Você está na página 1de 117

Crônicas de Mario Prata

Publicadas no jornal O Estado de São Paulo,


e compiladas do site do autor por SusanaCap
www.portaldetonando.com.br/forumnovo/

Mario Prata será um grande escritor. É o que dizia dona Clara,


clarividente professora do Grupo Escolar. Inventou de fazer um jornal da
classe e ele virou redator. Depois o padre Pedro, professor de Português
do Salesiano, que achava a mesma coisa. Ou o Cecílio Abrão, da Gazeta de
Lins, que deixava ele escrever a coluna social com o ridículo nome de
Franco Abbiazzi. Tinha o quê? Uns 14 anos, voz de taquara rachada e
aparelho nos dentes. Quando não escrevia ou jogava botão, lia a
Manchete, que tinha uns cronistas muito bons. Fernando Sabino, Paulo
Mendes Campos, Rubem Braga, Henrique Pongetti. Lia e ficava
imaginando se um dia ia escrever tão bem e publicaria em algum jornal da
capital. E não é que apareceu a Última Hora, com um tal de Samuel
Wainer, que resolveu dar espaço para o interior? O Mario Alberto topou.
E Lins passou a ter crônica social em jornal da capital.
Depois a Revolução, o jornal empastelado, exame para o banco, o
vestibular de Economia e o Banco do Brasil. Depois do ponto, escrevia o
conto.
O Morto que morreu de rir, livro de mimeógrafo, um texto aqui,
outro ali e pronto. Adeus faculdade, adeus banco. Cair no mundo e ser
escritor. Não adiantou conselho de pai nem de melhor amigo. Ainda bem.
O resto é público. Hoje escreve no Estadão. Quarta-feira, Caderno 2.
Há de ter moleque pelo interior lendo e pensando se um dia não vai
escrever tão bem quanto ele.
Sergio Antunes
A TETRA CONQUISTA DO VELHO OESTE
14.6.94

SAN FRANCISCO - Não é fácil chegar a uma Copa do Mundo.


Principalmente se esta Copa for nos Estados Unidos. Mais difícil ainda é
chegar a San Francisco. Só vindo até aqui é que se percebe que San
Francisco fica perto do Japão. Foram 24 horas de viagem. Oito até Miami,
a capital do norte da América do Sul, mais oito de espera dentro daquele
aeroporto roxo e cafona e depois mais seis até San Francisco. Com um
detalhe aterrorizante: não se pode fumar dentro dos aeroportos e nem
dentro dos aviões domésticos.
O avião levantou vôo há uma hora de Miami e eu estou aqui dentro
sofrendo com a falta da nicotina. Nada de Varig: a cerveja custa 3 dólares
e você paga 4 para ver o filme. Prefiro olhar pela janela e sentir, como num
filme adolescente, a conquista do velho oeste.
Olho pela janela e estamos em cima do Golfo do México. O céu está
limpo e, forçando a vista e a imaginação, é possível ver lá embaixo Errol
Flynn lutando contra a pirataria de Sir Drakon. Rita Hayworth espera
angustiada na cabine, sem fumar. Se não me falha a memória, Errol
morreu de câncer no pulmão.
Mais uma hora e estamos sobrevoando New Orleans. Dá para
escutar lá embaixo o pessoal tocando música country no final do século
passado. Hollywood, que fica na Califórnia, começa a invadir a minha
cabeça por falta de fumo. Meu companheiro Matthew Shirts me diz que
acaba de descobrir que parou de fumar. Mas assim que arrumar um local,
volta imediatamente. A fumaceira dos bares de New Orleans invade a
cabine. Bandolim na veia.
Agora estamos no meio dos Estados Unidos. Começa a conquista
do oeste. Olho para baixo. Oklahoma. Colorado. O chão é mesmo
colorado. À minha esquerda, Arizona. Lembro do cigarro e da Kate Lyra
que nasceu em Phoenix. Isso, logo depois do Novo México. Marlon
Brando corria, defendendo os mexicanos. Albuquerque (Lins?) está
sitiada. Estamos em meados do século passado. Brando ainda era magro.
Montanhas lá embaixo. Não as Rochosas, mas rochosas. Paul
Newman e Sundance Kid preparam-se para pular de um despenhadeiro.
Os índios e os xerifes estão atrás deles. Não vejo John Wayne dando tiros,
nem matando apaches, nem procurando ouro, mas vejo a última
diligência rasgando o chão do oeste com o Richard Widmark.
Agora é o Warren Beatty que está fazendo xixi em pleno deserto.
Ele jura que dali a alguns anos, naquele cerrado branco, vai surgir a
capital do jogo, uma tal de Las Vegas. Era uma vez, no oeste, sete homens
e um destino por um punhado de dólares. O dólar nem um pouco furado.
Billy The Kid, ainda menino, brincando num riacho claro com Jane Fonda.
Fico imaginando os ingleses e os irlandeses atravessando aquele
deserto ensolarado. No Curral OK posso ver Wyatt Earp e Doc Holliday
(eram estes os nomes?) preparando-se para um duelo mortal. Não era fácil
por ali, naquele tempo. Mais à frente uma fazenda: Alan Ladd se despede
do garoto. A música de Shane invade meus ouvidos. Vontade de fumar
como ele, sentado numa cadeira de balanço, vendo o horizonte
empoeirado. Logo na frente, Monterrey. Não é uma marca de cigarros?
A aeromoça serve carne com feijão e milho. Estou mesmo chegando
nos Estados Unidos. Agora, montanhas com gelo em cima. É Nevada, me
explica Matthew. Vejo Gary Cooper por lá, numa nevasca braba.
Nebraska. O americano me explica que muitos aventureiros tentaram
ultrapassar aquelas montanhas a pé, na busca do ouro e do futuro.
Morreram todos. ''Sorte que o meu bisavô ficou em Utah''. Mas lá,
naquelas crateras quase lunares, a corrida do ouro continuava por um
lugar ao sol no tempo das diligências. Quem estava sempre por ali era o
Randolph Scott, que sempre fumou e nunca morreu.
Sobrevoamos Los Angeles com a sua montanha escrito Hollywood,
que nos alimentaria de todos estes sonhos, mostrando a conquista do
oeste. De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar se entro no avião e
não posso mais fumar?
Estamos chegando a San Francisco. Lagos vermelhos e amarelados,
uma visão mesmo psicodélica, como o lugar. Passamos agora por cima da
pequena ilha de Alcatraz. Steve McQueen tenta, desesperadamente, fugir
da prisão. Sobrevoamos o centro. Lá está o Polanski filmando Chinatown
e carros em desenfreadas corridas pelas ruas da cidade. Ninguém fuma na
rua. San Francisco Dream. O sonho ainda não acabou.
Estamos agora aterrissando. Estou chegando no extremo-oeste
americano. Sinto-me um pouco inglês, um pouco conquistador. Será que a
seleção de futebol do Brasil vai mesmo conquistar o oeste americano?
O aviso pousa. Sinto no ar um contato imediato de terceiro grau.
Descemos no aeroporto. "Proibido fumar". Mas tem uma sala escrito:
smaking room entrance. Entramos. Nossa viagem apenas começou
Era uma vez no oeste. Vamos em frente, que temos topete para o
tetra.

A VINGANÇA DO PEQUENO TOPETE


16.3.94

ERA UMA VEZ um menino que nasceu em Juiz de Fora, na


primeira metade deste século. Era um garotinho normal, educado,
simpático e, o mais importante, trabalhador. Na sua cabeça havia um
detalhe anatômico que lhe valeu o simpático apelido de Topete.
Topete era de uma família humilde e, desde pequeno, trabalhava
para ajudar em casa. Seu tio, o seu Franco, tinha uma pharmácia. Alguns
dizem que tinha duas. E foi lá que o magricela Topete arrumou o seu
primeiro emprego. Ele fazia de tudo na pharmácia. Adorava o trabalho.
Dava plantão, fazia serão e, dizem, até aviava receitas. Topete gostava do
seu trabalho. Seu tio, o seu Franco, via nele o herdeiro natural de toda
aquela parafernália de bulas, poções, ácidos, bases e melhorais.
A pharmácia do tio era daquelas antigas, de móveis escuros,
prateleiras altas, escada rolante para pegar o mais distante leite de
magnésia. A maioria dos remédios era feita pelo próprio pharmacêutico.
A indústria dos remédios ainda engatinhava no Brasil. O tio e Topete
sabiam das dores das senhoras de Juiz de Fora, das pílulas daquele
velhinho, da poção mágica para fazer dormir a moça da esquina,
abandonada pelo namorado. A pharmácia, naquela época, era quase a
extensão da casa das pessoas da cidade.
Topete já estava a aplicar injeções, com aquelas velhas seringas que
antes eram esterilizadas a álcool e fogo na frente do atemorizado enfermo.
Topete já estava se especializando em pegar veias difíceis. Tinha tudo para
ser um grande pharmacêutico. Era o sonho dele, do tio e de toda a família.
O futuro de Topete já estava traçado.
Topete não fazia outra coisa na vida. Era de casa para a escola, da
escola para a pharmácia, da pharmácia para a cama. Apenas no carnaval
ele se permitia brincar um pouco mais com seus coleguinhas de Juiz de
Fora. Teve até um ano que descobriram que uma sua amiguinha estava
sem... Deixa pra lá que isso é outra história.
Com o passar do tempo, começaram as dificuldades. Chegaram no
Brasil as primeiras multinacionais da indústria pharmacêutica. E aqueles
velhos e bons velhinhos, sempre de branco, com um termômetro no bolso,
foram deixando de fazer as suas poções mágicas no fundo da pharmácia.
A penicilina, a vitamina, eram as pós-modernidades da época. Os velhos
pharmacêuticos foram perdendo a briga com as multinacionais dos
remédios. Lá em Juiz de Fora, o seu Franco foi deixando de ganhar
dinheiro. Primeiro teve que vender uma pharmácia. Já não podia pagar
tão bem para o já adolescente Topete. Vendeu o fusca zero.
As coisas estavam ficando pretas, o topete do Topete estava cada
vez mais de pé, como que arrepiado diante do problema que atingia toda
a família.
Em poucos anos, o seu Franco pediu concordata e depois veio a
inevitável falência. As multinacionais acabaram matando o seu Franco
com um ataque fulminante no seu coração.
Topete não tinha mais o que herdar e estava desempregado. Não
sabia fazer mais nada na vida a não ser os remédios e aplicar as suas
agulhas e odiar cada vez mais as multinacionais dos remédios.
O que Topete iria fazer agora?
Foi quando ele teve uma idéia sensacional (segundo ele, é claro). Os
pais estavam preocupados com o futuro do adolescente. Um dia, na hora
do jantar, com a família toda reunida e mais um amiguinho grego que ele
tinha, jogou na mesa a sua decisão:
—Vou ser Presidente da República!
—Presidente da República, meu filho? Tão difícil...
—Vou ser Presidente da República! E não vou fazer nada,
absolutamente nada! Passarei para a história como o presidente que não
fez nada!
—Mas, meu filho...
—Vou fazer uma coisa só, meu pai. Além de ir ao dentista, é claro.
Só uma coisa. Mas vou fazer bem. Vai ser como se nada mais me
interessasse. Nada, nada, nada. Apenas uma coisa eu vou fazer, papai.
—E nós podemos saber o que é que você vai fazer?
—Vou perseguir durante todo o meu mandato as multinacionais
dos remédios. Vou baixar os preços, vou fechar indústrias, vou fazer o
diabo! Vou encher o saco desses caras! Vou fazer tudo voltar à época das
boticas e das manipulações! Vou vingar o titio, mamãe. Você me ajuda,
Stepanenko?
Deu uma ajeitada no topete, guardou a caderneta escolar e pediu
que lhe passassem o pão de queijo.

ADOTE-SE A CADERNETA PARLAMENTAR


9.2.94

EU GOSTARIA muito de saber por que os nossos nobres deputados


faltam ao trabalho segunda e sexta-feira. Tá faltando um pouco de
disciplina lá no Congresso Os pais dos deputados deviam seguir os seus
filhos como se fossem alunos de um colégio muito rígido. Sugiro que se
coloque na revisão constitucional a obrigatoriedade da Caderneta
Parlamentar, como existia antigamente a Caderneta Escolar.
Na última página, apenas para lembrar, algumas recomendações:
anda correto nas ruas, saúda teus superiores, engraxa teus sapatos; não
escrevas nas paredes ou nos móveis, não deixes teus rastros nas paredes,
que feio, não toques no microfone sem ordem do superior, não brigues
nunca; não atires pedras; não fumes!, o fumar nunca faz bem à saúde; não
te assentes a toda hora em qualquer lugar: moço, respeita a tua mocidade.
Depois, dentro, instruções mais específicas do uso obrigatório da
Caderneta dos deputados: é de suma importância que os senhores pais ou
responsáveis examinem a cada dia a Caderneta Parlamentar. A tua
Caderneta é o espelho da tua vida no Congresso, é o índice da tua
educação, é um documento para o presente e o futuro; tem, pois, com ela,
o máximo cuidado; sabe-se, pois, que a Caderneta com escritos,
adulterações, rabiscos, garatujas ou rasuras será inexoravelmente
inutilizada; e a Caderneta de substituição, por penalidade, se adquirirá
pelo duplo do preço.
Aos senhores pais dos deputados e famílias:
Sendo a Caderneta Parlamentar o meio de correspondência entre o
Congresso e os pais dos deputados, para que ela preencha realmente os
seus fins, pede-se aos senhores pais toda a atenção para os seguintes
dispositivos:
a) A Caderneta é destinada a registrar as presenças e ausências, o
comportamento e aproveitamento nas sessões, penas disciplinares,
assistência à população e pagamento dos salários.
b) O deputado que se apresentar sem a Caderneta ou a apresentar
com rasuras, assinatura ilegível ou falsa, páginas dilaceradas etc., não será
de forma alguma admitido em plenário.
c) O visto dos senhores pais deve ser posto na Caderneta no fim de
cada mês, ou todas as vezes em que o deputado faltar às sessões, chegar
atrasado ou receber qualquer punição. Sem isto, a freqüência do deputado
à sessão será rigorosamente impedida.
d) Ao lado da página de cada mês haverá espaços suficientes onde
os senhores pais, quando o desejarem, poderão fazer quaisquer
comunicações, pedidos, reclamações, justificações etc.
e) Os deputados que forem pontuais receberão no fim do ano uma
medalhinha como Prêmio de Assiduidade.
f) É obrigatório comparecer às sessões e aos atos públicos com
uniforme cáqui, modelo especial do Congresso.Todos os deputados terão
uniforme festivo conforme modelo existente.
g) Os deputados devem ter o máximo asseio pessoal e proceder de
acordo com as regras de urbanidade, dentro e fora do Congresso,
especialmente nas imediações do estabelecimento.
h) Embora o Congresso decline de toda a responsabilidade com
relação aos deputados, quando fora do estabelecimento, reserva-se,
contudo, o direito de zelar pelo bom nome do Congresso Nacional,
podendo assim eliminar o deputado que se torna indesejável por causa do
seu mau procedimento fora do Congresso. Por exemplo: brigar nas
proximidades do Congresso, fumar, usar palavras ou modos irreverentes,
estacionar nas imediações etc.
i) Os deputados não podem sair à rua na hora do recreio.
j) O deputado que praticar atos desonestos, ou tiver habitualmente
conversas e maneiras menos decorosas, ou fizer ostentação da falta de
patriotismo, será excluído do estabelecimento.
l) A justificação das faltas com a declaração das causas que
motivaram a ausência do deputado deve ser feita por escrito pelos pais ou
responsáveis, no dia seguinte. A justificação será aceita ou não, à juizo da
Mesa. Para evitar graves inconvenientes, a Mesa não atende recados
telefônicos.
m) Os deputados não podem ter armas, canivetes, anéis, objetos
preciosos ou perigosos, nem revistas ou jornais de nenhuma espécie, nem
livros estranhos aos legislativos.
n) O fato de um deputado eleger-se para o Congresso importa na
aceitação de todos estes dispositivos. Revogam-se as disposições em
contrário. Quem é louco para reclamar?

AFINAL, QUEM É LOUCO?


1.5.94

EXISTEM DOIS TIPOS de loucos. O louco propriamente dito e o


que cuida do louco: o analista, o terapeuta, o psicólogo e o psiquiatra. Sim,
somente um louco pode se dispor a ouvir a loucura de seis ou oito outros
loucos todos os dias, meses, anos. Se não era louco, ficou.
Durante mais de 40 anos passei longe deles. Mas o mundo gira, a
lusitana roda e Portugal me entortou um bocado a cabeça. Pronto, acabei
diante de um louco, contando as minhas loucuras acumuladas. Confesso,
como louco confesso, que estou adorando esta loucura semanal.
O melhor na terapia é chegar antes, alguns minutos, e ficar
observando os meus colegas loucos na sala de espera. Onde faço a minha
terapia é uma casa grande com oito loucos analistas. Portanto, a sala de
espera sempre tem três ou quatro, ali, ansiosos, pensando na loucura que
vão dizer daqui a pouco. Ninguém olha para ninguém. O silêncio é uma
loucura.
E eu, como escritor, adoro observar as pessoas, imaginar os nomes,
a profissão, quantos filhos têm, se são rotarianos ou leoninos, corintianos
ou palmeirenses. Acho que todo escritor gosta deste brinquedo, no
mínimo, criativo.
E a sala de espera de um ''consultório médico", como diz a
atendente absolutamente normal (apenas uma pessoa normal lê tanto
Herman Hesse como ela), é um prato cheio para um louco escritor como
eu. Senão, vejamos:
Na última quarta-feira, estávamos eu, um crioulinho muito bem
vestido, um senhor de uns cinqüenta anos e uma velha gorda. Comecei, é
claro, imediatamente a imaginar qual era a loucura de cada um deles. Que
motivos os teriam trazido até ali? Qual seria o problema de cada um
deles? Não foi difícil, porque eu já partia do princípio que todos eram
loucos, como eu. Senão não estariam ali, tão cabisbaixos e ensimesmados.
Em si mesmos.
O pretinho, por exemplo. Claro que a cor, num país racista como o
nosso, deve ter contribuído muito para levá-lo até aquela poltrona de
vime. Deve gostar de uma branca, e os pais dela não aprovam o
casamento, pensei. Ou será que não conseguiu entrar como sócio do
Harmonia? Notei que o tênis dele estava um pouco velho. Problema de
ascensão social, com certeza. O olhar dele era triste, cansado. Comecei a
ficar com pena dele. Depois notei que ele trazia uma mala. Podia ser o
corpo da namorada esquartejado lá dentro. Talvez apenas a cabeça. Devia
ser um assassino, ou suicida, no mínimo. Podia ter também uma arma lá
dentro. Podia ser perigoso. Afastei-me um pouco dele no sofá. Ele dava
olhadas furtivas para dentro da sua mala assassina.
E o senhor de terno preto, gravata, meia e sapatos também pretos?
Como ele estava sofrendo, coitado. Ele disfarçava, mas notei que tinha um
pequeno tique no olho esquerdo. Corno, na certa. E manso. Corno manso
sempre tem tiques. Já notaram? Observo as mãos. Roia as unhas.
Insegurança total, medo de viver. Filho drogado? Bem provável. Como
era infeliz este meu personagem. Uma hora tirou o lenço, e eu já estava
esperando as lágrimas quando ele assoou o nariz violentamente,
interrompendo o Herman Hesse da outra. Faltava um botão na camisa.
Claro, abandonado pela esposa. Devia morar num flat, pagar caro, devia
ter dívidas astronômicas. Homossexual? Acho que não. Ninguém beijaria
um homem com um bigode daqueles. Tingido.
Mas a melhor, a mais doida, era a louca gorda e baixinha. Que
bunda imensa! Como sofria, meu Deus. Bastava olhar no rosto dela. Não
devia fazer amor há mais de trinta anos. Será que se masturbaria? Será
que era este o problema dela? Uma velha masturbadora? Não! Tirou um
terço da bolsa e começou a rezar. Meu Deus, o caso é mais grave do que
eu pensava. Estava no quinto cigarro em dez minutos. Tensa. Coitada. O
que deve ser dos filhos dela? Acho que os filhos não comem a
macarronada dela há dezenas e dezenas de domingos. Tinha cara também
de quem tinha uma prisão de ventre crônica. Tinha cara, também, de
quem mentia para o analista. Minha mãe rezaria uma Salve-Rainha por
ela, se a conhecesse.
Acabou o meu tempo. Tenho que ir conversar com o meu terapeuta.
Conto para ele a minha viagem na sala de espera. Ele ri, ri muito, o meu
terapeuta:
— O Ditinho é o nosso office-boy. O de terno preto é representante
de um laboratório multinacional de remédios lá do Ipiranga, e passa por
aqui uma vez por mês com as novidades. E a gordinha é a dona Dirce, a
minha mãe. E você não vai ter alta tão cedo.

ALGUÉM OUVIU O GRITO DO IPIRANGA?


08/09/93

VOCÊ CONHECE alguém que more no Ipiranga? Nem eu. Campos


de Carvalho, escritor mineiro e esporádico, escreveu uma obra-prima
chamada O Púcaro Búlgaro, lá pelos 60. A história começa com o
protagonista visitando um museu arqueológico na Filadélfia e, de repente,
depara com um púcaro búlgaro entre as expostas antiguidades. Fica
excitadíssimo: primeiro, porque achava que não existisse nenhum púcaro
no mundo e, em segundo lugar, e foi isso que o patetizou, um púcaro
além de tudo búlgaro. Búlgaro! E ele tinha certeza, que a Bulgária não
existia. Ele não conhecia nenhum búlgaro, ninguém que morasse na
Bulgária, ninguém que nunca tivesse, ao menos, visitado tão esdrúxulo
país. Nem eu. E você. conhece a Bulgária?
Imediatamente largou a sua mulher olhando outras curiosidades,
pegou o primeiro avião para o Rio de Janeiro e colocou um anúncio nos
principais jornais do Brasil, procurando voluntários para uma picaresca e
pitoresca excursão pelo mundo, a fim de descobrir a Bulgária. E os
búlgaros. E um púcaro, quiçá. O livro é maravilhoso. Uma pena que a
Civilização Brasileira nunca mais o tenha reeditado. E por falar nisso,
onde anda o Waltinho Campos de Carvalho? Ainda procurando a
Bulgária? Ou o Ipiranga?
Explico: o bairro do Ipiranga tem este mistério para mim. Moro há
27 anos em São Paulo e nunca conheci ninguém que morou, mora ou
pensa em ir morar no Ipiranga. E você?
Comecei a imaginar que o bairro não existe. Nunca existiu. Deve ser
apenas uma citação, um verbete a mais nos livros de História do Brasil.
Andei pela cidade a perguntar se alguém conhecia alguém que morava no
Ipiranga. Ninguém. O tal do riacho do Ipiranga: alguém já viu ele? Nem
ao menos a margenzinha plácida? Alguém já nadou nele? Já pescou uma
traíra lá? E o retumbante grito do Dom Pedro, às tais das margens
plácidas? Alguém ouviu? Foi gravado? Filmado ou mesmo fotografado?
Tem aquela tela do Pedro Américo. Mas este Pedro Américo, será que
existiu mesmo? Será que o grito não foi dado na Vila Carrão, ou no Parque
Dom Pedro? Será que foi mesmo um grito ou, como dizem as más línguas,
uma evasão intestinal do senhor Pedro de Alcântara Francisco Antônio
João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal
Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon (coisa de viado)?
Durante um tempo pensei—como Campos de Carvalho—em fazer
uma excursão para descobrir, finalmente, o Ipiranga. Lembrei-me que nos
anos 50 tinha um time de futebol, o Clube Atlético Ipiranga. Quando o
meu Linense subiu para a especial, o primeiro jogo, lá em Lins, foi com o
Ipiranga (acho que com Y). Põe cinco a um para o Linense. Depois o Clube
Ipiranga também sumiu. Pelo menos das lides futebolíticas.

Estava já pensando em colocar um anúncio no jornal, quando


percebi que a Avenida do Estado, suposta via de acesso ao bairro, está
interditada há mais de dez anos. Será que eles não querem ser
descobertos?
Foi então que comecei a tomar notas de tudo o que dizia respeito ao
Ipiranga. Ou melhor, que não dizia. Por exemplo, no programa Aqui
Agora, nunca vi aquele repórter dedo-duro, que corre atrás de traficante
chinfrim, ofegar-se pelas ruas ipiranguistas. Ou seria ipiranguenses?
Jamais saberemos.
Nunca li em nenhum jornal nenhum crime no bairro do Ipiranga.
Claro, o bairro não existe. Mas há um local onde foi ou onde seria o bairro.
É aquele lugar onde você se perde quando entra em São Paulo pela
Anchieta. Se nem o Anchieta, grande poeta e peregrino, conseguia achar o
Ipiranga, imagina eu com os meus colaboradores escolhidos a dedo num
anúncio de jornal...
De repente, tudo mudou na minha cabeça. Foi quando comecei a
procurar os classificados dos jornais para procurar um apartamento para
morar. Claro que não há nenhum apartamento para alugar no Ipiranga.
Nem para vender. Pelo menos não anunciam. Então comecei a mudar o
meu ponto de vista sobre o bairro.
Se não tem bandidos, se não tem assaltos, se não tem crimes (a Rua
Cuba, por exemplo, fica bem longe de lá), se não tem apartamentos para
alugar, deve significar alguma coisa. Pelo menos uma: quem mora lá não
quer sair de lá. Lá não tem bandidos, não tem assaltos. Deve ser um bom
bairro para morar. Um excelente bairro, sob todos os pontos de vista.
Felizmente não tem mais as margens plácidas, que hoje deveriam estar
poluidíssimas como as do Tietê. Não tem gritos retumbantes pela noite,
não deve ter esquinas com meninos de rua a nos doer o coração.
Pensando bem, o bairro do Ipiranga deve ser o melhor.

ANTIGAMENTE MENTIA-SE APENAS DE


MENTIRINHA
03/12/94

Mente-se muito no Brasil, Nunca se mentiu tanto como agora. Só


que agora a mentira é transmitida por satélite, ao vivo, a cores, para
milhões de boquiabertos famintos. Vivemos numa loteria de mentiras que
ganha mais quem mente mais. Ou mente mais quem ganha mais? Mas
nada é absurdo neste país onde se rifa um (e apenas um) cílio do Michael
Jackson. E não acharam nenhum pentelhinho para rifar entre os
garotinhos?
Mas deixemos o absurdo de lado e voltemos à mentira. O brasileiro
sempre gostou de mentir. Mas, antigamente, a mentira era contada como
mentira mesmo. Tanto o narrador quanto o ouvinte sabiam que aquilo era
uma mentira. O que mudou é que hoje o ouvinte continua sabendo que o
narrador mente, mas o narrador afirma caradepaumente que se matará se
o que ele diz for mentira. Antes a mentira era de mentirinha. Hoje a
mentira é de verdade
Em toda cidade do interior sempre existiram os personagens
manjados. Tinha o corno, o viado, o doido, o bêbado e tinha, claro, o
mentiroso. O mentiroso era um profissional da mentira. Em Lins, tinha o
seu Naves. Como mentia bem o velho e simpático seu Naves. Era um
prazer, ainda garoto, sentar-se perto dele no bar do clube e ficar horas a
ouvir as mentiras que ele contava como se os fatos houvessem acontecido
com ele, um dia antes.
Casos que o Naves contava enquanto mastigava a sua dentadura
como se fosse chiclete:
- Um dia eu estava andando pelo matagal da minha fazenda e ouvi
alguém cantado "Mulher Rendeira". Ficava repetindo sem parar: "olé
mulher rendeira, olê mulher rendá, olê mulher rendeira , olê mulher
rendá"! Bem entoadinho. Mas, no meio daquele mato não podia ter
ninguém. Lá só tinha onça. Aí então eu aprumei o ouvido e fui
caminhando na direçào do som. Cada vez mais alto. Sabem o que era? Era
um pedaço de disco quebrado no chão e o vento fazia um galho balançar e
passava um espinho pelo disco.
Outra mentira, esta, dupla:
- Teve um ano que as raposas estavam muito ariscas, muito rápidas.
Então o que eu fiz? Pequei dois cachorros, amarrei um nas costas do outro
e eles saiam em disparada. Quando um cansava, virava, e o outro corria.
Assim por diante. Peguei muita raposa assim.
Esta, além de ser uma mentira clássica, não é dele. Se não me
engano, é do Barão de Munchausen. Mas o Naves era assim mesmo.
Outra:
- Um dia eu perdi o breque do carro ali perto de Bauru, numa
descida, não conseguia brecar, fui passando todos os carros, a uma
velocidade incalculável.
- Mas a quanto por hora o senhor estava, seu Naves?
- Não sei, porque o velocímetro estourou. Só sei que eu estava
chupando um picolé e coloquei o palito ele para fora e ele fazia brrrrrrrrrr
nos postes.
Mais uma do Naves:
- Um dia eu fui caçar. Estava voltando para casa e apareceu uma
onça pintada. Imensa. Ficou me olhando. Eu olhando pra ela.Eu e ela ali,
na mata. Mais ninguém por perto. Tinha duas balas na cartucheira. Dei o
primeiro tiro, estava nervoso, errei. Eu suava frio. Ela foi se aproximando.
Babava, a danada, faminta. Dei o segundo tiro, acertei na pata dela. Ela
ficou irritada, uma fera. Veio andando para o meu lado. Joguei o facão na
bruta. Errei. Ela veio chegando mais perto. Joguei a espingarda nela. Ela
só se irritou mais. Olhei para trás. Tinha um precipício. Não tinha saída.
- E aí, seu Naves?
- Aí a onça pulou em cima de mim. Comecei a rezar uma Salve
Rainha.
- E daí, seu Naves? E daí?
- E dai?... E daí, oras! E daí que a onça me comeu!
Fiquei me lembrando destas historias depois de ver o deputado
Alves na televisão. O Alves me lembrou o Naves. Nas mentiras e nas
letras dos nomes. Ambos me divertem muito. Só que o Naves não
comprometia nem o orçamento da esposa dele. Ali ninguém metia a mão.
Verdade! Bons tempos, quando o Naves não era Alves.

AS VELHINHAS VÃO A UM MOTEL


24.11.93

AS QUATRO velhinhas não chegavam a ser alcoólatras. Mas


gostavam de um bom vinho. Todas tinham mais de 70. Entre 70 e 80. Duas
viúvas e duas solteironas. Por ordem de idade, da mais velha para a
caçula: Candinha, Floriscena, Abadia e Aspásia. Nasceram e sempre
viveram num subúrbio do Rio, na Zona Norte. Eram conhecidas como as
Papudinhas.
Eis que um dia, um calor imenso, foi aniversário da Denise, neta da
Candinha, sobrinha-neta das demais. Denise era filha da Wilma. Wilma
tinha uns cinqüenta e Denise estava fazendo trinta.
Foi um grande almoço naquele dia. Uma bela bacalhoada regada a
muito vinho. Mas muito vinho mesmo. Denise, que foi quem me contou a
história, disse que cada uma das Papudinhas devia ter entornado umas
três garrafas de um litro de Dão 75, uma das melhores safras.
Estavam todas naquela alegria etílica quando tudo começou. E tudo
começou quando a dona Wilma disse que havia feito uma grande reforma
no banheiro da casa. Tudo começou quando dona Wilma disse que tinha
colocado uma banheira de hidromassagem lá.
— O que é isso?, perguntou a mais velha, a Candinha.
— São essas banheiras que têm em motel.
— Em motel?, assanharam-se as Papudinhas.
— Em motel...
Seguiram-se alguns segundos de silêncio, mas a Denise percebia no
rosto das velhinhas a curiosidade para ver uma coisa que só tinha em
motel. Coisa do diabo, coisa do pecado. Dona Wilma também percebeu,
mas ficou calada. Afinal, tinha mais gente na sala.
Foi a Aspásia, ou Tipá, a caçula de 70 anos, solteirona convicta e
virgem, quem puxou o assunto novamente.
— Mas o que faz essa hidromassagem, minha filha?
Dona Wilma, já tão bebinha quanto as quatro velhinhas baixinhas,
não teve dúvidas.
— Sigam-me as que nunca viram uma banheira de hidromassagem!
As quatro se levantaram ao mesmo tempo como se houvessem
ensaiado aquela marcação, e seguiram, trôpegas e curiosíssimas, a dona
da casa. Tinha um corredor e a primeira à direita continha a banheira do
pecado, como já imaginavam as Papudinhas. Denise seguiu as cinco e
ficou na porta.
Dona Wilma ligou a banheira. Aquele barulho já foi de uma
excitação contagiante. Jatos de água explodiam em bolhas de espuma.
Dona Wilma jogou um potinho que fez uma espuma imediata, branca e
brilhante. Bolhas subiam pelo ar. Uma velhinha colocou a mão no jato.
— E sai quentinha, meninas! Nossa, deve ser uma maravilha!
Todas colocaram a mão e Abadia foi mais ousada ainda. Tirou o
sapatinho preto e colocou o pé. O jato quase estoura as varizes da velha.
Dona Wilma, que mal conseguia ficar em pé, naquele calor lá da Zona
Norte, resolve entrar de roupa e tudo dentro da banheira. Denise fechou a
porta e deixou as cinco lá dentro. Mas, da sala, tudo se ouvia. Voz excitada
é sempre estridente.
— Também quero!, disse Candinha.
— Tragam mais vinho!, implorou Floriscena.
— Eu vou entrar, mas eu vou entrar pelada!, ousou Aspásia.
— Se você tirar a roupa, eu também tiro, disse alguém.
— Então vamos ficar todas como Deus nos criou.
— Será que não é pecado? preocupou-se Abadia.
— Uma festa desta não pode ser pecado, menina. Nem Cristo
agüentaria isso...
— Nossa, encosta as costas no jatinho. Candinha.
— Meu Deus, que coisa boa!
— Quer dizer que é isso que fazem em motel, é?
— Tira o corpete também, sua bobinha.
— Ai, que coisa excitante.
— Nossa, está subindo uma coisa dentro de mim, como se fosse
uma gasolina!

Denise olha pelo corredor e a água começa a sair debaixo da porta,


invadindo o corredor de ladrilhos novos. Ela sorri, aumenta o som para
que os demais não onçam a festa molhada lá dentro. Mas fica por ali, na
porta, a ouvir a festa que massageava as velhinhas. Pouco a pouco, foi
percebendo que as Papudinhas finalmente haviam descoberto o que era o
prazer. Só saíram de lá de noitinha, como se nada tivesse acontecido.
Como se estivessem saindo de um motel.

COM BRASILEIRO NÃO HÁ QUEM POSSA


19/09/98

UM

Eu já disse, na quinta-feira, que os brasileiros tomaram o Hilton de


São Francisco, como piratas de Sir Francis Drake. É impossível não ser
indiscreto com os nossos amigos. Impossível sentar-se na mesa ao lado de
dois casais de canarinhos e não ouvir o que eles estão conversando:
- Você notou, Ana Cristina, como o papel aqui rasga direitinho no
lugar picotado?
- E o mais impressionante é que a gente nem vê onde é o picotado.
Que país, menina!
- E o chuveiro? Já notaram quando a gente toma banho? O espelho
não embaça.
- Esses americanos... Eles devem passar algum líquido no espelho.
- Com certeza. Primeiro mundo é assim, minha filha!
- E a pasta de dentes que a gente pode deixar destampada que a
ponta não fica dura? Pelo menos esta briga nós não estamos tendo.
- Isso tem no Brasil também.
- Nunca vi.
- Mas o que mais me impressionou foi a máquina de gelo no
corredor. Já tirou gelo? Então tira. É o maior barato.
- E as toalhas, gente?!. No nosso quarto tem oito toalhas de banho.
Pra dois, menina! Não é aquela pobreza do Brasil só de duas, não. Oito!
- Tão branquinhas...
- Você sabia que o shampu é de graça, né, Mariana? Perguntei. Pode
usar quantos quiser. Aliás, muito bom.
- E o negócio do quarto, Alexandre? Como é que você resolveu o
problema de não poder fumar no quarto?
- Simples, Rodrigo, simples. Tirei a pilha do alarme.
E começam os quatro a cantar: "com brasileiro, não há quem possa,
nós somos o esquadrão de ouro!"

DOIS

E por falar em máquinas e brasileiros, a televisão aqui do hotel tem


um canal próprio onde passam filmes. Pagos. Infantis, de aventura, de
ação, etc. E filmes para adultos. Ou, de sacanagem, como preferem os
brasileiros. Não prevendo a vinda de tantos canarinhos solitários, a TV
avisa que você pode assistir ao começo de um filme, sem pagar nada (o
filme inteiro custa 9 dólares) durante cinco minutos para poder optar por
outro. Foram dar esta dica e eu ouvi num bar, aqui perto, três jovens e
solitários masturbadores conversando na maior animação, sobre a
programação adulta. Mesmo porque a mocinha da esquina cobra 200
dólares para subir ao quarto.
- O melhor é o 64. A gente assiste por quatro minutos e dá para
resolver o problema. Sem pagar nada.
- 64? Bom é o 63 que já começa numa suruba danada, nos letreiros.
Tem que acabar antes do Direção De.
- Não liguem no 52 que demora pra começar a sacanagem. Uns sete
minutos de bate-papo. Me dei mal, tive que pagar.
- O 35 demora um minuto e meio mas, quando vem, é sacanagem
da grossa. Só hoje lá liguei três vezes.
TRÊS

Se você ainda pretende vir para a Copa, fique sabendo que os canais
americanos não transmitem todos os jogos. Mas há um, o 14, em espanhol,
que garantiza que vai passar os 52 jogos. Portanto, anote algumas
expressões que eles usam, para entrar logo no clima:
TIRO DE ESQUINA - Não é nenhum tiroteio na O´Farrell com a
Mason Street. É, simplesmente, o escanteio.
MOLESTADO - De repente algum jogador sai de campo molestado.
Não, ninguém o pertubou. Ele está é contundido.
BOTINAZO - Um chute muito forte ao gol. Usam também pelotazo.
PORTEIRA - O gol, o arco, as traves.
INTERTIEMPO - Não, não é nenhuma revista nova que o Mino
Carta vai lançar. É o intervalo de jogo.
FUERA DE JUEGO - Expressão muito usada nesta Copa: jogador
impedido.
CONTRAGOLPE - Contrataque.
SAQUE - Lateral.
SAQUE DE META - Tiro de meta.
PROPOSTA FUTEBOLÍSTICA - Não se trata nem da venda nem da
compra de nenhum craque. Mas sim, da tática do time.
HABILITADO - Quando um jogador está habilitado, significa que
ele está bem colocado para receber a bola.
CAMARIM - Sim, são todos grandes artistas da bola. E é para o
camarim que eles vão no intertempo: vestiário.
PERFUME DE GOL - Quando um time está atacando muito, eles
dizem: hay en el aire un perfume de golo. O que ele quer dizer é que tá
cheirando gol.
QUATRO

E aqueles dois já bronzeados gordos de Belo Horizonte, à beira da


piscina de água quente, no décimo sexto andar, tomando uma cervejinha
gelada, rodeados por europeus por todos os lados:
- O hotel é bom. Muito bom. Só falta uma coisa aqui nesse hotel.
- Mulher?
- Uma churrasqueira aqui na piscina. Já pensou? Com essa
cervejinha gelada?
- Hum!...

CINCO

E tem aqueles brasileiros que residem aqui há muitos anos e se


agregam. Como aquele que é a cara do PC e mora em Los Gatos há 24 e
nunca voltou ao Brasil. Não larga do pé dos jornalistas brasileiros. É bem
intencionado, coitado, só que as gírias que ele usa são de quando ele
deixou o Brasil.
Quando ele quer dizer que ficou amigo de alguém, logo tasca um
"meu amigo Charlie Brown". Ou quando algum jornalista faz um
comentário correto, ele logo elogia: "o macaco tá certo!". Ele está feliz com
a nossa visita, apesar de achar o Parreira "um bokomoko"!

CURSO DE INGLÊS PARA PORTUGUESES


11.5.94

RECEBO, de Lisboa, da minha boa amiga e cantora Iírica Luiza


Sawaya, um bilhete com um dicionário hilário, desta vez escrito pelos
próprios portugueses. Diz Luiza: "Envio esta toalha do Movies Café (ali no
novo Saldanha. Ficou excelente) para você saborear o nascente senso de
humor português. Estão a melhoraire."
Portanto o que segue é coisa de português mesmo.

"Facto: o inglês é a língua mais usada no cinema. Outro facto:


poucos portugueses sabem falar bem inglês. Mais um facto: o Movies
interessa-se muito por línguas. Conseqüência: tomem lá suas lições de
inglês.

Can—Subs. Para se dirigir a uma pessoa. Can vem lá?


Can't—Adj. Muito usado no verão. Estava um dia can't e abafado.
Year—Subs. Acto ou ação de partir. Tive que year emborar
Beat—Verb. Expressão muito usada no norte. Beat ontem na festa.
Eye—Subs. Expressão de indignação. Eye que assim não pode ser.
Feel—Verb. Pequena corda. Feel dental.
Ice—Subs. Expressão de desejo. Ice ela quisesse...
Vase—Subs. Expressão de ordenação. Um de cada vase, por favor!
So so—Subs. Personagem bíblica. So so e Dalila.
Dark — Verb. Expressão popular. Mais vale dark receber.
Dick—Subs. Expressão amorosa. Dick vale a pena viver sem ti!
Read—Subs. Muito usada na pesca. Para mim, tudo o que vem à read, é
peixe.
Jack—Subs. Acto de acomodação. Jack estamos aqui, vamos comer.
Floor—Subs. Expressão de rejeição. Ele não é floor que se cheire.
Loose—Subs. Acto de desligar. Fecha a loose, que já é tarde.
Light—Subs. Substância nutritiva. Olhe, eu queria um copo de light, se faz
favor.
Say—Verb. Dúvida filosófica. Eu só say que nada say.
Machine—Verb. Acto de pensar. Machine só, fui aumentado!
Mad—Verb. Máxima antiga. Um homem não se mad aos palmos.
Suck—Subs. Muito popular no Brasil. Não enche o suck!
Rave — Subs. Expressão de indignação. Irritou-se tanto que fiquei cheio
de rave!
Hype—Subs. Ingrediente de cozinha. Não te esqueças de juntar hype na
sopa.
Cool— Subs. Parte do corpo humano. Se não te calas, levas um pontapé no
cool!
Dig—Verb. Tomar uma atitude. Eu geralmente dig tudo o que tenho para
dizer.
Crash —Verb. Expressão de ameaça. Crash e aparece!
Movies—Verb. Expressão de movimento. Pára! E não te movies!
Steve—Verb. Eu steve para ir, mas não fui. Estava a chuveire."

DANÇANDO NA CHUVA NO SÉCULO 21


30.3.94

"GUARDA-CHUVA—Armação de varetas móveis, coberta de pano


ou outro material, usada para resguardar as pessoas da chuva ou do sol.
"Tá no mestre Aurélio.
Estamos quase no século 21. Nos últimos anos a informática mudou
o mundo. Todas as ciências, todas as profissões, toda a sociedade foram
beneficiadas por ela. O mundo evoluiu. Já conseguimos pousar até em
Marte. Tudo é moderno. Mas, se você observar bem, vai perceber que um
único objeto jamais se modernizou. É o mesmo desde que foi inventado. O
guarda-chuva.
O guarda-chuva. Existe coisa mais antiga que o guarda-chuva?
Desde que foi inventado é igual. Talvez nem tenha sido o homo sapiens
quem tenha tido esta idéia primária. Talvez, antes, algum macaco, um dia,
com a macaca, pegou umas folhas de palmeira, umas varetinhas, espetou
um galho e foram namorar cantando na chuva. Com o mesmo guarda-
chuva que Gene Kelly cantaria milhões e milhões de anos depois.
Observe a sua cidade num dia de chuva. Não parece que estamos
nos anos 50? Ou menos? Não é satisfatório imaginar que este objeto que
você abre quando chove foi usado um igualzinho pela Cleópatra, pelo
Caim, pelo Matusalém, pelo D. Pedro I, pelo Maquiavel, pelo Tiradentes,
pelo Einstein? Isso nos iguala ao resto da humanidade. E daqui a milhões
de anos, estarão usando o mesmo guarda-chuva?
Estive na semana passada em Brasília. Choveu. Os brasilienses
abriram seus guarda-chuvas. A cidade perdia o seu encanto de
modernidade e ficava parecendo com a Rua Direita de qualquer cidade do
mundo.
De uns tempos para cá inventaram uns que se dobram uma, duas
vezes, coloca-se uma capinha, cabe na bolsa de qualquer um. Mas, quando
se abre, fica igual ao usado por qualquer russo do século passado. Tem de
pano, de plástico, de couro. Tem varetas de alumínio, de madeira, de
silicone, até. Mudam o cabo. Fazem cabos retos, tortos, com bolotas na
ponta. Mas são todos iguais. Tem preto, branco, colorido, tem até o do
Banco Nacional. Tudo igual.
E o pior é que a gente sempre se molha. Ou seja, é um objeto que
não deu certo, definitivamente. E mais, entra-se com ele na casa dos
outros, nos restaurantes nos cinemas e vamos logo molhando o chão
alheio. E depois, onde colocar aquela coisa flácida, molhada, respinguenta?
O incômodo está instalado. E o pior é que a chuva passa, você vai embora
e esquece o guarda-chuva em algum lugar. Sempre.
Será que a ciência, tão adiantada para várias direções, nunca vai dar
um jeito de inventar alguma coisa moderna, um líquido, por exemplo, que
a gente daria uma espreizada e ficaria imune das gotas de água? Será que
nunca poderemos dançar na chuva sem precisar de um guarda-chuva?
Sem falar no nome do objejo, que está errado. Porque,
decididamente, ele não guarda chuva nenhuma. Talvez em espanhol
tenha um nome melhor: paráguas.
Sem contar nos motivos de riso que, às vezes, tal objeto nos oferece.
Lembro-me do enterro de um velho tio no interior. A viúva, já velhinha,
foi de peruca para o sepultamento do marido. Quando o caixão estava
descendo para a cova definitiva, caiu a maior tempestade. Um parente, ao
lado da desconsolada, logo abriu o guarda-chuva para proteger a velhinha,
que já estava toda molhada de sinceras lágrimas. E não é que a varetinha
do velho objeto arrancou a peruca da velha? E nem o parente e nem a
abalada viúva perceberam o incidente? A peruca ficou lá em cima,
pendurada na varetinha, exposta à chuva torrencial. Mas as pessoas que
estavam do outro lado da tumba não só viram o inusitado espetáculo
como trocaram o choro sentido por gargalhadas ruidosas. Até o padre
engasgou o seu latim. E a coitada da minha tia lá, toda molhada. E careca.

EM SE FALANDO,TUDO DÁ
26.10.94

MODA—USO, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo,


e resultante de determinado gosto, idéia, capricho e das interinfluências
do meio (Aurélio).
Ninguém melhor que os brasileiros para inventar moda. Só não
inventam um modelo novo de guarda-chuva. "Inventar moda", em si, já é
uma expressão bem nossa. E vocês já notaram que as palavras e
expressões aqui no Brasil também são uma moda? Variam, como diria o
mestre Aurélio, com o tempo. Palavras mudam de significado e sentido
"da noite para o dia", "num piscar de olhos", sem que ninguém "saque"
quem foi que "curtiu" isso ou aquilo. Acho que em nenhuma língua uma
palavra muda tanto de significado com o passar dos anos.
Não é preciso ser tão "gagá" assim para se lembrar que, quando uma
pessoa levava um susto ou se admirava com algo, dizia "cáspite!". que
veio, mais tarde, a dar no "orra, meu!". Se a coisa era chata, tudo não
passava de uma "maçada", ou porque não dizer "pau".
Mas essas são palavras que depois viraram "bregas", ou, em outros
tempos, "cafonas". Hoje diriam que não são nada "radicais". Ou, se
voltarmos para o começo dos 70, eu diria que esse papo está "bocomoco".
Mas, alguns anos antes, se você quisesse "aparecer", diriam que você
estava "carteando marra". "Morou?" Ou, se você for mais jovem, "sacou?"
"Ficou por dentro?" Ou está mais "por fora que dedão de franciscano?"
Lembram do tempo em que tudo que era bom virava "hiper"? Até
supermercado. "Bacana", né? Bacana mesmo são as atuais "gatinhas", que
já foram "pequenas" no começo do século. Naquele tempo, "tempo do
onça", o país ainda não tinha tanta "bossa", nem mesmo a nova. E foi nessa
época que tudo era o "fino", incluindo aí um programa de televisão, O fino
da bossa. Para os desajeitados. sobrava o "grosso". "Programa" também era
um namorico rápido com as garotas. Mais ou menos como "ficar" hoje em
dia, quando "o buraco é mais embaixo". Mas todo mundo era muito mais
"criativo".
Foi naquele tempo que todo mundo "administrava" tudo. Tinha
gente que administrava até a "paquera". Foi logo depois que qualquer
coisa era "micro" isso ou "macro" aquilo. Era um tempo onde a gente
demorava para "cair a moeda". Não era o "máximo"? Mas a gente sempre
"caía na real".
"Podes crer", "amizadinha" !
Bons tempos, quando se podia "dar um tapa" com cuidado para "não
dar bandeira". Depois, "doidão" ou "numa nice", podia-se "tirar um sarro"
com uma menina ou, ao menos, "uma casquinha". Era "duca", mas não
chegava a ser "nenhuma brastemp"!
Agora. "roubada" mesmo era "cair do cavalo" quando a gente punha
as "manguinhas de fora". Aí sim, a gente "sifu". Mas nada estava mais
"inserido no contexto" do que "traçar uma loira" ou "uma brizola". Aí
então, não dava para "formatar" nenhum projeto. Senão, "dançava".
E no momento a palavra mais chata que tem no mercado é muito
"interativa". Notaram que agora tudo é interativo? Acabo de "manjar" que
o meu livro James Lins é interativo. E eu, que nunca tinha "bolado" uma
coisa dessas? Mas o que mais me assustou foi outro dia um sujeito dizer
para outro numa mesa de bar:
— Me "celulariza" amanhã.
"Tem base"? A coisa "tá maus"!
Estou "matando" essa crônica e espero que os leitores, em coro,
gritem comigo: "Por que parou? Parou por quê?". Não escrevo nem mais
uma linha, "nem morta".
"Falou e disse"! "O macaco tá certo"...
Você acaba de levar um "chapéu".
EM SE MULTANDO, TUDO DÁ
21.11.94

SENHOR PREFEITO Paulo Maluf, meus mais sinceros parabéns. O


senhor está contribuindo para que a nossa cidade entre, definitivamente,
na civilização do primeiro mundo. É com muita alegria que vejo os
paulistanos, há uma semana, usando cintos de segurança. Infelizmente,
neste nosso país algumas coisas só funcionam na marra mesmo, na
porrada. Mas atente seus fiscais, senhor prefeito, para multarem também
de noite, que me parece a hora de maiores acidentes, pois os débeis
afrouxam o cinto na chamada calada da noite. Mas ficou provado que, no
grito, o paulistano encolhe a barriga e passa o cinto.
O que o senhor fez, senhor prefeito, foi o mesmo que Lady Bird
Johnson, primeira-dama americana, fez nos anos 60 por lá. Multa para
quem sujasse as ruas e estradas, multa para quem dirigisse alcoolizado.
Civilizou um pouco mais a América. Multas pesadas. Se não me engano,
jogar um cigarrinho pela janela do carro custava cem dólares.
O senhor está provando que esta cidade pode dar certo. Sugiro que
o senhor estenda as multas para outros departamentos e situações com as
quais vivemos diariamente. Vamos civilizar a cidade, senhor Maluf.
Mando aqui do alto desta página umas modestas colaborações:guardador
de carro: multa neles, senhor prefeito. Sei de muita gente que não vai mais
ao teatro e ao cinema pois são achacados para se divertirem. buzina: se
cobrar um real por cada buzina tocada na cidade de São Paulo, vai sobrar
dinheiro para o senhor administrar até o final do século. Buzina noturna
deve pagar cinco reais. teatro e show com atrasos: outra boa fonte de
renda para a prefeitura. Por que os teatros nunca começam na hora
combinada? Dez reais por minuto atrasado e o secretário Konder vai
arrecadar dinheiro para financiar o próprio teatro paulista.caminhões com
alto-falantes: desses que vendem morango de Atibaia, abacaxi do Norte,
melancia de doze quilos. Vender tudo bem, mas o serviço de alto-falantes
é mortal. Multa neles.gente que chega atrasada em encontros: O senhor
deve criar um departamento para se dedar estes amigos. O sujeito atrasou,
a gente liga para a prefeitura, vem um fiscal e cobra uma multa em cima
deles. celular tocando: principalmente dentro de restaurantes, cinemas,
teatros e nos bingos. Um real por toque e o senhor poderá ampliar a rede
telefônica do município com lucro. times que jogam quatro vezes por
semana: multa nos cartolas, senhor Maluf. Não há quem agüente. Nem
nós, nem os jogadores.cerveja quente: multa para os bares que vendem
cerveja quente e uísque com medidor.secretária eletrônica com voz de
criança: multe os pais engraçadinhos. mulher bonita bêbada: tem que
multar. De leve, mas multe.homem com medo de amar: multa neles,
senhor prefeito. A cidade, as mulheres e os homens andam carentes de
amor. Ficou com medo, uma multinha. secretária que diz que o chefe está
em reunião: aqui, acho que a multa tem que ser grande. O dinheiro
arrecadado deverá pagar todas as contas da prefeitura. papel higiênico:
multar as fábricas que vendem papel higiênico picotado mas que nunca
rasgam no picote.políticos que prometem e não cumprem: mil reais por
promessa não cumprida.programação de televisão: multa de dez mil reais
por minuto no atraso de cada programação.pais que batem em crianças:
principalmente nas ruas e na cabeça. Uma multa tão forte quanto o tapa
ou puxão de orelha. Se a surra for dentro de casa, a multa pode ser mais
modesta. camisinha: sei que será difícil fiscalizar quem não está usando,
mas sempre se dá um jeito. Pode dar uma boa receita.mictório sujo: por
que é que no Brasil todos os banheiros de bares, restaurantes, estádios,
estão sempre imundos e fétidos, como se um cadáver putrefato fosse sair
lá de dentro? Uma multa para cada cagada! policiais corruptos: multar os
policiais que não multam com o dobro do valor da multa que deveriam
cobrar, como em Los Angeles.

ESTOU PERDIDO EM LOS ANGELES


14.7.94

LOS ANGELES— Na quarta-feira passada, pela primeira vez em um


ano e meio, deixei de ocupar este espaço que foi brilhantemente
preenchido pelo meu amigo Antonio Bivar, aquele mesmo que ajudou o
Peninha a traduzir o sensacional On the road, do Jack Kerouac, hoje nome
de rua em San Francisco.
Mas vamos às explicações que, espero, convençam o leitor e a leitora
e eu não perca definitivamente o meu espaço. Conforme é do
conhecimento de vocês, estive durante um mês em San Francisco, uma
cidade pequena, com 750 mil habitantes, ao norte da Califórnia. O jornal
pediu que eu me locomovesse até Los Angeles (de onde escrevo
apressadamente agora) para cobrir a semifinal e a final da Copa do
Mundo. Olhei no mapa: pode olhar no mapa, é ali mesmo. Vou de carro,
pensei. São apenas 450. Já na estrada, me lembrei que não eram
quilômetros e sim milhas. Vezes 1,6 dão 720 quilômetros. E eu escolhi a
estrada mais bonita. Foi o segundo erro. Praias, montanhas e precipícios
ininterruptos durante doze horas e meia de viagem. Dava para ter ido ao
Rio de carro, voltado e ido outra vez.
Chegando, só para atravessar Los Angeles e chegar onde está o meu
hotel, foram 60 milhas (multiplique por 1,6). Mas chegamos. No dia
seguinte, o dia que eu deveria mandar a crônica, precisei ir até o hotel
onde estão os diretores da Stella Barros para marcar a minha passagem de
volta. Saí ao meio-dia e meia e voltei às sete da noite. Juro que não tomei
nenhuma cervejinha pelo caminho. Fui, entreguei as passagens, voltei.
Dava para retornar do Rio e ir até Santos, no embalo.
Finalmente no hotel, notei que estava sem cigarros. Aí foi bem mais
fácil. Tinha um lugar que vendia bem pertinho: dez quadras. E tem que ir
a pé, me disseram. Porque, para ir de carro, tem que pegar a West Avenue
à esquerda, cair na estrada 35 South, entrar na estrada 101 North, fazer o
balão depois da 10 East e voltar. E se você errar qualquer saída dessas,
pode muito bem chegar a Boston, Dallas ou Detroit. Segundo informações
do Hotel, de carro levaria 40 minutos, se tudo desse certo. Para comprar
cigarros, leitor. E note que eu não estou falando em ruas e sim em estradas
(sem acostamento).
Quando me instalei, percebo que esqueci o cabo da impressora em
San Francisco. Desço de novo no saguão. É fácil, o senhor pega a 605
South, entra à direita na 110 North, pega o caminho de Pasadena; ao
chegar na 2 North, entra à esquerda na 49 East. É lá. De carro, o senhor
leva umas três horas e meia para ir e voltar. A pé, tem gente que não
voltou até hoje. Mudou-se para lá.
Pode parecer brincadeira ou mentira, mas Los Angeles é assim. São
umas quarenta estradas que se cruzam, cometendo cebolões, ou melhor,
verdadeiros repolhões de mais de 50 metros de altura, com casas por todo
o lado. Tem dez milhões de habitantes e onze milhões de carros, o que dá
uma média de 1,1 carro por habitante. De ponta a ponta, é como se a
cidade fosse de São Paulo a São José dos Campos e de Santos a Sorocaba.
Ou Itu. A cidade tem poucos prédios, comparada com São Paulo, por
exemplo. Tem é estradas. E casas (medo de terremoto?). Ruas são poucas,
apenas para levar das freeways até a sua casa. E o pior, tudo
congestionado. Das cinco da tarde às oito pára tudo, e quem tem
sanduíche no carro não reclama. Acho que por isso é que as telenovelas
são de tarde. Antes do congestionamento. E os noticiários às onze da noite,
para os que conseguem chegar em casa.
Quando já estava chegando no hotel (o que é um feito raro por aqui),
um engarrafamento monstruoso - o termo é este mesmo. Era a saída da
Disneylândia, que fica perto do meu hotel. Aliás, é a única coisa que fica
perto do meu hotel. Dá para ir a pé, vejo aqui da minha janela. Eu sei que
estou aqui para falar da Copa e não do Mickey, mas acho que amanhã eu
vou mesmo é para a Disney.

P. S.: avisem o nosso diretor de redação que eu não vou mais


devolver o carro alugado. Tem que entregar lá no aeroporto, que fica
depois de Itu, perto de Bauru, e o táxi para voltar são 150 dólares. E eu
preciso comprar cigarros de vez em quando. E um remédio para dor de
cabeça. Fora o Lexotan. Mas tudo isso é perto: é em Itaquaquecetuba, ali
mesmo, pela marginal, antes do Colorado. Mas, antes, faço um seguro.

FAÇA LOGO UM SEGURO CONTRA CORNO


3.8.94

ENTRE DUAS mesas de bar, dividindo suas curvas entre as arestas


das quinas, passou uma mulher gostosa. Mas gostosa mesmo. dessas que
todo o bar dá uma pausa na caipirinha e na feijoada e acompanha até o
lado da rua. Era tão gostosa que ninguém esboçou nenhum comentário,
todos boquiabertos. Mas o senhor na mesa ao lado, após acompanhar com
o olhar, o coração e um frenesi que devia estar percorrendo sua espinha,
disse o que todo o bar pensava: - Por essa mulher eu fazia um seguro!
No que eu perguntei:
— Seguro de quê?
E ele, sem pestanejar:
—Seguro contra roubo, incêndio, o escambau.
E eu fiquei olhando a mulher gostosa entrar num carro com a saia
preta justa e os arfantes seios com sardas. E pensei: por esta mulher eu
faria um seguro contra corno. Sim, um Seguro Contra Corno. Homens e
mulheres deveriam fazer seguros dos seus parceiros e parceiras.
- Como é que ninguém nunca pensou nisso? Segurar a sua mulher e
o seu homem contra corno, contra chifre? Porque a sensação desagradável
de ver roubado o seu carro, a sua casa, as suas jóias, é a mesma de quando
roubam a sua mulher ou o seu homem. Se roubam a sua casa ou o seu
carro, logo perguntam: ''tinha seguro?'' E diante da sua resposta
afirmativa, você passa, imediatamente, de idiota a herói. Levaram o seu
carro, mas o seguro vai lhe dar outro. Com a mulher deveria ser a mesma
coisa.
Como fazer o seguro de uma mulher? Da mesma maneira que se faz
um seguro do carro, por exemplo. Isso quer dizer que mulher mais nova,
do ano, digamos assim, vale um seguro mais alto. Já se a sua mulher for
velha, chata, cheia de banhas, ela não deve valer um bom seguro. Como o
homem barrigudinho, chegado numa birita ou boêmio. Deve ter mulher
que a seguradora não paga nada. Homens, então, nem se fala. Pelo
contrário, tem mulher - e aí também depende da idade do homem que faz
o seguro - cujo seguro deve ser caríssimo. Você vai ter que parcelar. Assim
como a seguradora vai ter que parcelar o prejuízo, caso você leve uma
corneada.
Provar que você foi corneado não deve ser difícil. O difícil deve ser
saber quanto é que você vai receber por aquele determinado chifre. Como
vão nos pagar, a nós, eternos e conformados corneados? Um carro, por
exemplo, quando é roubado, eles dão o mesmo valor de mercado. Será
que vão nos pagar o seguro do corno com uma mulher ou um homem
igual? Ou vai haver aí uma defasagem de uns quinze a vinte por cento?
Quem é que me garante que esta mulher que estão me dando como
pagamento do seguro é igual ou melhor que a que me traiu?
E a franquia, como é que vamos resolver este problema? Claro que,
ao assumirmos o compromisso casamenteiro com a mulher, a gente tem
que levá-la ao seguro para ser avaliada, depois de devidamente vistoriada.
E o rapaz do seguro vai fazer aqueles comentários horríveis, como ''tá com
uma verruguinha aqui; estas estrias, são pra declarar ou não? Bunda caída
não nos responsabilizamos. Essas estrias aqui, ela já tinha quando o
senhor conheceu, ou aconteceu com o senhor?" E vamos ter aqueles
seguros mais sofisticados, que vão levantar problemas como: "o senhor
sabe que ela adora discutir a relação, não é? Pagamos menos por essas". E
outras: "essa mulher é reincidente". Ou seja, já levou trombadas por aí, não
esta com o eixo no lugar, está vazando óleo.
Claro que vão surgir uns espertinhos que vão sumir com a esposa e
dizer que levaram corno. Muito provavelmente elas foram vendidas no
Paraguai. E piores serão aqueles que provarão por a mais b que tinham
trava de direção e alarme e nem a trava (ou seria melhor dizer cinto de
castidade) nem o alarme funcionou? Neste caso, como agiria o seguro
contra corno?
Vão surgir, evidentemente, aqueles mais chatos ainda, reclamando
de um simples arranhãozinho na calota da mulher, ou da buzina do
marido que não toca mais. Mas tenho certeza que, até lá, as seguradoras
estarão mais seguras que nós, os cornos, para saberem quem deve não ser
segurada ou segurado.
Afinal, dirá o slogan da seguradora: Esse negócio de chifre não
existe! Isso é um negócio que puseram na sua cabeça!
É pagar pra ver!..
Haverá seguros de meses, de anos, de bodas de prata e até de bodas
de ouro. Claro que surgirão mil maneiras das mulheres, sempre
maravilhosas, ludibriarem as seguradoras. Os homens, então, nem se fala.
E surgirão expressões como "segurado manso", "o segurado é sempre o
último a saber", ou ainda "gasta todo o dinheiro dele com o seguro."
Mas, ao apresentar a mulher aos amigos, diremos contentes: "está no
seguro, sejamos modernos! Pode dar uma voltinha. Olha, a marcha à ré é
pra cima, hein? E cuidado, que não tem estepe. E não se esqueça, meu
amigo, de colocar gasolina, senão ela vai te deixar na mão."

FILHO É BOM, MAS DURA MUITO


07/09/94

- Aproveita agora, porque depois que o seu filho nascer, você nunca
mais vai ter sossego na vida. Você nunca mais vai dormir.
- Aproveita agora, que ele ainda não tem cólicas noturnas e ainda
mama nas horas certas, porque depois a sua vida se transformará num
verdadeiro inferno noturno.
- Aproveita agora, que os dentinhos dele não começaram a nascer e,
quando isso acontecer, não vai ter Nenedent que acalme nem ele nem
você.
- Aproveita agora, enquanto ele não engatinha, porque quando
começar a arrasar a casa e a derrubar cadeiras e bibelôs e lustres e a comer
jornal, só vai dar dor de cabeça.
- Aproveita agora, antes que ele comece a andar. Aí acaba o sossego.
É o perigo dele bater a cabeça nas quinas das mesas, cair e meter a boca no
chão, puxar panela no fogão. É um transtorno, filho andando. Ele
correndo pela casa e você atrás.
- Aproveita agora, enquanto ele ainda não está na fase do "Por que?",
porque depois você não vai conseguir ler nem jornal nem livro e nem ver
televisão. E vai ter que explicar sempre o inexplicável
- Aproveita agora, que ele ainda não sabe ler e pedir o que quiser no
restaurante. A única vantagem é você não precisar ficar traduzindo os
filmes para ele.
- Aproveita agora, enquanto você programa as férias dele e ele ainda
não ouviu falar na Disneyworld, porque você vai ter que pegar filas de
duas horas e enfrentar montanhas russas no escuro.
- Aproveita agora, que ele ainda não é tarado por música, porque
quando ele resolver ouvir "música" na sua casa - com ou sem os amigos -,
até os vizinhos mais simpáticos irão reclamar. E não pense que ele vai
tocar aquelas músicas do seu tempo, não.
- Aproveita agora, que ele ainda não entrou na adolescência. Pois,
quando entrar, você nunca mais vai ter sossego, nunca mais vai dormir.
Não se esqueça da íntima relação entre a palavra adolescência e adoecer.
Não ele, mas sim você.
- Aproveita agora, que ele ainda não está nem fumando maconha e
nem acabando com o seu uísque e aquela cervejinha que você tinha
certeza que estava na geladeira te esperando do trabalho.
- Aproveite agora, que ele ainda não está andando em más
companhias, porque você vai ter que aturar figuras saídas sabe-se lá de
onde, com cabelos, brincos e tatuagens que você jamais poderia imaginar
um dia conviver.
- Aproveita agora, que ele ainda não tomou nenhuma bomba e você
ainda acha que ele é tudo que você sonhou, porque quando ele repetir de
ano você fará - para você mesmo - a eterna pergunta: meu Deus, onde foi
que eu errei?
- Aproveita agora, que ele ainda não decidiu que faculdade cursar,
porque a escolha dele não vai nunca coincidir com os planos que você
fazia para ele, quando ele ainda engatinhava.
- Aproveita agora, que ele ainda não entrou na faculdade, porque
quando entrar vai pedir um carro para ele ou usar o seu.
- Aproveita agora, que ele ainda avisa quando vai dormir fora de
casa. e você pode dormir sossegado e não pensar em ligações
desagradáveis para a polícia, o hospital e, o pior de tudo, para o IML.
- Aproveita agora, que ele ainda não se casou, porque depois ele
nunca mais vai te visitar, a não ser para pedir dinheiro emprestado.
- Aproveita agora, enquanto ele ainda não tem filhos, porque
quando tiver é você quem vai tomar conta deles nos fins de semana. Seu
sossego chegará ao fim, logo agora que você se aposentou.
- Aproveita agora, que ele ainda não se separou da primeira esposa,
pois quando isso acontecer ele virá morar novamente na sua casa.
- Aproveita agora, que ele ainda te ajuda com um dinheirinho,
porque a sua aposentadoria não dá para nada, pois a segunda mulher dele
vai ser contra a ajuda.
- Aproveita agora, porque ele está pensando em te colocar num asilo
de velhinhos.

PS - A frase do título é do Marcelo von Zuben, dentista brasileiro


que mora em Portugal, pai do Murilo e da Úrsula.
FRASES ORIGINAIS DE UM FIM DE ANO
29.12.93

FELIZ NATAL.
Próspero Ano Novo.
Tudo de bom para você em 94.
Passei na vitrine, olhei, achei a tua cara.
Tinha certeza que era você o meu amigo-secreto.
No ano que vem vou fazer regime.
Imagine, não precisava se preocupar.
Coube direitinho.
Pode trocar, se não servir.
Só isso, pai?
Nossa, como este ano passou rápido.
Não tinha o seu número, infelizmente.
Foi um ano difícil.
Vai ser o ano do tetra.
Deus te ouça.
Saúde pra dar e vender!
Olha só o que eu ganhei.
Nossa, como eles cresceram!
Discurso, discurso!
Não sei como agradecer.
Juro que eu não esperava isso.
No ano que vem vou parar de fumar.
Gente, tou completamente bêbado.
Este peru é Sadia?
Alguém viu o quebra-nozes?
Meu, que ressaca!
Você viu a pobreza do presente que o chefe me deu?
Juro que nunca mais bebo. De estômago vazio
No ano que vem eu passo, mãe.
Esse verão vai ser de matar.
Que horas são? Já?
Alguém viu o meu filho por aí?
Se você não for bonzinho, no ano que vem o Papai Noel não vem.
Quem foi que sentou no bolo?
Onde foi que você comprou esse uísque? Sei não.
Pior que 93 não vai ser.
Quem vai buscar mais cerveja?
O meu presente sumiu! O meu presente sumiu!
O médico disse que você não pode beber, vó.
Quem foi que vomitou na escada?
Isso que é vinho!
Hoje é Natal, conversa com o seu irmão, meu filho.
Vamos rezar agora. Todo mundo de mãos dadas.
Que horas que é a São Silvestre mesmo?
Pior é que. no ano que vem, o Natal e o Ano Novo caem no domingo.
O pessoal tá fumando lá no banheiro de cima.
Alguém tem uma Bic aí?
Me disseram que não foi hoje que Jesus nasceu.
O shopping estava assim de gente.
E os preços, então?
Gente, acabou o uísque.
Estou morrendo de sono.
Quando é que cai o carnaval?
Puxa, não te via desde o ano passado.
As crianças estão passando com a mãe.
Vai pra onde?
Cadê o balde de gelo?
O que eu não agüento são essas musiquinhas.
É melhor você não ir guiando, meu filho.
Se você continuar guiando assim, eu desço.
Não desce não, que é você quem está guiando.
Boa noite.
Feliz Natal.
Me passa o celular.
Próspero Ano Novo!
Tem um Engov aí? Aliás, me dá dois.

HAPPY HOUR NO THE PLACE


20.10.93

NÃO É MAIS o barulho da pipoca do espectador de trás que nos


incomoda no escurinho do cinema. Ou do teatro. Agora tem o telefone
celular, que toca na melhor cena, interrompendo o aguardado beijo ou o
tiro à queima-roupa.
O mundo gira, a lusitana roda e o brasileiro copia e inventa moda.
Semana passada, fui a um happy hour de trabalho no The Place. No bar.
Eu e mais quatro altos, simpáticos e modernos executivos paulistas.
Logo na porta, antes de entrar, entregando o meu modesto Gol para
o simpático manobrista, já havia um senhor a bordo de um telefone
celular explicando para a esposa (talvez) que a reunião ainda não havia
acabado. Na minha mesa, os quatro traziam, no bolsinho do paletó, antes
destinado para lencinhos de seda para oferecer para as damas incautas,
todos eles, traziam o seu celular. Em pouco tempo percebi que todo o bar
do excelente restaurante estava cheio de celulares. E também, incontinenti,
percebi que, ao contrário do falos, quanto menor o celular, mais status dá.
Coitados dos pobres brasileiros - como diria o Casseta & Planeta: terão
que usar "orelhão celular" nas costas e, ao menor descuido, vem um
vagabundo e o usa.
Evidentemente que o cidadão com um celular pouco maior que um
maço de cigarros tem uma certa dificuldade - além do barulho reinante no
recinto - para se fazer ouvir lá do outro lado. Como o bocal fica na altura
da bochecha, ele tem que entortar a boca para falar. E era isto que se via ali
no bar. Gomalinados executivos a torcer a boca. Parecia que era a sala de
espera de um consultório médico especializado em derrame cerebral.
Impossível manter uma conversa. Que happy hour mais bad trip...
Os que não estavam falando, estavam aguardando telefonemas. A
toda hora tocava em uma mesa. Ou melhor, em um bolso. Com que
alegria e soberba eles tiravam os microcelulares de lá. Moda é moda e, à
lusitana, ela roda.
Na ida ao banheiro, depois de algumas cervejas, vejo um senhor na
escada a explicar para a namorada (talvez) que ele não tinha nenhuma
obrigação de fazer o exame de Aids, uma vez que ele nunca tinha se
picado, nem tivera homens e nunca tinha feito transfusão de sangue. Esta
informação toda, entre um degrau e outro. E ainda fez uma piadinha com
a coitadinha: Aids é pica ou pico!
Mas foi no banheiro que a coisa se deu mais grave. Estava eu a fazer
o meu inocente xixi naquelas privadas de parede - que eu nunca soube o
nome daquilo - quando ouço - pasmem -, trancado dentro de um
reservado, um senhor ao telefone falando com a mulher (talvez). Não
resisti; me tranquei ao lado, sentei-me calmamente e fui anotando:
- Não, meu bem. Já estou na Raposo Tavares (devia morar na Granja
Viana). Não, meu amor, em cinco minutos eu estou aí. (força) Já pegou os
meninos na escola? (mais força). Estou te dizendo, amor. Pode dizer para
a Joana servir que, em quinze minutos, o doutor Ruy está chegando. Não
confia mais no seu Ruy, amor? (pum!) O que temos para comer hoje?
(força. Mais força) Rouco, eu? Não, é que eu vou levar o Zé Luiz para
comer com a gente. Estamos fechando um negócio. (muita força) Depois
eu te explico. Mandou buscar a BMW? (som de alívio) Sei, sei, hã-hã, hã-
hã. (barulho de papel higiênico sendo derenrolado) Não, pode deixar que
depois eu vejo isso. (descarga exageradamente alta) Chuva, meu bem. Está
chovendo muito aqui na Raposo. Ah, aí não? Estrelado, é? Interessante...
(pra sacanear, eu puxo a minha descarga durante horas). Está ouvindo,
amor? Trovões. Tá muito forte a chuva por aqui. Talvez até demore um
pouco mais. Outro, meu amor. Estou chegando. Se a chuva melhorar, é
claro (desligou e ainda deu uma escarrada e mais uma descarguinha).
Saio antes, espero ele descer e vejo ele sentar com uma loira bem
hebe (secretária?).
Como os celulares estão cada vez menores, imagino que, no futuro,
serão apenas dois pequenos botõezinhos. Um instalado na orelha do
executivo, e outro, no segundo molar superior direito. Mas talvez para
aquele Ruy instalem noutro orifício qualquer.

JÁ NÃO HÁ MAIS LADRÕES COMO


ANTIGAMENTE
27.4.94

ASSIM NÃO é mais possível! Fui assistir ao espetacular show do


XPTO no Teatro Sérgio Cardoso, volto e no banco do meu carro, sentado,
a me esperar, quieto e desafiante, um enorme e sujo paralelepípedo.
Paralelepípedo este que entrou pelo vidro dianteiro do meu possante
Twingo arremessando estilhaços de vidros por todos os cantos. Que
amadorismo, minha gente! É realmente revoltante. Será que os novos
ladrões não sabem nem mesmo abrir mais a porta de um carro?
Antigamente o serviço era feito com mais profissionalismo, com
mais apuro. Às vezes, a gente só ia dar conta do roubo de um rádio já em
casa. Agora não. Nosso novos ladrões não estão com nada.
Já que o país anda mesmo coitado, que os ladrões são mesmo
inevitáveis, o governo poderia organizar melhor os pequenos furtos, já
que os grandes são super bem-bolados. Uma escola para ladrões, por
exemplo Coisa de primeiro mundo.
No Jardim da Infância, por exemplo, se ensinaria a roubar chicletes
em supermercado (sem ser pego), lanche dos coleguinhas e bolinha de
gude. E a colar, é claro.
No curso primário, a garotada ia aprender a roubar laranja dos
vizinhos, galinhas, carteiras de incautos. Mais uns anos e se poderia
ensinar a arrombar portas de casas e de carros, sem deixar a vítima
aborrecida com estragos desnecessários. Poderiam ter aulas com os nossos
melhores corredores de Fórmula 1 para aprender a roubar os quatro
pneus do carro em menos de seis segundos. Nas aulas de educação física.
aprenderiam a correr entre multidões e a pular de ônibus andando, andar
em cima dos trens e apanhar calados.
Numa espécie de ginásio, aulas de assalto à mão armada, mesmo
que o revólver seja de plástico. Halterofilismo. Lutas orientais e capoeira,
com alta especialização em trombadas e trombadinhas. Esportes, como
salto em altura (muros), saltos em distância e até mesmo o triplo. Algumas
línguas, entre elas o inglês e o alemão, para se assaltar gringos. Um
trombadinha que fala inglês é muito mais trombadinha. Também algumas
aulas de etiqueta e boas maneiras, para se assaltar senhoras desprevenidas.
No colegial, já se aprenderia sonegação de impostos, falsificação de
documentos e mil e uma maneiras de se ganhar na loto. Claro que os
melhores alunos ganhariam bolsas para o exterior. Uma especialização,
por exemplo, no Paraguai ou na Bolívia, seria ótimo. Os mais habilidosos
poderiam fazer estágio em Brasília, com aulas ao vivo e a cores.
Defenderiam teses, seriam doutores em roubo, poderiam se organizar em
sindicatos etc.
E por que não uma Faculdade do Assalto, do Roubo e das
Trombadas, a famosa FART (pum!)? Apenas para os melhores. Setecentos
candidatos para uma vaga, como acontece nas boas escolas brasileiras.
Cadeiras como Jogo do Bicho, Tráfico de Cocaína, Lobby, Plágio Musical
etc. Professores brasileiros e estrangeiros. A FART ficaria em Brasília, é
claro.
Tenho certeza que, com ladrões profissionais, o Brasil seria um país
muito melhor, muito mais primeiro mundo.
Chega de jogar paralelepípedos na nossa cara. Joguemos todos nós
um canudo na mão deles. Um diploma. É isso que o Brasil está precisando:
educação e cultura! E leques, para se afanar e abanar.
LEQUES NOS SÉCULOS 17 E 18
Sintra
1991

COLOCAR O leque junto ao coração: conquistou meu amor


Colocar o leque fechado junto ao olho direito: quando posso vê-lo de novo?
A que horas, é respondido pelo número de varetas.
Tocar com a mão no leque ao abaná-lo: o meu desejo era estar sempre
junto de ti.
Acariciar o leque fechado: não seja tão imprudente.
Tocar com o leque meio aberto nos lábios: pode me beijar
Unir as mãos debaixo do leque aberto: não traia nosso segredo.
Esconder os olhos atrás do leque aberto: amo-o
Fechar muito devagar o leque: prometo casar consigo.
Passar o leque pelos olhos: peço desculpas.
Tocar a extremidade do leque com o dedo: quero falar consigo
Tocar o leque na face direita: sim.
Tocar o leque na face esquerda não.
Fechar e abrir o leque várias vezes: você é cruel.
Deixar cair o leque: nós vamos ser amigos.
Abanar o leque muito devagar: sou casada.
Abanar o leque muito depressa: estou comprometida.
Levar o cabo do leque aos lábios: beije-me.
Abrir todo o leque: espere por mim.
Colocar o leque na cabeça: não se esqueça de mim.
Fazer o mesmo movimento com o leque, estendendo o polegar: adeus.
Segurar o leque na mão direita e em frente a face: siga-me.
Segurar o leque na mão esquerda e em frente a face: estou desejosa de o
conhecer.
Colocar o leque junto da orelha esquerda: quero ver-me livre de si.
Passar o leque pela testa: você mudou.
Rodar o leque com a mão esquerda: estamos a ser observados.
Rodar o leque com a mão direita: amo outro.
Segurar o leque na mão direita: você está sendo muito precipitado.

Copiei este texto de um quadro exposto num castelo de Sintra,


Portugal.

MÃO-DE-OBRA SEXUAL DOS PORTUGUESES


18.5.94

ANTES dos portugueses entrarem para o seleto e rico time da


Comunidade Econômica Européia, ou seja, quando eram apenas pobres e
camponeses, não existiam algumas profissões por lá que agora surgem do
nada, de dia e de noite, para a felicidade local. Onde sobra dinheiro,
abunda a prostituição. Em todos os sentidos. O que se segue é um artigo
publicado, no prestigiado matutino alfacinha Público e assinado apenas
pelas iniciais GP. Abaixo do título "mão-de-obra sexual: modo de usar",
segue o seguinte texto, sem tirar nem por (ou melhor, tirando e pondo):

"É este o questionário-tipo para candidatos a massagista:


Consegue 'estar' com homens, com mulheres, ou com ambos?
E com casais?
É activo ou passivo?
Tem pêlos no peito? E nas pernas?
Qual o tamanho do pênis?
Qual a cor do pênis?
E a forma, é normal?
Não é daqueles que estreitam na ponta?
É grosso ou fino?
Quando está erecto, como é que fica? Subido ou na horizontal?
Vem-se (goza) rapidamente, ou consegue estar muito tempo sem vir?
(Desculpe estar a perguntar todas estas coisas, mas são pormenores que os
(as) clientes querem sempre saber.)
Já sabia o que era este serviço?
Qual é a sua disponibilidade?
Quando houver serviço, como quer que o identifiquemos? Podemos
chamar pelo seu nome?"
Nota: para as mulheres repetem-se algumas destas questões; os
restantes pormenores são verificados "directamente".

"Conselhos-tipo dados aos candidatos:


Deve-se sempre fazer-se acompanhar de vários preservativos ou outros
materiais diversos que ache necessários para um bom serviço.
Pode sempre negar um serviço se a pessoa não Ihe agradar.
Deve receber do ou da cliente sempre antes de fazer o serviço.
O trabalho não deve demorar mais de uma hora
Só deve fazer o que for contratado com o ou a cliente; qualquer serviço
extra é pago à parte.
Só tem que se vir (gozar) uma vez.
Nunca se deve envolver sentimentalmente com os clientes.
Deve sempre fazer crer ao cliente que sente prazer com ele ou com ela.
O cliente deve acreditar que é a primeira vez que você está na cama com
alguém.
Deve agir sempre com profissionalismo.
Acabado o serviço, deve sempre encontrar-se com alguém da 'empresa',
que receberá o dinheiro; 60 por cento para si, 40 por cento para nós."

NA ESTRADA COM DANUZA


29.6.94

CALIFÓRNIA - Mario? É a Danuza.


Leão. Queria saber se eu ia na festa da Brahma lá em Los Gatos. Eu
não ia, devo confessar. Meu estômago e meu intestino não estavam mais
conversando um com o outro. Tinha tomado um remédio. Mas a Danuza!
Sempre quis conhecer a Danuza. Ela queria uma carona.
- Te pego em quinze minutos.
Conheço bem a Danuza. Nunca falei com ela. Mas Samuel Wainer
gostava de biografar a ex-mulher, a mãe dos seus filhos. Tinha a maior
curiosidade em conhecer. E ela devia me conhecer um pouco, através da
minha ex-mulher Marta, amiga dela, como confirmaria depois.
Fui buscá-la no hotel cheio de maneiras, e logo de cara cometi a
primeira gafe: perguntei se ela estava mandando a matéria para o Globo
de fax. Ela foi gentil, educada: JB.
Entramos na estrada, eu cheio de dedos, fazendo esforço para dizer
bobagens inteligentes, acender o cigarro dela e outros maneirismos. E eis
que a barriga dá uma pontada forte. O remédio bateu, pensei. Mas eu
seguro. Cinqüenta milhas, eu seguro.
Cabelos ao vento, lá vamos nós. Ela falando do seu próximo livro
(uma idéia genial) e eu olhando no rosto dela. Um pouco de Pink aqui,
uma saudade do Samuel ali. Não dava para ver se o joelho era igual ao da
irmã, a Nara. Mas devia ser.
A pontada agora foi maior. Tenho que parar. Na estrada não pode.
Tem que entrar em alguma cidade. Mas como é que eu vou dizer para
aquela mulher elegantérrima, cheia de maneiras gostosas, que eu preciso
fazer cocô? Penso que deve ter algum capítulo no livro dela onde se trata
disso: da indelicadeza de um homem avisar a uma mulher, a 80 milhas
por hora, que precisa ir lá. O meu intestino parecia que saía da barriga e
enforcava o meu pescoço.
Ela puxava assuntos interessantíssimos e eu só no "sim, não, ah, é?",
perdendo o papo da Danuza. Ela já devia estar me achando um penta.
Explico que preciso ir ao banheiro, sem maiores detalhes. Claro, ela
me diz, aproveito para comprar cigarros. Entro numa cidadezinha, paro
num posto e sumo. E não faço. Volto sabendo que, mais para a frente, a
coisa vai piorar.
Andamos mais umas dez milhas e agora ela fala do trabalho dela na
televisão e eu não ouço mais nada. Nenhuma cidade à vista.
Um deserto californiano. Eu devia estar verde. Será que ela está
reparando que eu estou suando? Deve ter um capítulo no livro dela sobre
homens que suam, fedem. Deve ter. Estico o pescoço, nenhuma cidade.
Explico a situação para ela. Ela acha normal, com estas comidas
americanas horrorosas. Tem uma seta para uma cidade. Eu entro. Mas a
cidade era longe. Meu medo agora era não conseguir chegar a lugar
algum. Fazer ali mesmo, no carro, no banco, ao lado da Danuza Leão.
- Danuza, é o seguinte: eu estou mal mesmo. Se não aparecer logo
uma cidade, eu vou parar e fazer no mato. Você jura que não conta pra
ninguém?
Ela me olhou e deve ter pensado: "como é que esse cara vai se
limpar?" Mas maneirou: "fica tranqüilo".
Além de não ouvir mais, eu não falava. Não podia gastar nenhuma
energia. Qualquer esforço poderia ser fatal.
Um posto! Ela me espera no carro, maravilhosa. E eu lá dentro,
horroroso. Achei que estava com hemorragia estomacal. Voltei e
comuniquei a desgraça. "Tenho que voltar para San Francisco. Vamos
achar um táxi para você. Ela quer voltar comigo, fica preocupada
realmente com o meu estado. Eu insisto, estão esperando ela em Los Gatos.
Estou com vontade de novo. Ela consegue chamar um táxi pelo telefone,
não sei de que maneira.
Vou embora rapidamente. Tenho que achar outro posto. Olho pelo
retrovisor e vejo Danuza Leão encostada num poste de estrada, no interior
da Califórnia, esperando o táxi, o sol batendo forte na cara dela, o vento
mexendo com seus cabelos loiros, linda. Parecia um anúncio da Coca-Cola.
Ao fundo, a poeira faz um rodamoinho e, lá dentro, eu vejo o Mao
Tsetung e o Samuel Wainer a me recriminar.
E eu, que nem perguntei se ela tinha dinheiro para o táxi? Não disse
nada...

NÃO DIGA NADA SEM PENSAR ANTES


20.4.94

DIZEMOS MILHARES e milhares de palavras todos os dias sem


pensar no que estamos falando. Sem sacar a origem delas. Nada melhor,
quando não se tem o que fazer, do que ficar buscando a origem de
algumas delas. Por exemplo:
Enfezado: quantas e quantas vezes você já não disse essa palavra
referindo-se a você mesmo ou a outra pessoa? Mas você já parou para
pensar o que significa quando você diz que está enfezado? Significa
literalmente que você está cheio de fezes. Não fique enfezado por isso.
Coitado: e aquelas mães que vivem dizendo: "coitadinho do meu
filho..." Será que elas têm noção que um sujeito coitado é porque levou um
coito? Por isso que hoje em dia fala-se muito: coitado do Brasil.
Avacalhar: se você vive dizendo esta palavra é porque as coisas
estão mais para vacas que para seres humanos, o que é uma grande
avacalhação com quem quer que seja.
Forró: esta expressão tem várias origens. A melhor delas é que a
palavra teria surgido durante a ocupação de Natal pelos americanos
durante a Segunda Guerra. Às vezes os oficiais ianques davam festa e
todos eram convidados. Era uma festa for all. Com o tempo...
Abruptamente: é você fazer algo com muita brutalidade. Cuidado.
Bandido: eram aquelas pessoas maldosas que andavam em bando,
saqueando, assaltando.
Bandeira: era o dístico, o distintivo destes bandos, destas cidades,
daqueles países.
Soldado: pessoa convocada para a guerra mediante o recebimento
de um soldo.
Salário: na Roma antiga, muitos pagamentos eram feitos com
saquinho de sal, daí o salário. Não me perguntem o que os romanos
faziam com tanto sal.
Agarrar: pode parecer coisa da Idade Média, pois agarrar é
exatamente meter as garras em algo. Se você não tem garras, nunca use
este verbo.
Embarque: quando surgiu esta palavra, queria significar entrar no
barco para partir. Hoje usa-se a mesma palavra para se entrar nos carros e,
o mais estranho ainda - para se entrar num avião. O que nos leva a crer
que o avião também é uma embarcação.
Livro: a palavra vem do latim libero (livre). Portanto, o livro deve
ser sempre algo livre, sem censuras.
Criado-mudo: claro, é aquele móvel que está ali ao lado da sua cama
para Ihe servir, para você colocar coisas nele. E ele é ótimo, pois não fala.
Crônica: deve vir de cronos: tempo, relógio, periodicidade.
Escrivaninha: claro, é o lugar onde se sentavam os escrivães
antigamente. Isso me lembra uma história que aconteceu com um meu
cunhado quando ele era garoto. Ele andava com a mania de dizer tudo no
diminutivo. O pai, preocupado com a masculinidade do garoto, foi logo
proibindo-o de dizer qualquer palavra que fosse no diminutivo. Um dia o
seu Joaquim foi levar a escrivaninha que estava no reparo. O garoto
encarou o pai e foi logo dizendo:
— Pai, o seu Joaca está aí com a escrivana.
E tem mais, muito mais palavras para a gente se divertir. Solte a sua
imaginação, que, aliás, significa ver as imagens, e deixe de minhocar.

O BRASILEIRO ANDA COM MINHOCAS NA


CABEÇA
3.5.93

VOCÊ FICA dois anos fora do Brasil, volta, e muita coisa mudou.
Muitas coisas chamam a sua atenção. O povo deu uma demonstração de
democracia para o mundo derrubando o Collor, por exemplo. O São Paulo
foi campeão do mundo interclubes. O vôlei do Brasil é o melhor do
mundo. Trinta e dois milhões de brasileiros passam fome. O trânsito de
São Paulo melhorou muito. Gabriel Villela é o melhor diretor de teatro. O
dólar, que valia 250 vale 100 mil. Carros estrangeiros desfilam e
ultrapassam o novo/velho fusca. Itamar é um quarto trapalhão. Fernando
Henrique, sociólogo maior, é o Ministro da Fazenda. E mais, muito mais.
Mas o que mais me chamou a atenção nesta volta ao Brasil, o que
mais me impressionou, foi a minhoca. Sim, minha senhora, a minhoca,
antigamente isca para bagre. Está todo mundo criando minhoca. O Brasil
está com a minhoca na cabeça. O brasileiro, mais do que nunca, está
minhocando, na falta de coisa melhor para fazer.
Outro dia, a capa de uma importante revista nacional era com uma
mulher - classe média-alta - levantando, com as próprias mãos - de unhas
muito bem esmaltadas, um punhado delas. Num outro dia no programa
Sílvio Santos, na Porta da Esperança - pasmem! - uma mulher foi pedir
minhocas ao empresário. E - pasmem de novo! - ganhou um litro com
quinze mil minhocas. Não sei como sabiam o número exato. Como contá-
las, como sabê-las, se não conhecê-las, diria Vinicius, que nunca foi de
minhocar muito. Se uma pessoa vai ao Porta da Esperança pedir minhoca
é porque a coisa tá mesmo grave.
E neste último sábado participei com mais umas trinta pessoas, de
um almoço - um cozido divino - na casa da Suzana Prado, viúva do não-
minhoqueiro Caio Graco. Cozido à parte, Iá, três senhoras da mais alta
sociedade e intelectualidade brasileira estavam falando sobre as minhocas.
As três tinha uma plantação - perdão, criação - de minhocas. O assunto era
a minhoca Nada de dólar, Rodin, Sontag, dívida externa, O piano, Glauber
Rocha ou Bósnia. Minhocas! Minhocas e mais minhocas, enquanto se
esperava o cozido.
E não pensem vocês que são estas minhocas que a gente pega no
quintal para pescar, não. As minhocas, minhas senhoras, são californianas!
Devem vir lá dos jardins de Hollywood, de Beverly Hills. Minhocas que já
conviveram com Paul Newman, Robert Redford ou até mesmo Soninha
Braga. Minhocas que viram a saia da Marilyn esvoaçante, que levaram tiro
do John Wayne. Minhocas com saudades de James Dean. Minhocas que já
olharam nos olhos de Tom Cruise. Minhocas que falam inglês sem sotaque.
Cócon!
Não, não se trata daquele filme que os velhinhos ficam tarados, não.
São os ovos das minhocas! Sim, as minhocas colocam ovos, como os
dinossauros. Ovos que "eclodem" depois de 28 dias.
Eu já contei seis minhoquinhas dentro de um cócon.
E no terceiro mês estas minhoquinhas ficam maduras, ou sejam,
defecam. E é aí que entra o lucro. O cocô, que se chama húmus, que é o
que interessa. Para você ter uma idéia da produtividade do tal húmus,
uma minhoca - ou um minhoco - defeca exatamente metade do seu peso
por dia cocô, ou melhor, húmus. Metade do peso! Se você tiver setenta
quilos, por exemplo, imagine-se fazendo 35 quilos de cocô por dia.
Imagine o tamanho da fila do banheiro da sua casa. Imagine como ficaria
o Tietê com esta cocozada toda. Ainda bem que não somos minhocas. Por
enquanto.
E se você pensa que uma minhoca dura apenas uns dias ou semanas,
você não entende mesmo nada de minhocas. Uma minhoca dura dezesseis
anos. Vive mais que cachorro. Tem minhoca avó, bisavó, minhoco com
próstata, velhinhas esclerosadas e minhoco de óculos e ranzinza.
- O meu marido tem duas mil cabeças de gado.
- Eu tenho 300 mil cabeças de minhoca! disse feliz uma minhoqueira.
Ou seria minhoquista?
Afinal, pensei, de que lado fica a cabeça da minhoca?
É isto aí. Nunca o Brasil minhocou tanto. A minhoca está subindo à
cabeça das brasileiras. O Brasil está com minhoca na cabeça.
O dia em que a minha querida Ruth Cardoso, esposa do Ministro da
Fazenda, começar a criar minhocas, é porque realmente o Brasil foi para o
brejo com suas minhocas voadoras. Ou melhor, para o lodo, que é onde
elas se sentem melhor.
O Brasil não é mais um país para homens. É um país para húmus.
Defequem, pois.
O BRASILEIRO E SUAS MÁQUINAS
VOADORAS
1998

Outro dia estava ouvindo uma conversa num bar, na mesa ao lado.
- O meu, considera risco de vida imediato, mas só em fase aguda, é
claro, e que não possa ser tratado em casa.
- O meu, pode internação em apartamento, com quarto com
banheiro também para o acompanhante. Um banheiro só para ele.
- O meu, inclúi sala cirúrgica e UTI.
- O meu, pode usar leitos especiais.
- O meu, tem até alimentaçào dietética.
- É mesmo? O meu, pode usar ambulância desde que não esteja a
mais de 100 quilômetros. Se você se arrebentar em Campinas te trazem
para cá de graça!
- E fisioterapia? Até 40 sessões!
- Para doenças cardiológicas o meu tem carência de 10 meses.
- O meu é de oito!
- É mesmo? E urgência clínica em geral?
- Seis. Agora, gravidez, só depois de 18 meses.
- Claro.
- Helicóptero, tem?
- Não... Mas cada enfermeira, meu!
- E AIDS?
- O meu, não fala nada.
- Nem o meu.
Vocês têm reparado nos anúncios pela televisão dos Seguros Saúde?
Não dá vontade de ficar doente, de se acidentar, de entrar em coma? Já
pensaram que maravilha, você estendido na grama da orla de uma estrada
qualquer e vem um helicóptero daqueles vermelhos a 1000 por hora para
te levar pelos ares, antes que Deus o faça?
Tem um anúncio que lembra em muito a chegada da espaçonave de
Contatos Imediatos de Terceiro Grau. Seria para queimaduras de terceiro
grau? E os carros que nada ficam a dever aos bólidos da fórmula um? E a
enfermeiras loiras e lindas? E aquele médico que entra na casa da
apavorada mãe e, ao sair, ainda controla uma bola com olhar de doutor
Sócrates?
Nunca, pela televisão, se pediu tanto aos brasileiros que sofram
acidentes, que fiquem doentes, que tenham um câncer súbito. Adoecer
está virando um sonho na vida dos já enfraquecidos brasileiros. A palavra
resgate virou moda. O Seguro Saúde é um status, um seguro status.
Só que poucos têm acesso aos resgates da medicina brasileira. O que
devia - e está na Constituição - ser obrigação do Estado, torna-se objeto da
mídia. Gasta-se milhões e milhões de dólares em anúncios de trinta
segundos e páginas inteiras dos principais jornais do País. Será que com
este dinheiro jogado na nossa cara não dava para resgatar milhares e
milhares de brasileiros que morrem de fome por aí?
E o pior é que o pobre, que não pode ter o seu seguro de saúde, fica
assistindo, de meia em meia hora, as vantagens desta ou daquela
companhia. Não dá mesmo vontade de ficar doente? Ou melhor, mais
doente do que já se está?
Eu não conheço ninguém que tenha sido resgatado por um
helicóptero de terceiro grau. Nunca vi na rua aqueles carros maravilhosos
que aparecem na televisão. Nunca vi médico nenhum batendo bola na
porta da casa de ninguém. As enfermeiras - salvo raras exceçoes - que tive
pela frente eram sempre gordas e mau humoradas. Nós somos doentes do
terceiro mundo, pessoal. E não do primeiro, como querem nos convencer
com estes anúncios milionários e suas máquinas voadoras.

O CORNO E O COMBORÇO
10.11.93

A PIADA que corre na semana, evidentemente, é sobre os nossos


nobres deputados baixinhos, suas secretárias, seus motoristas e suas
esposas (principalmente suas ex-esposas). O que se comenta é que, agora,
todo deputado baixinho e precavido vai ter, para sua própria segurança,
secretária (eletrônica), carro com piloto (automático) e mulher (inflável).
A verdade é que este país está mudando. Hoje as ex-esposas estão
indo à televisão e mandando bala, literalmente. Parece-me que este Brasil
vai mesmo ser passado a limpo. Teremos um futuro a limpo?
A palavra amante invadiu nossos vídeos ao vivo. lsto me fez
lembrar quando eu escrevi a novela Estúpido cupido, na Globo, em 76, e
certas palavras eram proibidas de ir ao ar às sete da noite. Juro por Deus:
penico, ceroulas, entre outras. Amante, nem se cogitava. Mas havia um
casal de amantes na história. Leonardo Villar e Maria Della Costa não
podiam ser amantes, segundo Brasília. Esta palavra não podia nem sequer
ser pronunciada.
Foi então que recorri ao velho e bom Aurélio para um sinônimo e
encontrei a palavra comborço. Usei a simpática comborço umas vinte
vezes, até que os inteligentes censores descobriram e a proibiram também.
Aí, a solução foi casar os dois. Um era viúvo e a outra desquitada, coitados.
Mas, com esta CPI toda, a palavra comborço voltou à minha cabeça.
Comborço significa o amante (ou o atual marido) da ex-mulher da gente.
É o grau de parentesco entre o corno e o outro. Ou seja, a todo corno
corresponde um comborço. E a todo comborço corresponde um corno.
Portanto, se a sua ex-mulher ou ex-namorada tiver um outro marido ou
namorado, ele é o seu comborço. E você, me desculpe, é o corno dele.
Os cornos não devem se preocupar. Porque o corno de hoje pode ser
o comborço de amanhã. Portanto, não se irrite com o seu comborço,
porque, mais dia, menos dia, ele será também um corno e terá,
conseqüentemente, o seu comborço correspondente. Faça as suas contas e
você verá que já foi mais comborço do que corno.
Tem corno que odeia o seu comborço. E vice-versa. É um erro
terceiromundista. A moderna Psicologia nos ensina a respeitar o nosso
comborço. Deve-se tratar bem o comborço, principalmente se você tiver
filhos com a sua ex-mulher. Afinal, quem está cuidando dos seus filhos é o
comborço.
E tem comborço que odeia o seu corno. Não se deve odiar o nosso
corno. É muito comum o comborço ter mais ciúme do corno que o corno
do comborço. O comborço tem medo que a qualquer momento o corno
passe a ser o comborço dele mesmo. Ou seja, os dois seriam, aí,
parentescamente falando, co-comborços.
Dizem que, em Minas, além de uma associação de machões, já tem
também uma de cornos. Sugiro uma de comborços. Depois se poderia
fazer uma espécie de CUT entre as três entidades e até lançar candidatos a
deputados federais. A CUT significaria Comborços Unidos
Tranqüilamente. Ou Cornos Unicórnios Trapalhões. E assim por diante.
Claro que tudo que foi dito para os homens serve também para as
mulheres. Sim, comborço tem o seu feminino comborça, com bolsa ou sem
bolsa. Já aqui a relação entre a comborça e a corna é mais violenta. Temos
vários casos de crimes envolvendo as duas entidades. Mas também
conheço casos de comborça e corna convivendo dentro da maior
civilidade. Até sob o mesmo teto.
Mas, voltando aos deputados envolvidos no escândalo do
orçamento, fico ouvindo os depoimentos deles e tentando descobrir quem
é corno e quem é comborço. Entre os sete anões, por exemplo, detectei
quatro cornos e três coborços. E uma vingativa Branca de Neve mais para
corna que para comborça.

O FUSCÃO PRETO CONTRA MARIO


PALMÉRIO
4.8.94

UBERABA - Da janela do décimo primeiro andar, ouço o estridente


e monótono alto-falante lá embaixo a anunciar o "sensacional comício do
candidato a deputado federal Mário Palmério, hoje, às oito da noite, no
Alto da Abadia". Meu velho e bom amigo Mário Palmério. Vou.
"Dentro de instantes, aqui, no Alto da Abadia, bairro de moças
bonitas e rapazes inteligentes, Mário Palmério, nosso futuro deputado
federal". E toma rock nos altofalantes. Olho em volta. Pouca gente. Muito
pouca gente. Chega uma Van, desce o candidato e seus pares. Mário está
com oitenta anos, cabelos brancos e longos, quase um metro e noventa,
apoiado numa bengala grossa. Olha em volta. Não deve estar gostando de
ver aquele pequeno público por ali. Muito menos eu. Penso comigo: onde
esse homem está corn a cabeça, para se candidatar a deputado a essa
altura da vida?
Parênteses aos mais jovens: Mário Palmério é um dos maiores
escritores brasileiros vivos Imortal da Academia Brasileira de Letras.
Escreveu apenas dois livros, que bastaram: Vila dos Confins e Chapadão
do Bugre (que deu minissérie na TV). Foi fundador e diretor de umas oito
faculdades em Uberaba, onde sempre morou. Sempre não, porque já foi
deputado federal (sempre fiel ao PTB de Getúlio Vargas) e morou num
apartamento-barco, subindo e descendo o rio Amazonas, durante uns sete
anos, fazendo sabe-se lá o que, acompanhado (para inveja de todos nós,
mais jovens) de uma bela jovem com semblante de índia brasileira.
Também já morou no exterior, nas funções de embaixador do Brasil e
adido cultural. Hoje pinta pássaros, apenas pássaros. O homem é um
gênio.
E agora eu via ali o meu amigo Mário Palmério cercado pelas poucas
moças bonitas e os poucos rapazes inteligentes do Alto da Abadia. O
Brasil não tem mesmo memória. Pensei até mesmo em subir no palanque
e dizer para toda aquela gente quem era o candidato de cabelos ao vento
que estava ali, humildemente, na praça da padroeira da cidade, a pedir
votos. Ou será que seria melhor subir, pegar o Mário pelo braço, levá-lo de
volta para a fazenda dele onde, ao lado dos seus 19 cachorros, ele deveria
escrever o terceiro livro que deve a todos nós? Fui embora. E foi quando
compreendi tudo.
Do outro lado da cidade, um comício lotado. Era o outro candidato a
federal, cidadão de nome Wagner Nascimento, eleito prefeito de Uberaba
pelo PRN (Collor, Iembra?), e que até há poucos dias dava explicações à
Justiça mineira sobre desvio de verbas. Esse Nascimento é negro. Negro
como a sua esposa, que é candidata a deputada estadual. E o apelido dele
é Fuscão Preto. A praça lotada. Rojões. Chega o candidato num fuscão
preto, a banda ataca a música e ele sai lá de dentro, de próprio punho e
garganta, com um microfone. a cantar a sua música, todo desafinado:

Fuscão Preto
Você é feito de aço
Fez meu peito em pedaço
Me ensinou a matar.

E a galera delirava, mesmo sabendo que esse Fuscão Preto sempre


andou na contramão da legalidade e pode estar engatando uma marcha à
ré no futuro da cidade.
Volto para casa abatido, como no samba do Vanzolini. Mas não
consigo dormir. O Fuscão Preto toca durante toda a noite, eu fico com
saudades do Mário, que eu e os meus conterrâneos de Uberaba deixamos
sozinho lá no Alto da Abadia. Tentando dormir, lembro-me que, uma vez,
alguém no Paraguai perguntou ao Mário o que era a palavra "saudade". E
ele, já que estava por lá, respondeu com uma guarânia:
Si insistes en saber lo que es "saudades"
Tendrás antes de todo conocer
Saber lo que és tener, lo que és ternura
Vivir por bien y por amor murir
Despues comprenderás lo que és saudades
Despues que haga perdido aquele amor,
Saudades, soledad, melancolia,
És lejania,
És recordar,
Sufrir.
Pois recordei ainda que, meses atrás, estive com o Mário na casa do
meu tio Hugo e cobrei dele um livro novo. Me disse estar com preguiça,
enquanto contava casos deliciosos. Contou-me, inclusive, que a sua
grande amiga Rachel de Queiroz estava insistindo para que ele escrevesse
com computador. Me ofereci até para dar umas aulas para ele. Mas ele
quer mesmo é ser deputado federal, sei lá por quê. Mesmo sabendo que o
Fuscão Preto pode atropelá-lo na reta final, mesmo sabendo que pode
furar um pneu nas viagens, mesmo sabendo que a gasolina pode acabar,
ele insiste. Acha que ainda pode fazer mais alguma coisa pelos
uberabenses e pelos brasileiros.
Mas eu, uberabense de nascimento e brasileiro, não vou ficar triste
se ele não se eleger com os votos das moças bonitas e dos rapazes
inteligentes do Alto da Abadia. Porque eu tenho certeza que ele vai voltar
para a fazenda dele e, entre o desenho de um pássaro e outro, vai fazer o
que ele melhor sabe e conhece. Vai nos dar o seu terceiro livro. Fala com a
dona Rachel. Peça para ela mandar o computador. Promete, Mário? Ou
vai ficar no quase?

O ITAMAR É QUASE
17.11.93

O BRASIL já teve presidentes eleitos, presidentes fruto de golpes,


presidentes ditadores, presidentes vices e agora temos um Presidente
Quase. O nosso quase simpático Itamar é quase presidente. Senão,
vejamos.
O nome dele, Itamar. Sob certo aspecto é um nome quase bonito.
Não chega a ser bonito. Mas quase chega. Mas, se olharmos por outro
prisma, Itamar é um nome quase feio. Não chega a ser feio. É quase feio.
O nosso presidente é quase bonito. Mas, para alguns, é quase feio. O
topete, por exemplo. Em algumas fotos ele está quase bonito. Em outras, o
topete está quase feio. O cabelo não chega a ser branco total. É quase
branco total.
Nas pesquisas de opinião, quem ganha, mais uma vez, é o quase. As
pessoas o acham quase ótimo, quase bom, quase regular, quase péssimo.
São pesquisas quase favoráveis.
O carro que ele relançou, por exemplo. O fusquinha. É um carro
quase popular. Como o seu ministério, que é quase bom. Para alguns, é
quase ruim. Mas sempre o quase, nunca nada muito definitivo. O Ministro
da Cultura, por exemplo, a gente quase lembra o nome dele. É um nome
quase estranho.
Alguns partidos políticos quase o apóiam integralmente. Outros,
quase fazem oposição. Mas apenas quase.
Já repararam que ele é quase alto? E quase magro? Mas tem horas
que ele parece ser quase baixo e quase gordo. Depende da roupa. E, por
falar em roupa, já observaram os ternos dele? Ou são quase azuis ou quase
cinzas Às vezes ele é quase elegante. Noutras, ele é quase cafona. É quase
moderno, quase retrógrado.
Às vezes, ele se mostra na televisão quase simpático. Noutras, vira
quase uma fera, investindo contra o cameraman.
Ele é quase amante daquela moça quase jovem. E por falar em
jovens. ele tem duas filhas quase lindas.
Dizem que ele acorda quase cedo e dorme quase tarde.
Ele é quase um político mineiro. Quase que ele tem aquelas tiradas
maravilhosas de um Valadares, Alkmin ou Pedro Aleixo. Sem falar no
Juscelino, quase seu ídolo. O Itamar quase que é reconhecido
internacionalmente.
Ele é quase poupado pela grande imprensa. Ele é quase malhado
pela grande imprensa.
Por pouco, muito pouco, que ele não é mais um machão brasileiro.
Mas é quase.
Ele quase canta as jornalistas que o entrevistam. Quase, apenas
quase. Quase faz charme para todas as funcionárias do Palácio. Quase.
Antes de eleito, ele era quase famoso. Era quase rico, quase pobre.
Sempre foi quase engraçado, sempre foi quase sisudo.
Ele é quase míope e quase sempre tem problemas nos dentes.
Mas nada disto é muito importante. O que importa é que o Brasil já
tem um quase presidente, coisa que não ocorria há muito tempo.
Provavelmente ele vai continuar a fazer um programa quase legal. Ele está
passando o Brasil quase a limpo. O que já é ótimo. Ou, pelo menos, quase
ótimo. O que não é nenhum pecado.

O QUE ERA PECADO ONTEM, AINDA É?


19.1.94

No FUNDO de um velho baú, descobri, dia desses, uma velha


Caderneta Escolar do Colégio Salesiano, onde passei nove anos. Na
caderneta eram anotadas as notas, as presenças e, no final, estão todos os
hinos (em português e latim) que éramos obrigados a cantar. E as orações.
E mais: a Preparação para a Confissão (exame de consciência). Estão lá
todas as perguntas que deveríamos fazer para a nossa consciência, para
depois recebermos a absolvição. Reproduzo, na íntegra, sem tirar nem pôr,
quais eram essas perguntas. A Caderneta é de 1961.
Seria bom o Passarinho submeter os deputados a esta inquisição.
Primeiro mandamento (Religião): Tenho deixado de rezar as orações
diárias por preguiça? Tenho rezado voluntariamente sem devoção? Tenho
deixado de aprender o catecismo? Tenho voluntariamente duvidado de
alguma verdade da fé? Tenho tido vergonha da minha religião? Tenho
feito coisa supersticiosa? Tenho consultado espíritas, benzedores e
cartomantes?
Segundo mandamento (Santos Nomes): Tenho pronunciado o nome
de Deus, ou dos Santos, sem respeito ou devoção? Tenho rogado alguma
praga? Tenho jurado à toa, ou até jurado falso? Tenho deixado de cumprir
alguma promessa que fiz?
Terceiro mandamento (Domingos e dias santos): Tenho por própria
culpa faltado à Missa nos domingos e dias santos? Tenho por própria
culpa chegado tarde à Missa nos domingos e dias santos? Depois do
ofertório? Tenho sido irreverente na igreja, rindo-me ou conversando com
os outros? Tenho sido negligente em freqüentar a doutrina? Tenho
trabalhado nos domingos ou dias santos sem necessidade? Por horas
inteiras?
Quarto mandamento (Pais e superiores): Tenho sido malcriado para
com meus pais ou superiores? Tenho entristecido gravemente a eles?
Tenho desejado algum mal a meus pais ou superiores? Algum mal grave?
Tenho sido desobediente a eles? Em coisas importantes? Tenho zombado
de pessoas pobres, velhas ou defeituosas?
Quinto mandamento (Vida e saúde): Tenho me exposto a perigo de
vida sem necessidade? Tenho sido imoderado em comer e beber? Tenho
ficado com raiva? Tenho injuriado os outros? Tenho batido neles? Tenho
desejado mal aos outros? Grande ou pequeno mal? Tenho levado os
outros a pecar? Tenho dado mau exemplo? Tenho maltratado os animais?
Sexto e nono mandamentos (Castidade): Tenho pensado
voluntariamente em coisas desonestas? Tenho olhado de propósito para
coisas desonestas? Tenho prestado atenção a conversas desonestas? Tenho
lido coisas desonestas? Conversado disso? Cantado alguma cantiga
desonesta? Tenho faltado ao pudor, despindo-me levianamente à vista de
outras pessoa? Tenho feito coisas desonestas? Tenho deixado os outros
fazerem isto comigo?
Sétimo e décimo mandamentos (Roubo e propriedade alheia): Tenho
tirado gulodices em casa sem licença dos pais? Tenho furtado dinheiro a
meus pais? Quanto? Tenho furtado qualquer coisa a outros? Era coisa de
valor? Tenho aceitado ou comprado coisas furtadas? Tenho ficado com
coisas achadas sem procurar o dono? Tenho estragado alguma coisa alheia?
Em um prejuízo grave? Tenho tido vontade de furtar?
Oitavo mandamento (Verdade e bom nome): Tenho mentido? Tenho
prejudicado a outros? Por mentiras? Tenho falado mal dos outros? a)
descobrindo os pecado alheios sem necessidade? b) exagerando faltas do
próximo? c) inventado faltas de outros? Faltas muito graves? Tenho
pecado por mexerico?

Em tempo: neste mesmo ano, 1961, Nureyev fugia da Rússia,


Pavarotti cantava La Bohème, Alan Shepard viajava pelos ares, os
americanos levavam uma surra na Baía dos Porcos, em Cuba, o muro de
Berlim era erguido, Kennedy tomava posse, Hitchcock filmava Psicose, o
nosso Jânio pedia demissão e uma senhora perdia um sapatinho vermelho.

O SAPATINHO VERMELHO
17.7.93

QUEM INVENTA as piadas? Eu nunca conheci ninguém que criasse


as piadas. As piadas são anônimas, multinacionais e seculares. Já
perguntei para o Jô Soares e para o Chico Anísio, nossos maiores
comediantes. O Jô me garantiu que só inventou uma. Nem o Ari Toledo,
que diz ter 60 mil no computador dele, sabe a origem delas.
Algumas piadas têm a tarimba de um dramaturgo experimentado.
A carpintaria de um escritor de talento. Esta, por exemplo:
"O pai, acordando o filho para ir à escola. O filho, morrendo de sono,
retruca:
- Tenho três motivos para não ir à escola. Primeiro, detesto acordar
cedo. Segundo, odeio a escola. Terceiro, quando chego lá os meninos
ficam gozando com a minha cara.
No que o Pai responde:
- Pois eu tenho três motivos para você ir à escola. Primeiro, que é a
sua obrigação. Segundo, que você já está com 54 anos. E, terceiro, que você
é o diretor da escola!"
Notem vocês que, dramaturgicamente, essa piada segue a linha dos
grandes musicais com finale e grand finale. Quando o pai diz "você já está
com 54 anos" é o finale. O ouvinte não poderia imaginar que viria o grand
finale: "você é o diretor da escola".
O mesmo acontece com os casos. A diferença entre piada e caso é
que a piada é ficção. Tanto quem conta como quem ouve, sabe tratar-se,
digamos, de uma piada. Já o caso, não. O caso é realidade. Quem conta o
caso jura saber onde aconteceu (geralmente na cidade de origem dele, no
interior), quem foi o protagonista et cetera. Na pior das hipóteses, diz que
aconteceu com uma prima ou um vizinho. Portanto, o caso tem que ter a
cara do real, do próximo.
Assim como existem piadas clássicas, existem casos clássicos. Como
o que se segue que, juram, aconteceu com um sujeito de São Paulo:
"Digamos que ele se chamasse Carlos Alberto e fosse a pessoa mais
normal do mundo. Casado, dois filhos já crescidos, perto dos 50 anos,
nunca tinha feito análise nem colocado dentadura. Corintiano, talvez.
Dentista, com certeza. Afinal, os dentistas são as únicas pessoas normais
do mundo. Lá um dia, a sogra, que morava em Porto Alegre, ficou doente,
ficou mal, e a sua esposa (Rita, digamos) teve que ir socorrer a velha,
acompanhá-la ao hospital.
E eis que Carlos Alberto fica sozinho e, depois de quase 30 anos de
fidelidade, resolve cair na vida. Fazer uma farra. Era a primeira e,
provavelmente, a única chance. Enche o bolso de camisinhas, vai para o
La Licorne, pega duas gatinhas, leva para um motel e o resto vocês
imaginam. Ele gostou tanto que, no outro fim de semana, chamou outro
dentista amigo dele, pegaram as mulheres e foram para a casa dele mesmo.
Foi uma semana de libidinagem explícita.
Estava Carlos Alberto assim, quando a mulher ligou de Porto Alegre,
dizendo que a velha já estava boa e que voltaria para São Paulo com ela
para a devida recuperação. Carlos Alberto limpou toda a casa, passou
aspirador por tudo quanto foi canto - nem um pelinho à vista - ,
desinfetou toda a sua roupa, lavou copos e pratos, cinzeiros e bidês A casa
ficou um primor. Mandou dar uma lavada externa no carro e foi receber
as duas no aeroporto.
Já no carro, com a esposa ao seu lado, salpicando-lhe beijos, e a
sogra, ainda um pouco pálida, no banco de trás, ao entrar na Rubem Berta,
deu uma freada e - azar dos azares - um sapatinho vermelho desliza
debaixo do banco da esposa para a frente. Ele vê ali a prova dos crimes,
sua frio, mas pensa mais rápido. Aponta um out door novo, as duas se
distraem, ele pega o sapatinho vermelho, com fitinha e salto alto fino e,
discretamente, joga pela janela. Alívio. Mas na segunda brecada sai o
outro sapatinho; ele inventa logo uma desculpa, as mulheres olham para
fora, e ele, consegue, lívido, atirar pela sua janela o segundo móvel do
crime.
Quando chegam em casa, já na garagem, sai ele, sai a sua mulher,
mas a sogra fica lá atrás no banco, toda torta, paralisada.
- Está se sentindo mal, mamãe? - pergunta a Rita.
- Não, minha filha... É que, quando eu entrei no carro, estava com os
pés inchados e tirei os sapatos. Sumiram.
E soluçou.

O SOLUÇO JÁ FOI SOLUCIONADO?


14/11/94

Você lembra quando São Paulo tinha garoa? Aquela chuvinha fina,
que não chovia nem molhava? Nunca me explicaram muito bem porque
não temos mais a garoa. São coisas do mundo, que acontecem, e a
natureza não explica. A obturação, por exemplo. Sou do tempo que a
"obturação caia". Era normal a obturação ( que nome!) cair. Com o avanço
da ciência odontológica, hoje isso é raro. Não caem mais nem a garoa nem,
a obturação.
E o soluço? Já pensou no soluço? Há quanto tempo você não tem
uma crise de soluço? Não sei porque, mas acho que hoje as pessoas não
soluçam mais como se soluçava há uns anos atrás. Nem aquele soluço
descrito pelo mestre Aurélio como "fenômeno reflexo que consiste numa
contração diafragmática involuntária, espasmódica, que produz o início
de movimento inspiratório, o qual subitamente é detido pelo fechamento
da glote, com a produção de ruído característico", nem mesmo aquele
outro tipo de soluço, o "pranto entrecortado por inspiração ruidosa". O
que se passa com o soluço? Obturaram o soluço? Faz tempo que não ouço
um desagradável e interminável soluço no escurinho do cinema.
Soluçávamos mais, muito mais, antigamente. E para parar um
soluço existiam fórmulas "infalíveis". Todo mundo conhecia um método,
uma maneira de se acabar com ele. "Tem um jeito que não falha", sempre
se adiantava um com para a solução. E a vítima do soluço era levada à
malabarismos, a verdadeiros exercícios de aeróbica, à contrações faciais, a
auto-tortura. Cada família tinha seu estilo, cada povo sua solução. Lembra?
- Tapar o nariz e a boca e ficar sem respirar o maior tempo possível.
A pessoa ia ficando roxa, bochecha inchada, quase explodia e nem sempre
o soluço passava.
- Encher bixigas de aniversário, uma atrás da outra, até passar o
soluço. Também quase matava o soluçante.
- Beber um copo de água de uma só vez, com o nariz tapado. O
coitado sempre engasgava.
- Tomar um copo de água com a cabeça voltada para baixo, mas
colocando a borda do copo nos lábios superiores, de ponta-cabeça. Sempre
molhada a sala toda e a cabeça do doente. E o soluço ria da cara da gente.
- Assoviar o hino nacional. Inteiro, num balada só.
- Levar um susto. Este era mais complicado porque a pessoa sabia
que ia levar um susto de alguém a qualquer momento e ficava preparada.
Não relaxava. Você tinha que distrair a vítima e, de repente, outra pessoa
surgia e dava um susto no soluçado. Tinha gente que morria do coração e
ainda soluçava no caixão.
- Andar de cabeça para baixo, no mínimo dez metros.
E mais milhares e milhares de soluções milagrosas.
Às vezes, o soluço passava. Mas voltava, desafiador, vinte ou trinta
minutos depois. Era um tormento, o soluço.
Tinha garoto que inventava que estava com soluço para não comer,
por exemplo. Ou até pra não fazer a lição de casa. Geralmente este soluço
falso tornava-se real depois, para desespero da criançada. Um castigo. E
tinha aqueles casos crônicos em que a pessoa passava o dia a soluçar. Aí
os mais entendidos no assunto vaticinavam: se ficar soluçando dois dias,
morre! Era terrível.
Naquele tempo, quando estávamos com soluço, pedia-se desculpas
para as pessoas mais próximas. Por que? Era feio ter soluço? Soluço era
falta de educação? E soluçar ao telefone, então? Até explicar que se estava
com soluço para o interlocutor...
Já o outro soluço, o do pranto, podia-se e pode-se combater com
mais facilidade. Um alisar de cabelos na amada, um beijo na criança e o
soluço passa. "Tertuliano, abraçado ao cadáver, soluçava
convulsivamente", escrevia Artur de Azevedo. Ou Inglês de Souza, em
Contos Amazonenses: "um deixava naquela saudosa praia a mãe doente e
entrevada, arrastada até ali para soluçar a última despedida ao filho que
partia para a guerra". Bonito. E se o filho tivesse soluços na guerra? Onde
estaria a mãezinha dele para salvá-lo?
Qual seria a solução? E aqui fica a última pergunta: solução é um
soluço grande? Daqueles sem solução?

ONDE ANDARÁ O PRIMO CAMPOS DE


CARVALHO?
30.11.94

PRIMO WALTINHO:

Não sei se você se lembra de mim. Sou filho da Dídia e neto da Fiíca,
sua tia e madrinha. Um dia fui a sua casa no Rio de Janeiro. Final dos anos
60. Eu estava começando a querer escrever. Queria conhecer o mestre de
toda a minha geração. Você - meio emburrado - me mostrou os originais
de um livro novo que, se não me engano, se chamava Maquinação sem
máquina, especulação sem espelho. Você escrevia os originais em francês,
dizendo que a formação das frases ficava melhor. Você nunca publicou
esse livro, primo.
Se me perrnite, Campos de Carvalho, vou dar umas leves pinceladas
sobre o que você andou aprontando na literatura brasileira entre 1954
(quando estreou com Tribo) e 1964, quando escreveu a sua obra-prima O
púcaro búlgaro, hoje tão valorizadas em nobres sebos.
Seu primeiro livro foi saudado como "desconcertante" Antonio
Olinto diria que, "no quadro da literatura brasileira - em que todas as
tendências têm tido ultimamente seguidoras - Campos de Carvalho, o
autor de A lua vem da Ásia, é uma espécie de Henry Miller". Homero
Silva ia mais adiante: "Fenômeno que está exigindo detido exame e que
poderia ser avaliado não apenas pelo seu lado estético, mas, sobretudo,
pela série de indagações que sugere do ponto de vista da sua própria
aparição." Ênio Silveira, dono da Civilização Brasileira: "Sua obra é insólita,
paradoxal, agressiva, candente." E, para encerrar, o seu padrinho literário
Jorge Amado: "A literatura desse moço tem uma força danada. O autor
tem um longo e brilhante caminho a percorrer."
Onde anda você, Walter Campos de Carvalho, que não escreveu
mais, que não percorreu o brilhante caminho apontado pelo escritor
baiano? O Maurilo, meu tio e seu primo, morreu durante a Copa, sabia?
Me deixou a biblioteca dele de herança. E foi lá que encontrei toda a sua
obra, incluindo A vaca de nariz sutil. São livros raros, autografados por
você para a nossa parentada.
Comecei a ler seus livros porque você os mandava para a minha
mãe e ela escondia cá do adolescente, dizendo que "eram fortes". Lia
escondido, olhando para a lua que vinha da Ásia. Adorava, mas achava
que era por ser primo. Mas mais de trinta anos se passaram e eu fui
descobrindo que você tem incontestes e eternos admiradores até hoje. Sei
de gente que xeroca seus esgotados livros e passa de mão em mão.
Quando a Bulgária se classificou entre os quatro finalistas da copa, O
púcaro búlgaro virou tema de acaloradas discussões literárias nos
botequins de San Francisco. E era com orgulho que eu desfilava pelas
mesas como seu primo. Naquele mesmo domingo, enquanto falávamos de
você, o Maurilo morria. Morreu como um púcaro: partido ao meio.
Onde anda você, Campos de Carvalho? Será que anda cheio de
livros inéditos em casa? Aliás, parece coisa de escritor uberabense: o nosso
querido Mário Palmério também anda a dever literatura da boa há muitos
anos.
Você, que um dia escreveu: "Meus irmãos são Nietzche, Stendhal,
Lautréamont, Cesar Bórgia e Gilles de Rais (o Marquês de Sade era meu
tio por afinidade). São vários os meus primos: L,éautaud, Casanova,
Byron, Fernando Pessoa, Montaigne, Andreiev, Aloysius Bertrand. Sou
muito mais nobre que o rei da Inglaterra ou o xá da Pérsia. A nobreza
deles é tão ridícula quanto a divindade do imperador do Japão, filho do
Sol e possivelmente pai da Lua. Nobre sou eu, é Charles Morgan, foram
Rilke, Wilde, Raul de Leoni, Eduardo Guimaraens, Gabrielle D'Annunzio.
Nobre é meu amigo P.C., que já trabalhou na Polícia".
Onde anda você, Waltinho?
Tive a idéia de escrever esta cartinha familiar quando o Roberto
Benevides, nobre editor de esportes do Estadão, ao saber que eu havia
herdado, entre outra obras de valor, as suas, me pediu um xerox da Tribo.
E o fato de eu ser seu primo valorizou muito o meu passe no jornal.
Vou aproveitar esse finalzinho e sugerir ao Luiz Schwarcz, da
Companhia das Letras, que reedite todos os seus livros, num só volume.
Seus priápicos admiradores terão orgasmos literários. E, quem sabe assim,
você saia da tribo, desta chuva imóvel e, qual púcaro búlgaro, fique
olhando para a lua que vem da Ásia como se fosse uma vaca de nariz sutil.

Seu primo,
Mario Alberto Campos de Morais Prata (neto da Fiíca)

P. S.: Tomo a liberdade de lhe pedir para escrever umas crônicas


aqui no Estadão. Inclusive sobre o seu tema preferido: a bunda.

ONDE ANDOU CAMPOS DE CARVALHO


14.11.94
EVE REPERCUSSÃO maior do que eu esperava a crônica sobre o
desaparecimento do escritor Campos de Carvalho. Sem escrever há exatos
30 anos, ninguém sabia do paradeiro do autor de Vaca de nariz sutil e O
púcaro búlgaro, entre outros.
Recebi várias cartas, fax e telefonomas de fervorosos fãs deste que é
considerado por muita gente como um dos dez maiores escritores
brasileiros de todos os tempos. Gilberto Martim, de Jundiaí, por exemplo,
dá a idéia exata de como agem seus admiradores: "tenho xerox do Púcaro,
roubei um Chuva, infernizei a Codecri e recebi um novo Lua (nem que
seja com lascas de pão, escrevi-lhes), e ainda tinha uns sete Vacas, que
usava estrategicamente para repor os outros que furtava". "Onde andará o
primo Campos de Caivalho", era o título da crônica. Entre os telefonemas,
um deles, o mais importante: Lygia, esposa do Campos. Me disse que o
escritor ficara sensibilizado com o texto e que aceitava me ver. Quando
disse isso para o Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial, ele não
acreditou: "imagine que eu já coloquei até a polícia para localizá-lo e
nada!".
Mas a Lygia, com voz mansa e calma, me explicava ainda pelo
telefone: "o Walter teve alguns derrames e várias pontes de safena. Não
está nada bem". Tudo bem, ela marcou uma cervejinha para as quatro da
tarde de segunda-feira.
Walter Campos de Carvalho, aos 76 anos, do alto de um décimo
quarto andar em Higienópolis, continua louco, como já dizia Guilherme
Figueiredo na orelha do Púcaro: "Repito que Campos de Carvalho é um
louco. Um louco perigoso. Está demolindo as rotinas da vida: a hora do
expediente, a do amor, a dos chinelos diante da televisão, a do bocejo, a
hora de mandar as crianças para a cama".
Realmente Campos de Carvalho está com dificuldades para falar e,
principalmente, escrever. Mas não para pensar, doidamente, como sempre
fez. Insiste comigo que está caduco. Mas ele e eu sabemos que não está.
Pergunto se posso fazer uma entrevista com ele. Ele nega: "nem para o
Estadão, onde fui repórter na Segunda Guerra Mundial. Não dou
entrevistas"! E não adianta insistir. E fica bravo comigo: "e não me chame
de Waltinho. Pode ser carinhoso, mas o meu nome é Walter!"
Mas pergunto por que trinta anos sem escrever. "Eu tentei várias
vezes", ele diz, "mas de tudo o que eu escrevia saía tragédia. Eu queria
escrever humor, mas ficava sério..". Pede para a esposa me mostrar
exemplares de seus livros, editados na França, com prefácio do Jorge
Amado, ídolo e fã. Na orelha, uma francesa o chama de "o mais
inquietante escritor brasileiro".
Digo que o único livro dele que eu não tenho é justamente o Púcaro.
Ele diz que só tem os últimos dois exemplares. Peço um para fazer um
xerox. Ele nega veementemente. "Vamos que você saia com ele daqui e
seja atropelado... Se quiser leva um exemplar da Vaca, eu tenho 33". Mas a
Vaca eu tenho dois, retruco. "O Púcaro, não!". E não se falou mais no
assunto.
Tomando cervejinha importada e fumando um cigarro muito
fininho, faz uma revelação estarrecedora: nunca recebeu um só tostão de
direitos autorais dos seus cinco livros. Nada, zero. Seus livros foram
editados pela Pongetti, José Olympio, Civilização Brasileira e Codecri.
Vive da aposentadoria como procurador do Estado de São Paulo.
Só tem um sonho: ver seus livros reeditados para a nova geração
conhecer o seu trabalho. Já está com um contrato assinado com a José
Olympio. '`Mas eles ficam dizendo que estão sem papel...".
Algumas cervejas depois ele afirma que eu moro na rua Maranhão.
Eu nego. Ele não acredita. Eu digo que moro na Franca. "Mas já morou na
Maranhão, não morou?" Não. "Tem certeza?'. Foi quando eu me lembrei
que morei perto, na Alagoas, entre 82 e 86. Por quê?, pergunto. "Porque eu
te via todo fim de tarde no La Villette tomando cerveja. Eu ia toda tarde
lá". Quer dizer que o Brasil todo atrás de você e você ali, durante quatro
anos, toda tarde, do meu lado? Sabia que era eu? "Claro!" E por que nunca
falou comigo? " Falar o quê? Não tinha o que falar com você"
Este é o Walter Campos de Carvalho, louco como sempre.
Maravilhosamente louco, intelectualmente lúcido. Um gênio que passeia a
pé pelo bairro de Higienópolis e ninguém sabe quem é aquele senhor de
cara amarrada que deve estar pensando em alguma besteira, na bunda de
alguma personagem sua, em algum livro que nunca mais vai escrever.
"Além do mais, há alguns anos roubaram a minha máquina de escrever..."
Na porta do elevador, noto seus olhos marejados. Solitariamente
abraçado à Lygia, pede:
"Volta..."
Foi uma volta aos anos 60.
OS BEATNIKS E OS HIPPIES ESTÃO VIVOS
15.6.94

BERKELEY - Alguma coisa acontece no meu coração, mas só


quando eu cruzo a Telegraf Street com a Ahbey. Caí nesta rua, meio sem
querer, a Telegraf. Foi ali, nos anos 60, em Berkeley, que surgiu o
movimento hippie internacional. Berkeley é onde está a Uníversidade
Estadual da Califórnia, do outro lado da baía, atravessando a ponte. De
repente, na minha frente, a rua foi interrompida pelos policiais. Era
domingo, dia da feira hippie. E eu lá. O sonho, pelo menos o meu, não
havia acabado.
Eu ainda não havia me refeito de, na noite anterior, de repente, ver,
diante de mim, a pequena Kerouac Street, em San Francisco, bem ali do
lado da Chinatown. Na esquina, a célebre (celebérrima) City Light Books,
livraria do não menos célebre poeta beat Ferlingetti. Que estava lá dentro,
com mais de 70 anos, atendendo gente. Foi ali, naquela pequena esquina,
que nasceu o movimento beatnik. Olho na vitrine: uma bola de beisebol
assinada nelo Alain Ginsberg, o pai de todos. Fiquei mal, entrei na Condor
e pedi uma tequila. Eu não estava preparado para tanto.
E agora, menos de 12 horas depois, eu estava ali, na feira hippie, em
plena Telegraf. Quem tem mais de 40 pode imaginar o que é isso. Fui ver a
feira. Gente, a feira é hippie, só que é feita pelos mesmos hippies dos anos
60. Só que agora eles estão todos old hippies, alguns ostentando
orgulhosamente os netos nas costas. Mas as roupas não mudaram: são as
mesmas. Não estou me referindo ao estilo, mas sim à mesma roupa. A
velha calça Lee desbotada, o velho casacão de veterano e protesto contra a
guerra do Vietnã, o mesmo rabo-de-cavalo e, quem sabe, as mesmas
pulgas, agora quase quarentonas. Juro que vi um hippie guiando um
Karman Ghia. Quer coisa mais autêntica?
A feira fica no fim da rua. Antes, um supermercado só de comidas
naturais. Os hippies realmente conquistaram o seu lugar em Berkeley. A
universidade tem 30 mil alunos, 15 mil em pós-graduação. Você passa
pelo sebo Shakespeare & Co. e cai nas mãos dos velhos e simpáticos agora
cinqüentões.
Na frente da porta principal da universidade, um bar. Para se tomar
café. Estudantes do mundo todo por ali. Não se pode fumar, mas pode-se
ler todos os jornais do dia. E foi lá que eu fiquei com o coração nos anos 60
a ler as notícias da copa.
Aqui na Califórnia, a nossa imprensa, os nossos jornalistas fazem
muito mais sucesso que os nossos craques. Os jornalistas americanos estão
impressionados com a quantidade deles. O jornal San Jose Mercury News,
por exemplo, o principal de San Jose, onde estão os nossos craques
gutenberguianos, dá como principal manchete na primeira página:
brazilian press swarms over South Bay. Sim, não estão interessados em
entrevistar nem Romário nem Bebeto. Mas a nós, jornalistas. Na matéria
de quase página inteira na back page, fica-se sabendo coisas interessantes:
- os jornalistas brasileiros emprestam seus quartos para os jogadores
terem seus encontros sexuais;
- a vida, para eles, é snooze and the no-smoking laws are a drag;
- Telmo Zanini, da Globo, afirma que soccer is a game for men,
talvez se esquecendo que o time feminino americano de futebol é campeão
mundial;
- Milton Belintani, da revista Caras, tá com quatro mil dólares de
cash no bolso e mais um cartão de crédito com limite de dez mil. Os
americanos acham demais isso para cada um dos 750 jornalistas
brasileiros que estão em San Jose.
Já o San Francisco Examiner, o mais lido em San Francisco, afirma
que o Brasil pode ter descoberto um novo Pelé: Ronaldo.
Mas, neste mesmo Examiner, tem uma notinha pequena, nas
páginas internas, contando que, pela primeira vez, a seleção feminina de
basquete está fora de uma final mundial em 11 anos. E enaltece Paula e
Hortência.
Termino meu café e volto para a feira hippie. Fico olhando: o que
será que aquela loirinha sardentinha pensa em ser neta do hippie? E eles,
será que eles sabem que vai acontecer por aqui um campeonato mundial
de futebol? Ou ainda estão preocupados com o Vietnã?
Os beatniks e os hippies estão vivos. Pelo menos por aqui. O sonho
continua. Como o nosso, depois de 24 anos, de sermos campeões
mundiais de futebol, como já fomos três vezes, no tempo deles.
PARA QUEM GOSTA DE SER CHATEADO
13.4.94

HÁ UNS trinta anos, o dramaturgo brasileiro mais montado no


exterior, Guilherme Figueiredo, publicou urn hilário livro chamado
Tratado geral dos chatos, onde ele fazia uma relação de vários deles. Os
tempos mudaram, os chatos continuam, proliferam e se renovam. Novos
chatos foram surgindo. Vai aqui uma pequena e modesta contribuição ao
Guilherme.

Chato corno: claro, se não fosse chato, não seria corno. Podem
reparar, todo corno é chato.
Chato de galocha: hoje não existem mais galochas (uma espécie de
calçado de borracha que se colocava por cima dos sapatos em dias de
chuva), mas a expressão deve ter surgido porque o indivíduo sempre
entrava na casa da gente molhando tudo.
Chatorganizado: é um dos piores chatos. Gosta de organizar tudo,
dá palpites no churrasco, organiza os amigos-secretos, listas de presentes,
coloca as notas em ordem de valor na carteira.
Chato verbete: é aquele sujeito que se mete em qualquer assunto,
entende de tudo, é uma pequena biblioteca ambulante. Você toca em
qualquer assunto e o elemento disserta. Horas. Nunca ficou provado se o
chato verbete está mesmo falando a verdade. Pode, às vezes, tratar-se de
um chato verbete palha.
Chato sincero: este é horrível. É aquele que chega e diz no seu
ouvido que você está com mau hálito, que o seu carro está um horror, que
os seios da nossa namorada estão caídos. E o pior é que ele faz isso para
agradar a gente.
Chato marido da amiga: quem é que não tem uma grande amiga
que se casou com um cara chato que a gente tem que aturar por gostar
dela?
Chata casada com amigo: é a mesma coisa. Cuidado quando eles se
separarem e você for sincero com ele: "ainda bem que você se separou
dela. Ninguém aguentava ela". Cuidado que eles podem voltar na semana
que vem.
Chata TPM: sem comentários.
Chata ninguém come: Já repararam que em toda festa tem aquela
chata que ninguém quer comer? Aquela que dá em cima de todo mundo?
A chatice dela aumenta proporcionalmente com as doses de uísque
ingeridas.
Chato simpático: tem chato simpático, sim. Começa simpático, mas
depois de meia hora você quer matar ele. É primo do chato bonzinho.
Chato íntimo: é aquele que você viu apenas umas duas vezes na
vida, rnas ele chega logo perguntando pela nossa mãe e filhos, dizendo o
nome e tudo. Sabem detalhes da nossa vida íntima sei lá como.
Chato oferecido: é o que diz: "Diga que fui eu quem mandou"; "Fala
em meu nome"; "Qualquer coisa, me liga, hein?"
Chato que explica: você pergunta como vai e ele explica durante 20
minutos. Pior ainda é quando você indaga: "alguma novidade?". Ele
sempre tem uma novidade que, absolutamente, não nos interessa.
Chato piadista: numa rodinha de piadas, enquanto todos ainda
estão rindo da última contada, ele corta o barato com a pergunta: "e aquela
assim assado?". O chato piadista não tem a menor graça e as suas piadas
são imensas.
Chato inglês: é aquele que não consegue dizer nenhuma frase sem
uma expressão em inglês.
Chato pó: é o que cheira e não consegue parar de falar um só minuto,
e ainda fica entortando o nariz e a boca. E o pior é que fala muito rápido.
Chato rodapé: é o que, ao contar uma história, desvia para um
rodapé de página e deste rodapé vai para outro e mais outro, nunca mais
voltando ao que realmente interessa.
Chato da esquina: é o vendedor na janela do carro que começa te
oferecendo um chiclete, você não quer, ele oferece dois, você não quer, ele
oferece cinco.
Chato hebe: é o que não conversa, entrevista. Só faz perguntas.
Acaba sempre perguntando quanto a gente ganha.
Chato vernissage: já repararam como têm chatos em vernissages e
coquetéis?
Chato inforrnático: ah, o computador dele é sempre o melhor. Faz
coisas que até Deus duvida.
Chato assaltado: basta alguém contar que foi assaltado, que lá vem o
chato assaltado contar o assalto dele: muito mais espetacular.
Criança chata: não existe nada pior no mundo. Têm umas que só
matando.

PARIS, MAIO DE 98
No dia seguinte à conquista do tetra, lá de Los Angeles, escrevi uma
crônica para o Estadão, imaginando a convocação, quatro anos depois (ou
seja, agora), da nossa seleção. Hoje, vejo que acertei a maioria (doze) dos
jogadores. Era mais ou menos assim:

GOLEIRO - Dida (ex-Vitória, ex-Cruzeiro e bi-campeão brasileiro


pelo Grêmio) é quase uma unanimidade nacional. Mas sobre ele pesa o
"pesadelo Barbosa", aquele crioulão que tomou o gol do Gighia na Copa
de 50 em pleno Maracanã. Desde então nenhum negro defendeu o gol da
seleção brasileira. Nem na reserva e lá se vão 48 anos de muitos loiros e
alguns louros. Os cariocas exigem Carlos Germano. E tem gente que
reclama a dispensa, na última hora, de Gilmar, agora no Londrina, como
uma terceira via.
LATERAL DIREITO - Ninguém tem dúvida que Pipoca, filho do
Djalma Santos, do Palmeiras, foi a maior revelacão do futebol brasileiro
dos últimos quatro anos. Mas Parreira ainda o considera muito
inexperiente internacionalmente, preferindo a agora semi-velocidade de
Cafu (ex-São Paulo, ex-Valência, ex-Portuguesa de Desportos, atualmente
no Boca Junior do técnico Diego Armando Maradona).
LATERAL ESQUERDO - O técnico insiste com Branco, que mal
consegue chegar ao meio de campo há duas temporadas, atualmente com
cinco centímetros a menos numa das pernas. "Mas pode ser decisivo numa
cobrança de falta", como foi contra a Holanda nos Estados Unidos. Branco
já havia ameacado abandonar o futebol, jogando hoje no Uberaba Sport,
mas o técnico acha que pode recuperá-lo. Roberto Carlos, atuando hoje
nos Estados Unidos, no Búffalo de Los Angeles, deve se contentar, mais
uma vez, com a reserva.
ZAGUEIRO CENTRAL - Embora Ronaldão (ex-São Paulo), hoje com
dupla nacionalidade (japonesa e brasileira) e atleta de Buda seja o
preferido da torcida, nosso técnico deve insistir com Ricardo Rocha, hoje
no Marítimo de Funchal, em Portugal.
QUARTO ZAGUEIRO - Valber, do Corinthians, agora atleta de
Cristo, deve ser o titular. Mas a sombra de Ricardo Gomes, do Bragantino,
o incomoda. Realmente foi uma pena Junior Baiano ter se desligado do
futebol e se dedicado ao box.
PRIMEIRO VOLANTE - Mauro Silva (do Santos e vereador em
Bragança Paulista) e Dunga (aposentado e deputado pela Democracia
Cristã em Leipzig) disputam a mesma vaga, embora tenham jogado lado a
lado nos Estados Unidos.
SEGUNDO VOLANTE - Elber (ex-Londrina, ex-Milan e atualmente
de volta ao Londrina, jogando na defesa) e Raí (ex-São Paulo, ex-Paris
Saint Germain e no momento jogando na China), disputam pauzinho a
pauzinho a posição. O técnico acha que Raí pode recuperar o futebol que
jogava em 92 e a barriga.
TERCEIRO VOLANTE - O técnico insiste em fazer com que Muller
(ex-Jussara) e Bebeto (cujo oitavo filho nasceu na semana passada) joguem
de volante. "Não existe mais atacante no futebol moderno", costuma dizer.
QUARTO VOLANTE - Marcelinho Paulista (ex-Carioca) é o
preferido. Mas o teimoso técnico insiste em lançar Romário (atualmente
doleiro e jogando só futvôlei) nesta posição. Mas a torcida pedia o
Zaguinho, filho do velho Zague, que hoje joga pelo Botafogo do Rio.
Convém lembrar que Zaguinho defendeu o México na última Copa.
QUINTO VOLANTE - Anderson, aquele que foi trocado pelo Raí em
94, deve ser o titular, embora no Brasil nunca ninguém o tenha visto jogar.
Mas disputa a posição com Viola, ídolo do Flamengo, da Mangueira e
compositor nas horas vagas.
SEXTO VOLANTE - Ronaldinho (ex-Jairzinho, ex-Cruzeiro,
artilheiro do último campeonato espanhol, ex-namorado da Xuxa) é a
única unanimidade nacional. Mas seu reserva imediato, Zinho, agora
jogando no Náutico Capibaribe, do Recife, tem chance. Mas tem muita
gente que ainda prefere aquele que ficou no Brasil, o Oliverrá, de tetra
nacionalidade (brasileira, belga, italiana e turca).

PS - Em entrevista coletiva ontem no Hotel George V, João


Havelange, apoiado por vários assessores e duas muletas, assegurou que
seu genro Ricardo Teixeira está praticamente eleito presidente da FIFA.

PERGUNTEM AO MATEUS
14.7.94

NELSON RODRIGUES, enquanto cronista esportivo, mantinha uma


coluna na revista Manchete Esportiva com o título "O personagem da
semana". talvez um aperfeiçoamento carioca do "Meu tipo inesquecível',
da Seleções (in)Digest. Os personagens do Nelson eram quase que
invariavelmente os jogadores que haviam se destacado durante a semana.
Foi ali que Pelé foi chamado de Rei pela primeira vez foi ali que Didi foi
alcunhado Príncipe Etíope.
Depois de 40 dias acompanhando a Copa do Mundo, não vou
resistir a escolher o meu personagem inesquecível. Romário? Parreira?
Não. Absolutamente não.
Meu personagem é americano e chama-se Matthew Shirts, born in
Califórnia. Mas atende por Mateus nos bares e nos lares da Vila Madalena,
em São Paulo, onde aprendeu a entornar uma caipirinha e a fazer filhos.
Não é à toa que o Secretário da Cultura, Ricardo Othake, o chama de "o
americano que bebe". Bebe Brasil, eu acrescentaria.
Matthew formou-se em História na Universidade de Stanford (lá
mesmo onde o Brasil começou) e pós-graduou-se em Brasil em Berkeley,
do outro lado de San Francisco. Um dia foi para o Brasil escrever uma tese
sobre os poetas paulistanos entre o Modernismo e a Geração de 45. Só um
americano para se preocupar com essas sutilezas da nossa língua pátria.
Conheceu a Silvia, a cachaça, o Corinthians. Ficou com a nossa ginga, a
nossa finta, a nossa pinta.
Mateus conquistou os leitores do Estadão com suas crônicas, me
informa o Maranhão. E aqui conquistou de vez os brasileiros e
impressionou os americanos. Foi motivo de matéria de primeira página no
caderno de esportes de um jornal de San Diego, algo como "um americano
cobre a copa para os brasileiros". Ao entrar nos bares freqüentados por
jornalistas brasileiros por aqui, é saudado com entusiasmo. Virou ponto
de referência: "perguntem ao Mateus", "O Mateus disse que...". Outro dia
vi um importante jornalista dizendo, com uma convicção impressionante
numa mesa, que a estrada tal era imperdível. Perguntei se ele conhecia a
estrada. Ele: "o Mateus que disse", sem saber que eu conhecia o meu
personagem preferido.
E ninguém chorou mais que este americano pelo Brasil. Ao
chegarrnos na Universidade de Stanford, para o decisivo e nervoso jogo
contra os Estados Unidos, e ao estacionar o carro um pouco longe do
gramado onde ele jogava futebol há quinze anos atrás, perguntei se ele iria
se lembrar do local na saída. Ele apontou para o chão cheio de folhas secas
e me perguntou: "sabe quantas vezes na minha vida eu já passei por aqui
de bicicleta?". Senti que ele conhecia a região. Na hora do jogo contra os
seus estados unidos (assim mesmo, com minúsculas), ele chorou
duplamente. Uma vez em cada hino, um pouco por cada país. Mas torceu
mais que qualquer brasileiro pelo Brasil, lamentando apenas que o seu
Viola não estava no seu campinho de pelada e o Marcelinho Carioca tinha
ficado em São Paulo.
No dia do jogo contra a Holanda não fomos para Dallas. Assistimos
ao jogo no meu quarto em San Francisco, junto com o Paulo Caruso. Só
que o Mateus chegou no quarto com a camisa amarela, o boné e uma
bandeira brasileira enorme que ele arrastava há 40 dias pendurada no
pescoço, como quem carrega o Brasil, sozinho, nas costas. Tomou meia
garrafa de uísque, nervoso, andando pelo quarto.
Depois da sensacional vitória, saímos para a rua cheia de ventos de
San Francisco. Não havia mais brasileiros no pedaço. Mateus,
bebadamente correto, chorava abraçado num poste da O'Farrell com a
Mason Street. Os americanos passavam em suas limusines, viam aquele
brasileiro ali e gritavam alegres: Brassil, Brassil! E o Mateus, abraçado no
poste como se estivesse abraçando todo o Brasil, balbuciava para si
mesmo, com os olhos vermelhos: "três a dois, foi demais! Três a dois, foi
demais!"
Eu não ousaria dizer que o Mateus do Bar do Marquinho, o Mateus
da Rua Simpatia, o Mateus do PéPrafora, o Mateus, amigo do Reinaldo,
do Marcão, do doutor Samuel, o Mateus pai do Lucas e da Maria, o
Mateus, eu não ousaria dizer que ele foi o mascote da nossa torcida,
porque ele tem um metro e oitenta e cinco. Mas posso dizer que, com o
Mateus, aqui, longe do Brasil, com o Mateus, eu aprendi a respeitar muito
mais os Estados Unidos e amar mais, muito mais, o Brasil.
Matthew Shirts me ensinou a suar a camisa do Brasil.
A mesma camisa que ele carrega no peito, no coração e no
sobrenome, pondo a boca no trombone...

PONDO A BOCA NA CORNETA


1998

SÃO FRANCISCO - Eu costumo andar com um gravadorzinho de


bolso. Ali registro idéias que depois podem virar crônicas, filmes, peças de
teatro. Tem me sido muito útil aqui nesta Copa. Estou hospedado no
Hilton de São Francisco. Chegamos antes da torcida. O hotel era de uma
calma californiana. Mas, na sexta-feira passada, começaram a chegar os
brasileiros. Só aqui no Hilton eles são mais de mil. Na noite de domingo,
véspera do jogo do Brasil, Paulo Caruso desce para o lobby antes de mim
e logo telefona:

- Meu, desce aqui, que isso está parecendo o Monte Líbano.


Desci com o meu gravador e fui anotando o que via. Só desligaria a
maquininha no dia seguinte, depois de gravar (emocionado) o Hino
Nacional antes da estréia do Brasil. O que se segue são as anotações do
meu gravador, na ordem que foram feitas, sem tirar enm por.
– Nunca mais o Hilton será o mesmo. Estou aqui no lobby do hotel.
Acabaram de chegar mais de mil brasileiros. De repente este lobby, que é
um dos mais chiques do mundo, foi invadido por uma turma vestida de
verde e amarelo, uma combinação que não combina nem entre si nem com
os lustres de cristal do hotel.
– Estão fazendo um sambão no lobby. Que coisa.
– Os outros hóspedes do hotel, que não são brasileiros, não
acreditam. Estão, literalmente, boquiabertos. Olham, pasmados.
– Estão todos de tênis novo. América, para a classe média brasileira
significa tênis.
– Agora estão cantando "de repente é aquela corrente pra frente".
Tem bumbo, reco-reco, pandeiro, uma branca tenta o samba no pé.
– Uma recepcionista pergunta em inglês para um brasileiro o que
significa a frase que ele tem inscrita na camisa: Papa Essa Brasil! Ele está
tentando explicar. Está difícil. Chega uma recepcionista mexicana e diz
que Papa é Batata!
– Os americanos olham desconfiados. Chegam mais brasileiros.
Cada elevador que abre despeja uns dez canarinhos ho lobby.
– Ninguém acredita no que está vendo.
– Agora cantam "desespero meu"...
– O lobby do hotel deve ter uns dois mil metros quadrados. Deve ter
um brasileiro por metro quadrado. Virou uma praça brasileira debaixo
dos caracóis daqueles lustres imensos que a gente só vê em filme
americano.
– Passa uma argentina, um brasileiro grita: Canighia porca!
– Surgem agora aquelas cornetas que enchem o saco de todo mundo.
Aquelas que parecem mugido de vaca. Várias delas. Eu não sei como o
hotel não toma nenhuma atitude. Apito de puxar samba.
– As pessoas se vestem de Copa do Mundo. Tem uma mulher aqui
na minha frente que até a fita do cabelo dela é amarela. Até a meia tem a
inscrição da CBF. Bunda rebitada igualmente amarela.
– Esta é a torcida Ouro, a que pagou mais caro para ficar num cinco
estrelas. Fico pensando onde andarão a torcida Prata ou Bronze.
– Eu fico imaginando este casal se vestindo no quarto, de verde e
amarelo. Imagino mais ainda: eles no Brasil preparando a roupa para a
Copa. Comprando, colocando na mala.
– Perguntei para a garçonete o que ela estava achando daquilo.
Disse que os americanos adoram a gente e perguntou quem eram os
jogadores. Expliquei que os jogadores estavam concentrados noutro local.
Era jurava que achava que eles estavam ali. Disse ainda que os brasileiros
são bons de copo e ruins de gorjeta.
– Agora passa uma japonesa velhinha com aquele andar curto, com
quimono completo. Ela não entende o que está vendo. E o pior é que
nunca entenderá.
– A impressão que me dá é que eles não estão na Copa e sim na
Disney. Todos parecem criancas. Entraram numa roda gigante, no trem da
alegria, no túnel do tempo, no baile da Cinderela. A Copa é a Disney deles.
Deixaram os filhos em casa e cairam no carrossel da alegria. Uma viagem
no tempo. Eles não estão em São Francisco: estão na Disney. Estão na
deles.
– Agora são oito da manhã. Volto para o lobby. O samba continua.
Tem mais gente agora. O agente da Stella Barros diz que já são dois mil,
agora. Será que pararam para dormir ou o samba atravessou a madrugada
fria de São Francisco? O samba rola solto.
– O engraçado é que a maioria dos torcedores é composta de gordos,
barrigudos. Não resta dúvida que existe uma estreita relação entre a
cerveja e o futebol. O Fischer está certo.
– Já tem nego bêbado no salão.
– Estão todos fantasiados de brasileiros. O ônibus para o estádio sai
dentro de duas horas. Caras pintadas, perucas verde-amarelas, peruas
verde-amarelas.
– Uísque de garrafinha às oito da manhã, tomado na tampinha.
– Já tem gente em cima das cadeiras.
– Acho que no fundo, fazendo a Copa, é isso que a americano quer,
que o Hilton quer. Isso faz bem para eles.
– Passam dois policias. Sorriem. Have a good game, dizem.
– Sai do elevador mais um torcedor. É o Matthew Shirts, americano
que trocou o Búfalos de Los Angeles pelo Corinthians de São Paulo. Está
com a camisa da seleção, o boné da seleção e uma enorme bandeira
brasileira amarrada no pescoço como se fora um véu de noiva. Uma Bud
na mão, uma paixão pelo Brasil. É o mais brasileiro de todos os brasileiros.
"Acho que vou chorar"..., disse ele.
– São quinze para as dez e desistimos de ir no ônibus. Muita
confusão. Vamos de carro mesmo. São mais de cinquenta ônibus na frente
do hotel. Isso não vai dar certo.
– Estamos agora na 101, a auto estrada que nos leva para o estádio.
Brasileiros passam buzinando. Esporro geral. Os motoristas americanos
não entendem tantas buzinas. Parece que estou indo para o Morumbi.
– O estádio está todo verde a amarelo. Realmente é muito, muito,
muito emocionante. Acho que eu também devia estar vestido de brasileiro.
– Muita emoção. O jogo está para começar. Nunca estive tão
emocionado na minha vida. Acho que só no nascimento dos meus filhos.
Um nó na garganta.
– Um brasileiro grita: sit down, porra! Outro retruca: sit bank, baby!
– Começa o Hino Nacional. Eu seguro as lágrimas, o peito dói. O
juiz apita. Começa a Copa para todos nós.
E choro de novo, agora, aqui no meu quarto, ao ouvir o Hino no
gravadorzinho. O lobby está vazio. Os brasileiros dormem, felizes.
Amanhã tem mais. Vou comprar uma roupa de brasileiro e tomar uísque
na tampinha. Quero uma corneta só para mim!

POR FAVOR, APERTEM SEUS CINTOS


21/02/2000

Que estranho e irresistível fascínio é este que as aeromoças exercem


sobre nós, homens e mortais passageiros?
Ou vai me dizer que você também não tem um certa tara, uma
vontade quase que incontrolável de ter um caso com dessas profissionais
do ar?
Qual é o homem que nunca deixou o cotovelo propositadamente no
corredor do avião, na sutil esperança de uma leve raspadinha na
apressada moça? Qual é o homem que, lá nas alturas, fingindo ler o jornal,
não fica de olho torto para elas? Qual é o homem que não sonha acordado
imaginando tenazmente que ela, junto com a última cervejinha, coloque
dentro do guardanapo um cartão de visitas? Qual é o homem que não
sonha um dia contar para um amigo: transei com uma aeromoça! Qual?
Que fascínio é esse? Preocupadas com o possível assédio masculinos,
as companhias aéreas - de todo o mundo - fazem de tudo para
transformar aqueles aviões em seres normais. Colocam uma saia escura
onde as curvas se perdem e o joelho some, vestem um blusa meio fofa
onde seios desaparecem, amarram os cabelos para cima e ainda por cima,
colocam um crachá com um nome falso no peito. Mas nós homens, temos
certeza que, por trás daquele uniforme de guerra, esconde-se uma grande
guerreira de terra, mar e ar. A gente sabe - ou imagina - que elas são
gostosas. Toda aeromoça é gostosa, por princípio, meio e fim. Até o fato
delas usarem outro nome - como as freiras e as prostitutas - é excitante.
E não são apenas as aeromoças brasileiras que nos fazem viajar com
a imaginação. Também as azafatas (aeromoça em espanhol) ou as
hospedeiras (aeromoça em Portual). Não seria bonito dizer que anda
saindo com uma azapata de salto delicadamente alto ou que levou para o
hotel uma hospedeira? Mesmo as americanas, sempre carrancudas, levam
o seu charme na bandeja da esperança. E as francesas dizendo pardon,
monsieur? E aquelas da Lufthansa que dá vontade da gente pedir para
que pisem nos nossos pés com seus um metro e oitenta e cinco?
Qualquer psicólogo de esquina poderia dizer que esta fascinação é
porque nós nos sentimos - durante as poucas horas de vôo - nas mãos
delas, dependemos delas para tudo. Seriam nossas mães, digamos assim.
Mas não é como mãe que as vemos e sim como possíveis amantes. Como
deslizam fácil pelo carpete central dentro das nossas turbulências mentais!
São estranhas essas moças. Não sei de ninguém que conheça uma
aeromoça fora do ar. O máximo que a gente sabe delas é que se arrastam
em duplas pelos aeroportos, puxando as suas malinhas - sempre cinzas -
sobre rodinhas. Depois entram num taxi e somem. Sim, somem. Ou você
sabe de alguém que é vizinho de uma aeromoça? Ninguém sabe onde
moram essas meninas. Ninguém nunca viu uma hospedeira numa festa,
numa peça de teatro ou mesmo fazendo compra num shopping. Fora do
ar, elas evaporam. Você, por exemplo, já viu alguma azapata no seu,
digamos, convívio social? Tenho certeza que não. Chego a desconfiar que
elas não existem. São alucinação causadas talvez pelo ar despressurizado.
Devo ser um privilegiado, pois já vi duas aeromoças. A primeira
quando estava hospedado no Hotel Miramar em Recife fazendo um
trabalho profissional junto com mais quarenta pessoas. Um amigo me
disse que as aeromoças da VASP estavam hospedadas no hotel. Foi um
frisson entre os homens. No mesmo dia um colega disse que aquela mais
alta, loira, tinha uma tatuagem na virilha. Ele tinha visto na piscina.
Comprei óculos de natação e fui conferir num vôo aquático. Tinha. Tinha
um Boing tatuado na virilha dela que, enquanto ela ficava a fazer
movimentos com as pernas para se manter à tona, parecia que o Boing
batia asas e voava na minha direção. Só o Boing. O avião, não. Quase
morri afogado.
E a outra vez foi no bingo. Estávamos quatro homens na mesa e uma
moça. Uma moça normal, nem feia nem bonita, nem magra nem gorda,
nem baixa nem alta. Uma moça absolutamente normal que não suscitava
nem um olhar de esgueio de nenhum de nós. De repente, chegou uma
amiga dela. Nos primeiros diálogos, ficamos os quatro sabendo que eram
aeromoças. Como a moça cresceu, como ficou bonita, gostosa, simpática.
Que pernas, que seios, que pele, que narizinho arrebitado, que voz, meu
Deus! Os quatro homens ficaram transtornados com a presença de duas -
duas! - aeromoças ali, tão perto. Mas, assim como na piscina, ninguém
teve a coragem de puxar papo, pedir mais um uísque ou perguntar a
temperatura local. Não se conversa com uma aeromoça fora do ar,
admira-se boquiaberto. E mais: ela fez um bingo, provando,
definitivamente, que são seres sobrenaturais, acima de nós, sempre a dez
mil metros de distância de nós, pobres terráqueos.
Que estranho e irresistível fascínio é este que as aeromoças exercem
sobre nós, homens e mortais passageiros?

PROCURA-SE PATROA COM EXPERIÊNCIA


23.2.94

DEPOIS DESTE escandaloso crime, onde uma patroa matou o filho a


porradas e foi corajosamente denunciada pela empregada, que ainda
tentou salvar o garotinho, acho que devemos rever a contratação de tal
serviçal. Seria mais ou menos assim:
A patroa vai humildemente até a casa da futura empregada, bate na
porta e é recebida
Empregada - A senhora tem experiência? Há quanto tempo é patroa?
Patroa - Desde mocinha, aprendi com a minha mãe.
Empregada - Quanto tempo a senhora ficou com a última empregada?
Patroa - Mais de cinco anos. Mas eu casei, engravidei...
Empregada - Sei, sei... Quantos filhos a senhora tem?
Patroa - Três.
Empregada - Pretende ter mais?
Patroa - Não, não. Pode ficar sossegada.
Empregada - A senhora cozinha bem, mantém a casa limpinha?
Patroa - Um primor.
Empregada - A senhora costuma tirar férias quantas vezes por ano?
Patroa - Aí depende do meu marido.
Empregada - Pois comigo vai ser apenas 20 dias corridos por ano.
Patroa - Para mim está bem.
Empregada - Outra coisa. A senhora costuma dormir fora, chegar tarde?
Patroa - Uma vez ou outra. Fim de semana, né?
Empregada - Pois comigo vai ter apenas uma tarde de domingo livre a
cada quinze dias.
Patroa - Sim, senhora.
Empregada - Não quero que receba visitas no quarto. Quando vier alguém,
um parente, por exemplo, receba a pessoa no portãozinho. Do lado de fora.
Patroa - Claro.
Empregada - Não quero saber de namoros no telefone, e interurbano, nem
pensar, está claro?
Patroa - Sim, senhora.
Empregada - A senhora tem uniforme de patroa? Está novo, não tem
remendos?
Patroa - Novinho em folha.
Empregada - Ótimo. No período que estivermos trabalhando juntas, nada
de engravidar. Nada de namorar PMs e jogadores de futebol.
Patroa - Claro.
Empregada - O INPS corre por conta da senhora. Não tem nem décimo-
terceiro e nem férias pagas. A senhora trate de economizar.
Patroa - Não gasto quase nada, dona.
Empregada - Você é católica?
Patroa - Praticante.
Empregada - Pois eu sou da Igreja Universal do Reino de Deus. É melhor
a senhora se converter, para evitar discussões.
Patroa - Claro, sempre gostei muito do bispo Macedo.
Empregada - Quando eu sair, de noite, você fica com as crianças, e nada
de bater com a cabecinha deles nos ladrilhos, viu?
Patroa - De jeito nenhum. Adoro criancinhas.
Empregada - Ótimo. Vamos nos dar bem. E quando eu voltar, quero a
casa toda arrumada e a comida no forno.
Patroa - Temos microondas.
Empregada - Ótimo. O seu marido faz o quê?
Patroa - É médico.
Empregada - Quanto ele está cobrando a consulta?
Patroa - Cem dólares.
Empregada - E quanto vai ser o meu salário?
Patroa - Um salário mínimo. Mais ou menos sessenta dólares.
Empregada - Quer dizer que o seu marido ganha cem dólares por hora e a
senhora quer me pagar sessenta dólares por mês?
Patroa - Mais comida, casa e roupa lavada. É pegar ou largar.
A empregada abre a porta para a patroa ir embora. Coloca a cabeça para
fora:
Empregada - Por favor, a próxima.

QUEM GANHOU? BRASIL OU URUGUAI?


22.9.93

ANTIGAMENTE, futebol era bola na rede. Quem marcava mais gols


ganhava o jogo. Ou, se não marcavam, ou marcavam o mesmo número de
gols, dava empate. Agora, não. Inventaram as estatísticas! Os índices! As
televisões e os jornais se preocupam com quantas vezes isso ou aquilo
aconteceu. Na televisão é pior ainda. De repente, no meio do jogo, entram
as estatísticas: quantas roubadas de bola, quantos passes errados, quantas
linhas de fundo, quantas bolas (imagine!) levantadas. Você não sabe se
acompanha o jogo ou as estatísticas. Pior: se pensa no jogo ou nos
números atirados momentaneamente na sua cara tela.
No dia seguinte, os jornais ocupam páginas e mais páginas com
impedimentos, chutes a gol, escanteio a favor (e contra), defesas, faltas
cometidas, quanto cada time chutou a gol, quantas defesas cada goleiro
fez, quantas vezes cada jogador finalizou, quem foi o jogador mais
perseguido, quem foi o mais violento, passes certos, passes errados,
desarmes completos, desarmes incompletos(!), bolas perdidas, recuos,
lançamentos certos, impedimentos e mais, e mais, e mais.
Venho aqui, modestamente, dar uma colaboração aos companheiros
da chamada "crônica esportiva". São observações feitas durante Brasil dois
Uruguai zero.
Quantas vezes o time entrou em campo: duas. Uma no primeiro tempo e
outra no segundo.
Quantas vezes o time saiu de campo: duas. Uma no primeiro tempo e
outra no segundo.
Caídas de bunda: brasileiros, doze vezes. Uruguaios, nove.
Cuspida: os jogadores brasileiros cuspiram 67% mais que os uruguaios.
Quem mais cuspiu foi o Ricardo Rocha. Quem conseguiu cuspir mais
longe foi o Francescoli, depois de meter o dedo no nariz do juiz: dois
metros e dezoito centímetros a uma velocidade de 97 quilômetros por
hora.
Arroto: os brasileiros arrotaram 12 vezes, contra 13 dos uruguaios. Quem
mais arrotou foi o Dunga: quatro vezes, sendo uma seguida de tosse quase
alemã.
Encoxadas: os brasileiros encoxaram seis vezes os uruguaios e foram
encoxados 21 vezes. Quem mais encoxou foi o Rubem Sosa, e o mais
encoxado foi o Branco. Na retrospectiva das eliminatórias, o mais
encoxado foi o Muller.
Chicletes: os brasileiros mastigaram, nos 90 minutos 7.453 vezes. Já os
uruguaios, 5.876. Só o Parreira, sozinho, mexeu as mandíbulas 2.241 vezes.
Dedo no nariz: os brasileiros enfiaram o dedo no nariz 14 vezes, contra 28
vezes dos uruguaios. Quem mais enfiou o dedo no nariz foi o Taffarel, que
não tinha mesmo o que fazer. Depois fazia uma bolinha, batia três vezes
no chão e chutava para a frente, sendo que uma vez acertou a nuca do
Mauro Silva, que até agora não entendeu nada.
Assoadas de nariz: 15 dos brasileiros contra 23 dos uruguaios. O campeão
foi o Bebeto que, cada vez que assoava, eu achava que ele ia sentir a
distensão na coxa.
Cigarros: nenhum jogador de nenhum time fumou.
Chá de coca: zero a zero.
Pensamentos na mãe do juiz: Brasil, 78 vezes (notadamente no pênalti não
marcado). Uruguai: 79 vezes. Quem mais pensou na mãe do juiz foi o
Kanapkis, em búlgaro.
Bandeirinhas: o bandeirinha do lado de cá coçou a nádega três vezes,
contra sete do bandeirinha do lado de lá.
Juiz: o juiz pensou, durante o jogo, seis vezes no horário do seu vôo de
volta para Lima. Pensou na amante duas vezes.
Pum: os brasileiros soltaram 30% menos puns que os uruguaios. Os puns
foram soltados (95%) quando eles caíam no chão. Pode notar: eles sempre
se levantam balançando o dedo negativamente, em direção ao juiz,
dizendo: "Eu não fui! Eu não fui!" E o juiz sempre vem de dedo em risque,
dizendo: "Foi o senhor, sim, senhor! Ouvi e senti."
Mas nada disso tem importância. O que importa é que o Romário
fez dois gols na cara do Parreira e do Zagalo. Contra nenhum deles. Quem
tem medo do Romário?

QUEM TEM MEDO DE UM INIRGELEP LUAR?


1998

Os empresários paulistas andam com o IR atrás da orelha, com os


gomalinados cabelos em pé, com culpa no cartório. Tudo por causa de
uma ficção chamada Raul Pelegrini. Para tanta reclamação, o retrato feito
pelo Gilberto Braga deve ter sido perfeito. Mas eles acham que não. Que
empresário não é daquele jeito, de jeito nenhum. Tem uma ala da Fiesp (já
chamada de ala Vera Fisher) que quer, porque quer, mandar sugestões
para a Rede Globo para que eles façam outra novela, mostrando a
verdadeira cara do empresário paulista. Como já andei incursionando
pelas novelas-globais, vai aqui uma pequena e modesta contribuição para
a FIESP e para a Globo. Uma pequena sinópse para uma minissérie de dez
capítulos. Se for aprovada, eu, como micro-empresário, escrevo de graça.
Caso paguem, darei todo o dinheiro para a campanha do Betinho. Eu,
como um bom micro-empresário, não almejo o lucro, é claro. O
personagem é o contrário de Raul Pelegrini, ou seja, Inirgelep Luar.
(ou: Luar do Sertão)
minissérie de Atarp Oiram
(em dez capítulos e uma quebra de braço)

Capítulo 01: Inirgelep Luar, jovem empresário-padrão brasileiro


tenta, a todo custo, convencer Zé Fiapo, seu empregado, a receber
aumento todos os meses. Zé Fiapo não aceita, argumentando que está
preparado para não receber apenas um salário, que dois seria insuportável.

Capítulo 02: Zé Fiapo conta para sua esposa Rosinha. Ela acha que
ele deve aceitar. No dia seguinte, às cinco da manhã, ao pegar no duro, Zé
recebe mais uma proposta do empresário Inirgelep Luar: dezesseis
salários por ano, fora as férias, é claro. E mais: Luar está a fim de financiar
a casa própria do Zé. Rosinha continua achando que ele deve aceitar,
afinal, a cobertura que eles moram é alugada.

Capítulo 03: Inirgelep Luar começa a pagar os estudos dos filhos de


Zé Fiapo. Um na Suiça e a menina na psicologia da PUC. Zé não aceita,
afinal os filhos dele têm estudo de graça nas escolas públicas do Brasil e
estão muito bem. Inirgelep Luar chega a insistir com a Rosinha para que
ele aceite.

Capítulo 04: Inirgelep Luar insiste. Deixa claro para Zé Fiapo que
sabe muito bem que ele - o bom empresário - está sendo explorado pelo
operário. Só porque ele paga as horas extras direitinho. Tudo o que ele
quer é um bom clima na relação patrão-empregado. Rosinha chega a ir até
a fábrica falar com Inirgelep Luar. Ela também começa a achar que Zé
Fiapo está explorando o patrão. E denuncia: seu marido está trabalhando
apenas 80 horas por semana.

Capítulo 05: Inirgelep Luar leva Rosinha até o barracão onde mora
humildemente e, depois de fazer amor com ela (apenas porque ela estava
muito carente afetivamente), diz: "estou fazendo com você, o que aquele
ingrato está fazendo comigo". Depois quebra o braço dela numa briga-
sem-querer, pede desculpas e chora antes dos comerciais. Rosinha acha
bárbara a casa de Luar e sai cantando Barracão de Zinco e Luar do Sertão.
Luar fica cheio de culpas. Bom católico, confessa e se comunga
diretamente com o Papa, em Roma. Levou a Creuza com ele, mas apenas
para ela ver com os próprios olhos. Aproveita e passa uma reprimenda no
Berlusconi que andava sonegando impostos.

Capítulo 06: Inirgelep Luar oferece participação nos lucros da


empresa para Zé. Meio a meio. Zé não aceita. Rosinha vai morar com Luar
no barracão e leva sua filha Creuza com ela. Inirgelep Luar engravida as
duas (apenas uma questão de carinho para os carentes), mas quem paga
os abortos é Zé Fiapo, no Einstein, com o Seguro Saúde que todos têm na
empresa e que cobre tudo, menos os cornos.

Capítulo 07: Zé Fiapo pede demissão da fábrica, mas ela não é aceita.
Passa a ser diretor-adjunto. Ele acata, mas só que com o mesmo salário.
Luar abre uma conta na Suiça para ele e paga por fora, em francos suiços,
descontando, é claro, todos os impostos brasileiros e suiços. Luar nunca
sonegou impostos. Zé sabe disso. Aliás, Luar chegou a dizer uma vez:
"todo operário sonega impostos no Brasil". Claro que não foi bem
interpretado.

Capítulo 08: Rosinha e Creuza começam a passar fome na casa do


empresário e voltam para a cobertura do Zé que tem Vale Refeição no
Máximo e no Rodeio. Zé aceita as duas de volta. Afinal, Zé está cada vez
mais rico e bem de vida, ao contrário do Luar que só fica nos jornais e nas
televisões afirmando que o seu lucro não atingiu 1000% este ano, e que
está sendo explorado pelos mais pobres. Inirgelep Luar chega a chorar
sinceramente no Jô Soares e abre seu coração na Hebe Carmargo,
gentilmente cedido pela Rede Globo.

Capítulo 09: Inirgelep Luar, pressionado por forças ocultas e


multinacionais, fecha a sua empresa e muda-se para Miami levando
apenas a Creuza e os pequenos lucros. Zé, com a indenização que recebe,
sabe que dá para viver uns vinte anos numa boa. Mas fica com remorso:
será que foi ele que levou o patrão àquela situação? No final do capítulo
ameaça devolver tudo para a empresa, mas a Rosinha não deixa.

Capítulo 10: Zé se candidata a governador de São Paulo e, com o


apoio de todo o empresariado, é eleito. Recebe uma carta de Luar, lá dos
Estados Unidos, propondo abrirem, juntos, um negócio em Miami: Creuza
Importações e Exportações. Mas Zé Fiapo não aceita. Ele tem uma missão,
quer chegar à presidência da República. A Fiesp já disse que apoia. Até a
Overbrecht dará dinheiro. Zé sabe que o seu lugar é em Brasília, assim
como Luar sabe que o seu lugar é lá nos Estados Unidos. De lá, ele
continuará a aporrinhar a vida de Zé Fiapo. Até ele se convencer que o Zé
é um ser humano e ele, como sempre, apenas um bom empresário. Sem
culpa no Cartório ou na Rede Globo de Televisão.
QUEM TEM MEDO DA MORTADELA?
5.1.94

MODISMO é conosco mesmo. O brasileiro adora inventar moda. E


todo mundo vai atrás dela. A última do brasileiro é "primeiro mundo". Os
publicitários nativos inventaram a expressão e agora tudo que nós
queremos tem que ser coisa do "primeiro mundo".
O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a
mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem fazer filme de primeiro
mundo, diretores de teatro trazem a moda lá da Europa. E os preços,
evidentemente, também são de primeiro mundo.
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha, Irlanda
e Grécia, que se debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam uma
séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo? De
terceiro para primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes, no
segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro Por
exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses, americanos, suecos, caem
trôpegos pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa rnais brasileira, mais
terceiromundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão avacalhando
com ela. Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum. Caipirinha
sempre foi e sempre será de cachaça. Coisa de caipira mesmo. E é esta
bebida que os europeus vêm procurar aqui. Mas já meteram a vodca e o
rum nela para ficar com cara de primeiro mundo. Vamos deixar a
caipirinha caipira, brasileiros!
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela,
como preferem garçons e padeiros. Quer coisa mais brasileira que a
mortadela? Claro que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo baixo
preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de murta, uma plantinha
italiana que Ihe valeu o nome. Infelizmente o brasileiro acha que
mortadela é coisa de pobre, de faminto. E o que somos nós, cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido
terceiro mundo. Mas acontece que há um preconceito dos patrícios contra
a cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Se você
oferecer mortadela numa festa, vão te olhar feio. Você deve estar perto da
falência.
Neste Natal e no Reveillon freqüentei várias mesas, e em nenhuma
havia mortadela. Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro mundo,
perfumes de primeiro mundo, até um peru argentino eu comi. Mas
mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor entrada
do mundo? Quando você for para a Europa, não adianta pedir dead her
que não vai encontrar. Nem muerta dela.
Mas nem tudo está perdido. No dia 1° do ano almocei com o casal
Annette e Tenório de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no
prato rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho de pão e viva o
terceiro mundo, visto lá de cima do apartamento do Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo
de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda
sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava começando bem o
ano. Vai ser um Ano Bom, como se dizia antigamente. Se os novos-ricos
do PMDB estão comendo mortadela, nem tudo está perdido. No
Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira
mortadela, aquela que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar muito,
servida em pãezinhos saídos do forno.
Vamos deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar
cachaça e comer mortadela. É muito mais barato ser pobre. Deixemos que
o primeiro mundo exploda entre eles, mesmo tomando uísque escocês e
comendo queijo fedido.
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar de
frescura. Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela. Apesar
de tudo, o primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos felizes e
alegres com a nossa cachaça e a nossa gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro
mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo
"mortandela" e não caviar do primeiro mundo.
QUEM TEM MEDO DO HIDERALDO LUIZ?
6.7.94

SAN FRANCISCO - Eu não sei se o brasileiro tem memória curta ou


eu que estou ficando velho. E meio gagá.
Estávamos eu, o cartunista Paulo Caruso e o brasilianista Matthew
Shirts no Sport Bar aqui do San Francisco Hilton a tomar umas Coronas
(cerveja mexicana, com limão) quando tudo se deu. Vejo passar o Bellini.
Para quem não sabe, o Bellini (Hideraldo Luiz Bellini) foi o capitão da
seleção de 58, na Suécia, e reserva do Mauro Ramos de Oliveira, em 62, no
Chile. Foi um dos três brasileiros a erguer a famosa e nossa taça Jules
Rimet, aquela mesma que, depois, foi roubada e derretida por um larápio
idiota.
O lobby do hotel estava cheio. Cheio de brasileiros. E quando eu
digo cheio de brasileiros, isso está na base de dois mil canarinhos. Vi o
Bellini, comentei com os companheiros da mesa. Bellini, bonito, alto e
elegante como sempre, atravessou todo o salão e não foi reconhecido.
Ninguém percebeu que, por ali, passava um dos maiores ídolos que o
Brasil já conheceu. Pensei em chamá-lo, colocá-lo na nossa mesa e passar o
resto da noite conversando. Mas como já conheço esta nossa torcida, fiquei
com medo de gritar "Bellini!" e o tumulto se generalizar.
E ele foi emnbora, de mãos dadas com a sua esposa. Eu não sei por
que, mas esses campeões do mundo sempre andam de mãos dadas com as
esposas. Vi o Gilmar (dos Santos Neves), o maior goleiro que o Brasil já
viu jogar, igualmente bicampeão, algumas vezes. Sempre de mãos dadas
com sua loira esposa, como a assegurar que a bola não fosse para
escanteio. Aliás, toda mulher de jogador de futebol é loira. A do Bellini
também.
O Bellini entrou no elevador, segurando a sua esposa como se ela
fosse a Jules Rimet. Subiu e sumiu. Fiquei impressionado. Mesmo porque,
minutos antes, um cearense reconhecera o Caruso e fizera questão de uma
foto com ele. Outra senhora, de Barretos, me reconheceu (me viu no Jô
Soares aí no Brasil). Só faltava reconhecerem o Matthew. Faltava, porque
uma garota de São Paulo o descobriu no meio do salão. E ele, emocionado,
chorou. E o Bellini, o Bellini, passou incólume, como se fosse bater um tiro
de meta num jogo do Vasco contra o Olaria.
Mas volternos ao lobby do hotel. Comecei a cair em mim: o Bellini
levantou aquela taça em 58, ou seja, há 36 anos. A grande maioria dos
brasileiros que ensaiava o sambão para o dia do jogo contra os Estados
Unidos nem sequer havia nascido. Mas eis que o elevador abre e o Bellini
volta. De mãos dadas, como convém. E, novamente, passa pela minha
frente. Não resisti e disse mais ou menos alto:
- Hideraldo Luiz!
Ele estancou no meio do salão, como se o árbitro tivesse marcado
uma falta. Ele e a esposa. Chegou até a largar da mão dela. Hideraldo Luiz
deve ser como a mãe dele - e apenas a mãe dele - o chamava nos
momentos de peraltices. Mas é que eu não podia gritar "Bellini!', como já
expliquei. E ele veio, novamente de mãos dadas, refeito do susto, para o
meu lado. Soltou novamente a mão da esposa para me cumprimentar. E
eu fiquei feito um panaca, sem saber o que dizer para ele. Naquele
momento, todos os jogos do tri vieram à tona, toda a alegria que aqueles
meninos de então haviam dado para a minha geração bateu na minha
cabeça. Bellini, Mauro e Carlos Alberto Torres. Não sabia o que dizer,
como agir. Estiquei a mão e o cumprimentei com cara de babaca. E
ficamos nos olhando, um para o outro. Não sei se ele queria saber por que
eu disse Hideraldo e não Bellini. Me apresentou à loira esposa. Ela soltou
da mão dele e me cumprimentou. E assim ficamos os três, ali, no meio do
lobby do hotel. Ninguém tinha nada para dizer para ninguém. Me deu
vontade de gritar para os dois mil brasileiros: "gente, esse cara aqui é o
Bellini, o Hideraldo Luiz Bellini, aquele de 58!"
Mas não disse nada. Fiquei olhando na cara dele. E nas suas mãos,
que agora seguravam de novo as mãos da esposa. Aquelas mãos que
levantaram a taça do mundo em Estocolmo quando eu tinha 12 anos. E era
com 12 anos que eu estava novamente. Como vários garotos ali no lobby,
ainda com a expectativa de uma nova taça a ser erguida um dia. Não sei
onde. nem por quem. É torcer para poder.

SAMURAI NÃO TORCE, MAS PODE


17.7.94

SAN FRANCISCO - Agora que os brasileiros foram embora aqui do


San Francisco Hilton é que se percebe - a olhos vistos - a quantidade de
japoneses pelos corredores e pelo lobby. E nas ruas. E nos restaurantes.
Andam em bandos, disparando seus maravilhosos flashes. São de todas as
idades, embora todos do mesmo tamanho. Chegam em excursões ou vêm
a negócios. A maioria a negócios. Grandes, lucrativos negócios.
Fui criado em Lins, para onde foram os primeiros imigrantes
orientais, no começo deste século. Tinha tanto japonês na cidade que as
lojas escreviam o nome dos artigos em português e em japonês. Segunda e
quinta-feira passavam filmes japoneses no Cine São Sebastião, o "palácio
encantado na noroeste". Sem legendas. Era coisa para japonês nenhum
botar defeito. As mesmas legendas que agora vejo espalhadas aqui em San
Francisco, nos avisos do hotel, nas placas dos elevadores, no comércio em
geral e até nos cardápios. Parece que os japoneses já perceberam que San
Francisco rende mais que Lins. Que o buraco era mais em cima.
Passei a infância e a adolescência cercado pelos sisudos e CDFs
nisseis. Eram os primeiros da classe e saiam fotografados nos anúncios de
cursinho depois de qualquer vestibular. Jogavam futebol muito mal, mas
trabalhavam desde garotinhos. Chegaram como pobres agricultores, e
logo já tinha vereador nissei, ministro em Brasília, e hoje temos em São
Paulo o nosso genial e simpático Secretário da Cultura, o Ricardo Othake,
o japonês que não bebe. Trabalhavam duro. Queriam conquistar a região
noroeste de São Paulo. Como agora, quando querem conquistar o noroeste
da América.
Me lembro que o dono das Lojas Arapuã, o Jorge Jacob, quando a
primeira loja ainda engatinhava em Lins, preferia funcionários nisseis
para invadir o Brasil. A loja deu certo e hoje. Se espalha por todo o país.
A diferença é que aqui eles não chegaram nem plantando café e nem
colhendo alface. Chegaram vendendo carros maravilhosos, tecnologia de
ponta, construindo hotéis e abrindo bancos (confiam mais no iene que no
dólar?) em cada esquina. Não sei como o americano está vendo isso. Já
existe aqui a Japantown que, dentro de poucos anos, fará com que
esqueçamos a famosa, velha e já decadente Chinatown.
Helmut Khol, primeiro-ministro alemão há 13 anos, abriu o olho
com os japoneses. A Comunidade Econômica Européia é uma tentativa de
fortalecer a Europa contra o avanço amarelo. Khol tirou o muro de Berlim
e, com as mesmas pedras, está a edificar outro muro ao redor dos seus 12
países. Ali ninguém entra, ninguém tasca. Nem dentista brasileiro. Os
Estados Unidos, me parece, não estão preocupados com a invasão. Calam-
se diante do sorriso amarelinho dos baixinhos.
A conquista do velho oeste americano pelo japoneses é tão nítida,
concreta e de ouro quanto o Oscar que já deram para o Akira Kurosawa.
Apertem os cintos que os samurais estão chegando de novo a Pearl
Harbor. Arigatô, disse Kurosawa.
Os brasileiros, que vieram apenas trazer a alegria e o sorriso da sua
alma durante um mês de futebol, irão embora. Os funcionários do Hilton
já sentem saudades. Los Gatos está vazia, parece uma Semana Santa
interminável. Os campos de futebol receberão novamente os tacos do
beisebol. Romário e Bebeto sairão das primeiras páginas e do noticiário da
televisão. Inclusive do canal japonês de San Francisco.
Os americanos nunca mais serão os mesmos depois desta invasão
brasileira durante a copa de futebol, dizem os próprios americanos. E
depois da invasão japonesa? Ninguém fala nada Será que lá em Tóquio a
dificuldade nos consulados para se arrumar visto é a mesma que ocorre
no Brasil?
Abram seus grandes e periscópicos olhos, senhores americanos,
porque eles estão chegando de olhinhos fechados e passinhos miúdos. E
rindo na cara de vocês. Nós estamos indo embora, mas eles ficarão. Com a
vista curta e o visto longo.

P. S.: no ônibus espacial americano que subiu sexta-feira passada já


tinha uma japonesa. Indo e rindo, é claro.

SAUDADES DO ALMIR, O PERNAMBUQUINHO


12.1.94

O FLÁVIO CAVALCANTI, apresentador de televisão já falecido,


tinha um quadro no programa dominical dele que se chamava "Eu estava
lá". Consistia em levar pessoas que estavam em algum lugar onde tivesse
acontecido alguma coisa importante, rara, ou envolver pessoas conhecidas
e famosas. O destino, a curiosidade e a amizade me fizeram estar em
alguns lugares onde estavam acontecendo coisas.
Estava me lembrando disso pois está fazendo quase exatamente
vinte anos que o jogador Almir foi assassinado em frente à Galeria Alaska,
no Rio de Janeiro, numa noite quente do verão carioca de 1973. E eu
estava lá. Não na Galeria Alaska, que nunca fui dado a freqüentar lugares
gays. É que em frente à galeria, do lado do mar, ficavam dois bares que
eram freqüentados pela classe teatral do Rio de Janeiro.
Talvez você não saiba quem foi o Almir. Era um pernambuquinho
valente. Jogou no Bangu, no Santos (no tempo do Pelé), no Flamengo e em
outros times menos votados. Craque e violento. Defendia no peito e na
raça seu clube e seus companheiros como não se faz mais hoje em dia. Era
capaz de enfrentar um time inteiro sozinho. ArtiIheiro nato, foi um dos
responsáveis pelo título de bicampeão mundial do Santos em 63, no
Maracanã.
Pois naquela noite eu estava lá e vi de perto o pernambuquinho
morrer. Foi desses crimes que em poucos dias saíram do noticiário policial.
E político. Sim, disseram, na época, que ele estaria escrevendo um livro de
memórias e que ia entregar muita gente. Não nos esqueçamos que
estávamos em 73, um dos anos mais duros da ditadura, onde nada podia
ser dito. Nem mesmo um crime idiota como esse, que encerrou a carreira
de boêmio simpático e inveterado do grande craque.
Numa mesa estavam o Almir, uma namorada e um casal de amigos.
Na mesa de trás, três portugueses. Na frente da mesa do Almir, os atores
gays do espetáculo Dzi Croquetes, ainda maquiadíssimos depois de mais
um dia de performance. A algumas mesas ao lado estávamos eu, o diretor
teatral Aderbal Freire Filho, sua esposa de então, a Alice, e o ator Ivan
Setta.
Tudo começou quando os portugueses resolveram caçoar dos atores
do Dzi Croquetes, chamando-os de viados, paneleiros e outras palavras
não menos simpáticas. E foi aí que tudo começou. O considerado maior
machão do futebol brasileiro resolveu defender os atores, que não reagiam.
Começou a discussão, até que um dos portugueses sacou um revólver, o
amigo do Almir sacou outro e o tiroteio rolou soltou ali no calçadão da
Avenida Atlântica. Mais dois sacaram as armas, as bichas gritaram, foi
uma correria, mesas foram viradas e pelo menos uns 30 tiros a gente
ouviu. A esta altura do campeonato eu, o Aderbal e a Alice já estávamos
debaixo do jipe do Aderbal. Ivan Setta, bêbado, com um copo na mão,
atravessava o tiroteio dizendo que aquilo era tiro de festim. Não sei como
não morreu, o meu querido Ivan. Polícia, nenhuma.
Pararam os tiros, a fumaça foi desaparecendo e a gente foi voltando
para o local da briga. O primeiro a ser encontrado no chão, já morto com
um tiro na têmpora, foi o Almir. Alice pegou uma toalha de mesa e
colocou sobre o seu corpo. Os portugueses saíram correndo. Debaixo de
um coqueiro, o amigo do Almir agonizava com um tiro nas costas. Morreu
ao dar entrada no hospital. As duas namoradas, apavoradas, gritavam. O
resto era silêncio, diria Hamlet.
Esse crime nunca foi esclarecido pelas autoridades. Os portugueses
sumiram, o grupo Dzi Croquetes não existe mais.
Eu só estou escrevendo este caso, aqui, em homenagem aos 20 anos
da morte do Almir. O violento e craque machão brasileiro que morreu
defendendo um grupo de homossexuais. Acho que morte mais digna não
poderia ter o artilheiro. A]guns dos integrantes do grupo teatral já
morreram. De Aids. Tenho certeza que o pernambuquinho e eles estão
tornando chope lá no céu. E os machistas e covardes portugueses, onde
andarão?

SAUDADE DO BANHEIRO DE ANTIGAMENTE


03/02/94

Quero comprar um apartamento de três quartos, sem suíte. Repito:


sem suíte. Impossível. Ontem mesmo começaram a construir um de
quatro quartos aqui bem na frente do meu. Quatro suítes. Será que não se
fabrica mais apartamentos e casas como antigamente? Com um só
banheiro, comunitário, grande, todo branco de chão vermelho, com
janelas para as mangueiras, com banheira grande, branca como devem ser
as banheiras?
O que será que está mudando nesta nossa moderna sociedade de
consumo? O brasileiro, de uns tempos para cá, vem defecando mais? Não
digo as defecadas federais, nem as estaduais, nem as municipais. Estou
me referindo à nossa defecadinha honesta de todo o dia, pessoal, íntima.
Ou será que foram os arquitetos que perderam o senso do ridículo?
O mais interessante é que, antigamente, as famílias eram bem
maiores, tinha-se mais filhos. E banheiro, um só. Ladrinho vermelho
encerado ou com vermelhão. Ali se fazia as necessidades e se tomava
banho. Tinha horas do dia que se faziam filas para entrar em banheiro.
Hoje, fila de banheiro, só em festinha para se dar uma cafungadinha.
Os banheiros tinham janelas. Não era necessário nenhum perfume
artificial para se combater o cheiro de cada um. O banheiro tinha um
cheiro característico dele, uma mistura de pasta de dente com sabonete
Gessy. Hoje, como os banheiros são mínimos, sente-se cheiro de tudo.
Principalmente das nossas necessidades fisiológicas. Os banheiros são
pequenos cubículos, caixas de cheiro duvidoso. Dentro da latrina já se
coloca um baratinho, depois, joga-se não sei o que lá dentro. E,
dependendo do almoço ingerido, ainda se tem que dar umas borrifadas
deste ou daquele produto.
Antigamente um rolo de papel higiênico dava para uma família,
semanas. Hoje, gasta-se muito mais. Não sei porque andamos nos sujando
tanto. Vocês já notaram nos carrinhos de super-mercados, a quantidade de
papel higiênico que as donas de casa compram? E tem mais: já tem papel
higiênico que já vem perfumado. Pessimamente perfumado, mas
perfumado. Claro, nesta caixa que se tornou o banheiro, por onde vai sair
o cheiro?
E quando a namorada é nova, você dorme com ela, acorda no dia
seguinte e vai fazer o seu serviço e aquele cheiro fica a invadir o seu
quarto e ela, que também, está a fim de ir lá, disfarça na cama, fica
fazendo hora, porque sabe que a barra está pesada lá dentro? Sei de casos
que terminaram na primeira manhã de amor.
E fazer amor debaixo do chuveiro nestes apartamentos cheios de
suíte? Já tentaram? Impossível. Os box são feitos só para um e olha lá.
Para se abaixar para pegar um sabonete no chão teme-se ferir o bumbum
na maçaneta. Se você senta-se na privada não pode abaixar a cabeça
porque senão bate na pia. E, no bidê, tem-se que fazer ginástica para lavar
qualquer parte chamada pudenda. Hoje, os bidês parecem mais com
bibelôs de porcelana. E aquelas suítes que não tem esguicho no bidê e
então você tem que puxar o chuveirinho do chuveiro, atravessado ali
naqueles dois metros quadrados. Corre-se o risco de tropeçar nele e bater
a cabeça na torneira da pia.
Saudades da fila do banheiro. Ou quando a mãe mandava tomar
banho, era aquela gritaria: primeiro! Sou o último! Vai, menina, não
agüento mais! Mãe, o fulano está demorando muito! Ou, como aconteceu
com uma amiga minha que, na pré adolescência foi reclamar com a mãe
que tinha vistos vários espermatozóide do irmão andando pelos ladrilhos
do banheiro.
Enfim, as suítes que estão nos vendendo, são mais um motivo para a
desagregação da família. Estão isolando pais de filhos, irmãos de irmãs.
Antigamente, a família que defecada unida, era muito mais unida.
Ultimamente, no Brasil, parece que só os anões do orçamento
continuam a defecar juntos. Mas, na prisão, tenho certeza que cada um vai
ter uma cela individual. Uma suíte para cada um. Para que nunca mais
fiquemos sabendo de suas defecadas coletivas. E que eles agüentem
sozinhos o cheiro da podridão que fizeram com o nosso dinheiro.

SEBASTIÃO BERNARDES DE SOUZA PRATA


1.12.93

A IGREJA não proibia o tráfico de escravos. Afinal, a Inglaterra


(grande traficante) devia muito dinheiro ao Vaticano. Não proibia, mas
impunha uma condição: que todos fossem batizados para, em caso de
morte na travessia, suas almas não ficarem vagando pelo Limbo. Os
ingleses sempre foram muito ingleses, limpando a barra de uma possível
culpa. E então cada leva de negros que entrava num navio era batizada
em lote. Ou todos se chamavam Joaquim, ou João, ou Pedro, ou José, ou
Maria, ou Sebastiana, e assim por diante.
Quando a princesa Isabel acabou com esta vergonha, os escravos
mais chegados aos latifundiários da época e que, portanto, não tinham
sobrenome, receberam-no daquelas famílias. Foi assim, lá no Triângulo
Mineiro, que um negrinho recebeu o sobrenome da minha família. Prata.
Este negrinho, escravo do meu bisavô, viria depois a ser pai do
Bastiãozinho, ou melhor, Sebastião Bernardes de Souza Prata, ou melhor
ainda, Grande Othelo. Com muita honra, meu primo.
Desde pequeno meu pai me contava essa história. Othelo sempre foi
o orgulho de todos nós: o primo famoso, umas das maiores unanimidades
nacionais, um metro e quarenta de talento internacional. Meu pai, quatro
anos mais velho do que ele, lembra-se dele, lá no nosso Triângulo Mineiro,
o Bastiãozinho, a vender jornal na rua.
Conheci o primo famoso num restaurante no Rio de Janeiro, o
Jangada, em 1975. Grande Othelo estava numa mesa como gostava:
bêbado. Alguém disse quem eu era e ele veio até a minha mesa e
perguntou humildemente:
- A família Prata não acha ruim eu usar o nome dela?
- Imagina, Othelo, você é o orgulho da nossa família.
Ele subiu no meu colo e começou a chorar como uma criança.
Depois, em pé, equilibrando-se em cima do meu joelho, gritava para todo
o bar ouvir:
- Um boi deste meu primo aqui dá pra comprar este restaurante
inteiro.
Minha família não tinha mais bois, mas ele já nem me ouvia. Não me
restou mais nada a fazer a não ser chorar e rir, chorar e rir, ali, abraçado
com aquele gigante. Ficamos amigos e mais primos do que nunca, a partir
daquele dia.
Às vezes me telefonava:
- Primo, precisamos fazer um trabalho juntos. Um trabalho de ouro,
primo!
Fui adiando essa parceria, talvez um pouco temeroso de não estar à
altura de tão genial parente.
Voltando de Portugal, onde passei dois anos, um dos meus projetos
era escrever a vida dele, desde o tempo do Bastiãozinho. Era este o meu
projeto, Luis, para a Companhia das Letras. Fui adiando, adiando...
Esta semana um amigo, o Marinho, me telefonou. Estava fazendo
um vídeo sobre o Othelo. Queria umas informações sobre a origem do
nome Prata nos documentos dele O Marinho me disse que ele não se
lembrava direito do passado dele. Dizia que "tinha uns parentes brancos,
mas não se lembrava mais". Marinho, triste, percebeu que ele estava
perdendo a memória. Meu livro sobre ele não mais seria escrito, pensei.
Na última vez que estive com ele, no Festival de Gramado, a
Manchete nos pediu uma foto juntos. Ele desceu do quarto, muito bem
vestido, e me cumprimentou como se não me conhecesse. Mas ficou
olhando no fundo dos meus olhos, procurando se lembrar de mim,
procurando alguma coisa no seu passado. Não gritou como sempre fazia:
"primo!". Percebi ali, no frio de Gramado, que estava perdendo o meu
primo.
Agora ele morreu. Como convém a um grande artista: em pleno
outono parisiense. Mais chique impossível.
Morreu o Bastiãozinho, morreu o Sebastião Bernardes de Souza
Prata, morreu o Grande Othelo, morreu este Garrincha talentoso que
driblava e encantava a todos no palco, na tela, na televisão, na música
popular brasileira. Vai, primo, passe direto pelo Limbo, vá para o Céu,
talvez com direção do Orson Welles, fazer Deus rir um pouco.

SEMPRE MOREI EM SAN FRANCISCO


22.6.94

SAN FRANCISCO - Estou há dez dias em San Francisco e tenho a


nítida (e pretensiosa) idéia de que sempre morei aqui. A cidade é pequena
(embora alta). Deve ser mais ou menos do tamanho dos Jardins, em São
Paulo, com uma população de 750 mil habitantes. Mas, em cada canto dela,
a gente vai vendo e sentindo um pouco do nosso passado. É a música que
foi feita aqui, os livros escritos aqui e, principalmente, os filmes rodados
nestas limpas e onduladas ruas.
Quem é, da minha geração, que nunca viu um bondinho (cable cars)
num filme emocionante, com os manobristas gritando "heeeeere we go!"
ou "hold on tight for the curve?" Os cabbe cars são o único patrimônio
tombado pelo Estado que são móveis.
Talvez Mark Twain, que veio para cá na época do velho oeste
procurar ouro, tenha sido o primeiro a escrever sobre a cidade. Depois, já
no começo do século, registrou o terremoto de 1906 em detalhes no seu
Roughing It. Dando um pulo no tempo, podemos chegar ao Falcão maltês,
de Dashiell Hammett, que depois viraria filme do John Huston, com
Humphrey Bogart. E se você vai jantar no John Grill, tá lá a mesa onde
Sam Spade, o detetive, comeu um filé acebolado atrás de uma pista falsa.
Mas esteve lá. Jack London descreveu a sua infância em Oakland. Depois
veio Jack Kerouac (hoje nome de rua) com o seu On the road. Mais
recentemente, Pynchon mostrando a sua geração em 60. Por onde você
anda, vai vendo estes textos no seu passado.
E os filmes? Quantos e quantos filmes não foram rodados no
presídio de Alcatraz, uma ilha no meio da baía? Quantas tentativas de
fuga? Os pássaros, por exemplo, de Hitchcock, foi filmado na costa norte.
Mas nada como Bullit, aquele filme de perseguição de carros pelas ruas da
cidade. Os carros voavam nas subidas e descidas das ruas por onde agora
eu passeio. Mas atravesso com cuidado. Como se aquelas perseguições
nunca acabassem. Em cada esquina você se lembra de um filme. Parece
que a porta da casa vai se abrir e algum ator ou atriz de Hollywood vai
sair e te convidar para um café. Ou então o Santana e sua banda, que
também surgiram aqui, vão dar um sustenido no seu ouvido. Ainda se
ouve nas rádios daqui o sucesso de Tony Bennett "I left my heart in San
Francisco". E lá se vão 25 anos.
Mas quem entortou mesmo a cidade foi a Janis Joplin. Tá certo que
nasceu no Texas, mas foi aqui que ela viajou pra valer até a morte com
overdose de cocaína. Quem viu Rose, o filme sobre a vida dela, deve estar
com as ruas da cidade na cabeça.
San Francisco também é a terra do William Randolph Hearst, o
grande magnata das comunicações, que teria inspirado Orson Welles a
fazer o mais antológico dos filmes de todos os tempos: Cidadão Kane. Mas
se Orson dominava o pedaço nos anos 40, quem domina o espaço hoje é o
Coppola, que tem uma casa cinematográfica logo ali, depois da Golden
Gate, em Salsalito. Não nos esqueçamos que a filha de Hearst, a Patrícia,
virou terrorista de assaltar banco e tudo o mais. Fizeram um filme sobre
isso. Aliás, onde anda Patrícia Hearst? Ainda não cruzei com ela na rua.
E Joe DiMaggio, aqui mais conhecido como um dos melhores
jogadores de beisebol de todos os tempos? Mas, para nós, adolescentes
dos anos 60, um mito muito maior: transava com a Marilyn Monroe.
E quem ainda anda pelo pedaço é o Jerry Garcia, guitarrista,
vocalista e líder da banda psicodélica Grateful Dead.
Aqui aconteceu a grande corrida do ouro a partir de 1848, aqui
surgiu a guerra que separaria a Califórnia do México, aqui aconteceu o
movimento beatnik, aqui surgiram os hippies, aqui fica Twin Peaks, que
deu aquela série.
Só aqui poderiam acontecer tantas coisas. Cultura que a gente já
tinha na nossa memória. A cidade é doida, louca, elegante, hospitaleira,
calma, rica, excitante. Afinal, o primeiro nome de San Francisco foi Yerba
Buena. Não podia dar noutra coisa.
Meu Deus, como nós, brasileiros, somos americanos! Será que valeu
a pena? Quem sabe a gente se torne, aqui, sem pânico, campeões mundiais
de futebol? Já é alguma coisa. Um pequeno troco.

P. S.: além da memória, abusei um pouco do Frommer's.

SENTA QUE O NEGÃO É MANSO


28.6.94

SAN FRANCISCO - O Let's Gol! foi preso!


Quem me dizia isso era o coordenador geral da Stella Barros, quase
meia-noite, exausto, voltando da delegacia. Let's Gol! foi preso na estrada,
guiando em zigue-zague, depois do último jogo do Brasil, depois de
tomar umas e outras (mais outras do que umas) dentro do estádio. Foi
uma luta para soltar o torcedor brasileiro Let's Gol!. Oitocentos dólares de
multa, algum puxão de orelha. Ele não conseguiu convencer o xerife de
que no Brasil se dirigia daquele jeito.
Em lugar nenhum do mundo se dirige assim, teria dito a autoridade.
E acrescentado: só o Pelé no Cosmos!
Mas quem é o Let's Gol!? O Let's, como já é conhecido na intimidade
da torcida brasileira, é um torcedor gaúcho, gordo, barrigudo e machão.
Rosto vermelho pelos raios do verão californiano. Ficou com este apelido
por ostentar, dia e noite, sua enorme camiseta verde onde se lê em
amarelo: "Brasil, let's gol!" Não sei se trouxe várias ou se a lava todas as
noites. Mas ele não a tira. A mulher, baixinha e tímida, anda igual, com
uma única diferença. A camisa é amarela e está escrito em verde.
Mas a prisão do Let's Gol! não foi o seu primeiro gol. Ele já havia se
destacado no jogo contra Camarões, lá no Stanford Stadium. Naquele dia
ele não foi preso. Mas deveria.
Foi assim:
No jogo contra Camarões, onde estávamos, éramos mais ou menos
uns mil brasileiros, tensos, na expectativa do jogo que poderia definir tudo.
Eis que entra um torcedor de Camarões, com a camisa, o boné e a
bandeira do país africano. Um crioulo forte, muito alto, com os dentes
brancos, um sorriso imenso. Bonito, muito bonito. Simpático, o negão de
quase dois metros. E corajoso. Deve ter comprado o ingresso sem saber
onde iria cair. Bem ali no nosso meio, na minha frente. Atrás de mim, o
Let's Gol!, já bem tijolado.
Todo mundo começa a brincar com o Camarão. A torcida canta
"assassinaram o Camarão"... O Camarão (vamos chamá-lo assim) sorria,
simpático. Não estava a fim de comprar briga.
Senta que o negão é manso!
O Camarão, evidentemente, não entendia nada. Falava inglês com
alguns brasileiros. Atrás de mim o Let's espumava: "hoje eu vou comer
um Camarão à milanesa!". O Camarão ria, sem entender nada. Mas ele
estava a fim de uma boa vizinhança. Antes de começar o jogo ele já estava
íntimo de alguns brasileiros. Chegou até a combinar de trocar a camisa e o
boné com um torcedor de Catanduva, depois do jogo. Mas o Let's não
perdoava:
- Ô, Camarão, ô, Camarão, vou te comer amanhã! Vou te comer,
preto viado!
Gritava e tomava mais uma dose. Enquanto isso o jogo começava e
já tinha gente gostando do Camarão. Pra falar a verdade, o Camarão, com
seu largo sorriso de marfim africano, já havia conquistado a todos nós.
Mas o racista e agora vermelho Let's continuava a insultar o gigante negro,
que não entendia nenhuma palavra de português:
- Passa a mão na bunda do crioulo que ele acalma!
O Camarão olhava para o Let's, sorria e dizia apenas: "yes! yes!".
O Brasil marca o primeiro gol, Let's Gol! quase cai em cima de mim
com o dedo na cara do Camarão: "você é viado, viado, tá me entendendo?
Você é viado!". E o negão dizia: "yeah, yeah, yeah".
O jogo estava bonito. Nos uniformes dos dois times, as quatro cores
básicas: amarelo, azul, verde e vermelho. Na arquibancada, o Camarão já
estava quase sambando e abraçado com uma carioca. O Camarão estava
conquistando todos os brasileiros. Menos o Let's, é claro. Um jogador de
Camarões cai machucado no campo e o Let's vocifera: "chama o
veterinário!".
- Camarão, you are bicha! You are bicha, camarão!
Talvez o Camarão achasse aquilo um elogio e agradecia: "thank
you!". Let's ria, balançando a pança macha e gaúcha.
No final do jogo, aquela festa toda, o Camarão, sempre sorrindo,
passa por mim, vai até o Let's, pega ele pelo colarinho, levanta-o no ar,
sempre sorrindo. Toda a torcida olha a cena. Toda a torcida-brasileira está
torcendo para o Camarão. E ele dá uma violenta cabeçada na testa do Let's,
impiedosa. O gordo cai no chão semidesmaiado. O Camarão, com a maior
calma do mundo, tira o boné de brasileiro do gaúcho e coloca na sua
cabeça. E diz para a esposa do Let's, que o abanava no chão, em um
português brasileiríssimo :
- Quando o babaca do seu marido acordar, diga a ele que o meu
nome é Hideraldo, sou carioca e trabalho há dez anos de cozinheiro no
Nikke Hotel. Passar bem, minha senhora.
O Camarão foi ovacionado. Só não saiu de campo carregado porque
era muito forte aquele crioulo brasileiro.

SÍNDROME DE PÂNICO? NÃO ENTRE EM


PÂNICO!
03/12/94

Foi de repente. Lisboa, Bingo do Belenenses. O prêmio era de 2.000


dólares e a minha cartela estava quase cheia. Começo a suar. Era fevereiro,
estava muito frio. Tiro o paletó. Faltam duas bolas. Tiro o pulôver. Estou
por uma, tiro a camisa, ficando apenas de camiseta para o olhar surpreso
dos lusitanos companheiros de mesa. Começa a me faltar ar, o meu
coração acelera, minha mão está gelada. Suando frio. Acho que vou
desmaiar. Alguém faz o Bingo. Foi um alívio. Não iria agüentar ficar mais
nem um segundo naquela sala. Saio para a rua a procura de ar, não
consigo respirar direito. Pego meu carro, o coração saltando pela boca. O
trânsito congestiona. São seis e meia da tarde. Largo o carro no meio da
rua, entro numa farmácia e digo que estou para desmaiar. A senhora diz
que não pode me dar nada sem uma receita médica. Deve ter achado que
eu era drogado. Deixo o carro no meio da rua e vou rastejando até um
pronto socorro. Entro sem pedir licença, deito numa maca. Uma hora
depois estou isolado na UTI do hospital com fios ligados pelo corpo todo,
soro por tudo quanto é lado, fazendo mil exames. Durmo lá, sozinho,
pensando, pela primeira vez, em 47 anos, na morte. Mas, no dia seguinte,
estava ótimo. Era a minha última semana, depois de dois anos, em
Portugal. Estresse. Os exames de sangue estavam, no dizer do atencioso
médico, "exemplares". Faltava apenas um pouco de potássio: coma
bananas, me disse. E tome dois Lexotan 3 mg por dia. Paguei os dois mil
dólares que não ganhei no Bingo.
Fui ler a bula: "distúrbios emocionais: estados de tensão e ansiedade,
humor depressivo-ansioso, tensão nervosa, agitação e insônia. Tratamento
psicoterápico e psiconeuroses". Tô ficando "louco", meu Deus, pensei.
Logo eu, caipirão do interior, que sou do tempo que fazer análise era levar
cocô no laboratório de análises clínicas.
Volto ao Brasil, procuro meu médico, conto tudo para ele, ele faz
todos os exames. A saúde física estava ótima, apenas uma pequena
esofagite. Mantém o Lexotan.
Eu tinha vergonha de dizer para as pessoas que eu estava tomando
Lexotan. Afinal, para se conseguir um, tem que ter uma receita especial
azul, com carimbo do médico, a gente tem que apresentar documentos, o
farmacêutico te olha com cara de quem sabe que você está ficando "louco".
Mas, pouco a pouco, vou percebendo que todo mundo tomou ou estava
tomando Lexotan. Ouvia frases assim: fulana toma há 10 anos... Lexotan?
Só dois por dia? Tá bom. Comecei a perceber que existe uma espécie de
confraria entre o pessoal do Lex, como é tratado na intimidade por
aqueles que estão ainda á beira de um ataque de pânico.Tem gente que
liga de madrugada para amigos, propondo trocar dois Lexs por duas
doses de uísque. Um dia resolvo contar para a minha irmã psicóloga e me
surpreendo: eu também tomo há muitos anos. Aliás, vamos tomar um
agora?, ela propôs. E dividimos um Lex para comemorar. Uma e meia
miligrama para cada um. Comecei a perceber que não era apenas eu que
estava enlouquecendo.
Mas aí, apesar do velho Lex, fui tendo outros sintomas. Medo de sair
de casa! E quando saia e enfrentava um engarrafamento, ficava
desesperado. Desesperadamente desesperado! Pensava: cara, não vai te
acontecer nada. Tá tudo certo. A família está ótima, seu livro está
vendendo bem, seus filhos agora estão na escola, a parte financeira está
bem, você tem uma namorada legal, seus amigos estão todos aqui. Mas
não adiantava. Deixava de ir onde ia, voltava para casa, me trancava. E
assim eu passei quatro dias, sem comer nada, trancado, olhando para o
teto. Com medo. Do quê? Não sei. Medo, pânico! Emagrecia. Me diziam:
conheço uma mulher que ficou três anos trancada no quarto...
Foi quando alguém disse: Síndrome de Pânico. Era isto.
A sensação é que nunca mais a gente vai ficar bom. Que vai ser dali
para pior. O pânico entra pelos poros, pelos fios do cabelo, por debaixo da
porta, pela água do chuveiro. É um terror.
É quando os amigos e parentes começam a querer ajudar. E
confundem cada vez mais a gente. Cada um tem uma teoria, cada um tem
um amigo que já teve isto. Para uns terapia, para outros, essência floral,
para aquela amiga, um psiquiatra, para o primo mais chegado, isso não
passava de uma viadagenzinha. O que fazer, meu Deus? Mas todos, para
consolar, ou não, diziam: passa! Eu não acreditava. Porque logo comigo?
Claro, basta entrar um pouco na cabeça da gente que vamos descobrir a
origem. Mas diziam que era coisa nos neurônios. Fiquei imaginando um
mata-burro entre cada um dos meus neurônios.
As coisas práticas você deixa de fazer. Precisava cortar o cabelo, ir
ao dentista, cancelei algumas entrevistas relativas ao lançamento do meu
livro. Lembram, Angeli e Glauco, o dia que sai quase correndo lá do Pé-
Pra-Fora? Lembra, produção do Metrópolis, quando eu sai do estúdio na
hora que ia começar a minha entrevista? Lembra, Marta , que eu não fui
na sua festa de 40 anos? Lembra, Antonio, quando eu mandava você
pegar um taxi no meio do caminho? Lembra, Ruth, quando eu não pude ir
buscar a mamãe no aeroporto? Lembra, Paim, quando eu não fui naquela
reunião do colégio? Lembra que eu cancelei a noite de autógrafos em
Londrina, Nitis? Lembra Clodovil? Lembra Roseli do Opinião Nacional?
Ficava em casa. Brocha! Em todos os sentidos. Um dia sai de mãos dadas e
suadas com a namorada e fui a um psiquiatra. Psiquiatra, para mim,
sempre foi sinônimo de barra pesada, de tratamento de "loucos". Eu
estava mesmo "louco"? Alguns amigos não queriam que eu fosse ao
psiquiatra. Vai te encher de remédios, vai te dopar... Minha mulher
conhece uma terapeuta que... Vai no meu analista que é lacaniano.
Lacaniano não, tem que ser freudiano! Eram os amigos querendo ajudar.
A Marisa teve isso, diz que quando passa dá uma euforia danada!
Mas, a esta altura, eu faria qualquer coisa para sair "daquilo".
O psiquiatra - jovem e simpático - diagnosticou a tal da Síndrome de
Pânico. Vamos tratar primeiro com remédio, depois uma terapia de apoio.
Comecei a tomar o remédio A, 25 mg. Uma pílula por dia. Pra começar,
ele disse. E tem mais, não vai fazer efeito nos primeiros dias. E te
aconselho e não ler a bula. Não li.
A esta altura todo mundo já estava sabendo que eu estava com esta
"doença". E foi aí que eu comecei a perceber que eu não era o único nem
em São Paulo, nem entre os meus amigos e amigas. Pouco a pouco os
companheiros de doença foram se aproximando, telefonando, dando força.
Um verdadeiro sindicato do pânico. Descobri, por exemplo, que a amiga
de uma minha irmã tomava o tal do remédio A, 100 mg. Quatro vezes o
que eu tomava. Depois descobri que a mulher de um amigo, chegou a
tomar 300 mg por dia. Eu, com as minhas modestas 25, comecei a achar
que eu era o menos "louco" da turma.
Até que comecei, pouco a pouco, a sair novamente. E, sábado
passado, jantando num japonês, num grupo de oito pessoas, quatro já
tinham passado pela mesma experiência que eu. A atriz ML dizia: passa!
Parece que não vai passar, mas passa! Na minha frente o empresário MV,
disse que tomou o remédio A nove meses. Minha namorada confessou
que tinha tido a Síndrome de Pânico com 17 anos. E um outro, o cineasta
CK: gente, acho que foi isso que eu tive há oito anos!..
Foi bom saber que eu não era o único "louco" da turma. E agora, que
já estou pondo as manguinhas de fora novamente, fico pensando nessa
horrível experiência que passei e tiro duas conclusões: a primeira é que
realmente tem cura e passa. É apenas um susto. E a segunda é a
quantidade de pessoas de estiveram, estão ou estarão em pânico, que eu
acabei descobrindo. Vejo que o problema não é só meu. Será que não é o
pais inteiro que está ficando em pânico? Será que o buraco não é mais em
cima? Lá por Brasília? Afinal, o pânico é de quê? De quem? Parece mesmo
que o pânico é geral, é do país. O importante é que você, estando com a
Síndrome de Pânico, não entre em pânico. Tem remédio para tudo, minha
gente. Até mesmo para este nosso Brasil. O que o Brasil está precisando é
de uma boa dose de Anafranil 25 mg. Chega de viadagem e não se fala
mais nisso.

TECNOLOGIA DE PONTA
5.7.94

SAN FRANCISCO - Uma amiga me bipa já do aeroporto de São


Paulo, dizendo que está vindo para San Francisco e chega ao meio-dia,
mais ou menos. Não me diz se chega num vôo internacional, nem numa
conexão doméstica, nem a companhia. Quem conhece o aeroporto de San
Francisco pode imaginar a dificuldade que eu teria para localizar a minha
amiga. É um dos aeroportos com mais movimento dos Estados Unidos.
Oitenta companhias aéreas operam por aqui, usando 90 portões de
desembarque. Resolvi ligar para as companhias que operam com o Brasil.
Comecei pela American Airlines, que eu tinha o telefone e foi quem me
trouxe. Lista telefônica é para isso mesmo. E para facilitar a minha vida,
meu contato falava espanhol. Disquei.
Gravação feminina - Obrigada por chamar o sistema de informações de
vôos da American Airlines. Para obter instruções de como usar este
sistema, aperte o número 1, seguido pelo asterisco ou botão de estrela,
agora. Pelo contrário, aperte o número 2, seguido pelo asterisco.
Apertei o número 1 e o asterisco, meio abismado.
Gravação feminina - Para obter informações de vôos, por favor, aperte os
botões solicitados com os números correspondentes, seguidos pelo
asteriscos. Você pode responder sem ter que esperar que termine a frase
que está escutando. Lista principal de opções: para verificar chegadas e
saídas de vôos específicos e suas respectivas portas de embarque e
desembarque, aperte o número 1. seguido pelo asterisco, agora.
Nem esperei as outras opções: apertei o número 1 e o asterisco.
Gravação feminina - Se você sabe o número do vôo, aperte o número 1 e o
asterisco, agora. Se você não sabe o número do vôo, aperte o número 2
seguido do asterisco, agora.
Não sabia o número do vôo. Não sabia nada, estava quase desesperado,
apertei o 2.
Gravação feminina - Se você sabe a hora aproximada de chegada ou saída,
aperte o número 1, seguido do asterisco. Pelo contrário, aperte o número 2,
seguido do asterisco.
Sabia a hora aproximada da chegada. Só isso. Tudo que eu queria era
parar aquela gravação e dar o nome da minha amiga. Seria tudo tão
simples... Apertei o 1. E o asterisco, é claro.
Gravação feminina - Para verificar a hora de chegada, aperte o número 1 e
o asterisco. Para verificar a hora de saída, aperte o numero 2 e o asterisco.
Novamente o 1. Onde vai parar isso, meu Deus? Por que não entra um
nordestino aí e me explica tudo direito? Como no Brasil?
Gravação feminina - Por favor, marque as quatro primeiras letras da
cidade de saída. seguidas pelo asterisco. Utilize o número 1 para as letras
U e Z.
Apertei SAOP, a voz deu uma bronca, dizendo que não tinha cidade em
lugar nenhum no mundo que começava daquele jeito. Apertei SANP.
Agora sim, deu certo.
Gravação feminina - Quando escutar o aeroporto que deseja, aperte
imediatamente o número 1 e o asterisco. San Pedro, Honduras. San
Salvador, El Salvador. San Paulo, Brazil.
Apertei o asterisco depois do 1, imediatamente, como recomendado.
Gravação feminina - Agora marque as primeiras quatro letras da cidade
de chegada, seguidas pelo asterisco. Utilize o número 1 para as letras U e
Z.
Já estava dominando a máquina: SANF, com um dedo só. Já estava
gostando da voz da garota. Já sentia uma certa cumplicidade, amizade
mesmo, com ela. Já falávamos há meia hora.
Gravação feminina - Quando escutar o aeroporto que deseja, aperte
imediatamente o número 1 e o asterisco. San Francisco.
Desta vez ela matou na primeira, a danadinha. Muito inteligente, a moça.
Gravação feminina - Para marcar a hora aproximada de chegada, aperte o
número 1 e o asterisco. Para marcar a hora aproximada de saída, aperte o
número 2 e o asterisco.
Apertei o 1 e o asterisco. Sabia a hora aproximada. Comecei a achar que a
nossa conversa não ia muito longe.
Gravação feminina - Para a.m., aperte o número 1 e o asterisco. Para p.m.,
aperte o número 2 e o asterisco.
Fui de a.m.
Gravação feminina - Por favor, marque o seu horário de chegada, sem os
minutos, de um a doze, seguido pelo número 1 e o asterisco, agora.
Um e dois, doze. Já que não me deu a opção mais ou menos.
Gravação feminina - Agora marque os minutos de 1 a 59, seguidos pelo
asterisco, ou use o asterisco para indicar 12 em ponto.
Imaginei que fosse 12 em ponto. Asterisco nela.
Gravação feminina - Para vôos de chegada hoje, aperte 1 seguido do
asterisco. Para vôos de chegada amanhã, aperte o número 2 seguido do
asterisco.
Fui de 1, mais uma vez.
Ruídos estranhos, estranhíssimos, do outro lado da linha. Mas a minha
amiga voltou, fleugmática e fria, como sempre.
Gravação feminina - Estamos tendo dificuldades para descobrir o vôo em
que você marcou a hora de chegada. Um momento, por favor, que um
nosso representante de vendas o ajudará.
E veio um espanhol de nome José. Expliquei o meu problema e a minha
conversa de meia hora com a máquina. Só sabia que ela ia chegar mais ou
menos ao meio-dia. Não sabia mais nada. Ele fez novamente todas as
perguntas que eu já havia respondido para a fria máquina. Pensou um
pouco:
- Não posso fazer nada pelo senhor. Have a good day.
E eu respondi com um asterisco!
UMA NOITE COM RUBEM BRAGA
1.9.93

MUITO DIFICÍL diferenciar uma crônica de um artigo, assim como


o conto de uma novela e uma novela de um romance. Tem gente que diz
que é uma questão de tamanho, de linhas.
Antigamente - mas não tão antIgamente - existiam os verdadeiros
cronistas brasileiros A revista Manchete, em seus dias de glória - antes da
fase (igualmente válida) de consultório dentário - mandava para a gente lá
no interior de São Paulo, não um nem dois, mas quatro cronistas de
primeiríssima - até hoje - linha. Como era bom esperar a chegada da
revista com o Henrique Pongetti, o Paulo Mendes Campos, o Fernando
Sabino e o maior de todos os cronistas brasileiros - bom páreo para o
Nelson Rodrigues - o Rubem Braga.
Rubem Braga escrevia crônicas como quem bebia um copo de água.
De um só gole. Refrescava a cabeça de todos nós. Estes quatro, mais o
Nelson e o Sergio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta) foram os mestres. Até
hoje não surgiu ninguém igual a qualquer um deles. Mas o Rubern Braga,
que me perdoem os demais, foi sempre o melhor.
Um dia, tive a oportunidade de conhecer o velho Braga. Samuel
Wainer - fisicamente parecidíssimo com ele - levou-nos para uns - vários -
copos no Pirandello, restaurante de grande badalação no começo dos 80.
Eu fiquei ali, deslumbrado, diante daquelas duas sumidades. Lembro-me
que Samuel estava dando uma cantada no Rubem Braga para que este
escrevesse uma crônica semanal na Folha. Eu ali, ouvindo a conversa dos
dois mestres de sobrancelhas desconsertadas, como se o vento estivesse
sempre a brincar com elas e com eles. Eis que entra uma mulher feia. Feia
não, horrível! Naquele tempo o Maschio exibia uns espelhos nas paredes
do seu Pirandello. E não é que a mulher feia-horrorosa foi se admirar -
durante alguns bons segundos - num daqueles espelhos, retocando o
próprio olhar? Rubem Braga - isto é um cronista - não deixou por menos:
- Os espelhos deveriam refletir melhor antes de refletirem certas
imagens!
Estendi imediata e tietamente o guardanapo de pano e pedi que ele
escrevesse aquilo para mim e assinasse. E ele fez isso com carinho de pai
para filho.
Depois conversamos sobre a morte - este fato ocorreu uma semana
antes do Samuel morrer nos braços de uma dinamarquesa (mas isto é
outra crônica e fica para outro dia). Eu dizia que falavámos sobre a morte,
ou melhor, sobre a cremação depois da morte. E os três diziam que
queriam ser cremados depois de morrer. Rubem Braga lembrou que,
depois de vários dias que o Vinicius havia morrido (meses antes),
descobriram um guardanapo onde ele manifestava o desejo de ser
cremado. Mas já estava lá no São João Batista no Rio.
Levamos o Braga para o Othon Hotel e ele, meio sem jeito, meio
criança fazendo arte, já fora do carro, ajeitando as melenas igualmente
desgrenhadas, disse:
- Olha, para falar a verdade, aquele texto que eu te escrevi, eu não
sei se é meu ou de um francês que eu traduzi. Paul Eluard. Ou Valery, não
sei mais.
Mas eu guardei o guardanapo. Ainda fui tomar uma saideira com o
Samuel num boteco qualquer e, naquela noite, ele me disse duas coisas
que eu nunca esqueci. Primeiro, que ele tinha mesmo nascido na
Bessarábia e não era brasileiro (já era tempo de alguém escrever isto em
algum lugar). E a outra coisa é que, quando ele fundou a Última Hora, em
51, o seu diagramador, um argentino chamado Guevara, sugeriu dar o
tom azul ao logotipo do seu jornal.
- Mas pode isso? perguntou Samuel.
- Pode. Vai ser azul, como os seus olhos.
Anos depois, esta história sairia no livro autobiográfico dele,
reescrito num tom de texto de revista Veja, sem nada do linguajar gostoso
do velho amigo e mestre Samuel Wainer.
Tudo isto me vem à cabeça numa hora, Samuel, que aqui estou eu a
fazer crônica no Estadão, ao lado da sua eterna Danuza (continua linda e
escrevendo tão gostosamente que os seus olhos azuis iriam chorar, como
sempre choraram tão facilmente).
E não é que o Estadão está colocando um azul no logotipo do jornal?
Não lembra os seus olhos - é um azul mais marinho. Mas me faz ficar com
saudades de você. Você que lançou tantos cronistas com seus olhos azuis,
sua sobrancelha sem direção e seus óculos eternamente levantados em
cima da cabeça. Como se você visse com o cérebro e escrevesse com o
coração. Tudo azul por aqui.

P. S.: esqueci de dizer que o Rubem Braga me disse que crônica é


contar um caso e artigo é explicar o caso. E que escrever é uma profissão
como outra qualquer.

UMA PROFISSÃO COMO OUTRA QUALQUER


23.3.94

HOJE vou falar sério. Vou escrever sobre o ato de escrever.


O ato de escrever é uma profissão como outra qualquer. Exige um
certo dom de observação, talento e muita técnica. Além do suor, é claro.
Será mesmo que é uma profissão como outra qualquer? Meu filho
Antonio, de 16 anos, quer ser escritor como o pai e a mãe. E me
perguntou: "que faculdade eu devo fazer?". Penso. Não sei, meu filho.
Além de mandar ler os clássicos brasileiros, portugueses, franceses
e russos, sei lá. O que eu quero dizer é que o Brasil é um dos únicos países
do mundo onde não se ensina a escrever em nenhuma faculdade. Não
temos uma Faculdade de Escritores. Cuba, por exemplo, tem uma escola
de roteiros e dramaturgia que forma alunos de todo o mundo. Seu diretor,
ninguém menos que Gabriel Garcia Márques. Jean Claude Carriere,
roteirista dos últimos filmes do Buñuel, faz o mesmo nos arredores de
Paris. Aqui o jovem tem que aprender na marra, na datilografia apressada.
Mas não é com os dedos que se escreve. Tem que aprender apenas lendo
os outros. Será que isto basta?
Sou júri de um interessante projeto do Ministério da Cultura para
premiar (com financiamento) projetos de filmes de longa, média e curta
metragem. Já li uns 70 roteiros. A quantidade de pessoas (inteligentes) que
acha que sabe escrever um roteiro de cinema me impressionou. Filmes
onde todos os personagens falam exatamente igual, roteiros sem pé nem
cabeça, nenhuma estrutura dramática, sem ação nem reação, é o que se
encontra ao folhear os calhamaços que o MinC me mandou. Por que não
uma escola para roteirista de cinema? Glauber Rocha fez um grande mal
para os novos cineastas brasileiros quando afirmou que, para filmar, basta
''uma câmera na mão e uma idéia na cabeça". O problema é que os
pretensos cineastas não têm nem a mão nem a cabeça do baiano.
Vejam o caso das telenovelas brasileiras. Há alguns anos que elas
são todas iguais. Se pegar a primeira parte da novela das seis, a segunda
da novela das sete e a terceira da das oito e misturar, ninguém vai
perceber a diferença. Tudo igual. Claro, são escritas pelos mesmos
profissionais há mais de vinte anos. Não houve e nem haverá nunca uma
renovação nas telinhas. O gênero telenovela tende a morrer por falta de
autores.
A literatura brasileira, tão rica (apesar de escrevermos em
português) não nos dá um Machado, um Nelson Rodrigues, há quanto
tempo? O teatro brasileiro, que teve um grande boom de dramaturgos nos
anos 60 e 70, carece de textos. Quem é o novo dramaturgo brasileiro?
Eu não tenho nenhuma dúvida ao afirmar que a profissão de
escritor ainda é olhada meio de soslaio pela sociedade brasileira. Quando
preencho alguma ficha (em hotel, por exemplo) e no item profissão tasco
ESCRITOR, todo mundo me olha meio de lado, provavelmente pensando:
mas isso lá é profissão? Pior ainda é quando digo numa rodinha que
escrevo, logo alguém pergunta: "mas, para viver, faz o quê?". Ora, minha
senhora...
Meu filho já sentiu isso. Com 16 anos todo mundo pergunta para
ele o que ele vai ser. Ele tem vergonha de dizer que quer ser escritor. As
pessoas, segundo ele, acham que é esnobismo querer ser escritor no Brasil.
Não consigo, por mais que eu tente, descobrir de onde vem este absurdo
preconceito.
Será que não caberia à nossa arcaica e acadêmica Academia
Brasileira de Letras pensar um pouco neste assunto enquanto tomam chá
de cadeira? Será que a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (a nossa
velha SBAT) não poderia fazer algo nesse sentido? Será que as USPs e
Unicamps da vida não poderiam dar bolsas para brasileiros irem estudar
lá fora? Será que apenas a Fundação Vitae (que é do Mindlin, um
empresário que gosta de ler) subsidiará escritores no Brasil?
Espero que o filho do meu filho, se um dia quiser ser escritor, tenha
a possibilidade de estudar numa faculdade específica para isto e aprenda
as técnicas necessárias. Como toda profissão, a nossa também requer
técnicas. E, portanto, cursos técnicos para tais fins.
Não tenha vergonha, Antonio, de querer ser escritor. Afinal, você
foi criado pelos seus pais, que só sabem fazer isso na vida: escrever. Com
muito orgulho, diga-se de passagem.
Quando eu disse para o meu pai, aos 16 anos, que queria ser
escritor, ele torceu o bigode e me perguntou:
- E isso lá é profissão que se apresente?
Hoje, 32 anos depois, eu respondo para o meu filho:
- É!

VIAGEM AO REDOR DO MEU UMBIGO


25.9.94

VOCÊ já fez, alguma vez, uma endoscopia? Nem sabe o que é isso?
É o seguinte: eles enfiam um cabo com uma câmera de televisão pela sua
boca, garganta a dentro, e ficam bisbilhotando o seu esôfago, o seu
estômago e vão até o duodeno. Recomendo por dois motivos: primeiro
que você fica se conhecendo melhor. Fica íntimo do seu interior, participa
de uma intimidade interior e sua que você jamais poderia imaginar, e fica
por dentro de você mesmo. E, em segundo lugar porque, para que as suas
estranhas entranhas apareçam na TV (a cores), te dão uma injeção na veia
que é, no mínimo, interessante.
É muito engraçado e rico ficar numa sala de espera onde todos serão
esofagogastroduodenoscopizados. A palavra oficial é essa. Tente repetir.
Todos entram valentes, garbosos e falantes. Firmes. E saem, quinze
minutos depois, totalmente drogados, cambaleantes, o olho paradão, sem
mesmo saber o rumo de casa. Lembra do lança-perfume? Mais ou menos
aquilo. Só que dura mais. O barato aplicado e um terço de Dolantina, um
terço de Diazepan e uma talagada de Buscopan. Na veia. Bate na hora.
Dois dias depois você vai buscar o resultado e está lá o cenário da
sua novela interna, a vida íntima de personagens com quem lidamos
diariamente e pouco sabemos deles.
Ficamos sabendo coisas interessantíssimas sobre o lado de dentro da
gente. Por exemplo, o meu esôfago tem boa expansibilidade e calibre
conservados. Tenho orgulho disso. Calibre conservado a álcool,
provavelmente. Fiquei sabendo também, incrédulo, que tenho a mucosa
esbranquiçada e espessada, principalmente em um terço distal. E mais:
não há erosões ou úlceras, nem hérnia hiatal às manobras de esforço
abdominal. Deve ser o seguinte: posso fazer abdominais tranqüilamente,
que o esôfago garante.
Vamos agora para a cena seguinte, o estômago, que, segundo o
relatório, estava em boas condições para o exame, com o lago mucoso
claro, sem resíduos alimentares. Não é poético saber que temos, lá dentro,
um lago? Mucoso, mas lago. À manobra de retrovisão, o fundo e o cárdia
não apresentam alteração. O que a doutora quis dizer com isso é que ela
fez uma tomada de câmera complicada; deve ter dado um zoom nas
minhas pregas. Sim, porque, logo a seguir, me informa que o pregueado
mucoso de corpo segue sua distribuição regularmente. Felizmente. E fico
sabendo, finalmente, que a mucosa de incisura angularis e antro está
íntegra e sem lesões. Ou seja, além do lago, descubro que tenho um antro
lá dentro. E conclui que o meu piloro está centrado e facilmente permeável.
Não me pergutem o que é o meu piloro. O que importa é que ele está
centrado. Já o fato dele estar facilmente permeável não deve ser coisa boa.
Preferia ter um piloro mais firme, duro, impermeável.
Partimos agora para o duodeno que, como o próprio nome indica,
tem o tamanho de doze dedos. Lá a barra estava pesada: a mucosa
adjacente está hiperemiada e edemaciada. Entenderam? Nem eu, mas não
deve ser boa coisa. Mas, felizmente, não há qualquer sinal de sangramento
ou estenose. E, de repente, uma cena digna de final de capítulo. A vilã
finalmente mostra a sua cara para os espectadores: em parede posterior
próxima à transição para a segunda porção, uma úlcera alongada de 5 a 10
mm de média profundidade e fundo com fibrina. Para minha alegria (e do
meu duodeno), a segunda porção não apresenta anormalidades.
Conclusão: tenho uma úlcera bulbar ativa. Claro, jamais me
sujeitaria a ter uma úlcera bulbar passiva. É a envelhescência!
VOCÊ É UM ENVELHESCENTE?
1993

Se você tem entre 45 e 65 anos, preste bastante atenção no que se


segue. Se você for mais novo, preste também, porque um dia vai chegar lá.
E, se já passou, confira.
Sempre me disseram que a vida do homem se dividia em quatro
partes: infância, adolescência, maturidade e velhice. Quase correto.
Esqueceram de nos dizer que entre a maturidade e a velhice (entre os 45 e
os 65), existe a ENVELHESCÊNCIA.
A envelhescência nada mais é que uma preparação para entrar na
velhice, assim com a adolescência é uma preparação para a maturidade.
Engana-se quem acha que o homem maduro fica velho de repente, assim
da noite para o dia. Não. Antes, a envelhescência. E, se você está em plena
envelhecescência, já notou como ela é parecida com a adolescência?
Coloque os óculos e veja como este nosso estágio é maravilhoso:

- Já notou que andam nascendo algumas espinhas em você?


Notadamente na bunda?
- Assim como os adolescentes, os envelhescentes também gostam de
meninas de vinte anos.
- Os adolescentes mudam a voz. Nós, envelhescentes, também.
Mudamos o nosso ritmo de falar, o nosso timbre. Os adolescentes querem
falar mais rápido; os envelhescentes querem falar mais lentamente.
- Os adolescentes vivem a sonhar com o futuro; os envelhescentes
vivem a falar do passado. Bons tempos...
- Os adolescentes não têm idéia do que vai acontecer com eles daqui
a 20 anos. Os envelhescentes até evitam pensar nisso.
- Ninguém entende os adolescentes... Ninguém entende os
envelhescentes... Ambos são irritadiços, se enervam com pouco. Acham
que já sabem de tudo e não querem palpites nas suas vidas.
- Às vezes, um adolescente tem um filho: é uma coisa precoce. Às
vezes, um envelhescente tem um filho: é uma coisa pós-coce.
- Os adolescentes não entendem os adultos e acham que ninguém os
entende. Nós, envelhescentes, também não entendemos eles. "Ninguém
me entende" é uma frase típica de envelhescente.
- Quase todos os adolescentes acabam sentados na poltrona do
dentista e no divã do analista. Os envelhescentes, também a contragosto,
idem.
- O adolescente adora usar uns tênis e uns cabelos. O envelhescente
também. Sem falar nos brincos.
- Ambos adoram deitar e acordar tarde.
- O adolescente ama assistir a um show de um artista envelhescente
(Caetano, Chico, Mick Jagger). O envelhescente ama assistir a um show de
um artista adolescente (Rita Lee).
- O adolescente faz de tudo para aprender a fumar. O envelhescente
pagaria qualquer preço para deixar o vício.
- Ambos bebem escondido.
- Os adolescentes fumam maconha escondido dos pais. Os
envelhescentes fumam maconha escondido dos filhos.
- O adolescente esnoba que dá três por dia. O envelhescente quando
dá uma a cada três dia, está mentindo.
- A adolescência vai dos 10 aos 20 anos: a envelhescência vai dos 45
aos 60. Depois sim, virá a velhice, que nada mais é que a maturidade do
envelhescente.
- Daqui a alguns anos, quando insistirmos em não sair da
envelhescência para entrar na velhice, vão dizer:
- É um eterno envelhescente!

Que bom.

Você também pode gostar