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Artigo
Apego e comunicação: considerando o desenvolvimento
infantil sob a ótica da etologia e da psicanálise
Julia Braga do P. Fernandes*
Carlos Augusto Peixoto Junior
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo: Este artigo tem como objetivo abordar o vínculo primário da criança com sua mãe, colocando-o como
primordial no desenvolvimento humano. Sob a ótica interdisciplinar da etologia e da psicanálise, discutem-se
as noções de períodos sensíveis, estampagem e comportamento de apego, estabelecendo um paralelo entre os
desenvolvimentos animal e humano. Em seguida, disserta-se sobre os modos de comunicação e suas raízes nas
relações de apego que o indivíduo estabelece no início da vida, levando-se em consideração a clínica psicanalítica
com o auxílio da teoria etológica.
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e190144
Julia Braga do P. Fernandes& Carlos Augusto Peixoto Junio
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primazia das pulsões e a teoria das relações objetais, relações com os outros sem retirar a pulsão de sua
bem como outras vertentes psicanalíticas que se posição central de motivação, em que Klein e Bion
constituíram ao longo dos anos. A teoria do apoio é uma desenvolveriam seus trabalhos. A segunda estratégia
das postulações de Freud que mais será discutida pelos seria a da alternativa radical, que coloca as relações com
teóricos da relação de objeto, justamente por colocar os outros no centro da teoria, construindo o modelo do
a necessidade de satisfação alimentar em primeiro qual deriva toda a motivação, inclusive as necessidades
lugar e como apoio para o estabelecimento de relações sexuais e agressivas. Ou seja, a busca de relação – bem
afetivas. Laplanche (1970/1985) foi um dos psicanalistas como a manutenção do vínculo – é colocada como
que, em sua releitura da teoria freudiana, aponta o causa primordial de todas as possibilidades primárias
conceito de apoio não como um fenômeno ligado ao de subjetivação. Neste modelo, encontram-se Winnicott,
objeto, e sim ligado à pulsão. Ele discorre: “o que é Fairbairn e Bowlby, que, dessa forma, acabam por
descrito por Freud é um fenômeno de apoio da pulsão, subverter a teoria freudiana da libido.
o fato de a sexualidade nascente apoiar-se num outro Por uma perspectiva interdisciplinar, traremos para
processo, ao mesmo tempo similar e profundamente a discussão estudos no campo da etologia que acreditamos
divergente: a pulsão sexual apoia-se numa função não ser particularmente favoráveis à tradição interpessoal.
sexual” (Laplanche, 1970/1985, p. 24). Ainda assim, Comparando a evidência clínica trazida pela psicanálise
no mesmo trabalho, ele faz questão de mostrar como com o ponto de vista etológico, compreendemos o que
sua ideia não se afasta da formulada por Freud, apenas deu errado na sequência natural do desenvolvimento,
torna-a mais precisa, mantendo a diferenciação entre o que pode ajudar a restabelecer as relações normais
instinto e pulsão e corroborando com a noção de apoio e naturais, principalmente no ambiente interpessoal
e desvio da pulsão. primário (Bacciagaluppi & Mazza, 1982). Bowlby foi um
Tal formulação freudiana cria o paradigma dos primeiros psicanalistas a utilizar esse campo teórico
pulsional, em que a finalidade principal da pulsão para validar suas pesquisas e sua teoria psicanalítica.
seria a de descarga e, portanto, a tensão primordial que A importância da observação da díade mãe-bebê
se apresenta é a da fome. Mais tarde, a zona erógena convocou psicanalistas relacionais a lançarem mão de
ganharia independência e passaria a buscar descarga outras referências teóricas, principalmente aquelas que
independentemente da necessidade de alimento. Porém, a versam sobre os inícios do comportamento de vinculação
partir das teorias ligadas às relações de objeto, um novo e seus desdobramentos. Nesse âmbito, incluímos a
paradigma passa a vigorar. Autores independentes como relevância da comunicação não-verbal, os estímulos de
Fairbairn (1940/1980), Winnicott (1945/2000, 1956/2000) excitação e manutenção de equilíbrio mútuo e individual
e Bowlby (1969), para citar apenas alguns, passam a (Beebe, Jaffe, & Lachmann, 1992).
trabalhar baseados em algo que poderíamos chamar de A etologia surge nas primeiras décadas do
paradigma relacional, no qual os aspectos interpessoais século XX e inicia seu percurso como ciência constituída
da relação estariam em evidência. Ao afirmar que a libido a partir de trabalhos guiados por um método próprio
não busca prazer, mas sim objetos, Fairbairn (1940/1980), e fundamentados num corpo teórico intimamente
por exemplo, rompe com o paradigma pulsional por articulado com ele. Com filiação neodarwiniana, ela
acreditar que a finalidade do funcionamento psíquico promovia a observação e a descrição dos comportamentos
não é mais a descarga das pulsões elementares, mas dos animais nos seus ambientes naturais e procurava,
sim o estabelecimento de vínculos com outras pessoas desde sua origem, reconstruir sua evolução filogenética
(Mezan, 2014). (Vieira, 1983). Tal desenvolvimento da etologia
Greenberg e Mitchell (1983) expõem de forma acompanha em paralelo o surgimento da psicologia
clara estes dois paradigmas: como ciência humana. No início do século XX, um
grande debate entre vitalismo e mecanicismo invade
Encontrar um lugar para as relações de objeto tem o pensamento tanto da biologia quanto da psicologia e
sido o problema conceitual central ao longo de toda promove uma efervescência de descobertas.
a história da psicanálise, porque a teoria pulsional Dentre as contribuições mais importantes desta
formulada em primeiro lugar por Freud toma a ciência, encontramos as noções de períodos sensíveis e
descarga de energia psíquica como seu elemento estampagem. Amplamente discutidos no âmbito científico,
conceitual fundamental, atribuindo às relações esses conceitos inauguram a ideia de que, a partir da
com os outros um estatuto que não é nem central observação animal, era possível identificar momentos
nem imediatamente aparente. Todos os principais específicos para que determinados comportamentos
teóricos da psicanálise tiveram que se confrontar se estabelecessem. Tais conceitos dialogam com a
com este problema. (pp. 379-380) psicanálise, na medida em que ampliam a compreensão
sobre as relações de objeto e suas consequências no
Mais adiante, os autores identificam duas desenvolvimento humano. Aqui nos cabe investigar como
estratégias de conciliação, sendo a primeira a estratégia se estabelecem os vínculos primordiais de um bebê com
de acomodação, que procura atribuir mais peso às suas figuras de apego.
Attachment and communication: child development from the perspective of ethology and psychoanalysis
Abstract: This article addresses the primary bond of children to their mothers as primordial in human development. Based
on an interdisciplinar perspective uniting ethology and psychoanalysis, we go through the notions of sensitive periods,
imprinting and attachment behavior, establishing a parallel between animal and human development. Then, we discuss modes
of communication and their roots in attachment relationships established by the individual at the beginning of life, taking into
account clinical practice in psychoanalysis with the help of ethological theory.
Résumé : Cet article vise à aborder le lien primaire entre l’enfant et sa mère, en le plaçant comme primordial dans le
développement humain. Dans la perspective interdisciplinaire de l’éthologie et de la psychanalyse, nous abordons les notions
de périodes sensibles, de comportement d’estampage et d’attachement, établissant un parallèle entre les développements
humain et animal. Ensuite, nous discutons les modes de communication et leurs racines dans les relations d’attachement que
l’individu établit au début de sa vie, en tenant compte de la clinique psychanalytique à l’aide de la théorie éthologique.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo abordar el vínculo primario del niño con su madre al considerarlo primordial en el
desarrollo humano. Desde la perspectiva interdisciplinaria de la etología y el psicoanálisis, pasamos por las nociones de períodos
sensibles, estampación y comportamiento de apego, estableciendo un paralelismo entre el desarrollo animal y humano. Luego,
discutimos los modos de comunicación y sus raíces en las relaciones de apego que el individuo establece al comienzo de la vida,
teniendo en cuenta la clínica psicoanalítica y la teoría etológica.
Palabras clave: teoría del apego, comunicación, etología, psicoanálisis, teoría del apoyo.
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