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Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Abril de 2011

Excertos

Detenção de Arma Proibida: Catana

Factos provados na 1.ª Instância:

10. No dia 6 de Janeiro de 2009, a PSP apreendeu cinco pratas com resíduos de produto
estupefaciente, dois pára-quedas (plásticos circulares) e um saco com recortes circulares, que se
encontravam misturados com os resíduos domésticos num interior de um saco plástico de cor
verde que foi lançado no contentor do lixo na rua da residência dos arguidos, pela arguida
MR....

11. No dia 16 de Janeiro de 2009, foram apreendidos na residência dos arguidos os objectos
aludidos no auto de busca de fls. 121-122, que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos
legais, designadamente: uma televisão de marca Grundig, Davio 14, de cor cinza, um telemóvel
de marca Samsung, SGH-F250, um telemóvel de marca Nokia, N80, um telemóvel de marca
Motorola, C189, um telemóvel de marca Samsung, SGH-F25Q, um telemóvel de marca Sony
Ericsson, W300, um telemóvel de marca Sharp, GX25, uma bicicleta Decathlon, Rochrider, um
leitor de DVDs de marca Roadstar, DVD 220X, uma playstation de marca Sony SCPH9002, um
estojo lite Weight LS300 com uma balança no seu interior, um Joystic GIN1 com respectivo
cabo, TV 16Bit, uma embalagem de batatas fritas de marca pringles contendo no seu interior
uma bolsa de cor vermelha e quadrados pretos, contendo no seu interior uma colher e recortes de
sacos plásticos de cor branca, um tabuleiro contendo no seu interior a balança decimal já
referida, uma caixa de arrumação contendo no seu interior um objecto metálico de cor verde,
utilizado para fumar haxixe, uma caixa de madeira Grayner para misturar tabaco com cannabis,
uma caixa contendo no seu interior recortes de plástico de cor branca, um tubo adaptado
artesanalmente em cachimbo, para fumar estupefacientes, três pratas com resíduos, em alumínio,
duas pratas, um tubo em prata para fumar estupefaciente e vários recortes de sacos de plástico de
cor branca, rolos de papel de prata de cozinha, uma faca de cozinha de marca Alce e uma
catana de marca Verdugo, a primeira com o comprimento total de 25 cm, com punho em
plástico, de cor preto e comprimento de 11 cm e lâmina em inox, dotada de superfície
cortante e perfurante com o comprimento de 14 cm e a segunda dotada de uma lâmina em
aço, cortante e perfurante, com as inscrições “verdugo”, com o comprimento de 41 cm,
vulgarmente conhecido por “catana”, com 61 cm de comprimento total e punho em
madeira rígida, com 20 cm de comprimento.
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18. O arguido RS... conhecia a natureza do objecto vulgarmente conhecido por “catana” que
detinha em seu poder.

19. Agiu o arguido RS... deliberada, livre e conscientemente, querendo e sabendo que sem que
para tal se encontrasse autorizado e fora das condições legais e em contrário das prescrições da
autoridade competente, detinha consigo um objecto dotado de uma lâmina em aço, cortante e
perfurante, com as inscrições “verdugo”, com o comprimento de 41 cm, vulgarmente conhecido
por “catana”, com 61 cm de comprimento total e punho em madeira rígida, com 20 cm de
comprimento, objecto cuja natureza conhecia, não sendo titular da licença exigida pela lei.

17. A arguida MR...conhecia a natureza do objecto, normalmente designado de “catana” que


detinha em seu poder e agiu esta arguida deliberada, livre e conscientemente, querendo e
sabendo que sem que para tal se encontrasse autorizada e fora das condições legais e em
contrário das prescrições da autoridade competente, detinha a catana descritas e examinada a fls.
423, objecto cuja natureza conhecia, não sendo titular da licença exigida pela lei, sabendo que
esta sua conduta era proibida e punida por lei.

Conclusões:

Para condenar o ora recorrente pela prática de um crime de detenção de arma proibida o tribunal
recorrido disse, em substância : « (...) o arguido conhecia a natureza do objecto vulgarmente
conhecido por “catana” que detinha em seu poder e que agiu o arguido RS... deliberada, livre e
conscientemente, querendo e sabendo que sem que para tal se encontrasse autorizado e fora
das condições legais e em contrário das prescrições da autoridade competente, detinha consigo
um objecto dotado de uma lâmina em aço, cortante e perfurante, com as inscrições “verdugo”,
com o comprimento de 41 cm, vulgarmente conhecido por “catana”, com 61 cm de
comprimento total e punho em madeira rígida, com 20 cm de comprimento, objecto cuja
natureza conhecia, não sendo titular da licença exigida pela lei (...) à “catana”, que se trata,
efectivamente, de uma arma branca, tal como esta se mostra definida no artigo 2º nº1 l) da lei
5/2006, devendo ser classificada como arma de classe A, nos termos do artigo 3º nº2 f) por não
ter afectação ao exercício de qualquer das actividades aí mencionadas, nem o arguido, aliás,
justificou a sua posse naquelas circunstâncias. (...) »

Neste particular assiste razão ao recorrente.

Sendo inquestionado e inequestionável que, pelas suas características, a catana apreendida é


uma arma branca, é também sabido que é um instrumento usado, por exemplo, na agricultura e
na floresta, e que foi particularmente introduzida em Portugal com a vinda de pessoas das ex-
colónias de África, onde era um instrumento de uso corrente nessas mesmas actividades.
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O artigo 2.º-1-l) da Lei n.º 572006, de 23-2, define arma branca como « (...) todo o objecto ou
instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de
comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a
lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões». E o art. 3.º dessa
lei dispõe : « Classificação das armas, munições e outros acessórios : 1 - As armas e as
munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de
perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização. 2 - São armas, munições e acessórios
da classe A: (...) d) As armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objecto; e)
As facas de abertura automática, estiletes, facas de borboleta, facas de arremesso, estrelas de
lançar e boxers; f) As armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas
venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo
seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção; g) Quaisquer engenhos ou
instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão
(...) ».

Assim a lei, na parte que nos interessa, diz que é proibida a detenção, uso e porte de armas
brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que
possam ser usados como arma letal de agressão.

Ora, a catana não pode ser considerado arma proibida, pois que nem apresentava disfarce, nem é
um objecto sem aplicação definida. Pois «Arma com disfarce é aquela que encobre a sua
verdadeira natureza ou dissimula o seu real poder vulnerante, como, por exemplo, um isqueiro
ou um ...-chuva, que tenham inserida uma lâmina ou arma de fogo, que salte ou dispare por
simples premir dum botão» (Ac. STJ de 07/03/96, proc. 48860 ). Ou, como refere o Ac STJ, de
12/03/98, Proc.1.469/97 ( www.dgsi.pt ), « I - A expressão "arma branca" abrange todo um
conjunto de instrumentos cortantes ou perfurantes, normalmente de aço, a maioria deles
utilizados habitualmente nos usos diários da vida, mas também podendo sê-lo para ferir ou
matar. II - Arma com disfarce é aquela que encobre ou dissimula o seu real poder vulnerante
(...) »

E a ser tida a catana como arma proibida, que dizer das foices, gadanhas, etc, usadas na
agricultura e, tal como as catanas, de venda livre ?

Depois, não se vê que se imponha a criminalização de condutas em que, como a dos autos, não
se evidencia o uso de tais armas na prática de outros crimes. Tal interpretação traduzir-se-ia, na
prática, num alargamento da punibilidade duma norma incriminatória, em contradição com a
natureza fragmentária ou de intervenção mínima do direito penal, tal como decorre do disposto
no art. 18.º, n.º 2 da Constituição, segundo o qual «A lei só pode restringir os direitos,
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liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as
restrições limitar-se ao necessário para salva...r outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegido», e violando o principio da tipicidade e da legalidade como
repetidamente tem sido afirmado pelo Tribunal Constitucional, o direito penal, no Estado de
direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre, ancorado na dignidade da
pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível
pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Ou seja: há-de ser um direito penal
de culpa. E é — ou deve ser — um direito penal que só pode intervir para a protecção de bens
jurídicos com dignidade penal (ou, para utilizar uma expressão hoje corrente, com ressonância
ética), sendo que uma tal danosidade social, capaz de justificar a imposição de uma punição, há-
de ser ajuizada no plano ético-jurídico, e não num plano meramente sociológico. O direito penal,
enquanto direito de protecção, cumpre, por isso, uma função de ultima ratio, pois só se justifica
que intervenha se a protecção dos bens jurídicos não puder ser assegurada com eficácia
mediante o recurso a outras medidas de política social menos violentas e gravosas do que as
sanções criminais. A necessidade da pena que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa — limita,
pois, o âmbito de intervenção do direito penal, ou é mesmo o critério decisivo dessa intervenção.
E a ideia de necessidade da pena leva implicada a da sua adequação e proporcionalidade. Ou
seja, tal principio « (...) obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível ; proíbe, por
outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de
princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico ; e sugere,
ainda por outro lado, que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de
integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais » ( Figueiredo Dias, Dto Penal
Português, editorial Noticias, p. 84 ), e dirige-se tanto ao legislador como ao intérprete.

DECISÃO
Pelos fundamentos expostos :

I- Concede-se parcial provimento ao recurso do arguido e, em consequência :

- Absolver o arguido RS... da prática de um crime detenção de armas proibidas p. e p. nos


artigos 2º nº1 m), 3º nº2 f) e 86º nº1 d)

- Condenar o arguido RS... pela prática de um crime de tráfico tráfico de menor gravidade p. e p.
no art 25.º nº1 a) do DLei 15/93 de 22 de Janeiro na pena de 3 (três ) anos e 6 (seis) meses de
prisão.
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Comentário:

a) No caso em apreço o tribunal considerou que a catana, com uma superfície cortante de 41
cm é uma arma branca, uma vez que a superfície cortante é superior a 10 cm nos termos
da alínea m) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei das Armas. Mas, considerou que a catana não é
uma arma da Classe A, por não se tratar de uma arma branca dissimulada sob a forma de
outro objecto (alínea d) do n.º 2 do artigo 3.º) nem de uma arma branca sem afectação de
quaisquer práticas venatórias, uma vez que a catana está ligada a tarefas agrícolas (alínea
f) do n.º 2 do artigo 3.º). Logo, não se verifica qualquer crime por não se conseguir
classificar a Catana;
b) O tribunal não analisou a aplicação da alínea d) do n.º 1 do artigo 86.º. O legislador
optou, quando se trate de armas que não sejam encaixadas nas Classes B, B1, C e D
(sempre resolvidas pela alínea c) do n.º 1 do artigo 86.º), por uma tipificação tendo por
base o tipo de arma em questão e não a classe a que pertence;
c) Quando se trate de uma arma branca, é manifestamente pouco relevante a sua classificação
como arma da Classe A, o intérprete deverá, em primeiro lugar, verificar se estão
preenchidos os requisitos para que se possa dizer que está perante uma arma branca. De
seguida, o seu detentor seja punido se não justificar a sua posse, caso não justifique,
pratica um crime de Detenção de Arma Proibida por violar a alínea d) do n.º 1 do artigo
86.º;
d) O arguido, no caso em apreço, não era agricultor nem desempenhava tarefas onde seja
lícito a utilização de uma catana, logo o tribunal, salvo melhor opinião, poderia condenar.

José Arlindo Varela Pereira


Capitão

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