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Manifestações Simbólicas nos Sonhos de Adultos-Jovens

Article  in  Revista de Psicologia da IMED · January 2011


DOI: 10.18256/2175-5027/psico-imed.v1n1p10-19

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3 authors, including:

Gabriel José Chittó Gauer


Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
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MANIFESTAÇÕES SIMBÓLICAS NOS SONHOS DE ADULTOS-JOVENS

Helen Longhi Wagner1


Gabriel Chitto Gauer2
Andréa Beheregaray3

RESUMO

O presente estudo se propõe a apresentar a análise de sonhos de adultos-jovens com o objetivo de


levantar hipóteses interpretativas. A análise dos sonhos é feita com base no referencial
psicodinâmico, em especial na teoria de C. G. Jung, segundo a qual os sonhos funcionam como
complementação e compensação da visão do ego vigil. Conforme é apresentado no decorrer do
texto, foram analisados três relatos de sonhos cedidos por dois participantes: um do sexo
masculino e um do sexo feminino. Nos casos analisados, entre outros aspectos, pode-se observar
que em um dos participantes, os conflitos mais evidentes se relacionam a questões familiares,
enquanto que no outro caso questões narcisistas parecem ter maior peso.
Palavras-chave: sonhos; adultos-jovens; teoria analítica; símbolos; inconsciente.

SYMBOLIC MANIFESTATION IN YOUNG-ADULTS DREAMS

ABSTRACT

This study presents analyses of dreams of young adults with the aim of creating interpretative
hypotheses. The analysis of the dreams is based in psychodynamic references, in special the
theory of C.G. Jung, according to which the dreams function as complementation and
compensation for the visions of the vigil ego. Three stories of dreams, given by two participants,
one male and one female, were analyzed. In these stories, among other aspects, it can be observed
that one of the participants has evident conflicts regarding family relations, whereas in the other
case narcissist issues seem to be the most important factor.
Key words: dream; young adult; analytical theory; symbols; unconscious.

1
Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.Mestranda pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
2
Pós-Doutor pela University of Maryland System U.M.S Estados Unidos. Prof. do Programa de Pós- Graduação
da Faculdade de Direito e Departamento de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
3
Psicóloga. Especialista em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Mestre em
Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Revista de Psicologia da IMED, vol.1, n.1, p. 10-19, 2009


Manifestações Simbólicas em Sonhos 11

Introdução

A presente pesquisa tem como tema as manifestações simbólicas que emergem nos
sonhos de adulto-jovens. Trata-se de um tema sempre atual, que desperta a curiosidade humana
desde o início dos tempos. Há estudos, em diversas linhas teóricas, abordando questões relativas
aos sonhos, porém o universo onírico é uma fonte inesgotável de informações. É de suma
importância um estudo aprofundado acerca deste tema, pois, na medida em que conhecemos mais
sobre nossos sonhos, podemos aumentar o conhecimento a nosso respeito.
A análise e interpretação de sonhos é uma prática usual em diversas linhas teóricas dentro
da Psicologia e da Psicanálise. Entre os estudiosos que deram grande atenção ao tema destacam-
se Freud e Carl Gustav Jung, que aprofundou os trabalhos de Freud e ampliou as possibilidades
interpretativas dos sonhos. Para Jung, o sonho é considerado um processo psíquico natural,
regulador, análogo aos mecanismos compensatórios do funcionamento corporal. Serve como
complementação e compensação da visão que o ego vígil tem da realidade (Hall, 1983).
No presente trabalho, busca-se relacionar os temas símbolos e sonho, visando uma
compreensão mais ampla dos processos oníricos, tendo como base principal as teorias da
Psicologia Analítica de Jung. Também busca verificar a possível existência de conexões entre as
imagens oníricas relatadas pelos participantes, e as reais situações de vida destes.

Um breve olhar a propósito da teoria junguiana

Segundo Jung, a forma ocidental lógica e racional de pensar deriva de um passado no qual
o pensamento era simbólico e mítico (Vieira, 2006). Para ele, existem quatro níveis psíquicos: a
consciência pessoal, que se refere à percepção consciente ordinária do ego4; o inconsciente
pessoal, que se refere àquela parte inconsciente, porém exclusiva da psique individual; a psique
objetiva, ou inconsciente coletivo, que se refere a uma estrutura aparentemente universal presente
em toda a humanidade; e a consciência coletiva, que se refere ao mundo cultural, de valores
compartilhados (Hall, 1983). Habitam estes quatro níveis psíquicos estruturas gerais e especiais.
As estruturas gerais englobam as imagens arquetípicas e os complexos. As especiais são o ego, a
persona5, a sombra6, e a sizígia anima/animus7. Dentro das estruturas gerais, os complexos se
referem aos grupamentos de imagens em torno de um tema comum, com tom emocional comum.
Os complexos são interpretações e representações particulares intimamente relacionados às
imagens arquetípicas, que são o conteúdo básico do inconsciente coletivo.

4
O ego se refere ao “eu” conscientemente nomeado, e todos os complexos (conscientes e inconscientes)
desta esfera pessoal possuem uma raiz no inconsciente coletivo e nas imagens arquetípicas.
5
A persona é a função de relacionamento com o mundo exterior. É caracterizada pelos papéis culturalmente
fornecidos ao individuo.
6
A sombra, por sua vez, se refere àqueles aspectos que, originalmente, faziam parte do ego, mas que, por
algum motivo, foram rejeitados e formaram uma espécie de alter-ego.
7
Quanto à sizígia anima/animus, refere-se à constelação em torno da imagem contra-sexual: uma imagem
masculina (animus) no caso da mulher, e uma imagem feminina (anima), no caso do homem. Estas imagens contêm
aquelas qualidades culturalmente definidas como impróprias à identidade sexual do ego, como, por exemplo, o lado
sensível masculino, e o lado intelectual e racional feminino.

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Em sua essência, o arquétipo é um conteúdo inconsciente, que se transforma através


de seu processo de conscientização, assumindo formas simbólicas de acordo com a consciência
individual na qual se manifesta (Jung, 2001).
Para a teoria junguiana, o arquétipo central e centro regulador da psique é o Si-
mesmo. O Si-mesmo gera símbolos compensatórios de integração quando a psique corre o perigo
de fragmentar-se (Stein, 1998).

Sonhos

O homem vive, através dos séculos, uma eterna busca da compreensão de tudo o que
acontece em sua vida. Jung ofereceu uma visão alternativa, também replicável, ao método
cientifico tradicional de obtenção de conhecimento da subjetividade do indivíduo (Beebe, 2004).
Neste contexto, o sonho representa um mistério a ser desvendado, um lado “obscuro”, fora do
controle, e desconhecido de nossa existência e, talvez por esse motivo, nos exerça tanto fascínio.
Existem diversas explicações científicas e biológicas para o fenômeno do sonhar,
porém tudo parece indicar que o sonho é fundamental e necessário ao funcionamento psicológico
saudável do ser humano. De acordo com as abordagens psicodinâmicas, entre elas a teoria
junguiana, o sonho é considerado um processo psíquico natural, regulador, análogo aos
mecanismos compensatórios do funcionamento corporal (Hall, 1983).
Para a teoria junguiana, há três maneiras possíveis de se ver o sonho como atividade
compensatória. Na primeira maneira, o sonho pode funcionar como uma mensagem,
compensando distorções temporárias do ego e dirigindo o sujeito a um entendimento mais real e
abrangente de uma situação de vida, inclusive percebendo qual complexo foi ativado por dada
situação. Na segunda, o sonho pode funcionar como uma auto-representação da psique, visando
mostrar ao ego que uma mudança é necessária para que o caminho saudável da individuação8 não
seja desviado. Finalmente, a terceira maneira vê o sonho como uma tentativa de alterar alguma
estrutura na qual o ego vígil se apóia.
Pelo fato do sonho lidar com símbolos, Jung considerava que eles teriam mais de um
significado, não podendo haver um sistema simples ou mecânico para sua interpretação.
Qualquer tentativa de análise de um sonho precisa levar em conta as atitudes, a experiência e a
formação do sonhador. O caráter das interpretações do analista é apenas experimental, até que
elas sejam aceitas e sentidas como válidas pelo analisando (Hall, 1983).

Análise e Interpretação dos Sonhos

A análise dos sonhos, de acordo com a teoria junguiana, leva em conta a


singularidade e particularidade de cada símbolo onírico, de modo que não há manuais que digam
o que cada símbolo significa de forma generalizada. Mesmo quando o significado parece
evidente, deve-se ter o cuidado de considerar o sonho como “recipiente de mistério”. Para Jung
(1992) o símbolo, presente no sonho, é um termo, um nome ou uma imagem que possui
conotação especial, além do significado evidente e tradicional.

8
Individuação é “o processo em que uma pessoa na vida real tenta, consciente e deliberadamente,
compreender e desenvolver as potencialidades inatas de sua psique”.

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Os significados e implicações dos motivos oníricos variam conforme as reações do


sonhador a eles, como forem expressas por suas associações e explicações pessoais, e de acordo
com suas possíveis alusões a explicações e mitologemas culturais ou coletivos, com os quais o
sonhador pode ou não estar familiarizado. Além disto, o significado do sonho ainda pode variar
segundo outro critério: pode funcionar como complementação (com função de alargar nossa
visão, acrescentando fragmentos ausentes) ou compensação (apresentação, geralmente de modo
exagerado, dos opostos polarizados à visão consciente), ambos funcionando como ferramentas
para a superação de posições fixas e pontos cegos (Whitmont & Perera, 1995).

Método

Participaram da pesquisa dois sujeitos, um do sexo feminino e um do sexo masculino,


com 22 anos e 24 anos de idade, respectivamente. Para preservar a confidencialidade, o nome e
outros dados que pudessem identificar os participantes foram modificados, com o cuidado de não
prejudicar a análise realizada.
Os participantes foram selecionados por conveniência, utilizando como critério de seleção
o conhecimento prévio, por parte dos pesquisadores, de alguns aspectos das histórias de vida
destes. A participação foi voluntária, e os mesmos assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
Os três sonhos analisados foram relatados verbalmente pelos participantes, durante
entrevista realizada de forma individual. Os participantes foram solicitados a relatar sonhos que
consideravam mais significativos, os quais recordassem com suficientes detalhes para possibilitar
a análise. Os relatos foram transcritos e, posteriormente, analisados.
Os três relatos de sonhos cedidos pelos participantes foram analisados separadamente,
através do método de interpretação de sonhos proposto por C. G. Jung. A análise foi realizada
com base na história de vida dos participantes, relacionando esta com os dados oníricos.

Caso 1

Dados de Identificação

A., 22 anos, sexo feminino, solteira. Natural de Viamão, possui ensino superior
completo e trabalha como consultora de vendas. Tem dois irmãos mais velhos; ambos morando
sozinhos fora do estado do Rio Grande do Sul.
A. mora com a mãe e o pai e, segundo seu relato, o pai sempre fora ausente, apesar de
morar na mesma residência. A mãe, por sua vez, é tida como uma figura forte e invasiva, tendo
com a filha uma relação simbiótica e conflituosa. A situação familiar tem dificultado o processo
de independização de A., que relata culpa por desejar esta independência.

Sonho 1

“Estava no mar com o Alexandre (amigo), as ondas estavam indo no sentido normal e
nós indo em direção ao fundo do mar, nadando normalmente, conversando... de repente ele
sumiu... e eu fiquei sozinha, boiando... quando olhei pro outro lado, as ondas estavam vindo do

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sentido da praia. E eu não enxergava mais a beira, cada vez as ondas eram maiores e eu chamava
o Alexandre e ele não respondia. Comecei a me desesperar e gritar. Tentei nadar por algum
tempo até a praia, passando por ondas gigantes, mas nunca chegava. Até que eu desisti...” (Relato
de sonho de A., 2006).

Hipótese Interpretativa

Neste sonho, aparece a representação de água, oceano, que pode indicar aspectos
inconscientes, profundos, bem como aspectos maternos, útero, elementos que geram vida. Este
mar, que no inicio aparece calmo, indicando um curso normal do inconsciente, agita-se com o
sumiço de seu amigo. Este amigo representa alguém em quem ela confia, que ‘vai estar sempre
lá’, mas que desaparece no sonho, demonstrando uma relação próxima, mas não muito.
Com o desaparecimento do amigo (figura masculina com quem não se pode contar),
as ondas do mar voltam-se contra ela e, por mais que ela tente, acaba desistindo e sendo tragada
por esse oceano representativo tanto da figura materna, que ‘engole’ tudo, quanto do
inconsciente. Há, também, aspectos maternos neste oceano que traga, que engole tudo ao redor
dela, inclusive ela mesma, bem como o medo de se afastar da margem segura e conhecida, em
busca de um outro caminho longe de casa, caminho que está eminente com a certeza de sua
viagem em janeiro próximo.
Neste relato, também aparece a falta de referência masculina em sua vida, pois o
único símbolo masculino desaparece, a deixando a mercê do oceano. Isto é corroborado pela
entrevista,onde a relação com a figura paterna é descrita como inexistente, e ela evita chegar
perto deste pai por medo de apegar-se e depois perde-lo novamente. Uma representação
masculina inconstante, que volta e meia desaparece, a deixando desprotegida e à mercê de uma
figura materna forte, e também sozinha pela ausência do mesmo pai (agora marido). Com o
amadurecimento e desenvolvimento da filha, esta figura materna ficará sem ninguém, o que
também parece assustar muito.
Isto pode assinalar a necessidade de uma relação mais estreita com estes conteúdos
que estão nas profundezas, e o fato de ela não ter conseguido retornar à margem,onde estava
segura, acarretou na punição de ser tragada, e forçada a permanecer submersa. Isto pode assinalar
uma nova etapa em sua vida, na qual ela será “obrigada” a se deparar com questões até então
desconhecidas, mantidas nas profundezas deste oceano, bem como a necessidade de estabelecer
outro tipo de relação com a vida em geral, e com si mesma. No entanto, sua relação conturbada e
ambivalente com a figura materna tornam este fato uma tarefa árdua, assustadora, e
extremamente carregada de culpa por deixar de assumir um lugar que, na verdade, não é seu: o de
sustentar esta mãe como se fossem uma só.

Sonho 2

“Tinha me mudado para Londres com meus pais e fui sair para dar uma volta pela
cidade com um amigo (escondido, meus pais não sabiam dele). O prédio era muito arrumado,
parecia mais um apart hotel chique. Eu e o menino saímos pela cidade, e estávamos com muita
saudade um do outro, passeando e conversando. Quando voltamos para os fundos do prédio
paramos numa espécie de jardim coberto e ficamos bem no meio, enquanto isso tinha uns 3
bichos amarrados ao nosso redor, um em cada canto e uma corda e fazia com que eles chegassem
perto, mas não conseguissem encostar em nós. Um era felino, quase branco. O outro era uma

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espécie de cachorro, mas ele tinha movimentos delicados como de um gato também e o terceiro
não consegui ver direito. Eu fiquei um pouco nervosa por causa dos bichos e também porque em
algum momento vi minha mãe no corredor do prédio e sabia que ela não poderia nos ver ali. O
menino estava calmo e pediu para eu me acalmar que os bichos estavam presos. Os animais
começaram a sumir, alguma coisa os puxava para baixo do prédio (uma espécie de porta de
garagem grande). Saímos dali e continuamos caminhando, quando chegamos a um lugar com
várias pessoas falando alto no meio da rua, vários carros estacionados e de repente eu estava
dentro de um deles. Aguardava o Nuno e minha prima (Ana Júlia) e de repente o menino
apareceu ali dentro junto. Na hora que fui descer do carro chegou um cara no vidro e falou para
eu descer duma vez ou ficar ali dentro, aí eu peguei e saí que nem louca de dentro do carro e
nisso quando olhei para trás estava o Nuno e minha prima dentro do carro e o cara havia levado
eles, foi um seqüestro. Quando me virei não achei mais o menino, aí fiquei procurando por
alguém que falasse inglês, pois todos ali estavam falando português. Perguntei pra uma menina se
ela era de Londres e falou que sim, aí eu continuei andando com ela para ir atrás do menino.
Quando vi chegamos em um parque com coisas temáticas, e me dei conta que o cara não estava
ali, que eu devia ter ido para o outro lado, olhei para trás e lá estava o prédio. Quando vi
chegaram os amigos dela e ela falou português com eles, fiquei muito braba por ela ter me
enganado e saí andando sozinha procurando o menino. Encontrei ele no caminho, quase na frente
do prédio que estava antes o carro na frente. Seguimos andando para dentro do prédio ao lado,
onde ficava o apartamento do pai dele. Chegamos lá e entramos no apartamento. Estávamos
sempre nos beijando e o beijo era muito bom e estávamos muito felizes. O menino não falava (eu
não via ele falar) eu só ouvia a voz dele na minha cabeça. Ficamos ali deitados e aproveitando o
tempo juntos no tapete da sala. O prédio era rotativo, de acordo com o sol. Quando vi o Nuno
estava junto e ficando com a gente e aí eu fui beijá-lo e lembrei que o beijo não era bom, que o do
menino era muito melhor. E tentei por algum tempo fazer com que o beijo dele fechasse com o
meu, mas não adiantou. Quando me virei o menino tinha saído andando e eu fui atrás. Fui
passando pelo prédio todo procurando por ele. Passei por vários lugares e pessoas e cheguei
numa escadaria onde vi uma menina segurando outra pela bolsa e pedindo dinheiro. Branca, com
os olhos fundos e marcas nos braços das seringas. Era viciada e acabei descobrindo naquele
momento que o prédio que estava o carro na frente era para adolescentes viciados e por isso tinha
tanto roubo ali na frente e pessoas pedindo e falando merda.Saí dali e fui tentando voltar para
casa. Não sei ao certo como cheguei em casa, sei que foi um caminho complicado, eu estava com
medo de ser assaltada novamente e não sabia muito bem o caminho de volta. Depois que cheguei
eu saí com minha mãe e contei para ela por onde tinha passado e ela ficou muito braba e me
xingando e perguntando porque eu tinha ido lá, só que eu cheguei lá sem querer... e mandei ela
ficar quieta e parar de me encher o saco.” (Relato de sonho de A., 2006).

Hipótese Interpretativa

Neste sonho, novamente aparecem aspectos duplos, ambivalentes, bem como a figura
materna. A representação da cidade específica de Londres, citada na entrevista realizada com o
sujeito, desta vez se torna cenário dos acontecimentos. Porém, este cenário também é
ambivalente, e não corrobora a visão de Londres trazida na entrevista. Além de se mudar junto
com os pais, é neste local que ela é assaltada, agredida, atacada e quase seqüestrada, tendo seu
amigo Nuno e sua prima Ana Júlia sido seqüestrados (aspectos de sua personalidade). À ela é

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dada a opção de permanecer no carro, ou sair mas, mesmo saindo, algum preço ela irá pagar,
alguns aspectos seus são seqüestrados na forma destas pessoas.
Neste relato, também aparecem as figuras de 3 “bichos”, sendo um felino quase
brando, um cachorro com “jeito” de gato e um terceiro que não é lembrado. Estes animais
assustam, mesmo estando presos por uma corda, e logo somem, puxados para baixo. Com relação
a estes aspectos, pode-se pensar na figura do felino/gato como símbolo de sexualidade, feminino,
o verdadeiro ‘eu’.
Segundo Von Franz (1988, p.164), o gato pode sugerir um modelo positivo de
comportamento feminino, que pode não ser agradável, mas ainda assim é muito verdadeiro a si
mesmo. No relato, o lado mais racional, mais domesticado das forças instintivas, representado na
figura do cachorro, aparece contendo traços de gato. O fato de estes animais serem puxados para
baixo e sumirem pode indicar a necessidade destes aspectos de sua personalidade serem mantidos
escondidos, no inconsciente, possivelmente longe do olhar materno, que não a permite abandonar
a posição de filha para se tornar mulher.
Ao mesmo tempo, quando estes animais somem, ela passa a ser atacada, e este
caminho que ela percorre é tortuoso, onde ela se perde, é enganada, seqüestram seus amigos, e
ela não está certa quanto ao caminho para casa, parece não conhecer este caminho. Isto pode
indicar que, uma vez em casa junto de sua família, aspectos importantes de sua personalidade são
‘roubados’, permanecendo latentes.
Esta hipótese é corroborada pelo fato de sua mãe estar sempre por perto, aparecendo
volta e meia, até mesmo nesta cidade onde ela havia referido não se sentir vigiada. Seu
sentimento de culpa por atitudes mais independentes, e a ambivalência desta relação com a mãe é
reafirmado no final do relato, quando ela conta para sua mãe por onde passou, sendo repreendida
em seguida, e justificando que havia ‘chegado lá sem querer’.
Outros aspectos do relato reforçam a hipótese de sua falta de privacidade, falta de um
espaço seu, onde possa ser verdadeira (o desaparecimento da figura do gato), como a cena do
apartamento do pai de seu amigo. Um apartamento que não é seu, é um lugar de estranhos, onde
não há privacidade, não há um mundo introvertido com segredos, e tudo o que acontece vaza para
fora. Pessoas entram e saem a todo momento, e o prédio é rotativo, dando idéia de movimento e
inconstância.

Caso 2

Dados de identificação

B., sexo masculino, 24 anos, solteiro. Natural de Canoas, possui ensino superior
incompleto e é estudante.
Filho de pais separados, mora com duas irmãs e a mãe. Ao longo de sua historia de
vida, tem demonstrado dificuldades nas relações interpessoais, pois considera que as pessoas não
o compreendem, ou não são boas o suficiente para estabelecer um relacionamento mais próximo.
Relata dificuldades também nas relações familiares, tendo tendência ao isolamento social.

Sonho 1

“Alguns dias atrás sonhei que me curvava nas margens de um lago, em profundo
estado de reverencia, com a água tocando meu rosto. Ao meu lado se encontrava a silhueta de um

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índio me tocando com uma espécie de áurea que me abarcava. Creio que o índio estava
atendendo o meu pedido de possuir revelação de segredos. Já estava sendo sufocado pelas águas
que me entravam pela boca, quase como que me batizando. Logo em seguida, o índio de batizou
com uma espécie de fogo, como que limpando todo o lixo que carreguei dentro de mim nos
últimos anos. Após esse “batismo” notei uma pomba branca e ela me trazia o sentimento de
morte, era um sentimento de morte, e creio ter sido a morte de um “eu” ultrapassado e irreal.”
(Relato de sonho de B., 2006).

Hipótese Interpretativa

Neste sonho, também há diversas hipóteses de interpretação. Levando em conta os


dados obtidos através da entrevista com o sujeito, pode-se levantar algumas hipóteses relativas
aos símbolos que nele aparecem.
Primeiramente, é importante destacar o fato de o próprio sonhador tentar interpretar
seu sonho, demonstrando um componente narcisista importante de sua personalidade, que
também é corroborado pela “posição” que ocupa em seu sonho: participa de um ritual de batismo,
uma “purificação” plena de todo o “lixo” que carregava em seu interior.
Este fato também levanta a hipótese de uma repressão maciça da sombra, e todas as
coisas relacionadas a ela, neste caso especifico (sexualidade, instintos), havendo uma projeção de
tudo o que é “ruim” no exterior; agora, ele está livre de tudo isso, enquanto o resto do mundo
não.
A entrevista realizada com o sujeito reforça estas hipóteses. Suas relações familiares
foram marcadas por um pai ausente, e seu comportamento “perfeito e puro” é visto como positivo
por seus pais, uma vez que é o típico filho que não incomoda, e possivelmente não saíra do seio
da família por algum tempo.
Esta ausência de pai pode explicar a negação da sexualidade, através do desapego de
todas as coisas materiais e impuras, gerando uma espécie de castração de seus instintos, assim
como uma “castração” de suas relações interpessoais, uma vez que ninguém nunca é bom o
bastante.
Este sonho pode ser comparado ao Mito de Narciso, pois, em ambos os casos, o
protagonista está ajoelhando na beira da água, água na qual, no caso do Mito, a imagem de
Narciso é refletida, e ele acaba se apaixonando por sua própria imagem (podendo este fato ser
interpretado como um homossexualismo latente). Já no sonho, o sujeito acaba sufocado pelas
águas, podendo servir de alerta para que esta busca pela “perfeição” tão almejada pode levar à
morte, seja ela simbólica, física ou das relações.
Neste sonho há, também, um caráter espiritual forte, marcado pelo ritual de batismo,
que pode ser interpretado como um ritual de passagem, onde algo é “perdido” em prol de algum
objetivo maior. A figura do índio também reforça este caráter simbólico, e a presença da pomba
representando a morte (o contrário do senso comum), pode se referir tanto a um significado
fálico, de acordo com a teoria psicanalítica, onde a pomba, sendo pássaro, é concebida como
símbolo fálico, como pode ser considerada símbolo de Afrodite e Eros, segundo a abordagem
junguiana. Representa aspectos negados pelo sujeito, alertando, novamente, para a morte
simbólica das relações interpessoais e amorosas do mesmo.

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Considerações Finais

A partir dos dados obtidos na pesquisa, conclui-se que, embora cada sonho deva ser
analisado dentro de um contexto muito particular, variando de individuo para individuo, os
sonhos podem ser considerados via de acesso a conteúdos inconscientes, desconhecidos ao ego
vígil, revelando muito do funcionamento intrapsíquico do indivíduo.
No primeiro caso retratado na pesquisa, os pontos mais evidentes na análise dos
sonhos foram a relação com a figura materna, sempre ambivalente, e a falta de uma figura
paterna forte. O conteúdo trazido nos sonhos condiz com a história familiar, tornando evidente o
conflito de dependência-independência com relação à figura materna, assim como a importância
diminuída da figura paterna.
Já no segundo caso, o conflito principal parece girar em torno de questões narcisistas,
e há uma tendência ao isolamento e ruptura das relações interpessoais, gerado pela prisão em si
mesmo, típica das personalidades com traços marcantes narcisistas.
Em ambos os casos parece haver movimentos em busca de equilíbrio, e tentativa de
independência através da busca de um novo rumo, onde o processo de individuação possa ocorrer
com maior êxito.
Mesmo levando-se em conta as particularidades do indivíduo que sonhou, é possível
que os símbolos presentes no sonho sejam interpretados de diversas maneiras, complementares,
ao longo de um espaço de tempo, ou durante um processo terapêutico. Sua importância neste
processo é inegável, tendo sido o sonho estudado e utilizado pelas mais diversas linhas teóricas,
desde o início da Psicologia.
O significado dos sonhos e de seus símbolos nunca se esgota, assim como nunca se
pode ter absoluta certeza da mensagem contida neles. O trabalho interpretativo baseia-se em
hipóteses que façam sentido para os sujeitos que sonham, dentro do contexto determinado no
qual o sonho ocorre.

Referências Bibliográficas

Beebe, J. (2004). Can there be science of the symbolic? Journal of analytical psychology, 49 (2),
177-91.

Hall, J. (1983). Jung e a interpretação dos sonhos: manual de teoria e prática. São Paulo:
Cultrix.

Jung, C. G. et al. (1992). O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

Jung, C.G. (2001). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes.

Stein, M. (1998). Jung: o mapa da alma: uma introdução. São Paulo: Cultrix.

Vieira, A. (2006). A função da história e da cultura na obra de C. G. Jung. Aletheia, 23, 89-100.

Von Franz, M. (1998). O caminho dos sonhos. São Paulo: Cultrix.

Whitmont, E., & Perera. S. (1995). Sonhos: um portal para a fonte. São Paulo: Summus.

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Endereço para correspondência:


Helen Longhi Wagner
Avenida Bagé 1259/802
Porto Alegre, RS
CEP 90460080
E-mail: persona_psi@hotmail.com

Recebido em 20/11/2008.
Aceito para publicação em 29/12/2008.

Revista de Psicologia da IMED, vol.1, n.1, p. 10-19, 2009

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