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Do exercício

MICHEL DE MONTAIGNE

É difícil que o raciocínio e o conhecimento, se bem que nossa convicção nos


ajude, sejam assaz poderosos para nos levar à ação se, ademais, não nos exercitamos, e
pela prática não adaptamos a alma ao que queremos. De outro modo, no próprio
momento de agir ela se encontrará em dificuldade. Eis por que os filósofos que visaram
à perfeição não se contentaram com aguardar na serenidade do repouso os rigores da
sorte. De medo de que ela nos achasse desprevenidos e inexperientes para a luta, foram-
lhe ao encontro, enfrentando riscos e tormentos de moto próprio, renunciando uns a suas
riquezas, a fim de se acostumarem a uma pobreza voluntária, exercitando-se outros por
meio das mais duras tarefas e austeridades de uma vida de privações, em se calejarem.
Outros ainda se mutilaram, privando-se de seus órgãos mais preciosos, como os olhos
ou as partes genitais, com receio de que, sentindo exagerado prazer em seu uso,
tivessem enfraquecido a alma.
Mas não nos é possível exercitar-nos a morrer, o que constitui entretanto a mais
árdua tarefa que nos cumpre enfrentar. Podemos, pelo hábito e a experiência, fortalecer-
nos contra a dor, a vergonha, a indigência etc. No que concerne à morte só a podemos
experimentar uma vez, e quando chega não passamos todos nós de aprendizes.
Houve outrora homens tão ciosos de bem empregar seu tempo, que procuraram,
ao passarem da vida à morte, fixar suas impressões e analisá-las. Mas nenhum deles
voltou para nos comunicar o que pôde aprender: “Jamais acorda quem, uma vez,
adormeceu no frio repouso da morte”.1
Um nobre romano, Cânio Júlio, dotado de notável coragem e caráter, entre
outras provas espantosas de sua resolução, deu a seguinte: condenado à morte por esse
monstro que se chamou Calígula, ao ser executado pelo carrasco e ouvindo de um
filósofo seu amigo: “Então, Cânio, qual o teu estado de alma neste momento? Em que
pensas?”, respondeu: “Penso em estar preparado para morrer e em procurar com todas
as minhas forças, neste instante tão curto, verificar o que sentirá minha alma, se
experimentará algum tremor ao separar-se do corpo, e se eu conseguir algo hei de
voltar, em podendo, para dizê-lo a meus amigos”. Eis um filósofo que continuou
filósofo até durante a morte. Quanta coragem, quanta firmeza de ânimo em desejar que
ela servisse de lição, em conservar uma tal liberdade de espírito, em poder pensar assim
noutra coisa em semelhante ocasião! “Que domínio tinha sobre a alma na hora da
própria morte!”2
Parece-me contudo que haja possibilidade de nos familiarizarmos com a morte,
de apreciá-la de perto. Podemos tentar a experiência, se não inteira e perfeita, ao menos

1
Lucrécio.
2
Lucano.

1
em condições em que nos seja proveitosa, fortalecendo nossa coragem e dando-nos
alguma segurança. Se não podemos alcançá-la, podemos aproximar-nos dela,
reconhecê-la. Se não podemos penetrar no edifício, podemos palmilhar as avenidas de
acesso. Não sem razão, comparam-na ao sono, que mui parecidos são. Com que
facilidade adormecemos, perdemos a noção da luz e de nós mesmos, quase sem nos
apercebermos. Talvez esse sono, que nos priva momentaneamente de movimento e
sensação, se nos afigurasse inútil e inexplicável se não víssemos nisso uma lição da
natureza, a de que estamos destinados tanto a morrer como a viver. Para que nos
acostumemos e não tenhamos receio, ela nos mostra no decurso da vida o estado que
nos reserva para quando deixarmos a existência.
Quem, em consequência de algum acidente, desmaiou e perdeu por completo o
conhecimento das coisas, esteve, imagino, bem perto da morte natural. Quanto ao
instante preciso da passagem da vida à morte não há como temer que comporte esforço
ou dor. Pois nada podemos sentir sem a presença do tempo. Nossas sensações precisam
de tempo para serem sentidas e o tempo é demasiado curto no momento da morte. E a
aproximação da morte que cabe temer, e essa aproximação é passível de estudo.
Muitas coisas parecem maiores quando pensamos nelas do que quando com elas
deparamos. Passei boa parte de minha existência em perfeita saúde, não somente
ignorando a doença, mas ainda cheio de vida e atividade. Esse estado de verdor e alegria
fazia-me temer a tal ponto a enfermidade que, ao experimentá-la, a achei menos horrível
do que imaginara. Eis um fato que se repete cotidianamente comigo: se me encontro
comodamente aquecido no meu quarto durante uma noite de tempestade, tremo pelos
outros e me apiado deles. No entanto, se me acho eu próprio na tempestade não procuro
sequer um refúgio. Estar constantemente fechado dentro de um quarto, parecia-me
insuportável. Uma doença que muito me aborreceu, mudou-me e me enfraqueceu a
ponto de me obrigar a guardar o leito durante cinco semanas. Verifiquei então que,
quando estava com saúde, os doentes me pareciam muito mais dignos de pena do que eu
em idêntica circunstância e que minha apreensão dobrava quase a desgraça real. Espero
que ocorra o mesmo quanto à morte e que ela não valha em verdade todo o esforço que
faço para me preparar a recebê-la dignamente, nem todos os recursos que tento juntar a
fim de resistir a seu ataque. Em todo caso não convém negligenciar nenhum de seus
aspectos.
Quando da terceira, ou segunda (não me lembro exatamente) guerra de religião,
estando um dia a passear a uma légua de minha casa situada no centro do teatro das
guerras civis e julgando-me em segurança, pensei não me ser necessário mais do que
um cavalo ágil mas pouco resistente. Ao voltar, uma circunstância inesperada fez que
me visse forçado a exigir dele mais do que podia dar. Procurando auxiliar-me, um de
meus homens, grande e forte e que cavalgava um atlético rocim duro de boca, quis
mostrar sua habilidade e chegar antes de seus companheiros, de modo que se precipitou
a todo galope diante de mim e caiu com seu peso colossal sobre o homenzinho e o
cavalinho que éramos nós, jogando-nos ambos de pernas para o ar. Assim ficou o
cavalo atordoado e eu sem sentidos, a doze passos, de costas para o chão, todo

2
machucado e esfolado, a espada ao longe, a cinta em pedaços. Foi, até agora, o único
desfalecimento que tive. Os que me acompanhavam, depois de tudo fazer para que
voltasse a mim, acreditaram-me morto. Tomando-me então nos braços, transportaram-
me com muita dificuldade durante cerca de meia légua francesa até a minha casa. No
caminho, após duas horas durante as quais estive como morto, comecei a fazer alguns
movimentos e a respirar. Tamanha quantidade de sangue se expandira em meu
estômago que a fim de aliviá-lo teve a natureza de provocar uma reação. Puseram-me
em pé e eu expeli em grandes golfadas um balde cheio de sangue puro. Várias vezes
durante o caminho o fato ocorreu. Graças a isso comecei a recuperar minhas forças, mas
aos poucos, e tanto tempo foi preciso que a princípio o que eu sentia participava mais da
morte que da vida: “porque ainda incerta de sua volta, a alma atônita não pode afirmar-
se”.3
Essa recordação, que se gravou fundamente em meu espírito, de um acidente em
que a morte me apareceu por assim dizer com o aspecto que deve realmente ter,
causando-me a impressão que devemos sentir, essa recordação reconcilia-me até certo
ponto com ela. Quando comecei a ver de novo, minha vista estava tão turva, tão fraca,
extinta, que não discerni a princípio senão um pouco de luz: “como alguém que, meio
acordado meio dormindo, ora abre os olhos e ora os fecha”.4 Quanto às funções do
espírito, voltavam à vida juntamente com o corpo. Vi-me ensanguentado, com o gibão
empapado de sangue perdido. O meu primeiro pensamento foi o de haver recebido um
tiro de arcabuz na cabeça, pois ouviam-se tiros de quando em quando nos arredores.
Parecia-me que a vida estava suspensa a meus lábios e eu fechava os olhos a fim de
ajudá-la a desprender-se de mim, comprazendo-me nesse estado de langor e também em
me sentir esvair. Em meu espírito ocorria a sensação vaga da volta da faculdade de
pensar, mal definida ainda, mais suspeitada do que percebida, sensação terna e doce
como tudo o que experimentava, não somente isenta de desprazer mas ainda lembrando
a quietude que se apodera de nós ao sermos dominados pelo sono. Creio que é nesse
estado que se devem sentir os que na agonia desfalecem de fraqueza. E julgo que deles
nos apiedamos sem razão, pois imaginamos erroneamente que sua agitação provém de
dores excessivas ou de pensamentos penosos. Sempre fui de opinião, contrariamente a
outros, inclusive La Boétie, que os vemos assim perturbados e acabrunhados nos seus
últimos instantes, seja em consequência de longa enfermidade, seja de ferimentos, de
apoplexia ou epilepsia.
“Muitas vezes um infeliz tomado de mal súbito cai repentinamente diante de nós
como que fulminado: a boca espuma, o peito geme, os membros tremem; fora de si,
retesa-se, torce-se ofegante, exaure-se em toda espécie de movimentos convulsivos”.5
Fui sempre de opinião que os que vemos engrolar as palavras suspirando fundamente,
sem que nada indique que ainda estão conscientes nem que estejam privados de
qualquer movimento, já tinham então a alma e o corpo adormecidos e como que

3
Tasso.
4
Id.
5
Lucrécio.

3
amortalhados: “vivem sem ter consciência de que estão vivos”.6 E não creio que, dada a
fraqueza dos membros, o embotamento dos sentidos, possa o nosso espírito conservar
força suficiente para sentir o que quer que seja. Portanto, esses moribundos não estão
sujeitos a pensamentos que os atormentem e lhes revelem a triste condição em que se
acham. Por conseguinte não nos devem inspirar piedade.
Quanto a mim, não sei de nada tão insuportável e horrível como ter uma alma
aflita sem poder expressá-lo: assim os que são enviados ao suplício após se lhes cortar a
língua (se bem que nesse gênero de morte uma atitude silenciosa e uma fisionomia
severa e grave sejam o que melhor convém), e do mesmo modo os que caem nas mãos
dos soldados transformados em carrascos e que são torturados cruelmente a fim de
pagarem um resgate impossível, e que enquanto não o fazem permanecem presos em
condições e locais ignóbeis, sem possibilidade de tornarem conhecidos os seus
pensamentos. Os poetas inventaram alguns deuses favoráveis à liberação dos que
arrastam desse modo uma morte lenta: “executo as ordens que recebi”, diz Íris, “e
liberto o teu corpo cortando o fio de cabelo louro consagrado ao deus dos infernos”.7 As
palavras, as respostas breves e sem nexo que lhes arrancam em lhes gritando aos
ouvidos, os movimentos que fazem e parecem ter alguma relação com o que se lhes
pergunta, não são provas de que vivem. Acontece o que se verifica quando
adormecemos e que o sono ainda indeciso não se assenhoreou completamente de nós:
temos, como em sonho, alguma ideia do que ocorre em torno de nós, acompanhamos o
que se diz, mas o percebemos apenas vagamente e de maneira imperfeita que mal toca o
espírito. Assim as nossas respostas participam mais do acaso que da lógica.
Agora que tive uma experiência, não duvido da exatidão de minhas ideias. Antes
de mais nada, embora desmaiado trabalhava com as unhas (pois estava desarmado) para
abrir o meu gibão e no entanto não tinha a impressão de haver sido ferido. Mas temos
muitas vezes movimentos inconscientes: “os dedos agonizantes contraem-se e se cerram
sobre a lâmina que lhes escapa”.8 Quando caímos, estendemos os braços, em um
impulso natural de nossos membros que se prestam mútuos serviços e se movimentam
com autonomia: “dizem que, nos combates, os carros armados de foices decepam com
tamanha rapidez os membros dos combatentes que os vemos ainda palpitantes no chão,
antes que a dor de tão súbito golpe lhes atinja a alma”.9
Estava com o estômago oprimido por esse sangue coalhado. Minhas mãos o
procuravam espontaneamente como fazem, sem intervenção de nossa vontade, quando
sentimos coceiras. Há animais – e isso também se vê entre os homens – cujos músculos
se contraem e mexem mesmo depois da morte. E todos sabem que certas partes do
nosso corpo se agitam, se retesam e se relaxam sem que haja qualquer intenção de nossa
parte. Ora, esses sofrimentos que mal nos roçam não nos pertencem; para que fossem

6
Ovídio.
7
Virgílio.
8
Virgílio.
9
Lucrécio.

4
nossos seria necessário que nos tomassem por inteiro. Assim, as dores que enquanto
dormimos nos tomam o pé ou a mão, não nos pertencem.
Quando me acerquei de casa, onde já chegara a notícia do acidente e minha
família me acolhia com os gritos comuns a tais circunstâncias, não somente respondi
com algumas palavras, mas ainda, ao que soube depois, dei ordens também para que
arranjassem um cavalo para minha mulher que eu via em dificuldades no caminho
íngreme e penoso. Dir-se-á que semelhante preocupação era prova de ter eu recuperado
a razão, mas assim não era. Eram rasgos de lucidez, confusos, provocados pelo que
percebiam meus olhos e meus ouvidos e que não provinham de dentro de mim. Eu não
sabia nem de onde vinha nem para onde ia; não podia tampouco entender o que me
perguntavam, nem refletir; o pouco que então me era possível fazer ou dizer decorria de
meus sentidos agindo maquinalmente; o espírito não participava disso. Este se
encontrava como em um sonho, ligeiramente impulsionado pela débil impressão dos
sentidos. Contudo a sensação que tinha era de calma e de doçura; não pensava em mim
nem em ninguém, estava em um estado de languidez e de fraqueza extremas, sem sentir
dor alguma. Vi a minha casa mas não a reconheci. Quando me deitaram, o repouso
causou-me infinito bem-estar. Fora terrivelmente sacudido e abalado pelos pobres
diabos que se haviam revezado no transporte de meu corpo durante a longa e extenuante
caminhada. Deram-me inúmeros remédios que eu recusei, certo de que estava
mortalmente ferido na cabeça. Teria sido, sem mentira, uma morte muito agradável,
impedindo-me o enfraquecimento da razão de perceber o do corpo. Deixei-me ir ao léu,
tão suavemente, de maneira tão indolente e fácil que nada sei de menos penoso.
Quando principiei a viver de novo e a recuperar minhas forças: “quando meus
sentidos enfim recobraram algum vigor”,10 o que ocorreu duas ou três horas depois,
senti-me tomado de dores por todo o corpo, com os membros moídos pela queda. Sofri
tanto durante as noites que se seguiram, que pensei morrer novamente mas de morte
extremamente dolorosa então, e até hoje me ressinto do choque causado pelo acidente.
É de se observar que a última coisa que pude recordar foi a maneira por que se verificou
o caso. Tive que fazer com que me repetissem várias vezes para onde eu ia, de onde
vinha, a hora da ocorrência, antes de o conceber nitidamente. Quanto à queda mesma,
escondiam-me os pormenores dela, inventando outros, por comiseração para com o
culpado. No dia seguinte, em me voltando aos poucos a memória, quando me revi no
estado em que estava ao ver o cavalo jogar-se contra mim (pois eu o percebera no
momento em que ia cair-me em cima e me considerava morto, mas o pensamento fora
tão rápido que não tivera medo), essa reminiscência foi como um clarão galvanizante e
pareceu-me que voltava do outro mundo.
Essa narrativa de acontecimento de tão pequena importância seria prova de
vaidade, não fosse a lição que dele tirei, pois para se acomodar ao pensamento da morte
creio ser preciso ter-se aproximado dela. Ora, como diz Plínio, cada qual é para si
mesmo excelente objeto de estudo, desde que tenha qualidades suficientes para se

10
Ovídio.

5
observar. O que exponho aqui não é doutrina, mas experiência; não é lição dada por
outrem e sim por mim a mim mesmo; por conseguinte não me devem censurar se a
comunico, pois o que me é útil pode ocasionalmente ser útil aos outros. Ademais não
prejudico ninguém e, se é tolice, somente em mim repercutirá; e em morrendo comigo
não terá consequências. Não conhecemos senão dois ou três filósofos antigos que assim
tenham agido, e como os conhecemos apenas de nome ignoramos se o fizeram do
mesmo modo.11 Desde então ninguém os imitou. É mais difícil do que parece
acompanhar o espírito na sua marcha insegura, penetrar-lhe as profundezas opacas,
selecionar e fixar tantos incidentes miúdos e agitações diversas. É uma ocupação inédita
e excepcional, mas das mais recomendáveis, que nos afasta das ocupações habituais a
que se entrega em geral a gente.
Há vários anos, somente a mim mesmo tenho como objetivo de meus
pensamentos, somente a mim é que observo e estudo; se atento para outra coisa logo a
aplico a mim ou a assimilo. E não creio seguir caminho errado se, como fazem com as
outras ciências incontestavelmente menos úteis, comunico a outrem minhas
experiências, embora me considere pouco satisfeito com meus progressos. Não há
descrição mais difícil do que a de si próprio, nem mais aproveitável, mas é necessário
enfeitar-se, arranjar-se para se apresentar em público. Assim, enfeito-me sem
descontinuar, por isso que me descrevo constantemente.
Costuma-se condenar quem fala de si; o uso o proíbe de modo absoluto por
causa da tendência para nos vangloriarmos, que sempre parece apontar-nos testemunhos
que damos de nós mesmos. É como se, para não assoar uma criança, lhe arrancássemos
o nariz: “não raro o medo de um mal conduz a outro maior”.12 Um tal remédio se me
afigura mais prejudicial do que eficaz. Ainda que fosse verdadeiro, que houvesse
necessariamente presunção em entreter o público acerca de si mesmo, não poderia,
querendo manter-me fiel à regra que me impus, passar em silêncio o que pode revelar
em mim essa disposição doentia, desde que existo. É um erro que não devo esconder,
pois, não somente o cometo, como escolhi por profissão cometê-lo. Entretanto, para
dizer o que penso, julgo errado esse costume, pois é como se condenassem o vinho
porque há quem se embriague. Só se abusa das coisas boas e não falar de si é uma regra
que condena apenas o abuso em que podemos cair. São tolices que não embaraçaram
nem os santos nem os filósofos; a mim tampouco me apoquentam, embora esteja tão
longe de uns como de outros. Se não proclamam que falarão de si, não deixam contudo
de o fazer quando se apresenta uma oportunidade. De que fala Sócrates mais
abundantemente que de si próprio? Para que encaminha suas conversações com seus
discípulos, senão para as suas pessoas? E nunca para uma lição dos livros mas para os
movimentos da alma e do ser. Nós, católicos, nos confessamos a Deus e ao nosso
confessor, e os protestantes fazem-no em público. Sim, dirão, mas confessamos

11
Montaigne alude a Arquilóquio e Alceu entre os gregos e a Lucílio e Marco Aurélio entre os autores
latinos.
12
Horácio.

6
unicamente os nossos pecados. Ora, confessando-os, tudo dizemos, pois até em nossa
virtude podemos falhar e ter motivos para arrependimento.
Meu ofício, minha arte, é viver; quem me censura falar disso segundo meu
sentimento, a experiência que tenho e o emprego que dou, proíba a um arquiteto referir-
se às suas próprias construções, obrigando-o a comentá-las de acordo com as de outrem.
Se é vaidade falar das coisas que nos valorizam, por que Cícero não elogia a eloquência
de Hortênsio e este a de Cícero? Talvez desejem, para me julgar, que eu apresente atos e
não palavras. Mas são sobretudo os pensamentos que me agitam e, em sua forma mal
definida, não podem traduzir-se por atos, que procuro reproduzir. Já me custa muito
traduzi-los pela voz, que é coisa aérea e sem consistência. Os homens mais sábios e
prudentes, e os mais devotos, passaram a vida evitando qualquer ato exterior. Tais atos
emanam mais da sorte que de mim; evidenciam o seu papel e não o meu, a não ser de
maneira conjetural e incerta; são amostras de uma parte do indivíduo e não de sua
totalidade. Eu me mostro por inteiro, como uma pena anatômica, cujas veias, músculos,
tendões, divisamos em seus lugares ao primeiro golpe de vista, ao passo que a tosse
indica apenas o que ocorre em certo ponto de nosso ser, a palidez e a pulsação o que se
verifica em outro ponto, e tudo isso de modo duvidoso. Não são apenas meus gestos que
escrevo, sou eu mesmo, é a minha essência.
Devemos ser prudentes quando nos observamos e com a mesma consciência nos
apreciar quanto ao bem e quanto ao mal. Se me acreditasse bom e avisado, ainda que
mais ou menos, proclamá-lo-ia em altos brados. Colocarmo-nos abaixo do que
realmente somos, considero-o torpeza e não modéstia; diminuir-se é covardia e
pusilanimidade, segundo Aristóteles. Não há virtude que acompanhe a falsidade e a
verdade jamais será objeto de terror. Dizer mais do que somos, nem sempre é
presunção: é por vezes ingenuidade; comprazer-nos em ultrapassar a medida é cair no
indiscreto amor a nós mesmos, o que a meu ver constitui o fundamento desse vício. O
único remédio consiste em fazer exatamente o contrário do que nos ordenam os que nos
proíbem falar de nós mesmos e portanto pensar em nós mesmos. O orgulho está no
pensamento, bem pequena é a participação da língua.
Preocupar-se consigo parece aos outros admirar-se. Consideram que observar e
sondar a alma é amá-la exageradamente. Mas este excesso só se verifica naqueles que se
analisam superficialmente, nos que se estudam após seus negócios, nos que denominam
delírio e ociosidade a expressão das sensações próprias, nos que acham que trabalhar em
prol do desenvolvimento cultural é construir castelos na Espanha, nos que são
estrangeiros e indiferentes a si próprios. Quem se embriaga com sua ciência ao olhar
para baixo, erga os olhos para cima e contemple os séculos passados. Baixará o tom
vendo milhares de espíritos aos pés dos quais não poderia elevar-se. Se se sente
envaidecido com a própria valentia, pense no que realizaram Cipião, Epaminondas e
tantos exércitos e povos! De nenhuma circunstância particular se orgulhará quem tenha
sempre na memória a debilidade, a imperfeição e a miséria inerentes à natureza humana.
Somente Sócrates pôs em prática o preceito que recebera de Apolo: conhece-te a ti
mesmo. O que o levou ao desprezo por si próprio e também a ser julgado pela

7
posteridade digno do epíteto de sábio. Quem assim se conhecer, ouse tornar-se
conhecido dos outros.

MONTAIGNE, Michel de. Do exercício In: ______. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
p. 179-183. (Coleção Os Pensadores)

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