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ANDRE BERTEN
Professor visitante da PPGF (UFBA)
Me dirão: isso é literatura. Certo, mas precisamos elucidar o que pode ser essa
transcendência da arte. Ou, mais precisamente, em que contextos essa palavra faz
sentido. Para Itaro, o artesão pintor, a estranha obrigação de continuar pintando vem da
obra de arte que ele-mesmo produziu, obra de arte que provocou uma sensação de
transcendência. Continuar pintando, sem finalidade de vender, diz respeito à inutileza da
obra de arte, ao desinteresse da atitude do artista a respeito do valor mercantil de sua
obra.
Aliás, foi com surpresa que a Crítica do juizo foi recebida pelos
contemporâneos. Como o nota Paul Guyer:
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Valter Hugo Mãe, Homens imprudentemente poéticos, São Paulo, Biblioteca
azul, 2016, p. 173
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“... a terceira Crítica só poderia ter atingido seu público original como
uma obra surpreendente e intrigante: surpreendente, porque nem a Crítica da
razão pura nem a Crítica da razão prática tinham dado um indício que uma
outra crítica ia seguir; e intrigante, porque o livro não somente dá um tratamento
extenso a um assunto, isto é, a experiência estética e o juízo estético, assunto que
Kant tinha antes negado que pudesse ser o objeto de uma ciência, mas também
porque ligou esse tópico com um outro, isto é, o juízo teleológico sobre os
organismos na natureza e sobre a natureza como um todo, aos quais Kant nunca
antes tinha os ligado.” (Guyer 2014, I, 426)
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Kant afirma que nenhuma passagem é possível do domínio da natureza e das leis
da natureza para o domínio do conceito de liberdade, de tal modo em que o primeiro
não pode ter qualquer influência no segundo.
“contudo, continua Kant, este último deve ter uma influência sobre
aquele, isto é, o conceito de liberdade deve tornar efetivo no mundo dos sentidos
o fim colocado pelas suas leis e a natureza em consequência tem que ser pensada
de tal modo que a conformidade às leis da sua forma concorde pelo menos com a
possibilidade dos fins que nela atuam segundo leis da liberdade.” (Crítica da
faculdade de juízo, “Do domínio da filosofia em geral”)
Mas será que a arte poderia lançar uma ponte entre esses dois domínios?
Na Introdução da Crítica da faculdade de juízo, o título III é “Da crítica da
faculdade do juízo, como meio de ligação das duas partes da filosofia num todo” e
parece que Kant sugere que o objeto do juízo estético — sobre o belo, sobre a beleza
artística e o sublime — poderia assumir essa tarefa, tentar salvar a unidade da razão.
Aliás, não somente o juízo estético, mas também o juízo dito teleológico que pressupõe
que a natureza tem ume finalidade.
Kant tem razão de considerar que a solução desse dilema não é teórica. A
existência de um “soberano bem”, síntese desejada entre a felicidade e a virtude não
pode ser desmontrada. Mas isso não impede Kant de procurar “um fundamento da
unidade do suprassensível”, e se sabe que uma das hipótese (e para Kant é mais que
uma hipótese) seria que existe um “autor” simultaneamente das leis da natureza e da
exigência moral. Vamos deixar essa hipótese de lado e sugerir uma outra leitura, aliás
uma leitura oferta por Guyer, que afirma que
Alguns, como Jay M. Bernstein7, num livro sobre o destino da arte e da estética
moderna, pensam que a tentativa kantiana de fundamentar criticamente a racionalidade
do juízo estético foi um fracasso. Na verdade, a “vivência estética” moderna seria antes
uma alienação. A alienação vem do fato que na terceira Crítica Kant pretende distinguir
e portanto separar o juízo estético dos juízos determinantes da ciência e da moral. Essa
separação da arte de um lado e da ciência e da moral, do outro lado faz echo à exclusão
da arte da cidade.
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“No juízo estético reflexivo nos (re-)experimentamos, num prazer
doloroso, nosso sentido comum perdido; lamentamos a morte da natureza e da
comunidade.” (Bernstein 1992, 65)
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HABERMAS Jürgen (1988), Le discours philosophique de la modernité, Paris,
Gallimard, p.166.
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Kant afirme a universalidade dos juízos estéticos 9. Pode-se admitir que nas sociedades
premodernas, as ligações duradouras entre a arte e a religião, permitiram essa confusão.
Mas a arte moderna autonomizada poderia ainda garantir essa função?
Da transcendência da nação
Conclusão
Um dos filósofos que abriram o espaço para pensar uma forma de racionalidade
ou de razão fora dos padrões dominantes ou exclusivistas da racionalidade científica ou
do formalismo moral, é Paul Ricœur.
No mundo da vida tradicional, a dimensão do que pode ser chamado de
transcendência, isto é, os aspectos desconhecidos do mundo aos quais atribuímos um
significado, aspectos desconhecidos ou misteriosos, mas que têm uma força normativa,
uma força de incitação, essa dimensão era preenchida principalmente pelas crenças de
tipo religioso. Pensando na transcendência de maneira generalizada como relação ao
“Outro”, como um traço característico da experiência humana — ligado aos limites de
nossa razão, Ricœur escreve, na conclusão de um livro que trata diretamente da moral e
da ética.
“Talvez o filósofo, enquanto filósofo, deva confessar que não sabe e não
pode dizer se esse Outro, fonte da injunção, é um outro [est um autrui] que eu
pudesse encarar ou que pudesse me espreitar, ou meus antepassados cujos não há
representação, tão constitutiva de mi-mesmo é minha dívida para com eles, ou
Deus — Deus vivo, Deus ausente — ou um lugar vazio. Sobre essa aporia do
Outro, o discurso filosófico para.” (Ricœur 1990, 409, tradução nossa)
Vamos concluir com uma questão: essa relação com o Outro que marca nossa
sensação de transcendência poderia ser simbolizada pela arte? Arte moderna alienada ou
apelo perpétuo — seja no contexto das tradições, seja na modernidade secularizada — a
um Outro desconhecido, mas fundamentando o sentido de nossa existência. Uma
conclusão mínima dirá que, talvez, a arte pode proporcionar, como dizia Itaro, uma
“sensação de transcendência”, sensação que tem uma força normativa. Mas o debate a
respeito das paixões políticas mostra que esse sentimento de transcendência pode provir
de várias fonte. Ainda mais, para enfraquecer essa conclusão, devemos reconhecer que
empiricamente não há prova que a sensação de transcendência tivesse mesmo qualquer
universalidade.
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BIBLIOGRAFIA
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