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HISTORIA DA ARTE COMO HISTORIA DA CIDADE Giulio Carlo Argan Kisuimine 20.08 fe a LURK eaeCASTEO Reg eres nes PREFACIO “'A Porta representa de maneira decisiva como 0 separar ¢ 0 ligar sao apenas dois aspectos de um mesmo ¢ nico ato. O homem. ue primeiro erigiu uma porta ampliou, como o primeiro que ‘ruiu uma estrada, o poder especificamente humano ante a nat a, recortando da continuidade e infinitude do espago uma parte © con-formando-a numa determinada unidade segundo um se do." Separando e unindo, o homem ina a existéncia da for- ‘ma: do lado de cé, 0 espaco finito (delimitado), construido; do do de ld, a infinita (limitada), nao-determinada extensdo do conti- ‘uum. A Porta que gera espaco e forma (e também um tempo dife- Fente, conforme intuiu Bachelard, e demonstrou Le Goff) é 0 limite que 0 homem pde entre o natural e o artificial, ou melhor, entre natural e 0 arte-fato, no sentido eti “feito-com-arte”, ito-segundo-os-procedimentos-da-arte"”. Da distingZo de um es. ago, de uma forma urbana descende, gera-se a arte, que, por sua vez, permite dist intimamente relacionada, portan- to, com a cidade, da qual nada’ mais é que a complexa epifania, fenomenizacdo. De fato, no interior da cidade, tudo se realiza se- gundo uma techné cujo modelo é 0 processo que realiza a obra de arte, O espago urbano é espago de objetos (ou seja, de coisas pro- duzidas); ¢ entre o objeto ¢ a obra de arte existe uma diferenca hie- , uma diferenga qualitativa, de valor) mas, ainda m, sempre no interior de uma mesma categoria, de uma mesma série, Por outro lado, além dos resultados — as vezes duvidosos — das investigagdes destinadas a esclarecer a posicdo social dos artis- . 0S produtos artisticos so os que qualificam a cidade enquanto existitia Corinto, da forma como nds a conhecemos, sem a pro- ‘cdo vascular que divulga seu nome por todo o Mediterraneo ou, Idade Média, se reconheceria a cidade sem aqueles extraordind. in Der Tes, 18 de seemibro de 1909 (ra : Padua, 1970, pp. 3.8), 10s urbanos que sto as catedrais e, mais tarde, sem 0 mo- ‘0, que & 2 mais completa auto-representagdo da cidade ¢ da toricidade? Os trés conceitos — dearte, cidade e objeto —, as suas relagdes Lerconexdes historicas, sua crise atual so 0s eixos em torno dos recentes, alguns ai contrar um fio condutor conjunto homogéneo (muitas e muito diversas sendo as ocasides em que foram escritos), pelo menos percorré.fos unitariamente, propus 9 titulo Histéria da arte como historia da cidade, sublinhando, as- » aquilo que acho que é — hoje — o ponto de chegada da meto-. de Argan: a identidade entre arte e cidade. Olhando para trds, dificilmiente 0 resultado poderia ser outro, partindo — como faz Argan — do pressuposto, de postura declaradamente fe- nomenoldgica, de que histéria da arte nada mais é que historia de alguns objetos. O ensaio que abre o livro, A historia da arte, € 0 artigo de abertura do primeiro niimero de Histéria da arte, revis- ta fundada e dirigida por Argan. Ele comeca justamente pela defis, nigdo da obra de arte — é desta e ndo, metafisicamente, de ‘tarte”> que se trata —, como coisa & qual esta relacionado um valor, que apenas 0 julgamento histérico pode reéonhecer. O ensaio, a mais completa ¢ hicida exposicao do pensamento de Argan sobre os ob- Jetivos, as metodologias ea estrutura interna da hist6ria da arte co- mo distiplina historica, foi escrito em 1969, apenas quatro anos de- portanto, da Europa das capitais, no qual se individuava no co) apenas um elemento, importante sim, mas que nao fundamentava toda a fenomenologia da arte barroca, mos em A histdria da arte citados, fundamental: a cidade aarte encarada como “atividade ente, mas constitutiva da cidade". A obra de arte deter! uum espago urbano: “O que a produz é a necessidade, para vive e opera no espaco, de representar para si de um tica ou distorcida a situagdo espacial em que oper: FG.C. Argan, “La storia 3.G.C, Argan, L Europa dele ca Renaissance City, Nova York, 1963 Le storia delarte, op. ct, . 20. icamente urbana, ndo apenas in Storia detarte, 1600-1700, Geneb 2, 1969, pp. 5.37 1965; 18., The Soi, p21 pRerkcio 3 © urbano também os ambientes das casas particulares; ¢ 0 reté- lo do altar da igreja, a decoragao do quarto de dormir ou da sala de jantar, até mesmo 0 vestudrio e o ornamento com que as pessoas se movem, recitam a sua parte na dimensio cénica da cidade, Tam- bbém so espago urbano, e ndo menos visual para ser mnemdnico- maginario, as extensdes da influéncia da cidade além das suas mu- ralhas: a zona rural de onde chegam as provisbes ao mercado da praca e onde o camponés tem as suas vilas ¢ as suas propriedades, 0 bosques onde vai cacar, 0 lago ou 0s rios onde vai pescar. O es aco figurativo, como demonstrou muito bem Francastel, nao € feito apenas daquilo que se vé, mas de infinitas coisas que se sabem e se icias. Até mesmo quando um pintor pinta uma pai- sagem natural, pinta na realidade um espago complementar do pré- prio espago urbano.""* E mais, podemos acrescentar, contribuii pa- ra qualificé-lo, ainda que por oposi¢do: basta lembrar o quanto a imagem barroca de Roma deve & defini¢ao da paisagem classicista, eda idéia correspondente de natureza, de Annibale Carracci a Claude Lorrait Nao é de surpreender entdo que destes anos, e em evidente rela- 40 com algumas idéias enunciadas por Argan em 1969, sejam al ‘guns importantes estudos, metodologicamente exemplares, de jovens alunos da “escola romana”, Basta lembrar, a titulo unicamente de exemplo, como indicadores de uma tendéncia cultural, o livro de la Di Maco sobre o Coliseu e 0 ensaio de Luigi Spezzaferto sobre a politica urbanistica dos papas do Quattrocento.’ Bastante diferentes sio os temas de investigacao, desenvolvidos com meto- dologias diferentes, mas que nao se distanciam uma da outra. O pri meiro volta-se ao estudo, no Ambito de uma pesquisa sobre a forma da cidade em seu devir histérico, da incidéncia de um monumento reduzido a pura imagem simbdlica, ihimo residuo, em nivel mne- nico, de uma “forma que sobreviveu & prépria fungao origind ria”. O segundo propde-se a pesquisar, no choque ¢ no entrelaca- mento concretos (e historicamente demonstraveis) de diversos pro- 3s juridicos e econdmicos com que a igurando, o delineamento de uma hist6 ica urbanistica se urbana, subtrai- 7. M. Di Macco, 1! Colosteo, Furcine sinbolice siorca, urbana, Roma, 1971 L.Speavatereo, Salerno, L. Spezzaferro, M. Taf partir dos primeiros anos da t6ria do urbanismo”” (quase - histéria da arte periodizada com base nos tempos longos em nos tempos da atividade de um ar- , de um pontificado ou de um reino” 'é mesmo na longa duragdo de todo um aquele que se pode definir como ciclo his (enquanto arte intencion: -z de, como se costuma fazer, conscientemente fundada €0 tema da Introducao @ arte de forma e 0 conceito equiva- smente insepardveis da experigncia da vivencia, mo individuar na cidade, das manifestacdes lade cidade-historia a "2 Disso resulta a possi liana e nao somente da sua arquitetura”, como ferpretagao da cidade ou, mais precisamente, do de- ideologia urbana. O elemento de unio ou a esca- perspectiva. Constroem-se, de iva e as normas proporcior \¢Ao figurativa (0 grande afresco, 0 qua- ‘0 objeto ornamental, 0 edificio eo con- ‘a cidade ideal’"®, O desenho, en- a, torna-se, na arte italiana, “‘mo- $0 produtivo, da produedo fixando o grau supremo da invengao ou criacao do artista. A arte torna- se assim uma supertécnica da qual dependem as técnicas especifi- chave, um critério de comparagdo para a medida dos Poucos anos mais tarde, Maurizio Calvesi, de Argan, na andlise da obra de Piero della Francesca!’ demonstraré que perspectiva e proporcéo, enquanto sistema de equivalentes, fundamentam a arte, ‘ la de valores é, em todos os acordo com as regras da perspe dai decorrem a represer ‘equivalente geral, ‘Argan, preficio a M. di Maceo, f! Coloseo, op. ci vei, ‘Sistema degli equivalent d equivalence del fe. 2425, 1975, pp, 8-110, PREFACIO. S feafirman- na, a relacdo en- -a (ainda que jamais lineat) entre arte ¢ 969-1970: uma década separa do primeiro 0 segundo arti 'a coletainea, também ele “escrito para uma ocasiao especial” iscurso de posse do novo presidente do Comité International ‘cire de I’Art, organizado por ocasiao do encettamento do sim- de da arte realizado em lade e quantidade. A cidade ideal, enquanto md- julo, mais do que modelo, garante, ior da cidade, através das técnicas art valor de qualidade, crise que abala hoje em dia a cidade (e a cidade como um todo, do apenas aquele que, com termo teoricamente absurd, chama. icidade seca, congénita & cidade; em conseqiigncia nao se pode admi- ima politica de salvaguarda para a parte antiga separada de uma ‘4 urbanistica que considere globalmente todos os problemas ide. Mas idade profunda do fenémeno ur- bano, que possam trabalhar ao lado dos arquitetos, dos estudiosos de economia, dos urbanistas, dos politicos que devem direcionar e, depois, traduzir operacional dizer que a cidadc seja objeto de estudo histérico-artistico em Podemos dizer que nossas escolas de his- ‘Orie da arte preparem estudiosos capazes de participar de equipes de projetistas, de colaborar no estudo dos processos vitais da cida- de, endo somente de colocar obstéculos e limites, os quais tém, com ccerteza, sua razao de ser, mas apenas na medida em que os pontos 13.6. G, Argan, Cit ideale ect reat Discurso ldo no encercame conaresi de histSria da arte ques realizou em Bolonha n (tas ex | | RIA. DA. ARTE COMO HISTORIA DA CIDADE sonservacao sejam subordinados a — e, de certa forma, garanti- fos por — um tipo de cultura urbana que no repudie a propria istoricidade mas dela tenha consciéncia?””'* O problema da histé- ria da arte enquanto disciplina é, portanto, também, o problema de uma nova (ou antiga?) ética profissional, que reconheca como capital a atividade do besorgen, de cuidar das coisas: “E necessério que os historiadores da arte considerem o estudo cientifico de todos 0 fendmenos da cidade como inerente & sta ina; a conserva- 40 do patriménio artistico como metodologia operativa insepard- vel da pesquisa ‘mo o tema fundamental da sua ética disciplina.""!> E evidente, nes- ‘as palavras que so quase um convite a revolucionar (mais do que a reformar) a disciplina da histéria da arte, 0 seu objetivo, a sua maneira de ser enquanto disciplina, a experigneia dos trés anos (de 1976 até, justamente, 1979) em que Argan foi prefeito de Roma. E, ao mesmo tempo, sao elas quase uma justificativa da sua esco- Jha em favor de um compromisso mais diretamente politico. “Nas minhas convicedes teéricas"”, afirmou Argan numa re- cente entrevista, refletindo a respeito desta experiéncia, “nada mu- dou. Mas... antes eu sabia que a cidade esta doente; agora sei de qué doenga cla morre. Para ser 0 historiador da cidade, 0 que para mim € 0 mesmo que ser o historiador da arte, a experiéncia foi fun- damental, ainda que angustiante. Os artigos de carter histérico escritos nestes tltimos anos — © agora reunidos na Segunda Parte deste volume — ressentem-se da mudanca até entao delineada, Ao se confrontar o recente ensaio so- bre a ctipula de Santa Maria del Fiore'? com 0 que Argan tinha es- tito a respeito do mesmo assunto na monografia sobre Brunelles- chi de 19528, nao se pode deixar de notar que, agora, o interesse estd todo voltado para o significado urbano da obra, para o papel que a obra de Brunelleschi desempenhou ao del “moderna” de Florenga, enquanto, ao contrario, 0 eri ura anterior era o ‘problema da transposi plana numa superficie curva ou do desenvolvimento de uma pers- ectiva acabada numa infinidade""®. A intervenco no seminario da Academia dei Lincei sobre o De re aedificatoria de Leon Battista PRerAcio 7 ta como da formacdo da cidade’. As exposigdes so- a Arte em Mantua e sobre Bernini e Roma tendem a delineat © papel (proeminente) que a cultura figurativa (enquanto cultura que jem sua especificidade, relacionada as outras formas de cultura, mas reservando sua autonomia) desempenha na determinagao — ou, 0 caso de Bernini, na concep¢ao — nao apenas da imagem da ci. dade, mas, dit-se-ia, junto com esta, da razdo profunda da sua exis. ‘éncia, da sua justificativa existencial. ‘A crise da cidade, como agregacao histérica da sociedade, é re- lacionada por Argan, como vimos, a crise da arte e a crise do obje- f0, ou, melhor, & morte da arte e ao eclipse do objeto como produ. 0, como manufaturado. A desagregacdo dos marmores romanos pada mais € que uma enlutada alegoria da radical incompatibilida. de daquilo que resta da cidade com a vida da metrépole —e a an. gustiante consciéncia de poder assistir & consumagdo de uma cats. ‘wofe cultural sem paralelo possivel, a perda, no breve transcorrer de poucos anos, de todo o patriménio histérico e artistico que nao ode scr imediatamente conservado em museus, reaparece com fre. aiiéncia nos esctitos desses ultimos anos. 0s objetos, as obras de arte — numa sociedade cuja estrutura Cultural no seja mais a historia, como corre o risco de acontecer com a sociedade atual — sao fragmentos de um pasado nao mais relacionavel ao presente, so quase ilhas, residuos de um continen. te submerso. Desfeitos os nexos que os relacionavam ao contexto, reduzem-se a (extos, cuja guarda em museus também seré dolore. sa, mas é, hoje, conditio sine qua non pata a sua sobrevivencia. O ‘museu torna-se, assim, o lugar central da histéria da arte, que nas- eu, por outro lado, exatamente no museu, com a escola vienense de Riegl; lugar artificioso onde as obras nao se relacionam entre s1 em uma impossivel unidade, que j4 no existe, a nao ser na historia da sua fruigdo, do juizo de valor histérico, Na metrépole, explica Argan, “‘o valor do individuo, do ego, foi sendo reduzido, até ser eliminado. © individuo nada mais ¢ gue um dtomo na massa. Eliminando-se o valor do ego, elimina-se 0 valor da historia de que o ego é protagonista; eliminando-se 0 £9 como sujeito, elimina-se o objeto correspondente, a natureza... (0 "De re aedifcatori in Convegno internacio- i Leon Batista Alberti Rowna-MEntua Floren, 2.29, fe 1972), Roma, 1974, p. 4, DA ARTE COMO HISTORIA DA CIDADE jando-se o nivel equilibrante e existéncia como oscilagdo continua ¢ angustiante entre 0 sub 0 superconsciente, a realidacle se dé como sub ou supernatureza: ante entre 0 A realidade no humana — ou seja, na medida em que pode ida, pensada, compreendida pelo homem — e sim na me- ddida em que ndo pode e nao deve ser pensada, mas apenas domina- a ou suportada, objeto de um sucesso ou de um fracasso; portan- ‘0, na dimens2o do infinitamente grande e do infinitamente peque- ‘no, do superior e do inferior". Nao estamos longe do Sreigerung |, Ou do choc-Erlebnis de Benjamin, que uuda andlise de Cacciari® reconheceu como raiz do problema de Metropolis: a metrépole néo é mais cidade, mas um sistema de cit- cuitos de informagao e de comunicagao; 0 objeto € substituido pela imagem, pela escrita lumitiosa. A arte, que produz objetos-que-tém- valor, € substituida por uma experiéncia estética, cuja finalidade nao ue a criagao de imagens-chogue, de sinais, de noti- tos urbanisticos. mos artigos tratam justamente de uma nova refle- xg sobre 0 problema do design no ambito da problematica nfo ape- has da morte da arte, mas da morte da cidade. O ponto de partida do raciocinio ¢ a necesséria constatagao da derrota histérica do de- ‘sign de origem construtivista, isto é, que tem origem na experiencia da Bauhaus (a respeito da qual Argan tinka escrito obras de influén vivel sobre a cultura italiana do pés-guerra, como 0 Gropius de 1951, ou 0 Breuer de 1957), que nao teve suces- so por “ter-se proposto a padronizaso maxima do objeto, quan- do, no quadro geral da cultura, o conceito de objeto (e, simetrica- mente, de sujeito) nao m Foposto”’. Em con- iéncia, Argan interroga-se sobre a possibilidade de um design mnalmente, parta da livre atribuicao de um sentido — ou de um valor — a um objeto pelo contexto, ou seja, que leve em considerago 0 valor do objeto ¢ a relago objeto-sujeito, tal como a definiu a corrente dadaista, de Duchamp a Man Ray, a Schwit- ters. Portanto, um design que se volte para a produgao (se ainda hoje é possiv assim) de objetos que sejam, etimologico, ‘simpaticos’, isto & adequados a uma facil coexistén- Cia... ef€meros instrumentos de informagio e de eomunicagao.... ob- iscriminante do ego, coloca- 21. G. © Argan, “Urb maio-de 1969, pp. 17-18) Metropolis. Sap sulla grande itt di Sombart, Ende, chef: 1973, Prerdcio 9 m desi ic Lévi-Strauss chama do “bricoleur”: quase um ‘jogo de con. uri), que parta (mas seriamente) da derrota da juarda historica, Extinta, com o fim da cidade, a produgdo de objetos aos quais Fibui valor, isto é a produgéo segundo os procedimentos da a experiéncia estética metropolitana poderia relacionar-se as ens, & profunda fungao estética do mundo nao-citadina, em que lesconhece a superacdo tecnoldgica e, talvez, também, 6 oculta. into que a fechné faz do Erlebnis. A Venus, expulsa da cidade e refugiada nos montes, volta para « cidade: 0 mito de Venusberg. Bruno Contardi TA HISTORIA DA ARTE E A CIDADE zacdo humanista, em que a arte tinha uma fungo axial, encerrou seu ciclo; comegou 0 ciclo do progresso e do poder tecnolégico. Que 9s historiadores vao embora, pois, que cedam lugar aos arqueélo- gos! Esté bem. Mas a necessidade, hoje, de raciocinar por proble- mas, de expor situacdes dramaticas, de ver a histétia da arte do pas- sado como uma sucessio de conilitos no préprio seio do campo ou em seus limites, contra pressdes externas e adversas, nada mais é Que @ necessidade de ver historicamente animado, talvez agitado, ‘um panorama que a maioria vé apagado ¢ imével como uma paisa. gem lunar. AS grandes sinteses, as perspectivas a partit de pontos de vista inesperados nao so, ou pelo menos nem sempre so, 0 pro- duto ordindrio de uma disciplina hoje a servigo da indiistria cultu- tal, pelo que o tempo gasto na pesquisa e na reflexdo é tempo per- dido. Sao, a0 contrério, a tentativa, as vezes desesperada, de tragar outros esquemas, outros quadros, outras direcdes de pesquisa. Os velhos procedimentos historiograficos, todos mais ou menos depen- dentes da prética do conhecedor, ainda podem servir para redesco- brir uma obra esquecida, um documento inédito, mas ndo servem para encontrar aquilo que devemos encontrar: outros campos de inter-relacao dos fendmenos, outros canais com que a arte se ligou a0 contexto da cultura, da realidade social. E preciso encontrar no- vas metodologias, novos equipamentos, novos modos de organiza- sao da pesquisa, inclusive e sobretudo de grupo. A renovacao radi- cal dos procedimentos metédicos e do ensino &, hoje, para a histé- ria da arte, uma questo de vida ou morte. E nio apenas para a histéria da arte, pois outros problemas, que ultrapassam os limites da nossa disciplina, estao envolvidos. Hoje, a histéria da arte, co- mo a tinica historia que se faz em presenga do fendmeno, é um pon- to de contestagao, o obstaculo que procuram de todas as formas remover aqueles que, persuadidos de que a teoria da informacao su- plantou a antiquada metodologia da historia, tém necessidade de assegurar-se de que a presenca do fendmeno impede a historia. Mes- ‘mo porque, afinal, a histéria é critica e 0 poder no a 1969 | 2 CIDADE IDEAL E CIDADE REAL “A cidade favorece a arte, é a prépria arte", disse Lewis Mum ford. Portanto, ela nao é apenas, como outros depois dele explic taram, um invélucro ou uma concentragao de produtos artisticos, ‘mas um produto artistico ela mesma. Nao hd, assim, por que surpréendet-se se, havendo mudado o sistema geral de produca0, © que era um produto artistico hoje é um produto industrial. O con. ceito se delineou de forma mais clara desde quando, com a supera- sao da estética idealista, a obra de arte no é mais a expresso de lunta Gnica e bem definida personalidade artistica, mas de uma so- ina de componentes nao necessariamente concentrada numa pessoa ou numa época. A origem do caréter artistico implicito da cidade Jembra o cardter artistico intrinseco da linguagem, indicado por Saus- surre: a cidade ¢ intrinsecamente artistica. A concepgdo da arte co- ‘mo expresso da personalidade tinha a sua primeira raiz na concep- sao da arte na Renascenga — justamente o perfodo em que se afic- ‘ma, pelo menos em hipétese, que pode existir uma cidade ideal, con- cebida como uma tinica obra de arte, por um tinico artista, Toda- vvia, sempre existe uma cidade ideal dentro ou sob a cidade real, dis- tinta desta como 0 mundo do pensamento 0 & do mundo dos fatos. Ainda que algumas amostras de cidade ideal tenham sido re zadas (¢ todos as conhecemos, de Pienza a Sermoneta e a Palmano- va), a chamada cidade ideal nada mais € que um ponto de refer cia.em relagao ao qual se medem os problemas da cidade real, a qual pode, sem duvida, ser concebida como uma obra de atte que, no cia, sofreu modificagdes, alteragdes, acrésci- As vezes verdadeiras crises destru- ideal esté profundamente arraigada em to- dos-us-perfodos historicos, sendo inerente ao cardter sacro anexo | 1 & Por definigdo, histérico, do mesmo modo que o r Lh, LL CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 75 ” 8 instituicdo e confirmado pela contraposigéo recorrente ide metafisica ou celeste e cidade terrena ou humana, mais, a imagem da cidade-modelo aparece | as culturas em que a representagai do conhecer-ser a operagio art de um modelo, seja ele a natureza, seja a arte do passado, mo perfeita ou clissica, figura ne varietur daw historia, mas justamente por isso imével com respei faz no mundo. A cidade as dificuldades do fazer a arte © as circunstancias contraditérias do mundo em que se faz Alem de modelo de forma, a cidade ¢ modelo de desenvol mento, nos limites em que isso pode acontecer sem contradizer gumas premissas postuladas, segundo uma légica e um ritmo ev Jutivo proptios. A cidade ideal, mais do que um modelo propria. mente dito, € um médulo para o qual sempre é possivel encontrar ‘miltiplos ou submiiltiplos que modifiquem a sua medida, mas nao & sua substncia: dada uma planta em forma de tabuleiro, centrall. zada ou estelar, sempre & possivel desenhar o mesmo esquema nu spe dimensdo maior ou menor. Um exemplo tipico de adequayao. da cidade a uma profunda mudanga histérica da qual se tem plena consciéncia € a famosa adicdo herciilea de Rossetti em Ferrara: a ide da Renascenga acrescenta-se a da Idade Média através de um concebida como ii que permanece praticamente dade, na medida em que, por pos Jam entidades proporcioi 0, acredito eu, senvolvimento entre as cidade: tre cidades pré-industriais e ci E € esta ruptura de continui vimento gue gera a seca da cidade no niicleo antigo, dando-se assim por ace! Maltese jé sublinhou isso —, em sua realidad ou mesmo ani ico, A hipotese da cidade ideal implica 0 conceito de que a cidade ¢ Fenresentativa ou visualizadore de conceitos ou de valores, ¢ que 8 ordem urbanistica ndo apenas reflete a ordem social, mas a resto ‘metafisica ou divina da in: io urbana. Dai se deduz que a cida- AMNESIA onlinua”€ represent fa do antigo € interpretado, sim, como pertencente & historia, mas a iti ci Grigg jévencerradio. — Transposto o problema da forma ne varie € fécil constatar que o devir nunca tem im linear, nao corresponde a nenhum esquema, Nao € certamente a légica da hist tar que a idéia da histéria como se- iiéncia imprevista de eventos, e de eventos nao previstos nem preor. denados, nao contradiz de forma alguma a hipdtese do carter ar ‘0 fundamental da cidade. Esta acaba sendo confirmada pelo fato de que a cidade ree is corresponde a formas idénticas as dos modelos ideais. Dizemos, portanto, que a forma é o resultado de um processo, cujo ponto de partida nao ¢ a propria forma. A cidade ndo ¢ Gest? alt mas Gestaltung. No entanto, sendo dbvio que a cidade é uma que a tornam, I, mas projetada, e, portanto, logicamente, em telagdo aos procedimentos ¢ as técnicas do projeto. Naturalmente, 0 pensamento logo se volta para as téenicas da construcdo arquitetdnica, ou, melhor, para a ordem de uma orto- gonalidade estatica considerada cas urbanas ¢ contraposta 4 ondulacdo naturalista do campo, como no famoso aftesco do Bom governo de Ambrogio Lorenzetti. (Ob- ido por seus contempora- ‘do representou a cidade como cons- ida, mas em construedo, contrapondo, assim, no apenas a es- ide diferente, como a diferente temporalidade da vida e do trabalho urbanos e da vida e do trabalho nfo-urbanos.) Todavia, uma cidade ndo é apenas 0 produto das técnicas da construcdo. As técnicas da madeira, do metal, d gem, etc, também concorrem para determinar a real ou, melhor, para vi - dade (muitas vezes distintos segundo as classes sociais). Tanto quanto 5 que na Renascenca sao as artes maiores ou do desenho, a produ. sao artesanal também tem graus diversos no interior das mesmas Hpologias, refletindo, portanto, aquela relaco variada — mas ain. re ee i 76 A UISTORIA DA ARTE EA CIDADE a assim relagio — entre qualidade e quantidade, que € constitu Ya de todas as civilizagaes artesanais. As téenicas urbanas, que tém seu ponto culminante naquela que foi chamada de arte e 70! separa, da do artesanato como seu pice e modelo, constituem ui sistema oFBliic relacionado com o da economia ¢ da estrutura social. Fs. sas téenicas, que, 20 contririo das agricolas, mtudam em curtos es pagos de tempo, refletem uma competigdo e uma vontade de supe- ragiotipicas das economias intensas, como a urbana. Nao esqueya- ‘mos que, em toda esta fase histérica e sobretudo na Renascen¢a, admitiu-se que 0 progresso das téeticas urbanas, ao contririo da Jenta mutagdo das téenicas camponesas, ocorria por invensGes su- cessivas, ou sej, através do mesmo provesso mental que eta consi- derado caracteristico da arte, Compettividade e seletvidade, gradualidade do maximo qua- ltativo com o minimo de quantidade a0 maximo quantitative com 2 minimo de qualidade sio 0s fatores, ou pelo menos alguns dos fatores, que determinam a mudanga e o devir das cidades, De fato, ‘cidade historica nunca ocorre como um f6ssil, mas como uma rea” idade que se desenvolveu faz tempo segundo processos de avalia- sto de selegdo que no seria dificil idemtficar e descrever. A dif culdade de relagao entre antigo e moderno nfo depende de maneira alguma do contraste entre a geomeiricidade dos modelos e a niio- ‘geometticidade dos desenvolvimentos reais. Nossa época é rica até demas em hipdteses de projetos de cidades-modelos modernas e nao {cmos nenhuma dificuldade em afirmar que a causa da situacdo cr. tica da cidade, hoje, ¢ em grande parte determinada pelo fato de que seu informalismo nao tem relacdo alguma com 0 formalismmo Programético das cidades ideas, se bem que sejasignificativo o fa. {o de os arquitetos modernos imaginarem como ideal uma cidade informal”, ndo no sentido de que nao tenha uma forma, mas no ido de que tetia todas as formas que pode assumir na experién- ia de quem nela vive Voltando ao problema especifico da arte, que se relaciona a0 dos centros histéricos, pode-se afirmar que as diferentes artes for. ‘mam um sistema na medida em que todas juntas, com as suas di- versidades de categorias, de procedimentos e de niveis quantitati Yos e qualitetivos, constituem a cidade, a qual, portanto, pode con. siderar-se 0 campo ott tout se tient, Pode-se objetar que ndo existe apenas uma arte urbana, mas também uma arte populae, camponesa ou rural, que t8m premis- ss, téenicas,finalidades, fungdes completamente diferentes; existe até mesmo uma arte anterior aos assentamentos a das sociedades primitivas em que se vivia da colheita ocasional ¢ da s CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 77 1. Disso, porém, no podemos deduzir que a arte seja uma ati- primdria e constitutiva para o espirito, mas apenas que s tipos de agregago social colocam de maneira diferente a 1xii0 de qualidade e quantidade e que no s6 a histéria da ideo- io poder, como também toda a vivencia da sociedade e dos ‘viduos constituem a mutivel, mas sempre elogiiente imagem iy cidade. Como nio observar desde j4 que a relacdo de quali- i -quantidade abrange a relagdo um-todos, individuo e socieda~ i. € que, exatamente Por iss0, no ha apenas uma politica, mas m uma ética, da cidade? Eis desde jd uma deducdo que nos eve relevante para a politica dos centros histéricos. Se hoje no 'sconsideramos significativo de valores histérico-ideol6gicos ape- (© monumento, mas também a casa de moradia ou a oficina sanal ¢, em geral, mais o tecido do que o micleo representativo, se deve sem diivida ao fato de que o tipo de sociedade coletivis- lo nosso tempo se recusa a reconhecer como expressd0 de hist6- ipenas as formas expressivas das grandes instituigdes. Natural- , toda intervencdo urbanistica e de construgdo na cidade im- a, junto da necessidade de responder a uma exigéncia atual, uma de, uma obrigagdo de intervencio e, portanto, uma avaliac&o ia condicdo objetiva e presente da cidade. O que determina tal ati- ade nao € mais, como outrora, um critério puramente estético, se- ido o qual apenas a obra de arte absoluta, o monumento, tinha «le ser conservada. A atribuigao de valor histérico e artistico no inenas 20s Monumentos, mas também as partes remanescentes de ‘dos urbanos antigos, ainda depende certamente de um juizo acer- ca da historicidade destes. Contudo, esse juizo aplica-se a um cam- 1po muito dilatado pelas tendéncias atuais da historiografia artistica com a adogdo de metodologias socioldgicas ou antropolégicas. Permanece, todavia, sem uma colocacdo precisa 0 problema de ‘undo: a cidade moderna no pode se agregar e funcionar a ndo ser A custa, pelo menos em parte, da cidade antiga. Uma vez que nem tudo pode ser conservado, é preciso estabelecer 0 que deve ser pre- servado custe o que custar, Além disso, deve-se levar em conta que a condicdo de sobrevivéncia dos micleos antigos remanescentes é de- terminada pela solugdo urbanistica geral e pelos eritérios com que se disciplina, em torno do chamado nticleo hist6rico, 0 desastroso periekon das periferias urbanas. Se admitirmos o principio de que ‘0s historiadores da arte, por serem também historiadores da cida- de, devem exercer uma fungdo essencial, de decisdo, sua agdo nio € apenas de protesdo ou censura, mas deve entrar nas escolhas plano e projeto urbanistico. Essa ago ndo pode ser apenas defensi- va ow inibidora, pois esta claro que os tecidos antigos nao podem 78 A HISTORIA DA ARTE E A CIDADE 7 ser conservados se tverem perdido todas as suas fangs cor dos do dinamismo urbano, con: rien do pea desordem e pelo 05 opostos dos conservadores e dos renovadores rm encoatrat uma motivasao na my de vida e de trabatho que ocorreu no século passado com a crise vo artesanal ea conguista da hegemonia do ss. Quando se fla em crise em morte da arte alese também em crise emorte da cidade. De fato, Ja Tol eolocada om discussio no apenas a organigagdo exterior, mas a essencia da ct dade como institu. Todavia, nfo parece que ainstuigaoreidade © 0 prbprio conceito da cidade como acimulo ou concentragdo tural estejam necessariamente relacionados eom um unico sistema de téenicas,o artesanal Nao se pode afirmar a prioria nto-seicidade, talvez nem mes- mo a ndo-atisticidade da cidade moderna, simplesmente porque 0 sistema das tenicasindustiais ndo tem culmindnciasartetens, © institucional da eidade, como agregndo social privilegiado ou inditetamentereconhecido e até mesmo excessivamen: do por aquela mesma sociedade industrial que pare jo em crise eque, ao contrario, até agora nto sabe pres dic do presigio histories e da funcionaidade ntensiiada dn ods. dchistérica, pretendendo oeupé-la porque, com isso, tem aimpres sto de aproprar-e da sede lgica' histérea do poder Todos saber que, em sua fase inci, a grande indusua eins. talou ns grandes cidades ou em suas imediacoes, dando leat xs migratérios que muliplicaram até por deze populagde Urbana ¢ praticamente destuiram a goesio das comunidades urbanas tra. Multiplicou-se, portant, a quantidade e, paralelamente, degradou-se a qualidade urbs m alguns pontos de ocupacao mais ndustializados chegou-se,inlusve devigo as raves dares sot! sls centroshistricos durante guerra, @ umn anulaygo qua: se total da qualidade em favor da quantidade: Num primeto mo. mento, vriicou-se uma hiperfunsio dos velhos cenros, sem que tenha sido suficiente a aniguilagdo ou a devastagto de 2onas ic tas de interesse histéica a fim de impediv a congestao, pera nao dizer apaalsa, do wansto.Aexigtela de defender colss qu con, servavam na cidade moderna un valor e um significado, ainda que ttansladados, evou &astingdo entre os chamatdos"cenros sar 0s" protegidos por vinculos eas perferias, que muitas vere crs. ceram sem planos propriamente ditos, ou, até ¢ Util porque permite reduzir, quando ndo bloquear, a inva- CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 79 por parte de organismos administrativos ou ingdes re -uigdo, ndo se pode admitir que ela conste de uma parte histé 1 com um valor qualitativo ¢ de uma parte nao-histérica, com ca- ler puramente quantitativo, Fique bem claro que 0 que tem ¢ de- fer ndio apenas organizagdo, mas substincia historica ¢ a cidadé 1 Seu Conjunto, antiga e moderna. Pér em discussao sua historici- le a por em discussdo o valor ou a legitimidade istorica da sociedade contemporanea, o que talvez alguns queiram, 1as que © historiador nao pode accitar. Exatamente pelo fato de estarem como que enquistados no rior das cidades modernas e submetidos a um regime juridico es- 08 centros histéricos passam por uma gravissima condi¢ao e petigo. O proprio prestigio maior que o centro histérico te imnou-se um motivo de atragao, chama atividades administrativas cagOnicas & sua estrutura e & sua historia, favorece a diaspora, sive voluntatia, da populacao que tradicionalmente nele mora 1as que, evidentemente, ali nfo vive mais & vontade. Durante o pe- iodo em que fui prefeito de Roma — uma cidade-capital em que concentracdo de organismos administrativos é muito forte —, me conta de que a protegao local circunscrita a uma area privilegia- da da cidade, ainda que rigorosa, em nenhum caso ¢ suficiente & de que os centros histéricos sé podem ser salvos, € no apenas pror- rogados por algum tempo, no ambito de uma politica urbanistica que considere de modo global todos os problemas da cidade e do lerritério. A paralisia econdmica ¢ social dos centros historicos é quase inevitavel: as pequenas atividades artesanais e comerciais $20 inevitavelmente sufocadas pela produgdo industrial e respectivos grandes centros de distribui¢do; os custos de restauragdo © manu- tengdo dos velhos edificios comportam despesas que, claro, no po- dem ser enfrentadas pela populagdo indigena; o engarrafamento do transito ¢ o acimulo de automéveis estacionados esto em contra- ico com as antigas estruturas; 0 processo de abandono, sobretu- do por parte das geragdes jovens, ¢ rapido. Com tudo isso, os solos urbanos conservam preeos elevadissimos que favorecem as mano- bras proibidas, mas dificeis de enfrentar, da especulacdo imobil ria. A substitui¢do das velhas classes populares e pequeno-burguesas or novas classes ricas provoca verdadeiras falsificagdes, no s6 por- que 0s edificios sio geralmente esvaziados, reduzidos & simples fa- chada, reestruturados em seu interior, mas também porque as pré- prias classes originals constituem um 'bem cultural que deveria ser 80 A nisroRIA Da ARTE E 4 CIDADE portantes, os mais importantes na foram obtidos em Bolonha, ohde a prefeitura assumiu 0 en- cargo de uma regeneragao integral dé tecido urbano do centro atra- vés de procedimentos que, a0 mesmo tempo, destinavam-se a rest belecer um grau de dignidade social e a submeter 0 edificios a uma Testauragao propriamente dita. Devo, porém, observar: 1) que nas camadas populares bolonhesas subsiste um grau bastante elevado de coeso e de apego & cidade e ao bairro de origem; 2) que, em Bolonha, as opgdes politicas da administragio municipal facilita- tam a adogao de uma politica que procurou conter e rep! eculacdo na construgao civil. A prefeitura de Roma inspirou-se no exemplo metodolégico de Bolonha, apesar de, por enquanto, numa escala bem menor, limitando as suas intervengées restauradoras a das dreas onde o tecido de construgao estava mais gravemente dé teriorado. Mas nao ha diivida de que, quando um tecido est prati camente necrosado, a recuperagao social e funcional é bastante di ficil, ainda mais se nZo solicitada pelo desejo dos nativos, Portanto, para revitalizar os centros hist6ricos nao se pode con- tar-apenas com as possibilidades técnicas de recuperagdo. Se a rea- nimagao deve traduzir-se numa refuncionalizagao mais organica, € laro que a intervencao dos técnicas do patriménio cultural é neces- sirla desde a primeira fase do estudo do projeto e que tal interven- 80 ndo deverd ser limitada aos centros historicos propriamente di tos, mas estendida a toda a area da cidade na medida em que influa no centro histérico ¢ 0 condicione. F restaurar, é bom lembrar, néo significa recuperar, nem modernizar. Vale também para as intervengdes nos grandes tecidos a expe- cia, mais tinica do que rara, feita em Bolonha com a restaura- sao da fachada de Sao Petrénio: uma restauragdo sem sombra de ida perfeita, uma conquista, como seria conseguir debelar pela primeira vez uma doenga mortal, mas que custou muito em termos de empenho, de investimento e de tempo. E preciso, agora, fazer com que, formando m&o-de-obra especializada, o exemplo bolonhés possa ser repetido em larga escala, ou, melhor, generalizado, em pe- Fiodos de tempo mais curtos e com um gasto menor. Os edificios ue estdio em condigdes andlogas a Sao Petrénio sao muitos. Como todas as grandes iniciativas cientificas, essa nova metodologia de restauragao também deve poder ter uma ampla area de influéncia € colocar-se como exemplo nao tinico e irtepetivel. Por isso, ‘mos que mesmo o problema da restauraglo dos centros histéricos deve passar doravante da fase de pioneirismo a da utilizagao gene- ralizada, com tudo 0 que comporta em termos de pessoal de pes- CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 81 1, pessoal de intervengdo, meios financeiros e, talvez, de insti- de escolas. (© plano diretor de uma cidade histérica consta sempre de um de arrumacdo e adaptacao do existente e de uma previsio ros desenvolvimentos, que também podem nao ser apenas sionsivos ou dimensionais. reqilente associar-se, ¢ com acento negativo, ao conceito de t6rico 0 de cidade-museu. E um termo do qual nao se de- medo, contanto que 0 museu ndo seja considerado um depé- wu um hospicio de obras de arte, mas sim um instrumento cien- ediddtico para a formagdo de uma cultura figurativa ou da- Entendida como ra visual é um componente ativo do estudo e de desenvolvi- ‘oda cidade (tal &, de fato, a funcdo que foi institucionalmente iada ao Centre Pompidou em Paris). ite de cidade-museu, Veneza. Por 10, com uma soluedo aparentemente correta, Mestre, que cresceu com a rapidez de to -0, um acimulo puramente quantitative stalagdes industriais e de seus complementos habitacionais. De- aconteceu que Mestre adquiriu um peso ndo apenas econdmi- demografico infinitamente superior ao de Veneza, que ficou 1 exposta a um processo de empobrecimento néo sé de fungdes. , poder-se-ia dizer que Veneza & 0 centro histérico da vizinha smo € respectivo comércio. De uma maneira ndo muito diferente da de Roma, onde a es- Iago adensou as populosas periferias em torno de um fraj no centro histérico, em Veneza, a cidade moderna tende a Imente a cidade antiga: a fumaga das ins ws industriais de Mestre desagrega as pedras de Veneza, como os mas dos automéveis e das instalacdes dos equipamentos de ca- “Ao desagregam as pedras de Roma. Assim, 0 historiador da ar- J deve preocupar-se ndo com o congelamento oua fixagdo da cida- antiga, da qual pode apenas prorrogar a existéncia, mas com um senvolvimento coerente com a sua realidade histérica, de modo ie, mesmo na diversidade das organizagdes e dos niveis, uma arti- Jago funcional assegure 0 dinamismo de todo 0 tecido urbano. ¥ ND 82 A HISTORIA DA ARTE E A CIDADE Isso, € bom deixar claro, nfo significa de maneira alguma moderni- Zar as cidades antigas: elas tam um valor na consciéncia dos nonees contempordineos exatamente por serem antigas. Ac Hom ou deveria ter a capacidade de compreender na sua estrutins BisGrica tanto o valor de uma meméria, presenca do seu passed como uma previsto-projeto do seu futuro. ‘Mas de que instrumentos dispomos para impedir que a vida da fidade historic se congele na conservacdo intransigente, se pert bs numa absurda tentativa de modernizar o antigo, seenvorpece mec FenPromissos, se empobreca na representagdo visivel exclusiva de historia das grandes insttuigdes ou do poder, descuidando, ao con, ncias humanas transcorridas entre ia bem viva do vi e conscientemente, qui contra na arte seu fator unit em nossas universidades? dos casos, abandonado aos so nossas escolas de ipar de equipes de proj rocessos vitais da cidade e Podemos acaso dizer que sao ensinadas com referéncia & de as disciplinas complementares, da sociologia & economia, ensdveis para o estudo da CIDADE IDEAL E CIDADE REAL 83 Ouvi dizer muitas vezes, e sem divida é verdade, que, para efe- ma protesdo organica do pairimOnio cultural, é indispensdvel de uma catalogacio dos bens efetuada com base-numa-no- juridicamente.definida, de bem Julgo indispensével fe, qualquer q fe6rico, tem sempr t6rica precisa € 'que 0 conceito de arte nao é uma invengao da le pettence a todas a: ages historicas e iéncia da sua convergéncia intencional numa unida- ue se chama arte, mas se realiza, de complexo que & a cidade. J4 se lids, uma extensio sivel prescindir de uma idéia ral que envolva ¢ integre a area da cidade como res da arte consiclerem is da cidade come ine- ina, a conservacio do patrimOni insepardvel da pesquisa cientifica e a in- lade como o tema fundamental de sua ética deplorar o cardter excessivamente tedrico ¢ escassamente icado dos estudos superiores de historia da arte, que nao so cen. idos o bastante no zelo das coi ie € 0 primeiro ponto deon- rgico € metodoldgico das nossas disciplinas, nao pretendo de for. . 3 art esse empenho pratico realiza e veri sa cier ir asa inert rl eatin PCO ages empiricas da pesquisa cientifica avangada, em 0 €possiveloprocesso averse, de seceec mo a cigncia. meee 1979 arte no pode dizer r fo da arte ¢ dos estudos sobre a iéncia ¢ das tecnologias coi tas. Entretanto, ndo se pode afirmar que a arte e os estudos so- ‘arte devam decair e desaparecer, por no mais gozarem de uma \digao de centralismo ou de hegemonia. Tampouco pode-se di- apesar de ém ler negar que desfrute de uma condigdo de centralidade ¢ de Ligo, ou, melhor, identifico propositalmente o problema da arte vom 0 dos estudos sobre a arte. Se pela palavra arte ndo entende- ‘mos uma atividade abstrata do espirito, uma entidade n orque a produgdo artistica esta em cri ico assume um destaque maior. I constatar veio reduzindo o campo das fungdes dos bens ndeu o dos conhecimentos cientificos F que 0s produtos da arte, ou, mais . 8¢ inserem no contexto cultural contempo:

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