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A posição entre uma natureza apaixonada que aspirava a plenitude, e o exílio em que a doença o
obrigara a viver, marcaram profundamente a sua sensibilidade, traduzindo-se, no plano
estrutural, pelo gosto das antíteses, dos paradoxos, nos contrastes violentos; no plano
emocional, por um movimento polar, uma oscilação constante que, no decorrer da obra, vai
alternar a atitude de serenidade melancólica e o sentimento de revolta impotente.
[Gilda e Antonio Cândido de Mello e Souza - Introdução in Estrela da vida inteira]
A enumeração, neste lugar ideal, de fantasias tão simples e despojadas já revela um dado
biográfico que se transformará em fonte de muitos temas da poesia de Bandeira: a presença da
morte, anunciada em plena adolescência, sob a forma de uma tuberculose, doença mortal na
época [início do século XX]. [...] fui vivendo, morre-não-morre, e, em 1914, o doutor Bodner,
médico-chefe do Sanatório de Clavadel, tentando-lhe eu perguntado quantos anos me restariam
de vida, me respondeu assim: o senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida: no
entanto, está sem bacilos, come bem, dorme bem, não apresenta em suma nenhuma sintoma
alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer? Continuei esperando a
morte para qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente. [Manuel Bandeira -
Itinerário de Pasárgada]
A permanente consciência da morte, a luta contra ela, a convivência com sua presença -
fazedoras de ausências - transformam-se poeticamente numa descoberta essencial de vida, numa
valorização intensa da existência mais cotidiana, redescoberta como única, irrepetível,
insubstituível. Não é possível separar a experiência de vida da experiência poética do autor de
Pasárgada, embora sua poesia - de uma universalidade intensa, ardente e simples - não possa ser
reduzida a acontecimentos biográficos, que se revelam matrizes de imagens, de emoções, de
ritmos, transfigurados na alquimia da criação.
O critico Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, escreve: [...] veremos que
a presença do biográfico é ainda poderosa mesmos nos livros de inspiração absolutamente
moderna, como Libertinagem, núcleo daquele seu não-me-importismo irônico, e, no fundo,
melancólico, que lhe deu uma fisionomia tão cara aos leitores jovens desde 1930. O adolescente
mau curado da tuberculose persiste no adulto solitário que olha de longe o carnaval da vida e de
tudo faz matéria para os ritmos livres do seu obrigado distanciamento.
A sua obra, escrita ao longo de mais de meio século, atravessa praticamente toda a história do
Modernismo no Brasil e apresenta muitos dos mais expressivos livros da poesia moderna, como
Ritmo dissoluto, Libertinagem, Estrela da manhã e outros.
Estrela da vida inteira / Da vida que poderia / Ter sido e não foi. Poesia, / Minha vida
verdadeira.
Nascido na Recife, em 1886, tendo passado a infância principalmente no Rio e no próprio Recife,
Manuel Bandeira publica seu primeiro livro de poema em 1917 - A cinza das horas, que será
seguido por Carnaval, em 1919, em que apresenta pela primeira vez, versos livres na literatura
brasileira. Conhece Mario de Andrade e os modernistas paulistas em 1921.
Não participa diretamente da Semana de Arte Moderna de 1922, mas o seu poema Os sapos,
paródia contundente dos parnasianos, provoca um dos momentos de maior escândalo, ao ser lido
por Ronald de Carvalho, no Teatro Municipal de São Paulo, no dia 15 de fevereiro: o de maior
polemica de toda a Semana.
A partir de então, não é possível pensar a poesia moderna no Brasil sem a presença de Bandeira,
que atravessará todas as chamadas fases do Modernismo, com uma produção poética de mais
alto nível. Já na fase heróica, de 1922, em que a ruptura com o passado e com as estruturas
estabelecidas era a mais vital palavra de ordem, Mário de Andrade chamava o poeta de S. João
Batista do Modernismo, reconhecendo o seu papel de anunciador da nova poesia.
Aos poemas de Bandeira nascem e crescem dos acontecimentos mais cotidianos, mais comuns,
dos momentos que aparentemente são banais e insignificantes. Do dia-a-dia mia desapercebido
desentranha sua poesia, em que instantes da existência aparecem transfigurados em pura
essencialidade da vida.
Detalhes prosaicos e perdidos na rotina descolorida dos dias revelam-se instantes de iluminação,
instantes de transcendência e de proximidade da essência mais profunda - e mais simples - da
vida. O grande milagre da existência, a mais cotidiana, que a consciência da morte revelará
como algo intenso, único, irrepetível.
Sua linguagem coloquial e, despojada, atinge algum dos momentos mais expressivos da língua:
grande intensidade, grande condensação, com imensa simplicidade. Ao lado de Carlos
Drummond, Bandeira é o grande incorporador do prosaico e do coloquial na poesia brasileira
moderna.
... a poesia está em tudo - tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como
nas disparatas.
Até mesmo com ternura pela morte, companhia constante de muitos anos, interlocutora secreta
que, paradoxalmente, revela o valor absoluto de cada dia, de cada pessoa, de cada coisa. A
sabedoria da morte - quando se descobre que não apenas os outros morrem - transformou-se,
como em muitas correntes filosóficas, em sabedoria de vida. A importância da existência, de
cada um: simples, essencial, passageira. Milagre. E a morte, também milagre.
Bandeira é poeta da mais intensa ternura. De ardor terno e intenso pela vida. Uma sensibilidade
moderna, não grandiloqüente. Ternura melancólica pela infância perdida, e por seus
personagens. Ternura ardente pelo corpo. A sua poesia amorosa revela-se como ardente lírica
erótica. Poesia do corpo, de grande intensidade. Os corpos se estendem, as almas não. Imagens
eróticas que se tornam experiências sagradas, transcendentalizadas, tal a naturalidade, o ardor
e a intensidade da ternura. O físico se funde com o onírico, terna e desconcertantemente.
Além disso, revela-se um dos mais versáteis e flexíveis fazedores de versos do modernismo
brasileiro. Suas estruturas de métrica e de ritmo vão desde as mais libertárias experiências de
verso livre, dos fluxos mais soltos e irregulares até as estruturas mais tradicionais, de verso em
redondilhas da lírica medieval, dos versos decassílabos clássicos e neoclássico e outros
combinados com variadas formas fixas de estrófica regular, com sonetos, canções etc. um
fazedor de versos e estrofes extremamente versátil, com raro domínio técnico e com grande
erudição, capaz de traduzir de varias línguas e de escrever à moda de, imitando estilos os mais
diversos, da época e autores.
Morto a mais de vinte anos, Bandeira continua se revelando como o mais simples e mais
despojado dos poetas do Modernismo brasileiro, como o poeta capaz de simplicidade mais
essencial e mais expressiva.
Antologia comentada
Pneumotórax
Poética
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobre tudo os barbarismos universais
Todas as construções sobre tudo a síntese de exceção
Todo os ritmos sobretudo os instrumentais
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora
de si mesmo
Este texto equivale a um manifesto modernista. poema, poesia que fala de poesia. Observe que
ele apresenta negações e rupturas - contra as convenções que desfiguram a criação poética, em
especial as do academicismo parnasiano - e apresenta, por outro lado, afirmações libertárias
típicas da luta modernista [particularmente no final do poema]. Observe o título verso, frase
síntese, verdadeiro slogan do momento heróico do modernismo.
Texto-síntese da poesia de Bandeira, tanto de sua linguagem como de sua temática da vida que
podia ter sido, que precisava ter sido - e que não foi . observe a enumeração livre dos elementos
que compõe a Pasárgada - lugar ideal, lugar de sonhos, lugar de desejo, onde a vida é o que
deveria ser. Na segunda estrofe, observe a enumeração caótica, sem seqüência lógica, dos
elementos. Observe também a extrema simplicidade da linguagem, junto da mais intensa
expressividade.
Estrela da manhã
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão
simples
Que tu desfalecerás
Arte de amar
Um dos mais conhecidos poemas com tema da morte. Observe o tom sereno, familiar, camarada.
Consolada, a ceia de fim de ano, no texto representa encontro simbólico com a morte. O poema
apresenta um balanço do vivido, sem ilusões contra a própria finitude, e não se desfigura diante
da presença indesejada pelas gentes. O dia foi bom, com cada coisa no seu lugar. Observe
também, tal como nos outros textos, a linguagem coloquial, a estrófica irregular, heterogênea, o
verso livre.
Consoada