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Câmera Clara, um diálogo com Barthes 3
Esse detalhe está na imagem e pode vir a ser que definem, em todos os níveis,
uma gola, um colar, uma pedra onde a sua a relação desta com sua situa-
condição dentro do quadro remeta a um ex- ção referencial, tanto no momento
tra campo, um campo cego.1 da produção (relação com o refe-
rente e com o sujeito-operador: o
“ O punctum é, portanto, gesto do olhar sobre o objeto: mo-
um extracampo sutil, como se a mento da “tomada”) quanto no da
imagem lançasse o desejo para recepção ( relação com o sujeito-
além daquilo que ela dá a ver.” espectador: o gesto do olhar so-
(BARTHES, 1984, p. 89) bre o signo: momento da retomada
– da surpresa ou do equívoco)”.
No que concerne a intensidade o punctum (DUBOIS, 1994, p. 66)
que, não é o detalhe, mas sim o tempo e sua
ênfase dilaceradora do noema (“isso-foi”)2 , O operator, ao fotografar, corta o fluxo na-
sua representação pura. Nem todas as ima- tural da vida transformando a forma do que
gens nos oferecem um punctum. Algumas era íntegro em parcial e o tempo que era con-
permanecem inertes ao olhar provocando- tínuo em fragmento. Seu espaço topológico
nos apenas um interesse geral, um studium. determina sua mirada sendo ele o tanto de
Porém, no avesso do processo, encontra- real – enquanto corpo – que define parte do
mos a figura do operator e a necessidade de golpe que está pronto a desferir. Seu corpo
relativizar o conceito de punctum. Parece- apóia o aparelho que o permite se lançar ao
me obrigatório fazê-lo neste momento atra- imaginário. A lâmina do obturador e o es-
vés da análise do processo fotográfico. trangulamento do diafragma cortam a reali-
dade em pequenas fatias.
“Se quisermos compreender o
que constitui a originalidade da “A foto aparece desta maneira,
imagem fotográfica, devemos obri- no sentido forte, como uma fatia,
gatoriamente ver o processo bem única e singular de espaço-tempo,
mais do que o produto e isso literalmente cortada ao vivo” (DU-
num sentido extensivo: devemos BOIS, 1994, p. 161)
encarregar-nos não apenas, no ní-
vel mais elementar, das modali- O ato fotográfico, no exato instante da to-
dades técnicas de constituição da mada, aprisiona, dentro do mecanismo da câ-
imagem (a impressão luminosa), mera obscura, um tempo inatual. O aparelho
mas igualmente, por uma extensão coleciona pequenas lâminas de passado, sub-
progressiva, do conjunto dos dados traídas de um espaço pleno. Óbvia violência
1
constitui a tomada.
Este efeito se dá ao nível do discurso e pode ser
caracterizado pelos estudos de Hjelmslev
2
O “isso-foi” é a representação de um tempo vi- “Cada objetivo, cada tomada
vido (do sentido) e não de um tempo cronológico, li- é inelutavelmente uma machadada
near, físico e empírico. (golpe de machado) que retém um
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plano do real e exclui, rejeita, re- outro e acionar sua guilhotina, aprisionando
nega a ambiência. Sem sombra de na latência da câmera obscura, mais uma fa-
dúvida, toda a violência (e a preda- tia de tempo-espaço? A fotografia é, para o
ção) do ato fotográfico procede es- operator, o desejo de aprisionar a ferida e de
sencialmente desse gesto do cut.” reter na prata ou na eletrônica do pixel, o de-
(DUBOIS, 1994, p. 178) talhe que lhe pungiu quando na visualização
da cena através de seu visor – pequeno simu-
Porém, a enunciação fotográfica é fruto de lacro da imagem. Não haveria, dessa forma,
uma decisão do operator. Seu dedo deter- imagem criada pelo ato fotográfico sem a
mina o momento exato da machadada e, por- manifestação de um punctum operator.4 A
tanto, do crime que terá como prova irrefutá- condição para a existência da imagem é a fe-
vel a imagem revelada. rida que, no momento da tomada, o operator
cauteriza na prata.
“SIRS, I have received Act II,
Scene II of “L’Acte Photographi- “Com o punctum, não é mais
que,” wich you were kind enough o intelecto que fala, é o corpo
to send me. I am deeply moved, que age e que reage.” (SAMAIN,
and feel I must tell you how sensi- 1998, p. 130)
tive I am to your devotion to the ac-
tion of our great masturbatory fin- Para o operator, o punctum é a essência
ger on the shutter connected to the do ato, o detalhe que lhe confere verdadeira
subversive agent that is our visual paternidade.
organ ( see the dioptric of Des- O punctum operator é a inscrição sobre a
cartes’s “Discourse on Method”). superfície do material, tão bem denominado
(BRESSON, 1999, p. 105) de sensível, de um inconsciente manifesto.
Ao fotografar o fotógrafo age como uma
Ao fugir da latência, pela aceleração quí- retro-câmera. Há uma referencialidade ex-
mica ou pela emanação luminosa do pixel, terna, uma imagem que irá aderir ao seu sen-
o corpo bidimensional da fotografia vem à sível quando, este positivo (referencial) en-
tona expondo o operator e seu crime pas- contrar, através da ótica-química, seu equi-
sional. Impossível não relacionar este ins- valente negativo.5
tante ao “momento decisivo”3 Bressoniano e
a força do punctum. Supõe Barthes, ao rela- “E isso ainda mais porque tudo
tivizar sua posição de spectator, ser a emoção ocorre de fato na interioridade do
do operator o poder de supreender, através pensamento do sujeito. Afinal, se
do estênopo, sua presa. Esta suposta emoção 4
Relativização conceitual que visa dar conta da
não seria a equivalente ao punctum specta- emoção e de sua significação, para o operator, quando
tor? Não seria ela a “ferida” que leva o ope- do ato de tomada da fotografia.
5
rator a eleger um instante em detrimento de Esta dupla face negativo-positivo (interioridade-
exterioridade)trabalha aqui no sentido de oposição e
3
E a seu dedo masturbatório, verdadeiro órgão do de contigüidade física.
fotógrafo, e revelador do prazer solitário do fotógrafo.
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a memória é uma atividade psí- do operator está ligado a outro pequeno ori-
quica que encontra na fotografia fício, desta vez real, o visor e sua capacidade
seu equivalente tecnológico mo- construtora da imagem.
derno, é evidentemente, no outro Parece também existir uma analogia, na
sentido, que a metáfora nos in- ordem do operator, para a subdivisão do
teressa, como uma inversão posi- punctum spectator em forma6 e intensidade.
tivo/negativo: a fotografia é tanto O visor limita, enquadra e ao fazê-lo se torna
um fenômeno psíquico quanto uma pequeno simulacro da imagem por onde o fo-
atividade ótica-química.” (DU- tógrafo também recorta e isola o elemento
BOIS, 1994, p. 316) punctual que o fere. Este detalhe remete
o fotógrafo para um campo cego (inconsci-
O fotógrafo expõe, através da fotografia ente) que se manifesta pelo ato da tomada.
como aparelho psíquico, sua imagem invisí- O segundo punctum, ligado ao noema “isso-
vel, o que lhe foi inscrito na memória psí- foi”, atua para o operator através de sua ima-
quica e que agora explode pelo confronto gem mental, de sua memória psíquica. Pois
com a cena. se é verdade que tudo se inscreve na me-
mória psíquica, o que volta do passado7 é,
“Sempre haverá uma espécie em parte, o que compõe a tomada da foto, o
de latência no positivo mais afir- “isso-foi” para o operator.
mado, a virtualidade de algo que
foi perdido (ou transformado) no
percurso. Nesse sentido, a foto 3 Pequenas considerações sobre
sempre será assombrada. Sempre o corte fotográfico
será, em (boa) parte, uma imagem
A engenharia de algumas câmeras proporci-
mental.” (DUBOIS, 1994, p. 326)
onam ao fotógrafo uma visão além do corte
cego de uma mono-reflex. São câmeras
2 Ainda sobre o punctum dessa natureza as famosas Leicas da série M
que Bresson8 usou durante toda a sua car-
“ A esse segundo elemento que
reira. Nesses aparelhos, ao se olhar pelo vi-
vem contrariar o studium chama-
sor, se vê mais do que apenas o quadro que
rei então punctum; pois punctum
irá constituir a imagem. Vê-se também o
é também picada, pequeno bu-
extra-quadro, ou seja, as adjacências da cena,
raco, pequena mancha, pequeno
apenas separada por pequenas guias que ser-
corte – e também lance de dados.”
vem ao operator como fronteira entre o regis-
(BARTHES, 1984 p. 46)
tro e o não-registro. Sendo assim, até o der-
Interessante observar esta primeira apari- 6
Forma no sentido de seleção e combinação, por
ção do termo punctum no “A Câmera Clara”. meio de unidades figurativas.
7
Ao determinar que o punctum é um pequeno No sentido de tempo vivido (memorial) e não de
passado cronológico.
buraco é irresistível lembrar que a emoção 8
Henri Cartier-Bresson somente fotografava com
Leicas municiadas com objetiva normal (50 mm).
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radeiro instante da tomada, a imagem pode grandes ensaios. A dimensão temporal ín-
ser alterada levando-se em consideração o fima de cada exposição é capaz de revelar
que se apresentava para além da cercadura do toda uma narrativa sobre temáticas indubita-
registro. Este tipo de aparelho trabalha com velmente complexas. O “instante decisivo”
um interessante conceito: um extra-quadro Bressoniano parece agir aqui em consonân-
de registro que é, ao mesmo tempo, parte do cia ao que até agora denominamos punctum
visível. Poderiamos supor que, em muitas operator, se é que as desemelhanças entre um
fotografias do mestre Henri Cartier-Bresson, e outro permitem classificá-los como dife-
exista um “momento decisivo” alheio ao re- rentes.
gistro mas pertencente ao “tempo”9 deflagra-
dor do disparo. Um punctum operator que
4 Tangência punctual
determinasse o exato instante do disparo mas
não fosse petrificado por ele. O punctum é, ao meu ver, um forte elo entre
operator e spectator. Sua manifestação du-
“For me the camera is a sketch pla e relativizada aproxima importantes par-
book, an instrument of intuition tes do fazer fotográfico. O spectator ao ob-
and spontaneity, the master of the servar uma foto, onde testemunhe um punc-
instant which, in visual terms, tum, determina, de certa maneira, um novo
questions and decides simultane- quadro a fim de isolar o que lhe punge. Ao
ously. In order to “give a meaning” cercar o que lhe fere ele subverte o enquadra-
to the world, one has to feel oneself mento original e, dessa maneira, o spectator
involved in what one frames th- se lança à aventura do operador.
rough the viewfinder”(BRESSON, O punctum spectator é um eco do instante
1999, p.15) indicial, puro e decisivo que caracteriza o
punctum operator. Entretanto, em cada to-
Em um encontro de fotógrafos, na Bienal mada existe, para o fotógrafo, uma cicatriz
Internacional de Fotografia Cidade de Curi- obrigatória e necessária; e para o spectator,
tiba, recordo-me de Sebastião Salgado afir- em cada fotografia, uma facultativa e latente
mar que, em seus famosos ensaios docu- ferida. De qualquer modo, parecem compar-
mentais10 , expõe apenas um segundo sobre o tilhar a mesma dor.
tema retratado. Reside nesta afirmação uma
verdade matemática que sempre me incomo-
dou. Um livro desse autor tem centenas de 5 Referências Bibliográficas
imagens. Suas exposições são gigantescas. BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a
Porém, se calcularmos que em média cada fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fron-
tomada seja da ordem de 1/250 de exposição, teira, 1984.
estaríamos então, de fato, restritos a obser-
var apenas um segundo de cada um de seus BRESSON, H. C. The mind’s eye: writings
9
on photography and photographers.
Intensidade emocional, pontual do disparo.
10 New York, 1999.
Trabalhadores e Êxodos para citar apenas dois.
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