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DAMA DA NOITE

Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando


por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta,
sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem
dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam
assim e assim por diante dessa roda-gigante.
Você? Você não viu nada, você nem viu o amor. Amor mata, amor
mata.
A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim -
tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim,
todo mundo já tinha decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu
lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu. Quem roda na
roda fica contente. Quem não roda se fode.
Eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra
certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia de vontade de
estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota.
E até me pergunto se não é sorte também estar do lado de fora dessa
roda besta que roda sem fim, sem mim.
Que nem eu, você acha que eu pareço muito fodida? Um pouco eu sei
que sim, mas fala a verdade: muito? Falso, eu tenho uns amigos, sim.
Fodidos que nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal.
Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá escrita
escarrada a minha própria cara fodida também, igualzinha à cara deles.
Alguns rodam na roda, mas rodam fodidamente. Não rodam que nem você.
Você é tão inocente, tão idiotinha com essa camisinha Lacoste. Inocente
porque nem sabe que é inocente. Nem eles, meus amigos fodidos, sabem
que não são mais.
Sabia que eu até vez em quando tenho mais pena de você e desses
arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus amigos fodidos? A
gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia dar, sabe quando
vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, mas vocês chegaram
depois que mataram a ilusão da gente.
Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez está escrito
nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. Você já nasceu proibido
de tocar no corpo do outro. E essa sede de outro corpo é que nos deixa
loucos e vai matando a gente aos pouquinhos. Você não conhece esse gosto
que é o gosto que faz com que você fique fora da roda que roda e roda e que
se foda rodando sem parar, porque o rodar dela é o rodar de quem consegue
fingir que não viu o que viu.
Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando sem parar. Olha bem:
quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana
pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais
de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não
segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero
ninguém. Nem você.
Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só
porque no meio desse lixo todo procuro O Verdadeiro Amor. Cuidado comigo:
um dia encontro.
Está quase amanhecendo, boy. As damas da noite recolhem seu
perfume com a luz do dia. Na sombra, sozinhas, envenenam a si próprias
com loucas fantasias. Quando chega essa hora da noite eu me desencanto.
Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu
quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada.

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