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Literatura, história e direito em A revolução dos bichos, de George Orwell

Chapter · December 2015

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João Paulo Vani


São Paulo State University
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Literatura, história e direito


em A revolução dos bichos,
de George Orwell

João Paulo Vani

A relação estreita que pode ser observada entre história e literatu-


ra não é recente. Para essas duas disciplinas, o processo de produção
do profissional, seja do historiador, seja do autor, é bem semelhante.
Utilizam, via de regra, a mesma ferramenta: a linguagem.
Para Hutcheon (1991), na representação tanto da História quanto da
Literatura, há um entrelaçamento entre o fato histórico e a ficção, fazen-
do com que o leitor não tenha o alcance do quanto de realidade e de
ficção existem nas narrativas. A fronteira entre ambas pode se confundir,
em uma mútua contaminação: fato histórico permeado de ficção e ficção
permeada por fatos históricos. A diferença conceitual entre os dois tra-
balhos reside no fato de o historiador ter um “dever social” com a verda-
de, enquanto o autor tem liberdade para produzir narrativas assumida-
mente ficcionais, ainda que permeadas por elementos reais.
A obra de George Orwell, jornalista e romancista inglês, A revolu-
ção dos bichos, revela, por trás da fantástica narrativa assumidamen-
te ficcional, uma espécie de fábula, na qual dá-se vida aos animais de
uma fazenda. É uma crítica bastante dura aos regimes autoritários,
permeada de elementos reais observados à época, como as relações
e as más condições de trabalho. Orwell, como grande defensor da
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democracia, traz em seu romance elementos que evidenciam uso de


violência e desrespeito aos direitos fundamentais.
É importante verificar que o romance é produzido em um contex-
to em que, não apenas a Europa, mas todo o mundo, ainda sentia os
reflexos da Primeira Guerra Mundial e da Crise de 1929. Deve-se ain-
da considerar que a matéria-prima para o trabalho de Orwell está nas
revoluções russas que levaram à queda do governo absolutista dos
Czares, levando à implantação do Socialismo, o que causou profun-
das mudanças econômicas e sociais da recém-instituída União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O conceito de História
Em Os métodos da História (1983), os historiadores Ciro Flamarion
Cardoso e Héctor Pérez Brignoli apresentam a missão do historiador.
Os autores colocam sob a responsabilidade do historiador a decisão do
que deve ser registrado nos anais da história como “fato histórico”, a
partir de uma análise baseada em documentos.
Adam Schaff, em História e verdade (1987), nessa mesma linha de
raciocínio, tece as seguintes observações:

Tomamos o fato histórico como ponto de partida das nossas aná-


lises sobre a objetividade da verdade histórica, porque se admite
geralmente que as divergências surgem entre os historiadores no
momento em que passam à interpretação dos fatos, enquanto que
a sua acumulação, se supondo um certo nível de conhecimentos e
tecnicidade na investigação, é mais ou menos semelhante (p. 203).

Nas duas obras citadas, o fazer histórico parece estar inteiramente


nas mãos do historiador, como se fosse ele o agente responsável pelo
que se deve transferir às gerações futuras, desconsiderando os con-
textos políticos, econômicos e sociais, bem como as motivações por
trás de cada “fato histórico”.
Hayden White, em Meta-história (1995), retoma os tradicionais
conceitos da ciência histórica, herdada dos séculos 18 e 19. Entre-
tanto, White divide a produção da História em três fases distintas, e
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Direito e literatura: confluências e afinidades | Gentil de Faria (Org.)

alerta para as diferenças na atuação de filósofos da História e histo-


riadores no século 19 que, de acordo com o historiador Guy Lardreau
(1989), aquele teria sido o século da História, dada a importância dos
estudos históricos para o avanço intelectual e moral da sociedade.
Voltaire, cerca de cem anos antes, na obra Ensaio sobre os costumes
e o espírito das nações (1756), já alertava para a necessidade de se
considerar fazer uma análise mais crítica dos fatos históricos, e cu-
nhou a expressão “filosofia da história”, ao assim batizar o prefácio
da referida obra.
Na primeira fase, ocorrida durante o Iluminismo, História e verda-
de eram conceitos indissociáveis, como se pode observar na defini-
ção do pensador Pierre Bayle:

Observo que, como a verdade é a alma da história, ela é algo essen-


cial para a composição histórica ser isenta de mentiras; de forma
que, embora ela deva ter todas as outras perfeições, não será uma
História, mas uma mera fábula ou romance [...]1 (p. 173),

Para Hayden White, o fato de teóricos do século 19 não fazerem


uso de elementos que não configurassem a “realidade”, como acon-
tecia até o século 18, mas sim de elementos de criação literária ou
interpretação dos fatos, como mitos, lendas ou fábulas, é algo signi-
ficativo:

Isso [a exclusão de elementos não “reais”] significava que conjun-


tos completos de dados provenientes do passado – tudo que es-
tava contido na lenda, no mito, na fábula – eram excluídos como
testemunho potencial para determinar a verdade acerca do passa-
do, isto é, aquele aspecto do passado que tais conjuntos de dados
diretamente representavam para o historiador empenhado em re-
construir uma vida em sua integridade e não somente em função
de suas manifestações mais racionalistas. Como os próprios ilumi-
nistas eram devotados à razão e estavam interessados em firmar
a autoridade dela contra a superstição, a ignorância e a tirania
de sua própria época, eram eles incapazes de enxergar qualquer
coisa mais que o mero testemunho [...] nos documentos em que
aquelas épocas representavam suas verdades para si mesmas, em
mitos, lendas, fábulas e outras coisas mais (1995, p. 66).

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A segunda fase é chamada por White de “clássica” e, situada no


século 19, é representada por quatro historiadores: Jules Michelet,
Leopold Von Ranke, Alexis de Tocqueville e Jacob Burckhardt que, se-
gundo o autor, partilham da chamada “consciência moderna”. Desse
grupo de historiadores o que nos interessa é o compromisso com o
“real”, em oposição direta à visão romântica, base da “historiografia
realista de Ranke” (1995, p. 175).
Hayden White trata dessa “historiografia realista”, sobre o modo
objetivo e compromissado com a verdade defendido por Leopold Von
Ranke no trecho abaixo:

Numa passagem que se tornou canônica no credo da ortodoxia


da profissão historiográfica, o historiador prussiano Leopold Von
Ranke caracteriza o método histórico, de que foi fundador, nos
termos de oposição aos princípios de representação encontra-
dos nos romances de aventura de Sir Walter Scott. Ranke ficara
encantado com os quadros que Scott havia pintado da época da
cavalaria. Eles lhe tinham inspirado o desejo de conhecer mais
amplamente aquela época, de vivê-la de maneira mais imediata.
E por isso fora às fontes de história medieval, aos documentos
e aos relatos contemporâneos da vida naquele tempo. Escanda-
lizou-se ao descobrir não só que os quadros de Scott eram em
grande parte produtos da fantasia mas também que a vida real
da Idade Média era mais fascinante do que qualquer descrição
novelística dela jamais poderia ser. Ranke descobrira que a ver-
dade era mais estranha do que a ficção e, para ele, infinitamente
mais satisfatória. Resolveu, por isso, limitar-se no futuro apenas
à representação daqueles fatos que eram atestados pelo teste-
munho documental, reprimir os impulsos “românticos” de sua
própria natureza sentimental e escrever história para relatar ex-
clusivamente o que houvesse de fato sucedido no passado (1995,
p. 175).

A terceira fase é representada por Nietzsche, Marx, entre outros.


Marx e Engels, em O manifesto comunista (1848), apresentam uma
definição de história:

A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história


das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, se-
nhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em re-

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sumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido


numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra
que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária
da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em con-
flito.
Nas mais remotas épocas da História, verificamos quase por toda
parte, uma completa estruturação da sociedade em classes distin-
tas, uma múltipla gradação das posições sociais (p. 40).

É interessante, porém, notar como a visão moderna de


historiadores como Hayden White difere da visão Iluminista. Logo
nas páginas iniciais de Meta-história (1995), White considera “o tra-
balho histórico como o que ele manifestadamente é: uma estrutura
verbal na forma de um discurso narrativo em prosa” (p. 11).
Assim como Hayden White, Linda Hutcheon também avalia de
modo crítico a produção da atividade escrita. Em seu livro Poética do
pós-modernismo (1991), alerta

[...] ao afirmar que a história não existe a não ser como texto, o
pós-modernismo não nega, estúpida e “euforicamente”, que o pas-
sado existiu, mas apenas afirma que agora, para nós, seu acesso
está totalmente condicionado pela textualidade (p. 34).

O historiador Jacques Le Goff (2003) divide o conceito de história


em três, sendo: a) o ensinamento de Heródoto, de que a história é a
“procura das ações realizadas pelos homens”, o que chamamos de ciên-
cia histórica; b) a procura que os homens realizaram, que se funda-
menta em uma definição de Paul Veyne: “a história é quer uma série
de acontecimentos, quer a narração desta série de acontecimentos”
(1968, p. 423); c) a história pode assumir um terceiro sentido, o senti-
do de narração.

Uma história é uma narração, verdadeira ou falsa, com base na “rea-


lidade histórica” ou puramente imaginária — pode ser uma nar-
ração histórica ou uma fábula. [...] O século 19, século da história,
inventa ao mesmo tempo as doutrinas que privilegiam a história
dentro do saber — [...] “historismo” ou “historicismo” — e uma fun-
ção, ou melhor, uma categoria do real, a “historicidade” (p. 18-19).
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Le Goff (2003, p. 21) trata ainda da dualidade da história, no que


classifica como “história-realidade” e “história-estudo desta realidade”.
As duas classificações podem ser aqui compreendidas como realidade.
Sob uma perspectiva de verdade vigente no Modernismo, Fischer
(1970 apud Hutcheon, p. 120) afirma existir “extraordinária relutân-
cia em reconhecer a realidade do tempo passado e dos acontecimen-
tos anteriores, resistindo obstinadamente a todos os argumentos que
defendem a possibilidade ou a utilidade do conhecimento histórico”.
De modo muito semelhante, Hayden White, poucos anos mais tar-
de, constata que no fazer literário contemporâneo existe a convicção
de que “a consciência histórica precisa ser eliminada se o escritor
quiser examinar com a adequada seriedade aqueles estratos da ex-
periência humana” (1994, p. 31).
White trata do posicionamento do leitor diante das obras escritas
com finalidade de propor uma reflexão sobre os acontecimentos pas-
sados, sejam as obras históricas ou literárias.

Os leitores de histórias e de romances dificilmente deixam de se


surpreender com as semelhanças entre eles. Há muitas histórias
que poderiam passar por romance, e muitos romances que pode-
riam passar por histórias, considerados em termos puramente
formais (ou, diríamos, formalistas). Vistos apenas como artefatos
verbais, as histórias e os romances são indistinguíveis uns dos ou-
tros. Não podemos distinguir com facilidade entre eles, em bases
formais, a menos que os abordemos com pré-concepções especí-
ficas sobre os tipos de verdade de que cada um supostamente se
ocupa (1994, p. 137-138)

Ora, que existem elementos literários na composição do texto his-


tórico, bem como elementos históricos em obras ficcionais, não é
grande novidade. O que se vê, como evolução teórica, é o modo como
essa troca entre as disciplinas é percebida pelo leitor.

A história e o romance
Especificamente na obra A revolta dos bichos, George Orwell revela
o panorama da sociedade europeia no contexto da Revolução Sovié-
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tica. Ao criticar o mito soviético tendo como instrumento a sátira, o


autor universaliza o romance ao tratar dos regimes autoritários. O
próprio autor explica no prefácio da edição ucraniana de 1947 a mo-
tivação acerca da obra:

Ao voltar da Espanha, pensei em denunciar o mito soviético numa


história que fosse fácil de compreender por qualquer pessoa e fá-
cil de traduzir por outras línguas. No entanto, os detalhes concre-
tos da história só me ocorreriam depois, na época em que morava
numa cidadezinha, no dia em que vi um menino de uns dez anos
guiando por um caminho estreito um imenso cavalo de tiro que
cobria de chicotadas cada vez que o animal tentava se desviar. Per-
cebi então que se aqueles animais adquirissem consciência de sua
força não teríamos o menor poder sobre eles, e que os animais são
explorados pelos homens de modo muito semelhante à maneira
como o proletariado é explorado pelos ricos. A partir daí, decidi
analisar a teoria de Marx do ponto de vista dos animais (p. 145).

A estrutura construída para a narrativa que se passa na Granja do


Solar, que depois da revolução terá seu nome alterado para Granja
dos Bichos, permite verificar uma relação análoga entre o romance e
a história da Revolução Russa. A Sra. Jones, dona da fazenda, repre-
senta o governo dos Czares, a “Monarquia Russa”, com seus traços
absolutistas; Major, mentor intelectual do movimento, cujo objetivo
era inicialmente positivo dentro de uma perspectiva ideológica de
igualdade, cuja prática não pode ser efetivada, ante sua morte, re-
presenta a figura de Lênin; Napoleão e Bola de Neve, representam
respectivamente Stálin e Trotski, sendo que o primeiro é responsável
pela implantação do regime totalitário na granja, enquanto o segun-
do é visto como inimigo pelo primeiro, e expulso da fazenda.
A proposta da revolução surge em uma noite em que os bichos se
reúnem no celeiro para ouvir Major, porco inteligente e persuasivo
que, ao revelar aos demais animais um sonho, os leva à rebelião, ten-
do como base o discurso de sua própria verdade, da vida miserável e
oprimida que levam, em uma contraposição entre animais (nós, opri-
midos) e seres humanos (eles, opressores).

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O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá


leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre
o suficiente para alcançar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de
todos os animais. Põe-nos a trabalhar, dá-nos de volta o mínimo
para evitar a inanição e fica com o restante (p. 12).

Com a morte de Major, três outros porcos, Napoleão, Bola de Neve


e Garganta, assumem o objetivo de realizar a revolução, tornando to-
dos os animais livres, sob a seguinte filosofia, retratada de modo bas-
tante didático: “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” (p. 23).
Consumada a revolta que expulsou os seres humanos da Granja, os
líderes organizam um sistema de governo batizado de Animalismo.
Estabeleceram um conjunto de leis, os sete mandamentos, para pau-
tar a nova sociedade constituída, organizaram o trabalho, tendo sem-
pre à frente um dos porcos.
A partir de então, entre tentativas de reconquista da granja pelo
Sr. Jones, e desentendimentos entre os líderes do movimento, surgem
situações que levam o leitor à clara identificação da relação entre
literatura e história.

Relações entre ficção e história


Linda Hutcheon refuta o conceito da existência de uma única “ver-
dade” e propõe a ideia de haver verdades múltiplas.
Neste trabalho, postula-se que a oposição à dualidade da Histó-
ria proposta por Le Goff (2003), está na ficção tal qual propõe Linda
Hutcheon. A ficção tem, inerente em si, o compromisso do revisitar
criticamente a História, de reescrever o que já havia sido escrito, de
dar voz às minorias até então caladas. Neste ponto, Le Goff (2003) e
Hutcheon (1991) se encontram, e o que um denomina “historiogra-
fia”, a outra trata por “metaficção historiográfica”.

Dessa forma, a historiografia surge como sequência de novas leitu-


ras do passado, plena de perdas e ressureições, falhas de memória
e revisões. Estas atualizações também podem afetar o vocabulário
do historiador, introduzindo-lhe anacronismos conceituais e ver-
bais que falseiam gravemente a qualidade de seu trabalho (p. 28).

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Pode-se considerar que o ferramental do historiador é o mesmo


do autor de ficção, e é também o mesmo do jornalista. Cada um des-
ses profissionais poderá assumir uma postura distinta em relação
à criação textual, a saber: ao historiador, recai o compromisso com
a verdade; da mesma forma, ao jornalista, cabe o compromisso de
produzir conteúdo informativo, sob uma perspectiva que privilegie
a verdade dos fatos, sobre os quais não opina, dos quais não partici-
pa, produzindo um texto absolutamente informativo. Por sua vez, ao
autor de obras de ficção escapa a todo e qualquer compromisso com
a verdade, sendo-lhe possível assumir uma criação ficcional a partir
de nenhum documento histórico ou de nenhum registro jornalístico.
A “metaficção historiográfica” irá, assumidamente, consultar os
documentos históricos, trazendo para sua criação personagens reais
que poderão assumir outros papéis, às vezes subvertidos pelo autor.
Haverá ainda a possibilidade de personagens da História aparecerem
ao lado de personagens fictícios, em situações que, mesmo sem te-
rem “verdadeiramente” acontecido, possam oferecer novas possibili-
dades de reflexão sobre o evento histórico original, ou “verdadeiro”.
Para Hutcheon (1991),

a metaficção historiográfica refuta os métodos naturais, ou de


senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção.
Ela recusa a visão de que apenas a história tem uma pretensão
à verdade, por meio do questionamento da base dessa pretensão
na historiografia e por meio da afirmação de que tanto a histó-
ria como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de
significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua
principal pretensão à verdade. (p. 127)

Assim, nas obras ficcionais de “metaficção historiográfica”, as fron-


teiras que dividem Literatura e História são abaladas, tornando-se
bastante tênues.
Isso se dá pelo fato de que, estruturalmente, as duas ciências se
revelam bastante semelhantes, com historiadores e escritores ques-
tionando e discutindo fatos históricos a partir de documentos que,
por sua vez, são narrativizados, oficiais ou não. Como já citado, Le

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Goff (2003) define a narração como uma das vias do fazer histórico.
É também com a narração que o escritor constrói seu mundo.
Nas reflexões de Aristóteles, a poesia ultrapassa a História, pois
não se restringe a apresentar os fatos ocorridos, mas por apresentar
os fatos que poderiam vir a acontecer.
Costa (2001, p. 50), ao revisitar o conceito de mimese de Aristóte-
les faz a seguinte colocação: “um recurso da mimese trágica é o efeito
de surpresa, que, mesmo inverossímil, pode parecer verossímil, por-
que é verossímil que aconteçam coisas inverossímeis”.
Tanto para escritores quanto para historiadores, escrever é inter-
pretar eventos passados; são duas atividades que se entrelaçam e,
como White define, “a história não é menos uma forma de ficção do
que o romance é uma forma de representação histórica” (White, 1994,
p.138). Sobre a atividade dos historiadores, Hayden White explica que

[...] os historiadores interpretam seu material de duas manei-


ras: ou escolhendo uma estrutura de enredo que confira às suas
narrativas uma forma reconhecível, ou escolhendo um paradig-
ma de explicação que dê aos seus argumentos uma forma, um
impulso e um modo de articulação específicos. É costume di-
zer que essas duas escolhas são consequências de uma terceira
opção interpretativa, mais fundamental: uma opção moral ou
ideológica (1994, p. 86).

White vai além nessa comparação entre o escritor de um romance


e o escritor de uma história, ao afirmar que “ambos desejam oferecer
uma imagem verbal da ‘realidade’” (1994, p. 138).

Autoritarismo
A revolução dos bichos traz em si uma clara crítica ao regime insti-
tuído na União Soviética por Stalin. Analisando criticamente o perfil da
sociedade naquele contexto ao mesmo tempo que, ao propor reflexões
acerca do modo como os governantes lidam com o poder, permite que
seja vista a partir de outras perspectivas históricas ou temporais, uma
vez que é próprio do ser humano ser dominado pelo poder que exerce.

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O romance de Orwell permite a reflexão sobre o poder e os seus


efeitos naqueles que levantam bandeiras ideológicas, como acontece
com os animais da Granja dos Bichos.
Inicialmente, existe um esforço conjunto para que a igualdade en-
tre todos seja a representação da justiça, o que leva o grupo de bi-
chos à formulação de uma carta de direitos fundamentais, os sete
mandamentos do Animalismo, inalteráveis, que deveria reger a
comunidade “para sempre”. São eles:

1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.


2. Qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha
asas, é amigo.
3. Nenhum animal usará roupas.
4. Nenhum animal dormirá em cama.
5. Nenhum animal beberá álcool.
6. Nenhum animal matará outro animal.
7. Todos os animais são iguais (p. 25).

Os desentendimentos entre os membros da cúpula do poder da


Granja dos Bichos leva à expulsão de Bola de Neve, realizada por Na-
poleão com a ajuda de nove cães por ele secretamente criados. Nota-
-se aqui que os cães que amparam a decisão de Napoleão o serviam
do mesmo modo que os animais serviam ao Sr. Jones, ou seja, dentro
de uma relação entre opressor e oprimido.
Com a expulsão de Bola de Neve, Garganta, cuja principal habi-
lidade era a retórica, passa a uma posição de destaque como braço
direito de Napoleão. Com isso, os discursos de Garganta amenizavam
quaisquer acontecimentos negativos vividos na Granja, demonstran-
do o quão acertada havia sido a decisão dos bichos de viverem livres
dos humanos, tiranos, opressores, autoritários.

Cada qual trabalhava de acordo com sua capacidade. As galinhas e


os patos, por exemplo, economizaram cinco baldes de trigo, na co-

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lheita, juntando os grãos extraviados. Ninguém roubava, ninguém


resmungava a respeito das rações. A discórdia, as mordidas, o ciú-
me, coisas normais nos velhos tempos, tinham quase desapareci-
do. Ninguém se esquivava ao trabalho [...] (p. 29).

A partir da expulsão de Bola de Neve da Granja e do apareci-


mento das dificuldades existentes em uma sociedade igualitária,
verificadas com o passar do tempo, tendo como referencial as ne-
cessidades e desempenho de cada membro da comunidade cria-
da, ficam mais evidentes os traços de autoritarismo de Napoleão,
que amplia a carga de trabalho e institui atividades aos domingos,
divulgadas como “trabalho estritamente voluntário”. Entretanto,
aquele que não se submetesse à nova carga, “teria sua ração dimi-
nuída pela metade”.
A mudança dos porcos para a casa-grande revela mais uma de-
monstração da subversão às regras igualitárias inicialmente pro-
postas, dividindo os bichos em duas castas: os líderes e os traba-
lhadores. Ao se afastarem do “ideal animalista”, os líderes passam
a justificar suas atitudes personalistas alterando o contrato social
inicialmente estabelecido.

Foi mais ou menos por essa época que os porcos, de re-


pente, mudaram-se para a casa-grande, onde fixaram
residência. Novamente os bichos julgaram lembrar-se
de que havia uma resolução contra isso, aprovada nos
primeiros dias, e novamente Garganta conseguiu con-
vencê-los do contrário. Era absolutamente necessário
que os porcos, disse ele, sendo os cérebros da granja,
tivessem um lugar calmo onde trabalhar. Além disso,
viver numa casa era mais adequado à dignidade do Lí-
der (nos últimos tempos dera para referir-se a Napo-
leão pelo título de “Líder”) do que viver numa simples
pocilga. Mesmo assim, alguns animais se aborreceram
ao ouvir dizer que os porcos não só faziam as refeições
na cozinha e utilizavam a sala como local de recreação,
mas ainda dormiam nas camas (p. 57).

O poder da retórica de Garganta busca constantemente acalmar


os bichos, que tornam-se subalternos aos porcos. As emendas a qua-
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tro dos sete mandamentos e a opressão à qual Napoleão submetia os


demais bichos da Granja colocou a todos em situação semelhante à
vivida enquanto o Sr. Jones administrava o local. Ficaram os manda-
mentos alterados:

4. Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.


5. Nenhum animal beberá álcool em excesso.
6. Nenhum animal matará outro animal sem motivo.
7. Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais
que os outros.

O romance revela o quanto, em regimes totalitários, as igualdades


se convertem em falácias, com a mesquinharia da “igualdade do so-
frimento” e trabalho pesado para as classes inferiores e a “igualdade
de benesses” para os mandatários.
Os hábitos humanos manifestados por Napoleão eram constante-
mente percebidos pelos demais bichos, que estavam sempre sendo
persuadidos ora pelos longos discursos de Garganta, ora pelos bre-
ves discursos proferidos pelo próprio Napoleão.

Como todos os discursos de Napoleão, aquele foi curto e direto


ao assunto. Também ele, disse, alegrava-se de que o período de
desentendimentos tivesse chegado ao fim. Por longo tempo houve
rumores - inventados, acreditava, e tinha razões para isso, por al-
gum inimigo mal-intencionado - de que havia algo de subversivo e
mesmo de revolucionário nos pontos de vista seus e de seus com-
panheiros. Tinham passado por desejosos de fomentar a rebelião
entre os animais das granjas vizinhas. Nada podia estar mais lon-
ge da verdade! Seu único desejo, agora como no passado era vi-
ver em paz e gozando de relações normais com os seus vizinhos.
Aquela granja que ele tinha a honra governar, acrescentou, era
um empreendimento cooperativo. [...] Naturalmente ele não podia
saber - mesmo porque Napoleão o estava proclamando, naquele
instante, pela primeira vez – que a denominação “Granja dos Bi-
chos” fora abolida. A partir daquele momento, sua granja volta-
ria a ser conhecida como “Granja do Solar”, que, aliás, parecia-lhe,
era seu nome correto e original. Senhores - concluiu Napoleão ,
levantarei o mesmo brinde, mas sob forma diferente. Encham, até
a borda, seus copos. Senhores, este é o meu brinde. À prosperida-
de da Granja do Solar! [...] Voltaram correndo e tornaram a espiar
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pela janela. Realmente, era uma discussão violenta. Gritos, socos


na mesa, olhares suspeitos, furiosas negativas. A origem do caso,
ao que parecia, fora o fato de Napoleão e o Sr. Pilkington haverem,
ao mesmo tempo, jogado um ás de espadas. Doze vozes gritavam
cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora,
quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas
de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem
para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas
já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem
era porco (grifos do autor, p. 111-112).

Nesse ponto da narrativa revela-se o quanto a aspiração de Major


em criar uma sociedade igualitária e livre, havia sido deturpada pelos
governantes. Não havia na Granja dos Bichos, há tempos, justiça ou
igualdade. Tais preceitos deram lugar à tirania dos porcos, que fize-
ram dos demais seus servos.
Enquanto em uma democracia existe espaço para a tensão cons-
tante, com defensores de ideais diferentes lutando para revelar suas
perspectivas, o romance revela o quanto a tentativa de de estabele-
cer uma solução definitiva poderá resvalar no totalitarismo, na con-
centração irrestrita do poder. E é essa a noção de Direito dos porcos
mandatários do regime implantado na Granja de Mr. Jones: o poder
como força da imposição, uma perspectiva com influência direta do
Positivismo.
Tal noção está em oposição ao conceito do Direito como ferramen-
ta de pavimentação do ambiente democrático, proposta inicial e to-
talmente deturpada do Animalismo.

Nota

I observe that truth being the soul of history it is an essential thing for
a historical composition to be free from lies; so that though it should
have all other perfections it will not be a History but a mere fable and
romance [...] (tradução do autor)

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Direito e literatura: confluências e afinidades | Gentil de Faria (Org.)

Obras citadas

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