Você está na página 1de 2

Divagações de um vagabundo III

Da joaçabanidade

Nada a dizer. Esta não é lá uma maneira genial de abrir um texto. É como se fosse
um anticlímax já nos primeiros movimentos, ou uma ejaculação precoce, que é também uma
forma de partida perdida de antemão, um atirar a toalha ao chão ainda no aquecimento.
Mas o fato é que por vezes não há nada a dizer, que por vezes o silêncio é o melhor
companheiro e toda essa filosofia orientalòide que nos convoca à paz interior e ao silêncio da
alma. É que esses mestres Zen não tinham que escrever uma coluna semanal para um jornal...
aí é fácil ficar quieto. Quando a gente escreve, a coisa se passa diferentemente. Há que se
“falar”. É preciso soltar o verbo de seu cabresto e mostrar-se (Há certamente algo de
exibicionismo na escrita...) É preciso capturar uma ideia e desenvolvê-la, fazer algum
malabarismo para que de uma questão simples os parágrafos se sucedam e encham, ao fim,
uma página, ou duas, ou três... A bem da verdade, eu não “tenho” que escrever uma coluna
semanal... não é um emprego e nem uma obrigação, não recebo um tostão e meu tempo tem
que ser investido a cada semana. Então poderia pensar que se trata de um mau investimento,
ou de masoquismo. Tampouco!
Acabei criando um vínculo afetivo com este momento semanal, como se de alguma
forma eu me encontrasse diante de minhas origens; como se a cada semana eu fosse obrigado
a rever meu estado de ser e minha inserção no mundo, minha joaçabanidade mundializada,
estendida, amplificada, itinerante. Sim! A cada semana que me volto para o “poesiatododia” é
como se eu fizesse uma análise de fundo sobre o fato de ser humano, joaçabense nato, tantas
vezes impertinente, incompetente, no limite do desinteresse pela minha cidade natal, e ao
mesmo tempo inquieto de seu destino, que é também meu. Fico a pensar se dentro de 50 anos,
numa eventual visita – provavelmente de pêsames, pois que com mais 50 anos, se eu ainda
existir, será tempo de dizer adeus a bastante gente – se numa eventual visita eu ainda
encontrarei a esquina do Bonato no mesmo lugar, ou se a cidade não terá já sumido sob as
cinzas do conservadorismo e da incompetência coletiva; ou se ela terá sido incorporada por
Luzerna e terá quem sabe virado distrito desta charmosa cidade que já foi um charmoso
distrito. Nunca se sabe a sorte que a história nos reserva...
Então estou aqui, sem nada a dizer e pensando em minha terra natal, que reverei em
breve, e que espero ainda esteja lá quando eu lá pisar. Confesso que o provincianismo me
assusta mais do que o diabo em pessoa, com quem eu teria certamente conversas animadas.
Mas tem algo nas ruas de Joaçaba, na feiura de suas casas, na precariedade de suas calçadas,
na pequenez de seu horizonte, no esnobismo de alguns e no simplismo de outros; tem algo
nisso tudo que me traduz tão profundamente que mesmo se eu vier a morar em Londres ou
Nova Iorque ou Nova Déli, isso jamais vai se apagar. É como se os paralelepípedos da
Getúlio Vargas, hoje submersos no betume, constituíssem o chão dos caminhos pavimentados
de meu coração (há tantos outros ainda em terra batida, ou mesmo desconhecidos...). É como
se minha vida de saborosos pecados, ardentes suplícios e extravagantes delícias tivesse se
constituído entre a Igreja Matriz e o reduto luterano da Martinho Lutero, e até hoje se alojasse
por lá, mesmo que eu esteja do outro lado do mundo. A cada vez que minha ética é
convocada, volto em memória a meus percursos incansáveis de criança por essas ruas que
hoje me habitam.
Pois é... cresci num meio pequeno-burguês, falsamente culto, falsamente rico,
falsamente ético, falsamente cristão; um meio, enfim, ordinário: um meio que não podia gozar
nem da erudição e da riqueza das aristocracias históricas, nem do fervor revolucionário das
classes operárias.
Não! Nossa pequena burguesia se contentava de um eruditismo superficial, cujo
fenômeno mais estranho e deselegante é o que se costumou chamar “novos ricos”, espécie de
ser de transição entre o miserável de espírito e o milionário dândi. Nosso meio também não
criou revolucionários, o que me parece lógico, pois não se planta a semente da revolução onde
todo mundo se crê agraciado pela bondade divina, onde as pessoas acreditam mais na
estabilidade de suas próprias vidas do que na necessidade de essa estabilidade se aplicar a
todos. Pensando bem, nosso pequeno mundo burguês produziu uma geração triste e
desiludida. Muitos dentre nós bem-sucedidos, sem dúvida. Não há contradição alguma entre
ser bem-sucedido e miserável, assim como é possível encontrar gente “malsucedida” e de bem
com a vida.
E apesar dos pesares, não fosse esse contexto tão peculiar, talvez eu não pudesse
mesmo conceber a ideia de um contexto tão peculiar; talvez eu jamais me sentasse numa
cafeteria, sem nada para fazer a não ser pensar nas minhas raízes distantes; talvez eu nunca
atingisse esse estado de vagabundagem existencial que me permite escrever uma coluna
inteira sem ter nada para dizer...
Então viva Joaçaba! Há nela uma grandeza latente que é mais forte que seu apego à
pequenez!

Você também pode gostar