um indivíduo não
depende da comunidade da qual ele é um membro ou das relações que
mantém com os outros. Depende de ele ter direitos perante a lei: direitos que
devem estar igualmente disponíveis para todos dentro dessa sociedade
política. É definidor da justiça que todos devam desfrutar de igualdade
perante a lei, obter o que é seu por direito, e ser tratado de acordo com seus
merecimentos.
Como pode a teoria da virtude nos levar do discurso de philia, cuidado,
amor e benevolência, para um discurso de igualdade, justiça e imparcialidade
se estes últimos não devem ser vistos como uma extensão dos primeiros? São
estes discursos tão distintos e intransponíveis como sugeri no capítulo 1? Para
responder a estas questões eu proponho explorar uma tese proposta por Paul
Ricoeur (1913-2005), que é um dos principais pensadores da tradição
hermenêutica.
O objetivo ético
A primeira coluna da Tabela 2 articula o objetivo ético que Ricoeur postula
como a realização interna da existência humana, e o divide em três níveis.
Sugere que a busca individual da eudaimonia, a busca social e comunitária da
philia, e a busca social e política da justiça, são objetivos igualmente
primordiais inerentes à vida humana. Nós não podemos entender o sentido
do que as pessoas fazem a menos que presumamos que estes objetivos juntos
constituam o propósito da existência humana. Os títulos das colunas são as
três formas de articulação que o objetivo ético recebe quando as pessoas são
definidas em seus contextos sociais e atestam suas identidades em três
discursos distinguíveis: o discurso da ética, que articula a busca da realização
pessoal; o discurso da moralidade, que articula os nossos deveres; e o discurso
do debate político e da elaboração da lei e das políticas públicas, que articula a
nossa busca da harmonia social.
Autoestima
A segunda coluna mostra como o objetivo ético é expresso na vida ética
dos indivíduos e nas identidades que eles formam na dimensão ética das suas
vidas. Portanto, o sucesso individual na empreitada de se viver bem expressa-
se nas nossas vidas éticas como um sentimento de autoestima. Sentimo-nos
bem conosco mesmos na medida em que vivemos virtuosamente e
alcançamos o tipo de autorrealização que Aristóteles havia destacado como
constitutivo da eudaimonia.
Solicitude e reciprocidade
Na segunda linha Ricoeur explicita os aspectos interpessoais do objetivo
ético com referência à abordagem aristotélica da amizade. O nosso desejo de
viver bem com e para os outros é articulado como solicitude para com outros,
em particular com aqueles com os quais eu tenho um relacionamento de
philia. Agimos em prol do seu bem. Além disso, os meus amigos são solícitos
para comigo na medida em que são meus amigos. Dada a natureza simétrica
da amizade, portanto, a minha aproximação dos outros tanto me constitui
como amigo quanto me torna o objeto do interesse recíproco dos meus
amigos. Essa análise estende-se aos cônjuges e também a outros
companheiros de vida íntimos. A ideia é a de que a minha preocupação
comigo mesmo – o meu projeto de mim mesmo – torna-se alargada pela
minha existência no seio da minha família, da minha rede de amizades e da
minha comunidade. Nesse contexto, as minhas virtudes como um amigo –
virtudes tais como lealdade e benevolência – tornam-se parte da minha
identidade. Eu já não estou embrulhado em mim. Atesto e preencho esta nova
forma de mim mesmo ao exercitar as virtudes da amizade. Um ponto-chave
para Ricoeur, no entanto, é que esta análise aplica-se a outros em particular,
que me são conhecidos em sua singularidade e particularidade.
A Regra de Ouro
Quando Ricoeur considera a qualificação de viver bem “com e para os
outros” dentro do discurso da moralidade, ele é conduzido à Regra de Ouro:
“Faça aos outros como você gostaria que lhe fizessem”. Essa é uma articulação
mais adequada da nossa atitude em relação aos outros do que o imperativo
categórico de Kant, porquanto salienta a reciprocidade e a mutualidade sem
situar a própria individualidade no centro das preocupações morais. Vê-se a
si mesmo como outrem, e o outro como um indivíduo. Reconhece-se que o
outro pode ser um agente autônomo, e que ele mesmo pode ser o recipiente
passivo das ações de outrem. Ela solicita-nos a considerarmo-nos a nós
mesmos como os outros podem considerar-nos, e a aplicarmos aos outros o
mesmo padrão que queremos que eles apliquem a nós. Isso envolve vermos a
nós mesmos mais objetivamente, e não apenas à luz dos nossos próprios
interesses. Passamos a ver-nos a nós mesmos como um nó em um sistema de
relacionamentos formais nos quais a cada um (inclusive a nós mesmos) é
dado o que lhe é devido. Isso envolve uma mudança de discursos; do discurso
ético de assegurar a minha felicidade, os interesses dos que me são próximos,
e as aspirações das minhas comunidades, para um discurso moral que envolve
respeitar os direitos dos outros, a dignidade do indivíduo e o que é devido às
pessoas por equidade e por direito. Adota-se uma nova postura e atesta-se
uma nova identidade. Essa postura não é um desenvolvimento suplementar
da postura ética descrita na segunda coluna, mas uma nova forma de
identidade com um novo conjunto de virtudes.
Solidão crítica
Ricoeur argumenta que o debate político deve ser marcado pela “solidão
crítica”. O que isso significa é que deve haver preocupação e respeito pelos
outros, mesmo quando todos os participantes submetem as suas próprias
opiniões e as dos outros à razão crítica. Mais uma vez o objetivo de se viver
bem com e para os outros é expresso em uma reciprocidade de respeito na
qual a individualidade de alguém é vista como outrem, e não como um
portador privilegiado de convicções que devam ser defendidas dos outros ou
impostas a eles. As próprias convicções de alguém são expressões válidas do
seu próprio objetivo ético. No entanto, quando alguém se move do pessoal,
através do interpessoal, para o social, move-se também de uma forma
refletiva e interpessoal do discurso privado para um discurso público e não
pessoal. As próprias convicções de alguém e seus vínculos familiares e
comunitários são aqui transcendidos, e essa pessoa assume a identidade de
um agente político. Aqui as virtudes apropriadas são a tolerância à
diversidade e a vontade de submeter todos os pontos de vista à análise crítica,
incluindo o seu próprio. É preciso testar as próprias convicções contra as
normas sociais e submetê-las à disciplina do debate.
Convicção e ação
Não é preciso, entretanto, que alguém perca o seu compromisso com as
próprias convicções ao respeitar as convicções dos outros e defender aquelas
leis e políticas que permitiriam a outras pessoas praticarem os modos de vida
que lhes são caros. A unidade e a coerência racional dessa posição são
estabelecidas pelo fato de ela ser uma expressão do nosso desejo de viver bem
com e para os outros em instituições justas, e não da nossa convicção de que o
nosso próprio modo de vida é o único racional ou moralmente correto. É a
expressão da nossa virtude da justiça: da nossa posição de objetividade. Não é
porque alguém se preocupa com esses outros necessariamente (embora
pudesse). Afinal, como você poderia estender a philia a pessoas cujas práticas
sejam estranhas aos seus olhos? Você pode amar aqueles que realizam a
excisão de clitóris nas suas filhas recém-nascidas? Para aqueles que não o
podem, a virtude sugere que precisam da objetividade que embasaria a
tolerância, e da vontade de engajar-se no debate racional que tanto expressa
as suas próprias convicções como ainda respeita as diferenças dos outros.
Devemos sempre lembrar-nos de que as nossas próprias práticas parecem tão
bizarras aos outros como as suas o parecem a nós. A reciprocidade aqui não
pode assumir a forma de amizade ou cuidado, mas ainda assim deve aderir à
moralidade da Regra de Ouro e aos valores políticos da tolerância e do debate
racional.
Em um mundo de concepções diferentes do que é viver bem e de várias
convicções morais, pareceríamos divididos entre uma adesão cega às
convicções com as quais fomos educados e uma tolerância fluida das
convicções e práticas dos outros que equivaleria a pouco mais do que
relativismo cultural. A única posição autêntica e, portanto, virtuosa nesse
contexto é a de se engajar na reflexão crítica e no debate social. Os nossos
próprios pontos de vista e as opiniões dos outros devem medir-se pelos
padrões da discussão racional, isto é, eles devem ser compreensíveis por
qualquer pessoa que esteja preparada para conceder-lhes consideração
racional ao invés de ser baseada em doutrinas arcanas ou metafísicas, imunes
ao escrutínio racional, mas esses debates e reflexões nunca parecem alcançar
uma resolução. A visão de mundo de pessoa alguma jamais encontra
concordância universal. Não importam quais sejam as pretensões à
universalidade das várias tradições religiosas e morais, diferença e pluralismo
continuam a ganhar. Assim, os indivíduos virtuosos não considerarão as suas
próprias convicções como sendo absolutas. A virtude intelectual incluirá um
senso de humildade e respeito pela diferença. A alternativa é o dogmatismo e
o fanatismo.
Introdução
Ao longo dos capítulos anteriores mencionei uma série de virtudes sem
fornecer uma exposição completa daquilo em que consistiam e por que
devem ser consideradas virtudes. Agora é hora de oferecer essa exposição e de
listar uma série de virtudes que considero importantes para a vida
contemporânea.
Devemos primeiro, entretanto, notar que os nomes das virtudes não são
como os nomes dos itens de mobiliário. Todos os usuários competentes da
linguagem chamariam uma mesa de uma mesa (embora possa haver algumas
peças de mobiliário que nos deixam perplexos, mesmo sendo um tanto
quanto parecidas com uma mesa). Mesas são entidades que existem no
mundo, e que, para todos os efeitos, podem ser claramente distinguidas de
cadeiras, camas e carros. Tais designações são relativamente simples. O
comportamento humano, por outro lado, é complexo. As pessoas agem por
uma variedade de motivações, e as suas ações têm uma variedade de efeitos,
alguns previsíveis e outros não. É preciso interpretação a fim de que possamos
conferir sentido a tudo isso, e usamos uma variedade de categorias para tanto.
Se víssemos um escoteiro ajudar uma frágil velha senhora a atravessar a rua
estaríamos inclinados a interpretar esse fenômeno como um ato de bondade,
mas haveria muita margem para interpretações alternativas. Poderia ser que o
escoteiro quisesse impressionar os seus colegas, ou poderia ser que ele
estivesse motivado por um senso de dever, ao invés de bondade. Ao descrevê-
lo como um ato de bondade, estamos não somente interpretando o ato, mas
também atribuindo motivações virtuosas ao agente e fazendo suposições
acerca do significado contextual dessa sua ação. Usamos os nomes de virtudes
e vícios como categorias que impomos à rica tapeçaria do comportamento
humano e dos traços de caráter a fim de interpretá-los e emitir juízos acerca
deles.
Essas categorias são altamente fluidas. Poderíamos interpretar a ação do
escoteiro como um ato de bondade, um ato de cuidado, um ato de
compaixão, ou um ato de generosidade. Como exatamente essas distinções
devem ser feitas não é claro. Não só é difícil saber o suficiente sobre o caso
particular para saber qual descrição se aplica, mas é difícil diferenciar essas
várias categorias conceitualmente. Não podemos distinguir um ato de
bondade de um ato de compaixão tão claramente quanto podemos distinguir
uma mesa de uma cama. Em suma, a maneira como esculpimos
conceitualmente os fenômenos do comportamento humano virtuoso em
classificações de virtude específicas é altamente complexa e provavelmente
relativa à cultura. Certamente está relacionada aos recursos da nossa
linguagem. Os gregos tinham várias palavras para “amor” (eros, philia e
agape), de modo que eram capazes de fazer distinções relevantes mais
facilmente do que podemos fazê-lo em português. Dito isso, a língua
portuguesa é particularmente rica em termos de virtude, e permite-nos fazer
muitas distinções sutis. Além disso, para cada categoria de virtude parece ser
possível distinguir subcategorias. Integridade, por exemplo, pode ser expressa
em ações honestas ou reflexões autênticas sobre si mesmo.
Devemos aceitar o rico e complexo conjunto de categorias que a nossa
linguagem nos legou. Há diferenças sutis entre bondade, compaixão, piedade,
caridade, boa vizinhança e cuidado, e não serviria a nenhum bom propósito
obscurecê-las designando todas essas qualidades com um único nome. Seriam
necessárias as habilidades da escrita literária para se articular essas diferenças
adequadamente, e alguns teóricos morais têm exortado os filósofos a
prestarem mais atenção à literatura e aos exemplos oferecidos por
personagens literários a fim de se compreender as virtudes. É uma
consequência do particularismo característica da ética da virtude que não se
deva ser muito dependente de categorias de um nível elevado de generalidade.
Dada a especificidade das situações nas quais a ação virtuosa e o caráter são
exibidos, a natureza da virtude que está sendo exibida também será altamente
específica. Por todas estas razões não é provável que algum dia nós
alcancemos uma classificação das virtudes acerca da qual todas as pessoas
concordarão. Tampouco parece necessário, ou conceitualmente útil, haver
essa lista definitiva.
Listas de virtudes
No entanto, a história da ética contém muitas listas de virtudes. A Tabela 3
é a lista de Aristóteles tal como estabelecida na tradução de J.A.K. Thomson
do livro 2 da Ética a Nicômaco. Note-se que as virtudes são aqueles traços
listados na coluna sob o título de “meio-termo”, e os estados nas colunas de
ambos os lados são os vícios correspondentes.
Coragem
1) O campo da virtude
O campo desta virtude é considerado por Aristóteles como sendo qualquer
situação que apresente perigo físico para o agente. Além disso, Aristóteles
especifica esse campo ainda mais, de uma maneira que antecipa o título 7. Ele
determina que a coragem só possa ser ostentada em situações que envolvam
valor moral positivo. Segundo ele, o homem corajoso age em prol do que é
nobre. É somente em situações tais como a defesa da cidade contra invasores,
por exemplo, que a coragem é exibida. Se você enfrenta perigo enquanto
rouba um banco, então não é coragem que você está exibindo, mas alguma
outra qualidade, como a bravata. Pareceria, então, que Aristóteles está
tornando verdadeiro por definição que a coragem é um traço de caráter
moralmente bom.
Pode ser questionado se esta definição está de acordo com o uso
contemporâneo. Admiramos a bravura no esporte, mesmo se este campo de
atividade tenha pouca significância moral óbvia. Muitos de nós estamos aptos
a admirar assaltantes de bancos como corajosos quando agem bravamente, e
expressamos essa admiração em muito do nosso entretenimento popular. Nós
gostamos de filmes de assaltos, apesar de esperarmos que os bandidos
ganhem o castigo que merecem. Essa última expectativa mostra que estamos
equivocados na nossa admiração da coragem quando ostentada por bandidos,
mas a admiração ainda assim parece ser real. É somente quando os
perpetradores de delitos vão longe demais, moralmente falando, que nos
recusamos a admirar até mesmo as suas bravatas. Os terroristas que atacaram
o World Trade Center em setembro de 2001 foram descritos como covardes,
mesmo embora um juízo mais moralmente neutro pudesse admitir que eles
enfrentassem a morte com grande bravura. Parece que nesta ocasião, pelo
menos, o sentimento popular estava de acordo com o modo aristotélico de
descrever o campo no qual a coragem pode ser exibida: que ela é somente
exibida no contexto de projetos e situações moralmente positivos.
O uso moderno também difere de Aristóteles quando ele restringe a
coragem a situações de perigo físico. Tal como Peterson e Seligman utilizam o
termo, por exemplo, você exercita a coragem em qualquer situação em que
possa haver oposição ao que você está fazendo de uma maneira que lhe
resultaria em custos pessoais se você seguisse em frente e o fizesse. Assim, por
exemplo, se uma pessoa considerasse expor uma prática corrupta em seu local
de trabalho em uma situação na qual ela quase certamente perderia o seu
emprego e atrairia a ira dos seus colegas se o fizesse, seria preciso coragem
para fazê-lo. Ela não está enfrentando o perigo de morte ou lesão física, mas
haverá um custo para ela. A coragem consistiria na superação do medo desse
custo. Nós às vezes falamos de “coragem moral” em situações deste tipo a fim
de distingui-las de situações que necessitem de “coragem física”, mas o uso do
termo “coragem” em ambos os contextos mostra que consideramos que o
mesmo tipo de traço de caráter está envolvido em cada caso.
O uso moderno também sanciona o uso do termo “coragem” em situações
em que uma pessoa esteja enfrentando grandes dificuldades acerca das quais
ela nada pode fazer. Por exemplo, um paciente morrendo de uma doença
incurável, ou alguém cujo cônjuge tenha morrido, pode ser descrito como
enfrentando a situação com coragem. Aqui, o termo significa algo como
“paciência”, “aceitação”, “resiliência” ou “determinação”. Não é óbvio que o
medo seja o problema que deva ser vencido aqui a menos que consideremos o
medo da morte e do fim das alegrias da vida. Ao contrário, a pessoa descrita
como “corajosa” está enfrentando ou tendo que aceitar uma grande perda, e o
faz com equanimidade. Eu considero isso um uso metafórico do termo
“coragem”, e não mais o considerarei aqui.
2) O alvo da virtude da coragem
O alvo da virtude da coragem é o cumprimento da tarefa que o medo de se
ferir, ou de outras consequências ruins, inibe. É importante, neste e em outros
casos de virtude, velar por que o alvo não seja o exercício da virtude como tal
ou o treinamento de si mesmo nela. Você não exercita a coragem a fim de ser
corajoso, para que os outros pensem que você é corajoso, para ser capaz de
pensar em si mesmo como corajoso, ou treinar-se para ser corajoso. Esses
podem ser todos efeitos que fluem da ação, mas eles não são o alvo ao qual
você almeja quando age corajosamente. O alvo de uma virtude é a expressão
específica do que Ricoeur chamou de o nosso “objetivo ético”, como é
enfocado pela situação em questão. Como vimos no capítulo 4, o objetivo da
ação virtuosa é viver bem, com e para os outros, em instituições justas. Esse é
um objetivo geral, e torna-se específico e concreto em uma situação
específica. Essa situação torna-se o campo particular de uma virtude
particular. Dessa forma, quando uma cidade está sendo atacada por invasores,
a virtude que é demandada dos seus soldados é aquela da coragem, uma vez
que a situação envolve perigo físico para eles. Nesta situação, o alvo desta
virtude é defender a cidade contra o ataque. Na situação em que alguém
descobre práticas contábeis duvidosas em seu lugar de trabalho, o alvo da
virtude é expor a corrupção. As pessoas não fazem essas coisas porque são as
coisas corajosas a se fazer; eles as fazem porque, considerados os seus
objetivos éticos, julgam que a situação os convoca a agir dessa maneira.
Se o alvo específico da virtude da coragem for o de superar o medo que o
inibiria de fazer aquilo que a situação demanda, você não estaria agindo
corajosamente se não sentisse medo das más consequências que fazê-lo lhe
acarretaria, seja porque você é estúpido demais para percebê-las ou porque é
“temerário”. Praticar a ação, pura e simplesmente, não é o alvo. O alvo da
virtude é praticar a ação a despeito do medo. Coragem é uma virtude de
autocontrole. Desta forma, é uma virtude da maneira pela qual fazemos as
coisas, e é exercida em qualquer uma das muitas situações na vida quando um
medo, de um tipo ou de outro, tem que ser superado. Dessa maneira a
coragem é por vezes designada uma “virtude executiva”, significando que ela
pode ser demonstrada na forma como se aborda uma ampla variedade de
projetos que envolvam o medo. Outras virtudes executivas incluiriam a
persistência, o foco, o entusiasmo e a laboriosidade. Essas são todas
qualidades que podem ser exibidas em uma variedade de contextos, incluindo
alguns que podem ser de valor moral duvidoso. Vou retornar a este último
ponto no título 7.
6) Os beneficiários da virtude
Os beneficiários de uma ação corajosa serão aqueles, digamos, que são
salvos pelos heróis que repelem os invasores da cidade: os cidadãos da cidade
que os soldados-heróis defenderam. Serão os acionistas da empresa cujos
livros estavam sendo fraudados. Serão os fãs esportivos cujo time ganhou
como resultado do jogo corajoso da defesa. Serão os judeus inspirados à
resistência pela coragem autossacrificante dos seus companheiros em
Varsóvia. Em suma, qualquer que seja o valor em nome do qual a ação
corajosa foi praticada, aqueles que endossam esse valor, ou beneficiam-se
dele, serão os beneficiários da virtude. Mas também há um benefício mais
amplo para os outros. Coragem como essa é impressionante e inspiradora. Ela
preenche aqueles de nós que a observam com uma nova confiança nas
qualidades da humanidade. Levanta os nossos espíritos. Esse é um benefício
que é específico da própria virtude, e não um que surge dos objetivos da ação
específica que tenha sido realizada com coragem. Os cidadãos da cidade
sitiada poderiam ser beneficiados da mesma maneira se o inimigo tivesse
simplesmente desistido e partido; a sua cidade seria salva. Mas se eles são
salvos pela coragem dos seus soldados em batalha, então um novo nível de
valor foi adicionado à sua história e tradições, e um novo sentido da honra
dessas pessoas foi adicionado à sua cultura.
Além disso, os benefícios da coragem não fluem apenas para os outros. O
agente também se beneficia. Ele consegue o que se propôs a fazer apesar do
seu medo, e honra os valores em nome dos quais ele considerou necessário
agir. Ele cresce na confiança. Torna-se ainda mais corajoso na medida em que
aprimora o seu traço de caráter habitual de ser corajoso. Em termos mais
teóricos, ele cumpre o seu objetivo ético e alcança uma forma de eudaimonia.
Dessa maneira, e em comum com muitas outras virtudes, ele alcança a
autorrealização. Em um nível mais reflexivo, ele melhora a sua autoestima.
Sente-se bem consigo próprio. Nada obstante, não deveríamos pensar nos
benefícios para o agente em termos puramente individualistas. O conceito
aristotélico do nobre inclui a ideia de honra pública e admiração. Quando ele
diz que uma pessoa que age corajosamente age em prol do nobre ele quer
dizer que essa pessoa vai conseguir um status honrado na comunidade, assim
como contribuir para a honra e a reputação da comunidade como tal. Mais
uma vez, estes não são os alvos da sua virtude, mas estão entre os seus efeitos
benéficos.
Enquanto a coragem é sempre respeitada de um ponto de vista
psicológico ou sociológico, só é realmente moralmente estimável quando
pelo menos parcialmente a serviço dos outros e mais ou menos livre de
autointeresse imediato (COMTE-SPONVILLE, A. Pequeno tratado das
grandes virtudes, 47).
Assumir a responsabilidade
Essa não é uma virtude que apareça em muitas listas, talvez porque não
parece haver uma única palavra para nomeá-la. Eu também poderia descrevê-
la como “ser responsável” ou como “disposição para assumir a
responsabilidade”. A única palavra “responsabilidade” (usada pelo Governo
do Estado Victoriano em sua lista acima) parece não captar o seu sentido
adequadamente. Não é o mesmo que aceitar a responsabilidade no sentido de
assumir a culpa ou de prestar contas quando algo em que você está envolvido
deu errado, embora isso possa decorrer disso. Tenho em mente cenários
como os seguintes:
• Em uma rua relativamente movimentada uma mulher está sendo
assaltada. Ela grita por socorro, mas ninguém tenta ajudá-la.
• Embora reconheça que o desmatamento das árvores de sua propriedade
aumentará os problemas da salinidade do solo, um agricultor raciocina que
mais um estábulo não fará muita diferença para um problema já intratável.
• Em um país democrático, onde o voto não é obrigatório, uma grande
quantidade de pessoas não vota.
• O governo precisa estabelecer uma instituição para abrigar pessoas que
sofrem de doença psicológica. Vários lugares são propostos, mas os
cidadãos locais objetam dizendo: “não no meu quintal”, com todas as
palavras.
• Uma empresa altamente lucrativa, que está pagando aos seus
trabalhadores do Terceiro Mundo uma ninharia para fabricar os seus
produtos, responde a seus críticos afirmando que a sua única
responsabilidade é com os seus acionistas.
• Em face do aquecimento global, o governo recusa-se a assinar e
implementar o Protocolo de Kyoto para limitar as emissões de gases do
efeito estufa.
Estes são todos exemplos de falhas na virtude que ilustram o que a virtude
de se assumir a responsabilidade acarretaria. Assumir a responsabilidade é
aceitar que me cabe fazer alguma coisa. Eu não deveria deixar que os outros
resolvessem o problema por mim. Além disso, o tema desta virtude poderia
ser o indivíduo, como no primeiro dos três cenários, uma comunidade ou
bairro, uma corporação ou um estado nacional, como nos outros exemplos.
Como os três últimos casos traduzem-se em responsabilidades individuais
depende da estrutura da tomada de decisão democrática nessas comunidades,
organizações ou estados. Alguém tem que se levantar na reunião da
comunidade e convencer o bairro de que ele pode aceitar e cuidar dos doentes
mentais. Acionistas devem compelir os diretores da empresa a prestar contas
nas assembleias gerais. E os cidadãos responsáveis devem votar em qualquer
partido que se comprometa a ratificar o Protocolo de Kyoto se ganhar o
governo.
1) O campo da virtude
O campo desta virtude é o conjunto de problemas no mundo com soluções
para as quais eu posso contribuir. Esse campo é vasto. Há inúmeros
problemas no mundo que eu posso ajudar a resolver, que vão desde jogar fora
o lixo, em um âmbito local, a garantir a paz mundial, em um âmbito global.
Não há dúvida de que o meu poder de efetuar mudança positiva varia à
medida que avançamos do local para o global, mas em cada caso existe algo
que posso fazer e alguma contribuição, ainda que pequena, que posso
oferecer. Estar disposto a ajudar na esfera doméstica e na comunidade local
pode ter mais efeitos óbvios e benefícios, mas a minha disposição a tornar-me
consciente de problemas sociais, nacionais e internacionais mais amplos, e de
tomar qualquer medida que esteja disponível para um cidadão em minha
sociedade, é tanto uma condição necessária quanto uma contribuição
significativa para o bem comum.
Porquanto o campo desta virtude é tão amplo, pode-se questionar se não é
demasiado exigente. Nenhuma pessoa, mesmo que detenha uma posição de
poder considerável, pode efetuar as mudanças que pareceriam ser necessárias
em relação aos problemas globais. É realista esperar que as pessoas assumam
a responsabilidade quando suas contribuições podem ser ineficazes? É
interessante notar que estudos psicológicos de cenários do primeiro tipo
acima indicam que, se uma pessoa dispõe-se a ajudar, torna-se mais provável
que outras pessoas também o façam. Inicialmente as pessoas ficam hesitantes,
porque esperam que outros intervenham de modo a poderem evitar
tornarem-se envolvidas. É quando alguém intervém que a sua hesitação é
superada. A solidariedade ajuda as pessoas a assumirem a responsabilidade.
Assim, essa força vai parecer menos exigente se houver oportunidades para
uma ação coletiva, e se houver instituições que canalizem e estruturem uma
responsabilização coletiva.
2) O alvo da virtude
O alvo da virtude de assumir a responsabilidade é o resultado positivo que
a contribuição de alguém para o problema está buscando. Assim, no primeiro
cenário, é a segurança da mulher que estava sendo atacada; no segundo caso é
a diminuição dos problemas de salinidade do solo; e assim por diante. Mas
em cada caso há ainda algum sacrifício que o agente está sendo convidado a
fazer. No primeiro caso, as primeiras pessoas a intervirem estão correndo
algum risco de ferimento físico se elas atacarem os assaltantes (existem ainda
outros cursos de ação que se podem tomar). No segundo caso, o agricultor
tem que arcar com o custo econômico de abandonar o uso do estábulo
impróprio. No terceiro caso, o cidadão tem que ir votar e ainda interessar-se
o suficiente pelos assuntos políticos e pelas personalidades pertinentes para
fazer de seu voto um voto inteligente. Empresas podem ter que renunciar a
alguns lucros para instituir práticas justas de contratação, e assim por diante.
Não devemos pensar no alvo da virtude simplesmente como o resultado
benéfico, mas também como o pagamento do preço que é necessário para se
alcançar esse resultado. Assumir a responsabilidade envolve algum necessário
autossacrifício.
6) Os beneficiários da virtude
Os beneficiários de uma ação responsável também são fáceis de identificar
em cada um dos meus cenários acima. Eles serão a vítima de assalto que é
resgatada, o meio ambiente, os trabalhadores do Terceiro Mundo e assim por
diante. Mas, uma vez mais, os benefícios de assumir a responsabilidade não
fluem somente para os outros ou para as coisas que são preservadas. Também
há benefícios pessoais, tais como a autoestima e o crescimento da confiança
de que se pode fazer a diferença. Esses são benefícios de autoafirmação que
podem ser experimentados em um nível individual ou nível grupal. Alguém
satisfaz o seu objetivo ético e, portanto, o seu ser individual e social, ao
assumir a responsabilidade, mas o que é interessante acerca dessa virtude é
que ela pode ser exercida por grupos como bairros, empresas, instituições e
sociedades como um todo. Na medida em que tais agrupamentos aceitam a
responsabilidade e agem responsavelmente, a sua posição será reforçada. A
reputação de empresas que atuam como cidadãos globais responsáveis
aumenta a sua posição e, portanto, como é evidente, a sua rentabilidade. As
nações que agem responsavelmente são respeitadas e desfrutam de um
aumento de posição no mundo da diplomacia internacional. Elas desfrutam
de “crédito moral”, que lhes confere influência no cenário mundial maior do
que poderiam alcançar através do mero poder militar.
Reverência
Reverência é uma virtude que podemos compreender à luz do conceito
aristotélico de contemplação: a atividade de pensar acerca das coisas eternas
exercida por esse aspecto do nosso ser que olha para além das vicissitudes e
contingências dessa vida mundana a fim de encontrar significado e
compreensão em uma realidade de maior valor. Há ainda ligações com as
virtudes teologais de Tomás de Aquino, embora a reverência não seja uma
virtude restrita àqueles que aderem à fé religiosa. E a virtude da
transcendência de Peterson e Seligman também é pertinente.
1) O campo da virtude
O campo da virtude da reverência é o mundo, na medida em que ele
contém coisas que são maiores do que nós. Com efeito, é o universo em toda
a sua grandeza. Para aqueles que têm fé religiosa, inclui Deus. O mundo
contém coisas belas e coisas que são sublimes. Ele contém produtos
magníficos do engenho e da criatividade humanos. Ele contém coisas que
existiram durante períodos imensos de tempo. Sabe-se hoje que o mundo é
uma pequena mancha em um universo de tamanho e complexidade
inimagináveis. A nossa própria existência como seres inteligentes é o produto
de processos incrivelmente complexos e contingentes ao longo de milhares de
anos. Há uma dimensão espiritual da vida que leva muitos à fé religiosa e
inspira outros com um sentimento de admiração e de paz. Todos esses
fenômenos, que teóricos reúnem sob o título de “o numênico”, constituem o
domínio da virtude da reverência. E não devemos esquecer o ponto de
Lévinas de que uma pessoa com quem eu encontro em uma relação face a face
também é infinita e misteriosa em sua presença diante de mim. Assim, essa
pessoa também é um objeto de reverência e pertence ao campo da virtude.
Além disso, é possível ter reverência por ideias. As ideias de verdade, justiça e
beleza, por exemplo, podem ter se tornado objetos de desconfiança em nossa
época pós-modernista cínica, mas não devemos esquecer-nos que elas são os
nomes de ideais de tal importância moral e estética que têm inspirado muitas
pessoas a atos de grandeza. Você não tem que ser um realista moral e
acreditar que esses termos realmente nomeiam realidades normativas
existentes para ser inspirado pelo que eles representam. Eles são objetos de
reverência que podemos tornar reais ao instanciá-los em nossas vidas. Por
último, não podemos esquecer a importância do ritual em nossas vidas.
Rituais pelos quais devemos ter reverência incluem as refeições familiares
feitas em conjunto, cultos religiosos, cerimônias cívicas e oficiais, cerimônias
de casamento, funerais, memoriais, cerimônias de entrega de prêmios, e
assim por diante. Esses rituais demandam reverência porque uma forma
redutora e pragmática da racionalidade instrumental os rejeitaria como
irrelevantes e improdutivos.
2) O alvo da virtude
O alvo da virtude da reverência é conceder respeito a essas coisas que são
maravilhosas e importantes. Isso pode soar um modo um tanto quanto vago
de colocá-lo, mas esta é, antes de tudo, uma virtude de atitude. A pessoa
reverente procura contemplar as coisas que lhe inspiram admiração, ser
sensível à beleza e à grandiosidade das coisas, ser respeitoso para com os
outros, considerar os rituais importantes e mostrar deferência para com os
deuses. A virtude é evocada pelos aspectos numênicos da realidade e a pessoa
reverente procura se tornar sintonizada com o numênico e unir-se a ele
através do silêncio e da atenção. A maravilha e a grandeza do mundo e do que
consideramos estar além dele é o objeto da virtude. A nossa meta é proteger,
preservar e, no caso de Deus, adorar esse objeto. Além (ou, talvez, dentro) da
monótona corrida de ratos da vida ordinária, sentimos um reino de beleza,
espiritualidade e transcendência ao qual, se estivermos buscando viver bem
com e para os outros em instituições justas, tentamos nos tornar mais
sensíveis.
6) Os beneficiários da virtude
Os beneficiários da virtude da reverência incluem aqueles objetos, ideias ou
pessoas que são preservados, cuidados e protegidos pelas pessoas reverentes.
Mas, mais uma vez, há benefício considerável para as pessoas virtuosas
também. Se Aristóteles tem razão em sugerir que há um aspecto do nosso ser
que busca contemplar coisas eternas, então é uma realização do nosso ser nós
sermos sensíveis ao numênico. Pode envolver a humilde posição de conhecer
o nosso lugar no universo físico e social, mas ver-nos a nós mesmos como
parte desse maravilhoso mundo natural, ou como uma parte da ordem
providencial de Deus, ou como um beneficiário das obras das gerações
passadas, ou como um objeto do amor daquelas pessoas a quem amamos, é
um aprimoramento do nosso ser. Podemos ser insignificantes no contexto do
vasto universo, mas temos um lugar nele. Podemos ser impotentes diante da
ordem espiritual, mas também somos mimados por ela. Podemos ter que
suspender a nossa independência e vontade de poder, mas a comunidade e o
amor que ganhamos fazendo isso nos enriquecem infinitamente. Em suma,
conhecer o nosso lugar nos confere um lugar.
Resumo e conclusão
Comecei este capítulo com algumas listas de virtudes e perguntei se pode
existir alguma maneira de ordenar as virtudes que são mencionadas nelas.
Elas podem ser agrupadas quanto ao tipo ou relevância? Talvez devessem ser
pensadas como tantas permutações de uma única virtude ou de algumas
virtudes básicas. Sugeri que não havia muito a ser ganho mediante a
persecução dessas questões, e passei a discutir apenas três virtudes – a
coragem, assumir a responsabilidade e a reverência – usando um esquema
que exibia as suas características éticas importantes. Eu não faço qualquer
alegação de que essas virtudes sejam as únicas que poderiam ser consideradas
importantes nesses tempos pós-modernos. No capítulo 6 discutirei algumas
virtudes que são especialmente relevantes para os tipos de problemas práticos
que preocupam os especialistas em ética aplicada. Mais uma vez, a minha lista
dessas virtudes não será exaustiva, mas servirá para demonstrar que a ética da
virtude pode ter algo de útil a dizer sobre as questões práticas que nos afligem
hoje.
6
Virtudes e ética aplicada
Introdução
A ética aplicada é um campo emergente na filosofia contemporânea que
procura aplicar a teoria moral a problemas práticos à medida que eles surgem
na sociedade contemporânea. Esses problemas incluem: questões de política
internacional, tais como quais limites morais aplicam-se a nós no contexto da
guerra e do terrorismo; questões de bioética decorrentes dos avanços na
ciência médica que nos permitem controlar a própria arquitetura da vida;
questões de ética dos negócios, tais como a relação entre a motivação do lucro
e a responsabilidade social e ambiental; questões decorrentes dos conflitos
entre a consciência e os papéis e responsabilidades profissionais; questões
decorrentes da tecnologia da informação, tais como os limites da privacidade
e o controle de informação; e assim por diante.
Não será possível neste livro discutir todas essas questões, ou qualquer uma
das muitas outras que possam parecer-lhe importantes, e tampouco será
possível discutir qualquer uma delas em grande profundidade. No entanto,
neste capítulo quero ilustrar como uma abordagem da ética da virtude pode
diferir da maneira como a ética do dever discute questões práticas, e o farei
com referência à doutrina da santidade da vida, tal como esta é usada na
bioética. Discutirei, portanto, a maneira pela qual a ética da virtude relaciona-
se com papéis profissionais, e completarei o capítulo explicando uma virtude
relevante para muitas das questões ilustradas acima: a integridade.
Papéis profissionais
Há um contexto no qual a minha explicação das virtudes como orientações
práticas para o mundo assume um nível maior de complexidade. Seguindo
Ricoeur, sugeri que a autoestima é um dos valores que está em jogo ao se agir
virtuosamente, na medida em que há benefícios para o indivíduo que age
dessa maneira. Ao lado da meta da virtude e dos benefícios que fluem para os
outros está a realização do indivíduo ocorrida a partir da sua atuação em
conformidade com os padrões que fixou para si mesmo, e em resposta às
exigências da situação. Agentes virtuosos atestam seus valores quando agem
virtuosamente, e, assim, realizam-se e afirmam-se como virtuosos. Mas, como
Ricoeur o reconheceu, o indivíduo não é uma simples entidade subjetiva. É
em parte um construto social, e uma fonte importante dessa construção do eu
é o papel que ocupamos na sociedade. Isso é especialmente evidente no caso
das profissões liberais. Se você é um advogado, um professor ou um médico, o
seu senso de si mesmo e do que seria virtuoso para você fazer incluirá o seu
senso do que é virtuoso para um advogado, um professor ou um médico
fazer. Deixe-me ilustrar isso.
Suponha que você seja um médico em uma unidade de cuidados paliativos,
cuidando de doentes terminais. Você está cuidando de uma paciente idosa
morrendo de câncer de cólon. Ela tem dores terríveis, e nenhuma das doses-
padrão de morfina parece oferecer-lhe alívio. Ela parece ter poucos familiares,
e aqueles que a visitam estão extremamente abatidos com o seu sofrimento.
Eles sugerem-lhe que a sua morte poderia ser acelerada. Você mesmo sente
profunda compaixão em face do sofrimento aparentemente inútil desta
mulher, e tristeza por ser capaz de fazer tão pouco para aliviar a sua dor.
Quase tudo em você o impele a administrar uma dose maior de morfina,
embora você saiba que isso seria fatal. Se você fosse o parente mais próximo
da mulher, você o faria. Mas você diz a si mesmo que, embora considere que
isso seria algo virtuoso a se fazer, como médico você não pode fazê-lo. Você
lembra-se de que o papel de um médico é o de preservar a vida e melhorar a
saúde. A profissão médica existe a fim de curar doenças, reparar danos e
salvar vidas. Assim, embora você não veja qualquer objeção moral a um ato
de eutanásia neste caso, você sente que, como médico, este estaria em
contradição com os seus compromissos profissionais e senso de vocação se o
executasse.
O meu propósito não é o de endossar esta decisão ou condená-la. Eu a uso
simplesmente para ilustrar a maneira pela qual um compromisso ético
puramente pessoal e um compromisso profissional podem estar em conflito.
Em um nível pessoal, você acha que a eutanásia é justificável nesta situação,
mas como profissional você acha que não deveria fazê-lo. A fim de entender
como esse dilema pode surgir é útil recordar a noção de “comunidade” tal
como eu a desenvolvi no capítulo 4, e também o conceito de MacIntyre de
uma “prática”, que descrevi no capítulo 1. Uma profissão é um excelente
exemplo de uma prática neste sentido. Se a prática ou profissão da medicina
persegue objetivos tais como curar doenças, reparar danos e salvar vidas, os
valores que a profissão persegue incluem aqueles da saúde e da vida, e uma
das suas virtudes centrais será a reverência pela vida. Assim, um indivíduo
que se torna um médico conferirá um maior grau de importância à vida do
que o faria qualquer outra pessoa. Ele pode considerar que, embora haja
circunstâncias trágicas nas quais uma vida possa ter que ser suprimida, não é
parte do papel de um médico suprimi-la. Ele pode considerar que não iria
melhorar a profissão da medicina se esta passasse a aceitar o papel de não só
curar doenças, reparar danos e salvar vidas, mas também de terminar a vida
quando isso se pudesse fazer necessário. Naturalmente, essa visão gerará
debate. Afinal, se as pessoas concordarem que a eutanásia é, por vezes,
justificada, então se poderá perfeitamente questionar qual profissão deveria
estar envolvida em administrá-la.
Mas o meu objetivo aqui não é o de discorrer acerca dessa questão. É
simplesmente o de ilustrar como o conceito de um papel profissional
introduz um novo nível de complexidade na questão do que é virtuoso para
uma pessoa individual fazer. O meu senso de mim mesmo como uma pessoa
virtuosa não é apenas uma função do meu caráter e das minhas convicções
éticas enquanto moldados pela minha criação, mas também do meu papel
profissional. Todas as profissões começam com um período de treinamento e
educação no qual ao neófito é dado não apenas o conhecimento relevante
para a profissão (seja esta medicina, direito ou pedagogia), mas também uma
compreensão e um compromisso com os valores inerentes a essa profissão:
valores como saúde, justiça e conhecimento. Tal educação forma as
perspectivas éticas do indivíduo e define o que seria virtuoso para um
profissional fazer na medida em que esse profissional está ocupando esse
papel profissional. Um marido atencioso que porventura seja médico, e cuja
esposa esteja dolorosamente morrendo de câncer, pode ajudá-la a conseguir
uma morte mais rápida e tranquila. Mas ele o fará como marido. Se lhe
pedissem para fazer uma coisa dessas por um paciente, como médico, ele
poderia ser mais hesitante. Ele poderia considerar que tal ato, mesmo se
permissível para um marido, não é admissível para um médico. E isso se dará
porque a medicina, como tal, inerentemente persegue os objetivos de curar
doenças, reparar danos e salvar vidas. Se a profissão da medicina aceitasse a
tarefa de assistir doentes terminais a morrerem em paz antecipando as suas
mortes, então a profissão como um todo teria que rever os seus objetivos. Há
um debate em curso no âmbito dessa profissão exatamente acerca desta
questão.
Caracterizar o objetivo de uma profissão nos termos do bem substantivo
que esta se compromete a servir ajuda-nos a entender melhor os apelos
à noção de integridade profissional como uma razão para se recusar a
realizar certos pedidos de pacientes ou clientes (COCKING & OAKLEY.
Virtue Ethics and Professional roles, 83).
Integridade
A palavra “integridade” tem a mesma raiz latina da palavra “integração”.
Ela exprime a unidade ou a inteireza das virtudes e dos compromissos éticos
de uma pessoa. Assim, como sugestão preliminar, eu poderia descrever tanto
o médico quanto o político nos meus exemplos acima como desprovidos de
integridade, porque há uma falta de conexão entre as suas convicções pessoais
e a maneira como eles pensam que os seus papéis profissionais exigem que
eles ajam. Mas este é um assunto complexo que eu vou explorar mais adiante.
1) O campo da virtude
Podemos ser tentados a dizer que o campo da virtude da integridade é a
individualidade. Aqueles teóricos que falam da integridade como sendo a
integração ou a unificação dos vários desejos, valores e compromissos do
indivíduo, aqueles que a veem como fidelidade aos compromissos
fundamentais que constituem a identidade do indivíduo, e aqueles que a
veem como a determinação a manter-se inocente do mal moral, certamente
pareceriam sugerir que esta virtude preocupa-se com o status moral do
indivíduo. Outros teóricos rejeitam estas visões com base em que, para uma
pessoa que não se encontre unificada consigo mesma, ou que não seja capaz
de evitar comprometer os seus valores mais caros (como o nosso político
indigno de confiança), a integridade ainda está disponível. Ela consistiria no
seu reconhecimento honesto daquela situação. Mas, em todas estas visões, a
integridade seria essencialmente uma virtude existencial preocupada com a
individualidade.
No entanto, a integridade também tem uma dimensão social. Pessoas
íntegras são admiradas e elogiadas pelos outros devido à sua confiabilidade,
credibilidade e honestidade exemplar. Estas são qualidades sociais e pessoais.
São as qualidades que buscamos em pessoas em cargos de confiança, e em
pessoas que tenham assumido compromissos, feito promessas ou firmado
contratos. Por conseguinte, sugeriria que o campo da virtude da integridade
inclui a esfera dos compromissos interpessoais, como promessas, contratos,
papéis profissionais e cargos públicos nos quais pode haver tentações de se
obter vantagens através do abuso da confiança dos outros. É o campo no qual
o público deposita confiança nas autoridades governamentais, líderes
empresariais ou outras pessoas investidas de posições importantes, e nos
quais se espera que tais indivíduos sejam confiáveis. Esse campo pertence ao
público e à esfera interpessoal, e leva os compromissos particulares de uma
pessoa para essa esfera. A integridade é a virtude na qual as expectativas da
própria pessoa acerca de si mesma e as expectativas do público em relação a
ela caminham juntas.
2) A meta da virtude
Qual é a meta da integridade? O que agir com integridade procura atingir
no campo das convicções éticas pessoais e naquele dos compromissos
públicos interpessoais? A visão que tem sido frequentemente proposta é a de
que é a pureza da consciência ou a autoestima o que surge ao se ter atuado em
conformidade com os próprios compromissos, mas há também a unidade e a
inteireza dos próprios compromissos éticos. Os compromissos éticos que
alguém tem devem ser exercidos de forma consistente em todos os aspectos
da sua vida, incluindo os seus papéis profissionais. Essa coerência é, portanto,
uma meta da virtude. Além disso, em vista de sua dupla natureza existencial-
social, gostaria de sugerir que uma meta adicional da integridade é a honra.
Esta parecerá um conceito fora de moda nestes tempos individualistas e
cínicos, mas ela capta bem a combinação de autoestima e respeito público que
uma pessoa íntegra merece receber. A pessoa que cumpre a sua palavra,
honra os seus compromissos e evita todas as formas de corrupção e falsidade
é uma pessoa honrada. A descrição “agir com integridade” pode ser atribuída
a tal pessoa. Honramos aqueles que agem bem e que acreditamos estarem
agindo coerentemente com as suas próprias convicções. Claro, a honra será
um alvo de outras virtudes também, como Aristóteles deixa claro em suas
observações sobre a coragem. O que é distintivo acerca da integridade é que
ela procura a honra no campo das funções públicas e dos compromissos
interpessoais. Neste contexto a honra surge da confiabilidade. Esta, por sua
vez, conecta-se com as preocupações existenciais do agente, porque a
confiabilidade decorre da adesão dos agentes virtuosos aos seus
compromissos públicos e pessoais.
6) Os beneficiários da virtude
Decidir quem são os beneficiários da virtude da integridade é complexo se,
como o faz Paul Ricoeur, supusermos que a autoestima, a sociabilidade com
os outros e uma sociedade justa são os objetivos inerentes à existência
humana. Aqueles que enfatizam a dimensão existencial da virtude vão dizer
que o seu beneficiário é o agente. A autoestima que a integridade justifica é
certamente um tamanho benefício. Se formos capazes de obter coerência
entre as nossas convicções éticas e as responsabilidades dos nossos papéis, nos
sentiremos unificados e inteiros em nossa visão da vida. Além disso, se
agirmos de acordo com, e por causa das nossas promessas, empreendimentos
públicos e as responsabilidades dos nossos papéis, então essas ações serão
constitutivas da nossa integridade e nos obterão honra na comunidade. Desta
forma, autoestima e honra serão o prêmio das nossas ações, ainda que elas
não sejam o seu objetivo.
No entanto, ao enfatizar a dimensão social da virtude, tornar-se-á claro
que, tudo o mais permanecendo o mesmo, a pessoa ou pessoas com as quais
você tenha assumido compromissos também se beneficiam com o fato de
você honrá-las. Elas obterão o que lhes foi prometido ou o que elas esperaram
que você provesse, mas não se deve pensar que estes são os únicos benefícios
envolvidos. Há uma diferença entre fazer um bem por alguém e fazer esse
bem quando se está comprometido a fazê-lo. A utilidade do benefício pode
ser a mesma em ambos os casos, mas o último contém o bem extra de ser a
realização de um compromisso. Não só isto é um benefício extra para o
receptor, porque vai realizar o seu senso de justiça e satisfazer as expectativas
que o seu compromisso produziu, mas também é um benefício para a
comunidade como um todo. Se membros da profissão médica, por exemplo,
agirem com integridade nas suas relações profissionais, se honrarem o
juramento de Hipócrates, e se não defraudarem a gestão das verbas médicas,
então essa profissão gozará de boa reputação na sociedade como um todo, e
terá menos problemas internos com os quais lidar. Isso torna a profissão uma
beneficiária da virtude da integridade juntamente com os indivíduos que se
beneficiam das ações médicas beneficentes e os médicos individuais que
exibem a virtude. Foi de maneira análoga que Aristóteles considerou que uma
cidade-estado seria uma beneficiária das virtudes dos seus cidadãos. Aqueles
que defendem a importância da confiança como parte do “capital social” da
sociedade contemporânea também veriam que a integridade beneficia a
comunidade como um todo.
2 A ética de Aristóteles
1) O que Aristóteles entende por “ética”?
2) O que é uma “explicação teleológica” e como se aplica aos seres humanos?
3) Em suas próprias palavras descreva um incidente interessante ou
dramático em sua vida. Então analise esse incidente e o modo como você o
experimentou nos termos dos quatro níveis de existência que Aristóteles
identificou como partes da alma.
4) O que Aristóteles entende por “virtudes de caráter”?
5) Qual seria a melhor maneira de desenvolver as virtudes de caráter de
alguém?
6) Será que todos os prazeres são iguais, eticamente falando? ou alguns são
mais finos do que outros? Se sim, por quê?
7) Qual, para Aristóteles, é o papel da razão em relação ao prazer?
8) O que é, para Aristóteles, a prudência ou sabedoria prática (phronesis); e
por que ela é tão importante para ele?
9) Como é que Aristóteles distingue a prudência da sabedoria? Qual é a mais
importante para as nossas vidas éticas?
10) O que você entende por “felicidade”? Existe apenas um jeito de ser feliz
ou pode a felicidade surgir em diferentes modos de vida?
11) Qual é o papel do intelecto na felicidade?
12) Você acha que pessoas más podem ser felizes?
2 A ética de Aristóteles
O texto-fonte para este capítulo (do qual as citações foram tiradas) foi
Nicomachean Ethics [Ética a Nicômaco], de Aristóteles, trad. por J.A.K.
Thomson (Harmondsworth: Penguin, 1953) (ou qualquer outra edição). Há
excertos desse livro em muitas das antologias mencionadas no capítulo 1. Há
numerosos comentários sobre a Ética de Aristóteles. Considerei úteis os
seguintes: Aristotle’s Ethics (Oxford: Oxford University Press, 2000), de D.
Bostock. • Ethics with Aristotle (Oxford: Oxford University Press, 1991), de S.
Broadie. • Reason and Human Good in Aristotle (Cambridge, MA: Harvard
University Press, 1975), de J.M. Cooper. • Aristotle’s Ethical theory. 2. ed.
(Oxford: Clarendon Press, 1980), de W.F.R. Hardie. • Aristotle on Ethics
(Londres: Routledge, 2001), de G.J. Hughes. • Essay on Aristotle’s Ethics
(Berkeley, CA: University of California Press, 1980), org. por A.O. Rorty. •
Aristotle’s Ethics: Critical Essays (Nova York: Rowman & Littlefield, 1999),
org. por N. Sherman. • Aristotle’s Ethics (Oxford: Blackwell, 1988), de J.O.
Urmson. • Aristotle’s Ethics: Issues and Interpretations (Belmont, CA:
Wadsworth, 1967), org. por J.J. Walsh e H.L. Shapiro.
Em seu “The Discernment of Perception: An Aristotelian Conception of
Private and Public Rationality”, in Love’s knowledge: Essays on Philosophy
and Literature (Oxford: Oxford University Press, 1990, p. 54-105), M.
Nussbaum explica como a phronesis envolve a tomada de consciência sensível
de uma situação.
Livros sobre temas aristotélicos incluem: Happiness (Basingstoke:
Macmillan, 1980), de E. Telfer, que também inclui discussões sobre Mill e
Kant. • Happiness, Death, and the Remainder of the Virtues (Cambridge, MA:
Harvard University Press, 2000), de J. Lear. The Moral Psychology of the
Virtues (Cambridge: Cambridge University Press, 1984) não é um estudo de
Aristóteles, como tal, mas é fortemente influenciado por ele.
abertura de mente
aborto
ação
aceitação
Protocolo de Kyoto
adoração
afeição, cf. simpatia
Agostinho
alienação
alma
exercício
nível apetitivo
nível contemplativo
nível deliberativo
nível vegetativo
altruísmo
ambição
amistosidade
amizade
amor
animais
Anscombe, G.E.M. (Elizabeth)
apreço
aprendiz, O
aprendizado, amor ao
aquecimento global
Aquino, T.
Aristóteles
classificação das virtudes
leitura hermenêutica
sobre a amizade
sobre a coragem
artes
assassinato
assertividade
assumir responsabilidade
“átomos sociais”
Audi, R.
autenticidade
autocontrole
autodisciplina
autoestima
autonomia
autorregulação
beber
beleza
bem/bondade
concepção aristotélica
beneficência
benevolência
bioética
Blum, L.A.
boa-fé
bondade
bravata
bravura, cf. coragem
caráter
aquisição/formação
cf. tb. modo primordial de ser
caridade
células-tronco
cerimônias
Chambon, Le
Character Strengths and Virtues: A Handbook and Classification (Peterson e
Seligman)
cidadania
ciência
Clarkson, T.
classe
clitoristectomia
clonagem
Cocking, D.
cognição
cognitivismo moral
coleta de órgãos
comida
compaixão
competitividade
compromisso
comprovação
Comte-Sponville, A.
comunidades
conceitos, “fino” e “grosso”
confiabilidade
confiança
confiar
conflitos, dos deveres morais
conhecimento
de si
teorias do
consciência
contemplação
contratos
sociais
conversação, função de
coragem
aquisição de
benefícios da
variações culturais
corpo
cortesia
covardia
crenças incompatíveis
criação
crianças
inculcar virtudes em
criatividade
cristianismo
crueza
cuidado
cultura
influência na virtude
curiosidade
democracia
denúncia
deontologia
Descartes, R.
desejos
cf. tb. paixões
desonestidade
determinação
Deus,
amor de
como doador da lei moral
conhecimento de
existência de
deveres
Dez Mandamentos
diálogo, função do
dilemas
dimensão social da virtude
dinheiro
direitos
distinção mente/corpo
dolo
dualismo
egoísmo
emoções, influência sobre a moralidade
empatia
empirismo
enfermagem
enganação
engano
entusiasmo
Epicteto
equanimidade
equidade
erros
escolas, virtudes para se inculcar nas
escravidão
escuta
esperança
esperteza
espírito livre
espiritualidade
esporte
estoicos
ética
aplicada
distinta da moralidade
Ética a Nicômaco (Aristóteles)
etiqueta
etnia
eudaimonia
definição
cf. tb. felicidade
eutanásia
excelência
existencialismo
externalismo
extremos, evitamento de
família
fé
felicidade
cf. tb. eudaimonia
fidelidade
filistinismo
filosofia
Foot, P.
formação na virtude
Foucault, M.
fraqueza, a moralidade como uma celebração da
fraude
Freud, S.
frugalidade
fundacionalismo
habilidades manuais
hermenêutica
c ircularidade
Hitler, A.
honestidade
honra
hubris
humanidade
Hume, D.
humildade
humor
Hursthouse, R.
ideias platônicas
identidade
identidade nacional
ideologia
idosos
ignorância
igualdade
Iluminismo
imparcialidade
incontinência
individualidade, em relação aos outros
individualismo
insensibilidade
instintos
integridade
intelecto
virtudes intelectuais
inteligência social
internalismo
introspecção
intuição
inveja
Jesus
judaísmo
julgamento
justiça
ideia platônica
social
Kant, I.
laboriosidade
lealdade
lei
natural
letargia
Levante do Gueto de Varsóvia
Lévinas, E.
liberalidade
liberdade de
liderança
linguagem
MacIntyre, A.
magnanimidade
magnificência
mal
Mandela, N.
mansidão
Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais
matemática
medicina
mediocridade
medo
meio-termo
mentir
metafísica
metas
compartilhadas
misericórdia
mito
moderação, como uma virtude
modéstia
modo primordial de ser
como respeito para com os outros
cf. tb. caráter
princípios
moral de escravos
moralidade senhorial
mortalidade
morte, vida após a
motivações
mudança social
mulheres
nações-estado
“não no meu quintal”
natureza humana
visão nietzscheana
necessidade prática
Nietzsche, F.
nível apetitivo da alma
nível deliberativo da alma
nível vegetativo da alma (Aristóteles)
nobreza
normas
paciência
paixões
cf. tb. desejos
particularismo
Pellegrino, E.
percepção
perdão
perfeição
perigo
perseverança
personalidade
genética
perspectiva de
Peterson, C.
philia
phronesis
cf. tb. prudência
piedade
Platão
pluralismo
polidez
política de
políticas públicas
possessões
pós-vida
pragmatismo
prática, e as virtudes morais
prazer
da carne
pretensão
privacidade
professores
promessas
propriedade
prudência
cf. tb. phronesis
psicologia, moral
pulsões
pureza
Rawls, J.
razão
em relação às paixões
razão prática, cf. prudência
razões
razões a priori
realidade, como um construto social
realismo moral
realização
reflexão
regras
relativismo
religião
e identidade de
resiliência
respeito
responsabilidade ambiental
responsabilidade social
responsabilidade, assumir
reverência
Ricoeur, Paul
riqueza, ostentação de
riscos
rituais
rotulagem, e identidade pessoal
roubar
sabedoria
sacrifício
santidade da vida
Sartre, J.-P.
Schweitzer, A.
segurança nacional
Seligman, M.E.P.
sensibilidade
senso comum
sexo
significado, teoria referencial do
silêncio
simplicidade
Slote, M.
soldados
solidão crítica
sophia
Stocker, M.
subjetivismo
subserviência
supererrogação
superficialidade
Swanton, C.
talentos
televisão
temeridade
temperança
teoria dos mandamentos divinos
teoria moral, propósitos
terminologia
termos aretaicos
terrorismo
testemunha
Thomson, J.A.K.
tolerância
trabalho em equipe
tradição de
transcendência
Übermensch
universalidade da ética
utilitarismo
vacilação
valor
verdade
teoria da correspondência
veracidade como uma virtude
vergonha
vida criminosa
vida
bem-vivida
santidade da
virtudes
base cultural de
classificação e ordem das
virtudes cardeais
virtudes executivas
virtudes pagãs
vitalidade
vontade
de poder
vulnerabilidade de
Williams, B.
Woodruff, P.
Zenão de Cítio
Textos de capa
Contracapa
O substantivo “vida” é uma abstração. Ele denota uma condição biológica
ou categoria que, seja na frase “reverência pela vida” ou “a santidade da vida”,
é ainda abstrata demais para entrar no discurso da ética da virtude. Como
uma abstração, a noção de “vida” encaixa-se facilmente nos discursos da
teologia e da moralidade. Porquanto esses discursos descrevem os nossos
deveres em termos universais, objetivos e absolutos, eles só podem usar uma
linguagem generalista, mas não captam os momentos de envolvimento
íntimo com o que é precioso e vulnerável nas situações concretas nas quais a
virtude é demandada. A ética da virtude é particularista: ela fala de coisas
específicas. Portanto, ao invés de falar da “vida”, devemos falar de seres vivos
em particular. Isso implicará divergentes compromissos com a ação quando
nos aproximamos dos animais, da biosfera ou de outros seres humanos. E,
nestes últimos, implicará respostas divergentes dependendo da condição do
ser humano diante de nós.
Orelhas
Um número sempre maior de filósofos tem defendido uma multiplicidade
de éticas baseadas na virtude que questionam a teoria moral tradicionalmente
baseada na obrigação moral e na determinação do que é certo ou errado em
determinadas situações. A ética da virtude, que se concentra mais no caráter
dos agentes morais do que no status moral de suas ações ou nas
consequências daquelas ações, tornou-se uma das mais importantes e
estimulantes áreas da teoria ética contemporânea. Ética da virtude é uma
introdução acessível e vivaz ao tema. Proporciona um amplo panorama da
história da ética da virtude desde Aristóteles até Nietzsche, examinando
também as ideias de autores contemporâneos como Ricoeur e Lévinas. São
examinados importantes temas tratados pela teoria moral e investiga-se como
uma abordagem dos mesmos inspirada na ética da virtude difere das
abordagens de outras tradições.
São considerados problemas práticos de complexidade moral, como o
aborto, a eutanásia e a integridade na política, e aventa-se como poderiam ser
abordados a partir de uma perspectiva das virtudes. São refutadas as
acusações de relativismo e egoísmo, lançadas muitas vezes contra a ética da
virtude, e examinadas a fundo as virtudes especialmente relevantes para a
vida contemporânea, a saber, a coragem, a assunção de responsabilidade e a
reverência. Por fim, o autor argumenta que a ética da virtude é altamente
relevante para nossa compreensão das dimensões morais dos papéis
profissionais.
O autor
Stan van Hooft é professor-associado de Filosofia na Deakin University,
Melbourne.
Jogos de poder
Fexeus, Henrik
9788532653574
280 páginas