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fontes externas.

A segunda é que poucas socie- Este livro é um panorama fascinante de uma Áfri- O Rinoceronte de Ouro propicia ao leitor um iti-

O Rinoceronte de Ouro • Histórias da Idade Média Africana


dades africanas desse período utilizaram a lín- ca desconhecida, a África subsaariana do século nerário por vários séculos de história africana,
gua escrita e mantiveram arquivos que pudessem viii ao xv – séculos intermediários entre o perío- entre a África da Antiguidade e a da Era dos
atestar “de dentro” seu poder e sua prosperidade. do antigo e o moderno. Conduzido por comer- Descobrimentos, do século viii ao xv. Seus 34
Desses séculos esquecidos só restam vestí- ciantes, aventureiros, geógrafos e diplomatas de capítulos estão ordenados cronologicamente, po-
gios, vivos mas incertos. Não são sequer as peças um passado distante, mas também pelos arqueó- rém, mais ou menos independentes, focalizam
de um quebra-cabeça, porque muito frequen- logos contemporâneos, o autor François-Xavier períodos e regiões distintas, permitindo zigue-
temente não sabemos a que quebra-cabeça as Fauvelle leva o leitor do Saara para as margens do -zagues geográficos ou amplas buscas temáticas
peças pertencem. Uma inscrição em pedra qua- rio Níger, no reino do Mâli, para os reinos cris- que levarão o leitor de um extremo a outro do
se apagada, algumas moedas, objetos provenien- tãos da Núbia e da Etiópia, para os principados continente. Já no início do livro o autor adver-
tes de escavações de amadores ou clandestinas, da costa leste africana e para as enigmáticas e ma- te, no entanto, que não será sempre possível
monumentos parcialmente destruídos, o texto jestosas ruínas do Grande Zimbábue. ter certeza sobre o que se vê ou se lê nas fontes
cheio de lacunas de um autor estrangeiro po- Essa história revela poderosas e prósperas disponíveis, em parte em virtude das incertezas
formações políticas, cidades densamente povoa-
dem ser o único testemunho conservado de um
período de vários séculos, de um contexto his- das nas quais os comerciantes do mundo islâmico O Rinoceronte de Ouro geográficas da época.
“Séculos obscuros” é uma expressão cunha-
tórico que permanece quase inacessível. se encontravam com os africanos, mercados on- da por Raymond Mauny, um dos grandes histo-
Tal esquecimento condiciona o acesso ao de se negociavam âmbar de cachalote, escravos e Histórias da Idade Média Africana riadores da África, para designar esse período
passado e, portanto, à escrita da história. Por ouro, utensílios de luxo, lingotes de metal e sal, intermediário, também conhecido como Idade
isso, define o autor, “se este livro apresenta-se ao conchas e pérolas importadas da Ásia. Média africana. As poucas fontes disponíveis
leitor como um ordenamento de fragmentos su- Um mapa, um afresco, uma carta, as ruínas de mostram, no entanto, uma África que teve po-
cessivamente clareados de modo perpendicular, uma cidade, uma moeda ou uma inscrição grava- françois-xavier fauvelle derosas e prósperas formações políticas; que
é porque se preferiu o vitral ao grande afresco da permitem ao autor redescobrir um mundo que participou ativamente das grandes correntes de
narrativo que só teria produzido a ilusão de um se pensava estar perdido, ajudando a reconstituir trocas intercontinentais seguidas por homens,
discurso magistral. Ora, tal discurso magistral a história de civilizações que, pela escassez de re- mercadorias e concepções religiosas; que viu
sobre a África antiga é impossível, pois as fontes gistros escritos, têm sido subestimadas, quando o desenvolvimento de cidades onde príncipes
não simplesmente negadas. Raros e frágeis, esses

françois-xavier fauvelle
são desesperadoramente silenciosas a respeito africanos tinham seus palácios e mercadores es-
de setores inteiros da realidade, como a ‘econo- vestígios restabelecem a história de uma África mó- trangeiros residiam, onde se trocavam produtos
mia’ ou mesmo a organização social, as relações vel, mercantil e misteriosa. de luxo ou escravos e se construíam mesquitas
de poder, a família, o campo, a vida cotidiana. ou igrejas; que foi atriz da exploração de seus
O vitral tem suas vantagens: por meio da sele- próprios recursos, dos quais o ouro ocupava
ção deliberada dos fragmentos, compõe-se uma um lugar proeminente. No mundo de então, a
história cujos traços dominantes são os aspectos África gozou de uma fama considerável, da Eu-
mais bem esclarecidos pelas fontes – os poderes ropa à China.
reais, as cidades, os produtos do comércio. Por Por isso, para o autor importa compreen-
meio das justaposições escolhidas, autoriza-se der como essa África dos séculos intermediários
a fazer comparações entre uma região ou uma pôde, ao mesmo tempo, ser um centro de civili-
época e outra. Por meio do próprio processo zações tão brilhantes e se tornar obscura a pon-
de agrupamento, transmuta-se a frustração em to de sua redescoberta parecer uma tarefa tão
ambição: a de uma história incompleta, aberta ingrata. Séculos de ouro, não séculos obscuros,
às descobertas que ainda estão por ser feitas e às mas esquecidos. Quais são as razões desse es-
transformações de sentido”. quecimento? A primeira decorre da raridade das

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