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Memorial Itinerante
Africanidades
Projeto premiado na 6ª edição
do Prêmio Ibero-Americano de
Educação e Museus do Programa
Ibermuseus.
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Memorial Itinerante
Africanidades
Itinerante:
passageiro  caminhante  caminheiro  transeunte  viajante  viandante   
passadouro provisório  temporal  temporário  transitivo transitório 
viador peregrino caixeiro peregrinador viandeiro peregrinante

Quando idealizamos um projeto de itinerância, andávamos bastante inquietos, à


procura de caminhos que pudessem nos ressignificar.
Acessibilidade, apropriação e pertencimento são sentidos e princípios que pulsam
em nossos ideais, remetendo-nos à garantia de direitos, a exercícios de cidadania
- dar a vez ao outro, criar possibilidades, ampliar experiências e construir novos
olhares sempre foram nossos objetivos na educação.
O Memorial Minas Gerias Vale, após o amadurecimento de um trabalho de
estudos, pesquisas e práticas educativas põe seus pés, mãos, corpo e cabeça na estrada,
trazendo como bagagem uma bela exposição, parte de seu acervo, com o recorte
temático “Africanidades”.
Também promove encontros de formação com educadores e agentes
culturais, na expectativa de ampliação e troca de saberes, e para tal preparou esse
material – uma seleção de textos escritos por educadores da equipe, que no dia-a-dia
buscam refletir com crianças, jovens e adultos questões referentes a preconceitos,
discriminações, desigualdades sociais.
Na expectativa de que seja uma viagem de novos encontros, convidamos você a
embarcar conosco!
Um abraço,
Mabel de Melo Faleiro
Coordenadora do Educativo

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Sumário:

Um museu, em uma Praça 8

Introdução 12

Visões da África 18

O Baobá como tradição oral 23

Palmares 27

Ilê Aiyê: reflexões sobre o “lugar” do negro


na sociedade mineira contemporânea 33

Sugestões de Práticas 38

“Irin Ajo”: Resistência e Liberdade 41

Ficha técnica 46

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O Estado sem nome, destacado Atendendo à lógica da planta do projeto
na crônica A mobília de Carlos – com traçados simétricos, amplas ruas
Drummond de Andrade, pode nos e avenidas e uma divisão racional dos

Um museu,
revelar o projeto da construção de espaços –, a Praça da Liberdade foi
cidade de Belo Horizonte, que recebe, construída sobre uma colina aplainada
quando em sua inauguração, destaque – ponto mais alto da cidade naquela
nacional como a primeira cidade época –, e se torna núcleo do poder
projetada do país, e, sua notoriedade, político, buscando exercer a condição de

em uma Praça.
é reforçada por sua construção ter sido centro integrado do Estado.
tutelada pela então recém-instaurada
No dia 12 de dezembro
República do Brasil, em 18892.
de 1897, a nova capital e a Praça da
As construções do antigo Liberdade foram inauguradas,
Curral Del Rey3 foram demolidas no advento, havia apenas três
por não coincidirem com o cenário Secretarias, ainda inacabadas:
projetado para a nova capital do Estado. da Fazenda, Agricultura,
2 Referência retirada do texto Fantasmas de Comercio e Obras Públicas e a
Silvia Coelho1 Belo Horizonte, de Heloísa Maria Murgel Star- Secretaria do Interior. Desse modo, tal
Logo se construiu uma ampla cidade de ling. Pesquisa realizada para a concepção da
Em certo Estado do Brasil, entenderam evento representou o primeiro marco
peregrino horizonte, para onde se sala História de Belo Horizonte, em exposição
espíritos adiantados que a sede do
Governo não devia continuar onde estava: transportaram os servidores públicos da no Memorial Minas Gerais Vale. de ocupação da Praça: Praça do Poder
a capital era pequena, inconfortável, de antiga e mais os pertences de cada um, reins- 3 Visto como um local neutro onde as oligar-
talados em casinhas que cheiravam a tinta
e, posteriormente, se tornou, também,
acesso penoso, impossível sua expansão. quias regionais em disputa não poderiam
fresca e a idéia de progresso. assumir o poder político estadual, foi o local Ponto de Encontro dos belo-horizontinos
escolhido pela Comissão Construtora para e, principal espaço de Festividades.
Carlos Drummond de Andrade erguer a nova capital do estado. Esse vilare-
jo, durante o século XVIII, serviu como ponto A construção do prédio da
1 Bacharel em Estudos Literários pela Univer- para abastecimento, parada e troca de ani-
Secretaria da Fazenda insere-se nos
sidade Federal de Ouro Preto. Educadora no mais aos viajantes que seguiam o caminho
Memorial Minas Gerais Vale. da região das Minas ao Rio de Janeiro. projetos político, arquitetônico e
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paisagístico da Praça da Liberdade Drummond de Andrade: “Condensar aquilo que atravessa essa diversidade, e do Brasil”6.
e suas origens se misturam com as Minas Gerais numa antologia não será o possibilitando o diálogo entre elas;
Dessa forma, torna-se, assim,
próprias origens da cidade. mesmo que prender o mar na garrafa?”. e a Minas Visionaria, mostrando o
o Memorial num convite à
Ao longo dos anos, acompanhando o estado que se projeta para o futuro
Caracterizado como museu experimentação e à apropriação da
desenvolvimento da capital, seu traçado com suas vanguardas, modernismos e
de experiência, o Memorial Minas riqueza cultural do Estado de Minas
foi ganhando novos contornos claros contemporaneidades”5.
Gerais Vale tem à sua disposição várias Gerais.
e a edificação passou por períodos de
linguagens a fim de alcançar as mais No Memorial Minas Gerais Vale Sejam bem-vindos!
reformas e intervenções diversificadas.
diversas formas de conhecimento convivem paisagens convencionais: o Referências:
A última delas, no início da primeira
e formas de expressão de indivíduos saber dos artesãos e artistas do Vale do
década do século XXI – momento em que ALMEIDA, Sandra Regina Goulart,
nos vários séculos. Sua aposta na Jequitinhonha transmitida pelos cantos
Praça do Poder se tornou, de fato, a Praça CARDIA, Gringo, STARLING, Heloisa
imaginação e na experimentação do de sua experiência; uma arte rupestre
do Encontro, com a implementação do Maria Murgel (org.), Minas Gerais. Belo
tempo e espaço é um exercício que não singular e milenar; evoca à memória
que hoje é Circuito Cultural Liberdade. Horizonte: Editora UFMG, 2011.
encerra seu acervo apenas em uma soma Miguilins e Riobaldos; a ancestralidade,
O prédio de “pintura externa em tons
de informações. a luta e a resistência de povos africanos ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala,
de creme na moldura”, de singular
e indígenas; a arquitetura barroca Amendoeira. Rio de Janeiro: Record,
“beleza e elegância da fachada” e Seus 31 espaços expositivos,
única de suas cidades históricas; uma 1987.
com “belo escudo representando as que misturam exposições de longa
Minas encantada e uma Belo Horizonte
finanças do Estado” 4 – que coroa a duração, espaços de convivência INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO
monótona de Carlos Drummond; e,
entrada principal –, volveu-se o Memorial e exposições de curta duração, foram HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS
a vida de famílias que fazem parte da
Minas Gerais Vale, um “espaço-síntese” da pensadas a partir de três eixos GERAIS. Secretaria de Estado da Fazenda.
memória deste Estado, mostrando, que
história e cultura deste Estado. principais: “a Minas Imemorial com toda a Belo Horizonte, 2004.
“cada cidadão, por mais anônimo que
Todavia, nos pergunta Carlos riqueza do passado e o legado histórico STARLING, Heloisa Maria Murgel.
seja, faz parte da história de Minas Gerais
4 BARRETO, Abílio. Belo Horizonte. Memória mais impressionante do Brasil; a Minas Fantasmas de Belo Horizonte. Belo
histórica e descritiva. História Média . apud Polifônica, com todas as várias culturas, 5 Para além da Memória de Minas In: ALMEI-
INSTITUTO ESTADUAL DE PATRIMÔNIO HIS- DA, Sandra Regina Goulart, CARDIA, Gringo,
Horizonte: Memorial Minas Gerais Vale,
as várias linguagens, os vários tempos, 2016.
TÓRICO E ARTÍSTICO. Secretaria de Estado da STARLING, Heloisa Maria Murgel (org.), Minas
Fazenda. Belo Horizonte, 2004. os vários níveis de realidade e tudo Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 6 Idem
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tona algumas reflexões sobre o tema. Festas e Celebrações, Sebastião Salgado e
São escritos, ora embasados em estudos, Fazenda Mineira.
ora vivenciados na nossa prática diária
Destacamos esses espaços, pois
de educadores, que lidam com os mais
perpassam temas como a história de
diversos debates e que fazem da prática
uma África pré-colonial, a colonização
educativa um espaço de diálogos
brasileira e a utilização da mão-de-
enriquecedores.
obra de africanos escravizados – na

Introdução No Memorial Minas Gerais Vale,


e agora, no projeto intitulado Memorial
Itinerante, trabalhamos essa temática
por meio do percurso Africanidades e
mineração, nas fazendas, nos serviços
domésticos e na edificação de muitas
das vilas, hoje cidades mineiras.
Sobremaneira na elaboração de uma
Memória, na qual questões e práticas são cultura afro-brasileira.
apresentadas aos visitantes por meio
Faz-se necessário ressaltar
dos vieses da luta e resistência do povo
que o encontro de três culturas
negro no Brasil, a influência na arte, no
distintas – o ameríndio, o africano e
artesanato, nos costumes e nas religiões
Ana Luiza Teixeira Neves1 Passados 13 anos da o europeu –, que por mais cruel ou
e, principalmente, a diversidade que se
promulgação da Lei nº 10.639, de 9 injusto que tenha sido, colaborou, por
apresenta hoje na nossa sociedade com
Até que os leões inventem as suas de janeiro de 2003, em alteração à Lei meio de resistências, sincretismos e
próprias histórias, esta contribuição.
nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, ligações com a ancestralidade, para que
os caçadores serão sempre os heróis das
narrativas de caça. que estabelece as Diretrizes e Bases da Dentre os 31 espaços os hábitos, crenças e costumes de origem
Provérbio Africano Educação Nacional, com o objetivo de expositivos existentes no MMGV, para africana influenciassem intensamente
incluir no currículo oficial da Rede de este percurso e esta exposição, fez-se um na construção de uma cultura
1 Mestre em História da Arte pela UFMG Ensino a temática “História e Cultura recorte dos seis mais representativos que afro-brasileira, presente até os dias de
(2014). Bacharel licenciada em História pela abordam essa temática: Povo Mineiro,
Africana e Afro-Brasileira”, trazemos à hoje, na arte, no artesanato, nas religiões
PUC-MG (2005). Assistente de Projetos do
Educativo no Memorial Minas Gerais Vale. Vilas Mineiras, Vale do Jequitinhonha, e nos ritos.
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Por meio do Batuque, do Por último, trazemos à tona, com caminhos possíveis para que essa à cultura africana: o Baobá e o Griot.
Samba, do Candombe, da Capoeira, da imagens diversas, seja nas fotografias história seja revista. O primeiro, a árvore símbolo deste
Folia de Reis, do Congado, do culto a de Sebastião Salgado, seja nas pranchas continente, reconhecida como guardiã
Frequentemente, o pensamento
Nossa Senhora do Rosário, dos rituais selecionadas2, uma África mais atual, das memórias, pois é embaixo de suas
sobre o continente africano, gira em
de Candomblé e Umbanda, do culto onde de um lado se apresenta alguns copas o local onde se faz presente a
torno de especulações depreciativas
aos orixás, as tradições africanas, em povos que mais de perto sofreram e transmissão de conhecimento de muitos
ou desfavoráveis a um continente tão
solo brasileiro, proporcionaram a esses sofrem com a seca, a fome, a miséria, dos povos africanos. Esse conhecimento
diverso quanto sua extensão, como
povos – oriundos de regiões distintas guerras civis e conflitos territoriais, é transmitido pelo Griot, outro guardião
nos mostra o texto Visões da África, de
do continente africano – maneiras de e de outro, um continente em pleno da memória, muitas vezes sendo a pessoa
Charles Souza. O autor nos propõe uma
perpetuar suas crenças e fazer com que desenvolvimento social e tecnológico mais velha da comunidade, detentora
ampliação do olhar sobre o continente
muitas delas fossem transmitidas através acompanhando as tendências mundiais. de conhecimentos que fora passados
para além da visão estereotipada e
da oralidade, de geração em geração. de geração em geração, preservando
Sabemos que não foi só como preconceituosa construída pela mídia
Também o artesanato, tão ou pelo senso comum. Por outro viés, o conhecimento dos ancestrais, para
mão de obra escravizada que negro
rica manifestação de ancestralidade não deixamos de lado a abordagem da determinados povos.
trazido da África participou da formação
indígena e africana está fortemente do povo brasileiro; colaborou, também, resistência negra, no texto intitulado Para finalizar, o texto de
presente até os dias de hoje, como para a transformação da sociedade em Africanidades: Palmares, de Lauren Smally Rodrigues, denominado Ilê
podemos perceber nas criações dos vários setores tais como: a religião, a Araújo, onde apresenta formas de Aiyê: reflexões sobre o “lugar” do negro
artesãos do Vale do Jequitinhonha. língua, os costumes. No material que resistência negra no Brasil colonial, tendo na sociedade mineira contemporânea,
Figuras zoomorfas, antropomorfas, aqui apresentado, discutiremos alguns a formação de quilombos como principal que discute as mudanças do
cenas simples do cotidiano, como o elemento de luta e sobrevivência até os pensamento historiográfico construído
2 A exposição de Sebastião Salgado é um dos
cozinhar no fogão à lenha ou o cuidado ambientes que temos no MMGV, e dentre as dias atuais. acerca da imagem do negro,
com a roça, surgem em meio ao barro, séries fotográficas ressaltamos a intitulada A cotejando as narrativas históricas
tragédia africana. As pranchas, com imagens Em outro texto, intitulado
criando uma identidade própria de um dos séculos XIX ao XXI, reavaliando
diversas são instrumento de abordagem uti- Africanidades e Memória: o Baobá como
povo marcado pelo fazer artesanal. lizada nas nossas visitas mediadas e servem, essa construção do pensamento
tradição oral, de Valdir dos Santos, são
muitas vezes, como ponto de partida para a e propondo novas abordagens.
discussão de determinados temas. apresentados dois símbolos caríssimos
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Em um segundo momento,
apresentamos nesse livreto, algumas
Sugestões de práticas usadas em nossas
visitas diariamente 3; além de um texto
narrativo, intitulado Irin Ajo: Resistência
e Liberdade, de Henrique Rocha Bedetti,
onde a história contada só terá um
final definido caso os leitores se sintam
estimulados a desvendar as facetas da
resistência e da liberdade nas minas
setecentistas.

Acreditamos, como educadores,


que com este material, estamos
contribuindo para o enfrentamento de
qualquer tipo de preconceito e que este
sirva como uma ferramenta de apoio
ao professor/educador responsável por
direcionar tais temáticas seja na sala de
aula, seja no espaço museal.

3 Segue anexos materiais de duas dessas


práticas que podem ser utilizadas tanto
pelo professor/educador, quanto pelo
agente cultural, na sala de aula ou em visitas
mediadas.

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passamos a reproduzi-los, em nosso é visto como um lugar onde a
imaginário, acerca daquele território. vida selvagem prevalece sobre a
A África, retratada pela presença humana. Há grandes vazios
grande mídia, geralmente oscila entre populacionais. Os poucos habitantes

Visões
o exotismo da natureza e dos povos apresentados estão dispersos pelo
e as tragédias humanas como, por território e se misturam com a paisagem
exemplo, a fome, as epidemias e as natural. A África mostrada é, por um lado,
uma região com povos que possuem

da África
guerras. É evidente que há paisagens
naturais que impressionam por sua costumes e tradições exóticas e, por
beleza, exuberância e magnitude, outro, uma região de natureza fantástica,
assim como há, também, os problemas um território inóspito, bravio, áspero.
sociais, os conflitos e a miséria. Outro aspecto largamente
Entretanto, é importante que essas visões abordado é o da tragédia humana.
sejam constantemente problematizadas, Guerras, epidemias, calamidades,
repensadas, questionadas, para que não pobreza são fatos exaustivamente
se tome o todo pela parte, ou seja, que apresentados por noticiários, filmes
Charles Junio Souza1 social, cultural, econômica e política.
o continente africano não seja reduzido e documentários. A África retratada é
Contudo, as imagens e notícias
Refletir sobre o continente ao exótico, trágico ou catastrófico. o lugar onde proliferam guerras que
comumente veiculadas por
africano requer pensá-lo em sua Um dos aspectos explorados parecem ser intermináveis, travadas sem
grande parte dos meios de
pluralidade. Terceiro continente mais pela grande mídia é o geográfico. Desse nenhum sentido ou objetivos. África
comunicação – filmes, revistas,
extenso do planeta, a África apresenta ponto de vista, a África apresentada é onde quem não é vítima dos conflitos
jornais, documentários, entre outros –
uma grande diversidade natural, a dos grandes animais como o elefante, armados padece de fome, de sede, de
relativas àquela região, estão repletas
a girafa, o leão; é também a África dos AIDS, malária.
1 Licenciado em História pela de estereótipos, que nos impactam
Universidade Federal de Minas Gerais e grandes rios, das florestas, das savanas,
de forma contundente e frequentemente Epidemias e guerras são
Assistente Pedagógico do Educativo no dos grandes desertos. O continente
Memorial Minas Gerais Vale. realidades inegáveis no continente
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africano. Em Angola, por exemplo, após e há abundância de comida. Se em Compreender a história das Cesária Évora, o músico camaronês
a guerra de independência em 1975, determinado lugar há uma feroz luta nações e dos povos africanos é tarefa Richard Bona, o grupo de rap
seguiu-se uma guerra civil com centenas armada, noutros as crianças vão que acarreta não somente entender angolano Hemoglobina – que
regularmente à escola, de roupa limpa
de milhares de vítimas. A desnutrição o continente a partir da chegada dos gravou o belíssimo rap Sonho
e sapatos lustrados. E a vida familiar
e a mortalidade infantil são questões europeus, mas reconhecer o legado Africano – e a cantora sul-africana Miriam
transcorre normalmente, sem faltar
enfrentadas por muitos países os quais de seus antigos impérios – como Makeba.
alegria. (SILVA, 2012. p.11)
apresentam os mais baixos Índices de os impérios do Mali (XIII-XVII) e de
Refletir sobre a África e os
Desenvolvimento Humano (IDH) do É importante sublinhar que, Gana (VI-XIII) – com suas respectivas
africanos é apreender o outro em
planeta 2. Entretanto, a África não se qualquer reflexão sobre o continente estruturas socioeconômicas e
sua diversidade, sem reduzi-lo a
resume a esses flagelos. implica em um recorte analítico, seja culturais, seus mitos de fundação, lendas
estereótipos. É pensar o continente
social, cultural, político ou econômico. e crenças.
A África vista como um e seus habitantes por meio de
Todavia, é necessário abordagens que
continente com uma história rica e No que tange especificamente diferentes percepções, olhares, visões.
possibilitem outras visões da África
complexa, constituída por diversos ao aspecto cultural faz-se É possibilitar que o outro se apresente
e dos africanos. Abordagens que,
povos e países, com grandes centros necessário ter uma abordagem de diversas formas e não reduzi-los ao
além da tragédia humana, mostrem
urbanos, ainda não é a mais conhecida. ampla buscando fugir do senso autoritarismo de olhares estrangeiros.
as lutas dos africanos em busca de
Assim sendo, é importante ampliar o comum, do corriqueiro, como é, Referências:
melhores condições de vida, que
olhar sobre o continente salientando por exemplo, a questão da
apresentem as lutas de libertação,
que África são muitas. Como afirma musicalidade que quase sempre esbarra OLIVA, Anderson Ribeiro. Os africanos
de descolonização. Que deem voz
Alberto da Costa e Silva, no som dos tambores. É preciso entre representações: viagens reveladoras,
aqueles que lutaram e lutam
compreender que nas culturas olhares imprecisos e a invenção da África
se uma região da África foi contra todo tipo de discriminação,
atacada por nuvens de gafanhotos que africanas o tradicional dialoga e no imaginário Ocidental. Disponível em:
segregação. Visões que possibilitem
devoraram todas as plantações, e nela convive com o moderno. Urge dar http://periodicos.unb.br/index.php/
percebê-los como sujeitos de suas
há fome, nas outras a colheita se fez voz a músicos e cantores africanos emtempos/article/view/2646/2195.
histórias, que valorizem suas culturas,
normalmente, os celeiros estão repletos de diferentes vertentes, Acesso em 12/01/16.
costumes e tradições.
2 UN. Human Development Report 2015 – como a cabo-verdiana
Work for Human Development.
20 21
SILVA, Alberto da Costa e. A África
explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro:

O Baobá
Agir, 2012.
UN. Human Development Report 2015
– Work for Human Development. Dis-
ponível em: http://report.hdr.undp.org/
Acesso em 14/01/2016.
como tradição oral
ARNAUT, Luiz Duarte. História de África
(Séculos XIX e XX): Textos e Documentos.
Disponível em: http://www.fafich.ufmg.
br/luarnaut/Afrika%20docs.html Acesso
em 12/02/2016.

Valdir Rodrigues dos Santos1


expressão, dada às forças sociais
O continente africano é
complexas que se estabeleceram por
múltiplo em saberes e sua magnitude
aproximadamente dois milhões de anos,
perpetua-se em uma gama de sentidos
já que, de seu território, originou-se as
culturais e religiosos, que contribuem
primeiras civilizações humanas, além de
ativamente para a formação da cultura
toda a formação do mundo antigo.
brasileira. A África impõe-se com grande
1 Graduando em Biblioteconomia pela
Universidade Federal de Minas Gerais.

Educador no Memorial Minas Gerais Vale.
22 23
A resistência dos povos dinamismo social” (SANTOS, 1988, p.). palavra, possui status social, é o guardião vinculada à origem divina evocada pelos
africanos e o fluxo diaspórico da memória e da história. antepassados, e esses pressupostos
Embaixo da copa dos Baobás,
levaram aos outros continentes, dão aos griots a simbologia de serem
os anciãos são contadores de histórias Segundo Amadou Hampaté
e principalmente à América, as os mensageiros da tradição.  Desta
que através da oralidade repassam Bâ (1980), no artigo intitulado A
expressões e manifestações tradicionais maneira, os griots assumem o papel de
conhecimentos e memórias das Tradição viva, existem três tipos de
dessas populações, o que agregou mediadores na comunidade em que
tradições e ideias das culturas locais. Griots: os músicos, que tocam qualquer
expressivamente e dialeticamente estão inseridos e preservam a história.
Nesse sentido, os pés do Baobá tornam- instrumento (monocórdio, guitarra,
componentes culturais importantes às
se eixos da vida social, residindo no reino cora, tantã, etc.) são excelentes cantores, O lugar de essência da tradição
matrizes históricas brasileiras existentes.
dos antepassados. preservadores, transmissores da música oral dos Griots é aos pés do Baobá e essa
Uma das representações antiga e, além disso, compositores. Os junção intrínseca fortalece a transmissão
Quando se fala em tradição
emblemáticas da África – o Baobá ou griots “embaixadores” e cortesões são dos saberes e ambos representam a
africana e suas formas de expressão,
Baobab, em Angola Embundeiro – responsáveis pela mediação entre as valorização da tradição e da cultura
a associação se dá pela reminiscência
é a grandiosa árvore reconhecida famílias em caso de desavenças. Os africana.
oral ou oralidade, que se encontra
como guardiã de memórias e histórias genealogistas, historiadores ou poetas
presente no cotidiano das comunidades A história contada pela tradição
tradicionais. Sua imponência é refletida (ou os três ao mesmo tempo) são
africanas. Ela é concomitantemente: oral é fator marcante no cotidiano
em sua própria constituição, pois tem a igualmente contadores de histórias e
religião, conhecimento, ciência, história, dos africanos e corresponde às suas
capacidade de sobreviver por séculos, o grandes viajantes.
divertimento e recreação, que fundada memórias e entendimentos de vida.
que analogamente denota a disposição
na experiência, conduz o homem à sua A educação tradicional inicia- No texto de Mia Couto evidencia-se tal
desses povos em resistirem no entrelaçar
totalidade enquanto parte de um todo se na família e encontra na comunidade “a maior parte dos habitantes da minha
dos tempos.
amplo. a figura do Griot como representante terra não sabem ler nem escrever. Mas
O Baobá fixa-se como símbolo máximo da tradição e da transmissão sabem contar histórias. E sabem escutar.”
Essa tradição oral confere
da cultura africana, na medida em que do conhecimento entre as gerações, (COUTO, 2008, p. 38).
o surgimento de outro símbolo da
avança pelo tempo e eterniza gerações. preservando assim a ancestralidade.
transmissão do conhecimento, o Griot, Assim,  a memória, a história e
Segundo Milton Santos, “estamos A relação entre o homem e a palavra
esse goza de grande liberdade da a tradição compõem o quadro cultural
diante de um fixo a magnetizar fluxos do é para eles sagrada porque está
24 25
do continente africano e seus reflexos
são marcadamente encontrados na
composição social e cultural brasileira.
Referências:

COUTO, Mia. O gato e o escuro. Ilustra-


ções de Marilda Castanha. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2008.

Palmares
HAMPATÉ BÂ, Hamadou – A tradição
viva, em História Geral da África I. Meto-
dologia e pré-história da África. Organi-
zado por Joseph Ki-Zerbo. São Paulo, Ed.
Ática/UNESCO, 1980, pp.181-218.

Lauren Soledad Rial Araújo1 escravizados. Entre elas, destaca-se a


SANTOS, Milton. Metamorfoses do espa-
formação dos quilombos, consolidada no
ço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988. Durante todo o período em que
imaginário2 brasileiro como um sinônimo
o regime escravista vigorou no Brasil,
de luta dos negros contra a escravidão.
WALDMAN, Maurício. Templos e flores- várias foram as estratégias de resistência
tas: metamorfoses da natureza e natu- – fugas, sabotagens, assassinatos, 2 O imaginário, segundo Backzo (1985), é for-
ralidades da metamorfose. São Paulo: rebeliões, empreendidas pelos mado por “componentes míticos e imaginais”
que reúnem pensamento, sentimento e ação
FFLCH-USP, 1992. 1 Bacharel e Licenciada em História pela Uni- do sujeito. Além de ser uma das formas regu-
versidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), ladoras da vida, o imaginário é apropriado,
especialista em Culturas Políticas, História e construído e internalizado pelos indivíduos.
Historiografia pela Universidade Federal de Ele não é apenas uma maneira de interpreta-
Minas Gerais (UFMG) e educadora no Memo- ção da realidade, mas contribui para a cons-
rial Minas Gerais Vale. trução da mesma.
26 27
O mais emblemático foi o quilombo de de semelhante a um quisto, ou grupo pelo reconhecimento do território e tambores para homenagear suas
Palmares, localizado na Serra da Barriga fechado, mas, pelo contrário, constituía- certificação5. divindades sincretizadas em seus santos
em Alagoas, que chegou a contar, em se em pólo de resistência que fazia de devoção como Nossa Senhora do
convergir para o seu centro os diversos Além da formação dos
1670, com aproximadamente vinte mil Rosário, São Benedito e Santa Efigênia e
níveis de descontentamento e opressão quilombos, aspectos presentes no
pessoas.3 coroar o Rei Congo e a rainha Ginga, em
de uma sociedade que tinha como forma cotidiano dos negros como crenças,
referência à memória de seus lugares de
Os quilombos eram povoações de trabalho fundamental a escravidão costumes, tradições, danças, culinária,
(MOURA, 1981: 3, apud VIEIRA, 2015). origem.
formadas geralmente em locais de também foram elementos de luta
difícil acesso e que tinham sua própria Mesmo combatidos e contra a escravidão. Tais mecanismos A festa de Congado, hoje
organização social, econômica e política. destruídos4 durante o período contribuíram para a formação cultural tombada como bem imaterial pelo
Nessas comunidades as pessoas viviam colonial, os quilombos contribuíram brasileira e reverberam até hoje. IPHAN6, existe em vários lugares do
livres do jugo da escravidão e, portanto, para a desestabilização do sistema Isso mostra que a resistência negra país. Em Minas Gerais, é considerada
eram espaços buscados pelos escravos escravista e a força dessa resistência foi dinâmica e abrangente, não se uma das manifestações culturais
em fuga. É importante ressaltar que persiste até hoje. Exemplo disso são restringindo aos atos de violência física mais significativas – existem cerca
os quilombos não eram fechados e as comunidades remanescentes de ou à rebeldia dos escravos. de 1.000 grupos por todo o estado7
isolados da sociedade, ao contrário, eles quilombos existentes em todo o Brasil. - e a diversidade dos ritos varia de
Um exemplo da continuidade
mantinham contato com outros grupos Em Minas Gerais, são aproximadamente comunidade para comunidade. De
dessa resistência e de sua influência
e recebiam outras pessoas além dos 400 territórios quilombolas distribuídos maneira geral, o Congado remete à luta
na sociedade são as festas e rituais
escravizados: em 155 municípios e que mantêm dos escravos contra o jugo da escravidão
religiosos, como o Congado. Impedidos
Era, como vemos, uma vivas as tradições culturais de origem e pela manutenção de suas raízes
de viver suas tradições plenamente e
concordata que existia entre quilombos afro-brasileira. Muitos ainda batalham africanas. Por isso, pensar essa festa
forçados a seguir a religião católica, os
e os grupos e segmentos marginalizados 4 O quilombo de Palmares, por como uma estratégia de resistência que
negros utilizaram suas músicas, danças,
ou oprimidos pelo latifúndio escravista. exemplo, foi destruído em 1695 pela expedi- 6 BRETTAS, Aline Pinheiro. FROTA, Maria
ção de Domingos Jorge Velho, um ano após a 5 Na página www.cpisp.org.br estão Guiomar da Cunha. O registro do Congado
O quilombo, como vemos, nada tinha
morte de seu líder Zumbi. O local atualmente disponíveis alguns importantes dados sobre como instrumento de preservação do patri-
3 Conforme dados do site do Parque é tombado pelo IPHAN e abriga um Parque comunidades quilombolas de Minas Gerais mônio mineiro: novas possibilidades. P.40-45
Memorial Quilombo dos Palmares: www.pal- Memorial aberto à visitação. que recriou am- com base nas pesquisas do Centro de Docu- 7 Vídeo “Povos Africanos” da sala “O Povo
mares.gov.br bientes do antigo quilombo. mentação Eloy Ferreira da Silva. Mineiro” - Memorial Minas Gerais Vale.
28 29
ainda persiste é tão importante: nela e são comuns na mesa dos brasileiros, também: não é possível dissociar a 2010/dez. 2011
através dela os costumes, a musicalidade como o angu, por exemplo- até a música da religiosidade e a culinária das
e as tradições se resguardam no tempo. linguagem, esta influência muitas vezes palavras, por exemplo. ARAÚJO, Anderson Leon de Almeida.
não é reconhecida. Palavras de origem DUPRET, Leila. Entre Atabaques, sambas
Na música brasileira é inegável A contribuição da cultura
africana, ao lado da matriz indígena e orixás. Revista Brasileira de Estudos da
a influência dos batuques africanos, africana para a formação do país se
contribuíram de forma significativa para Canção – ISSN 2238-1198 Natal, v.1, n.1,
cujos tambores têm um significado deu em diversos âmbitos e permanece
o desenvolvimento da língua portuguesa jan-jun 2012. Disponível em: www.rbec.
especial para os rituais do candomblé, viva. A resistência negra hoje se dá não
no Brasil, não só com um extenso léxico ect.ufrn.br
da umbanda, dos congados, e que só pela continuidade das tradições
como neném, babá, cafuné, dengue 9,
ultrapassaram as fronteiras da religião, culturais, mas pela luta do povo negro
mas também nas maneiras de falar da BACZKO, Bronislaw. A imaginação social.
pois contribuíram para a formação de por igualdade de oportunidades sociais
linguagem popular10. In: Leach, Edmund et Ali. Anthropos-
ritmos tipicamente brasileiros como e econômicas, pela valorização da
Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/
o samba e o axé. Além destes, o hip- Portanto, juntamente com os identidade negra e pelo fim do racismo.
Casa da Moeda, 1985, p. 296-332.
hop8 e o rap são gêneros musicais quilombos, foram múltiplas as maneiras Reconhecer essas variadas formas de luta
contemporâneos que evocam a luta que os negros encontraram para negar é perceber tanto o negro escravizado do
BENNET, Marcus. Os quilombolas e a
por representarem o fortalecimento da a condição de escravo a qual foram período colonial como o negro cidadão
resistência. Revista Palmares, ano IV,
cultura negra. submetidos ao longo da história do brasileiro de hoje enquanto sujeitos
número 6, março 2010.
Brasil. É visível a permanência dessa ativos, protagonistas de sua própria
A cultura africana está
herança cultural e difícil estudar cada história e transformadores da sociedade
fortemente presente no cotidiano: BRETTAS, Aline Pinheiro. FROTA,
mecanismo separadamente, pois como por meio de todo seu legado cultural.
passando pela culinária- cujos pratos Maria Guiomar da Cunha. O registro
são aspectos culturais, eles se relacionam
8 Movimento cultural surgido em meados dos do Congado como instrumento de
anos de 1970 nos bairros afrodescendentes e mutuamente e com outras culturas Referências:
latinos de Nova York. Composto por quatro 9 Livro Memória das Palavras – A cor da preservação do patrimônio mineiro:
elementos, o graffiti, o breakdance, o DJ cultura. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. novas possibilidades. Revista Eletrônica
e o rap, o movimento se imbui de estilos 10 Um exemplo é a utilização de diminutivos Africanismos no Português do Brasil. do Programa de Pós-Graduação em
próprios e marcantes para dar voz ativa às para indicar intensidade. ARAGÃO, Maria do
comunidades marginalizadas. O Hip-Hop tem Socorro Silva. Africanismos no Português do Revista de Letras - Vol. 30 - 1/4 - jan. Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS
na música rap sua vertente mais expressiva. Brasil. P. 11-13.
30 31
Unirio | MAST - vol. 5 no 1, 2012. http://www.cpisp.org.br/
http://serradabarriga.palmares.gov.br/
Manifestações culturais. Revista

Ilê Aiyê:
Palmares, ano V, número 5, agosto 2009. Vídeo “Povos Africanos” – Sala “O povo
mineiro” – Memorial Minas Gerais Vale
Memória das Palavras. Coleção A cor da

reflexões sobre o “lugar”


Cultura.

PROENÇA, Wander de Lara. Debates


historiográficos da escravidão. Anais
eletrônicos da XXIV Semana de História:
do negro na sociedade
“Pensando o Brasil no Centenário de
Caio Prado Júnior”, 2007.
mineira contemporânea
VIEIRA, Flávia. Resistência e luta
dos movimentos negros no Brasil:
da rebeldia anônima na sociedade Smally G. Rodrigues1
escravocrata ao enfrentamento
Ilê-ayê, em yorubá significa “casa importantes e necessárias para que o
político na sociedade de classes.
no mundo” e reafirma a presença e o lugar negro eleve sua autoestima, combata
Publicatio:UEPG Ciências Sociais
do negro na sociedade. Essa presença é o preconceito e aprenda a valorizar o
Aplicadas., Ponta Grossa, 23 (2): 211-
ressignificada a partir da celebração, outro e suas raízes étnico-culturais.
219, jul./dez. 2015
valorização, preservação e transmissão
Pensar o lugar que o negro
dos traços culturais africanos. Ações
Disponível em <http://www.revistas2. ocupa nos espaços de sociabilidade
1 Licenciado em História pelo Centro Univer-
uepg.br/index.php/sociais> dos centros urbanos e rurais, assim
sitário de Belo Horizonte - UNI-BH e Educador
no Memorial Minas Gerais Vale. como nos cargos empregatícios, nas
32 33
vagas universitárias e no imaginário da que deseja e lhe interessa conhecer. de vista do presente, novas fontes, novas mas ressaltando aspectos culturais do
população, demanda uma análise das A história é necessariamente escrita técnicas, novos conceitos e teorias. cotidiano que mostram esses sujeitos
construções simbólicas discursivas a e reescrita a partir das posições do Assim, colocaremos algumas sugestões como seres humanos e agentes
respeito desses sujeitos. As formas como presente, lugar da problemática da de abordagens que contribuirão para históricos que são.
as pessoas veem, se veem e são vistas pesquisa e do sujeito que a realiza” (REIS, revermos e entendermos os lugares que
Levando em consideração os
nas sociedades humanas relacionam-se 2006, p.96). os negros ocupam na sociedade mineira
argumentos da pesquisadora Nilma
com as construções simbólicas dialéticas contemporânea e suas respectivas
A figura do negro foi Lino Gomes, para darmos visibilidade e
entre discurso e realidade social. Como contribuições culturais.
retratada, neste período, com base o devido reconhecimento a esses povos,
nos aponta o historiador José Carlos
em arquétipos que transmitiam uma As pesquisas recentes do precisamos assentar esse grupo étnico-
Reis, “(...)o discurso e a realidade social se
imagem coisificada. Visto como objeto historiador Eduardo França Paiva racial em um lugar na história mineira
orientam reciprocamente.” (REIS, 2006,
e mercadoria, suas condições humanas advertem-nos para não tratarmos a e brasileira. Isto significa possibilitar
p.15).
de sociabilidade e mobilidade foram cultura negra e a formação do povo a circulação de outras informações
No final século XIX e começo do apagadas, o que acabou por repercutir mineiro como uma manifestação sobre os africanos escravizados no
XX, as narrativas históricas determinaram no discurso e nas práticas sociais, pois homogênea, pois, “(...) uma população Brasil e seus descendentes, como por
lugar de pouco destaque para as estas representações históricas retornam é formada não apenas por sua exemplo, recortes que reconheçam
representações dos povos africanos e à realidade cotidiana, reproduzindo-a – vivência biológica em um presente “(...) a sabedoria, a política, a técnica, a
suas influências na sociedade brasileira. ou alternando –, influenciando, assim, no qualquer, mas, também, por culturas, arte, o conhecimento, a musicalidade,
Essas representações realizadas por tratamento preconceituoso em relação a memórias e conhecimentos, que são a religiosidade (...)”, dentre outras
alguns intelectuais, sujeitos históricos esses sujeitos. herdados parcialmente por gerações manifestações (GOMES, 2010, p.3).
do seu próprio tempo, repercutiram nas que as sucedem.” (PAIVA, 2010, p.3).
O que propomos aqui se Um exemplo de discussão que
redes de ensino e ajudaram a reforçar Neste esteio, podemos abordar sobre
relaciona com as pesquisas mais pode ser trazida e problematizada no
o preconceito acerca desses povos e outra perspectiva a influência dos
recentes em relação à constituição tempo presente, mostrando a inserção
suas manifestações. Diante do exposto, povos africanos na cultura mineira,
do nosso povo, pautadas em uma e mobilidade nas minas coloniais
apoiado em Reis, consideramos que não desconsiderando o peso que a
reavaliação do passado e das suas setecentistas, está nas pesquisas de
“cada presente seleciona um passado escravidão exerceu sobre esses povos,
interpretações, de acordo com pontos Paiva, que afirmam que os negros e
34 35
mestiços, ocuparam “(...) praticamente sujeitos. Dessa forma, através de uma a compreender melhor o tempo em REIS, José Carlos.; FUNDACAO GETULIO
todas as categorias econômicas, análise que contemple o universo cultural que vivemos e transformá-lo a partir de VARGAS. As identidades do Brasil: de
politicas, culturais e administrativas.” mineiro e brasileiro conectado, e não demandas do presente vivido. Varnhagem a FHC. 8. ed. Rio de Janeiro:
(PAIVA, 2010, p.11). Segundo esse autor, fragmentado “(...) em porções culturais, (...) a interpretação Editora Fundação Getúlio Vargas, 2006.
senhores e escravizados, em alguns econômicas, políticas, religiosas, histórica toca indiretamente em sua 278 p.
casos, trabalhavam lado a lado no filosóficas, etc... , como se fossem vida os homens, que passam a se
cotidiano dividindo comida, ganho e partes soltas, montadas à revelia da compreender melhor e mudam. Assim,
teto. história” (PAIVA, 2010, p. 15), poderemos os sujeitos históricos informados pelas
demonstrar, para as gerações presentes interpretações, localizados, quando
Concluindo, procuramos sonharem com o futuro e o passado,
e futuras, que a instituição escravocrata
apresentar o passado e suas terão menos pesadelos, e quando
não foi capaz de apagar os ideais, os
representações como algo que continua viverem, no presente, encontrarão os
desejos e a capacidade de reação e
agindo sobre o presente e projetando- melhores meios e termos para expressar
mudança herdada da ancestralidade seus interesses e realizar os seus projetos.
se no futuro. Apresentamos o passado
dos reinos africanos. Sendo assim, a (REIS, 2006, p.20)
como construção simbólica que interfere
presença do negro em Minas Gerais será
no social e corrobora por ajudar a definir
vista e compreendida como a do “(...) Referências:
nosso lugar na sociedade. Buscamos
sujeito ativo que participou e participa
tratar o conhecimento histórico como
da vida social, econômica, cultural e dos PAIVA, Eduardo França. Povos africanos,
debate capaz de ser reformulado ou
destinos mineiros.” (GOMES, 2010, p.1). o povo mineiro: definições, histórias,
rejeitado pelas demandas sociais atuais.
representações. Belo Horizonte: MMGV.
Finalizando, deixamos uma
Podemos afirmar que a história
reflexão de José Carlos Reis, que
do povo negro, e suas influências, estão
nos ajuda a compreender as forças GOMES, Nilma Lino. Negros, minas e
sendo descobertas, descortinadas
discursivas que emergem nas sociedades liberdade. Belo Horizonte: Memorial
e reescritas no século XXI, pois essa
no tempo e como a desnaturalização de Minas Gerais Vale, 2010.
reelaboração historiográfica se
processos históricos pode nos ajudar
transformou em exigência desses
36 37
Reflexões: as pessoas são Dica: Não é difícil encontrar
todas iguais? O que seu colega tem de essas imagens na internet. Procure
diferente de você? E o que vocês têm em fotografias que retratem cidades
comum? Você acha importante prestar desenvolvidas e outras de paisagens

Sugestões de
atenção nas outras pessoas? Por quê? naturais, savanas, de diferentes países
Pranchas – Visões da África africanos para que os alunos percebam

Práticas
que existe esse estereótipo e possam
Materiais: fotografias atuais de
desconstruí-lo. Não se esqueça de
países da África.
colocar a legenda com o nome da cidade
Objetivos: Desconstruir e do país no verso da fotografia.
estereótipos existentes sobre a África, Palavras de origem africana
por exemplo, de que é um lugar
Materiais: fichas com as palavras
homogêneo onde há somente miséria
escritas ou imagens que as representem.
ou animais selvagens.
Objetivos: provocar a reflexão
Procedimentos: Mostrar as
Espelhos cada aluno um espelho e pedir que de que a cultura africana está bem
imagens para os alunos sem dizer de
formem duplas. Depois de formadas próxima de nós, está em nosso
Materiais: pequenos espelhos onde são e perguntar que lugares são
as duplas, um virará de costas para o cotidiano, como no caso de palavras que
de bolso. aqueles. Depois que eles disserem suas
outro. De costas eles deverão observar o fazem parte da língua portuguesa, e,
hipóteses trazer as reflexões.
Objetivos: o objetivo desta colega através do espelho. Diga para que com isso, promover o entendimento da
prática é estimular a percepção do Reflexões: por que ficamos importância dessa cultura.
eles observem os detalhes do rosto do
outro para que as diferenças entre surpresos ao descobrir que essas
colega, como o formato do nariz, a cor Procedimentos: Selecionar
os indivíduos sejam reconhecidas, imagens são de países da África? O que
dos olhos, o cabelo. Após o momento de palavras de origem africana ou imagens
valorizadas e respeitadas. estamos acostumados a ouvir sobre este
observação, trazer os questionamentos que as representem que fazem parte
continente? O que essas imagens nos
Procedimentos: Entregar para abaixo. do nosso vocabulário. As palavras e/
dizem sobre a África?
38 39
ou imagens podem ser usadas de http://www.geledes.org.br/
diversas formas. Os alunos podem palavras-de-origem-africana-
pesquisar sobre a origem delas, criar no-vocabulario-brasileiro/

“Irin Ajo”*:
narrativas utilizando algumas palavras
ou até mesmo fazer um jogo de mímica. http://www.afreaka.com.br/notas/a-
Também com base nas palavras, pode- influencia-africana-na-formacao-da-

Resistência e Liberdade
se iniciar uma investigação sobre a lingua-portuguesa-no-brasil/
influência da cultura africana em outros
aspectos, como culinária, costumes,
músicas, por exemplo. *Irin Ajo significa jornada ou viagem no idioma Iorubá.

Reflexões: Quais dessas palavras


vocês utilizam no dia-a-dia? De que
forma a cultura africana contribuiu para
a formação da cultura brasileira? Como
podemos perceber a cultura africana em
nosso cotidiano?
Henrique Rocha Bedetti1 interesses a todo custo, não se fazem de
Dica: Escolha palavras rogados para fazer valer sua autoridade
Estamos nas Minas Gerais
que estejam mais próximas da e poder. Senhores donos de grandes
em meados do século XVIII. Época de
realidade dos alunos. Nestes sites extensões de terra, de jazidas de ouro
ganância, disputas, sonhos, lutas e
você pode encontrar algumas: que se colocam acima do bem e do mal,
resistências. Época de homens poderosos
se posicionam como donos de pessoas
e abrutalhados, desejosos por riquezas
http://www.acordacultura.org.br/sites/ que sob sua autoridade são obrigadas
infinitas. Dispostos a defender seus
default/files/kit/Memoria_MEC.pdf a sustentar um ambiente de riqueza,
1 Henrique Bedetti é graduado em História
pelo Uni-BH e educador no Memorial Minas conforto e bem-estar, porém, sob a
Gerais Vale.
40 41
chancela do trabalho árduo e abusivo. humanos e sim como coisas, como celebração e culto que poderiam ter mais próximo possível das suas origens,
Grandes fazendeiros, mineradores e mercadorias. alguma semelhança com sua terra natal. ligados a seus antepassados africanos.
suas mentes ofuscadas pelas grandes Africanos e afrodescendentes faziam Essas pessoas faziam de um lugar ermo
Ainda que vivendo sobre tão
riquezas que podem arrancar da terra, de tudo para não perder o vínculo com (aos olhos dos senhores e capitães do
doloroso sofrimento esses africanos
tirar os direitos daqueles que para eles suas raízes e ao mesmo tempo suportar mato) sua nova morada, seu território.
e afro-brasileiros não se davam por
trabalham. a dureza da vida na nova terra. Lugar onde plantavam e colhiam seu
vencidos. Mesmo que trazendo como
sustento. Lugar onde crenças e culturas
Época de mulheres, homens e propriedade material apenas as roupas A relação entre senhores e
eram respeitadas e praticadas, onde
crianças também silenciadas pelas mais que lhes cobriam os corpos, esses escravos gerou inúmeros conflitos,
voltavam às suas raízes, onde os sujeitos
duras penas. Sujeitos que outrora eram sujeitos desembarcavam no Brasil perseguições e revoltas. Qual ser
podiam viver em sociedade de maneira
livres, mas que foram sequestrados, munidos de outras riquezas, que humano com seu direito à liberdade,
respeitosa e digna.
arrancados de sua terra natal, a África. E autoridade, castigo ou abuso nenhum sendo violado em todos os sentidos,
que hoje, no tempo em que se propõe poderia arrancar-lhes. Na diáspora, se manteria passivo? Nenhum! Qual é É evidente que os quilombos
esse desafio, já não sofrem apenas negras e negros, traziam consigo a o sujeito que não se rebelaria frente eram mal vistos pelos senhores de
a distância da terra, dos costumes e propriedade intelectual, saberes e a essa situação? Esse sentimento de escravos, mineradores, autoridades. Eles
crenças, mas sofrem à distância de três fazeres, práticas culturais e religiosas inconformismo estimulou os escravos representavam uma ameaça ao sistema
gerações em relação aos primeiros tão sublimes e importantes que o forte a se rebelarem contra os abusos de de produção colonial e ao patrimônio dos
entes que atravessaram o atlântico nos apego a elas era a única estratégia para seus senhores. É nesse ato de rebeldia, poderosos, além de ser um prenúncio de
famigerados navios negreiros. Sobre o que esse povo não se anulasse tão longe clamando por liberdade, que surgem os uma revolta ainda maior que poderia
braço forte da escravidão, gerações se de sua terra natal. Arranjos estratégicos quilombos. Negras e negros fugiam das surgir da união dos quilombolas e assim
formaram em terras brasileiras e sofreram eram necessários, já que os senhores de fazendas ou minas em que trabalhavam pôr fim ao sistema escravagista. É nesse
os mesmos castigos. A eles tudo era escravos não aceitavam as manifestações e se reuniam em locais distantes de cenário que a aventura se desenrola.
relegado, até sua própria personalidade. culturais e religiosas daqueles de quem onde eram explorados e de difícil acesso.
A busca aos quilombos e seus
Eram submetidos a um tratamento tão exploravam mão de obra. Portanto, Nesses locais eles se tornariam mulheres
integrantes se acirrava nesse período
agressivo e desumano que já não eram muitas vezes aproximavam seus ritos e homens livres. Organizavam um
do século XVIII. Quando descobertos, os
mais vistos pelos senhores como seres dos ritos católicos, usavam locais de modus vivendi e um modus operandi o
quilombos eram brutalmente atacados
42 43
e suas populações sofriam castigos dos vilarejos de São Miguel de Piracicaba agente cultural pode criar narrativas e
terríveis, quando não encaravam a (Rio Piracicaba), São João do Morro atividades com base nos conteúdos de
própria morte. O clima de tensão Grande (Barão de Cocais), Santana do História, Literatura, Biologia, Geografia
aumentava, era preciso lutar pela Rosário (Itabira) e São Gonçalo (São e Artes, que dialogam com as temáticas.
sobrevivência. Gonçalo do Rio Abaixo) partem de seus
Aborde questões sobre traços
territórios e rumam sentido à Vila Rica. A
Boatos de toda ordem culturais africanos e afro-brasileiros,
ideia era conhecer aquele que tanto os
circulavam por toda a Capitania, saberes e fazeres, peculiaridades e
inspirou sonhos de liberdade, além de
principalmente na região da bacia curiosidades comuns às regiões citadas
buscar apoio e orientação para unir esses
do Rio Doce, próxima à Vila Rica. No inicialmente no texto. Estimule os
quilombos na “Mina da Encardideira”
entanto, dois deles ganhavam destaque: alunos a falarem sobre suas origens e
junto a Chico Rei e seu povo.
o primeiro espalha a notícia de que os seus conhecimentos prévios. Assim é
quilombos estavam sob forte vigilância e Seria possível fundar um reino facilitado o entendimento acerca da
perseguição; o outro enchia de esperança africano em Minas Gerais? grande importância do povo negro para
homens e mulheres quilombolas. A a formação da cultura e da sociedade
Quais desafios os quilombolas
existência de um rei africano em Minas mineira bem como a trajetória de
encontrariam pelos caminhos?
Gerais. Homem que fora rei em África mulheres e homens que circulavam
e agora era rei nas Minas Gerais. Após Que surpresas a região os pelas Minas Gerais do século XVIII. Povos
longo período de sofrimento e trabalho reservaria? que enfrentaram dificuldades e desafios
árduo ele consegue comprar sua própria Entender e desvendar os para manterem-se vivos e preservar sua
liberdade. Seu nome era Chico Rei. Dono caminhos e arranjos que levaram à cultura e história e, principalmente, o elo
de uma mina de ouro em Vila Rica, Chico formação da resistência quilombola com a origem africana.
Rei logo se torna referência para seus em Minas Gerais pode ser além de
pares, chamarisco à luta e à resistência. uma grande e interessante aventura,
Frente à crescente tensão, uma forma muito eficaz de se estudar
lideranças quilombolas das imediações o período em questão. O educador ou
44 45
Ficha técnica:
Gestor
Wagner Tameirão

Coordenadora do Educativo
Mabel Faleiro

Educadores proponentes
Ana Luiza Neves
Henrique Bedetti
Silvia Coelho

Educadores colaboradores
Caroline Oliveira
Charles Souza
Lauren Rial
Marcela Apgaua
Nancy Mora Castro
Smally Rodrigues
Valdir Santos

Revisão de Textos
Ana Luiza Neves
Henrique Bedetti
Mabel Faleiro
Silvia Coelho

Projeto gráfico e ilustrações


Nancy Mora Castro

Agradecimentos
Anna Cláudia d´Andrea
Camila Abud
Carla Vimercate
Maria Alice Santos
Maristella Medeiros
Equipe Educativo MMGV
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