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Línguas indígenas e africanas: como ensiná-las? 1


Izanete Marques Souza2

Resumo: Para que as leis 10.639/03 e 11.645/08 sejam efetivamente


cumpridas nos currículos escolares, os envolvidos no processo educacional
precisam ter clareza de quais discussões deverão travar bem como dos
encaminhamentos metodológicos cabíveis na realização do trabalho. A partir
da pesquisa bibliográfica e em fontes primárias, desenvolvida com a
metodologia dialética associada aos métodos de observação direta e do uso de
entrevistas via questionários semi-estruturados aplicados com moradores e
servidores públicos das reservas indígenas Taquara e Tey’Kuê, no Mato
Grosso do Sul, sinalizaremos a quem cabe a discussão acerca do ensino das
línguas indígenas e africanas na tentativa de desfazer o equívoco comum a
muitos dos profissionais da educação básica ao limitar, o trabalho com a
história e a cultura dessas etnias à simples listagem de vocábulos delas
oriundos de modo a não ensinar nem língua nem linguagem. Buscaremos, ao
mesmo tempo, apontar caminhos possíveis para ultrapassar a mera
reprodução da imagem estereotipada e preconceituosa tanto do negro quanto
do índio, tão presente nos manuais didáticos e em livros de literatura clássica.
Para isso, faremos a introdução “Desvendando o título” onde sinaliza-se os
equívocos presentes nas perguntas “Como ensinar as línguas indígenas?” e
“Como ensinar as línguas africanas”. Em seguida, discorreremos acerca das
possibilidades de trabalho nas salas de aula da educação básica, incluindo o
estudo sobre as contribuições tanto da língua quanto da cultura africana e
indígena como algo relevante. Por fim apresentaremos as conquistas sociais
dos índios sul-mato-grossense do Caarapó e de Juti para concluir o
encaminhamento metodológico pautado na análise da dialética e dos
confrontos interculturais.

Palavras-chave: Cultura afro-brasileira. Cultura indígena. Educação.

Desvendando o título
Nesse texto tentaremos atender, de forma satisfatória, à provocação
feita pela organização do I Seminário de Estágio e Prática Pedagógica do
Campus XXII da UNEB – Universidade, do Estado da Bahia através do título
“Línguas indígenas e africanas: como ensiná-las?”

1
Texto escrito para o I Seminário de Estágio e Prática Pedagógica do Campus XXII – Euclides
da Cunha /BA, realizado no período de 12 a 14 de abril de 2011.
2
Professora de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia
Baiano – campus Itapetinga. Especialista em Gramática da Língua Portuguesa pela UEFS –
Universidade Estadual de Feira de Santana. Ex-professora da educação básica na Rede
Estadual de Ensino da Bahia bem como do componente curricular “Aspectos Históricos e
Culturais em Língua Materna” no curso de Letras/Inglês da UNEB – Campus XXIII, Seabra/BA.
2

Para tanto, afirmamos que “Como ensinar as línguas indígenas?” é uma


discussão pertinente aos professores das séries iniciais do ensino fundamental
nas aldeias indígenas bem como aos estudiosos / pesquisadores da Linguística
Histórica, ou ainda, aos profissionais de saúde que trabalham ou tralharão nas
aldeias. Primeiro, porque falar em ensino/aprendizagem de uma língua requer
identificar uma necessidade prática, requer uso efetivo, de modo que aprender
a língua guarani Kaiowá, por exemplo, é uma necessidade dos índios do
estado do Mato Grosso do Sul enquanto instrumento de sobrevivência
identitária e como uma arma de guerra hoje usada do lado contrário ao que
estava historicamente estabelecido no campo da identidade.

Enquanto a aparência física constituí uma barreira social (índio não


consegue emprego que não seja braçal), a língua é sua trincheira
cultural. É por meio dela que mantêm sua unidade e, por que não
dizer, sua identidade. Entre si comunicam-se apenas em seu próprio
idioma, independentemente do lugar em que estejam e da presença
do não-índio. Essa atitude representa uma deliberada ostentação de
poder, pois a ambientação lingüística delimita o campo de atuação de
seus falantes, fazendo deles um grupo fechado e impenetrável.Além
de neutralizar a atuação do grupo circundante de idioma diverso,
fragiliza-o em sua presença, quer pelo isolamento em que o coloca,
quer pela incontestável invulnerabilidade que sua atitude
representa.(LIMBERTI, 1998, p. 11)

Num artigo, intitulado 500 anos de línguas indígenas no Brasil, Yonne Leite e
Bruna Francheto nos brinda com um breve histórico analítico do uso social das
línguas indígenas em nosso país. Com a chegada dos portugueses a esse
país, o europeu tratou de aprender a língua indígena com o intuito de mais
rapidamente dominar os membros dessa etnia incutindo-lhes a idéia do
pecado, do feio, do renegável como algo característico de sua gente,
apontando a cultura européia como a cultura politicamente correta a ser
seguida. Portanto, tudo que fugisse à linha europeizada estaria fugindo ao belo,
ao correto, tornando-se passível de vergonha: “vergonha do branco/vergonha
de si mesmo” (LEITE e FRANCHETO, 2006, p. 20). Hoje, porém, esses
membros das comunidades indígenas percebem que podem usar sua língua
como instrumento de “dominação” haja vista que mesmo na presença do não
índio, eles podem se comunicar através do guarani Kaiowá exercendo
duplamente tanto a ostentação de “poder” quanto o planejamento de
estratégias de auto defesa. A manutenção das línguas indígenas já é uma
conquista tendo em vista que de um contingente de 1.300 línguas existentes no
ano de 1500 caímos, no século XX, para um total de apenas 180 línguas que
sobreviveram aos diversos massacres culturais ocorridos contra esse povo, as
quais, tradicionalmente dividem-se em dois grandes grupos: o tupi-guarani e o
macro-jê.
3

Para Serafim da Silva Neto (1986), o período de 1532 a 1654


caracteriza-se pelo surgimento do mameluco, fruto da união entre os poucos
brancos existentes no Brasil e os índios. Ele afirma que até 1590 o contato das
línguas indígenas limitava-se ao português de Portugal, contudo, o processo de
dizimação das aldeias indígenas já era gritante no ano de 1611, em São
Vicente, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco, acrescentando
que um documento emitido pelos jesuítas da época já denunciava a redução de
40 mil para 400 índios na Bahia. Nesse período, o mameluco bilíngüe era um
elemento indispensável à comunicação entre o nativo e o branco.
Esse contato entre etnias diferentes, por um lado massacrou os nativos
brasileiros, por outro, possibilitou a incorporação de elementos da língua tupi
ao português falado na “nova terra” a exemplo de beiju, tapioca, bagre, togipar.
Contudo, esse contato resulta em dados de que em 1583 a Bahia dispunha de
uma população de 12.000 brancos, 8.000 índios e de 2 a 4.000 negros (vale
ressaltar que tanto em Porto Seguro quanto em Ilhéus tínhamos 750 brancos e
nenhum dado acerca do número de índios e negros). No Rio de Janeiro, os
números eram de 750 brancos, 3.000 índios e apenas 100 negros. Finalmente,
tal recenseamento, realizado por Anchieta, sinalizou uma população de 57.000
no Brasil, sendo que desses, 25.000 eram brancos, 18.000 eram índios e
14.000 eram negros.3
Essa redução da população indígena vai estar ligada não só à ampliação
da população branca, mas também ao crescimento do número de negros
escravizados advindos da África que, no século XVI, resultou em 600.000
pessoas, fruto das 100.000 importadas. No século XVII, esse número evoluiu
para 1.300.000 afrodescendentes.4
Os últimos dados divulgados pelo Ministério da Justiça e pela FUNAI –
Fundação Nacional do Índio, explicitados no detalhamento das áreas indígenas
na Bahia sinaliza uma população de 11.781 índios.5 No município de Euclides
da Cunha, por exemplo, há a terra de Massacará, cuja etnia é Kaimbé, com
uma população de 1.200 índios residindo numa superfície de 8.020 hectares de
terra. Em Porto Seguro, temos grupos Pataxó habitando as seguintes terras:
Aldeia Velha, Barra Velha e Imbiriba, o mesmo acontece em Santa Cruz de
Cabrália, nas terras de Coroa Vermelha e Mata Medonha. Em Itabuna, Itaju do
Colônia, Pau Brasil e Camamu, temos os índios Pataxó Hã-Hã-Hãe que
ocupam respectivamente as terras Caramuru/Paraguaçu e Fazenda Bahiana.
Em relação a “Como ensinar línguas africanas?” declaramos que essa é
uma discussão desnecessária no Brasil, haja vista que não temos o registro de

3
Serafin da Silva Neto, 1986, pág. 72
4
Ibidem, pág. 73
5
Esses dados foram divulgados pelo governo do Estado da Bahia no detalhamento das áreas
indígenas, feito em 2009 com as seguintes informações: nome da terra; grupo indígena;
território de identidade/município; superfície em hectares; perímetro/km; população; resumo
histórico. Vale ressaltar que o recenseamento dos indígenas feito pelo IBGE aconteceu apenas
em 2010.
4

nenhuma comunidade falante de nenhum dos idiomas africanos em nosso


país.
No tocante à língua, a demanda é discutir as contribuições das línguas
africanas na construção do português do Brasil, tendo em vista a comprovada
“semelhança encontrada na concordância de gênero e número do sintagma
nominal entre os crioulos de Guiné- Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe
e as variedades não padrão do PB” (português brasileiro), (PETTER, 2009,
p.159)6, apesar da ressalva de que essa análise não destaca o fato do
português do Brasil fazer parte de um conjunto que, além das línguas crioulas,
inclui as línguas não crioulas faladas em Angola e Moçambique, no continente
africano bem como as línguas faladas em Macau, Goa e Timor Leste, no
continente asiático. Galrão, (2009) e Verger (2002) demonstram que além do
povo da etnia iorubá – ou nagô, também vieram para o Brasil, negros fon, mina,
haussá, mandingas, bantos os quais possuíam cada um a sua língua e o seu
deus. Fonseca e Padilha também reforçam essa afirmação.7
No tocante a ambas as culturas têm-se os mitos e os ritos. Os primeiros
correspondem às narrativas usadas pelas diversas etnias para explicar a
origem da vida, sendo o livro da professora Iray Galrão um bom instrumento de
trabalho, já que nele são narradas oito lendas acerca da criação do mundo as
quais, contudo, ilustram a presença dominante do cristianismo católico,
assimilado pelos negros através de “cultos ecumênicos”. A partir dele pode-se
ainda, discutir a diversidade de deuses no continente africano versus a unidade
religiosa de cada povo deste continente contrapondo com a presença do
cristianismo nas reservas indígenas do Brasil. Os segundos correspondem aos
atos usados para marcar o início de cada fase da vida de um povo (fertilidade
/gestação /nascimento, passagem para a vida adulta, casamento, morte) ou, as
diversas ações humanas necessárias à sobrevivência desses povos
(plantação, colheita, caça, guerra) o que nos possibilita focar a discussão nas
lutas travadas pelos índios na busca da reconquista da terra.
Portanto, para garantir o cumprimento da lei 10.639 modificada pela
11.645, os docentes podem ainda, lançar mão da literatura africana como fonte
de restituição de valores, auto-estima e identidade dos povos
afrodescendentes, a exemplo do livro de contos “Os dias e os tumultos” de
autoria do médico angolano João Tala (2004); os poemas de Agostinho Neto e
de Alda do Espírito Santo, José Craveirinha, ou as narrativas curtas ou longas
de Pepetela e Luís Bernardo Honwana. Ainda no campo da linguagem
enquanto meio de representação da realidade vivida pode-se analisar o uso
dos ladinos – negros que chegavam ao Brasil já falando a língua portuguesa

6
In: GALVES, Charlotte, GARMES, Hellder, RIBEIRO, Fernando Rosa. África - Brasil:
caminhos da Língua Portuguesa. São Paulo: UNICAMP, 2009.
7
Livro África – Brasil, publicado em 2009 e organizado por Charlotte Galves, Helder Garmes e
Fernando Rosa Ribeiro a partir dos textos utilizados nas conferências e mesas-redondas do
colóquio Caminhos da língua portuguesa: África – Brasil, ocorrido em 2006.
5

usada para colonizar nossos ancestrais – enquanto colaboradores no processo


de silenciamento das línguas afros ensinando português aos “boçais” – naquela
época, os negros que não falavam a língua portuguesa.
Discutir o consumismo urbano presente nas aldeias e a relação disso com o
consumo das drogas ilícitas bem como as melhorias sociais conquistadas
através das lutas indígenas é outra possibilidade de garantia da lei 11.645/2008
incluindo, aí, a discussão acerca do papel das atividade esportivas na vida dos
índios e dos negros marginalizados, perpassando pelas análises do papel dos
(as) agentes de saúde nas comunidades indígenas e das relações de
apadrinhamento / compadrio estabelecidas, predominantemente, entre negros
e fazendeiros após a proibição legal do comércio escravagista (SCHWARTZ,
2001). Enfim, cabe a escola a discussão com vistas à desmistificação do
significado do dia do índio em 19 de abril e do dia 20 de novembro enquanto
dia da consciência negra.

As conquistas dos índios sul-mato-grossenses

Apesar de residir na Bahia, trataremos de algumas especificidades dos


índios Guarani kaiowá residentes nas reservas de Taquara (Bambu) e Tey’Kuê
no estado do Mato Grosso do Sul devido à acessibilidade que obtive à essas
reservas, fato que ainda não se deu na Bahia. Na primeira reserva a liderança
é dividida por dois caciques, na tentativa de garantir a harmonia no grupo e
ampliar as conquistas que resultam na melhoria das condições de vida dos
habitantes, ampliando as possibilidades de sucesso na luta pela retomada da
outra metade da Fazenda Brasilândia. Lá, temos dois templos da Igreja
Pentecostal Deus é Amor onde congregam vários dos membros das 68 famílias
que habitam o local. Neste espaço, observa-se o conflito entre a tentativa de
manter a sua tradição e a aceitação da cultura cristã (esse mesmo conflito
pode ser observado na reserva Tey’Kuê onde encontramos um templo católico,
um templo evangélico e a casa de reza – oca usada para os rituais indígenas).
Em ambas, encontramos escolas do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental onde
os alunos aprendem a ler e escrever em língua guarani e aprendem o
português como segunda língua.8 Os professores dessas séries são todos
indígenas – conquista, hoje, garantida pelo MEC- Ministério da Educação. Num
esforço de estender essa garantia ao ensino disciplinar do 6º ao 9º ano do

8
Projeto Ara Verá – formação de Professores Guarani Kaiowá – Novembro de 2005 –
Dourados/MS
6

Ensino Fundamental, os indígenas buscaram a implantação do curso de


graduação para professores indígenas no estado cuja proposta foi elaborada
por docentes e lideranças indígenas e não índios diretamente ligados à
educação sistemática desse povo. Os estudantes dessa primeira turma de
graduação apresentaram os seus trabalhos de conclusão de curso na primeira
semana do mês de fevereiro de 2011 na UFGD – Universidade Federal da
Grande Dourados. Nessa turma estarão licenciando-se, entre outros, um dos
líderes da reserva Taquara e o vereador Otoniel Ricardo da reserva Tey’Kuê.
Aqui é importante dizer que a eleição de um índio como representante da
população na Câmara Municipal de Vereadores de Caarapó é um exemplo das
conquistas realizadas pelos habitantes dessa reserva nesses mais de 87 anos
de existência e cerca de 30 anos de batalha social. Além de um vereador, a
reserva conta com a existência de dois postos de saúde mantidos pela
FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) e pela Prefeitura Municipal de
Caarapó nos quais os moradores recebem atendimento médico clínico e
odontológico, contam com um Centro de Referência da Assistência Social onde
há inclusive atendimento e acompanhamento psicológico,9 várias escolas do
Ensino Fundamental e Médio sendo que as primeiras são coordenadas pela
Escola Municipal indígena Ñandejara Pólo (com vários pavilhões de aula,
cozinha industrial, biblioteca, quadra poliesportiva, pavilhão administrativo,
grupo musical instrumental clássico e acaba de adquirir, em 2010, uma banda
musical com instrumentos diversos, incluindo bateria, cujo foco de utilização
são os alunos que já aprenderam todas as fases do curso instrumental).
Também encontramos vários pontos de ônibus dentro dos 3.584 hectares de
terra reempossada aos indígenas dessa cidade.
Nesse contexto de educação, é cabível a pergunta “Como ensinar a
língua portuguesa do Brasil nas aldeias e reservas indígenas?” ressaltando que
essa é uma discussão necessária tanto aos professores das séries finais do
Ensino fundamental quanto aos docentes do Ensino Médio que trabalham com
os estudantes índios. Se o domínio da língua guarani Kaiowá é um instrumento
de poder para o índio, a apropriação do português também o é como comprova
a fala do cacique Francisco, o qual, hoje, divide a liderança da Reserva

9
Até 2006, era freqüente o ato de suicídio de jovens na reserva Tey’Kuê. Na Reserva Taquara,
houve o registro de apenas um nesses onze anos de existência. Essas constatações foram
feitas a partir das entrevistas feitas com lideranças e servidores públicos, lotados nessas
reservas.
7

Indígena Taquara, no município de Juti – MS, quando argüido acerca das suas
funções na reserva:

O cacique é como um prefeito na cidade. Tem que buscar recursos


para a aldeia como semente, energia... principalmente na FUNAI que
hoje só tem a sede em Dourados. Fala-se em criar um núcleo na
Funai em Caarapó. Isso facilitaria a nossa ida até lá.” (Reserva
Taquara, Juti – MS em 26/01/2011)

Nessas reservas, todos os adolescentes e adultos falam


simultaneamente o guarani kaiowá, do tronco Inaniquara, e o português, mas
ainda há aqueles cujo domínio da língua portuguesa é limitado, carecendo da
mediação de outro índio nos diálogos com as técnicas em enfermagem que
atendem nessas comunidades. Essa realidade comprova que a principal
estratégia de aprendizagem das línguas utilizadas pelos índios das reservas
Taquara e Tey’Kuê é a conversação, independente de qual seja o idioma. Em
Caarapó, os índios também vivenciam aulas de Inglês, Espanhol e Francês a
partir do 3º ciclo do Ensino Fundamental.
Os índios Guarani Kaiowá foram os primeiros habitantes do município de
Caarapó e possuíam muitas aldeias em todo o sul do estado do Mato Grosso.
Em 1924 criou-se ali a Reserva Indígena Tey’Kuê a qual, em 2008, contava
com uma população de mais de 3000 habitantes os quais vivenciam o conflito
entre a preservação da sua cultura e a adaptação à cultura miscigenada
(usaremos essa expressão porque a cultura vivenciada hoje no Brasil é na
verdade uma miscigenação da cultura européia , nativa – indígena, afro,
asiática e no caso do Mato Grosso do Sul, paraguaia). Esse conflito tem levado
muitos jovens ao suicídio, fato que felizmente tem se reduzido no século XXI.
As disputas pela posse da terra e a busca pela melhoria de vida econômica e
social tornou-se uma necessidade haja vista que mesmo existindo a reserva os
índios estão constantemente na cidade para fazer compras, ir ao médico,
receber suas cestas básicas ou simplesmente para tomar sorvete, ficar na
praça, além do espaço das reservas tornarem pequenos à medida que a
população vai crescendo. Nas moradias indígenas é possível encontrar o
tanquinho elétrico ou a máquina de lavar roupas, a geladeira, o ferro de passar
roupas elétrico, ao lado do fogão de barro e dentro de uma ou várias tendas
construídas com taquara ou com madeira de eucalipto e cobertas com palha de
coqueiro.
Da mesma forma encontramos residências construídas com tijolos de
alvenaria ou indígenas que apesar de trabalharem na reserva residem no
centro urbano de Caarapó. Essa realidade faz com que o professor e vereador
Otoniel Ricardo Guarani Kaiowá não demonstre nenhum constrangimento ao
afirmar que seu povo pouco tem utilizado o sistema de cotas para o ingresso
nas universidades haja vista que esse povo já dispõe de uma graduação cujo
currículo é diferenciado de maneira a atender às especificidades da educação
8

indígena. Desse modo, a clientela interessada nesse tipo de licenciatura é


formada por professores que já atuam nas escolas das diversas
reservas/aldeias do estado. Em sua pesquisa para dar corpo ao trabalho de
conclusão da sua licenciatura, esse educador busca identificar as causas da
violência na Reserva Indígena de Caarapó – Tey’Kuê. Essa pesquisa visava
estudar a história do povo indígena na escola pública local, para entender a
violência e reduzir a discriminação tanto do índio rural quanto do índio urbano
(patrício), garantindo o respeito a esse povo no tocante a terra, à pele e à
cultura.

Considerações finais

Olhando como relevante o que diz a lei 11.645/2008 no tocante ao


conteúdo a ser trabalhado nas unidades de ensino, as discussões devem
garantir a inclusão dos diversos aspectos da história e da cultura que
caracterizam a formação da população brasileira, a partir dos grupos indígenas
e afrodescendentes. Essa inclusão, obviamente, não exclui as contribuições
dos povos europeus nem dos asiáticos, contudo, o que se pretende é garantir a
igual relevância dessas duas culturas até então marginalizadas, quando não,
esquecidas. Por isso, analisar a história da África e dos africanos permitirá aos
discentes a compreensão dos fundamentos da constituição de um deus afro,
intimamente ligada à liderança política dos diversos países daquele continente
– os chamados orixás. Estudar os processos de saída de sua terra e chegada
ao “novo mundo” permitirá entender as angústias vividas pelos escravos e as
estratégias de sobrevivência utilizadas pelos negros, ora sucumbindo ao
poderio do dominador, ora lutando pela sua liberdade e respeito através da
formação de quilombos e através de lutas como a Revolta dos Malês ou via
reivindicação de cotas para ingresso nas universidades além de outra políticas
de reparação social e econômica, especialmente no século XX.
Estudar os processos de desapropriação das terras indígenas e as lutas
pelas retomadas desses territórios permitirá ao discente compreender os
massacres sofridos pelos índios no decorrer desses mais de 500 anos de
contato com o não índio bem como os critérios de constituição dos seus
deuses pautada na ancestralidade familiar. Permitirá, também, a identificação
dos critérios utilizados por esse povo para optar pela aceitação ou não de
religiões cristãs em seus territórios assim como as estratégias utilizadas para
garantir a concretização de políticas que verdadeiramente atendam às suas
demandas. Compreendidos os aspectos supracitados ampliaremos as
possibilidades de respeito aos descendentes diretos dessas etnias e,
principalmente, as possibilidades de resgate de sua auto-estima, elemento
indispensável na busca exitosa da melhoria de vida.
9

REFERÊNCIAS

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