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ISSN 1980-3540

Volume 11 • No 2 • Sup. • 2016

• Conceitos em Genética
• Genética e Sociedade
• Na Sala de Aula
• Materiais Didáticos
• Resenha
• Um Gene
Índice
Conceitos em Genética
Mendel e seus abismos.................................................................................................................................................. 234
Mendel e depois de Mendel.......................................................................................................................................... 244

Genética e Sociedade
O Mendel que não era mendelista............................................................................................................................... 250
Experimentos com híbridos de outras espécies de plantas.............................................................................. 256
Antes de Mendel: Joseph Koelreuter e as pesquisas de hibridização de plantas.................................................... 266
O Mendel mítico sob um olhar crítico: o papel de Mendel na história da Genética.............................................. 272

Na Sala de Aula
Para ensinar genética mendeliana: ervilhas ou lóbulos de orelha?............................................................................ 286
Registros escritos do conhecimento mútuo entre Gregor Mendel e Charles Darwin:
uma proposta para trabalho em sala de aula com história contrafactual da ciência e didática invisível.......... 294

Materiais Didáticos
Que ervilha sou eu?....................................................................................................................................................... 310
Embaralhando Mendel e suas leis................................................................................................................................ 344
O Jardim de Mendel – material didático para uso de videntes e não-videntes
no processo ensino-aprendizagem da 1a Lei de Mendel...................................................................................... 366
Carteando com Mendel................................................................................................................................................. 372

Resenha
Programa de Áudio Mendel: O pai da genética, da Série Biografias: o passado explica o presente..................... 380
O Monge no Jardim, o gênio esquecido e redescoberto de Gregor Mendel, pai da Genética............................... 382
Quem foi que disse: sobre Mendel e a produção do conhecimento......................................................................... 384

Um Gene
O gene Stay-Green e a cor das sementes de Mendel................................................................................................... 386
O gene SBEI e a rugosidade das ervilhas de Mendel................................................................................................. 392
Mais sobre a natureza molecular dos fatores mendelianos....................................................................................... 398

Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Carta ao Leitor
O suplemento especial da Genética na Escola é um mergulho na História da Ciência e da Genéti-
ca em particular. Construído em homenagem aos 150 anos de publicação do artigo Versuche über
Planzen-hybriden (Experimentos com plantas híbridas), de Gregor Johann Mendel, traz perspec-
tivas variadas sobre o papel do famoso monge como fundador da Genética, compila dados obtidos
sobre as célebres ervilhas por outros pesquisadores e traz propostas de materiais didáticos sobre
esses experimentos seminais.
Ao receber os trabalhos que comporiam este suplemento, nós, editores, nos surpreendemos com
a vitalidade com que os trabalhos de Mendel são discutidos ainda hoje. O monge é amplamente
reconhecido por seu planejamento experimental primoroso, a inédita análise matemática dos re-
sultados e as relações que estabeleceu com os estudos de divisão celular. Contudo, historiadores
e geneticistas debatem ativamente se o pai da Genética propôs, de fato, um modelo de herança.
Divergem quanto ao real significado que atribuía a termos como “fatores”, “elementos celulares” ou
“caracteres”. Essa discussão, ausente dos livros escolares, é relevante para se compreender como se
construiu a Genética. Neste suplemento, o leitor tem à sua disposição o artigo original de Men-
del traduzido para o português (em parte já publicado no vol. 8, n. 1, em 2013) e trabalhos que
expõem esse debate, principalmente nas seções Conceitos e Genética e Sociedade. Convidamos
todos a conhecer esses pontos de vista e tirar suas próprias conclusões.
Além disso, os três artigos da seção Um Gene esclarecem aspectos moleculares dos genes que
Mendel sondou observando o fenótipo das ervilhas – uma ponte entre o passado e o presente.
Para completar, quatro propostas de materiais didáticos – uma delas destinada a deficientes visu-
ais – pretendem apresentar a alunos da escola básica os experimentos que inauguraram o conhe-
cimento moderno sobre herança biológica.
Boa leitura!

Sociedade Brasileira de Genética


CONCEITOS EM GENÉTICA

Mendel
e seus
abismos

Luiz Antonio Botelho Andrade1, Edson Pereira da Silva2


1
Departamento de Imunobiologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ.
2
Laboratório de Genética Marinha e Evolução, Departamento de Biologia Marinha,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ.

Autor para correspondência: labauff@yahoo.com.br

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N este artigo, os autores contextualizam, científica


e epistemologicamente, a obra clássica de Gregor
Mendel. Do ponto de vista científico, ressalta-se o
delineamento experimental, a produção de conceitos e
a proposição de um modelo explicativo completamente
novo para se compreender o fenômeno da herança
biológica. Do ponto de vista epistemológico, mostra-se
o hiato intransponível entre o fenômeno observado e a
explicação do mesmo, na construção do conhecimento
científico.

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CONCEITOS EM GENÉTICA

C omo a teoria celular estabeleceu a uni-


dade (estrutural e funcional) e, a Teoria
Evolutiva darwiniana, a história (ancestrali-
Brunn, quando da chegada de Mendel, deve
ter influenciado positivamente, seja pelo in-
vestimento na formação intelectual do no-
dade comum) dos seres vivos, foi o modelo viço, seja na formulação mesmo de sua per-
mendeliano de herança que estabeleceu sua gunta científica, haja vista que:
continuidade na reprodução (os mecanis-
1) Napp foi membro, consultor e presidente
mos da hereditariedade). Contudo, a palavra
das principais sociedades agropecuárias
“herança” sempre trouxe consigo uma fami-
da Moravia e como tal tinha de lidar com
liaridade que, muitas vezes, dificultou o seu
as perguntas de seus sócios que queriam
entendimento em biologia. Isto porque “he-
saber como criar e manter grandes esto-
rança” define, na maioria das línguas, tanto
ques de carneiros (sem perder a qualidade
a herança legal e cultural quanto a biológica.
da lã) ou como realizar a fertilização arti-
Tal fato marcou, durante muito tempo, as
ficial para criar e selecionar novas varieda-
ideias por trás de muitas pesquisas envolven-
des de plantas.
do a hereditariedade. Foi o trabalho meticu-
loso de Gregor Johann Mendel (1922-1884), 2) Poucas pessoas possuíam o conhecimen-
um monge desconhecido da comunidade to e a autoridade de Napp em matéria de
científica de sua época, que trouxe, ainda na agricultura, horticultura e criação de car-
década de 1860, a ruptura definitiva entre os neiros. Nesse contexto, ele se perguntava
dois sentidos da palavra herança. sobre o significado da herança de certos
caracteres em muitas variedades e raças
O modelo mendeliano de herança é, até os
economicamente importantes para a re-
nossos dias, a base de toda ciência da Gené-
gião da Moravia, mesmo antes de Mendel
tica (MENDEL, 1865, 1869) e, além disso,
ingressar no Mosteiro.
trouxe consigo rupturas irreconciliáveis, à
luz da história da ciência, com o que se pen-
sava sobre o fenômeno da herança biológica
até aquele momento. Mais ainda, o trabalho
de Mendel explicitou, de um ponto de vista
epistemológico, hiatos intransponíveis entre
o conhecimento científico e os fenômenos
que se dedicou a estudar. Neste sentido,
Mendel estabeleceu abismos, os quais serão
apresentados e discutidos a seguir, mas não
sem terminar com uma ponte, em dupla hé-
lice.

CAVANDO O FOSSO
Entre a chegada de Gregor Johann Mendel,
filho de humildes camponeses, ao Mosteiro
de Brünn (Brno), da Ordem de Santo Agos-
tinho, em 1883, quando ele completara 21
anos, e o início de seu trabalho com as fa-
mosas ervilhas-de-cheiro da espécie Pisum
sativum (SALAMANCA, 2000), duas per-
guntas instigam pesquisadores e historia-
dores da ciência, quais sejam: (a) Como ele
formulou a pergunta e (b) como ele delineou
o seu experimento (HARTL; OREL, 1992;
WEISS, 2002; DEGUSTA, 2003.
Tudo indica que o abade Cyrill Napp (1792-
1867), chefe hierárquico do Mosteiro de

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3) Napp promovia vários encontros cien- investigação científica, pois é através dele
tíficos e alguns cursos de formação. Em que se manifesta a criatividade do cientis-
um deles, ministrado por Franz Diebl ta ao conceber a estratégia metodológica
(1770–1859) e frequentado por Men- para responder a pergunta. Qual foi, então,
del, o renomado cientista ressaltou, o delineamento experimental de Mendel?
dentre outras coisas, a importância do É importante ressaltar um aspecto muito
pareamento de plantas com diferentes importante deste delineamento, qual seja:
caracteres para criar variedades produti- a concepção de que algumas leis do mun-
vas; que a ervilha e o feijão eram espécies do natural, incluído os sistemas biológicos,
propícias para investigação sobre heran- podiam ser expressas por relações mate-
ça; e que a contribuição de disciplinas máticas e que os números presentes nestas
irmãs poderia ajudar na resolução do relações, representando unidades discretas,
grande mistério que era a herança. não se misturam como os fluidos. Assim, a
escolha da ervilha de cheiro Pisum sativum
É importante que se diga, ainda, que Napp
adveio dos ensinamentos de Diebl, dos seus
custeou os estudos de Mendel na Univer-
estudos na Universidade de Viena e da ex-
sidade de Viena, incentivou também que
periência prévia de vários agricultores no
participasse das sociedades científicas e de
trato com as ervilheiras.
cursos de formação e, além disso, financiou
a construção de uma estufa para proteger as A ervilha cresce rápido, possui flores com-
ervilhas de insetos polinizadores que pu- pletas (com os dois sexos) e já estavam
dessem interferir no trabalho experimental disponíveis nas mãos dos agricultores, na
de Mendel (KLEIN; KLEIN, 2013). forma de variedades, com traços transmis-
síveis e facilmente discerníveis aos olhos
Por sua parte, Mendel transitava entre os
do observador. Com isso em mente, Men-
agricultores da região e conhecia bem os
del focou o seu trabalho em sete caracte-
estudos que tentavam desvendar os segre-
res transmissíveis dos quais ele estudou
dos que envolviam a herança de certos ca-
dois a dois, de cada vez, com muito rigor
racteres expressos por diferentes espécies
e atenção, registrando e quantificando to-
de plantas, incluindo as ervilhas. Através da
das as suas observações. Outro diferencial
literatura especializada e dos cursos de for-
do delineamento experimental de Mendel
mação, incluindo sua passagem pela Uni-
foi a sistemática investigativa, analisando
versidade de Viena (1851-1852), onde ele
os caracteres estudados por mais de uma
participou de cursos de física experimental,
geração (F1, F2, F3). A maioria dos inves-
com Christian Doppler (1803-1853); ana-
tigadores, que o precedera interrompia o
tomia e fisiologia vegetal, com Franz Unger
experimento na primeira geração (F1) ou
(1800-1870); morfologia e sistemática de
continuava por mais de uma geração, mas
plantas, com Eduard Fenzl (1808-1879);
não quantificava os resultados, pois não via
cálculo, análise combinatória e uso das tá-
razão para se usar números em questões de
buas de logaritmo e trigonometria, com
biologia. Além deste diferencial, Mendel foi
Franz Moth (1802-1879) e Andreas von
cuidadoso no controle de algumas variáveis
Ettingshausen (1796-1878), entre outros,
como o clima e a presença de insetos poli-
ele aprendeu que a herança manifestada nas
nizadores que pudessem colocar em dúvida
plantas e nos animais dependia de uma lei
os seus experimentos, razão pela qual ele
fisiológica e, como uma necessidade meto-
solicitou a construção de uma estufa no jar-
dológica de seu trabalho, planejou cuidado-
dim do Mosteiro.
samente todos os experimentos, incluindo a
fertilização artificial cruzada para a produ- Nesta perspectiva, Mendel formulou uma
ção de híbridos entre diferentes variedades hipótese, planejou os experimentos, quan-
de ervilhas (MONAGHAN; CORCOS, tificou e interpretou os resultados e chegou
1983; KLEIN; KLEIN, 2013). a uma conclusão geral, utilizando relações
matemáticas que, mais tarde, os autores de-
Além da pergunta, o delineamento experi-
nominariam de “Leis de Mendel”.
mental é, também, importante em qualquer

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CONCEITOS EM GENÉTICA

OS ABISMOS não só morfologicamente, mas apresenta-


vam, também, diferentes funções hereditá-
1. Em relação ao passado
rias. Suas conclusões advinham do fato de
Antes de Mendel iniciar seus trabalhos, fo- que cruzamentos recíprocos entre híbridos
ram muitas as explicações para o fenômeno (machos híbridos com fêmeas não hibridas
da hereditariedade, ou seja, eram tentativas X machos não híbridos com fêmeas híbri-
de compreender por que existem mais se- das) geravam prole com variação diferente.
melhanças entre pais e filhos do que entre Em sua teoria, os espermatozóides seriam
tios e sobrinhos, avós e netos ou entre vizi- os repositórios das gêmulas. Os óvulos, por
nhos numa mesma rua ou comunidade. sua vez, guardariam as características gerais
Entre os filósofos gregos que pensaram a da espécie, o que explicaria as diferenças
questão da herança biológica, Aristóteles entre as proles dos diferentes cruzamentos
(384-322 a.C.), por exemplo, argumentava recíprocos (SILVA; ANDRADE, 2012).
que as contribuições sexuais para a geração 2. Em relação à realidade
de novos seres eram diferentes. Segundo dos fenômenos
ele, o sêmen do macho seria responsável
pelo fornecimento do princípio gerador da Outro dado interessante a respeito do mo-
forma, o eidos, enquanto o sangue mens- delo mendeliano de herança é que ele, para
trual seria uma substância informe a ser funcionar como uma explicação, precisava
moldada pelo eidos do sêmen, na geração do assumir a existência de entidades desco-
novo ser (SOLHA; SILVA, 2004). nhecidas, os chamados “fatores” (ou “ele-
mentos celulares” ou “caracteres”). Mendel
Mais de dois mil anos depois, Darwin teve a coragem de imaginar, na razão, a
(1809-1882), em seu livro A Variação de existência destes objetos inexistentes na
Animais e Plantas sob Domesticação, propôs realidade, que eram construções racionais
para o problema da herança a sua “hipótese e, portanto, impossíveis para ele mostrar
provisória da pangênese”. Segundo tal hi- a existência concreta naquele momento da
pótese, todas as partes do corpo expeliriam história (SOLHA; SILVA, 2004).
gêmulas que viajariam nos fluídos do orga-
nismo e por ocasião da reprodução iriam Os “fatores”, mais tarde denominados ge-
até as células germinativas. Dessa forma, as nes, inauguravam, assim, uma ciência nova,
mudanças ocorridas no corpo do indivíduo de um objeto novo: a Genética (PROVI-
durante a vida seriam transmitidas às pró- NE, 1991ba 1991b). Dessa forma, uma das
ximas gerações porque afetariam as gêmu- grandes novidades dos trabalhos de Men-
las produzidas nas partes modificadas. Se del foi a aventura de construir tais objetos
houvesse mutilação, aquela parte do corpo racionais para explicar as suas observações
deixaria de produzir as gêmulas correspon- de como as características discretas das
dentes (ARCANJO; SILVA, 2015). ervilhas-de-cheiro eram herdadas ao longo
das gerações. Os “fatores” mendelianos sus-
Além da “hipótese provisória da pangênese” tentavam sua realidade apenas no interior
de Darwin, surgiram várias outras hipóte- do modelo mendeliano de herança que,
ses explicativas para o fenômeno da here- para funcionar como explicação, dependia
ditariedade no século XIX, dentre as quais de assumir a sua existência.
a “Teoria das Estirpes” de Galton (1822-
1911). Segundo esta teoria, os tecidos e as A Genética estava começando ali, na pró-
características dos descendentes se asseme- pria construção teórica dos “fatores” here-
lhavam aos dos pais não porque gêmulas ti- ditários que tinham a interessante carac-
vessem sido herdadas dos pais pelos filhos, terística de estarem aos pares (mesmo sem
como defendia Darwin, mas porque ambos, se conhecer, na época, o que significava ser
pais e filhos, tinham se originado a partir do haploide ou diploide) e o intrigante com-
que ele chamou de uma linhagem germinal. portamento de se segregarem de forma in-
William Keith Brooks (1848-1908), nos dependente na formação das células repro-
Estados Unidos, defendia a hipótese de que dutivas (mesmo sem serem conhecidos, na
óvulos e espermatozóides eram diferentes época, os mecanismos de mitose e meiose).

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À luz da história, uma audácia a mais de característica, por exemplo, ervilheiras que
Mendel: postular a hipótese de que aqui- davam sementes lisas e ervilheiras que da-
lo que não era possível mostrar concreta- vam sementes rugosas, era toda ela compos-
mente, estava em dose dupla, segregava na ta de ervilheiras de sementes lisas (100%
formação dos gametas, e voltava a se juntar, da prole). Contudo, no cruzamento desta
após a fecundação, como unidades discre- prole, a característica sementes rugosas re-
tas que não se misturavam como os fluidos aparecia na proporção de apenas um quarto
(CANGUILHEM, 1977; SOLHA; SIL- das plantas da prole (25%). A explicação de
VA, 2004). Mendel para o fenômeno contava com o au-
xilio dos seus “fatores”, como é bem conheci-
Mais que isso, as observações de Mendel
do pela representação realizada no esquema
mostravam que a primeira geração do cru-
apresentado na Figura 1.
zamento entre linhagens puras para uma

Figura 1.
Representação gráfica
dos fenótipos obtidos nos
experimentos de Mendel e seus
respectivos genótipos como
Na observação do esquema da Figura 1 fica divíduos nas proporções 2Aa, 1AA e 1aa,
interpretado pelo seu modelo
de herança. evidente uma incoerência entre as propor- ou seja, três classes. Contudo, observamos
ções dos tipos observadas (ervilheira que apenas dois tipos, “semente lisa” (AA + Aa)
dão sementes lisas e ervilheiras que dão e “semente rugosa” (AA). Como é possível
sementes rugosas) e aquelas dadas pelos explicar isto?
“fatores” supostos pelo modelo mendeliano
Dois conceitos novos são necessários para
de herança. Primeiro, o tipo “semente ru-
adequar a expectativa teórica (aquela dos
gosa” desaparece na F1 (primeira geração).
“fatores” do modelo) com a observação con-
Em segundo lugar, quando do cruzamento
creta (aquela dos tipos de ervilheiras obser-
dos indivíduos com os “fatores” Aa da pri-
vadas). Primeiro, é necessário assumir que
meira geração e que se apresentam como
existem “fatores” dominantes e “fatores” re-
sendo do tipo “semente lisa”, esperamos in-

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CONCEITOS EM GENÉTICA

cessivos e, segundo, é preciso se conformar


com o fato de que modelos explicam fenô-
menos, mas não são os fenômenos. Ou seja,
é preciso saber que existe uma diferença en-
tre aquilo que é, neste caso em específico, os
tipos de ervilheira, de agora em diante cha-
mados de fenótipos; e as nossas explicações
sobre aquilo que é, neste caso específico, as
suas representações teóricas no modelo,
de agora em diante chamados genótipos.
Fenótipos são coisas que se observam con-
cretamente no mundo, enquanto genótipos
são inferências teóricas, explicações que são
dadas para aquilo que é visto (SILVA; AN-
DRADE, 2012).
Embora nem Mendel, nem seus seguidores
do início do século XX fizessem a distinção
entre genótipo e fenótipo, que foi proposta
apenas no fim dos anos 1900 por Wilhelm
Johannsen, a intenção aqui é apontar para
o fato de que o modelo mendeliano de he-
rança já trazia embutida a necessidade de se
explicar conceitualmente o contraste entre
esperado teórico e observado experimental.
Desta forma, embora não percebido ime-
diatamente, é o modelo mendeliano de he-
rança que explicita o abismo que existe en-
tre aquilo que é (o ontológico) e aquilo que
podemos falar daquilo que é (epistemológi-
co). Existe um abismo intransponível entre
a realidade dos fatos e as nossas explicações.
A interpretação atualizada do trabalho de
Mendel deixa claro, para qualquer empi-
rista primário, este abismo intransponível
entre o ontológico e o epistemológico na
atividade científica. O modelo mendeliano
de herança foi e é, ainda além de revolucio-
nário, perturbador.
3. De esquecimento
Uma questão instigante na história da ci-
ência é o fato do trabalho de Mendel ter
permanecido ignorado pela comunidade
científica por quase quatro décadas (MO-
NAGHAN; CORCOS, 1987; KESSEL,
2002; KEYNES, 2002). Algumas hipóte-
ses têm sido propostas na literatura para
explicar o porquê deste longo intervalo de
tempo entre a publicação do principal ar-
tigo de Mendel, intitulado Experimentos na
hibridização de plantas, em 1865, e a “redes-
coberta” de seus resultados pelos botânicos

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K. Correns (1864-1933; Alemanha), E. Certamente, um modelo como o proposto


Tschermak (1871-1962; Áustria) e H. de não agradava o pensamento evolucionista
Vries (1848-1935; Holanda), na virada do do seu tempo (BISHOP, 1996; SILVA,
século XIX para o XX. 2001). Nem Lamarck (1744-1829), nem
Darwin, mas a estabilidade (SILVA, 2001;
Uma hipótese muito aventada é a de que
RODRIGUES; SILVA, 2011) e, portanto,
o esquecimento deve-se ao fato de Mendel
a displicência.
ter publicado seu trabalho em uma revista
científica periférica, desconhecida da co- Por outro lado, para um fixista, a ideia de
munidade científica da época. Contudo, que as proporções mendelianas eram obti-
naquela época, não havia um número ex- das por cruzamentos e arranjos, ao acaso,
pressivo de revistas científicas, portanto, era inconcebível. Deus é uma força determi-
um pesquisador da área, certamente, teria nista (onipotente, onipresente, onisciente;
acesso à revista da Sociedade de História Deuteronômio 6:4; Mateus 28:19; 2 Co-
Natural de Brünn. Mais do que isso, o in- ríntios 13:14; Efésios 4:4-6; 1 Pedro 1:2;
tercâmbio entre os cientistas, através de car- 1 Timóteo 1:17; Apocalipse 14:7) e o jogo
tas, era comum, e Mendel aderiu e utilizou (o acaso, a probabilidade) é a própria nega-
este expediente, visto sua correspondência ção da onisciência divina (“A sorte se lança
com Nagelli (1817-1891), um dos mais fa- no regaço, mas do Senhor procede toda a
mosos botânicos da época. O trabalho de determinação”. Provérbios 16:33). Desse
Mendel foi publicado, ainda, em 1866, em modo, não é por acaso que o jogo sempre
uma revista de maior circulação, intitulada esteve associado ao Diabo. Se não houve in-
Proceedings of the Natural History Society. surgência entre seus pares religiosos deveu-
Diz-se, também, que o caráter matemático -se, provavelmente, ao fato de que não era
do trabalho de Mendel inibiu a sua recep- disso que se tratava. Ou seja, não era um
ção por uma audiência de naturalistas. No modelo e não tratava de herança, mas de hi-
entanto, o período em que Mendel exerceu bridização de plantas.
suas atividades é o mesmo de Francis Gal-
As citações que o trabalho de Mendel re-
ton (1822-1911), primo de Darwin, que
cebeu desde a sua publicação foram restri-
tinha vasta produção ligada diretamente à
tas a estudos sobre a produção de híbridos.
Matemática e à Biologia.
Foi necessário esperar até 1900 para que
Como já foi dito antes, o modelo mende- seu trabalho fosse interpretado sob a pers-
liano de herança rompeu com toda a tradi- pectiva de um modelo de herança. O es-
ção dos estudos sobre hereditariedade até quecimento (a ignorância) da natureza do
aquele momento. Além disso, era fundado modelo mendeliano de herança, pode ser
em um objeto novo e puramente racio- relacionado com a interpretação de que ele
nal (os “fatores”). Ou seja, era um modelo era revolucionário, perturbador e, também,
abstrato, no qual todas as suas explicações subversivo. Quarenta anos de esquecimen-
tinham como base objetos que eram cons- to, portanto, não foi um tributo tão gran-
truções hipotéticas. Mais que isso, desmas- de assim para um modelo ser, pelo bem de
carava o abismo intransponível entre aquilo todos, encoberto pelo véu do menosprezo e
que é (o ontológico) e aquilo que podemos da incompreensão.
falar do que é (o epistemológico). Se não
4. De dúvida
bastasse tudo isso, o modelo mendeliano de
herança não agradava nem a gregos, nem a Os experimentos de Mendel são tidos
troianos. Por um lado, era um modelo da como um exemplo de rigor científico de-
permanência e da invariância, pois explica- vido ao seu planejamento meticuloso, os
va que a herança era um fenômeno no qual cuidados na obtenção de linhagens puras,
os “fatores” não sofrem mistura ou qualquer descrição dos procedimentos e listagem dos
tipo de mudança ao longo das gerações, resultados, além das suas análises matemá-
repetindo-se eles mesmos sempre em pro- ticas (MONAGHAN; CORCOS, 1985;
porções fixas “para todo sempre, amém”. OREL; WOOD, 2000; SANDLER,

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CONCEITOS EM GENÉTICA

2000; CHARLESWORTH, 2001). Seus ção deliberada dos seus dados para adequá-
resultados, no entanto, não puderam ser re- -los a sua expectativa teórica, isso só poderia
produzidos com o mesmo sucesso em rela- ser feito na precedência de uma teoria ou
ção a outras plantas, o que levou, o próprio seja, o modelo mendeliano de herança já de-
Mendel, a duvidar da generalização de seus veria estar pronto na cabeça do seu propo-
resultados como modelo explicativo para a nente antes mesmo que ele conferisse os re-
herança biológica. sultados. Realmente alguma coisa inaugural
estava florescendo naquele jardim. Portanto,
Os resultados dos experimentos de Mendel
entende-se o porquê de Mendel ser reconhe-
trouxeram dúvidas, também, para alguns
cido como pai-fundador da Genética.
autores, embora por outros motivos, pois
desviam muito pouco em relação ao espe-
rado, do ponto de vista da análise estatís- UMA PONTE
tica (MONAGHAN; CORCOS, 1985; A despeito de todos os abismos, passados e
EDWARDS, 1986; PIEGORSCH, 1990; presentes, sob responsabilidade de Mendel,
NOVITSKI, 1995, 2004a, 2004b). Diante seus experimentos, e especialmente seu mo-
deste fato, alguns autores especularam que delo de herança, o grande legado desta histó-
resultados “tão bons” só poderiam ter origem ria são as pontes lançadas, desde o passado,
com a manipulação dos dados. Ronald Fisher atravessando o presente, em direção ao fu-
(1890-1962), que analisou cuidadosamente turo. Mendel, segundo Canguilhem (1977),
todos os resultados de Mendel, sugeriu, de um filósofo francês da Biologia:
maneira irônica, que Mendel deveria ter tido Não se trata de um precursor. Precursor
um ajudante muito zeloso que poderia ter é, sem dúvida, aquele que corre à frente
modificado os dados, sem autorização, para de todos os seus contemporâneos, mas é,
agradar o mestre (FISHER, 1966). Theodo- também, aquele que para num percurso
sius Dobzhansky (1900-1975), geneticista em que outros, depois dele, correrão até o
ucraniano que fez sua carreira nos Estados final. Ora, Mendel correu toda a corrida.
Unidos, de forma menos severa, concede que
poucos cientistas não cometem enganos ou Basta dizer que a genética moderna foi inau-
acidentes no seu trabalho experimental. As- gurada ali, na construção dos fatores heredi-
sim, segundo ele, Mendel poderia ter descar- tários, o resto é DNA.
tado de seus resultados aqueles cruzamentos
que mostrassem evidências de contaminação. REFERÊNCIAS
Assim, como resultado final, os dados teriam ARCANJO, F. G.; SILVA, E. P. A hipótese da-
ficado muito melhores do que o que seria rwiniana da pangênese. Genética na Escola, v.
esperado do procedimento experimental re- 10, n. 2, p. 102-109, 2015.
alizado (DOBZHANSKY, 1967). Sewall BISHOP, B. E. Mendel’s opposition to Evolution
Wright (1889-1988), outro dos fundado- and to Darwin. Journal of Heredity, v. 87, p.
res da teoria sintética da evolução, afirma, 205-213, 1996.
de maneira semelhante à de Dobzhansky, CANGUILHEM, G. Ideologia e Racionalidade
que se os cruzamentos com resultado ambí- nas Ciências da Vida. São Paulo: Edições 70,
guos ou que dependessem de interpretação 1977.
mais subjetiva tivessem sido eliminados nas
CHARLESWORTH, B. From Monastery to
contagens, o que levaria a uma tendência de the laboratory. Nature, v. 409, p. 981-982,
aproximação dos dados aos resultados teó- 2001.
ricos esperados sem, no entanto, configurar
nenhum tipo de manipulação deliberada DEGUSTA, D. More digging in Mendel’s gar-
den. Evolutionary Anthropology, v. 12, p. 1,
(WRIGHT, 1966).
2003.
A despeito das dúvidas quanto aos resulta- DOBZHANSKY, T. Looking Back at Mendel’s
dos dos experimentos mendelianos, o que Discovery. Science, v. 156, p. 1588-1589,
impressiona é a observação de que, mesmo 1967.
que Mendel tivesse cometido uma manipula-

242 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

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Sociedade Brasileira de Genética 243


CONCEITOS EM GENÉTICA

Mendel
e depois de Mendel

Lilian Al-Chueyr Pereira Martins1, Maria Elice Brzezinski Prestes2


1
Departamento de Biologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.
2
Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, SP.

Autor para correspondência: lacpm@ffclrp.usp.br

244 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

E mbora o nome de Johann Gregor Mendel (1822-1884) seja associado


geralmente à Genética e às “Leis de Mendel”, poucas pessoas tiveram
a oportunidade de conhecer o conteúdo de seu artigo original sobre os
padrões de herança nas ervilhas do gênero Pisum, publicado em 1866. O
objetivo do presente artigo é discutir sobre essa contribuição, seu contexto e
desdobramentos. Esta pesquisa levou à conclusão de que embora a contribuição
de Mendel tenha se destacado pela sua metodologia, que envolvia matemática,
estatística e noções sobre a divisão celular, resultantes de uma formação
diferente da maioria de seus colegas naturalistas, suas investigações inserem-
se numa linha de pesquisa bastante ativa na época. E, além disso, tem-se que,
considerar que o desenvolvimento da Genética durante o século XX, além
de sua contribuição, são produto de um trabalho coletivo de vários cientistas
provenientes de diversos países.

D e um modo geral, quando se menciona


o nome de Johann Gregor Mendel
(1822-1884), ele é imediatamente associado
híbridos permaneciam bastante ativos em
diferentes países da Europa. Na Inglaterra,
Charles Darwin (1809-1882), nas várias
à Genética e às “leis de Mendel”. Na maior edições de sua obra Origem das espécies, in-
parte das vezes, as informações sobre suas cluindo a última (1872), comentou sobre os
contribuições que chegam até nós são as que resultados de experimentos desenvolvidos
constam na parte histórica que aparece em por vários pesquisadores que trabalhavam
alguns livros-texto de Biologia destinados aos dentro dessa perspectiva como, por exem-
diferentes níveis de ensino. Porém, poucas plo, Joseph Gottlieb Kölreuter (1733-1806),
pessoas tiveram a oportunidade de examinar Carl Friedrich von Gärtner (1772-1850),
o artigo original de Mendel (1866) ou tomar Max Ernst Wichura (1817-1866) e Charles
conhecimento do que ocorreu depois. Viktor Naudin (1815-1899). Foi nessa linha
de investigação que se inseriram as contri-
Na segunda metade do século XIX, os es- buições de Mendel.
tudos sobre cruzamentos que produziam

Sociedade Brasileira de Genética 245


CONCEITOS EM GENÉTICA

Os estudos com cruzamentos experimen- rante sua permanência em Viena ele tomou
tais de ervilhas não eram uma novidade conhecimento dos estudos citológicos de-
na época. Outros autores como John Goss senvolvidos na época por intermédio de seu
e Alexander Seton já haviam se dedicado professor de Fisiologia Vegetal Franz Unger
a eles. Porém, tanto a metodologia como (1800-1870). Hunger estava a par do tra-
os resultados obtidos por eles foram dife- balho desenvolvido por Karl Nägeli (1817-
rentes dos de Mendel (ZIRKLE, 1951, p. 1891) e Mathias Schleiden (1804-1881)
50; STUBBE, 1972, p. 109). Apesar disso, sobre as células. Durante esse período,
aparentemente, a comunidade científica não Mendel estudou Matemática e Estatística
percebeu tal importância, embora o artigo com Christian Doppler e Andreas Freiherr
de Mendel (1866) tenha sido citado em von Ettinghausen (1796-1878), disciplinas
diversos livros e artigos sobre hibridação em que teve excelente desempenho. Tam-
no período anterior a 1900 (SANDLER; bém atuou como demonstrador no Institu-
SANDLER, 1986, p. 755). to de Física em Viena o que o familiarizou
com o enfoque experimental adotado na
Conforme alguns historiadores da ciên-
Física, que não fazia parte da formação da
cia, somente algumas décadas depois da
maioria de seus colegas naturalistas (OLBY,
publicação do artigo de Mendel, no início
1966, p. 113). A tradução do artigo de
do século XX, época em que começou a se
Mendel para a língua inglesa
desenvolver a Genética moderna, seu tra- Em 1856, ele iniciou seus experimentos feita por C. T. Druery foi
balho foi “redescoberto” por Hugo de Vries com ervilhas no monastério de Brno e os publicada inicialmente em
(1848-1933), Carl Eric Correns (1864- concluiu em 1863. Porém, somente dois 1901 no Journal of the Royal
1933) e Erich von Tschermak-Seysenegg anos depois (1865) apresentou seus resul- Horticultural Society. Em 1902,
ela foi reproduzida no livro
(1871-1932). Vários pesquisadores como tados à Sociedade de História Natural de
Mendel’s principles of heredity:
Wilhelm Ludwig Johannsen (1857-1927), Brno, publicando-os em alemão no ano se- a defence, de Bateson, com
Correns, De Vries e William Bateson guinte (1866). algumas modificações. Essa
(1861-1926), procuraram averiguar a vali- última versão, reproduzida na
dade dos princípios de Mendel em outros O ARTIGO SOBRE segunda edição de Mendel’s
principles of heredity de
organismos obtendo resultados próximos PLANTAS HÍBRIDAS Bateson (1913), é a utilizada
aos de Mendel. Foi Bateson quem intro- Ao iniciar seu artigo, Mendel comentou so- neste artigo.
duziu a versão inglesa do artigo de Mendel, bre o resultado das investigações feitas por
originalmente publicado em alemão, para outros hibridistas que também haviam sido
os povos de língua inglesa. mencionados por Darwin, como Kölreuter,
O objetivo deste artigo é colocar em dis- Gärtner e Wichura e da busca até então in-
cussão as contribuições de Mendel presen- frutífera por uma lei que governasse a for-
tes em sua publicação de 1866, em que ele mação de híbridos. Embora soubesse que,
tratou dos padrões que regem a formação para atingir esse objetivo, seria necessário
de híbridos em ervilhas do gênero Pisum e estudar diferentes ordens de vegetais, res-
comentar brevemente sobre seus desdobra- tringiu-se ao estudo de ervilhas do gênero
mentos. Porém, antes disso, consideramos Pisum.
importante oferecer algumas informações Mendel não escolheu o material experimen-
sobre a formação de Mendel. tal de modo aleatório. Ele procurava plantas
cujo cultivo fosse fácil e que pudessem se
A FORMAÇÃO DE MENDEL desenvolver em um curto período de tem-
Filho de camponeses, Mendel obteve sua po, o que se aplicava às ervilhas. Baseou-se
formação inicial e posterior em Filosofia na também em outros critérios. Em primeiro
região que corresponde atualmente à atual lugar, as características que diferenciassem
Segundo Mendel, a maioria
República Checa. Em 1843 foi admitido as ervilhas deviam ser constantes, ou seja, as pertencia à espécie Pisum
como noviço no Monastério de St Thomas, linhagens deviam ser puras, sem variabili- sativum, enquanto outras
em Brno. No período compreendido entre dade significativa. Nesse sentido, ele testou, pertenciam às espécies
1851 e 1853 estudou na Universidade de durante dois anos, a constância de caracte- independentes, como Pisum
quadratum, Pisum saccharatum
Viena. É importante mencionar que du- rísticas de 34 variedades de ervilhas do gê- e Pisum umbellatum (MARTINS,
2002, p. 30).

246 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

nero Pisum. Em segundo lugar, era preciso Ao analisar o resultado do cruzamento da


que a fecundação das plantas fosse controla- geração produzida a partir dos primeiros
da com o impedimento da entrada de pólen híbridos (segunda geração), Mendel consta-
estranho. Em terceiro lugar, que os híbridos tou que, de um modo geral, em cada 4 plan-
preservassem sua fertilidade nas diversas tas, 3 exibiam a característica dominante e
gerações (MENDEL 1866/BATESON, 1 exibia a característica recessiva. Embora
1913, p. 337). outros hibridistas já houvessem se deparado
com essa proporção, não haviam atribuído
Dentre as 34 variedades de ervilhas que fo-
importância à mesma.
ram testadas e que cumpriam os critérios
acima, Mendel selecionou 22 para realizar Na geração seguinte, observou que 1/3 dos
seus experimentos. O principal objetivo era que mostravam a característica dominante
averiguar como as características que dife- produziam todos os descendentes iguais;
riam nos progenitores, em sucessivas gera- enquanto 2/3 possuíam descendentes variá-
ções, eram transmitidas aos descendentes. veis e eram, portanto, híbridos (MENDEL
Para isso, escolheu algumas características 1866/BATESON, 1913, p. 348).
que não variavam de modo contínuo, tais
Mendel explicou que, ao longo das gerações,
como: sementes maduras lisas ou enru-
os híbridos continuavam a produzir des-
gadas; a cor do endosperma das sementes
cendentes na mesma proporção de 2: 1: 1 e
(amarelo pálido, amarelo brilhante e laranja,
introduziu uma notação que continua a ser
ou verde); a coloração da casca (branca, cin-
utilizada atualmente com algumas modifi-
za, cinza-marrom ou marrom, com ou sem
cações. Para representar os híbridos, utiliza-
manchas de cor violeta, por exemplo).
va a notação Aa, porém, para representar as
Ele sabia que, mesmo nas ervilhas, nem linhagens puras, utilizava A e a e não AA ou
sempre as características eram herdadas aa, como passou a ser utilizado posterior-
de modo descontínuo pois observara em mente no século XX.
alguns casos que nos híbridos apareciam
Procurou também investigar se, no caso de
algumas características intermediárias em
várias características diferentes estarem en-
relação aos progenitores, como a forma e o
volvidas, podia-se aplicar, nos híbridos, o
tamanho das folhas, por exemplo.
mesmo tipo de princípio a cada par de ca-
Somente na produção dos primeiros hí- racteres. Nesse sentido, realizou duas séries
bridos utilizou a polinização artificial. As de experimentos. Uma em que as linhagens
gerações seguintes foram produzidas por iniciais diferiam por forma da semente e cor
autofecundação. Propôs então os termos do endosperma; e outra em que, além disso,
“dominante” e “recessivo” quando na época diferiam também pela cor da casca. No pri-
utilizavam-se os termos “preponderante” e meiro caso, utilizou plantas com sementes
“latente”. Em suas palavras: redondas (A – dominante) e endosperma
amarelo (B – dominante) cujas flores eram
“A partir de agora, neste artigo, os carac-
fecundadas com pólen de outras plantas
teres que são transmitidos sem nenhuma
com sementes enrugadas (a – recessivo) e
ou pouca alteração na hibridação e que,
endosperma verde (b – recessivo).
portanto, constituem os caracteres do
híbrido, são chamados de dominantes, Constatou que todos os híbridos (do que
e os que se tornam latentes no processo, foi chamado mais tarde de F1) tinham se-
recessivos”. (Mendel 1866/Bateson, mentes redondas e amarelas. Na geração se-
1913, p. 342) guinte (que mais tarde foi chamada de F2),
Mendel observou que o número de plantas
No decorrer do artigo, foi indicando quais
com sementes redondas era três vezes maior
seriam as características dominantes ou
do que o número com sementes enrugadas
recessivas encontradas nos primeiros híbri-
e o número com endosperma amarelo era
dos. Porém, ao referir-se às diversas gera-
também três vezes maior do que com en-
ções, não utilizou a notação F1, F2 – que
dosperma verde. Estudando a geração pos-
foi introduzida mais tarde, no século XX,
terior (mais tarde chamada de F3), pôde
por Bateson.

Sociedade Brasileira de Genética 247


CONCEITOS EM GENÉTICA

detectar quantas das plantas da geração F2 produziam uma parte de descendentes hí-
eram puras ou híbridas, chegando à conclu- bridos e uma parte de plantas cuja descen-
são de que a distribuição de características dência era constante. Supôs que nos casos
em F2 obedecia à seguinte proporção: de descendência constante isso só poderia
ocorrer se o pólen e o óvulo tivessem o mes-
AB, Ab, aB e ab – formas puras: 1
mo “caráter”. Ele comentou:
ABb, aBb, AaB, Aab – formas híbridas
“Devemos, portanto, considerar como
para um dos caracteres: 2
certo que fatores exatamente iguais de- O termo que Mendel utilizava
AaBb – formas híbridas para os dois ca- vem também estar atuando na produção e que comumente é traduzido
racteres: 4 das formas constantes nas plantas híbri- por “fator” era a palavra alemã
das. Como as várias formas constantes “Anlage”, que significa aptidão,
Ele representou o resultado pela fórmula: capacidade, potencialidade.
são produzidas em uma planta, ou mes-
AB + Ab + aB + ab + 2ABb + 2aBb (MARTINS, 2002, p. 34).
mo em uma flor de uma planta, parece
+ 2AaB + 2Aab + 4AaBb lógica a conclusão de que nos ovários dos
Mendel indicou que o resultado era exata- híbridos são formados tantos tipos dife-
mente o que se esperaria combinando as rentes de células de óvulos, e nas anteras
expressões: tantos tipos diferentes de células de pó-
len, quantas são as formas possíveis de
A + 2Aa + a
combinação; e que essas células do óvulo
B + 2Bb + b e pólen concordam em sua composição
interna com as das formas separadas”
ou seja, apareciam todas as combinações
(MENDEL 1866/BATESON, 1913
possíveis, nas proporções esperadas (MEN-
p. 356-357). Se multiplicarmos a primeira
DEL 1866/BATESON, 1913, p. 353).
dessas expressões pela segunda,
Algo semelhante ocorreu na série de ex- Para explicar os resultados obtidos, Men-
obteremos a expressão acima,
perimentos com três caracteres distintos del supôs que era possível que fossem for- com uma diferença: aparecerão
(MENDEL 1866/BATESON,1913, p. mados todos os tipos de óvulo e de pólen termos A², B², a², b² com A, B,
354-5), ou seja, ocorria o que passou a ser em números iguais. Em seguida, para testar a e b – ou, se quisermos, AA,
chamado, mais tarde, de segregação inde- tal hipótese, realizou a fertilização artificial BB, aa e bb – como na notação
que utilizamos atualmente (ver
pendente de fatores. de híbridos com pólen de plantas puras e MARTINS, 2002, p. 33).
fertilização de plantas puras com pólen de
A partir dos cruzamentos efetuados, con-
híbridos, prevendo as proporções que deve-
cluiu que era possível obter todas as dife-
riam resultar em cada cruzamento. Por fim,
rentes combinações dos caracteres dos pro-
concluiu:
genitores. Embora houvesse mencionado a
necessidade de procurar as leis que gover- “Experimentalmente, portanto, foi con-
navam a formação e desenvolvimento dos firmada a teoria de que os híbridos de
híbridos no início desse artigo, em nenhum ervilha formam células de óvulos e de
instante Mendel numerou ou identificou pólen que, em sua constituição, represen-
suas “leis”. A identificação das “leis de Men- tam em números iguais todas as formas
del” foi um trabalho feito posteriormente, constantes que resultam da combinação
no início do século XX. dos caracteres unidos na fertilização”.
(Mendel 1866/Bateson, 1913, p. 361)
EXPLICAÇÃO DOS Após finalizar os experimentos com ervi-
RESULTADOS lhas, estudou a produção de híbridos em
EM TERMOS CITOLÓGICOS outros vegetais como os resultantes do cru-
zamento de Phaseolus nanus com Phaseolus
Além de descrever os padrões encontrados
vulgaris, por exemplo. Porém, em alguns
nos resultados dos cruzamentos, Mendel
casos encontrou resultados mais complexos
procurou explicar o que ocorria nas células
que demandavam explicação diferente das
germinativas dos híbridos. Ele havia obser-
aplicadas às ervilhas (veja MATIOLI; EG-
vado que os híbridos, por autofecundação,
GER, nesta edição).

248 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

CONCLUSÕES No que pese o valor, originalidade e rele-


vância da contribuição de Mendel, devemos
O trabalho de Mendel inseria-se numa li-
lembrar que o empreendimento científico
nha de pesquisa bastante ativa em sua épo-
resulta de um trabalho coletivo que inclui
ca e, além dessa pesquisa, introduziu novos
contribuições de vários indivíduos envol-
elementos em relação às propostas de seus
vendo acertos e erros, o que se aplica ao caso
coetâneos e antecessores. Tais inovações
da Genética.
incluem, dentre outros aspectos, a metodo-
logia que envolve Matemática e Estatística
resultantes de uma formação diferente da REFERÊNCIAS
maioria dos naturalistas de sua época, bem BATESON, W. Mendel’s principles of heredity:
como noções sobre a divisão celular. Esta a defense. In: Punnet, R. C (ed.). Scientific
última permitiu a proposta de um modelo papers of William Bateson. Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1902. v. 2, p. 4-28.
microscópico diferente da maioria daqueles
encontrados durante o século XIX, que não BATESON, W. Mendel’s principles of heredity.
estavam relacionados a um estudo citológi- 2nd. ed. Cambridge: Cambridge University
co (POLIZELLO ; MARTINS, 2012). Press, 1913.
MARTINS, L. A.-C. P. Did Sutton and Boveri
Embora sejam mencionados os “redesco-
propose the so-called “Sutton-Boveri chro-
bridores” de Mendel, na prática, quem se
mosome hypothesis?” Genetics and Molecular
dedicou realmente ao teste dos padrões Biology, v. 22, n. 2, p. 261-271, 1999.
encontrados por Mendel nas ervilhas, tan-
to em animais como plantas, procurando MARTINS, L. A.-C. P. Bateson e o programa de
pesquisa mendeliano. Episteme, v. 14, p. 27-
também explicar os desvios e exceções, foi
55, 2002.
William Bateson. Foi ele quem, ao traduzir
o trabalho de Mendel para o inglês, o tornou MENDEL, G. Experiments in plant hybridi-
acessível aos povos de língua inglesa. Além sation. Trad. C. T. Druery. In: Bateson, W.
disso, propôs a terminologia “alelo”, “ho- Mendel´s principles of heredity. 2nd ed. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1913. p.
mozigoto”, “heterozigoto” e a notação “F1”,
335-79.
“F2”, empregada para se referir às diversas
gerações. Bateson empregou inicialmente os OLBY, R. C. Origins of Mendelism. London:
termos “caracteres unitários”, “fatores” e mais Constable, 1966.
tarde “gene”. O termo gene só foi cunhado POLIZELLO, A.: MARTINS, L. A.-C. P. Mo-
no final da década de 1900 por Johannsen delos microscópicos de herança no século
que também introduziu tantos os termos XIX. Filosofia e História da Biologia v. 7, n, 2,
como os conceitos de “genótipo” e “fenótipo”. p. 137-155, 2012.
Até então se utilizava o termo “caracteres” SANDLER, I. & SANDLER, L. On the origin
para se referir tanto ao material contido no of Mendelian genetics. American Zoologist v.
núcleo dos gametas como às características 26, n. 3, p. 753-768, 1986.
externas visíveis. STUBBE, H. History of genetics: from prehistoric
A relação entre os estudos citológicos e os times to the rediscovery of Mendel’s laws. 2nd
princípios de Mendel e a vinculação dos ca- ed. Trad. Trevor Waters. Harvard: The MIT
Press, 1972.
racteres hereditários aos cromossomos foi
feita somente algumas décadas depois, no ZIRKLE, C. The knowledge of heredity before
início da década de 1900, com a chamada 1900. In: Dunn, L. C. (ed.). Genetics in the
“hipótese cromossômica de Sutton e Bove- 20th century. New York: McMillan, p. 35-57,
ri” (MARTINS, 1999). Porém, na época, 1951.
como havia muitos problemas e poucas evi-
dências que a corroborassem, foi rejeitada AGRADECIMENTOS
por muitos cientistas como, por exemplo, A primeira autora agradece o apoio recebi-
Thomas H. Morgan (1866-1945), Bateson do da FAPESP e do CNPq que viabilizaram
e Johannsen. esta pesquisa.

Sociedade Brasileira de Genética 249


GENÉTICA E SOCIEDADE

O
Mendel
que
não
era
mendelista

Sergio Russo Matioli, Sabine Eggers

Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo.

Autor para correspondência: srmatiol@ib.usp.br

250 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

C onsidera-se que, em 1918, uma grande disputa


científica acerca das leis da hereditariedade biológica
foi formalmente encerrada, com a publicação do artigo The
correlation between relatives on the supposition of mendelian
inheritance [A correlação entre aparentados na premissa
de herança mendeliana] pelo matemático inglês Ronald
Aylmer Fisher. Com esse artigo, Fisher demonstrou
matematicamente que as duas maneiras então vigentes
de se entender a herança de caracteres biológicos eram
simplesmente como as duas faces da mesma moeda. Temos
razão, no entanto, de supor que Gregor Mendel já possuía
elementos para entender a natureza e a solução desse
conflito, conforme podemos verificar no trecho menos
conhecido de seu influente artigo, publicado em 1866, cuja
tradução para o português é aqui apresentada.

Sociedade Brasileira de Genética 251


GENÉTICA E SOCIEDADE

AS DUAS MANEIRAS DE famosas como as leis de Mendel, mas que


são tão válidas quanto aquelas. Uma dessas
SE ANALISAR A HERANÇA leis foi a “correlação entre aparentados”. Gal-
DE CARACTERÍSTICAS ton verificou, através da análise de medidas
BIOLÓGICAS NO INÍCIO corpóreas, que indivíduos aparentados pos-
DO SÉCULO XX suíam uma tendência maior a terem medi-
das corpóreas próximas entre si, e que essa
S ir Francis Galton (1822-1911) (Figura
1), primo de Charles Darwin, dedicou-se
a estudar a hereditariedade de características
tendência era maior conforme maior fosse a
proximidade do parentesco. Para chegar de
maneira formal a essa conclusão, Galton de-
da espécie humana. Entretanto, ao invés de
senvolveu o conceito estatístico de correlação
categorizar a variação entre indivíduos, abor-
em 1888, embora ele já tivesse sido desenvol-
dagem adotada por Mendel, resolveu medir
vido de forma independente por outro pes-
a variação. Com isso, descobriu algumas leis
quisador, Auguste Bravais, em 1846.
da hereditariedade que não se tornaram tão

Figura 1.
Sir Francis Galton, durante os
Outra descoberta de Galton refere-se à lei pais com medidas superiores (em valor) anos 1850. (Fonte: Wikimedia
commons. Domínio público).
da regressão para a mediocridade. Galton, à média da população teriam filhos com
verificou, através da comparação de me- medidas menores que a média dos pais,
didas entre pais e filhos, que existia uma enquanto pais com medidas inferiores que
tendência intrínseca para que as medidas a média da população teriam filhos com
de uma geração “retornassem” à média medidas superiores que a média dos pais
da geração anterior. Em outras palavras, (Figura 2).

252 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 2.
Lei da regressão para a
mediocridade de Galton. A Os pesquisadores que seguiram pesqui- chermak e Correns. A partir do cruzamen-
linha azul representa os valores sando na mesma linha que Galton ficaram to entre variedades de plantas, as leis de
que os filhos deveriam ter se
conhecidos como “biometricistas”, exata- Mendel que se referiam a fatores hereditá-
possuíssem a mesma média de
um caráter que os pais. A linha mente por adotarem a postura de medir rios de natureza particulada, pareciam ser
verde representa a linha que características biológicas. gerais (Figura 3). Começou nesse momen-
passa mais proximamente dos to aquilo que se configurou como a grande
valores reais. Enquanto os biometricistas desenvolviam a
disputa científica pela hereditariedade que
sua teoria para a hereditariedade, ocorreu,
durou quase duas décadas no começo do
em 1900, a redescoberta das leis de Men-
século XX.
del, feita por três pesquisadores, Vries, Ts-

Figura 3.
Herança particulada tal como
abstraída por Mendel. Ainda não
havia os termos “homozigoto” Aqueles que defendiam a generalidade das as leis da hereditariedade sob a perspectiva
e “heterozigoto”, mas Mendel leis de Mendel, relativas a partículas ou fa- biométrica tinham uma noção da evolução
representava uma só letra para tores hereditários que determinavam a quali- biológica mais próxima da de Charles Da-
os homozigotos. Atualmente dade de caracteres biológicos ficaram conhe- rwin, que enfatizou bastante em sua obra
as plantas parentais seriam
representadas por “AA” e “aa”. cidos como “mendelistas”. Os que estudavam que a seleção natural agia sobre diferenças

Sociedade Brasileira de Genética 253


GENÉTICA E SOCIEDADE

pequenas, quase imperceptíveis, entre os O botânico sueco Nilsson Ehle (1873-


indivíduos da população, de forma que as 1949), em 1908, foi um daqueles que iniciou
mudanças evolutivas eram sempre lentas e a solução do conflito entre os mendelistas e
graduais. Charles Darwin utilizou diversas os biometricistas. Ele propôs a contribuição
vezes o mote em latim natura non facit saltum de três pares de fatores mendelianos para a
[a natureza não dá salto] para enfatizar esse coloração das espigas de trigo obtidas a par-
ponto. tir do cruzamento de uma linhagem com
espigas vermelhas com outra linhagem de
Galton, embora tenha sido o fundador da
espigas brancas, nas quais os híbridos apre-
escola biométrica, por entender que a sua
sentavam uma cor intermediária e, na segun-
lei de regressão à mediocridade levaria à ho-
da geração, havia toda uma gradação de cores
mogeneização dos indivíduos da população,
(Figura 4). É exatamente nesse ponto que
tornou-se um “mendelista”, por achar que
desejamos mostrar que Mendel, no mesmo
a variação de maior monta seria a matéria-
artigo em que propõe as suas famosas leis
-prima da seleção natural e, por conseguinte,
para a hereditariedade, tinha conhecimento
da evolução.
de outras possibilidades. Mendel, quando
Karl Pearson, um discípulo de Galton e tam- descreve os resultados do cruzamento en-
bém um dos fundadores da estatística, tor- tre espécies de feijão, mostra que na prole
nou-se um dos expoentes na defesa do ponto já não havia somente o fenômeno da domi-
de vista dos biometricistas. As críticas de nância (resultando numa prole com poucas
membros de um dos grupos com relação ao categorias bem claras e definidas), mas uma
outro eram, por vezes, bastante contunden- gradação quase contínua (Figura 5). As for-
tes e ácidas. Detalhes dessa disputa muito in- mas intermediárias seguem aparecendo nas
teressante podem ser conferidos no livro de gerações seguintes e Mendel conclui brilhan-
Willian Provine (1942-2015) (The Origins of temente que (nas palavras dele próprio):
Theoretical Population Genetics, 1971)

Figura 4.
Interpretação de Nilsson-Ehle
para a gradação de cores
obtidas na segunda geração
de um cruzamento entre
linhagens de trigo com cores de
espigas diferentes. Ele propôs
a contribuição de três pares de
fatores mendelianos com efeito
aditivo, em que cada fator que
viesse da linhagem vermelho
escura adicionava um pouco de
intensidade de cor vermelha à
espiga.

254 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 5.
Experimento de cruzamento
entre espécies de Phaseolus
(feijão) realizado por Mendel
mostrando o resultado referente
à coloração da semente,
baseado na descrição no
texto aqui traduzido. Mendel
considerou a intervenção “Entretanto, mesmo esses resultados enig- gundo aspecto é a grande humildade na sua
de dois pares de fatores máticos provavelmente podem ser ex- postura com relação aos resultados. Mendel
independentes para explicar plicados pela mesma lei que rege Pisum não passa por cima de qualquer detalhe, nem
esse resultado segundo sua
hipótese.
se supusermos que a cor das flores e das “varre para debaixo do tapete” os fatos que
sementes de Ph. multiflorus é uma com- não se apresentam como consistentes com as
binação de duas ou mais cores completa- suas ideias. Boa leitura!
mente independentes, assim como aconte-
ce com os demais caracteres das plantas”. REFERÊNCIAS
A tradução do artigo de Mendel para o Por- FISHER, R.A. The correlation between relati-
tuguês, que foi publicada em uma edição ves on the supposition of Mendelian inheri-
anterior da Genética na Escola (v.8, n.1, p. tance. Philosophical Transactions of the Royal
Society of Edinburgh, v. 52, p. 399-433, 1918.
88-103, 2013), não incluiu o trecho corres-
pondente a essas possibilidades, mas nós o MENDEL, G. Versuche über Plflanzen-hybri-
traduzimos para o português e aqui publi- den. Verhandlungen des naturforschenden Ve-
camos, a partir da mesma versão em inglês reines in Brünn, v.4, p. 3–47, 1866 (fac símile
disponível em http://www.esp.org/founda-
proporcionada por William Bateson, mas
tions/genetics/classical/gm-65-f.pdf )
também revisada em contraste com o origi-
nal em alemão. BRAVAIS, A. Analyse Mathematique sur les
Probabilites des Erreurs de Situation d’un
A leitura desse trecho não tão famoso como Point,” Memoires par divers Savan, v. 9, p.
o trecho anterior vale a pena por dois aspec- 255-332, 1846]
tos, além do seu já mencionado vislumbre
PROVINE, W. The Origins of Theoretical Popu-
das leis da genética quantitativa. Assim como lation Genetics. University of Chicago Press.
no trecho anterior, Mendel é bastante cuida- 1971.
doso e minucioso em suas observações. O se-

Sociedade Brasileira de Genética 255


TRADUÇÃO
RESENHAS

Experimentos com
híbridos de outras
espécies de plantas*
* A primeira parte da tradução do artigo de Gregor Mendel foi publicada pela revista Genética na Escola v.8, n.1, p.88-103, 2013.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Artigo original:
MENDEL, GREGOR Versuche über Plflanzenhybriden. Verhandlungendes naturforschenden
Vereines in Brünn, Bd. IV für das Jahr 1865, Abhandlungen, 3–47. Apresentado nas reuniões de 08 de
fevereiro e 08 de março de 1865 da Sociedade de História Natural de Brünn.
http://www.mendelweb.org/MWGerText.html

Versão comentada para o inglês do artigo original de Mendel:


BATESON, WILLIAM Experiments in Plant Hybridization (1865) by Gregor Mendel
http://www.mendelweb.org/Mendel.plain.html

Tradução da versão em inglês com revisão do original em alemão:


MATIOLI, SERGIO RUSSO; EGGERS, SABINE. Instituto de Biociências, Universidade de São
Paulo. srmatiol@ib.usp.br

É necessário que se façam outros experi-


mentos para verificar se a lei do desen-
volvimento descoberta para Pisum também
apresenta talos anões conjuntamente com
vagens verdes simples, infladas. Ph. vulgaris,
por outro lado, possui caules de 10 a 12 pés
se aplica aos híbridos de outras plantas. de altura e vagens amarelas, com constri-
Com essa finalidade, vários experimentos ções quando maduras. As proporções dos
foram iniciados recentemente. Dois experi- números com os quais as formas diferentes
mentos menores com espécies de Phaseolus apareceram ao longo das gerações foram as
foram completados, e serão aqui menciona- mesmas observadas em Pisum. Também o
dos. desenvolvimento das combinações constan-
tes resultou conforme a lei de combinação
Um experimento com Phaseolus vulgaris
simples de caracteres, exatamente como no
e Phaseolus nanus L. forneceu um resulta-
caso de Pisum. Foram obtidas:
do perfeitamente concordante. Ph. nanus

Combinações Cor das Forma das


Caule
constantes vagens verdes vagens maduras

1 longo verde inflada


2 longo verde constrita
3 longo amarela inflada
4 longo amarela constrita
5 curto verde inflada
6 curto verde constrita
7 curto amarela inflada
8 curto amarela constrita

Sociedade Brasileira de Genética 257


TRADUÇÃO
RESENHAS

A cor verde, a forma inflada da vagem e o Ph. nanus apareceram logo na primeira gera-
caule longo foram, como em Pisum, caracte- ção de híbridos em uma única planta bastan-
res dominantes. te fértil, mas as trinta outras plantas desen-
volveram cores de várias gradações, desde o
Outro experimento com duas espécies bas-
vermelho púrpura ao violeta pálido. As cores
tante diferentes de Phaseolus teve somente
apresentadas pelos revestimentos das semen-
um resultado parcial. Phaseolus nanus L. ser-
tes não foram menos variadas que as cores
viu como semente parental [planta materna],
das flores. Nenhuma dessas plantas poderia
uma espécie perfeitamente constante, com
ser classificada como completamente fértil,
flores brancas em cachos curtos, e sementes
sendo que muitas sequer produziram fru-
pequenas, e brancas em vagens retilíneas in-
tos. Outras plantas desenvolveram sementes
fladas e lisas. Como pólen parental [planta
somente a partir das últimas flores e assim
paterna] foi usado Ph. multiflorus W., com
mesmo não maturaram. Somente se obteve
tronco alto e trepador, flores rubras dispostas
sementes bem desenvolvidas de 15 dessas
em longos cachos, vagens ásperas em forma
plantas. A maior propensão para a infertili-
de lua crescente e grandes sementes de cor
dade foi observada nos cachos que possuíam
pêssego avermelhado com manchas negras.
preponderantemente flores vermelhas, pois
Os híbridos foram mais semelhantes com o de 16 dessas plantas, somente 4 sementes
pólen parental [planta paterna], mas as flo- maduras foram obtidas. Três das sementes
res apareceram menos intensamente colori- apresentavam um padrão de desenho seme-
das. Sua fertilidade era muito limitada; das lhante àquele de Ph. multiflorus, mas com
17 plantas, das quais, no total, desenvolve- uma cor de fundo mais ou menos pálida. A
ram muitas centenas de flores, foram obtidas quarta planta produziu apenas uma única
apenas 49 sementes. Estas eram de tama- semente de cor marrom uniforme. As plan-
nho médio, tinham coloração semelhante à tas com flores preponderantemente violeta
de Ph. Multiflorus, inclusive a cor de fundo produziram sementes de coloração castanho
não era muito distinta. No ano seguinte, 44 escuro ou completamente negras.
plantas foram cultivadas a partir destas se-
O experimento continuou por mais duas
mentes, das quais apenas 31 chegaram à fase
gerações sob circunstâncias igualmente
de floração. Os caracteres de Ph. nanus, que
desfavoráveis, já que, mesmo entre os des-
estiveram completamente latentes nos híbri-
cendentes de plantas bastante férteis havia
dos, reapareceram em várias combinações; as
plantas menos férteis ou até mesmo com-
suas proporções, no entanto, com relação às
pletamente estéreis. Não apareceram outras
plantas dominantes eram, como esperado,
cores de flores ou de sementes além daque-
necessariamente muito flutuantes, devido
las previamente citadas. As características
ao pequeno número de plantas analisadas.
que tinham comportamento recessivo na
Certos caracteres, como o tamanho do caule
primeira geração permaneceram assim, sem
e a forma de cápsula, mostravam proporções
exceção. Daquelas plantas que possuíam flo-
de quase exatamente 1: 3, como no caso de
res violetas e sementes marrons ou negras,
Pisum.
algumas delas não variaram quanto a esses
Os resultados desses experimentos podem aspectos nas próximas gerações; a maioria,
ser insignificantes com relação à determina- no entanto, produziu descendência idêntica
ção das proporções das várias características, a elas enquanto algumas produziram flores
mas, por outro lado, revelaram um fenôme- e tegumento branco. As plantas com flores
no notável na mudança das cores das flores e vermelhas permaneceram tão pouco férteis
das sementes nos híbridos. Em Pisum, sabe- que nada pode ser dito com certeza a respei-
-se que as cores das flores e das sementes se to de seu desenvolvimento daí por diante.
mantém inalteradas na primeira e nas demais
Apesar dos diversos problemas que as ob-
gerações e que os híbridos adotam uma das
servações tiveram de enfrentar, parece que os
cores das plantas parentais. No experimento
experimentos com a produção de híbridos,
que estamos considerando isso é diferente. A
com relação à forma das plantas, seguem as
coloração branca das flores e das sementes de

258 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

mais cores completamente independentes,


assim como acontece com os demais caracte-
res das plantas. Se a cor da flor A for a com-
binação dos caracteres individuais A1 + A2
+ ... e que produzem a impressão geral de cor
púrpura, e se esta for fertilizada com pólen
de uma planta com o caráter diferenciador,
branco, haveria uniões híbridas A1a + A2a
+ ... , o mesmo aconteceria com as cores dos
revestimentos das sementes. De acordo com
as premissas acima, cada uma dessas uniões
de cores no híbrido seria independente das
outras e se desenvolveria de maneira comple-
tamente independente das demais. A seguir,
é facilmente compreensível que, a partir da
combinação de distintas colorações, deve re-
sultar uma série completa de cores. Se, por
exemplo, A = A1+A2, então os híbridos A1a
e A2a formam a série
A1 + 2A1a + a
A2 + 2A2a + a
Os membros dessa série podem ser classifi-
cados em 9 combinações diferentes, e cada
uma delas corresponde a uma cor
1 A1A2 2 A1aA2 1 A2a
2 A1A2a 4 A1aA2a 2 A2aa
1 A1a 2 A1aa 1 aa
Os números que precedem as distintas com-
binações refletem o número de plantas com
a coloração específica da série. Já que a soma
destes números é 16, o total das cores está
mesmas leis que aquelas verificadas em Pi- distribuído pelas 16 plantas, mas, como in-
sum. No que diz respeito às características dicado na própria série, em proporções de-
relacionadas com cor, certamente parece di- siguais.
fícil encontrar uma equivalência clara. Além Se o desenvolvimento das cores ocorre re-
do fato de que, a partir da união de uma almente dessa maneira, então o caso acima
planta com flores brancas e uma com flores mencionado, de acordo com o qual a colora-
vermelho-púrpura resultar em cores diferen- ção branca de flores e tegumento das semen-
tes, variando do púrpura ao violeta pálido e tes em 31 plantas teria aparecido apenas uma
ao branco, o que impressiona é que, dentre vez na primeira geração de plantas hibridas,
31 plantas com flores, apenas uma recebeu poderia ser explicado. Essa cor apareceu so-
o caráter recessivo da cor branca, enquanto mente uma vez e, portanto, poderia ter se
em Pisum isso ocorre, em média, uma vez em desenvolvido, em média, apenas uma vez em
cada quatro descendentes. cada 16 plantas, enquanto que com três ca-
Entretanto, mesmo esses resultados enigmá- racteres de cor, apareceria somente uma vez
ticos provavelmente podem ser explicados em cada 64 plantas.
pela mesma lei que rege Pisum se supuser- Não se pode esquecer, no entanto, que esta
mos que a cor das flores e das sementes de tentativa de explicação se baseia em uma
Ph. multiflorus é uma combinação de duas ou simples suposição resultante do experimen-

Sociedade Brasileira de Genética 259


TRADUÇÃO
RESENHAS

to incompleto que acabamos de descrever. gidos pela quilha, constituem uma notável
Seria, no entanto, muito proveitoso seguir exceção. Também aqui surgiram numero-
observando o desenvolvimento das cores nos sas variedades em condições muito diversas
híbridos em experimentos similares, pois ocorridas durante os mais de 1000 anos de
é provável que, dessa forma, poderíamos cultivo. Em condições de vida estáveis, en-
aprender o significado da variedade extraor- tretanto, estas permaneceriam autônomas e
dinária na coloração de nossas flores orna- independentes, como se crescessem na natu-
mentais. reza.
Até o momento, com certeza não se sabe É mais do que provável que, no que se diz res-
muito mais além do fato de que a cor das flo- peito à variabilidade das plantas cultivadas,
res na maioria das plantas ornamentais é um existe um fator que tem recebido pouca aten-
caráter extremamente variável. Tem sido fre- ção até então. Várias experiências nos forçam
quentemente comentado que a estabilidade a concluir que nossas plantas cultivadas, com
das espécies seria fortemente perturbada ou poucas exceções, são membros de distintas
até mesmo sobrepujada pelo cultivo, conse- séries híbridas, cujo desenvolvimento, com
quentemente consideram-se as formas cul- o passar do tempo, foi modificado e atrasa-
tivadas como resultado aleatório desprovido do através de frequentes cruzamentos entre
de regras; a coloração de plantas ornamentais os membros. Não se pode ignorar o fato de
é na verdade frequentemente citada como que as plantas são cultivadas em grande nú-
um exemplo de enorme instabilidade. Entre- mero e de forma conjunta, proporcionando
tanto, não é compreensível porque a simples uma oportunidade favorável para a fertili-
transferência para o solo do jardim resultaria zação cruzada entre as espécies e variedades
em uma revolução tão radical e persistente presentes. Essa possibilidade é apoiada pelo
no organismo vegetal. Ninguém ira seria- fato de que são encontrados sempre alguns
mente argumentar que, no campo aberto, o poucos exemplares dentre a enorme gama de
desenvolvimento das plantas é regido por leis variedades, que permanecem com as carac-
diferentes daquelas que existem no canteiro terísticas constantes, se a influência externa
do jardim. Aqui, como lá, as alterações típi- for cuidadosamente excluída. Estas formas
cas devem ocorrer se as condições vitais para se desenvolvem precisamente como aqueles
uma espécie são alteradas, e a espécie possuir membros de uma série híbrida composta.
a capacidade de adaptar-se às novas condi- Mesmo quanto ao caráter mais sensível entre
ções. Admite-se que, através do cultivo e o todos, o da cor, não se pode deixar de per-
trabalho humano, se favorece o surgimento ceber que as diferentes formas apresentam
de novas variedades, que, sob circunstâncias tendências distintas para a variação. Entre
naturais, teriam sido perdidas; mas nada as plantas que surgem de uma fertilização
justifica a premissa de que a tendência para espontânea frequentemente há aquelas cujos
a formação de variedades é tão extraordina- descendentes variam amplamente na cons-
riamente aumentada que a espécie rapida- tituição e no arranjo das cores, enquanto
mente perde toda autonomia e estabilidade, há outras que apresentam apenas desvios
e que sua descendência apresente uma série discretos e, dentre um número maior de
interminável de formas extremamente variá- exemplos algumas plantas que transmitem a
veis. Se a mudança nas condições do vegetal coloração de suas flores diretamente e sem
fosse a única causa da variabilidade, poder- alterações para os seus descendentes. As es-
-se-ia esperar que aquelas plantas cultivadas pécies cultivadas de Dianthus fornecem um
que crescem há séculos sob condições quase exemplo instrutivo. Um exemplar de flores
idênticas conseguiriam atingir constância e brancas de Dianthus caryophyllus, originário
autonomia novamente. Isso, sabe-se muito de uma planta de flores igualmente brancas,
bem, não é o caso, já que é precisamente sob permaneceu, durante o período de floração,
tais circunstâncias que não somente as for- isolado em uma estufa; as numerosas semen-
mas mais variadas, mas também as formas tes obtidas a partir dessa planta produziram
mais variáveis são encontradas. Somente as somente plantas com flores brancas. Um
Leguminosae, tais como Pisum, Phaseolus e resultado semelhante foi obtido a partir de
Lens, cujos órgãos de fertilização são prote- uma planta com flores vermelhas de brilho

260 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

violeta e uma com flores brancas listradas de -se tanto a um dos tipos parentais, que po-
vermelho. Muitas outras plantas, que foram dem se tornar, às vezes, indistinguíveis deles.
isoladas de forma semelhante, produziram De suas sementes geralmente germinam vá-
descendentes com colorações e desenhos va- rias formas que diferem do tipo normal se a
riados. fecundação foi feita pelo seu próprio pólen.
Como regra, a maioria dos indivíduos obti-
Quem estuda a variedade de coloração que
dos por fertilização mantém a forma híbrida,
resulta da fertilização de um mesmo tipo de
alguns poucos se assemelham à planta que
cruzamento entre plantas ornamentais, não
recebeu o pólen [materna] e um ou outro se
poderá negar que aqui também o desenvolvi-
assemelha com a planta que forneceu o pólen
mento segue uma lei especifica que, possivel-
[paterna]. Isso, entretanto, não acontece com
mente se expressa através da combinação de
todos os híbridos. Algumas vezes parte da
vários caracteres de cor independentes.
prole aproxima-se de um dos estoques origi-
nais, e outra parte aproxima-se do outro; ou
então a prole inteira se assemelha à planta hí-
brida e assim permanece através das gerações.
Os híbridos das variedades comportam-se
como os híbridos das espécies, mas possuem
maior variabilidade de formas e uma tendên-
cia mais pronunciada para reverterem-se aos
tipos originais.
No que se refere à forma dos híbridos e ao
seu desenvolvimento mais comum, a concor-
dância com as observações feitas com Pisum
é inegável. A situação é diferente com os
casos excepcionais citados. Gärtner admite
que a determinação exata da forma da pro-
le implica grande dificuldade, pois depende
da subjetividade do observador. Entretanto,
outro fator pode contribuir para tornar os
resultados flutuantes e incertos, mesmo sob
observação das mais cuidadosas e diferen-
ciadas. Para os experimentos, na maioria das
vezes, foram utilizadas plantas classificadas
como boas, diferenciadas por um grande
número de caracteres. Além dos caracteres
conspícuos e bem definidos, naqueles em que
a semelhança é uma questão de grau, deve-se
levar em conta que aquilo que é às vezes di-
fícil para se definir com palavras é suficiente,
como todo especialista em plantas sabe, para
atribuir às formas uma aparência peculiar.
Quando se aceita que o desenvolvimento dos
NOTAS CONCLUSIVAS híbridos segue as leis válidas para Pisum, a
Não deixa de ser interessante comparar as série em cada experimento separado deveria
observações feitas com Pisum com os resulta- conter muitíssimas formas, pois o número de
dos obtidos por duas autoridades nesse ramo termos, como se sabe, aumenta com o cubo
do conhecimento, Kölreuter e Gärtner. De do número de caracteres diferenciadores.
acordo com a opinião compartilhada de am- Com um número relativamente pequeno de
bos, os híbridos, em sua aparência externa, plantas experimentais os resultados podem
ora possuem uma aparência intermediária ser somente aproximadamente corretos, e
entre as espécies originais, ora assemelham- em casos isolados, podem flutuar considera-

Sociedade Brasileira de Genética 261


TRADUÇÃO
RESENHAS

velmente. Se, por exemplo, os dois estoques Nós nos deparamos com uma diferença es-
originais diferem quanto a sete caracteres e sencial naqueles híbridos cuja prole perma-
foram produzidas 100 a 200 plantas híbri- nece constante e que se reproduzem como
das a partir deste cruzamento para deter- verdadeiras espécies puras. Segundo Gär-
minar o grau de semelhança física da prole, tner, a esta classe pertencem os híbridos
podemos facilmente verificar o quão incerta extremamente férteis de Aquilegia atropur-
a determinação pode se tornar, uma vez que, purea canadensis, Lavatera pseudolbia thurin-
para 7 caracteres diferenciadores a série de giaca, Geum urbano-rivale, alguns híbridos
combinações possíveis contém 16.384 indi- de Dianthus; e, de acordo com Wichura, os
víduos classificados com 2.187 combinações híbridos da família do salgueiro. Para a his-
diferentes. O grau de semelhança com uma tória evolutiva das plantas esta circunstância
ou outra planta parental poderia variar subs- é de especial importância, uma vez que os
tancialmente, dependendo do acaso com que híbridos constantes adquirem o estado de
esta ou aquela forma final aparecer mais fre- novos tipos distintos. A exatidão dos fatos
quentemente diante do observador. Se, além é garantida por observadores eminentes, e
disso, aparecerem entre os caracteres diferen- não pode ser posta em dúvida. Gärtner teve
ciadores, alguns de herança dominante, que a oportunidade de acompanhar Dianthus
são transmitidos quase ou completamente armeria deltoides até a décima geração, uma
inalterados para os híbridos, esperamos en- vez que esta planta se propagou espontanea-
contrar na prole uma proporção maior de mente no seu jardim. * Em Pisum, não há dúvida
plantas semelhantes àquela planta mãe do de que, para a formação do
Com Pisum foi demonstrado experimental-
estoque original que contiver o maior núme- novo embrião, deve haver
mente que os híbridos formam ovos e pólens
ro de características dominantes. Na experi- uma união perfeita entre os
de tipos diferentes, residindo neles a razão elementos de ambas as células
ência descrita com Pisum, na qual havia três
da variabilidade da sua descendência. Simi- reprodutivas. Como poderíamos
tipos de caracteres diferentes, todos os carac-
larmente, em outros híbridos, cujos descen- explicar de outra forma que,
teres dominantes pertenciam ao progenitor dentre os descendentes dos
dentes se comportam de forma semelhante,
paterno. Embora na prole houvesse repre- híbridos, ambos os tipos
podemos assumir uma causa parecida; para originais reaparecem em
sentantes semelhantes a ambos os estoques
aqueles que, por outro lado, permanecem igual número e com todas
originais, o tipo da planta paterna sobrepu-
constantes, parece justificável supor que as as suas peculiaridades? Se a
jou tanto, que dentre 64 plantas da primeira influência da célula-ovo [óvulo]
suas células reprodutivas são todas iguais
geração, 54 eram idênticas à paterna ou so- sobre a célula do pólen fosse
correspondendo à célula híbrida original.
mente se diferenciavam quanto a uma única apenas externa, se somente
Na opinião de fisiologistas de renome, nas desempenhasse o papel
das características. Com isso se vê o quão le-
Fanerógamas unem-se, para o propósito da nutritivo, então o resultado
viano pode ser inferir a natureza interna dos
reprodução, uma célula de pólen e uma de das fertilizações artificiais não
híbridos baseando-se nas suas semelhanças poderia ser outro senão que
ovo [óvulo], para formar uma única célula*,
externas. os híbridos desenvolvidos
que é capaz, por assimilação de nutrientes, deveriam assemelhar-se
Gärtner menciona que, nos casos em que o e formação de novas células, tornar-se um única e exatamente com o
desenvolvimento foi regular dentre a prole organismo independente. Este desenvolvi- pai fornecedor do pólen,
dos híbridos, não houve plantas idênticas mento segue uma lei constante, que se baseia ou pelo menos, lhe ser
bastante próximo. Nada
aos dois estoques originais, e que apenas uns sobre a composição material e a disposição
disto foi comprovado pelos
poucos indivíduos se assemelhavam a eles. dos elementos que na célula alcançam uma experimentos até agora. Uma
Com uma série de desenvolvimento muito união vivificante. Se as células reprodutivas prova contundente da união
maior, isso não poderia ser de outra forma. são iguais entre si e correspondem ao ovo completa dos conteúdos de
Para sete caracteres diferenciadores, por [óvulo] da planta mãe, o desenvolvimento ambas as células é a experiência
sempre compartilhada, de que
exemplo, ocorrem, entre os mais de 16.000 do novo indivíduo irá seguir a mesma lei que a forma do híbrido é igual,
indivíduos - proles dos híbridos – somente 2 rege a planta mãe. Se houver a possibilidade independentemente da planta
plantas idênticas às plantas do estoque origi- de um ovo [óvulo] se unir com uma célula original fornecer pólen ou ovo
nal. Por conseguinte, é praticamente impos- de pólen dissimilar, devemos então esperar [óvulo].
sível que estas apareçam entre um pequeno uma complementação entre esses elementos
número de plantas experimentais; com algu- distintos. A célula resultante torna-se a base
ma probabilidade, no entanto, podemos con- do organismo híbrido, cujo desenvolvimen-
tar com o aparecimento de algumas formas to segue necessariamente um esquema dife-
semelhantes. rente daquele de cada uma das duas plantas

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

originais. Se o compromisso for completo, composição e no agrupamento dos elemen-


ou seja, que o embrião híbrido consiste em tos independentes que interagem vividamen-
células iguais, nas quais as diferenças foram te nas células originais.
inteira e permanentemente compensadas,
A validade das leis formuladas para Pisum
então esperaríamos que o híbrido, assim
ainda necessita ser confirmada, e, portanto, a
como qualquer outra planta estável ou inde-
repetição dos experimentos mais importan-
pendente, produza uma prole constante. As
tes é desejável, como, por exemplo, aquela re-
células reprodutivas que são formadas em
lacionada com a composição das células ferti-
suas vasilhas de sementes [ovário] e anteras
lizadoras dos híbridos. Um diferencial pode
são de um tipo só, e concordam com a célula
facilmente escapar de um observador, pois,
híbrida original.
embora inicialmente possa parecer pouco
No que diz respeito a esses híbridos cuja importante, ainda assim pode se acumular
prole é variável, podemos assumir hipoteti- de tal maneira a não ser desprezível para o
camente que entre os elementos diferencia- resultado final. Se os híbridos variáveis de
dores das células do ovo e as células de pólen outras espécies de plantas estiverem inteira-
ocorre uma compensação, na medida em que mente de acordo isso, deve ser verificado ex-
a formação da célula “compensada” dê origem perimentalmente. Enquanto isso, podemos
ao híbrido, mas, no entanto, a compensação assumir que em aspectos importantes uma
fosse apenas temporária e não se sustentasse diferença essencial dificilmente pode ocor-
durante toda a vida da planta híbrida. Uma rer, uma vez que a unidade no plano de de-
vez que no hábito da planta nenhuma mu- senvolvimento da vida orgânica está fora de
dança é perceptível durante todo o período questão.
de vegetação, deveríamos assumir que só se-
Em conclusão, os experimentos realizados
ria possível para os elementos diferenciado-
por Kölreuter, Gärtner, e outros com respei-
res liberarem-se da união ocorrida, quando
to à transformação de uma espécie em outra
as células de fertilização se desenvolvem. Na
através de fertilização artificial merece men-
formação dessas células todos os elementos
ção especial. Uma importância particular
existentes participam de um arranjo total-
tem sido atribuída a essas experimentações
mente livre e homogêneo, em que apenas as
que Gärtner classifica “entre as mais difíceis
células diferentes se excluem mutuamente.
de toda a produção de bastardos.”
Desta forma, o número dos tipos de células-
-ovo e grãos de pólen equivaleria ao número Quando se pretende transformar a espécie
de combinações possíveis dos elementos for- A na espécie B, ambas devem ser unidas
mativos. por fertilização e os híbridos resultantes, em
seguida, devem ser fertilizados com o pólen
A presente tentativa de explicação sobre
de B. Depois, das várias proles resultantes,
a principal diferença no desenvolvimento
seriam selecionadas aquelas que apresen-
de híbridos quanto à união permanente ou
tassem maior semelhança com B que, no-
temporária dos elementos celulares distintos
vamente seriam fertilizadas com pólen B, e
pode, naturalmente, apenas assumir o valor
assim sucessivamente até que, finalmente, B
de uma hipótese para a qual a falta de da-
se mantivesse constante nas gerações seguin-
dos confiáveis oferece várias possibilidades.
tes. Por este processo, a espécie A teria sido
Alguma justificativa para a opinião expressa
transformada na espécie B. Gärtner, sozinho,
reside na evidência observada em Pisum, na
efetuou 30 desses experimentos com plantas
qual o comportamento de cada par de ca-
de gêneros Aquilegia, Dianthus, Geum, Lava-
racteres contrários na união híbrida é inde-
tera, Lychnis, Malva, Nicotiana, e Oenothera.
pendente das outras diferenças entre as duas
O período de transformação não foi igual
plantas originais, e, ainda, que o híbrido pro-
para todas as espécies. Embora em algumas
duz apenas tantos tipos de óvulos e pólen,
espécies três ciclos de fertilização tivessem
como há formas possíveis de combinação. Os
sido suficientes, com outras espécies cinco ou
caracteres diferentes de duas plantas devem,
seis ciclos foram necessários, e até mesmo em
por fim, depender apenas das diferenças na
uma mesma espécie foram observadas flutu-

Sociedade Brasileira de Genética 263


TRADUÇÃO
RESENHAS

ações de experimento em experimento. Gär- mesmo se estas tivessem sido cultivadas em


tner atribui esta diferença à circunstância de um número menor, e a transformação da es-
que “o poder específico pelo qual uma espé- pécie ABC em abc teria ocorrido já depois
cie, durante a reprodução, efetua a mudança da segunda fertilização. Se por acaso ela não
e a transformação do tipo parental para ou- apareceu, então a fertilização deve ser repe-
tro varia consideravelmente de planta para tida com uma das formas mais semelhantes,
planta, e que, consequentemente, os períodos Aabc, aBbc, abCc. Percebe-se que tal expe-
com os quais uma espécie se transforma em rimento deve estender-se mais quanto me-
outra também deve variar, como também o nor for o número de plantas experimentais
número de gerações, de modo que a transfor- e quanto maior for o número de caracteres
mação em algumas espécies ocorre em maior, diferenciadores nas duas espécies originais;
e em outras em menor número de gerações”. e que, além disso, na mesma espécie, pode
Além disso, o mesmo observador nota “que facilmente ocorrer um atraso de uma ou
estes experimentos dependem de qual tipo e até mesmo de duas gerações, como Gärtner
que indivíduo seja escolhido para posterior observou. A transformação de uma espécie
transformação”. numa outra amplamente divergente pode ser
concluída no quinto ou sexto ano de experi-
Ao se assumir que nestes experimentos a
mentação, uma vez que o número de células
constituição das formas resulta da maneira
ovo diferentes formadas nos híbridos cresce
semelhante àquela de Pisum, todo o processo
com o quadrado do número de caracteres di-
de transformação decorreria de uma explica-
ferentes.
ção bastante simples. Os híbridos formam
tantos tipos de células reprodutivas quanto Gärtner encontrou, através de experimentos
existem combinações possíveis dos caracte- repetidos, que o período de transformação
res conjugados nelas, e um deles é sempre do varia entre algumas espécies, de modo que
mesmo tipo que aquele das células de pólen frequentemente uma espécie A pode ser
que o fertilizou. Consequentemente, existe a transformada em uma espécie B uma gera-
possibilidade de que todos esses experimen- ção mais cedo do que a espécie B transfor-
tos resultem em uma forma constante igual ma-se na espécie A. Ele deduz daí que a opi-
à planta produtora de pólen, já a partir da nião de Kölreuter, de que “as duas naturezas
segunda fertilização. Se isso realmente será em híbridos encontram-se perfeitamente em
obtido dependerá do número de plantas ex- equilíbrio” não pode ser mantida.
perimentais, bem como do número de carac-
No entanto, parece que Kölreuter não mere-
teres diferenciadores que são unidos pela fer-
ce tal crítica, mas sim que Gärtner negligen-
tilização. Vamos, por exemplo, assumir que
ciou um momento importante, ao qual Köl-
as plantas selecionadas para o experimento
reuter faz referência em outra parte de seu
diferem quanto a 3 caracteres, e que a espécie
trabalho, onde consta que “é essencial qual
ABC deverá ser transformada na outra espé-
indivíduo é escolhido para a transformação”.
cie abc através de repetidos ciclos de fertili-
Experimentos levados a cabo com duas espé-
zação com o pólen deste último. Os híbridos
cies de Pisum neste contexto, demonstraram
resultantes do primeiro cruzamento forma-
que, com relação à escolha dos indivíduos
rão 8 tipos diferentes de células ovo, a saber:
mais aptos para o propósito de fertilização,
ABC, ABc, AbC, aBC, Abc, aBc, abC, abc faz uma grande diferença qual de duas espé-
cies é transformada na outra. As duas plan-
Estes, no segundo ano de experimento, são
tas experimentais, neste caso, diferiam quan-
cruzados novamente com grãos de pólen abc,
to a 5 caracteres; aqueles da espécie A eram
dos quais foi obtida a série:
todos dominantes e, aqueles da espécies B,
AaBbCc + AaBbc + AabCc + aBbCc todos recessivos. Para a transformação mú-
+ Aabc + aBbc + abCc + abc tua, A foi fertilizado com pólen de B e B com
Uma vez que a forma abc ocorre uma vez pólen de A, e isso foi repetido com ambos os
na série de 8, é pouco provável que ela esta- híbridos no ano seguinte. Através do primei-
ria faltando entre as plantas experimentais, ro experimento B/A, resultaram 87 plantas

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

no terceiro ano do experimento disponíveis to; com o segundo, a seleção teve de ser feita
para a seleção representando as 32 formas de forma aleatória, apenas. Destas últimas
possíveis para cruzamentos posteriores; com apenas uma porção das flores foram cruza-
o segundo experimento, A/B, resultaram 73 das com o pólen A, as outras foram deixadas
plantas que pareciam idênticas à planta pa- para fertilizarem-se consigo mesmas. Den-
terna, mas que em sua composição interna, tre as 5 plantas que foram selecionados em
no entanto, devem ter sido tão variadas como ambos os experimentos para a fertilização,
as formas resultantes do experimento ante- houve concordância com a planta paterna
rior. Uma seleção controlada foi, portanto, durante no cultivo do próximo ano, da ma-
somente possível com o primeiro experimen- neira mostrada abaixo:

1ro Experimento 2ndo Experimento Diferença

2 plantas -- -- em todos caracteres

3 plantas -- -- em 4 caracteres

-- -- 2 plantas em 3 caracteres

-- -- 2 plantas em 2 caracteres

-- -- 1 planta em 1 caráter

No primeiro experimento, a transformação -se à opinião daqueles naturalistas que


foi completada desta maneira; para o segun- discordam da estabilidade das espécies ve-
do, que foi interrompido, provavelmente getais e acreditam em uma evolução contí-
teriam sido necessárias mais duas fertiliza- nua das espécies vegetais. Ele percebe que
ções. a transformação completa de uma espécie
em outra é uma prova indubitável de que as
Embora não ocorra com frequência que os
espécies atingem limites além dos quais elas
caracteres dominantes pertençam exclusiva-
não podem mudar. Embora essa opinião
mente a uma das plantas originais , sempre
não possa ser aceita incondicionalmente,
fará diferença qual das duas plantas possui
por outro lado, encontra-se nos experimen-
a maioria dos caracteres dominantes. Se a
tos de Gärtner uma confirmação notável
planta paterna tem a maioria, então a sele-
sobre a capacidade de transformação ine-
ção de formas para cruzamentos posteriores
rente às plantas cultivadas, já expressa an-
determinará um menor grau de segurança
teriormente.
do que no caso reverso, o que deve implicar
em um atraso no período de transformação, Entre as espécies experimentais ocorrem
desde que o experimento só é considerado plantas cultivadas, tais como Aquilegia
como concluído quando uma forma chega, atropurpurea e A. canadensis, Dianthus ca-
não só a se assemelhar externamente à plan- ryophyllus, D. chinensis, e D. japonicus, Ni-
ta paterna, mas também permanece cons- cotiana rustica e N. paniculata e os híbridos
tante nas gerações seguintes. entre essas espécies não perderam nada de
sua estabilidade depois de quatro ou cinco
Através do sucesso dos experimentos de
gerações.
transformação, Gärtner, foi levado a opor-

Sociedade Brasileira de Genética 265


GENÉTICA E SOCIEDADE

Antes de Mendel:
Joseph Koelreuter
e as pesquisas de
hibridização de plantas

Maria Elice de Brzezinski Prestes1, Lilian Al-Chueyr Pereira Martins2


1
Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo.
2
Departamento de Biologia, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

Autor para correspondência: eprestes@ib.usp.br

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

N ão é raro que se considerem alguns dos personagens da história da ciência


como fundadores de áreas de pesquisa ou de disciplinas novas. O caso
de Gregor Mendel, muitas vezes considerado o fundador da Genética, é um
exemplo clássico disso. Há muito, a historiografia da ciência combate essa ideia
porque ela pouco informa sobre como a ciência funciona de fato. Por exemplo,
quando se afirma que uma pessoa sozinha é responsável pela emergência de uma
nova área; ou de que um fato particular, como a apresentação de um trabalho
em um congresso, a publicação de um artigo ou livro, ou a enunciação de um
conceito, seja igualmente a causa única da construção de um dado conhecimento
científico. Cada estudioso, assim como cada trabalho produzido, está sempre
inserido em um contexto amplo que abrange não apenas interlocutores e
tradições de estudo, como também aspectos sociais, políticos e econômicos de
cada época. Buscando esse contexto, neste artigo será discutida a vertente de
estudos da qual o trabalho de Mendel é tributário, sem que se pretenda diminuir
a importância e a originalidade de sua contribuição.

O termo hibridização é aqui

A
utilizado no sentido empregado
contribuição de Gregor Mendel (1822-
por Mendel e seus antecessores e
contemporâneos, incluindo tanto 1884) para os estudos da hereditarieda-
cruzamento de espécies como de é bastante conhecida. No entanto, ainda
de variedades pouco diferentes que o tema já tenha sido muito discutido
(MARTINS, 1997, p. 3-3). No entre historiadores da Genética, é menos di-
século anterior, Carl von Linné
(1707-1778), por exemplo, fundida a inserção de Mendel na tradição de Divisão administrativa
considerava que qualquer planta trabalhos de hibridização de plantas, reali- independente desde o século
que apresentasse caracteres zados nos séculos XVIII e XIX. XIV, a Moravia passou a ser
intermediários entre aqueles governada como um domínio
de duas outras espécies bem Conhecer esse contexto é o caminho para da coroa do Império Austríaco
conhecidas, seria um híbrido, uma desconstruir a imagem historicamente equi- em 1804, passando ao Império
nova espécie (OLBY, 1985, p. 3). Austro-húngaro em 1867.
vocada a respeito de Mendel como uma fi- Em 1918 foi incorporada à
gura isolada, seja científica, seja geografica- Tchecoslováquia, tornada
mente (OLBY, 1985); (GLIBOFF, 2015). República Checa, em 1993.
O mosteiro Agostiniano de St. Thomas em Embora tenha deixado de ser uma
Pronuncia-se “Bruno”, em unidade de território em reforma
que Mendel desenvolveu seus experimentos
checo, embora a cidade também administrativa do governo
seja referida em outras línguas, não ficava em um recôndito desconhecido da comunista em 1949, ainda é
como “Brünn”, em alemão Europa Central, mas na cidade histórica de reconhecida como uma região
(Wikipedia). Foi na vizinhança Brno – desde o século XI, um centro políti- específica na República Checa,
de Brno que se travou a Batalha co importante da Moravia. Por outro lado, cujos habitantes reconhecem sua
de Austerlitz em 1805. Devido identidade Moravia.
a sua posição geográfica e o trabalho de Mendel deve ser considerado
política estratégica, em 1809, dentro dos padrões da ciência de sua época.
foi escolhida pelo imperador Ele se inseria na comunidade botânica bas-
francês Napoleão Bonaparte para tante ativa da Moravia dos anos 1850 (RO-
pouso de suas tropas em meio
BERTS, 1929); (GLIBOFF, 1999).
à campanha contra Moscou,
passagem descrita no romance
Guerra e Paz, de Leon Tolstoi.

Sociedade Brasileira de Genética 267


GENÉTICA E SOCIEDADE

Foi o próprio Mendel quem anunciou os in- A REPRODUÇÃO


terlocutores, antecedentes e contemporâne-
os, no início do seu muito conhecido artigo
SEXUADA DAS PLANTAS
de 1866, “Experimentos de hibridização de O interesse de estudiosos do início do século
plantas”: XVIII pela formação de híbridos em plantas
foi movido, em parte, pelo estabelecimento
“A esse assunto, [isto é, experimentos com da reprodução sexual nesse grupo de seres
fertilização artificial de plantas] nume- vivos. É bastante conhecido o fato de que,
rosos observadores cuidadosos, tais como em 1735, no seu Systema naturae, Carl von
Koelreuter, Gaertner, Herbert, Lecoq, Linné (1707-1778) tinha proposto o siste-
Wichura e outros devotaram parte de ma de classificação de plantas com base nos
suas vidas com perseverança incansável. órgãos sexuais. A aceitação desse tipo de
(MENDEL [1866], 1996, p. 1)” reprodução em vegetais foi objeto de longa
Não são apenas os resultados obtidos nos ex- discussão, que não apenas antecedeu, mas se
perimentos desses “observadores cuidadosos” seguiu a essa e outras publicações de Linné
que interessaram a Mendel; mais que isso, (MAGNIN-GONZE, 2004); (PRESTES,
discutiu também as questões elaboradas por OLIVEIRA, JENSEN, 2009).
eles e adotou alguns dos métodos dos mes- Evidências experimentais esclarecendo a re-
mos. Esses vínculos amplos permitem eluci- produção sexuada das plantas haviam sido
dar o seu envolvimento com as diversas co- publicadas pelo professor e diretor do Jar-
munidades botânicas inter-relacionadas da dim Botânico de Tubingen, Alemanha, Ru-
época, desde os criadores que desenvolviam dolf Jacob Camerarius (1665-1721) quase
práticas de melhoramento, até os hibridis- quatro décadas antes, em 1694, na De sexu
tas experimentais e acadêmicos (GLIBOFF, plantarum epistola (Carta sobre o sexo das É importante mencionar que já
2015). plantas). Esse trabalho, contudo, foi pouco no início do século XVIII tanto
jardineiros como botânicos
Neste artigo, essa tradição de pesquisa será citado pelos botânicos das décadas seguin-
ingleses relatavam o surgimento
ilustrada pelo trabalho efetuado pelo primei- tes. de híbridos como, por exemplo,
ro dos investigadores, ou seja, Koelreuter, O tema ganhou maior difusão após ter sido Cotton Mather (1663-1728)
mencionado por Mendel na passagem citada que descreveu os resultados
tratado em discurso no Jardim do Rei, em de cruzamentos com diferentes
anteriormente. Para introduzir tal estudo, Paris, em 1717, pelo médico e botânico fran- variedades de milho (STUBBE,
será retomado, brevemente, o contexto te- cês Sébastien Vaillant (1669-1722) – e sem 1972, p. 101).
órico que o motivava: a proposição da exis- menção a Camerarius. O próprio Linné, em
tência de uma reprodução sexuada nas plan- Fundamenta botanica (Fundamentos botâni-
tas. Antes porém, consideramos importante cos), de 1736, sustentava a existência de sexo
apresentarmos Joseph Gottlieb Koelreuter nas plantas com base apenas em observações
(1733-1806) ao leitor. anatômicas, conjecturas teóricas e analogia
Koelreuter desenvolveu os estudos em Tü- com os animais:
bingen e Strasbourg. Em 1756 foi para St. “Que a linhagem não provém apenas do
Petersburg onde se dedicou à classificação ovo ou só do líquido seminal, mas que ela
de peixes das coleções da Academia Imperial procede de um e de outro, é provado pelos
de Ciências durante três anos. Somente em animais híbridos, pela razão, pela anato-
1759, iniciou os estudos a respeito da hibri- mia. (LINNÉ [1736], 2005, P. 201)”
dização de plantas. Dois anos mais tarde
voltou para Sulz e depois se mudou para A questão permaneceu em debate. Botânicos
Calw (Württemberg). Foi nomeado diretor renomados da época se negaram a aceitá-la,
dos Jardins ducais em Karlsruhe e Professor como o italiano Giullio Pontedera (1688- O ensaio de Linné menciona
de História Natural. Seis anos depois aban- 1757) e o francês Joseph Pitton de Tour- as plantas híbridas obtidas
nefort (1656-1708). Em 1759, a Academia por polinização cruzada
donou esses cargos devido à interferência provocada, como a barba de
dos funcionários. Devido a eles, teve os ex- de Ciências de São Petersburgo ofereceu
bode (Tragopogan pratensis X T.
perimentos comprometidos. Deu prossegui- um prêmio para um ensaio que confirmas- porrifolius), como embasamento
mento a tais experimentos em seu próprio se ou refutasse o sexo das plantas por meio de suas ideias.
jardim até 1790 (STUBBE, 1972, p. 99). de argumentos e experimentos novos. Linné

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Koelreuter contrapunha essas ganhou o prêmio (OLBY, 1985, p. 4). Pos- fora dos grãos (Sachs [1875], 1906, pp.
ideias de Wilhelm Friedrich teriormente, novas e mais detalhadas evi- 410-411). Considerando que o óleo desem-
Gleichen Russworm (1717-
1783), cujas observações
dências experimentais foram fornecidas pelo penhava o papel fertilizante, usou as noções
microscópicas levaram-no a botânico alemão Joseph Gottlieb Koelreuter da química de sua época. Recusou a ideia de
considerar que os grãos de (1733-1806). que os grãos de pólen, eles próprios, alcan-
pólen eram correspondentes aos çassem o ovário. Então afirmou:
espermatozoides dos animais e
penetram nos óvulos promovendo
OS EXPERIMENTOS DE “Tanto as sementes masculinas quanto
modificações sucessivas até que HIBRIDIZAÇÃO DE PLANTAS a umidade feminina do estigma são de
se transformam em embriões
(SACHS [1875], p. 404; 411, DE KOELREUTER natureza oleosa, então, quando entram
1906). A reprodução sexuada de plantas dividiu os em contato ocasiona-se uma união ínti-
botânicos em diferentes tipos de investiga- ma entre as duas e se forma uma subs-
Mais tarde, contudo, novos
ção. Uns procuravam estabelecer se o pólen tância que, se a fertilização ocorrer, deve
experimentos fizeram-no recuar ser absorvida pelo estigma e transportada
da ideia de que a umidade era necessário à formação das sementes, con-
firmando a existência da reprodução sexua- através do estilete até os assim chamados
do estigma fosse o princípio
feminino (SACHS [1875], pp. da; outros, tomando-a por certa, dedicavam- óvulos ou germes não fertilizados”. (Koel-
411-412, 1906). -se a estabelecer o modo pelo qual o pólen reuter, 1761, apud Sachs [1875], 1906,
fecundava o óvulo. Neste segundo grupo, p. 411)
A descoberta do tubo polínico,
em 1823, foi o passo mais estavam os estudos de Joseph Gottlieb Ko- Ou seja, para ele a fertilização ocorria no es-
importante para eliminar as elreuter. tigma e a substância mista ali produzida, dos
dúvidas sobre a fertilização sexual
Eliminar as dúvidas sobre a fertilização se- óleos femininos e masculinos, era condu-
das plantas superiores (MORTON,
1981, p. 394). xual nas flores demandava, entre outros zida aos ovários onde produziam os embri-
aspectos, estabelecer como seria o contato ões na semente.
material entre o elemento feminino e o mas- Note-se que, assumindo a fertilização como
culino. Naquela época, o tubo polínico a produção de uma substância nova a par-
não era conhecido. Koelreuter concentrou- tir da mistura dos líquidos masculino e fe-
Pré-formação é a teoria de -se em determinar a quantidade de pólen minino, Koelreuter estava se opondo a uma
que um organismo, em certo
que é requerida para a fertilização de um teoria de reprodução difundida na época, a
sentido, está pré-formado desde
sua origem, precisando apenas ovário e comparou-a com o número de grãos pré-formação, seja ovista, seja animalcu-
desenvolver-se. Epigênese, de pólen de uma flor particular. Descobriu lista, e se colocando favorável à epigênese.
ao contrário, é a ideia de que o que o número necessário de grãos de pólen
organismo emerge gradualmente Koelreuter não duvidava da possibilidade
para que a fertilização ocorresse era bem
no processo embriológico. da produção de híbridos, mas considerava
menor do que aquele disponível numa flor.
que a natureza possuía modos de evitá-los.
Entre outras flores estudadas, no caso Hi-
Dedicou-se a descobrir quais eram esses
Koelreuter concluiu, com os biscus venetianus, contou 4.863 grãos de pó-
mecanismos ocultos (OLBY, 1985, p. 10).
resultados de seus experimentos, len e considerou apenas entre 50 e 60 grãos
que se os pólens da própria Para isso, procurou obter plantas híbridas e
como suficientes para promover mais de 30
espécie e de outra espécie passou a examinar a fertilidade das mesmas.
sementes férteis no ovário. Também estudou
chegam simultaneamente a Conseguiu o primeiro intento com plantas
um estigma, apenas o primeiro as formas pelas quais o pólen das anteras
de tabaco, no outono de 1760.
o fecunda, explicando por chega aos estigmas, incluindo a ação do ven-
essa razão por que os híbridos to e dos insetos. Descreveu os resultados obtidos em um pe-
artificiais não são encontrados na queno livro publicado no ano seguinte, Vor-
natureza. De suas observações microscópicas do grão
läufige Nachricht von einigen, das Geschlecht
de pólen, afirmou que era composto de duas
der Pflanzen betreffenden Versuchen (Notícia
cascas distintas, sendo, a externa, elástica
preliminar de experimentos e observações
e dotada de espinhas e rugosidades e, a in-
sobre alguns aspectos do sexo das plantas),
Plantas híbridas foram terna, de projeções cônicas que explodiam
relatando nada menos que 65 experimen-
obtidas antes de 1719 pelo e liberavam o conteúdo. Supôs então que
correspondente de Linné, tos de hibridização e investigações sobre
esse conteúdo era um “tecido celular” e que
Thomas Fairchild (?1667-1729), o mecanismo de polinização e fertilização.
a substância fertilizante era o óleo formado
a partir de duas espécies de Entre 1761 e 1766, publicou novos artigos
cravo, Dianthus caryophyllus e D. no seu interior de onde extravasava por fi-
em que a soma de experimentos realizados
barbatus (OLBY, , p. 18, 1985). nas passagens da casca e aderia ao lado de
subiu para 500 hibridizações de diferentes

Sociedade Brasileira de Genética 269


GENÉTICA E SOCIEDADE

plantas, envolvendo 138 espécies. Além dis- entre as duas espécies originais. Por sua vez,
so, examinou a forma, cor e o tamanho de do cruzamento desses primeiros híbridos
grãos de pólen de 1.000 espécies diferentes com uma das espécies originais nasceram
de plantas (OLBY, 1985, p. 5). Esses núme- plantas (híbridos F2) bem diferentes entre
ros contribuem para ilustrar como a investi- si, que se pareciam mais com uma, ou com
gação realizada por ele era um exemplo de outra das espécies originais do que com os
Em 1763, ele descreveu um
que o método experimental guiava estudos híbridos dos quais eram originários. número considerável de híbridos
sobre o funcionamento dos organismos vi- dos gêneros Nicotiana, Kedmia,
Mais tarde, e em contraste a Mendel que
vos no século XVIII (PRESTES, 2007); Dianthus, Matthiola, Hyoscyamus
procurava explicar esse contraste entre as e outras plantas.
(MELI, 2011, p. 269).
duas gerações em termos citológicos e esta-
O primeiro híbrido foi obtido ao colocar o tísticos, Koelreuter adotou uma perspectiva
pólen de Nicotiana paniculata no estigma de teológica e fez analogias alquímicas. Naque-
N. rustica, produzindo uma planta perfeita. la época já havia conhecimento de que da
Contudo, ao caírem as flores não geraram reação entre um ácido e um álcali formava-
frutos nem sementes, diferentemente das -se um sal – que não é nem ácido nem al-
plantas originais que produziam cerca de calino, mas neutro, ou seja, um interme-
50.000 sementes – contrastando-se a ferti- diário, como ocorria na planta híbrida F1.
lidade das espécies puras com a esterilidade Ele também estendia a analogia alquímica
do híbrido. Percebeu então que as formas para explicar a variabilidade e combinações
híbridas, além de estéreis, eram intermedi- possíveis das gerações subsequentes. Por
árias entre as formas parentais. outro lado, a uniformidade e aparência in-
termediária do híbrido F1 eram evidências
Koelreuter multiplicou então suas observa-
da perfeição do ato de criação divina que só
ções e experimentos de hibridização. Exa-
era quebrada pela intervenção humana ao
minou os grãos de pólen das flores da planta
provocar essas combinações híbridas não
híbrida ao microscópio percebendo que os
naturais. Dessa forma, considerava ainda
mesmos estavam encolhidos, praticamente
que seus experimentos não refutavam a Koelreuter promoveu ainda
sem fluídos materiais em seu interior, não
doutrina da fixidez das espécies. experimentos de híbridos até
passando de cascas vazias. Os grãos de pó-
a quinta geração, assim como
len estavam, portanto, claramente estéreis. Em alguns casos, Koelreuter ainda encon- experimentos de reversão de
Então, investigou se o mesmo ocorria com trou que os híbridos F2 eram comumente híbridos à forma original, pelo
os ovários. Para isso, polinizou ovários de de três tipos: os que se pareciam com as es- uso repetido de seu próprio
plantas híbridas com o pólen das espécies pécies avós, os que se pareciam com os pais pólen. Ele considerava que
apenas plantas próximas, e
originais (retro-cruzamento, como chama- F1 e os parecidos com as espécies avôs. Em mesmo assim, nem sempre, eram
do hoje). O resultado mostrou a fertilidade termos gerais, pode-se dizer que Koelreuter capazes de reprodução sexual.
dos ovários e a formação de novas plantas reconheceu, em termos qualitativos, as três
(hoje, híbridos F1). Novamente, testou a classes de segregação que, mais tarde, Men-
fertilidade dessa geração, promovendo a del encontrou na proporção 1:2:1 (OLBY,
autopolinização. Com tal procedimento, 1985, p. 14).
obteve nova geração de plantas (hoje, hí-
Koelreuter submeteu seus resultados expe-
bridos F2).
rimentais à análise de Linné. Mas nem o na-
Com esses estudos, pela primeira vez na turalista sueco, nem seus discípulos e a es-
história da Biologia, segundo Robert Olby, cola de sistematas do final do século XVIII
“descrições confiáveis e acuradas de pro- encamparam suas descobertas sobre os
dução de híbridos e seus descendentes são híbridos na literatura que produziram. Foi
disponibilizadas” (OLBY, 1985, p. 11). Ko- apenas posteriormente que os estudos de
Os trabalhos de Camerarius
elreuter ainda comparou o forte contraste Koelreuter, assim como os de Camerarius, e Koelreuter ficaram mais
entre as duas gerações híbridas obtidas: as acabaram reconhecidos como os que mais conhecidos quando reunidos
plantas obtidas pelo cruzamento de duas subsidiaram as leis gerais da reprodução se- pelo professor de Botânica em
espécies distintas (híbridos F1) eram muito xuada de plantas e da função sexual das flo- Praga, Johann Christian Mikan
(1769-1844) no livro R. J.
semelhantes entre si, manifestando na maio- res, contribuindo para o estabelecimento da Camerarius Opuscula Botanici
ria de seus caracteres aspecto intermediário existência desse tipo de reprodução vegetal. Argumenti, de 1797 (SACHS
[1875], p. 385, 1906).

270 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

CONCLUSÕES KING, R. C.; STANSFIELD, W. D. Dictionary


of Genetics. 5a ed. New York: Oxford Univer-
Apesar de Koelreuter ter sido bem sucedido sity Press, 1997.
em obter híbridos em cruzamentos experi-
mentais com outros gêneros e espécies vege- MAGNIN-GONZE, J. Histoire de la botanique.
Paris: Delachaux et Niestlé, 2004.
tais como, por exemplo, Diantus, Mathiola,
Hibiscus, Datura, dentre outros, chegando MARTINS, L. A.-C. P. A teoria cromossômica
a resultados semelhantes ao do tabaco com da herança: proposta, fundamentação, crítica e
os “retrocruzamentos”, o impacto e a aceita- aceitação. Campinas, 1997. Tese (Doutorado
ção dos mesmos foram muito baixos. Por em Ciências) – Instituto de Biologia da Uni-
versidade Estadual de Campinas.
exemplo, F. J. Shelver e A. Henschel duvida-
ram da autenticidade de tais resultados. Os MARTINS, L. A.-C. P. Bateson e o programa de
dois estudiosos eram contrários à ideia da pesquisa mendeliano. Episteme, v. 14, p. 27-
sexualidade das plantas e ofereceram outra 55, 2002.
explicação para os resultados encontrados MELI, D. B. Mechanism, Experiment, Disease:
(STUBBE, 1972, p. 103). Marcello Malpighi and Seventeenth-Century
Anatomy. Baltimore: The John Hopkins
Houve, contudo, os que prosseguiram nessa University Press, 2011.
linha de investigação como Joseph Gaertner
(1732-1791) e seu filho Carls Friedrich Ga- MENDEL, G. Experiments in plant hybridization
[1865]. Tradução de William Bateson, revis-
ertner (1772-1850). É dentro da tradição
ta por Roger Blumberg. MendelWeb Pro-
desses e outros autores como Max Ernst ject. Disponível em http://www.mendelweb.
Wichura (1817-1866) e Charles Victor org/ Acesso em 22/05/2016.
Naudin (1815-1899) que se insere o traba-
lho de Mendel. MORTON, A. G. History of Botanical Science.
An account of the development of Botany from
Tanto a recepção das contribuições de Koel- ancient times to the present day. London: Aca-
reuter no século XVIII, como as de Mendel demic Press, 1981.
no século XIX, mostram que, muitas vezes, OLBY, R. C. Origins of mendelism [1966]. Chica-
as ideias de alguns autores não são compre- go: University of Chicago Press, 1985.
endidas em sua plenitude à época de sua
PRESTES, M. E. B. A biologia experimental de
concepção, apesar de se enquadrarem como
Lazzaro Spallanzani (1729-1799). São Pau-
atividade científica, serem conhecidas, pu- lo, 2003. 401 p. Tese (Doutorado em Educa-
blicadas em veículos relevantes, mas encer- ção) – Faculdade de Educação da Universi-
rarem aspectos que só são compreendidos dade de São Paulo.
posteriormente.
PRESTES, M. E. B., OLIVEIRA, P., JENSEN,
Neste artigo foi mostrado o exemplo de um G. M. As origens da classificação de plantas
trabalho dentro de uma linha de investiga- de Carl von Linné no ensino de Biologia. Fi-
ção adotada em meados do século XVIII losofia e História da Biologia, v. 4, p. 101-137,
que teve representantes em meados do sécu- 2009.
lo XIX, incluindo Mendel, ou mesmo pos- ROBER TS, H. F. Plant hybridization before
teriormente, no século XX, como William Mendel. Princeton: Princeton University
Bateson (1861-1926), por exemplo (MAR- Press, 1929.
TINS, 2002). SACHS, J. History of Botany (1530-1860). Au-
thorized translation by Henry E. F. Garnsey.
REFERÊNCIAS 2ª imp. Oxford: Clarendon Press, 1906.
GLIBOFF, S. The Mendelian and Non-Mende- STUBBE, H. History of genetics: from prehistoric
lian Origins of Genetics. Filosofia e História times to the rediscovery of Mendel’s laws. 2nd
da Biologia, v. 10, n. 1, p. 99-123, 2015. ed. Trad. Trevor Waters. Harvard: The MIT
GLIBOFF, S. Gregor Mendel and the Laws of Press, 1972.
Evolution. History of Science, v. 37, p. 217-
235, 1999.

Sociedade Brasileira de Genética 271


GENÉTICA E SOCIEDADE

O Mendel mítico
sob um olhar crítico:

o papel de Mendel
na história da Genética
Charbel N. El-Hani

Laboratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia (LEFHBio),


Instituto de Biologia, Universidade Federal da Bahia, Brasil.

Autor para correspondência: charbel@ufba.br

272 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

É praticamente universal a descrição de Mendel como responsável pela


formulação das leis que recebem seu nome, numa forma que menciona genes
situados nos cromossomos – que ele teria chamado de ‘fatores’ – e sua distribuição
pelas células-filhas nas divisões meióticas. É bastante comum, além disso, uma
imagem de Mendel como um monge supostamente isolado num mosteiro em
Brünn (atualmente, Brno), ignorado pela comunidade científica de sua época e
posteriormente vingado pelo seu papel fundador na história da Genética. Estes
são elementos do que podemos denominar o Mendel mítico, presente tanto na
ciência escolar quanto na literatura científica. Contudo, esta é uma descrição
incorreta do papel de Mendel na história da Genética. Ela está comprometida por
erros metodológicos importantes em termos historiográficos, por ser anacrônica,
atribuindo a Mendel ideias posteriores ao seu trabalho, e por ignorar o contexto
em que ele realmente trabalhou. Quanto a este último problema, Mendel não
era, de um lado, um monge isolado e ignorado, mas, de outro, não era parte
da comunidade científica que se dedicava ao problema da herança na segunda
metade do século XIX. Assim, outro problema decorre da ênfase apenas sobre
o papel de Mendel nos estudos da herança que teriam levado à emergência da
Genética na virada para o século XX: ignoram-se as contribuições de cientistas
muito importantes, como Darwin, Spencer, Galton, Nägeli, Brooks, Weismann
e de Vries. Foi o trabalho desses cientistas que propiciou o caminho para o
surgimento da Genética e foi no novo contexto estabelecido por essa disciplina
que o trabalho de Mendel foi reinterpretado a partir de 1900. O Mendel mítico
decorre, em parte, de uma confusão entre o conteúdo de seu trabalho original,
publicado em 1866, e o conteúdo dessa reinterpretação. Nesse texto, abordaremos
alguns aspectos do Mendel mítico, como base para uma discussão de qual foi,
afinal, seu papel na história da Genética.

Sociedade Brasileira de Genética 273

Por Bateson, William - Mendel’s Principles of Heredity: A Defence, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=4491025
GENÉTICA E SOCIEDADE

M endel é retratado, de modo pratica-


mente universal, como o primeiro
cientista a propor uma teoria da heredita-
Como discutiremos mais adiante, a questão
de pesquisa a que Mendel se dedicou não
dizia respeito à herança, ao menos não em
riedade, baseada nas duas leis que levam seu primeiro plano: tratava-se antes de elucidar
nome. Essas leis são apresentadas, por sua uma questão que ocupava a pesquisa em
vez, como se tivessem sido expostas em seu horticultura, o principal campo de interes-
trabalho, publicado em 1866, na forma em se de Mendel, havia muitos anos, a saber, se
que as entendemos hoje, mencionando genes a hibridização poderia dar origem a novas
situados em cromossomos – que Mendel te- espécies genuínas. Mendel estava situado,
ria chamado de ‘fatores’ – e sua distribuição em suma, em outra comunidade científica,
pelas células-filhas nas divisões meióticas. dedicada a investigações sobre o cultivo de
Numa descrição heroica, também é comum plantas, na qual figuram nomes importantes
encontrarmos a imagem de Mendel como da ciência como Joseph Gottlieb Kölreuter e
um monge supostamente isolado num mos- Karl Friedrich von Gärtner. Além disso, ele
teiro em Brünn (atualmente, Brno), ignora- tinha uma série de outros interesses, como
do pela comunidade científica, apenas para a apicultura e a meteorologia, mas não fazia
ser depois vingado pela história, quando foi parte da comunidade de cientistas que in-
reconhecido seu papel fundador na história vestigavam na mesma época o fenômeno da
da Genética. herança.
Estes são elementos do que podemos de- Com essa visão panorâmica inicial, podemos
nominar o Mendel mítico. Todas as pessoas perceber a necessidade de colocar em ques-
que aprenderam Genética o conhecem bem, tão o modo como tem sido entendida a con-
como parte garantida do ensino desta disci- tribuição de Mendel na história da ciência e,
plina. É importante destacar, contudo, que em particular, da Genética. Nesse texto, dis-
este não é um mito restrito à ciência escolar. cutimos alguns aspectos relativos ao Mendel
Na literatura científica, encontramos os mes- mítico, com o intuito de contribuir para uma
mos problemas, inclusive em textos de natu- visão mais informada sobre seu trabalho e o
reza histórica. que ele representou para a ciência.
Quando examinamos os estudos sobre he-
reditariedade na segunda metade do século
XIX, somos surpreendidos, no entanto, com
a ausência de Mendel nos debates da comu-
nidade científica que se debruçava sobre a
busca de uma compreensão desse fenômeno.
Encontramos nessa comunidade grandes no-
mes da ciência como Charles Darwin, Her-
bert Spencer, Francis Galton, Carl Nägeli,
William Brooks, August Weismann e Hugo
de Vries, mas não Mendel. E não é o caso de
que Mendel fosse um completo desconheci-
do. Sua correspondência com Nägeli é bem
conhecida e há evidências de que Darwin,
embora não tenha lido o artigo original de
Mendel, tomou conhecimento de seus estu-
dos por meio de um trabalho de Hermann
Hoffmann, Untersuchungen zur bestimmung
des wertes von spezies und varietät (Uma in-
vestigação sobre a qualidade de espécies e
variedades, #112 na coleção de separatas de
Darwin). Por que então o trabalho de Men-
del não foi considerado nas discussões sobre
hereditariedade na ciência novecentista?

274 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O TRABALHO DE tensão com os argumentos daquele cientis-


ta. Além disso, Darwin pode ter enfrentado
MENDEL EM SEU dificuldades para compreender com clareza
CONTEXTO HISTÓRICO o tratamento matemático usado por Mendel
A publicação de Origem das espécies colocou na análise das gerações de híbridos, em virtu-
a questão da herança no centro das atenções de dos limites de suas habilidades matemáti-
de vários cientistas da época, incluindo o cas (admitidos pelo próprio Darwin).
próprio Darwin, que desenvolveu uma teoria
Por sua vez, Mendel conhecia o trabalho de
da herança, a teoria da pangênese, como um
Darwin. Dificilmente ele poderia, como um
complemento à sua teoria da seleção natural.
membro ativo da comunidade científica eu-
Outros cientistas contemporâneos, como
ropeia à época, ter ignorado as controvérsias
Spencer, Galton, Brooks, Nägeli, Weismann
em torno de Origem das espécies. Numa das
e de Vries, também apresentaram teorias
sessões da Sociedade de História Natural
para explicar o fenômeno da herança. Eles
de Brünn, em que Mendel leu seu trabalho,
formavam uma comunidade ativa em torno
uma figura destacada, o botânico e geólogo
desse problema, composta por cientistas que
Alexander Makowski, falou com entusiasmo
conheciam os trabalhos uns dos outros e se
sobre o livro clássico de Darwin. Por fim,
engajavam numa crítica mútua construtiva
como qualquer visitante do Mosteiro Agosti-
que levou a mudanças nas teorias de cada
niano de S. Tomás pode ver, há uma cópia de
um deles.
Origem disponível na biblioteca do mosteiro,
Para entender por que Mendel não estava com anotações feitas pelo próprio Mendel.
incluído nessa comunidade, vale a pena con-
Contudo, a posição de Mendel sobre a teoria
siderar a apreciação de seu trabalho por con-
de Darwin não é clara. Malgrado argumen-
temporâneos como Nägeli e Darwin. Nägeli
tos na literatura numa direção ou noutra, a
tomou conhecimento do artigo de Mendel
conclusão mais consistente é de que não dis-
na época em que foi publicado, mas não lhe
pomos de evidências fortes o suficiente para
deu muita atenção, o que sugere não ter con-
estabelecer se Mendel apoiava ou rejeitava a
cordado com as conclusões alcançadas. Da-
teoria de Darwin, ou, em termos mais gerais,
rwin pode ter tido contato com os estudos de
a própria ideia de evolução. Quanto à teoria
Mendel através do artigo de Hoffmann men-
da pangênese, parece não haver informação
cionado anteriormente. De fato, ele comen-
disponível sobre o conhecimento ou a posi-
tou o trabalho de Mendel com Phaseolus, que
ção de Mendel a seu respeito.
também conheceu por meio do relato de Ho-
ffmann, mas não fez referência aos estudos Não se trata, em suma, de que o trabalho de
com Pisum. Contudo, Darwin tinha outra Mendel tenha sido somente pouco conhe-
interpretação do achado crucial do estudo de cido. Sua explicação para os padrões obser-
Mendel, a proporção 3:1 na segunda geração vados nas gerações dos híbridos estava em
dos híbridos. O próprio Darwin encontrou desacordo com as teorias em discussão na co-
essa proporção em seus experimentos com munidade científica que se debruçava sobre o
Anthirrinum majus (Boca-de-leão). Em sua problema da herança. Em 1900, quando seu
interpretação, a reversão à forma parental era trabalho foi redescoberto, o conhecimento
explicada, como ele discute no último capí- científico sobre hereditariedade, citogenéti-
tulo de Variations of animals and plants under ca, estrutura e funcionamento celular havia
domestication (1868), em termos da mudança sofrido importantes mudanças e, nesse novo
sofrida pela ‘prepotência’ das gêmulas, postu- contexto, os achados de Mendel foram rein-
ladas por sua teoria da pangênese, com as terpretados pelos geneticistas mendelianos.
circunstâncias ambientais. A reversão seria A própria redescoberta está relacionada ao
um reflexo da mudança da planta para um fato de que o trabalho de Mendel foi coop-
solo com diferenças na fertilidade. Temos tado para resolver uma disputa de prioridade
aí uma explicação bastante distinta daquela entre Carl Correns e Hugo de Vries. Para o
fornecida por Mendel, mas compatível com a historiador Peter Bowler, a própria história
teoria da herança de Darwin, que entrava em da redescoberta pode ser vista como um ar-

Sociedade Brasileira de Genética 275


GENÉTICA E SOCIEDADE

tefato histórico decorrente de um exagero tendo em vista como cientistas posteriores


das coincidências entre os achados de Men- reinterpretaram e ajustaram o trabalho de
del e de Correns, de Vries e Tschermak. Mendel aos seus próprios interesses. Um
limite importante para esse esforço é que
A reinterpretação foi decorrente da nova luz
praticamente tudo que aprendemos sobre
que foi lançada sobre os resultados de Men-
Mendel, inclusive quando somos treinados
del por uma série de ideias que se afirmaram
como geneticistas, representa de modo po-
a partir do final do século XIX: herança dura
bre ou, pior ainda, equivocadamente a histó-
(hard inheritance), defendida por Galton e
ria e as contribuições deste cientista. Somos
Weismann, com ênfase sobre variação des-
deixados sem ferramentas para uma leitura
contínua, caracteres que não se misturavam
de seu trabalho que evite as armadilhas do
e ausência de herança de caracteres adquiri-
anacronismo e procure elucidá-lo sob a luz
dos; a visão de que partículas no interior da
da época e do contexto conceitual em que foi
célula, como os determinantes de Weismann
escrito.
ou os pangenes de Hugo de Vries, contro-
lavam o desenvolvimento dos caracteres, Outro elemento do Mendel mítico é a des-
defendida não somente por estudiosos da crição heroica do monge isolado vingado
herança, mas também por citologistas; e pela história. Esta é uma visão que não so-
uma compreensão cada vez maior do papel brevive ao mais breve escrutínio histórico.
dos cromossomos. A formulação das leis de Mendel realizou seus famosos experimentos
Mendel, tal como as conhecemos, resultou no Mosteiro Agostiniano de S. Tomás, em
desses desenvolvimentos na transição do sé- Brünn. Brünn era parte do Império Austro-
culo XIX para o XX. -Húngaro, que tinha um papel importante
na pesquisa científica da época. O mosteiro
A reinterpretação de seu trabalho pelos ge-
onde Mendel trabalhava estava longe de ser
neticistas mendelianos é comumente atri-
um lugar distante da vida científica de então.
buída ao próprio Mendel, tornando difícil
Ele era um dos principais centros de vida es-
para a maioria das pessoas ler seu trabalho
piritual e intelectual do Império. Os estudos
original sem colocá-lo sob a luz (anacrônica)
de Mendel trouxeram uma nova perspectiva
de ideias posteriores que foram usadas para
para uma atividade de pesquisa em anda-
reinterpretá-lo. Daí resulta um dos elemen-
mento no Mosteiro desde 1840, que buscava
tos do Mendel mítico, a ideia de que encon-
desenvolver uma perspectiva científica acerca
tramos as chamadas leis de Mendel em sua
das práticas de cultivo.
obra na forma como se apresentam hoje, com
uma distinção clara entre genótipo e fenóti- Além disso, Mendel estudou em Viena
po, e uma referência aos genes como unida- com cientistas importantes da época, como
des de herança (retornaremos a esse ponto Christian Doppler e Franz Unger. Sua for-
mais abaixo). Ao lermos, 150 anos depois, o mação em Física, com Doppler, teve uma
artigo de Mendel apresentado em 1865 na influência decisiva sobre o modo como abor-
Sociedade de História Natural de Brünn e dou o problema da hibridização, com uma
publicado em 1866, ficamos impressionados ênfase sobre a quantificação que não era tão
com sua clareza e seu estilo moderno. Esta comum na Biologia da época. A revista na
é uma familiaridade enganosa, decorrente qual publicou seu trabalho, Verhandlungen
de uma reinterpretação do que Mendel es- des Naturforschenden Vereins Brünn (Anais
creveu em nossos próprios termos. De fato, da Sociedade de História Natural de Brünn)
é muito fácil incorporar à leitura do artigo, era a publicação oficial desta Sociedade, dis-
de maneira anacrônica, ideias que não estão tribuída para 134 instituições científicas, in-
presentes com clareza nos argumentos ori- cluindo a Royal Society e a Linnean Society.
ginais, ou mesmo ideias que claramente não Apelos à imagem de um monge isolado em
estão ali presentes. Demanda esforço ler o algum mosteiro pouco conhecido não per-
que foi escrito por Mendel à luz do conhe- mitem explicar o impacto limitado do traba-
cimento de sua época, dos seus propósitos e lho de Mendel em sua época, como mostra a
do contexto no qual ele trabalhou, bem como raridade de citações antes de 1900.

276 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

QUAL ERA O OBJETIVO


DO TRABALHO DE MENDEL?
Se perguntarmos a praticamente qualquer
pessoa que tenha conhecimento sobre o que
Mendel estudava, muito provavelmente rece-
beremos como resposta “herança”. Contudo,
se lemos o original de Mendel, uma primei-
ra surpresa é que o termo “hereditariedade”
e seus derivativos na língua alemã não são
encontrados no texto. Isso não é fortuito. O
objetivo do artigo que Mendel publicou em
1866 é responder se a hibridização poderia
produzir novas espécies. Ele se inseria assim
em uma tradição de pesquisa sobre híbridos,
abordando uma questão que interessara muito
a cientistas como Kölreuter e von Gärtner, que
concluíram que novas espécies não poderiam
resultar de híbridos, ou seu professor Unger,
para quem a hibridização geraria espécies
novas. Para Mendel, o significado mais im-
portante de seu achado de uma proporção de
três indivíduos exibindo o caráter dominante,
para cada um exibindo o caráter recessivo, na
segunda geração dos híbridos (a famosa pro-
porção 3:1) era que ocorria uma reversão ao
estado parental entre os descendentes desses
híbridos. Isso mostraria que Kölreuter e von
Gärtner estavam certos: as características de
híbridos não seriam suficientemente estáveis
para que pudessem gerar novas espécies.
Naquela época, a comunicação informal ti- Este é um exemplo eloquente da importância
nha um papel central na comunidade cien- de ler o trabalho de um cientista situando-o
tífica, como mostra, por exemplo, a grande apropriadamente em seu tempo e, mais do que
quantidade de cartas intercambiadas por isso, na tradição de pesquisa à qual pertence. É
Darwin e estudiosos ao redor do mundo. contra esse pano de fundo que podemos apre-
Assim, o impacto limitado do trabalho de ciar com mais clareza quais perguntas se esta-
Mendel talvez seja explicado, ao menos em va buscando responder e como se conformam
parte, pelo fato de que ele era pouco conhe- as respostas. Uma leitura anacrônica e descon-
cido na rede de comunicação informal de textualizada pode levar-nos a ver no texto de
então. Com exceção das cartas trocadas com um cientista não as suas questões e interesses,
Nägeli entre 1866 e 1873, Mendel não se en- mas os nossos próprios. O caso do texto de
gajou em correspondência com outros cien- Mendel é uma ilustração disso: se não o ler-
tistas. Embora não fosse um monge isolado, mos com o devido cuidado, repetidamente
fazendo estudos no jardim de um mosteiro interpretaremos o que está sendo dito com os
qualquer, ao fim e ao cabo não foram muitos olhos que nos foram dados pelo que aprende-
os contemporâneos que conheceram seu tra- mos sobre ele desde a educação básica. É claro
balho. Mas, para além disso, era difícil mes- que seu estudo terminou por ser central para
mo para aqueles que o conheciam conciliar nossa compreensão de como características
a abordagem de Mendel, em grande medida são herdadas. Mas, isso responde mais sobre
matemática e estatística, com seus próprios os interesses que a posteridade teve pelo seu
estudos, o que colocava uma dificuldade adi- trabalho do que sobre os interesses do próprio
cional para que seu trabalho tivesse impacto. Mendel.

Sociedade Brasileira de Genética 277


GENÉTICA E SOCIEDADE

MENDEL FORMULOU A sem mobilizar a ideia de que haveria uma


menção ao que hoje chamamos de genótipo.
PRIMEIRA E A SEGUNDA Desse modo, após me dedicar a analisar o
“LEIS DE MENDEL”? trabalho de Mendel cuidadosamente, colo-
Na literatura histórica, há bastante polêmica quei-me do lado do debate em que se encon-
sobre a presença ou não das chamadas leis tram historiadores como Robert Olby, que
de Mendel no artigo de 1866. A tal respeito, insiste que Mendel constrói seus argumen-
concordo com a conclusão de Kostas Kam- tos em torno do conceito de caráter (Merk-
pourakis de que há no artigo passagens que male), e não mediante um apelo a fatores
sugerem a formulação das leis da segregação hereditários. Nesse ponto, alguns exemplos
e da segregação independente. São passagens são úteis. No começo de seu artigo, Mendel
que se referem a leis aplicáveis de maneira ge- escreve:
ral à formação e ao desenvolvimento dos hí-
Einige ganz selbständige Formen aus die-
bridos, que o próprio Mendel afirmou estar
sem Geschlechte besitzen constante, leicht
procurando. Essas leis explicavam a reversão
und sicher zu unterscheidende Merkma-
da progênie a um caráter encontrado na ge-
le, und geben bei gegenseitiger Kreuzung
ração parental e mostravam que híbridos não
in ihren Hybriden vollkommen frucht-
poderiam originar espécies genuínas.
bare Nachkommen (Mendel 1866, p. 6,
É claro que essas leis não são formuladas no grifo nosso).
artigo original na mesma linguagem que en-
Na tradução original para a língua inglesa,
contramos nos textos escolares atuais. Mas,
feita por William Bateson em 1901, lemos:
mais importante do que questionar se as leis
estão presentes no artigo original, ou se estão Some thoroughly distinct forms of this
escritas na mesma forma de hoje, é perguntar genus possess characters which are con-
se, ao formular as leis da segregação e da se- stant, and easily and certainly recogniz-
gregação independente, Mendel de fato esta- able, and when their hybrids are mutu-
va se referindo a elementos hereditários que ally crossed they yield perfectly fertile
trariam em si o potencial dos traços, o que progeny (Mendel 1866/1996, p. 3, grifo Podemos traduzir esse trecho
para o português como segue:
hoje chamamos de ‘genes’, e que ele suposta- nosso).*
“Algumas formas inteiramente
mente teria chamado de ‘fatores’. O foco recai claramente sobre o caráter, ex- distintas desse gênero possuem
caracteres que são constantes, e
Encontramos aí aquele que é, provavelmente, presso pelo termo “Merkmale”. Esse uso do
fácil e certamente reconhecíveis
o principal ponto de discórdia entre os his- termo segue por todo o artigo, sugerindo rei- e, quando seus híbridos são
toriadores que estudam Mendel. Há quatro teradamente que Mendel constrói seu argu- mutuamente cruzados, produzem
anos, quando estava escrevendo um artigo mento com um foco sobre caracteres como a progênie perfeitamente fértil”
cor e a forma das sementes. (grifo nosso).
sobre como as contribuições de Mendel são
abordadas em artigos dirigidos a professores, É possível ver no termo “Merkmale”, no en-
deparei-me com tal discórdia e decidi, então, tanto, mais do que um foco sobre fenótipos.
ler cuidadosamente o original de Mendel, em Para Raphael Falk, por exemplo, o termo
sua tradução em língua inglesa, mas cotejan- “Merkmale” não significa somente “carac-
do com o original em alemão, para chegar à terísticas”, ou “caracteres”, mas literalmente
minha própria conclusão a este respeito. “marcadores”, o que o leva a propor que Men-
Minha conclusão foi a de que Mendel não del teria compreendido que os caracteres são
estava tratando de elementos hereditários apenas marcadores externos de unidades he-
subjacentes aos caracteres ao apresentar seus reditárias não observáveis, mas ainda assim
resultados experimentais no artigo de 1866. reais.
Todo o argumento pode ser lido de modo Sinceramente, acho muito difícil acreditar
claro supondo que ele está o tempo todo fa- que Mendel tivesse chegado a tal conjunto
lando dos caracteres em si mesmos. Ou seja, de ideias. Isso significa supor que ele teria
podemos entender o argumento de Mendel formulado uma distinção entre genótipo e
se o lemos como se estivesse sempre se refe- fenótipo quase cinquenta anos antes de Wi-
rindo ao que hoje denominamos fenótipos, lhelm Johannsen tê-la proposto em 1908,

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como uma solução para as dificuldades tra- que Mendel está tratando dos mesmos ele-
zidas pela expressão “caráter unitário” ("unit- mentos. Mas isso não resolve a questão, antes
-character”), que confundia o caráter com o a pressupõe.
potencial para exibir o caráter. Não conside-
Vejamos como o argumento de Mendel
ro crível que uma solução de tal modo de-
prossegue:
pendente de avanços da citologia e da cito-
genética, que tiveram lugar após o tempo de We must therefore regard it as certain
Mendel, pudesse ter ocorrido a ele. that exactly similar factors [Factoren]
Em português: “Devemos
portanto tomar como certo que must be at work also in the production
Uma lição interessante sobre como lidar com
fatores [Factoren] exatamente of the constant forms in the hybrid plants
documentos históricos aparece nesse caso,
similares também devem estar (Mendel 1866/1996, p. 20, grifo nos-
operando na produção das a qual vale a pena destacar aqui: problemas
so).*
formas constantes nas plantas importantes podem resultar das traduções
híbridas” (grifo nosso). que usamos, o que mostra a importância de Em princípio, o uso do termo ‘fator’ parece
examinar os originais. favorecer a leitura em termos de ‘potencial’.
Mas até que ponto isso decorre de estarmos
Para defender a interpretação que oferece
já acostumados a pensar que Mendel, ao es-
para o significado de “Merkmale”, Falk cita a
crever ‘fator’, estaria referindo-se ao que hoje
seguinte passagem de uma tradução inglesa
chamamos ‘genes’? Se nos ativermos à frase
do texto de Mendel:
citada acima, não fica realmente claro se os
In our experience we find everywhere fatores em questão são caracteres ou poten-
confirmation that constant progeny can ciais para exibir caracteres.
be formed only when germinal cells and
Ao ponderar sobre esse problema, imaginei
fertilizing pollen are alike, both endowed
que ajudaria examinar se Mendel usava os
with the potential for creating identi-
termos “Factoren” e “Anlage” com um mes-
cal individuals (Mendel 1866, p. 24, as
mo significado ao longo de todo o texto e se
quoted in Falk, 1986, pp. 135-136, gri-
esse significado poderia ser melhor reconci-
Em português: “Na nossa fo nosso).*
liado com uma leitura relativa ao caráter ou
experiência encontramos em
todo lugar confirmação de que Contudo, se examinamos a primeira tradu- a algum potencial responsável pela herança
progênie constante pode ser ção para o inglês, feita por Bateson, eis o que do caráter. Infelizmente, essas duas palavras
formada apenas quando células encontramos: aparecem somente uma vez em todo o artigo.
germinativas e pólen fertilizante O termo “Merkmale”, contudo, aparece 140
são similares, ambos dotados do So far as experience goes, we find it in ev-
vezes. Perguntei-me, então, se seria consis-
potencial para criar indivíduos ery case confirmed that constant progeny
idênticos” (grifo nosso). tente ler esse termo em todas as suas ocor-
can only be formed when the egg cells and
rências como se fizesse referência ao “caráter
the fertilizing pollen are of like character,
fenotípico” em si mesmo. Minha conclusão
so that both are provided with the mate-
foi a de que, na maioria dos casos, esta era
rial for creating quite similar individuals
uma leitura consistente. Isso foi decisivo para
(Mendel 1866/1996, p. 20, grifo nos-
que eu me convencesse de que Mendel cons-
Em português: “Até onde vai a so).*
experiência, vemos em todos os trói seu argumento, em todo o artigo, com
casos confirmado que progênie No original alemão, o termo é ‘Anlage’, tra- referência aos caracteres, ao fenótipo, sen-
constante só pode ser formada duzido como ‘potencial’ no texto usado por do difícil aceitar a interpretação de Falk de
quando células-ovo e pólen Falk, e como “material” na tradução de Bate- que ele estaria referindo-se a marcadores de
fertilizante são do mesmo caráter, son. Ambas as traduções podem ser admi- unidades hereditárias que carregariam ou se-
de modo que ambos são dotados
do material para criar indivíduos
tidas, de modo que não podemos resolver a riam o potencial para os caracteres. Simples-
bastante similares” (grifo nosso). situação apelando para algum possível erro mente pareceu excessivo interpretar os argu-
de tradução. O problema é que, nesse caso, mentos de Mendel como se apontassem para
a opção pela tradução “potencial” tem conse- unidades ou elementos hereditários a partir
quências importantes, porque sugere a ideia da ocorrência tão limitada de termos como
de elementos hereditários. Contudo, não há “Factoren”, “Anlage”, ou mesmo “Elemente”
razão para necessariamente optar por tal tra- (que ocorre dez vezes no texto), que podem
dução, salvo se já estivermos convencidos de ter vários significados.

Sociedade Brasileira de Genética 279


GENÉTICA E SOCIEDADE

Vale a pena perguntar-se, ainda, por que para os homozigotos dominantes ou reces-
Mendel não teria construído seu argumento sivos, mas somente a e A. Assim, ele parece
de modo mais explicito em termos de ele- representar os caracteres presentes em cada
mentos ou partículas hereditárias se esta era indivíduo, não pares de ‘fatores’ subjacentes
uma ideia com a qual estava lidando. Afinal, aos caracteres. Considere-se, por exemplo, a
todos os cientistas que estavam estudando seguinte passagem:
hereditariedade, na segunda metade do sé-
If A be taken as denoting one of the two
culo XIX, eram bem mais explícitos a este
constant characters, for instance the dom-
respeito, como mostram as gêmulas da teoria
inant, a, the recessive, and Aa the hybrid
da pangênese de Darwin, ou os determinan-
form in which both are conjoined, the ex-
tes de Weismann, ou os pangenes de Hugo
pression
de Vries. Claro, podemos considerar que
Mendel, como eu mesmo argumentei, não A + 2Aa + a
fazia parte da mesma comunidade. Contudo, shows the terms in the series for the prog-
sua formação em Física fornecia-lhe as bases eny of the hybrids of two differentiating
para postular a existência de partículas que characters (Mendel 1866/1996, pp. 13-
pudessem explicar seus resultados. Ainda 14).* Em português: “Se A for
assim, este é um argumento que não apare- entendido como denotando um
No entanto, como acontece com muitos dos dois caracteres constantes,
ce de modo explícito em seu texto, no qual por exemplo, o dominante, a, o
não temos mais do que um ou outro termo aspectos do trabalho de Mendel, há con-
recessivo, e Aa, a forma híbrida
sugestivo, ao qual lançamos significados que trovérsia em torno do que podemos derivar em que ambos estão combinados,
não estão aparentes, ao querermos ler neles dos símbolos por ele empregados. Alguns a expressão
– possivelmente – mais do que eles querem autores argumentam que o tratamento ma- A + 2Aa + a
dizer. Sem dúvida, há trechos no artigo que temático exposto por Mendel sugere que mostra os termos na série para a
parecem sugestivos de uma referência a ele- ele estaria pensando em termos de pares de progênie dos híbridos dos dois
caracteres, empregando, digamos, A em vez caracteres diferenciadores”.
mentos nos gametas que seriam potenciais
para os traços herdados, mas em nenhuma de AA apenas porque, em análise combina-
passagem parece inteiramente claro que é tória, cada elemento é representado somente
desses elementos nos gametas que Mendel uma vez, com exceção dos casos em que se
está tratando. lida com permutações. Contudo, mesmo que
o tratamento matemático seja feito conside-
Outro argumento a favor da ideia de que rando os pares AA e aa, isso não significa
Mendel estaria pensando em elementos he- necessariamente que Mendel estivesse traba-
reditários subjacentes aos caracteres poderia lhando com a ideia de fatores não observá-
basear-se em seu uso dos termos ‘dominan- veis, em vez de caracteres observáveis. Em português: “Daqui em
te’ e ‘recessivo’ (sempre como adjetivos, não diante nesse artigo aqueles
como substantivos correspondentes). Con- Poderíamos seguir apontando trechos ou caracteres que são transmitidos
tudo, é bem claro no texto original que ele aspectos particulares do argumento que inteiros, ou quase sem mudança
usa esses termos para referir-se aos próprios apoiam uma interpretação do texto de Men- na hibridização, e portanto
del que não apela à ideia de elementos here- constituem em si mesmos
caracteres. Por exemplo: os caracteres do híbrido, são
ditários não observáveis. Parece-me, contu-
Henceforth in this paper those charac- denominados os dominantes e,
do, que a melhor maneira de chegar a uma aqueles que se tornam latentes
ters which are transmitted entire, or al- conclusão a esse respeito é evitar um foco no processo, os recessivos”.
most unchanged in the hybridization, apenas sobre passagens isoladas do texto. Em
and therefore in themselves constitute vez disso, é mais proveitoso interpretar todo
the characters of the hybrid, are termed o texto como um único argumento e inferir,
the dominant, and those which become então, se ele é compreensível pensando em
latent in the process recessive (Mendel termos apenas de caracteres fenotípicos, ou
1866/1996, p. 7).* se sua compreensão demanda um papel cen-
É interessante notar um aspecto do texto de tral para a ideia de fatores ou elementos he-
Mendel que sugere a ausência da ideia de fa- reditários. É a partir de uma inferência dessa
tores presentes em formas variantes (domi- natureza, sobretudo, que alcancei a conclu-
nantes e recessivas); adotando uma notação são de que podemos entender o argumento
de Nägeli, ele não usava o símbolo aa e AA sem maiores dificuldades se pensarmos que

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

ele é construído em referência ao fenótipo. dispomos. Isso significa compreender que os


Soma-se a isso o problema – comentado aci- geneticistas clássicos releram as modestas
ma – de atribuir anacronicamente a Mendel “leis da hibridização” de Mendel como um
uma distinção complexa como aquela entre esquema geral de herança, com um alcance
genótipo e fenótipo, quase cinquenta anos muito maior do que elas tinham no trabalho
antes de sua proposição, já no âmbito da ge- original, decorrentes de terem sido chamadas
nética mendeliana. a responder a perguntas distintas daquelas
que o próprio Mendel fez em seus estudos.
É claro que não tenho qualquer pretensão de
que os argumentos aqui elencados poderiam
encerrar uma controvérsia a respeito do as- O CONCEITO DE
sunto que segue na literatura histórica espe- "DOMINANTE" EM MENDEL
cializada. Tudo que pretendo aqui é mostrar O conceito de dominância é outro desenvol-
o raciocínio que me levou à conclusão pesso- vimento posterior a Mendel que tem sido
al, após examinar o artigo de Mendel, de que sistematicamente atribuído ao seu trabalho
seu argumento é construído em termos dos original. A afirmação de que ele pensava que
fenótipos que estão sendo observados nos a dominância era sempre observada é outro
cruzamentos, sem uma referência clara e ex- aspecto do Mendel mítico. É um aspecto im-
plícita a fatores hereditários não observáveis. portante, porque a ideia de que a dominância
Caso esta interpretação seja aceita, isso signi- seria a regra geral na relação entre caracteres
fica que somos nós que lemos retrospectiva, ainda é um problema no ensino de Genéti-
anacronicamente a distinção entre genótipo ca. Esta ideia é frequentemente atribuída a
e fenótipo no artigo de Mendel, atribuindo Mendel e nosso respeito por ele pode estar
ao seu uso esporádico de termos como ‘Fac- associado à prevalência da dominância no
toren’, ‘Anlage’ e ‘Elemente’ mais do que ele ensino de Genética. Contudo, ele jamais as-
queria dizer. Vemos unidades hereditárias sumiu que sempre haveria um caráter domi-
que ele próprio, Mendel, não teria discerni- nante sobre outro.
do. No mínimo, podemos dizer que o caso Embora os sete pares de caracteres escolhi-
a favor do apelo de Mendel a elementos he- dos por Mendel em seu estudo com ervilhas
reditários particulados não é forte, como ad- constituíssem exemplos de dominância com-
mitem até mesmo autores que propõem que pleta, ele tinha consciência de que não era
Mendel tratava de tais elementos, a exemplo um fenômeno universal. No próprio artigo
do próprio Falk. de 1866, ele mencionou um oitavo caráter,
O que tudo isso implica no ensino de Ge- tempo de floração, que exibia dominância
nética? Trata-se de questionar se devemos incompleta. O fato de que Mendel nunca
ou não falar em leis de Mendel? Parece-me usou o substantivo “dominância” ou o verbo
que não. Essas leis foram e continuam sendo correspondente, mas apenas o adjetivo “do-
fundamentais no contexto da genética men- minante”, sugere que ele não entendia a do-
deliana. A questão é que, embora presentes minância como uma propriedade causal. Ele
no trabalho de Mendel, não se encontram nunca afirmou, por exemplo, que um caráter
ali na formulação proposta após a emergên- apareceria nos híbridos porque era dominan-
cia da Genética, com uma referência clara a te e, tampouco, atribuiu o adjetivo ‘dominan-
uma herança particulada baseada em fatores te’ a ‘fatores’ ou ‘elementos’ que seriam poten-
hereditários (que viriam a ser denominados ciais para o desenvolvimento do caráter. Ou
‘genes’). Trata-se, assim, de não atribuir a seja, o conceito ‘mendeliano’ de dominância,
Mendel a formulação encontrada na ciência que tem sido ensinado na ciência escolar,
escolar para as leis que levam seu nome. Em com os problemas associados, não é, no fim
vez disso, ao discorrer sobre Mendel como fi- das contas, um conceito de Mendel.
gura histórica, devemos situá-lo e às suas re- Foi um dos redescobridores de Mendel,
alizações no contexto de sua época (inclusive Hugo de Vries, que atribuiu ao fenômeno da
em termos conceituais), apresentando uma dominância completa o estatuto de lei, tra-
visão mais correta da natureza de seu tra- tando-o como o caso geral na relação entre
balho, à luz das evidências históricas de que caracteres. Contudo, não havia consenso a

Sociedade Brasileira de Genética 281


GENÉTICA E SOCIEDADE

tal respeito na comunidade cientifica da épo- que fica obscurecida é a compreensão da his-
ca. Outro dos redescobridores, Carl Correns, tória e da natureza da ciência. A complexa
afirmou não entender por que de Vries havia história da construção da síntese evolutiva
assumido a dominância como regra geral, mostra claramente que Darwin jamais po-
após encontrar tantas características de ervi- deria ter antecipado o pensamento evolutivo
lhas e de outras plantas nas quais a dominân- em quase um século.
cia não é válida.
As origens do mito de que Darwin poderia
ter feito tal antecipação, caso conhecesse e
O QUE TERIA ACONTECIDO aceitasse as ideias de Mendel, podem ser tra-
SE DARWIN ACEITASSE çadas até o influente livro de William Bate-
A TEORIA DE MENDEL? son Mendel’s principles of heredity: A defense
(1902) em que podemos ler:
Outro mito comum – inclusive entre cien-
tistas – é o de que se Darwin tivesse conhe- Had Mendel’s work come into the hands
cido e aceitado a teoria de Mendel, teria se of Darwin, it is not too much to say that
engajado num trabalho teórico mais amplo, the history of the development of evolu-
que poderia ter ‘adiantado’ a história do pen- tionary philosophy would have been very
samento evolutivo em quase um século. Ou different from that which we have wit-
Em português: “Caso o
seja, o próprio Darwin poderia ter dado lar- nessed (Bateson 1902, p. 39).* trabalho de Mendel tivesse
gos passos na direção da síntese evolutiva de Numa edição posterior, encontramos a mes- chegado às mãos de Darwin,
meados do século XX. ma afirmação (p. 31) e, além dela, outro ar- não é exagero dizer que a
história do desenvolvimento
Esta é mais uma ideia insustentável, que ig- gumento similar: da filosofia evolutiva teria sido
nora uma série de aspectos históricos, alguns I rest easy in the certainty that had Men- muito diferente daquela que nós
deles relativamente óbvios. Primeiro, que testemunhamos”.
del’s paper come into his [Darwin’s]
Darwin teve conhecimento dos estudos de hands, those passages [about the views of
Mendel, o que muitos não sabem. Isso mos- evolutionary progress through blending]
tra que a questão central é se Darwin teria would have been immediately revised
ou não aceitado as ideias de Mendel. Um se- (Bateson 1909, p. 19).* Em português: “Eu fico
gundo aspecto, que é ignorado nessa ideia de tranquilo com a certeza de
que Darwin poderia ter dado um salto histó- Como não deveria causar espanto, a melhor que se o artigo de Mendel
maneira de interpretar essas passagens de tivesse chegado a suas mãos
rico até a síntese evolutiva, é que ele tinha sua [de Darwin], aquelas passagens
própria teoria da herança, a qual exibia uma Bateson é situá-las em seu contexto histó- [sobre as visões do progresso
série de desacordos com as ideias de Mendel rico. Essas afirmações devem ser entendidas evolutivo através da mistura]
sobre hibridização. A teoria da pangênese é no contexto das controvérsias entre Bateson teriam sido imediatamente
e os biometristas, seguidores de Galton, que revisadas”.
perdida de vista e isso leva a uma série de ila-
ções injustificadas sobre a falta de uma teoria insistiam no papel das variações contínuas
da hereditariedade como uma falha na teo- na evolução, em contraste com a ênfase de
rização de Darwin sobre evolução. Note-se Bateson sobre as variações descontínuas.
que, mesmo que a pangênese não tenha se Como os biometristas arregimentavam
mostrado aceitável para os contemporâneos Darwin para seu lado do debate, Bateson
de Darwin, esta é uma situação muito dis- estava tentando, com os argumentos cita-
tinta da suposição de que ele nunca teria lo- dos acima, trazer Darwin para o seu lado,
grado construir uma teoria sobre a herança. a partir de uma leitura comum antes de a
Além disso, ignora-se nesse relato mítico que herança poligênica ter sido proposta, isto
várias das ideias evolutivas que fizeram parte é, a de que o trabalho de Mendel apoiava a
da teoria sintética não se encontram nos ori- importância das variações descontínuas no
ginais de Darwin, a exemplo do papel cen- processo evolutivo.
tral da especiação geográfica e do isolamento O contexto desses debates mostra que o
reprodutivo. Ou seja, mesmo que Darwin fato de que nós, retrospectivamente, vemos
tivesse aceito a explicação de Mendel, não te- mendelismo e darwinismo como teorias
ria necessariamente avançado na direção da complementares é, em si mesmo, uma con-
síntese evolutiva. Nesse contexto, o Mendel sequência da própria síntese evolutiva. Nem
mítico encontra-se com o Darwin mítico. O Darwin, nem os primeiros geneticistas ou os

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

biometristas podiam ver o potencial de sín- de um número finito de elementos ou partí-


tese entre as duas teorias. Inicialmente, a ge- culas hereditárias, mas era um mendeliano no
nética mendeliana apresentou-se como uma sentido de que tratava a herança por meio de
rival da teoria darwinista, na medida em que pares de caracteres independentes e relações
parecia destacar a importância das variações estatísticas na progênie dos híbridos que se
descontínuas, em contraste com a insistência aproximavam da série combinatória. A con-
darwinista no papel de pequenas variações clusão que podemos alcançar é importante
que, se favorecidas pela seleção natural, po- para uma compreensão bem fundamentada
deriam levar, no curso de milhares a milhões sobre o impacto de Mendel sobre a Gené-
de anos, a grandes diferenças entre as espé- tica. O impacto decorreu em parte da ideia
cies. Encontramos na genética mendeliana, de que se encontraria no trabalho de Mendel
inclusive, uma teoria evolutiva rival – a teoria o mecanismo da hereditariedade estabeleci-
da mutação – que pode ser entendida, como do pela genética clássica. Mas este não é um
argumenta o historiador Peter Bowler, como crédito que pode ser atribuído a Mendel sem
uma das responsáveis pelo chamado eclipse grandes problemas. Esse mecanismo parece
do darwinismo, ou seja, pelo fato de que este ter sido lido anacronicamente sobre o artigo
parecia ser, na virada do século XIX para o de 1866. Como discutimos acima, no artigo
XX, uma teoria refutada. não há indicações claras de tal mecanismo e,
mais do que isso, ele admite uma leitura con-
Uma vez considerado o contexto histórico
sistente considerando-se somente o nível do
em que Darwin e as gerações subsequentes
fenótipo. A ideia de um mecanismo da he-
de cientistas trabalharam, até pelo menos a
reditariedade teve impacto devido ao modo
década de 1920, fica claro como é muito di-
como o texto de Mendel foi reinterpretado
fícil sustentar que a aceitação da teoria de
na virada para o século XX.
Mendel por Darwin poderia oferecer a este
último uma espécie de atalho até a síntese Há, contudo, um desenvolvimento clara-
evolutiva. mente exposto no texto de Mendel que teve
grande impacto sobre a ciência posterior
O PAPEL DE MENDEL e ao qual cabe um crédito ao texto original
NA HISTÓRIA DA GENÉTICA sem maiores dúvidas. Encontramos ali um
desenho experimental que tornou possível
Diante de tantas controvérsias a respeito que Mendel observasse as consequências
do trabalho de Mendel, é importante deixar das duas leis pelas quais ele é famoso e, mais
claro que não se trata de colocar em ques- do que isso, que viria a ser uma das princi-
tão o impacto de seu trabalho ou seu papel pais fundações da Genética, quando outros
na história da Genética. Trata-se, antes, de cientistas que estudavam a hereditarieda-
compreender que esse impacto resultou da de passaram a usar uma abordagem similar
refração de seus resultados e argumentos sob àquela que encontrariam em Mendel, após
a lente das perspectivas teóricas da virada do seu trabalho ser redescoberto. A importân-
século XIX para o século XX, quando seu cia desse método experimental ultrapassou,
trabalho foi redescoberto. Não é motivo de além disso, as fronteiras da Genética, na
espanto que tal refração tenha ocorrido, mas medida em que esta disciplina foi uma das
ainda assim isso merece atenção porque nos principais responsáveis pela transformação
leva a ponderar em que medida somos le- da Biologia numa ciência largamente expe-
vados a ler no artigo de Mendel ideias que rimental no século XX. É sobretudo com
somente se tornaram disponíveis vários anos base na presença desse método experimen-
após seus estudos. tal que é inteiramente justo tratar o trabalho
Em seu livro Origins of Mendelism, Robert de Mendel como fundador da Genética. No
Olby se pergunta se Mendel era ou não um entanto, quando se tenta explicar o impacto
“mendeliano” e sua resposta sugere uma ma- desse trabalho, é bem mais comum encon-
neira interessante de entender o impacto de trarmos uma maior ênfase sobre a ideia de
seu trabalho. Para Olby, Mendel não era um fatores hereditários do que sobre o método
mendeliano quanto à suposição da existência experimental por ele desenvolvido.

Sociedade Brasileira de Genética 283


GENÉTICA E SOCIEDADE

MENDEL COMO EXEMPLO somente com Pisum que ele fez experimen-
tos, mas também com outras plantas, como
DE UMA VISÃO IDEALIZADA Hieracium ou Phaseolus, que não replicaram
DOS GRANDES CIENTISTAS seus resultados obtidos com as ervilhas. Não
O exame da literatura histórica, lado a lado há dúvida de que Mendel foi um experimen-
com o trabalho original de Mendel, mostra tador habilidoso: é aos métodos que desen-
que a interpretação dos estudos deste cien- volveu para investigar os padrões obtidos em
tista e de sua contribuição para a ciência é cruzamentos que podemos atribuir seu im-
bastante polêmica. Nas salas de aula de Ci- pacto sobre a Genética nascente. Contudo,
ências, bem como no entendimento da maio- a descrição de seu trabalho científico exagera
ria dos profissionais que se dedicam à Gené- suas habilidades a ponto de obscurecer que,
tica, estas polêmicas estão ausentes. Trata-se como qualquer cientista, ele enfrentou difi-
de um caso de uma dificuldade mais geral no culdades e fez escolhas pouco produtivas no
uso da história da ciência na educação cien- planejamento de seus estudos.A narrativa
tífica, que é o predomínio de uma visão ide- dominante reveste-se de tons moralizantes
alizada dos grandes cientistas, que distorce a que se mostram problemáticos: defrontamo-
maneira como a ciência se desenvolve como -nos com a imagem paradigmática de um
uma atividade social. Como no caso de ou- cientista dedicado a um paciente e meticu-
tros desenvolvimentos científicos, como a loso trabalho quantitativo de contar ervilhas
teoria da seleção natural ou a mecânica clás- por muitas gerações, ao longo de muitos
sica, uma grande realização é explicada como anos, apenas para ser ignorado por seus con-
se fosse o trabalho de um único estudioso, temporâneos, que não teriam sido capazes
e não o produto de toda uma comunidade de apreciar a significância de seu trabalho.
científica. A redescoberta de Mendel torna-se, então, a
estória épica de um homem que ganhou re-
Como um sintoma de um problema mais
conhecimento após ter sido quase esquecido.
geral, a imagem mítica de Mendel tem con-
sequências importantes, até mesmo por ser No entanto, isso é feito à custa de distor-
uma das referências históricas mais comuns ções na descrição de seus experimentos. Por
no ensino de Ciências. Ela obscurece a pro- exemplo, é comum encontrarmos a afirma-
dução do conhecimento sobre a heredita- ção de que seus resultados experimentais
riedade na segunda metade do século XIX teriam mostrado que os sete pares de carac-
como um processo social. Em vez da história teres investigados eram herdados indepen-
complexa que levou à emergência da Gené- dentemente, apoiando, assim, a lei da segre-
tica na virada do século XIX para o século gação independente. Mas, Mendel relata, em
XX, temos somente a visão inadequada de seu artigo de 1866, cruzamentos diíbridos
que uma ciência poderia ter um fundador e triíbridos envolvendo apenas três dos sete
único. Somente uma figura fantástica, atem- caracteres. Quanto aos outros caracteres, ele
poral, dotada de uma suposta genialidade apenas comenta que realizou também cruza-
que o levaria a estar ‘à frente de seu tempo’, mentos nos quais estiveram envolvidos, ten-
poderia cumprir o papel que lhe é reservado do obtido aproximadamente os mesmos re-
nesse mito de origem. Deve-se notar, ainda, sultados. Esses resultados não são, contudo,
que há um claro tom moral nas descrições apresentados. O termo ‘aproximadamente’ é
de Mendel como um tipo ideal de cientista, chave nesse argumento porque, como bem se
imbuído de virtudes monásticas. O mito do sabe, segregação independente não ocorre se
monge trabalhando em isolamento dentro de os genes associados aos traços localizam-se
um mosteiro traz consigo a imagem de um no mesmo cromossomo (a não ser que este-
cientista exemplar, em busca apenas da ver- jam em loci muito distantes) e, como foi esta-
dade, e não de fama ou riqueza. Atributos de belecido um século depois, vários dos carac-
Mendel como sua capacidade de escolher o teres estudados por Mendel estão associados
organismo correto para estudar são destaca- a genes localizados nos mesmos cromosso-
dos, como meio de salientar sua genialidade, mos. Em particular, o relato dos resultados
enquanto se negligencia o fato de que não foi de experimentos de cruzamento diíbridos

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

envolvendo os caracteres comprimento do BOWLER, P. J. The Mendelian revolution: the


caule e formato da vagem seria muito inte- emergence of hereditarian concepts in mod-
ressante de examinar, uma vez que é bastan- ern science and society. Baltimore, MD: The
te provável que eles não se conformariam à Johns Hopkins University Press, 1989.
ideia de segregação independente, por esta- BOWLER, P. J. Evolution: The history of an idea
rem associados a genes que se situam relati- (3rd ed.). Berkeley, CA: University of Cali-
vamente próximos um do outro, no mesmo fornia Press, 2003.
cromossomo. Como no caso dos resultados CORCOS, A.; MONAGHAN, F. Some myths
com Hieracium e Phaseolus, situações que se about Mendel’s experiments. Am. Biol.
desviam da imagem de experimentador ge- Teach., v. 47, p. 233-236, 1985.
nial atribuída a Mendel não merecem a mes- FAIRBANKS, D. J.; RYTTING, B. Mendelian
ma atenção que outros achados. controversies: a botanical and historical re-
A visão idealizada tem marcado o modo view. Am. J. Bot., v. 88, p. 737–752, 2001.
como Mendel é apresentado a cada geração EL-HANI, C. N. Mendel in genetics teaching:
de estudantes, da educação básica à pós- some contributions from history of science
-graduação, mediante o uso de conceitos and articles for teachers. Sci. Educ.-Nether-
superficiais que parecem autorizar-nos a lands, v. 24, p. 173-204, 2015.
pensar em avanços geniais conseguidos por FALK, R. What is a gene? Stud. Hist. Philos. Sci.,
experimentos cruciais. Mas, desse modo, v. 17, p. 133-173, 1986.
perde-se a compreensão da natureza do HARTL, D. L.; OREL, V. What did Gregor
trabalho científico. Retomar a natureza hu- Mendel think he discovered? Genetics, v. 131,
mana e social desse trabalho é fundamental p. 245-253, 1992.
para que um entendimento mais sofisticado
ILTIS, H. Life of Mendel. New York, NY: Haf-
da ciência emerja. Isso passa pelo questio-
ner, 1932/1966.
namento de mitos como o de Mendel (ou
o de Darwin, ou o de Newton, entre tantos KAMPOURAKIS, K. Mendel and the path to
outros). Desse questionamento, não decor- Genetics: portraying science as a social pro-
cess. Sci. Educ.-Netherlands, v. 22, p. 293-324,
re qualquer menosprezo pela contribuição
2013.
de Mendel. Ao contrário, podemos admi-
rar ainda mais seus feitos ao colocarmos MAYR, E. The growth of biological thought: diver-
nossa personagem com a roupagem de um sity, evolution, and inheritance. Cambridge,
homem de seu tempo, capaz de realizações MA: Harvard University Press, 1982.
como a do desenho experimental que elabo- MENDEL. G. Versuche über pflanzen-hybriden.
rou, mas não de antever o que ainda leva- Verhandlungen des Naturforschenden Vereines
ria quatro décadas para ser pensado. Penso in Brunn, v. 4, p. 3-47, 1866. http://www.
que, visto sob essas lentes, Mendel torna-se esp.org/foundations/genetics/classical/gm-
muito mais interessante do que a persona- 65-f.pdf. Accessed 15 December 2012.
gem descrita nas narrativas heroicas centra- MENDEL, G. Experiments in plant hybridization.
das em torno de um suposto monge solitá- New York, NY: Electronic Scholarly Pub-
rio que teria fundado uma disciplina como a lishing Project, 1866/1996. http://www.
Genética com um único estudo. esp.org/foundations/genetics/classical/gm-
65.pdf. Accessed 15 December 2012.

PARA SABER MAIS MONAGHAN, F. V.; CORCOS, A. F. The real


objective of Mendel’s paper. Biol. Philos., v. 5,
ALLCHIN, D. Mending Mendelism. Am. Biol.
p. 267–292, 1990.
Teach., v. 62, p. 633-639, 2000.
OLBY, R. Mendel no Mendelian? Hist. Sci., v. 17,
BIZZO, N.; EL-HANI, C. N. O arranjo curri-
p. 53–72, 1979.
cular do ensino de evolução e as relações en-
tre os trabalhos de Charles Darwin e Gregor OLBY, R. C. (1985). Origins of Mendelism (2nd
Mendel. Filos. Hist. Biol., v. 4, p. 235-257, ed.). Chicago, IL and London: The Univer-
2009. sity of Chicago Press, 1985.
BIZZO, N.; EL-HANI, C. N. Darwin and OREL, V.; HARTL, D. L. Controversies in the
Mendel: Evolution and Genetics. J. Biol. interpretation of Mendel’s discovery. Hist.
Educ., v. 43, p. 108-114, 2009. Philos. Life Sci., v. 16, p. 423–464, 1994.

Sociedade Brasileira de Genética 285


NA SALA DE AULA

Para ensinar
genética
mendeliana:
ervilhas ou
lóbulos de
orelha?

Cléia Rosani Baiotto1,2, Lenira M. N. Sepel2,3, Elgion L. S. Loreto2,4


1
Centro de Ciências da Saúde e Agrárias, Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ), Cruz Alta, RS.
2
Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências, Universidade Federal de Santa Maria, RS.
3
Departamento de Ecologia e Evolução, Universidade Federal de Santa Maria, RS.
4
Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular, Universidade Federal de Santa Maria, PPG Educação em Ciências, RS.

Autor para correspondência: cbaiotto@unicruz.edu.br

286 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O s “padrões de herança mendelianos” constituem


um dos principais assuntos do ensino de Genética
no ensino médio. Compreender o que é uma herança
autossômica dominante ou recessiva é muitas vezes o ponto
de partida da maioria dos professores, 150 anos depois da
publicação dos trabalhos de Mendel. Contudo, a escolha
de exemplos pode ser problemática, visto que vários dos
casos comumente escolhidos para ilustrar a Primeira
Lei de Mendel não representam, de fato, características
monogênicas que se transmitem de forma mendeliana.
Neste trabalho, analisamos exemplos comumente
presentes em livros didáticos e propomos que a escolha dos
casos, a ser feita por cada professor, seja objeto de reflexão
que pondere vantagens e riscos, particularmente quando
os exemplos referem-se a características humanas. Essa
reflexão pode garantir que os exemplos escolhidos sejam
conceitualmente corretos e, ao mesmo tempo, motivadores
para os estudantes.

Sociedade Brasileira de Genética 287


NA SALA DE AULA

A HISTÓRIA DE MENDEL um indivíduo herdava fatores diferentes,


em alguns casos, apenas um dos fatores se-
NO ENSINO DE GENÉTICA ria responsável pelos efeitos visíveis. Os ter-

P artindo do senso comum é fácil cons-


tatar que indivíduos de uma mesma fa-
mília podem ser muito semelhantes; é con-
mos dominante e recessivo surgiram dessas
observações iniciais com os indivíduos que
Mendel chamava de híbridos, que na atua-
senso, por exemplo, que pais transmitem aos lidade chamamos de heterozigotos. Mendel
filhos muitos de seus traços. A percepção da designou como dominantes os fatores que
existência de características hereditárias é eram responsáveis pelas características que
muito antiga e, ao longo do tempo, muitas te- se manifestavam nas plantas “híbridas” (he-
orias tentaram explicar como essas heranças terozigotas) e percebeu com clareza que os
ocorriam. Somente no século XIX, a partir fatores recessivos não desapareciam, embora
da observação cuidadosa dos resultados de não se manifestassem nos heterozigotos.
cruzamentos entre plantas de ervilhas, que
Outro conjunto importante de conclusões
o mistério da transmissão de características
dos trabalhos de Mendel são as associações
hereditárias começou a ser desvendado.
entre características e fatores hereditários
Há 150 anos, em um modesto jardim de um (genes), sendo que cada característica com
mosteiro da cidade de Brno (hoje Repúbli- seus estados alternativos é definida por um
ca Tcheca), Gregor Mendel lançou as bases conjunto de fatores hereditários (hoje cha-
para o entendimento de como as caracte- mados de “alelos") e esses conjuntos são in-
rísticas herdáveis são transmitidas. Mendel dependentes. Essa observação foi a base para
analisou mais de 10.000 plantas de ervilha e o que hoje chamamos de Segunda Lei de
os resultados obtidos por ele trouxeram evi- Mendel ou Lei da Segregação Independente.
dências de que as teorias vigentes na época
A narrativa da história de Mendel pode ser
estavam erradas. Mendel concluiu que era
útil em nossas salas de aula sob vários pontos
impossível explicar a semelhança entre pais
de vista. O destaque para os cruzamentos pla-
e filhos como se fosse uma mistura de líqui-
nejados, para as observações e registros pre-
dos parentais (como o sangue, por exemplo)
cisos, bem como a evolução dos conceitos ao
Ao contrário, os descendentes pareciam her-
longo do século XX, têm potencial para ilus-
dar unidades particuladas ou fatores que se
trar a natureza do conhecimento científico.
mantinham independentes. Mais tarde, esses
Nesse sentido, há vários recursos muito úteis
fatores foram denominados genes.
para apresentar esses aspectos aos alunos,
Acompanhando o resultado de milhares de como por exemplo, os vídeos sobre a histó-
cruzamentos entre ervilhas, Mendel perce- ria de Mendel (https://www.youtube.com/
beu que as características alternativas (por watch?v=0zsJsuYtYR4) e (https://www.
exemplo, produzir ervilhas verdes ou ama- youtube.com/watch?v=tfjDJE4kWhM)
relas) apareciam nas proles em proporções
que eram constantes e típicas para cada tipo A GENÉTICA MENDELIANA
de cruzamento. As análises desses resultados NO SÉCULO XXI
levaram Mendel a concluir que os indivíduos
O século XX assistiu a um crescimento
apresentavam os fatores hereditários sem-
vertiginoso da Genética. Logo nas primei-
pre aos pares, sendo um proveniente da mãe
ras décadas demonstrou-se que as obser-
(planta que forneceu o óvulo) e outro prove-
vações de Mendel eram aplicáveis a outros
niente do pai (planta que forneceu o pólen),
organismos, o que levou à generalização das
sendo que apenas um dos membros estaria
chamadas “Leis de Mendel”. Os estudos de
presente no pólen ou no óvulo. Essa observa-
células em divisão tornaram evidente que os
ção atualmente é ensinada sob a designação
genes estão localizados nos cromossomos.
de Primeira Lei de Mendel.
A genética molecular desenvolveu-se com a
As observações também permitiram que identificação da estrutura do DNA e a com-
Mendel detectasse a existência de interação preensão do fluxo da informação nas célu-
entre os fatores hereditários, pois quando las. Em poucas décadas, aprendemos como

288 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

genes funcionam ao nível molecular e sur- Nos livros didáticos, diferentes exemplos são
giram as primeiras aplicações práticas des- utilizados, mas alguns são recorrentes: as
ses conhecimentos, com o desenvolvimento próprias ervilhas de Mendel, a cor dos olhos
de tecnologias baseadas na manipulação de e forma das asas das moscas das frutas, for-
DNA em diversas áreas, como na produção ma e cor de abóboras, os chifres em bovinos e
de organismos transgênicos, no desenvolvi- também várias características humanas como
mento de testes diagnósticos para doenças, o lóbulo da orelha ou a capacidade de enrolar
produção de fármacos, na identificação de a língua, o albinismo, entre outras. Em ge-
indivíduos e até mesmo na determinação de ral, o professor dispõe de tempo limitado e
paternidade. A prevalência dessas aplicações apenas alguns exemplos são desenvolvidos.
no nosso cotidiano é mais uma justificativa A escolha de um ou outro conjunto de expli-
para que as Leis de Mendel, ponto de partida cações e exercícios poderá ter consequências
de todo esse conhecimento, sejam ensinadas diversas e importantes (Figura 1). Ao esco-
na escola. lher os exemplos históricos como as caracte-
rísticas das ervilhas estudadas por Mendel,
A NECESSIDADE DE ou os mutantes de cor de olho de Drosophila,
CONTEXTUALIZAR o professor terá oportunidade de abordar
Em consonância com os documentos ofi- aspectos da história e desenvolvimento das
ciais curriculares e com as concepções mais descobertas científicas. Além disso, esses
contemporâneas de educação, os professores exemplos são conceitualmente corretos, ou
de Genética buscam contextualizar o ensino seja, abordam características com o exato pa-
desses conteúdos. A partir daí, surge a ques- drão de herança mendeliana, que é o que se
tão: Que exemplos usar? pretende ensinar.

Figura 1.
Vantagens e riscos de diferentes
de exemplos comumente
utilizados no ensino das Leis de
Mendel.

Sociedade Brasileira de Genética 289


NA SALA DE AULA

No entanto, o apelo histórico e a exatidão nos presentes nos oito livros aprovados no
científica não auxiliam na superação do dis- PLND de 2012 e disponíveis nas escolas.
tanciamento da realidade do aluno. Por mais A verificação desses caracteres no Banco de
bem estruturados que sejam os exemplos, Dados OMIM (Online Mendelian Inheritan-
muitas vezes ervilhas e moscas não desper- ce in Man, http://www.ncbi.nlm.nih.gov/
tarão interesse, o que pode ser um problema. omim), da Biblioteca Nacional de Medicina
Dois tipos de questões que surgem em sala dos EUA que tem por objetivo disponibili-
de aula representam bem essa situação: “Para zar informações atualizadas para a comuni-
que eu preciso saber de cor de olho de mos- dade científica na área biomédica, permitiu
ca?” “E a cor do olho da gente?” detectar que características como as citadas
acima não são exemplos exatos de herança
Para superar esse desinteresse e aproximar
mendeliana simples, monogênica; trata-se,
os exemplos do cotidiano dos alunos, uma
de fato, de herança poligênica ou multifa-
possibilidade é tratar das características de
torial, e que são imprecisamente utilizadas
animais domésticos que tenham padrões de
como exemplos de padrões da primeira e se-
herança desejados. Outra possibilidade é
gunda lei de Mendel.
abordar características humanas, pois assim
o próprio indivíduo, seus colegas e familiares Analisamos as descrições dos livros didáti-
passariam a ser “amostras observáveis”. Essa cos para cada uma destas características e as
última possibilidade costuma gerar um en- classificamos em categorias: erros conceitu-
volvimento muito maior dos estudantes, mas ais, imprecisão (situação em que o autor des-
o professor tem de estar ciente dos proble- creve um padrão de herança e utiliza no livro
mas que podem surgir quando são usadas um exemplo que não corresponde a ele), des-
características humanas. crição de acordo com a referência e situações
em que o autor não descreve o caráter. Os
CONTEXTUALIZAÇÃO principais resultados dessa análise estão des-
NOS LIVROS DE GENÉTICA tacados na Figura 2.
A cor dos olhos, a inserção do lóbulo da ore- Nos casos de imprecisão em relação à descri-
lha, a cor da pele e a capacidade de enrolar ção, poucos autores fazem menção ao fato de
a língua são exemplos de caracteres huma- estar trabalhando desta forma devido à sim-

Figura 2.
Como são descritas algumas
características humanas nos
livros didáticos do PNLD 2012.
No canto superior esquerdo
a percentagem de livros com
imprecisões, erros conceituais,
que descrevem corretamente ou
que simplesmente não tratam
de cada caráter.

290 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

plificação. É claro que a transposição didática terística devem ter sempre filhos com lóbulo
realizada pelo professor e que leva geralmen- de orelha preso, o que não é exato. Para sa-
te à simplificação é necessária para a abor- ber mais sobre a inadequação do exemplo do
dagem do tema na Educação Básica, mas no lóbulo da orelha ou outros caracteres huma-
caso desses exemplos, pode criar situações nos, sugere-se consultar “Mitos de Genética
que favorecem o surgimento de concepções Humana” em http://udel.edu/~mcdonald/
errôneas. Cabe ao professor ficar atento a es- mythearlobe.html.
ses exemplos, pois eles não estão totalmente
Usar exemplos simplificados cria a necessi-
errados, mas geram lacunas de informações
dade de aprofundamento e explicações adi-
que podem ser erroneamente interpretadas
cionais que justifiquem as constatações que
pelos alunos.
os estudantes farão em suas próprias famí-
O uso desses exemplos pode implicar em er- lias, e que podem estar em desacordo com o
ros conceituais e também ter consequências padrão que foi inicialmente apresentado.
diretas na vida dos alunos, podendo gerar
problemas associados a questões de familia- COMO EVITAR
ridade, grau de parentesco, entre outros (há A ARMADILHA DA
casos, por exemplo, de alunos que descon- SIMPLIFICAÇÃO EXCESSIVA
fiam de sua filiação por conta da análise do
padrão de herança de certas características Uma possibilidade de superar os problemas
em suas famílias). Pode também levar ao associados com o uso de exemplos simpli-
descrédito na informação científica como um ficados é fazer uma abordagem em duas
todo, se o aluno perceber que há inadequa- etapas. Primeiramente as características são
ção do que ele observa em sua família com tratadas como sendo de herança simples e,
as previsões decorrentes das informações num segundo momento, elas são retoma-
simplificadas. Um bom exemplo é a ideia de das, com a apresentação do padrão de he-
que o lóbulo de orelha preso é recessivo; se rança mais complexo e correto (Figura 3).
isso é verdadeiro, então pais com essa carac- A característica cor dos olhos, por exemplo,

Figura 3.
Sugestão de abordagem de
exemplos de características
humanas, primeiramente
apresentando-as como
herança mendeliana simples
e depois avançando para os
padrões complexos de herança
(simplificação).

Sociedade Brasileira de Genética 291


NA SALA DE AULA

pode ser apresentada inicialmente como -se satisfeito com o argumento simplificado
monogênica (alelo para cor azul recessivo e e acabar não aderindo à segunda parte da
para cor castanha, dominante). Posterior- abordagem.
mente, a existência de uma gama maior de
Na perspectiva de trabalhar com caracteres
colorações deverá ser apresentada e o pro-
humanos herdados, é possível identificar
fessor poderá discutir com a turma sobre a
primeiro características unicamente mo-
determinação poligênica dessa característi-
nogênicas, descontínuas, numa perspectiva
ca. Do mesmo modo, a capacidade de en-
histórica e científica, mas ao mesmo tempo
rolar a língua pode ser apresentada como
contextualizada em exemplos próximos da
autossômica, dominante para depois o pa-
realidade do aluno (Figura 4). Em seguida
drão de herança multifatorial ser discutido.
desenvolver os caracteres humanos comple-
Além de motivar os alunos por tratar-se de
xos herdados dentro de suas especificações
características que eles próprios possuem,
conceituais. Cabe destacar que para traba-
essa abordagem permite tratar dos padrões
lhar deste modo, o professor precisa estar
mendelianos simples e dos padrões mais
atualizado e utilizar referenciais confiáveis.
complexos, ampliando os estudos.
Desta forma, não é necessária a desconstru-
Na execução dessa proposta é essencial que o ção de conceitos, mas exige, fundamental-
professor se mantenha atento para duas situ- mente, o empenho em identificar exemplos
ações indesejadas: a) o aluno pode construir corretos para cada padrão de herança e, ao
uma concepção equivocada de que os pa- mesmo tempo, que garantam a contextuali-
drões mendelianos de herança não existam, zação necessária para estimular e sustentar
pelo fato de que houve a ‘desconstrução’ das o processo de aprendizagem em Genética no
explicações simples; b) o aluno pode sentir- ensino médio.

Figura 4.
Abordagem que respeita
a sequência histórica e a
necessidade de exemplos
conceitualmente corretos.

292 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Entretanto, é possível, que em algum mo- CONSIDERAÇÕES FINAIS


mento o professor depare com situações
inusitadas que levem o aluno a duvidar de Ainda é importante, 150 anos depois, ensi-
sua paternidade. O professor que optar por nar os padrões de herança descobertos por
tratar desses temas, deve ter mais que conhe- Mendel. Ao escolher exemplos para isso, o
cimento, deve ter sensibilidade e maturidade professor pode ver-se em uma encruzilhada:
para abordar de forma séria e responsável utilizar casos conceitualmente corretos ou
tais questões. Caso não se sinta preparado ou aproximar-se do contexto dos alunos, ainda
seguro para tal, sugere-se que evite o uso de que tenha que fazer simplificações? Essa é
exemplos humanos. Neste caso, uma boa al- uma reflexão que precisa ser feita por quem
ternativa seria escolher algumas característi- ensina Genética.
cas de animais domésticos, motivadoras tam- Cabe ao professor saber ler o seu contexto
bém, ou o uso de modelos hipotéticos, como para escolher a proposta mais apropriada
“Scoiso” em forma do jogo virtual, disponí- ao ambiente (tipo de escola, localização,
vel em http://www.ib.usp.br/microgene/ perfil do aluno), aos processos utilizados
index.php?pagina=atividades ou construção (estratégias didáticas, ou modo como apre-
de modelos como os descritos na atividade senta seus conceitos) e aos condicionantes
“Filho de Scoiso, scoisinho é!” que combi- que determinam sua prática docente (por
nam atividade lúdica com noções básicas de exemplo, número de horas de aula dispo-
padrões de herança, disponíveis em http:// níveis para o assunto). Qualquer que seja
genoma.ib.usp.br/educacao-e-difusao/ma- o caminho escolhido, é importante que o
teriais-didaticos/atividades-interativas, ela- professor seja crítico e saiba as limitações
borados pelo Instituto de Biociências/USP. de suas escolhas.

Sociedade Brasileira de Genética 293


NA SALA DE AULA

Registros escritos do
conhecimento mútuo
entre Gregor Mendel
e Charles Darwin:
uma proposta
para trabalho
em sala de aula
com história
contrafactual da ciência
e didática invisível

Nelio Bizzo1, Paulo T. Sano2, Paulo H. Nico Monteiro3


1
Faculdade de Educação, EDEVO, Universidade de São Paulo.
2
Instituto de Biociências, EDEVO, Universidade de São Paulo.
3
Instituto Butantan, EDEVO, Universidade de São Paulo.

Autor para correspondência: bizzo@usp.br

294 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

C harles Darwin conhecia os trabalhos de Gregor Mendel? Se sim, haveria


algum tipo de influência no desenvolvimento de seu pensamento? Parece
haver um entendimento generalizado, a partir das afirmações de William Bateson,
de que o primeiro desconhecia os trabalhos do segundo e que, se tivesse conhecido,
possivelmente suas conclusões seriam outras. Esse“consenso” acabou por influenciar
os currículos escolares e as propostas para o ensino de Biologia, tanto na educação
básica quanto no ensino superior. No entanto, existem fortes evidências que
refutam essa ideia. A partir de uma abordagem que utiliza a história contrafactual
da ciência, e a “didática invisível”, baseada principalmente no Teatro do Oprimido
de Augusto Boal, o presente texto apresenta uma possibilidade de trabalho em
sala de aula. A partir de fatos históricos pode-se criar condições para que os alunos
discutam ativamente o estatuto de verdade do conhecimento científico, desenvolvam
habilidades de investigação, compreendam o método científico e sejam capazes de
posicionar-se criticamente frente a temas controversos.

Sociedade Brasileira de Genética 295


NA SALA DE AULA

296 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

“Highly Esteemed Sir,


I hope this meets you in good standing of the best of health. I am sorry to know
that your days as experimenter have suffered difficulties similar to those I myself
had as a student. Just recently I read your note in the Gardeners’ Chronicle on
Knight’s peas, but I could not answer it. After performing experiments on hybrid-
ization I fear we have different understandings of what has been written on the
subject, not only by Knight, but especially by the famous Gärtner in his award-
winning work “Bastarderzeugung im Pflanzenreiche” - [Versuche Beobachtun-
gen und über die Bastarderzeugung im Pflanzenreiche.]. My results with pure
breeds of peas indicate that (space) [transmutation] is only apparent, because the
(space) [Umwandlung] is due to different combinations of factors, so that one can
revert to the original stock, returning to the original creation. I shall follow your
suggestion and perform experiments with wild species, as mentioned in chapter
Darwin publicara em novembro II, with species of the genus Hieracium which is mentioned there. I am in contact
de 1862 um pequeno artigo na
revista Gardeners’ Chronicle and with a great expert in Munich, who provided me seeds from different places of
Agricultural Gazette perguntando Europe. I hope to get the very same (...)”
se alguém, versado em ervilhas,
poderia esclarecer a origem de
duas variedades utilizadas por
Thomas Andrew Knight (1759-
1838).
“Altamente Estimado Senhor,

Karl Friedrich von Gärtner


Espero que esta o encontre em pleno gozo do melhor de sua saúde. Fico tris-
(1772–1850). Botânico alemão, te em saber que seus dias como experimentador têm padecido de dificuldades
que ganhara um prêmio com a semelhantes às que eu mesmo tive quando estudante. Só há pouco tempo li
obra mencionada.
sua nota no Gardeners’ Chronicle sobre as ervilhas de Knight, mas não saberia
responder. Após realizar experimentos sobre hibridização, eu temo que tenha-
Referência ao trabalho “Versuche mos compreensões diferentes sobre o que já se escreveu a respeito, não ape-
und Beobachtungen über
die Bastarderzeugung im
nas por Knight, mas em especial pelo famoso Gärtner, em sua premiada obra
Pflanzenreiche,” (Experimentos ­“Bastarderzeugung im Pflanzenreiche” Meus resultados com linhagens pu-
e observações sobre a geração ras de ervilhas indicam que a (espaço) [transmutation] é apenas aparente,
de híbridos no reino vegetal).
pois a (espaço) [Umwandlung] é devida a combinações diferentes dos fatores,
Termo em inglês que de modo que é possível reverter as linhagens originais, retornando à criação
designava o que chamamos hoje
“evolução”. Darwin utilizou o original. Seguirei sua sugestão e realizarei agora experimentos com espécies
termo na primeira edição do selvagens, como mencionado no ch II, com espécies do gênero Hieracium, lá
“Origem das Espécies” com esse
sentido. mencionadas. Estou em contato com um grande especialista de Munique, que
me forneceu sementes de vários locais da Europa, com as quais espero obter
No capítulo II do “Origin...”
Darwin menciona o gênero
exatamente os mesmos (...)”
Hieracium como exemplo de
polimorfismo conducente à
especiação, sem ação da seleção
natural.

Termo em alemão que


designava transformação de uma
espécie em outra por “fertilização
artificial” (hibridização), como
descrito no trabalho de Gärtner,
sem configurar “transmutação”.

Sociedade Brasileira de Genética 297


NA SALA DE AULA

A s relações entre Charles Darwin (1809-


1882) e o monge agostiniano Gregor
Mendel (1822-1884) são objeto de polêmica,
tercâmbio com a maioria das academias
da Europa, inclusive a Sociedade Lineana
de Londres, onde o trabalho de Darwin e
desde o primeiro livro publicado sobre as leis Wallace foi lido. Isso significa que, a princí-
mendelianas de herança, há mais de um sé- pio, o trabalho de Mendel esteve ao alcance
culo. De fato, William Bateson (1861-1926) dos maiores cientistas da época. Portanto, de
ao publicar seu famoso “Mendel’s Principles um lado, nada impediria que Darwin hou-
of Heredity”, em 1909, afirmou: vesse conhecido o trabalho de Mendel, e, de
outro, seria impossível que Mendel não co-
“Se o trabalho de Mendel tivesse chegado
nhecesse o trabalho de Darwin.
às mãos de Darwin, não é exagero dizer
que a história do desenvolvimento da filo- É bem sabida a existência da cópia pessoal
sofia evolucionária teria sido diferente da- da tradução alemã do livro “Origem das Es-
quilo que testemunhamos.” (BATESON, pécies” (doravante “Origin...”) que Gregor
1909[1902], p. 39). Mendel possuía. No entanto, persiste razo-
ável desinformação e nenhum consenso não
Em outro trecho, escreveu que se Darwin ti-
apenas sobre os contatos entre os dois pen-
vesse tido notícia dos resultados de Mendel,
sadores, mas principalmente sobre a compa-
ele teria “revisto imediatamente” sua visão de
tibilidade de suas perspectivas teóricas.
herança (p. 19). Assim, Bateson convenceu
diversas gerações de biólogos e historiadores Uma das consequências mais danosas dessa
de que Darwin jamais ouvira falar de Men- situação nebulosa recai sobre os currículos
del e suas ideias. Os biógrafos de Mendel escolares que se vinculam a uma interpre-
fiaram-se no relato de Bateson, por exemplo: tação alinhada com o testemunho de Bate-
son. Dessa forma, tais currículos assumem
“Nós aprendemos, por intermédio de Ba-
a plena compatibilidade entre os dois siste-
teson, que Francis Darwin, o botânico,
mas, e procuram, então, antecipar a base de
um dos filhos de Charles Darwin, não en-
genética mendeliana aos estudos evolutivos,
controu uma cópia do trabalho de Mendel
deslocando-os para momentos terminais da
em sua biblioteca, apesar de ela ter ficado
jornada curricular (TIDON, LEWON-
intacta após sua morte. Parece indubitá-
TIN, 2004). Essa decisão tem uma série de
vel, portanto, que Darwin nada sabia a
consequências para a estruturação dos estu-
respeito do trabalho de Mendel.” [ILTIS,
dos na educação básica, com reflexos na edu-
1965(1932), p. 206].
cação superior.
Transcorridos mais de 100 anos, a versão de
Neste artigo, propomos uma atividade em
Bateson é amplamente aceita por biólogos,
sala de aula para estudantes de nível superior,
como se constata na afirmação: “Mendel cla-
motivando-os a examinarem uma carta que
ramente conhecia Darwin em detalhe, mas
estaria à venda em um antiquário próximo
Darwin nada sabia de Mendel, nem teve
uma oportunidade razoável para conhecer
seu trabalho.” (FAIRBANKS, 2008, p. 310).
Assim, suponhamos que, em um leilão, um
antiquário de Budapeste oferecesse uma car-
ta enviada por Mendel a Darwin e suposta-
mente resgatada da Biblioteca de Dresden
durante a II Guerra Mundial. Nenhum cien-
tista ou historiador moderadamente bem
informado a tomaria por verdadeira, ainda
mais se tivesse o aspecto de um rascunho
descartado. Esse achado, portanto, dificil-
mente encontraria comprador até os dias
atuais.
A sociedade científica na qual os trabalhos
de Mendel foram publicados mantinha in-

298 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

da cidade onde Mendel viveu. Os estudantes ativo dos alunos frente a temas polêmicos.
devem decidir sobre a suposta autenticidade Nossos resultados indicam ser esse um cami-
da carta, baseando-se em elementos de his- nho bastante interessante para desenvolver
tória da ciência. A proposta é inspirada no diversos temas em sala de aula. Com a pre-
trabalho do dramaturgo brasileiro Augusto sente proposta, pretendemos contribuir para
Boal (1931-2009), ancorada no conjunto de a História Contrafactual da Ciência aplicada
estratégias conhecidas como “Teatro Invisí- ao ensino da ciência, explorando possibili-
vel”, um dos desdobramentos da experiência dades alternativas para as discussões sobre
de seu “Teatro do Oprimido”. as relações entre os trabalhos de Darwin e
Mendel. Com isso, pretende-se que sejam
Inspirado na pedagogia de Paulo Freire
pensadas novas possibilidades para o arranjo
(1929-1997), Boal preconizava a ação como
curricular da Biologia na educação básica e
forma de transformação, baseada na partici-
superior, e que não se deixe a evolução como
pação das camadas sociais excluídas da vida
a última parte a abordar na Biologia, ao mes-
cultural das cidades. Além do acesso das
mo tempo em que se propõe uma discussão
classes populares, Boal criava situações nas
epistemológica sobre o estatuto da verdade
quais a plateia ganhava voz ativa na encena-
em ciência.
ção e dela participava ativamente, discutindo
questões da realidade social e política do mo- A partir desse pressuposto, a carta descrita
mento. acima poderia ser utilizada como desencade-
ador de uma atividade que tivesse por objeti-
Quando essas encenações foram proibidas
vo discutir sua autenticidade. Utilizando os
nos teatros, no período ditatorial argentino
argumentos favoráveis e contrários listados
da década de 1970, as montagens passaram
na página seguinte (300), o professor poderia
a ser feitas sem cenário, substituído pelo
propor um desafio aos alunos (individual-
próprio local onde a ação estava ambientada.
mente ou divididos em grupo) de pesquisa-
Assim, encenações do cotidiano passaram a
rem e sistematizarem evidências de que Da-
ser realizadas em vagões de trem e pontos de
rwin não conhecia os trabalhos de Mendel,
ônibus, a partir de roteiro pré-estabelecido,
o que reforçaria o entendimento originário
fazendo com que atores e espectadores tives-
dos trabalhos de Bateson, ou, contrariamen-
sem igual participação, a partir de discussões
te, buscariam evidências de que os trabalhos
sobre o custo e a qualidade do serviço de
eram conhecidos mutuamente, o que traria
transporte público, por exemplo, visando a
uma nova perspectiva a essa questão.
transformação da realidade:
Mais do que chegar a uma conclusão defi-
“Essas transformações podem ser busca-
nitiva sobre a autenticidade, espera-se com
das também em ações ensaiadas, realiza-
essa atividade que os alunos sejam capazes
das teatralmente, como teatro que é, mas
de discutir aspectos relacionados à verossi-
de forma não revelada, ao público ocasio-
milhança do documento (é possível que ele
nal de transeuntes, não conscientes de sua
tenha existido?), ao estatuto do conhecimen-
condição de espectadores. (...) Atores e es-
to científico e seu caráter temporário, ao mé-
pectadores encontram-se no mesmo nível
todo científico, à pesquisa em fontes históri-
de diálogo e de poder, não existe antago-
cas, dentre outros.
nismo entre sala e a cena, existe sobrepo-
sição. Esse é o Teatro Invisível.” [BOAL, O caráter “invisível” da proposta, está no
2013(1977)]. fato de que a discussão da autenticidade ou
não da carta é apenas o pretexto para o de-
Para levar esse princípio para a sala de aula,
senvolvimento de habilidades mais amplas.
situações verossímeis e com forte apelo emo-
Em outras palavras, não tem um fim em si
cional são apresentadas aos alunos, criando
mesmo. Nesse sentido, o professor deve ter
as condições necessárias para provocar rea-
clareza desses objetivos educacionais que
ções de posicionamento pessoal e coletivo.
extrapolam o objeto visível, ou seja, a carta,
Temos desenvolvido diversas situações a par-
para aspectos mais amplos do processo ensi-
tir dessa proposta, denominando-as “Didáti-
no-aprendizagem.
ca Invisível”, estimulando o posicionamento

Sociedade Brasileira de Genética 299


NA SALA DE AULA

Autenticidade da carta: evidências de sua falsidade


I.F- A caligrafia de Gregor Mendel é bem conhecida, inclusive em cartas para o botânico suíço Carl Nägeli
(1817-1891) disponíveis na internet. Não há dúvidas de que se trate de caligrafia diversa;
II.F- Mendel escrevia em alemão, e não em inglês, e Darwin lia alemão, ainda que com dificuldade. Darwin
nunca mencionou tal carta;
III.F- Não há data, destinatário (apenas uma alusão a um “altamente estimado senhor”), não há certeza de
quem seja o remetente, e aparentemente é apenas a primeira folha. A “carta”, se verdadeira, pode nunca
ter sido remetida;
IV.F- O fato de ter sido picotada confere ainda menor credibilidade à carta, pois, mesmo se verdadeira, pode ser
simplesmente uma versão descartada e jamais remetida;
V.F- A origem da carta como sendo a biblioteca de Dresden não pode ser confirmada, pois ela (junto com toda
a cidade) foi pesadamente bombardeada durante a Segunda Guerra Mundial. Diversas falsificações foram
produzidas tendo como suposta origem a biblioteca de Dresden;
VI.F- Não existem evidências de que Darwin tenha tido conhecimento do trabalho de Mendel, seja com ervi-
lhas, feijão ou Hieracium, havendo inclusive testemunhos de que Mendel era totalmente desconhecido
de Darwin, não apenas por Bateson, mas também por seu filho, Francis Darwin, que auxiliou o pai em
experimentos de botânica.

Autenticidade da carta: evidências de sua veracidade


I.V- A carta pode ter sido escrita por alguém que o auxiliava na tradução, para que Mendel escrevesse de pró-
prio punho a carta em inglês, língua que ele não dominava; uma rasura confirma essa hipótese;
II.V- Justamente por Mendel não dominar o inglês, a carta é um rascunho escrito por alguém que dominava a
língua inglesa. Há termos técnicos de difícil tradução, que foram deixados entre parênteses, em alemão,
indicando que havia uma outra versão, escrita possivelmente em alemão. Darwin utilizou o termo “trans-
mutation” no “Origem das Espécies”, e Mendel adotou o termo, presente na tradução alemã que possuía.
Escrever em inglês seria uma forma de demonstrar respeito a uma pessoa muito famosa.
III.V- Mendel colocava a data ao lado de sua assinatura, ao final da carta”, e a segunda folha, de fato, pode ter
sido perdida; cartas a Nägeli também começam com a expressão “altamente estimado senhor”; Mendel
costumava utilizar o nome abreviado do trabalho de Gärtner, inclusive em sua publicação de 1866; há
detalhes que coincidem com os dois personagens;
IV.V- Em tempos de guerra, como era o caso, o papel usado não era considerado lixo; picotar um rascunho era
forma usual de reutilizá-lo para outras finalidades;
V.F- A biblioteca de Dresden tinha grande acervo de manuscritos raros e antigos e seu bombardeio espalhou
seu conteúdo pelas ruínas da cidade. Muito material foi recolhido e negociado durante a guerra e depois
dela.
VI.F- Existem seguras evidências de que Darwin tinha conhecimento do trabalho de Mendel, e que tenha até
mesmo solicitado a ajuda de seu filho, Francis, para refazer alguns de seus experimentos, ao ver indícios
de imperícia na realização de cruzamentos, em especial com feijão de flores escarlate, publicados junto
com o trabalho com as ervilhas. A carta pode, de fato, não ter sido remetida, mas testemunharia a visão
oposta dos dois cientistas.

300 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

DOMESTICAÇÃO: por vezes (como eu encontrei com pom-


bos) extremamente uniforme, e tudo pa-
ESPÉCIES ESTÁVEIS rece muito simples; mas quando esses hí-
OU EM FORMAÇÃO? bridos são cruzados entre si por diversas
O interesse de Mendel pela questão da evo- gerações, dificilmente encontraremos dois
lução é admitido amplamente hoje em dia, descendentes iguais, e então a extrema
mesmo não existindo consenso sobre as dificuldade, ou mesmo a impossibilidade,
opiniões do religioso austríaco em relação da tarefa se torna aparente. (DARWIN,
a Charles Darwin (FAIRBANKS, RYT- 1859, p. 20)
TING, 2008). É certo que ele operava no Ao ler esse trecho com o planejamento dos
contexto dos hibridistas de seu tempo, e experimentos de Mendel em mente, é sur-
acreditava ter selecionado um grupo de es- preendente o fato de que as diversas gera-
pécies do gênero Pisum – P. quadratum P. ções dos híbridos podem ser explicadas por
saccharatum, e P. umbellatum – almejando simples combinações matemáticas, sem a “ex-
generalizar suas conclusões para muito além trema dificuldade, ou mesmo a impossibili-
delas. É verdade que ele chegou a discutir se dade” de prever os resultados, como pensava
essas três espécies eram apenas variedades de ­Darwin. Essa “impossibilidade” era, para o
P. sativum, mas concluía que isso não modi- cientista inglês, uma indicação de que a va-
ficaria em nada o problema mais geral que riação progredia indefinidamente, separando
investigava. Escreveu ele: cada vez mais a descendência a ponto de for-
As posições que lhes possam ser dadas mar novas espécies. Mas, para Mendel, não
num sistema de classificação apresentam, havia “separação”, havia apenas uma expan-
no entanto, pouquíssima importância são das combinações matemáticas. Afinal,
para os fins das experiências em questão. ele também observava as manchas solares e
Até agora, não foi possível traçar um limi- conhecia o trabalho de Galileu, famoso pela
te preciso entre as espécies e as variedades, frase: “A matemática é o alfabeto com o qual
assim como entre os híbridos das espécies Deus escreveu o universo”. Escreveu Mendel:
e os das variedades. (Mendel, 1866, apud Todas as combinações constantes, possí-
Freire-Maia, 1995, p.56) veis em Pisum pela combinação dos já ci-
Nisso, concordava inteiramente com a dis- tados 7 caracteres diferenciais, foram real-
cussão realizada por Darwin, nos capítulos I mente obtidas por repetidos cruzamentos.
e II de seu livro “Origem das Espécies”. Não Seu número é de 27=128. Desse modo,
havia dúvidas de que as variedades de Pisum damos uma prova palpável de que os ca-
eram domesticadas, e que poderiam se man- racteres constantes que aparecem nas
ter puras por autopolinização. Os hibridi- diversas variedades de um grupo de
zadores dessa época discutiam, justamente, plantas podem ser obtidos em todas
se as variedades desenvolvidas pela ação hu- as combinações possíveis de acordo
mana eram pequenos desvios do padrão da com as leis de combinação, através
espécie original ou se, após muitas gerações, de repetidas fertilizações artificiais.
passariam a constituir espécies diferentes, (Mendel, 1866, apud Freire-Maia,
mesmo reconhecendo a dificuldade de traçar 1995, p.72, ênfase no original)
De acordo com Fairbanks and
Rytting, 2008 (p. 292) as
uma linha divisória objetiva entre espécies e Mendel termina seu trabalho de 1866 dis-
traduções inglesas adotaram variedades. cutindo justamente a possibilidade de uma
a tradução “evolution” e “história do desenvolvimento” (“Entwi-
Darwin admitia que a distinção entre espé-
“evolutionary history”
cies e variedades fosse algo subjetivo, mas cklungsgeschichte”), no sentido de aper-
expressou certa perplexidade quando rela- feiçoamento (“Fortbildung”) e transfor-
tou os resultados sobre o que ocorreu nos mação ou conversão (“Umwandlung”) de
experimentos de hibridização com pombos espécies, ao retomar as conclusões de outros
domésticos: hibridizadores, e cita J. G. Kölreuter (1733-
1806) e Karl Friedrich von Gärtner (1772-
A descendência do primeiro cruzamento 1850), autores muito estudados também por
entre duas linhagens puras é possível e Darwin. Mendel apresenta uma explicação

Sociedade Brasileira de Genética 301


NA SALA DE AULA

baseada em análise combinatória para expli- poderia explicar os resultados, como, de fato,
car a razão de parecer impossível reverter às confirmou-se com o conhecido trabalho do
espécies iniciais após várias gerações depois sueco Nils Herman Nilsson-Ehle (1873-
da hibridização, mencionando as combina- 1949). Trabalhando em Lund, em 1909, ele
ções matemáticas necessárias, que aponta- demonstrou que a “mera hipótese”, como a
riam para números enormes, mesmo con- havia chamado Mendel, era mesmo válida,
siderando sete pares de caracteres (ou seja, fundando o estudo da herança quantitativa
em experimentos de heptahibridismo). Seria (ou poligênica).
isso que tornaria altamente improvável (mas
Mendel encerra seu trabalho concordando
não impossível) encontrar, na descendência,
com Gärtner, que teria se oposto aos na-
indivíduos idênticos às formas parentais. Ele
turalistas que acreditavam que as espécies
afirma:
não são estáveis e “admitem sua contínua
Freire-Maia adotou “evolução”
Se admitirmos que, nessas experiências, evolução” [Fortbildung], acreditando que como tradução de “Fortildung”
o desenvolvimento das formas tenha a transformação [Umwandlung] de uma e “transformação” para
ocorrido de forma semelhante ao de Pi- espécie em outra é apenas aparente, pois ele “Umwandlung”
sum, todo o processo de transformação obtivera, “prova indubitável de que existem
[Umwandlungsprocess] encontrará limites fixos para as espécies, além dos quais
uma explicação simples. O híbrido forma não se pode variar” (Mendel, 1866, apud
tantos tipos de óvulos quantas são as pos- Freire-Maia, 1995, p.96). Mesmo uma bio-
síveis combinações constantes dos caracte- grafia muito favorável à ideia da compatibili-
res nele reunidos, e uma dessas combina- dade Darwin-Mendel acaba por concluir, ao
ções é sempre igual à dos grãos de pólen considerar esse trecho, que “podemos inferir
fertilizadores. (MENDEL, 1866, apud que Mendel era algo cético em relação à teo-
FREIRE-MAIA, 1995, p.95) ria da evolução, apresentada não muito antes
por Darwin.” [ILTIS, 1965(1932), p. 160].
No mesmo trabalho de 1866, Mendel re-
lata os resultados com espécies de feijão:
Phaseolus vulgaris, P. nanus, e P. multiflorus.
Neste caso, porém, os híbridos não tinham
a mesma fertilidade daqueles de ervilhas e
os experimentos não obtiveram o mesmo
sucesso. Mesmo assim, ele escreveu que no
cruzamento de P. nanus x P. vulgaris obte-
ve “resultados perfeitamente concordantes”,
uma vez que “as relações numéricas com que
as diferentes formas apareceram nas várias
gerações foram iguais às de Pisum” (Mendel,
1866, apud Freire-Maia, 1995, p.82). No
caso do cruzamento de P. nanus, com flores
brancas, com P. multiflorus, com flores viole-
ta, os resultados apontaram, já na primeira
geração, híbridos com flores que variavam do
branco até o violeta, em uma gradação pro-
gressiva. Como “entre 31 plantas apenas uma
se apresentou com o caráter recessivo da cor
branca”, esses resultados “talvez possam, no
entanto, ser explicados pela lei válida para
Pisum”, escreveu Mendel. Bastaria conside-
rar, escreveu ele, que a cor seja, na verdade,
a combinação de “duas ou mais cores, com-
pletamente independentes”. Assim, mesmo
diante de resultados diversos, Mendel acre-
ditava que a matemática era o alfabeto que

302 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

DOMESTICAÇÃO: efeito da mudança de condições ambientais


na constituição dos organismos, correlações
A PERSPECTIVA DE DARWIN entre crescimento e constituição e os efeitos
Não é necessário ser profundo conhecedor da seleção feita pelos criadores. O segundo
de Darwin para perceber a importância que capítulo também versava sobre o mesmo
ele conferia à variação das linhagens domes- tema, mas discutia casos específicos, como
ticadas como evidência da possibilidade de cães, cavalos etc., com tratamento mais ex-
que não existiam limites fixos para as espé- tenso para os pombos, tomando outras 126
cies. O livro “The Variation on Animals and páginas manuscritas. O terceiro capítulo ver-
Plants Under Domestication” (1868, dora- sava sobre “possibilidades de cruzamento de
vante “Variation...”) era, na verdade, a versão todos os organismos: sobre a susceptibilida-
mais aprofundada de sua obra mais famosa, de da reprodução para a mudança”, no qual
“Origin...”, publicada em 1859. Nela, os dois tanto aspectos teóricos da reprodução, como
capítulos iniciais eram versões muito abre- o poder de polinizadores, como exemplos
viadas daquilo que escrevera em seu “Gran- concretos de variações, em uma série de plan-
de Livro das Espécies (“Big Species Book”, tas e animais, eram relatados em outras 101
como Darwin se referia a ele), que serviu páginas escritas a mão, cuja redação, segundo
depois de base para o “Variation...” (STAU- seu diário, fora terminada em 16 de dezem-
FFER, 1975). bro de 1856. (STAUFFER, 1975).
O primeiro capítulo do “Origem das Espé- Entre as páginas 60 e 62 desse manuscrito,
cies” versa justamente sobre a variação no no terceiro capítulo, Darwin discute os re-
estado de domesticação, mas seu manuscrito latos de grandes conhecedores de plantas
original tinha dois capítulos sobre esse mes- domésticas, citando entre elas as ervilhas do
mo tema. O primeiro, com 67 folhas manus- gênero Pisum, da dificuldade de se garantir
critas, versava sobre questões gerais, como o apenas autopolinização. Entre os conhece-
dores, ele cita ninguém menos que Gärtner.
Assim escreveu Darwin:
O Sr. Masters de Canterbury, um gran-
de cultivador de sementes de ervilhas e
autor de um artigo sobre o assunto, me
respondeu que sem nenhuma dúvida
algumas variedades de ervilhas e feijões
acabam por se cruzar com outras varie-
dades (...). E novamente, nos grandes
canteiros de sementes do Sr. Sharps nas
quais as ervilhas crescem extensivamente
e como elas são consideradas susceptíveis
à adulteração, ´’precauções consideráveis
são empregadas para garantir separação”
(STAUFFER, 1975, p.69-70).
No entanto, Darwin prossegue mostrando
evidências contrárias obtidas a partir de ou-
tras fontes, como Andrew Knight publicara
anos antes, assegurando a possibilidade de
manter as espécies, inclusive de ervilhas, por
autopolinização. Ele próprio realizará expe-
rimentos com essas plantas a fim de dirimir
tais dúvidas, colocando frascos de vidro e
redes de gaze recobrindo flores de feijoeiros,
obtendo resultados inequívocos. Ele publica-
rá rapidamente seus resultados em um curto

Sociedade Brasileira de Genética 303


NA SALA DE AULA

artigo, em 24 de outubro de 1857, dizendo que exibiam apenas o caráter “prepotente”.


que “acredito, neste momento, que se todas as Esse resultado era “curioso” porque ele tinha,
abelhas da Grã Bretanha fossem destruídas, na verdade, outra hipótese (ou teoria) para
não veríamos mais uma única vagem em nossos explicar a herança, radicalmente diferente
feijoeiros” (Darwin, 1857). Ele afirmava ainda daquela de Mendel (BIZZO, 2008).
que o mesmo ocorreria, ainda que em “grau
Os caracteres “latentes” que reapareciam em
menor”, com a ervilha-de-cheiro da espécie
gerações posteriores, após um aparente “de-
Lathyrus grandiflorus. Entretanto, com base
saparecimento”, não eram apenas “curiosos”,
nos experimentos realizados com Pisum sa-
para Darwin, mas comprovavam a “extrema
tivum, ele concluiu que “as ervilhas, que nesse
dificuldade, ou mesmo a impossibilidade”
particular diferem de outras leguminosas, são
de prever os resultados. Já para Mendel,
perfeitamente férteis sem auxílio de insetos”
eles eram a prova de que a transformação de
(Darwin, 1868, p. 329).
uma espécie em outra era apenas aparente.
Assim, seus manuscritos com quase 300 fo- O abade agostiniano era capaz de explicar
lhas, sobre variação de variedades domésti- essa transformação por “leis bem definidas”,
cas, foram reduzidos a 37 páginas e 11.680 puramente matemáticas, pois “todo o processo
palavras no primeiro capítulo da primeira de transformação encontrará uma explicação
edição do “Origin...”, em 1859. O texto exten- simples”.
so, por sua vez, foi guardado para ser publi-
cado de maneira integral em uma obra mais VARIAÇÃO EM
completa, o que de fato ocorreu em 1868, ESPÉCIES NATURAIS
quando apareceu “Variation ...”, em dois vo- Mendel escreveu ao suíço Carl Wilhelm Von
lumes, que totalizavam quase 1.000 páginas Nägeli (1817-1891), prestigioso professor
impressas. Mendel também possuía a versão de Botânica na Universidade de Munique
alemã deste livro. e diretor do Jardim Botânico daquela insti-
A regra encontrada em Pisum originava-se tuição, com quem manteve correspondência
de variedades domesticadas. Pela corres- de 1866 a 1873. Na primeira carta, encami-
pondência com Näegeli, sabe-se que Mendel nhou-lhe cópia de seu trabalho apresenta-
realizou experimentos de hibridização com do no ano anterior, com Pisum e Phaseolus.
muitos outros gêneros (pelo menos 27!), Na resposta, Nägeli pediu-lhe sementes das
tendo obtido resultados que confirmariam plantas que utilizara, demonstrando ter uma
a “regra de Pisum”, tendo escrito a Näegeli hipótese implícita, qual fosse, a de que os re-
que “seus híbridos se comportam exatamente sultados seriam uma particularidade das va-
como os de Pisum” (ILTIS, 1965[1932], p. riedades domesticadas utilizadas, ou, ainda
155). É interessante que Darwin tenha rea- pior, falta de cuidado ao planejar ou colher
lizado experimentos com 41 variedades de os dados – hipótese que ocorreu imediata-
ervilhas, inclusive com as mesmas caracterís- mente a Darwin na primeira vez que tomou
ticas das utilizadas por Mendel (plantas altas conhecimento deles, como veremos adiante.
e baixas, sementes amarelas e verdes etc). Demonstrando sua discordância com as
Darwin relata um resultado com boca-de- conclusões de Mendel, Nägeli dizia-lhe que
-leão (Antirrhinum majus), em seu livro “Va- o “tratamento numérico” não deveria ser con-
riation...”, no qual seguiu exatamente o mes- siderado “racional”, uma vez que não poderia
mo procedimento de Mendel, tendo obtido, perceber nenhum paralelo com fenômenos
na primeira geração, 100% de plantas da biológicos conhecidos. E, já de início, dizia
forma mais comum, e, na segunda, 88 plan- duvidar da constância da progênie das va-
tas do tipo mais comum, 2 “intermediárias” riedades “puras”. Ele não sabia que Mendel
e 37 do tipo raro (flores pelóricas), em uma tinha mantido, por dois anos, as variedades
proporção próxima de 3:1. Esse resultado, escolhidas de ervilhas reproduzindo-se ape-
ele descreveu como “curioso”, algo “esquisito”, nas por autopolinização, observando a uni-
pois “à primeira vista, oferece uma exceção” formidade de sua descendência. Em outras
à regra geral, pois o caráter “latente” aparecia palavras, Mendel tinha certeza da “pureza”
na geração seguinte, a partir de indivíduos das sementes que produzia.

304 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Ao enviar seu trabalho, Mendel contava os “Variation...” outros autores com resultados
planos de expandir os experimentos e rea- semelhantes. No entanto, se fosse univer-
lizar testes com outras plantas dos gêneros salmente válida, aplicar-se-ia igualmente a
Hieracium, Cirsium e Geum, pertencentes a espécies selvagens. Esse era o argumento de
famílias botânicas distintas da família da er- Darwin em seu livro de 1859, o que deve
vilha. Pediu a opinião desse cientista, famoso ter tido algum papel importante na escolha
à época sobre o uso de outras plantas. Nägeli daquele grupo de espécies para o prossegui-
conhecia bem o gênero Hieracium, que con- mento das pesquisas de Mendel. Se a mesma
tava com diversas espécies facilmente distin- regra das ervilhas fosse encontrada em es-
guíveis, mas adiantava, em carta datada 25 de pécies selvagens, não mais haveria qualquer
fevereiro de 1867: dúvida dos limites intransponíveis entre as
espécies, domésticas ou naturais.
“com essas formas serão encontrados re-
sultados notavelmente diversos (em rela- Seis semanas depois de receber a nada esti-
ção aos caracteres hereditários). A mim mulante resposta de Nägeli, Mendel respon-
me parece especialmente valiosa a ferti- dia-lhe apontando, de maneira muito respei-
lização de híbridos em Hieracium, pois tosa, mas muito segura, duas discordâncias.
esta será a espécie cujas formas intermedi- A primeira delas focalizava a constância da
árias serão logo bem conhecidas.”. [NÄE- progênie das variedades puras. Ele lhe asse-
GELI, 1867, apud ILTIS, 1965(1932), gurava que a certeza dessa constância deri-
p. 192]. vava de seis anos de observação cuidadosa,
entre 1859 e 1865, com dois anos de auto-
Mendel havia lido o livro de Darwin de
cruzamentos e outros quatro anos com po-
1859, o qual, em seu capítulo II, sobre a
linizações cruzadas. A segunda discordância
Variação na Natureza, cita diversos gêneros
ia direto ao ponto da importância do trata-
de plantas polimórficas, especificamente o
mento numérico. Ele respondia que o rigor
gênero Hieracium, algo que deve ter tido al-
matemático era necessário e demonstrava
guma influência na escolha daquele material.
que ele “tinha mesmo adentrado o domínio
É sabido que Näegeli tinha trabalhado por
racional”. Era uma longa carta, a qual perma-
quatro anos com Hieracium, tendo inclusive
neceu sem resposta. Em novembro de 1867,
A carta teria a data de 31 de solicitado a Darwin, em uma longa carta no
Mendel insiste, encaminhando nova carta,
março de 1867, mas não foi início de 1867, sementes das plantas bri-
encontrada nos arquivos de na qual, no entanto, evita qualquer menção
tânicas, oferecendo em troca as amostras de
Darwin, embora haja diversas à sua teoria das ervilhas e ao tratamento
plantas alemãs e alpinas (provavelmente as
referências a ela. matemático e racional dos resultados. Ele
mesmas enviadas também a Mendel).
se concentra nas dificuldades que enfrenta
Da carta de Darwin a Näegeli se conhece com a parte experimental com as espécies de
apenas um rascunho, escrito no verso de ou- Hieracium.
tra, datada de 8 de abril, na qual ele agradece
De fato, a inflorescência dessa nova planta
a longa dissertação sobre Hieracium, que é
é extremamente difícil de manipular, mas
comentada com Joseph Hooker. A opinião
a reprodução ocorre tão facilmente que é
de Darwin sobre o trabalho do botânico suí-
considerada uma verdadeira praga. Mendel
ço é inequívoca, no sentido de que os estudos
acreditava ser um bom material de estudo,
com plantas polimórficas, citando esse gêne-
pois era rústica, fácil de germinar, de cresci-
ro, são todos importantes para elucidar os
mento rápido e com alta prolificidade, além
“princípios da Variabilidade” (Carta de Da-
de apresentar numerosas espécies na natu-
rwin a Hooker, de 8/vii/1869). Assim, fica
reza, com descendência constante. De fato,
claro que Mendel estava sintonizado com os
essa era uma das críticas implícitas de Nä-
mais famosos cientistas da época, em termos
geli à escolha de Mendel em relação às ervi-
das expectativas e do material experimental
lhas, pois espécies domesticadas, cultivadas
considerado válido.
em condições constantes, não mantinham
A “regra de Pisum”, com a qual o próprio descendência constante, ou seja, não eram
Darwin se defrontara, de fato, não era pro- linhagens “puras”. E aí precisamente residia
priamente uma novidade. Darwin relata, no a recomendação de utilizar Hieracium: era

Sociedade Brasileira de Genética 305


NA SALA DE AULA

sobejamente conhecida a descendência ab- Os trabalhos de hibridização contemporâ-


solutamente uniforme da planta, pois todas neos aos de Mendel, inclusive citados por ele,
as sementes produziam plantas idênticas à estavam intrinsecamente ligados à questão
forma materna. dessa suposta estabilidade como indicador
da possibilidade de origem de novas espé-
Em 1869, Mendel apresentou seu segundo e
cies. O problema central do programa expe-
último trabalho publicado sobre hibridismo,
rimental de Mendel era o mesmo de Darwin,
com resultados diferentes daqueles conse-
pois pretendia responder a mesma pergunta,
guidos com as ervilhas. Quase todos os “hí-
relativa à origem das espécies.
bridos” produzidos eram exatamente iguais à
forma materna e os problemas de viabilidade Enquanto Darwin pensava todas as espé-
dificultavam o prosseguimento dos experi- cies atuais como resultado de processos de
mentos. De maneira muito honesta, escreveu descendência com modificação ao longo das
no parágrafo final do trabalho que apresen- gerações, Mendel acreditava ter encontrado
tou em 9 de junho de 1869, na mesma socie- evidências de que as modificações na descen-
dade científica da pequena Brno: dência eram apenas muito numerosas, mas
que poderiam ser previstas matematicamen-
Em Pisum os híbridos produzidos direta-
te. Esta seria a “regra de Pisum”, que obede-
mente do cruzamento de duas formas são,
ceria uma “lei bem definida” a “lei das com-
em todos os casos, de um mesmo tipo, mas
binações”. Nos experimentos com Hieracium,
sua descendência é variável, em propor-
que não seguiam essa mesma lei, Mendel, te-
ções que obedecem uma lei bem definida.
ria evidenciado outro fenômeno, a aparente
Em Hieracium, no entanto, os experi-
formação de novas espécies, “híbridos” em
mentos realizados até o momento tiveram
senso restrito, como formas intermediárias
resultados que apontam exatamente para
estáveis, “mulas férteis” e não novas espécies
o oposto. [MENDEL, 1869, apud IL-
(LORENZANO, 2011, p. 40). Assim, os
TIS, 1965(1932), p. 173].
experimentos com Hieracium não foram “de-
Nesse trabalho, Mendel faz uma observação cepções”, mas devem ter sido apresentados
na qual menciona explicitamente a teoria como evidências adicionais dos “limites das
darwiniana. Não se trata da seleção natural, variações” defendidos por Mendel.
mas sim do que Darwin desenvolve no ca-
Os resultados com Hieracium se deviam a
pítulo II de seu livro “Origem das Espécies”,
uma forma de reprodução assexual denomi-
onde menciona inclusive o gênero Hieracium.
nada apomixia. Trata-se de um processo que
Esse trecho tem merecido pouca atenção,
ocorre apenas na parte feminina da flor (ová-
mas é revelador do quadro teórico no qual
rio), no qual o gametófito feminino desen-
Mendel operava, mantendo uma ligação in-
volve-se independentemente da meiose e o
trínseca entre os experimentos de hibridiza-
embrião desenvolve-se sem ocorrer fecunda-
ção como elementos de confirmação ou re-
ção do gameta feminino. Ali, a meiose não se
futação da possibilidade da origem de novas
completa, e a oosfera produzida tem apenas
espécies. Na introdução de seu trabalho de
os cromossomos maternos, em mesmo nú-
1869, Mendel deixa essa ligação clara, inclu-
mero, sem a característica divisão reducional.
sive com uma referência algo irônica a seu
Assim, não ocorre a fusão de gametas mascu-
correspondente Näegeli:
lino e feminino, e o desenvolvimento do em-
A questão sobre a origem das numerosas brião é autônomo. Apenas em alguns casos,
e constantes formas intermediárias tem os cruzamentos de Mendel, de fato, origina-
ganhado, nos mais novos tempos, não ram híbridos devidos à reprodução sexual.
pouco interesse, desde que um famoso co-
E, como que por ironia, estudos recentes su-
nhecedor de Hieracium considerou, no
gerem que a apomixia, que tanto perturbou
espírito da teoria de Darwin, que essas
os resultados com Hieracium, tem herança
mesmas derivaram (a partir) da Trans-
dominante e ligada a um único loco gênico,
mutação de espécies passadas ou ainda
ou seja, é transmitida exatamente seguindo
existentes. (MENDEL, 1869, tradução
o que Mendel tinha encontrado com as ervi-
de Paulo Sano)
lhas (CARNEIRO, DUSI, 2002).

306 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

OS CONTATOS que têm muitas anotações feitas por Darwin.


Uma das separatas traz um título sugestivo:
DARWIN-MENDEL “Investigações para determinar o valor de es-
A ideia de que o trabalho dos dois pensado- pécies e variedades: uma contribuição para a
res não estava em sintonia tem exatamente a crítica da hipótese de Darwin” de Hermann
mesma idade da versão de Bateson, grande Hoffmann (1819-1891), já famoso diretor
admirador do trabalho de Mendel, e está na do museu botânico de Giessen (pouco ao
base do grande antagonismo que se estabe- norte de Frankfurt), e frontalmente contrá-
leceu entre os mendelianos e os seguidores rio às ideias darwinianas, como, aliás, fica
de Francis Galton (1811-1922) e seu gru- claro desde o título do trabalho.
po de biometricistas, todos dentro do cam-
Esse livreto trazia longa revisão de trabalhos
po do evolucionismo (MARTINS, 2007).
de hibridização de nada menos do que 159
Deste grupo fazia parte Walter F.R. Weldon
plantas, e um deles, à página 136, é justa-
(1860-1906), sucedido por Ronald Fisher
mente a comunicação de Mendel de 1866
(1890-1962). Mesmo com toda a autorida-
(BIZZO, 1991, p. 136). Nessa página Ho-
de científica do grupo de Galton, que tinha
ffmann sintetiza a montagem dos experi-
inclusive vínculos pessoais com a família
mentos com ervilhas e termina o parágrafo
Darwin (Galton era seu primo e Fisher era
dizendo que “os híbridos possuem uma ten-
muito ligado ao filho de Darwin, Leonard),
dência de reverter à espécie original na gera-
seus alertas para as diferenças de perspectiva
ção seguinte”, destacando, assim, a conclusão
de Mendel e Darwin não foram ouvidos, nas
de Mendel de que ele teria obtido “prova in-
chamadas “Mendel Wars” (SCHWARTZ,
dubitável de que existem limites fixos para as
2008). Os mendelianos insistiam que se Da-
espécies, além dos quais não se pode variar”.
rwin tivesse conhecido as ideias de Mendel
ele não estaria do lado dos biometricistas, Outras indicações de que Darwin leu o tra-
ao passo que estes chegaram a acusar Men- balho de Hoffmann com cuidado, apesar da
del de ter forjado os dados dos experimen- difícil fonte tipográfica gótica utilizada, são
tos (Fairbanks, Rytting, 2008). No entanto, os comentários deixados por ele na página
existem evidências factuais de que os dados final, possivelmente escritos em diferentes
de Mendel foram conhecidos por Darwin. momentos:
Pelo relato de Bateson, Francis Darwin re- Se Hoffmann acha que Ph. multiflorus
alizou uma busca infrutífera pela cópia da (que, diga-se de passagem, é sinonímia
separata do trabalho de Mendel na coleção de Ph. coccineus de Lamarck) é fértil na
de trabalhos avulsos do pai. De fato, essa Alemanha onde os insetos são excluídos
coleção está preservada até os dias atuais, na // ou o clima afetou a planta, o que eu
Biblioteca da Universidade de Cambridge. não acredito, ou duas espécies são confun-
Trata-se de uma coleção com trabalhos que didas sob o mesmo nome. C. Darwin
foram colecionados, tendo sido numerados, e Hoffmann descreve Ph. multiflorus como
uma planta trepadeira alta com flores es-
carlate?
Meu caro F. aqui está um trabalho horrí-
vel que eu te imploro seja feito bem rápi-
do, i.e., colocar à prova [“to make out”]
as conclusões de Hoffmann sobre a fer-
tilização de Phaseolus, p.47-80. Ele dá
um resumo que talvez já seja suficiente.
Phaseolus multiflorus, ou a trepadeira
escarlate [“scarlet runner”], é planta com
a qual já realizei experimentos, e meus re-
sultados (i.e. não pode ser fértil sem inse-
tos) têm sido confirmados por Ogle & Belt

Sociedade Brasileira de Genética 307


NA SALA DE AULA

– Estou ciente que Ph vulgaris é plena- antidarwinista o apresentou como evidência


mente auto fértil [DARWIN, s/d, apud contrária à “hipótese de Darwin”, e, de outro,
BIZZO, 1991, p. 137, grifo no original]. um famoso botânico evolucionista, que se
correspondia com Darwin, tratou friamente
Aqui aparece outro detalhe interessante, pois
Mendel, não respondeu cartas e não citou
a espécie de feijão que Darwin destaca, solici-
seu trabalho em seu livro sobre a “teoria da
tando trabalho adicional de seu filho Francis
descendência”.
(“meu caro F.”), é justamente uma das espé-
cies citadas com as quais Mendel trabalhou. Mendel, por seu lado, menciona Darwin em
E, de fato, a comunicação feita por Darwin, quatro passagens bem conhecidas: além de
de 1857, era de que, sem insetos, nenhum seu trabalho sobre Hieracium, outras três ve-
feijoeiro da Inglaterra formaria vagens. Além zes ocorrem nas cartas a Näegeli. Em uma
disso, ele pede ao filho que os experimentos mesma carta ele discorda de Darwin em re-
sejam realizados “bem rápido”, e isso pode lação à necessidade de muitos grãos de pólen
estar ligado ao livro que terminava quando para fecundar um único óvulo e discorda das
realizou a leitura mais detalhada do relato descrições feitas por Darwin em seu livro de
de Hoffmann, “The Effects of Self and Cross 1868 (“Variation...”) das formas híbridas de
Fertilization”, publicado em 1876. À página Matthiola, Zea e Mirabilis, que ele afirma se
150 desse livro tem início uma exposição so- comportarem de acordo com Pisum (carta
bre a fertilização de Phaseolus multiflorus. de 3/VII/1870). Na outra menção (carta de
27/IX/1870), ele retoma o relato de experi-
Nesse livro Darwin expõe seus experimen-
mentos com Mirabilis, reafirmando o padrão
tos sobre a falta de frutos em plantas com as
Pisum, no qual os caracteres parentais reapa-
flores cobertas por redes, e relata os experi-
recem na segunda geração com toda “pure-
mentos do “Dr Ogle”, publicados em 1870, e
za”, o que contradiz evidentemente as ideias
de ”Mr Belt”, publicados em 1874-5. As con-
de herança de Darwin, presentes tanto no
clusões de Hoffmann são debatidas, sendo
“Origin...”, como no “Variation...”, que Mendel
citada sua opinião sobre os experimentos nos
também adquirira em tradução alemã.
quais as flores foram cobertas e não houve
produção de frutos. A opinião do botânico Assim, como afirma Pablo Lorenzano, mes-
alemão apontava para a cobertura das flores, mo que não se considerem as evidências do
que as teria danificado, e isso explicaria a au- contato direto de Darwin com os trabalhos
sência de frutos, colidindo frontalmente com de Mendel, os resultados que o naturalista
a posição de Darwin. Este insistia não ape- inglês obteve diretamente, nas proporções
nas na necessidade de insetos, como citava mendelianas, não faziam parte de seu es-
diversos relatos do intercruzamento espon- quema teórico para explicar a evolução e
tâneo de variedades dessa espécie. Portanto, apenas as considerou “curiosas”. Ao colocar
as variedades “puras” de Ph. multiflorus, utili- em dúvida os resultados com os feijões, agiu
zadas por Mendel, estavam sob séria suspei- corretamente, pois, de fato, conhecia bem a
ta, não apenas por Nägeli, mas também por polinização dessas leguminosas. Dessa for-
Darwin. ma, mesmo que Mendel tivesse aproveitado
sua estada em Londres em 1862 e visitado
Nägeli publicou em 1884 um livro sobre teo-
o autor do livro que tanto rabiscara, e que
rias evolutivas, chamadas “teorias da descen-
permanece até hoje em sua estante em Brno,
dência”, sem citar Mendel, mas não que o ti-
Darwin nada teria aprendido para explicar
vesse esquecido. Anos depois, ao escrever um
a evolução biológica (BIZZO, 1991, 2008;
prefácio (1891) de outro livro, ele é citado, a
LORENZANO, 2011).
propósito de seus experimentos sobre Hiera-
cium (OLBY, GAUTREY, 1968). Essa conclusão tem profundas repercus-
sões para o ensino de Genética e Evolução,
Assim, é importante perceber como o tra-
na educação básica e superior. O exercício
balho de Mendel foi recebido pelos espe-
de “didática invisível” proposto neste artigo
cialistas de seu tempo fluentes em alemão:
pode ser uma contribuição para essa dis-
de um lado, um famoso médico e botânico
cussão.

308 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

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(1857), disponível em: http://darwin-onli- gie.uni-hamburg.de/b-online/d08_mend/
ne.org.uk/content/frameset?itemID=F16 mendel.htm, [acesso em 29 mar 2013]
97&viewtype=text&pageseq=1, acesso em
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FAIRBANKS, D. J.; RYTTING, B. Mende-
lian Controversies: An update, p.303-312.
IN FRANKLIN, A. et al (orgs) Ending the

Sociedade Brasileira de Genética 309


MATERIAIS DIDÁTICOS

Que ervilha
sou eu?

Luiza Diniz Ferreira Borges1, Isaura Beatriz Borges Silva1, Marina Cristina Tomasini1,
Dayane Dotto de Moraes1, Priscila Costa Freitas1, Luna Nascimento Vargas1,
Anna Clara Rios Moço1, Ana Maria Bonetti2
1
Graduanda em Biotecnologia, Laboratório de Genética, Instituto de Genética e Bioquímica,
Universidade Federal de Uberlândia, Campus Umuarama, Uberlândia, MG.
2
Laboratório de Genética, Instituto de Genética e Bioquímica, Universidade Federal de Uberlândia,
Campus Umuarama, Uberlândia, MG.

Autor para correspondência: luizadfb@hotmail.com

310 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O jogo “Que ervilha sou eu?” permite a mobilização dos


conceitos da Genética Mendeliana de modo ativo e
com eficiência. Para jogar, é necessário entender as relações
de dominância e recessividade dos alelos, as proporções
dos diferentes fenótipos na descendência e a relação entre
genótipo e fenótipo.

Sociedade Brasileira de Genética 311


MATERIAIS DIDÁTICOS

Q ue ervilha sou eu? é um jogo composto


por 5 tipos de cartas:
- Carta “Alelos” - contém os pares de ca-
racterísticas fenotípicas estudadas por
Mendel e a relação de dominância e reces-
- Carta “Introdutória” - cujo uso é op- sividade entre eles. Os alelos estão simbo-
cional, apresenta uma breve biografia de lizados por uma letra (Figura 1).
Mendel, o porquê da escolha de ervilhas-
-de-cheiro como material biológico e as
Leis de Mendel (Anexo 1).

Figura 1.
Carta “alelos” apresenta os
fenótipos que compõem
as plantas de ervilha e os
- Carta “Fenótipos” – A carta “Fenótipos” “Que ervilha sou eu?”. Ela pode ser usada respectivos alelos.
contém todas as combinações de caracte- para auxiliar a descoberta de qual o fenóti-
rísticas fenotípicas apresentadas nas Cartas po apresentado pelo grupo adversário.

Figura 2.
Carta “fenótipos”.

312 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

- Carta “Que ervilha sou eu?” – Cada referentes aos resultados de cruzamentos,
carta contém uma imagem com três ca- que permitem a descoberta pelos jogado-
racterísticas fenotípicas de uma planta de res do grupo oponente, dos fenótipos e o
ervilha cujo genótipo deverá ser descober- genótipo da planta em questão. Um mo-
to pelo grupo oponente. O respectivo ge- delo deste tipo de carta está apresentado
nótipo também está apresentado na car- na Figura 3. As demais cartas dica estão
ta. Além disto, são apresentadas 3 dicas, apresentadas no anexo 2.

Figura 3.
Modelo de carta “Que ervilha
sou eu?”

- Carta “Resolução” – contém a resolução apresentado na Figura 4 e as demais car-


dos cruzamentos apresentados nas cartas tas deste tipo, no anexo 4.
dica. Um modelo deste tipo de carta está

Figura 4.
Carta “Resolução” referente
às dicas contidas na carta da
figura 1.

Sociedade Brasileira de Genética 313


MATERIAIS DIDÁTICOS

- Carta “Rascunho” – As cartas Rascu- zamentos e suas descobertas de maneira


nho podem ser usadas pelos diferentes clara e organizada.
grupos para anotar a resolução dos cru-

Figura 5.
Carta “rascunho”.

REGRAS DO JOGO 5. Cada grupo fornecerá ao grupo oposi-


tor as dicas que estão na carta que tem
1. Os jogadores são divididos em dois gru-
em mãos. As dicas podem ser anotas na
pos.
“Carta Rascunho”, distribuída pelo pro-
2. Cada grupo recebe do professor uma fessor.
Carta Alelo, que descreve todos os fenó-
6. Depois que os dois grupos estiverem
tipos e respectivos genótipos, para tomar
cientes de todas as dicas para descobrir
ciência das características que poderão
o genótipo da planta, cada um deles de-
ser abordadas no jogo.
verá usar a Carta Rascunho para montar
3. Um grupo é responsável por embaralhar os cruzamentos contidos nas respectivas
as cartas e deixá-las disponíveis sobre a dicas e descobrir o genótipo da ervilha.
mesa, com a frente voltada para baixo.
7. Ganha a rodada o grupo que descobrir
4. Cada grupo pega do monte uma “Carta primeiro o genótipo e os fenótipos cor-
Que ervilha sou eu?”, com o fenótipo de retos.
uma planta para 3 características feno-
8. O professor distribui para os diferentes
típicas e seu respectivo genótipo. As di-
grupos a respectiva Carta Resolução,
cas presentes nesta carta correspondem
para verificação da correção do genótipo
às proporções fenotípicas resultantes
e fenótipo.
do cruzamento dos genótipos realiza-
dos para a descoberta da ervilha em 9. Outras rodadas podem ser realizadas
questão. seguindo a mesma dinâmica.

314 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

APLICAÇÃO DA ATIVIDADE O professor mediará a participação das du-


plas de grupos participantes e entregará para
EM SALA DE AULA cada um deles as Cartas Alelos, Rascunho e
O professor deverá imprimir com antece- Resolução.
dência as cartas contidas nos anexos 1 a 6.
O número de cópias dependerá do número Sugere-se a aplicação de um questionário
de grupos de estudantes que participarão. sobre os conceitos abordados, antes e após a
Cada grupo jogará com 1 carta Introdutória, aplicação do Jogo, para avaliar se os alunos
1 carta Alelos, 1 carta Fenótipos, 20 cartas entenderam e se o Jogo favoreceu a aprendi-
Que ervilha sou eu? , 1 carta Rascunho por zagem e sua fixação.
rodada.
O tamanho dos grupos pode variar de 2 a 5
estudantes, pois grupos muitos grandes não
favorecem a participação ativa de todos os
membros.

Sociedade Brasileira de Genética 315


MATERIAIS DIDÁTICOS

ANEXO 1 – Carta Introdutória

Gregor Johann Mendel (1822-1884) foi um monge agostiniano, botânico e meteorologista austríaco. Durante
sua vida, ele chegou a lecionar Literatura Alemã, Latina e Grega, Matemática, Filosofia, Física, História Natural
e Ciências Naturais. Ele dedicou-se principalmente ao estudo do cruzamento de diferentes espécies, como
feijões, chicória, bocas-de-dragão, plantas frutíferas, abelhas, camundongos e ervilhas.
Os principais estudos de Mendel foram com “ervilhas-de-cheiro” que ele cultivou nos jardins de seu monasté-
rio, ao longo de cerca de sete anos. Ele estudou a variação no aspecto das plantas e a herança de caracterís-
ticas únicas e contrastantes. Para cada um de seus cruzamentos, ele contou e anotou o aspecto dos genitores
e de suas proles. Seu conhecimento de Matemática permitiu que ele analisasse matematicamente seus dados
e chegasse à hipótese de que as características das plantas eram devidas à existência de um par de unidades
elementares de hereditariedade, atualmente conhecidas como alelos.
Mendel publicou dois grandes trabalhos: “Ensaios com Plantas Híbridas” (Versuche über Planzenhybriden) e
“Hierácias obtidas pela fecundação artificial”. Em 1865, ele formulou e apresentou à Sociedade de História
Natural de Brno as leis da hereditariedade. Hoje essas leis são conhecidas como Leis de Mendel e regem a
transmissão dos caracteres hereditários.
Gregor Mendel morreu de uma doença renal crônica, em 6 de janeiro de 1884, sem que tivesse, em vida, seus
estudos reconhecidos. Suas descobertas permaneceram esquecidas por mais ou menos 35 anos. Por volta
de 1900, Hugo De Vries, Karl Corens e Erich Von Tschermak redescobriram independentemente as leis da
transmissão dos caracteres hereditários enunciadas por Mendel anos atrás. Os três pesquisadores deram-lhe
o crédito pelas leis, dando seu nome às leis fundamentais da Genética.

Para seus trabalhos sobre hereditariedade, Mendel usou “ervilhas-de-cheiro”, Pisum sativum. A ervilha é uma
planta herbácea leguminosa que pertence ao mesmo grupo do feijão e da soja. Na reprodução, surgem vagens
contendo sementes, as ervilhas. A utilização desse organismo para sua pesquisa foi boa, porque o cultivo e a
reprodução das ervilhas são fáceis, seu ciclo reprodutivo é curto e ela produz muitas sementes. Além disso,
existem muitas variedades disponíveis de ervilhas, com características de fácil comparação. Por exemplo, a
variedade que produz sementes amarelas pode ser comparada com a que produz sementes verdes, e assim
por diante.

316 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Mendel estava interessado em descobrir como as características das ervilhas eram herdadas de uma geração
para outra e para isso ele investigou a herança de sete características da espécie de ervilhas que escolheu:
cor da semente da ervilha, forma da semente da ervilha, cor da vagem, forma da vagem, cor da flor, altura
da planta e posição do broto da planta. Para cada uma dessas sete características, ele usou duas linhagens
puras que apresentavam aspectos distintos e contrastantes, ou seja, para cada característica, ele estudou
dois fenótipos contrastantes. Todas as linhagens usadas por ele eram linhagens puras, ou seja, para o fenó-
tipo em questão, todos os descendentes produzidos pelos cruzamentos entre os membros dessa linhagem
eram idênticos. Por exemplo, na linhagem de vagens verdes, toda a prole de qualquer cruzamento era de
vagens verdes.

Para a enunciação das leis da hereditariedade, Mendel realizou uma série de cruzamentos com ervilhas du-
rante gerações sucessivas e, mediante a observação do predomínio de uma característica por vez, por exem-
plo, no cruzamento entre plantas com sementes verdes e plantas com sementes amarelas, ele observava que
a cor de semente amarela predominava na prole. Formulou a primeira lei, chamada lei do monoibridismo,
segundo a qual existe nos híbridos uma característica dominante e uma recessiva. Cada caráter é condicio-
nado por um par de fatores (alelos), que se separam na formação dos gametas.
Depois Mendel fez cruzamentos em que havia dois tipos de características, por exemplo: a cor e a forma
das vagens. Baseado na premissa segundo a qual a herança de uma característica era independente da
herança da outra característica, enunciou sua segunda lei, chamada lei da recombinação ou da segregação
independente, pela qual, num cruzamento em que estejam envolvidos dois ou mais caracteres, os fatores
que determinam cada um deles se separam de forma independente durante a formação dos gametas e se
recombinam, ao acaso, para formar todas as recombinações possíveis.

Sociedade Brasileira de Genética 317


MATERIAIS DIDÁTICOS

ANEXO 2 – Carta Alelos

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

ANEXO 3 – Carta Fenótipos


Carta Fenótipos Frente

Carta Fenótipos Fundo

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MATERIAIS DIDÁTICOS

ANEXO 4 – 20 Cartas Que ervilha sou eu?


Que ervilha sou eu 1

Que ervilha sou eu 2

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Que ervilha sou eu 3

Que ervilha sou eu 4

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MATERIAIS DIDÁTICOS

Que ervilha sou eu 5

Que ervilha sou eu 6

322 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Que ervilha sou eu 7

Que ervilha sou eu 8

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MATERIAIS DIDÁTICOS

Que ervilha sou eu 9

Que ervilha sou eu 10

324 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Que ervilha sou eu 11

Que ervilha sou eu 12

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MATERIAIS DIDÁTICOS

Que ervilha sou eu 13

Que ervilha sou eu 14

326 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Que ervilha sou eu 15

Que ervilha sou eu 16

Sociedade Brasileira de Genética 327


MATERIAIS DIDÁTICOS

Que ervilha sou eu 17

Que ervilha sou eu 18

328 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Que ervilha sou eu 19

Que ervilha sou eu 20

Sociedade Brasileira de Genética 329


MATERIAIS DIDÁTICOS

ANEXO 5 – 20 Cartas Resolução


Carta Resolução 1

Carta Resolução 2

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Carta Resolução 3 parte 1

Carta Resolução 3 parte 2

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MATERIAIS DIDÁTICOS

Carta Resolução 4 parte 1

Carta Resolução 4 parte 2

332 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Carta Resolução 5 parte 1

Carta Resolução 5 parte 2

Sociedade Brasileira de Genética 333


MATERIAIS DIDÁTICOS

Carta Resolução 6

Carta Resolução 7 parte 1

334 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Carta Resolução 7 parte 2

Carta Resolução 8

Sociedade Brasileira de Genética 335


MATERIAIS DIDÁTICOS

Carta Resolução 9

Carta Resolução 10

336 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Carta Resolução 11 parte 1

Carta Resolução 11 parte 2

Sociedade Brasileira de Genética 337


MATERIAIS DIDÁTICOS

Carta Resolução 12 parte 1

Carta Resolução 12 parte 2

338 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Carta Resolução 13

Carta Resolução 14

Sociedade Brasileira de Genética 339


MATERIAIS DIDÁTICOS

Carta Resolução 15

Carta Resolução 16

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Carta Resolução 17

Carta Resolução 18

Sociedade Brasileira de Genética 341


MATERIAIS DIDÁTICOS

Carta Resolução 19

Carta Resolução 20

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

ANEXO 6 – Carta Rascunho

Sociedade Brasileira de Genética 343


MATERIAIS DIDÁTICOS

Embaralhando
Mendel
e suas leis

Aline Gomes de Souza, Izabella Cristina Costa Ferreira,


Jéssica Regina da Costa Silva, Victor Alexandre Félix Bastos,
Ana Maria Bonetti

Programa de Pós-Graduação em Genética e Bioquímica,


Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG.

Autor para correspondência: alingosouza@yahoo.com.br

344 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

E
" mbaralhando Mendel e suas leis" é um jogo
facilitador da aprendizagem das leis de Mendel,
voltado aos alunos do ensino médio. No desenvolvimento
da atividade, importantes conceitos de Genética
são abordados, tais como segregação independente,
formação de gametas, fecundação, genótipo, fenótipo e
transmissão de características genéticas. Pretende-se por
meio desse jogo desenvolver uma atividade participativa,
dinâmica e integradora, que mistura conteúdo didático,
competitividade e atenção.

Sociedade Brasileira de Genética 345


MATERIAIS DIDÁTICOS

O JOGO caso, verde e rugosa. Quando em dominân-


cia, os alelos aparecem em letra maiúscula
O jogo Embaralhando Mendel e suas
leis é um jogo que mobiliza conceitos
relacionados às leis de Mendel e visa facilitar
quando em recessividade, em letra minúscu-
la. Estes alelos podem formar genótipos em
homozigose ou heterozigose. Quando em
o aprendizado de estudantes do ensino mé-
heterozigose, os alelos são representados na
dio nas aulas de Genética. O jogo conta com
carta em letras minúsculas e maiúsculas (Vv,
um baralho de 108 cartas, sendo 96 corres-
Rr), quando em homozigose, os alelos são
pondentes a fenótipos, genótipos e gametas
representados nas cartas formando genóti-
e 12 cartas coringas que contêm curiosidades
pos apenas com letras maiúsculas (VV, RR)
ou informações sobre Genética. Para vencer,
ou apenas minúsculas (vv, rr).
o jogador deve formar quatro trincas de car-
tas, sendo que cada trinca deve ser composta As 3 cartas de cada trinca representam, por-
por uma carta representando o gameta mas- tanto, os gametas e o genótipo da progênie
culino (♂), outra, o gameta feminino (♀) e originada pela fecundação ou encontro dos
uma terceira carta representando a progênie dois gametas. Mendel propôs com a primei-
resultante da união dos gametas, cada uma ra lei que cada característica é determina-
contendo seus alelos. Os alelos são represen- da por dois fatores (hoje conhecidos como
tados nas cartas pelas letras V, v, R e r, se- alelos) que se separam durante a formação
guindo a nomenclatura habitual para alelos, dos gametas. Sabe-se atualmente que este
considerando-se que a letra que os representa processo ocorre durante a meiose no ciclo
é a primeira letra do fenótipo recessivo, neste celular (Figura 1).

Figura 1.
Meiose em uma célula
diploide: o esquema representa
como a segregação na meiose e
a distribuição dos cromossomos
diferentes formam a proporção
gamética apresentada por
Mendel. A célula com genótipo
VvRr duplica os cromossomos,
que são emparelhados e
se divide. Dependendo da
segregação na meiose I, células
com diferentes genótipos são
Na segunda lei, Mendel propõe que os fato- jogador deve observar em suas cartas quais formadas. Na segunda divisão
res para duas ou mais características segre- as correlações possíveis entre os gametas da meiose, as cromátides irmãs
gam-se independentemente, combinando-se (VR, vR, Vr, vr) e os genótipos (verde/rugo- dos homólogos vão para células
diferentes reduzindo o número
ao acaso nos gametas. Diferentes gametas sa, verde/lisa, amarela/rugosa, amarela/lisa)
de cromossomos e finalizando a
encontram-se na fecundação. Dessa forma, o que poderão formar uma trinca (Figura 2). formação dos gametas.

346 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 2.
Quadro de Punnett Para explorar o conhecimento dos alunos em a borda amarela e com textura rugosa. As
representando os genótipos relação às leis de Mendel, ao final do jogo, os cartas para o fenótipo verde foram confec-
e fenótipos descritos por
Mendel e representados
alunos podem discutir quais seriam as car- cionadas da mesma forma com exceção da
pelas cartas do baralho. As tas necessárias para completarem seu jogo, cor amarela que foi alterada para verde. As
cartas em azul representam assim como o ganhador poderá apresentar cartas coringas e parentais são confecciona-
os gametas masculinos, as suas cartas e discutir a respeito de cada trin- das do mesmo tamanho das demais, mas as
cartas rosas representam os ca explicando a 1ª e a 2ª lei de Mendel para cartas coringa apresentam curiosidades ou
gametas femininos; e as cartas
amarelas e verdes, os genótipos os demais colegas. Para relembrar os concei- conceitos de Genética importantes para a
resultantes da junção dos tos abordados, os alunos podem recorrer ao compreensão das leis de Mendel. As cartas
gametas (fecundação). glossário. de gametas possuem os alelos para formação
dos genótipos, e foram confeccionadas em
MATERIAL azul para masculino e rosa para feminino.
• 2 baralhos completos; Depois de impressas, as cartas podem ser re-
• Impressora, de preferência colorida; cortadas e coladas sobre as cartas comuns de
um baralho ou mesmo plastificadas. Todas
• Cola em bastão; as cartas necessárias para montagem do jogo
• 1 dado estão disponíveis no Anexo I.

CONFECÇÃO DAS CARTAS REGRAS DO JOGO


O jogo é composto por 108 cartas, represen- O jogo foi elaborado para a participação de 4
tando 4 fenótipos, 16 genótipos e 8 gametas a 6 jogadores.
(Quadro 1). Todas as cartas foram idealiza- 1. Cada jogador jogará uma vez o dado. Dará
das de modo a representar seus respectivos início ao jogo aquele jogador que obtiver o
fenótipos (amarela lisa, amarela rugosa, ver- maior número ao jogar o dado.
de lisa, verde rugosa).
2. Este jogador irá embaralhar as cartas e
As cartas de fenótipos amarelo/liso possuem distribuir 11 cartas a cada um dos parti-
a borda amarela e textura lisa, já as cartas cipantes. As demais cartas serão colocadas
para o fenótipo amarelo/rugoso possuem no centro da mesa (pilha de cartas).

Sociedade Brasileira de Genética 347


MATERIAIS DIDÁTICOS

Quadro 1.
Gametas Genótipos Fenótipos Genótipos, fenótipos e gametas
VR VR VVRR Amarela / Lisa demonstrados por Mendel e
utilizados como modelos para
VR Vr VVRr Amarela / Lisa o jogo.

VR vR VvRR Amarela / Lisa


VR vr VvRr Amarela / Lisa
Vr VR VVrR Amarela / Lisa
Vr Vr VVrr Amarela / Rugosa
Vr vR VvrR Amarela / Lisa
Masculinos ♂

Femininos ♀

Vr vr Vvrr Amarela / Rugosa


vR VR vVRR Amarela / Lisa
vR Vr vVRr Amarela / Lisa
vR vR vvRR Verde / Lisa
vR vr vvRr Verde / Lisa
vr VR vVrR Amarela / Lisa
vr Vr vVrr Amarela / Rugosa
vr vR vvrR Verde / Lisa
vr vr vvrr Verde / Rugosa

3. Para começar a rodada, o mesmo jogador 6. As cartas coringa presentes no baralho


que distribuiu as cartas comprará uma podem ser incluídas em qualquer trinca;
carta da pilha. Ao comprar a carta, o joga- para completá-la, entretanto, o jogador
dor pode escolher se ficará com a carta ou deve saber exatamente qual é a carta que
se a descartará. Caso ele descarte, o próxi- está sendo substituída pelo coringa. To-
mo a jogar pode ou não aceitar esta carta. das as regras estão listadas no Quadro 2.
Caso aceite, o jogador terá que descartar
uma de suas outras cartas, pois cada joga- CONSIDERAÇÕES FINAIS
dor deve ter no máximo 11 cartas na mão. O jogo Embaralhando Mendel e suas Leis
No entanto, se o jogador em questão não foi desenvolvido com o objetivo de facilitar
aceitar a carta descartada pelo jogador an- o aprendizado de Genética durante aulas
terior, ele poderá comprar uma nova carta práticas, sendo uma  ferramenta  interes-
na pilha. sante para favorecer o ensino, a aprendiza-
4. Quando um dos jogadores comprar uma gem e a fixação das 1ª e 2ª Leis de Mendel.
carta e com ela fechar as 4 trincas, o mes- Visando alunos do ensino médio e recém
mo deverá expor todas as cartas da mão ingressantes do ensino superior como pú-
na mesa para que sejam conferidas pelos blico alvo, descrevemos um sistema de fácil
demais jogadores. reprodução e entendimento que pode con-
tar com a participação dos alunos durante
5. Ganha o jogo o participante que formar
sua confecção e desenvolvimento. Durante
primeiro e corretamente as 4 trincas, cada
o desenvolvimento da atividade, importan-
trinca sendo composta por 1 gameta mas-
tes conceitos de Genética são abordados. A
culino, 1 gameta feminino e a progênie re-
dinâmica de formação de trincas estimula
sultante da fecundação (Figura 3).
os participantes a associar a formação dos

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 3.
Exemplo de 4 trincas formadas
por cartas que representam: gametas, fecundação e a transmissão de metodologia de ensino não habitual, porém
gameta masculino, gameta características genéticas. Além disso, a pre- eficaz para a melhor compreensão de con-
feminino e a progênie sença de cartas com conceitos e curiosidades teúdos de difícil assimilação. Além disso,
correspondente. incrementam o jogo enriquecendo o conhe- atividades que permitem a participação dos
cimento abordado. alunos e a interação entre eles, são importan-
tes para a vida em sociedade, que ultrapassa
Vale ressaltar que a difusão e a prática dos
o ambiente de sala de aula.
jogos  didáticos  devem ser encaradas como

Quadro 2.
Regras detalhadas do jogo.
Essa ficha poderá ser impressa
e distribuída aos participantes
para facilitar a compreensão do
jogo.

Sociedade Brasileira de Genética 349


MATERIAIS DIDÁTICOS

GLOSSÁRIO

ANEXO I - MODELO DAS CARTAS


Verso da carta

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Cartas

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MATERIAIS DIDÁTICOS

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MATERIAIS DIDÁTICOS

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Curingas

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MATERIAIS DIDÁTICOS

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Sociedade Brasileira de Genética 365


MATERIAIS DIDÁTICOS

O Jardim de Mendel –
material didático para
uso de videntes
e não-videntes
no processo
ensino-aprendizagem
da 1a Lei de Mendel

Luiz Antonio Botelho Andrade1, Nelson Moreira dos Santos2,


Garrolici de Fatima Peixoto de Alvarenga3
1
Departamento de Imunobiologia, Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense,
Campus do Valonguinho, Niterói, RJ.
2
Universidade Anhanguera, Niterói, RJ.
3
Centro de Apoio ao Deficiente Visual de São Gonçalo, CADEVISG, São Gonçalo, RJ.

Autor para correspondência: labauff@yahoo.com.br

366 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O Jardim de Mendel é um recurso didático, estético,


tateável, barato e fácil de ser confeccionado e replicado
para uso no processo ensino-aprendizagem de Genética,
especialmente no que se refere à 1a Lei de Mendel. É um
facilitador da aprendizagem da Genética mendeliana para
videntes e não-videntes na sala de aula ou em outro espaço
escolar – laboratório, pátio, quadra.

Sociedade Brasileira de Genética 367


MATERIAIS DIDÁTICOS

CONTEXTUALIZANDO Concebido inicialmente como um recurso


explicativo em uma cena do filme “Quem

A Organização das Nações Unidas


(ONU) instituiu, em 1981, o “ano e a
década da pessoa portadora de deficiência”,
foi que disse: sobre Mendel e a produ-
ção do conhecimento” (https://vimeo.
com/104961599), este recurso foi poste-
chamando a atenção da sociedade para a riormente usado na pesquisa sobre a forma-
importância da temática da inclusão. Esta ção do conceito de herança genética de cegos
preocupação ético-política foi reforçada na congênitos e, oportunamente, aprimorado
“Conferência Mundial de Educação para To- em seu aspecto estético e lúdico para ser
dos”, realizada na Tailândia, em 1990, e na apresentado como jogo educativo - o Jardim
“Declaração de Salamanca”, que versou so- de Mendel.
bre os “Princípios, Política e Prática para as
Necessidades Educativas Especiais” (1994). MATERIAIS NECESSÁRIOS
A partir destes três marcos históricos, as
1- Superfície de madeira, quadrada ou re-
exigências não se referiam apenas ao direito
tangular, com furos regulares, represen-
da pessoa com deficiência à integração social
tando “covas no solo”;
mas, sobretudo, ao dever da sociedade, in-
cluindo suas instituições educacionais, de se 2- Hastes cilíndricas, pequenas e grandes,
adaptar às diferenças individuais das pessoas representando ervilheiras baixas e altas;
com deficiências. No âmbito educacional, a 3- Flores de plástico, pequenas, nas cores
“Declaração de Salamanca” ressaltou tam- brancas e vermelhas;
bém a importância de se garantir ao estudan-
te com necessidade especial a matrícula e a 4- Sementes de ervilhas naturais ou arti-
permanência em sala de aula no ensino regu- ficiais, nas seguintes cores e formatos -
lar, estimulando a convivência na diferença. amarelas ou verdes, lisas ou enrugadas;

Movidos por compromissos ético-epistemo- 5- Argolinhas coloridas de diferentes forma-


lógicos e pela urgência desta pauta socioedu- tos e texturas, confeccionadas a partir de
cativa inclusiva e instituinte, concebemos um mangueira de jardim ou madeira, repre-
material didático eficiente, estético, tateável, sentando os diferentes alelos;
barato e fácil de ser confeccionado e replica- 6- Letras colantes, decalques ou texturas,
do para uso no processo ensino-aprendiza- para representação gráfica, pictórica ou
gem de Genética, especialmente no que se tátil dos diferentes alelos.
refere à 1a Lei de Mendel.

Figura 1.

368 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

DIMENSÕES E de nos mesmos (Figura 1). Embora não seja


essencial, ganha-se em estética e ludicidade
PREPARAÇÃO DO JOGO quando se busca, na confecção do Jogo, uma
A primeira peça a ser confeccionada é a similaridade com o Jardim de Mendel (Fi-
superfície plana que servirá de tabuleiro, gura 2), construído no Mosteiro da Ordem
representando o “solo para o plantio das de Santo Agostinho (Figura 3), em Brno,
ervilheiras e cruzamentos”. Em nosso caso, cidade pertencente hoje à Republica Che-
usamos primeiramente um Tabuleiro de ca. Esta similaridade pode ser mostrada aos
Xadrez em um filme didático (https:// estudantes através do filme “Quem foi que
vimeo.com/104961599), o qual foi cui- disse: sobre Mendel e a produção de conhe-
dadosamente furado com uma broca. Os cimento” (https://vimeo.com/104961599)
furos no tabuleiro podem seguir qualquer e posteriormente explorada pelo professor,
disposição, mas o jogo fica mais estético em narrativas e contextualizações sobre a
quando se busca um padrão ou regularida- vida e a obra de Mendel.

Figura 2.

Figura 3.

Sociedade Brasileira de Genética 369


MATERIAIS DIDÁTICOS

Embora o jogo possa ser confeccionado em res hereditários, genes, alelos) para se ganhar
qualquer tamanho, há de se buscar uma em praticidade e estética. Estas dimensões,
proporção adequada entre as dimensões do apresentadas na Tabela 1, servem como refe-
tabuleiro, dos furos, das hastes cilíndricas rência para a construção do “Jardim de Men-
(ervilheiras) e das argolinhas coloridas (fato- del”, seja ele estudante ou professor.

Tabela 1.
Peças Dimensões Dimensões das peças utilizadas
para a construção do Jardim de
Tabuleiro de Xadrez 40 cm x 40 cm Mendel

Jardim de Mendel 40 cm x 20 cm

Furos do Tabuleiro Ø 1,6 cm

Argolinhas Espessura 7 cm; Ø 1,7 cm

Haste cilíndrica grande 10 cm; Ø 1,5 cm

Haste cilíndrica pequena 5 cm; Ø 1,5 cm

O jogo pode ser ainda aprimorado com a PROCEDIMENTO


aquisição de flores pequenas (vermelhas ou
brancas) de plástico, a serem dispostas em O Jardim de Mendel, enquanto recurso di-
posição terminal (flor inserida em um furi- dático, pode ser utilizado com estudantes
nho no topo da haste) ou axial (flor inserida videntes e não-videntes, em diferentes ní-
em um furinho lateral, na parte superior da veis de escolaridade e faixa etária. Embora a
haste) nas ervilheiras. Ganha-se ludicidade abordagem inicial do professor possa variar,
e potencialidade pedagógica (formulação dependendo do conjunto de seus estudan-
de problemas) se forem confeccionadas as tes e do contexto escolar, existe uma etapa
sementes de ervilhas (lisas ou enrugadas; que é fundamental para a motivação, par-
amarelas ou verdes) e as vagens (franzidas ticipação e aprendizagem significativa dos
ou infladas, verdes ou amareladas). A dis- mesmos – a formulação do problema e/ou
posição dos parentais (P), dos “híbridos” da pergunta. Nesta perspectiva, as peças
(H) ou geração F1 e das gerações sucessivas não devem ser colocadas no tabuleiro sem
(F2, F3, F4) pode ser feita tirando proveito a compreensão do problema pois corre-se
da ordem das casas do tabuleiro. A repre- o risco dos estudantes se dispersarem ou,
sentação gráfica - alfabética ou Braille - dos no limite, alcançarem somente uma apren-
alelos (AA, Aa, aa) pode ser colada nas dizagem mecânica, sem a devida reflexão.
argolinhas ou nas peças de outro formato, Em nossa experiência, o cruzamento de
usadas para o mesmo fim (Figura 4). Como plantas altas com plantas baixas (paren-
a imaginação não tem limite, as hastes po- tais) produz um espanto nos estudantes,
dem representar outras plantas, animais ou posto que a geração F1 é composta, ex-
mesmo seres humanos, com diferentes ge- clusivamente, de plantas altas. O fato de
nótipos e fenótipos, no lugar das famosas as plantas baixas não aparecerem na F1, e
ervilheiras.

370 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

tampouco plantas de tamanho intermediá- cores diferenciadas. Na presença de cegos,


rio, deve ser explorado pelo professor, junto podem ser utilizadas argolinhas com textu-
com os estudantes, na formulação de hipó- ra diferenciada, ou em diferentes formatos,
teses explicativas para o fenômeno. Quando para representar os diferentes pares aléli-
se mostra o resultado da F2, o espanto au- cos. É possível também utilizar argolinhas
menta pois agora as plantas baixas ressur- em madeira, com representação gráfica em
gem, na proporção de 3 plantas altas para 1 Braille.
baixa (3:1). As hipóteses produzidas pelos
O estabelecimento de regras e premiações
estudantes podem ser aprimoradas e con-
para a solução de problemas de Genética
frontadas umas com as outras e também
mendeliana fica a critério do professor e de
com aquela que foi enunciada por Mendel
seus estudantes. Bom jogo e boa aprendi-
- fatores hereditários. Neste momento, o
zagem!
professor pode explorar a constituição alé-
lica dos parentais e das gerações F1, F2 e até
F3, dependendo do tamanho do tabuleiro e
do objeto de aprendizagem formulado pelo
professor. No caso de estudantes cegos, as
hastes baixas e altas podem ser facilmente
tateáveis e, assim, comparadas em seu ta-
manho, representando as plantas baixas
e altas. Quanto às argolinhas, elas podem
ser confeccionadas no mesmo formato, com

<a href=”http://www.shutterstock.com/gallery-631930p1.html?cr=00&pl=edit-00”>vvoe</a> / <a href=”http://www.shutterstock.com/editorial?cr=00&pl=edit-00”>Shutterstock.com</a>

Sociedade Brasileira de Genética 371


MATERIAIS DIDÁTICOS

Carteando
com Mendel

Carolina Vianna Morgante1, Jane Eyre Gabriel2, Tarcísio Dourado Santos2

Embrapa Semiárido, Petrolina, PE.


1

Universidade Federal do Vale do São Francisco, Campus de Ciências Agrárias, Petrolina, PE.
2

Autor para correspondência: carolina.morgante@embrapa.br

372 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

E ste jogo de cartas tem por objetivo mobilizar conceitos


essenciais ao entendimento das Leis de Mendel. Nele
são explorados conceitos, tais como fenótipo/genótipo,
cromossomos homólogos, genes, alelos, ploidia e formação
de gametas, recessividade/dominância e homozigose/
heterozigose. Este material didático também permite a
contextualização histórica dos trabalhos de Mendel e a
iniciação aos fundamentos das Leis de Mendel, sem, no
entanto, explorar mecanismos meióticos de recombinação
gênica, assunto que deve ser trabalhado em etapa posterior.

E ste jogo é recomendado para estudantes


que estejam cursando o Ensino Médio,
quando os conceitos relacionados às Leis de
Mendel e suas implicações são discutidos
em maior profundidade. Assim, pretende-
-se que o estudante seja capaz de adquirir
habilidades e competências básicas sob uma
perspectiva que priorize não somente a mera
reprodução do conhecimento teórico, mas
também o desenvolvimento de raciocínio
crítico e questionador dos conteúdos asso-
ciados à hereditariedade e à transmissão dos
caracteres hereditários.

ATIVIDADES ANTERIORES
AO JOGO
Preparando o material didático
Para o jogo são necessárias 17 cartas cujos
modelos estão disponíveis no Anexo A. Su-
gere-se sua impressão em papel sulfite A4 e
posterior colagem em cartolina, para que as
cartas adquiram rigidez. Além disso, para
evitar que os jogadores reconheçam as cartas
por transparência, recomenda-se a impressão
e colagem da Carta Verso (Anexo A) atrás de
cada uma das 17 cartas do baralho. Estas de-
vem apresentar o mesmo tamanho e os ver-
sos uniformes, de forma a não permitir sua
identificação sem que se veja seu conteúdo.

Sociedade Brasileira de Genética 373


MATERIAIS DIDÁTICOS

As 17 cartas do baralho formam quatro po para reforçar a definição dos termos do-
grupos temáticos, cada um composto por minante e recessivo.
quatro cartas: (1) Mendel e seus estudos
Cartas do 3º Grupo
com a ervilha; (2) Conceitos básicos para o
(1ª Lei de Mendel):
entendimento das Leis de Mendel; (3) Pri-
meira Lei de Mendel; (4) Segunda Lei de a) Apresentar o tema a ser abordado nes-
Mendel. Uma carta que não faz parte dos se novo grupo de cartas (CARTA 9),
agrupamentos retrata a figura de Mendel enunciando em seguida a 1ª Lei de Men-
(CARTA 17). del (CARTA 10);
Apresentando as cartas b) Destacar informações sobre a formação
aos estudantes dos gametas a partir dos parentais e a
formação da geração F1, atentando para
Recomenda-se que o jogo seja utilizado
os genótipos, fenótipos e as respectivas
como atividade complementar para a fixação
frequências (CARTA 11);
de conceitos teóricos previamente trabalha-
dos em sala de aula. Antes do início do jogo, c) Explorar o processo de autofecundação
é necessário que o professor apresente aos da geração F1, os gametas e a descen-
estudantes cada carta do baralho, atendo-se, dência gerada e sua frequência fenotípica
nesse momento, a revisar conceitos envolvi- (3:1), conforme ilustrado no quadrado
dos nessa temática, conforme roteiro pro- de Punnett (CARTA 12).
posto abaixo: Cartas do 4º Grupo
Cartas do 1º Grupo (2ª Lei de Mendel):
(Mendel e seus estudos com a ervilha): a) Destacar que, com esse grupo de car-
a) Revisar com os estudantes aspectos as- tas, serão tratados aspectos da 2ª Lei de
sociados à contextualização da época, do Mendel (CARTA 13) e seu enunciado
cenário científico (CARTA 1) e do local (CARTA 14). Enfatizar a formação dos
(CARTA 2), onde Mendel realizou seus gametas haploides a partir dos parentais
experimentos; e os genótipos, fenótipos e respectivas
frequências esperadas na geração F1
b) Destacar as sete características domi-
(CARTA 15).
nantes (CARTA 3) e recessivas (CAR-
TA 4) com seus respectivos fenótipos: b) Explorar o processo de autofecundação
forma e cor da semente, cor das flores, dos indivíduos da F1, a formação de seus
forma e cor da vagem, posição das flores gametas e a descendência gerada, ilus-
e altura das plantas. tradas no quadrado de Punnett, enfati-
zando a proporção fenotípica esperada
Para essa seção, sugere-se ao professor a lei-
(9:3:3:1) (CARTA 16).
tura prévia do artigo de Gregor Mendel so-
bre a hibridização de ervilhas, disponível em O tempo necessário para a apresentação das
português (MENDES, 2013). cartas é variável e depende do nível de com-
preensão do tema pelos estudantes, minis-
Cartas do 2º Grupo
trado previamente em aula teórica.
(Conceitos básicos para o entendimento
das Leis de Mendel):
O JOGO
a) Explorar os conceitos de fenótipo e ge- a - São necessários quatro participantes. O
nótipo (CARTA 5), células diploides e objetivo é reunir quatro cartas de um
gametas (haploides) (CARTA 6), hete- mesmo agrupamento temático. Para o
rozigótico e homozigóticos dominante início do jogo, as cartas devem ser em-
e recessivo (CARTA 7), cromossomos baralhadas e distribuídas a cada parti-
homólogos e alelos (CARTA 8). cipante, que deve segurar suas cartas de
Nesse momento, o professor também pode forma que seu conteúdo não possa ser
utilizar as CARTAS 3 e 4 do primeiro gru- visto pelos demais jogadores.

374 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

b - Aquele que receber cinco cartas começa e - Outras partidas podem ser realizadas
a partida, selecionando uma carta inde- até que os alunos mostrem ter compre-
sejada e passando-a para seu colega da endido as informações e os conceitos
direita. esquematizados nas cartas. Cabe ao do-
cente orientar o número de partidas a
c - O mesmo procedimento deve ser segui-
serem realizadas, considerando que para
do pelo jogador que receber a carta, com
cada uma são gastos de 5 a 10 minutos.
a ressalva de que, para passar a carta que
contém a figura de Mendel, deve neces- Para a verificação da aprendizagem dos con-
sariamente aguardar uma rodada. As- ceitos explorados nessa atividade, sugere-se
sim, ao receber a carta com a figura de ao professor desafiar os alunos a resolverem
Mendel, o jogador não pode direcioná-la exercícios teóricos de cálculo de frequências
imediatamente para seu colega da direi- fenotípicas e genotípicas em cruzamentos
ta, devendo selecionar outra carta e, ape- controlados. Essas questões podem ser cria-
nas quando receber novamente uma car- das e propostas pelo professor ou então sele-
ta, pode passar aquela contendo a figura cionadas entre as disponíveis em livros didá-
de Mendel ao jogador seguinte. ticos de Biologia para o Ensino Médio.
d - O participante que conseguir reunir
primeiro as quatro cartas de um mesmo REFERÊNCIAS
agrupamento temático identifica-se, co- MENDES, R. V. Experimento de hibrida-
locando-as sobre a mesa. Os demais jo- ção de plantas - o artigo de Gregor Mendel.
gadores conferem as cartas e o declaram Genética na Escola, v. 8, n.1, p. 86-103, 2013.
ou não vencedor.

AS CARTAS

Sociedade Brasileira de Genética 375


MATERIAIS DIDÁTICOS

376 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Sociedade Brasileira de Genética 377


MATERIAIS DIDÁTICOS

378 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Sociedade Brasileira de Genética 379


RESENHAS

Programa de Áudio Mendel:


O pai da genética,
da Série Biografias:
o passado explica
o presente

Eduardo Galembeck

Instituto de Biologia UNICAMP

Autor para correspondência: eg@unicamp.br

380 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

P roduzido dentro do projeto Condigitais, uma demanda induzida pelo


MEC (Ministério de Educação) para a produção de materiais educacionais
digitais, a biografia de Gregor Johannes Mendel é apresentada em dois arquivos
no formato .mp3 com 5 minutos de duração cada bloco.

O primeiro bloco do programa inicia-se


destacando como Monge e pesquisa-
dor Gregor Mendel que ficou conhecido
O segundo bloco tem início com a descrição
do método experimental adotado por Men-
del, destacando a importância das descober-
como o Pai da Genética, realizando experi- tas dele relativas à questão da hereditarieda-
mentos fundamentais para o entendimen- de para a consolidação da teoria darwinista
to da Biologia moderna. No programa são da Evolução, na primeira metade do século
relatadas experiências que possibilitaram a XX, na elaboração da Teoria Sintética da
descrição da transmissão de características Evolução. Nesta passagem é relatado que
de uma geração para outra, que foram pu- Mendel chegou a ler o livro “A Origem das
blicadas em 1865 no artigo “Experiências Espécies”, mas que não há evidência de que
Sobre Híbridos Vegetais”, mas que só veio Darwin tenha conhecido as Leis de Mendel.
a ser amplamente conhecido a partir de No final do programa ainda é destacada a
1900. Na passagem que fala sobre a infân- contribuição de Mendel à apicultura, é rela-
cia e juventude de Mendel, é interessante tado o episódio de sua morte e feito menção
notar a trilha sonora contextualizada na aos cientistas que descobriram e divulgaram
época em que Mendel viveu. O primeiro as ideias de Mendel.
bloco encerra-se quando Mendel deu iní-
Os autores vinculam o programa no currícu-
cio aos seus experimentos no mosteiro em
lo de Biologia ao tema estruturador “Trans-
que viveu.
missão da vida, ética e manipulação gênica.”

Ficha Técnica:
Redação: Dilermando Pesci Galves dos Santos
Revisão de Conteúdo: Helika Amemiya Chikuchi
Roteiro: Luciana Fonseca e Marina Gama
Locução: Glauce Leal
Assistência de Produção: Carolina Inácio
Trilha Sonora: Weber Pereira Marely e Lucas Lima
Trabalhos técnicos: Rafael Bembibre
Supervisão Técnica: Álvaro Bufarah
Coordenação de Mídias Audiovisuais: Eduardo Paiva
Coordenação Geral: Eduardo Galembeck

Disponibilidade:
A Biografia de Mendel está disponível gratuitamente na Biblioteca Digital de Ciências (BDC)
no endereço:
http://www.bdc.ib.unicamp.br/bdc/visualizarMaterial.php?idMaterial=791#.VzzZCmN_-
-5M

Distribuído sob a licença Creative Commons, podendo ser usado e editado livremente sem
fins comercias.

Sociedade Brasileira de Genética 381


RESENHAS

O Monge no Jardim,
o gênio esquecido
e redescoberto de
Gregor Mendel,
pai da Genética

Eduardo Bessa
Curso de Ciências Naturais, Universidade de Brasília, Planaltina, DF.

Autor para correspondência: profbessa@unb.br

382 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

P assados 150 anos e com todo o progresso que a genética experimentou, é fácil
glorificar os personagens dessa história muito além do devido. A biografia
de Robin Marantz Henig inverte essa lógica e recria a imagem de Mendel como
um cientista dedicado, curioso e inovador, mas não como o gênio à frente de seu
tempo como usualmente é apresentado.

O livro foi publicado em 2001 pela edi-


tora Rocco, mas sua importância volta
com o aniversário dos estudos de Mendel, já
ção. Quando descobriu os trabalhos de Men-
del, Correns percebeu que poderia fazer De
Vries provar de seu próprio veneno, e alar-
que é sua única biografia em Português. A deou para toda a comunidade acadêmica que
autora descreve a trajetória de vida de Men- aquele monge anônimo havia precedido a ele
del e sua meticulosa dedicação à ciência, in- próprio e a De Vries em algumas décadas.
cluindo detalhes pitorescos que temperam Idealizar Mendel era espezinhar seu rival.
as boas biografias. Por exemplo, Mendel foi
Em termos pedagógicos, o livro pode ser tra-
dissuadido de estudar hibridação em ratos
balhado no ensino fundamental II ou ensino
por não ser considerado adequado para al-
médio. Uma abordagem multidisciplinar ri-
guém que proferiu voto de castidade passar
quíssima poderia envolver professores de Li-
o tempo observando roedores acasalarem.
teratura (conduzindo a leitura do texto); os
As descobertas da genética são colocadas
de Biologia (trabalhando os aspectos genéti-
em perspectiva mais de uma vez ao longo do
cos); História (contextualizando os diferen-
livro, à medida que a autora demonstra sua
tes cenários na História européia) e Mate-
importância para a Evolução e para a Biolo-
mática (avaliando os métodos quantitativos
gia Molecular moderna.
aplicados pelo geneticista). Essa metodologia
O maior mérito do livro é apresentar Mendel estaria em consonância com os temas trans-
como um ser humano comum. Ele frustrou- versais, em especial o que fala em Cultura e
-se ao ser reprovado mais de uma vez no exa- Sociedade.
me para ser professor. Tornava-se inseguro e
Dentre os poucos registros dos escritos de
impaciente diante de autoridades. Evitava o
Mendel está um poema escrito na adolescên-
trabalho pesado da lavoura escondendo-se
cia no qual ele diz: “Possa o poder do destino
de seu pai. Incluiu uma abordagem mate-
me conferir o supremo êxtase da felicidade
mática de seus experimentos com híbridos
terrena de observar, quando me erguer de
apenas porque essa era a moda na Europa.
minha tumba, minha arte florescendo pa-
Era guloso e tão encrenqueiro que, no final
cificamente entre os que vieram depois de
da vida, mesmo num mosteiro cheio, só tinha
mim.” Livre do pedestal sobre o qual Mendel
a companhia eventual dos sobrinhos.
costuma ser colocado, a imagem do homem
A idealização de sua imagem, argumenta a comum, mas dedicado, que essa biografia
autora, deriva de uma disputa de egos. Por constrói, faz com que se possa imaginar que
volta de 1900, as pesquisas de Karl Correns a aspiração ao sucesso e à eternidade foram
já haviam sido antecipadas duas vezes pelo alcançadas. Poucas pessoas podem dizer que
rival Hugo De Vries e uma terceira estava se seus trabalhos mudaram a compreensão que
configurando no que dizia respeito à hibrida- a humanidade tem do mundo.

Sociedade Brasileira de Genética 383


RESENHAS

Quem foi que disse:


sobre Mendel e a
produção do conhecimento
Luiz Antonio Botelho Andrade

Universidade Federal Fluminense. Departamento de Imunobiologia.

Autor para correspondência: labauff@yahoo.com.br

U m estudante entra em um túnel do tempo e se encontra com Gregor Mendel,


no Mosteiro de Brünn, em 1864. Após o mútuo estranhamento, Mendel
conversa com o jovem sobre ciência e lhe mostra as etapas de seu trabalho
científico com as ervilhas-de-cheiro, Pisum sativum. Quando do retorno ao
presente, o jovem volta como um híbrido, portando os óculos, o anel, a roupa e
parte da personalidade e do conhecimento de Mendel. Entre a representação e a
possível realidade, eis um filme sobre a vida e a obra de Gregor Mendel, o pai da
Genética. Este filme faz parte do Programa “Quem foi que disse” desenvolvido
na Universidade Federal Fluminense, dirigido por Luiz Andrade.

A través da ficção, um estudante sente-se


desafiado pelo professor a explicar a 1a
Lei de Mendel. Ao girar o rosto para fora da
sala de aula, ele entra em um túnel do tempo
que o leva ao encontro com Mendel, em ple-
no Jardim do Mosteiro de Brünn, em 1864.
Vencido o duplo estranhamento, de tempo
e de lugar, Mendel mostra ao visitante o seu
trabalho científico com as ervilhas-de-cheiro
da espécie Pisum sativum. Os dois persona-
gens conversam sobre o fazer da ciência e, ao
longo da visita (atemporal), Mendel mostra
as etapas de seu experimento com as ervi-
lhas, incluindo o artigo no qual ele publicou
a sua descoberta.

384 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Considerando que Mendel gostava de jogar


Xadrez com seus sobrinhos e era um profes-
sor dedicado, há uma cena, de pura ficção, na
qual o tabuleiro de Xadrez é transformado
em recurso didático. No filme, o extroverti-
do e jovial estudante elogia Mendel, enquan-
to professor e cientista, mas, percebendo a
sua descrença, convida o Monge para uma
visita ao futuro. Na passagem de retorno
pelo túnel do tempo, ocorre um “hibridismo” É enfocado um Mendel tímido, modesto, re-
de personalidades e adereços e, assim, o es- provado por duas vezes pela Universidade de
tudante retorna ao presente, sem os brincos Viena, quando da obtenção da licença docen-
que ele portava, mas com os óculos, o anel, a te e, portanto, triste, porque descrente dele
roupa e parte da personalidade e do conhe- mesmo e por outro lado, apesar das críticas,
cimento de Mendel. a imagem de um cientista-herói. A síntese
entre estas duas forças, social e psicológica,
está no final, mostrando um Mendel altivo,
sereno, agradecido e feliz pelo seu legado à
Genética e pelos resultados que esta ciência
tem produzido para toda a humanidade.

Ao chegar ao Brasil, o estudante-Mendel O filme vem sendo utilizado em espaços


visita o Cristo Redentor, a Igreja da Cande- formais e não formais de educação e o jogo
lária, uma exposição sobre ele mesmo - De mostrado no filme, transformado em mate-
Mendel a Ventor, na UERJ, uma comuni- rial didático, vem sendo utilizado no proces-
dade do Morro do Palácio, em Niterói, as so ensino-aprendizagem de Genética para
Cataratas de Foz do Iguaçu e a cidade de videntes e para cegos. O produtor e diretor
mesmo nome, onde estava ocorrendo o 58o do filme é Luiz Andrade; Felipe Xavier, cui-
Congresso Brasileiro de Genética. Neste dou da montagem; Beto Barcellos, diretor
cenário proporcionado pela comunidade de imagética; duração: 32 min; Ano: 2014.
científica, com a participação dos geneti- A classificação é livre. O filme pode ser en-
cistas brasileiros – Edmundo Marques e contrado tanto na sua versão original (ht-
Francisco Salzano – e do geneticista suíço, tps://vimeo.com/104922209), quanto na
Walter Gehring, indicado para Prêmio No- sua versão para cegos, com audiodescrição
bel pelo seu trabalho em Biologia do Desen- (https://vimeo.com/135180189).
volvimento. O documentário “hibridiza-se”
com a ficção, em toda sua potência, quando
do abraço fraterno entre Francisco Salzano
e o estudante-Mendel. Nesse momento, a
voz do professor desperta o estudante da
imaginária viagem e faz com que ele retorne
para a sala de aula. Ato contínuo, ele aceita o
desafio do professor, levanta-se e explica aos
colegas a 1a Lei de Mendel.

Sociedade Brasileira de Genética 385


UM GENE

O gene Stay-Green
e a cor das sementes
de Mendel

Bruno Henrique Garcia1 e Tiago Campos Pereira1,2


1
Departamento de Biologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.
2
Programa de Pós-Graduação em Genética, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.

Autor para correspondência: tiagocampospereira@ffclrp.usp.br

386 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

N os estudos clássicos de Gregor Mendel com as variações


fenotípicas vistas em Pisum sativum (ervilha), sete
características contrastantes foram observadas e estudadas.
Sem dúvida, a característica coloração da semente de ervilha
(amarelo versus verde) tornou-se um dos exemplos mais
famosos da Genética. Hoje, tal exemplo é conhecido não só
por pessoas do meio acadêmico, como também por estudantes
e curiosos a respeito do assunto. Atualmente sabemos que tal
variação de cor deve-se a uma mutação gênica que interfere
no processo normal de degradação da clorofila dos tecidos
fotossintetizantes. O artigo apresenta o gene stay-green, o
responsável pelos fenótipos amarelo/verde observados nas
ervilhas por Mendel.

Sociedade Brasileira de Genética 387


UM GENE

A FOTOSSÍNTESE tetizantes são verdes porque as moléculas


de clorofila absorvem grande parte do es-
E OS TIPOS DE CLOROFILA pectro luminoso visível (convertendo-o em

A vida na Terra é dependente da energia


proveniente do Sol, que é convertida
em energia química através de uma com-
energia química) e refletem em especial a
luz verde, que é captada por nossos olhos.
Estes tecidos são ricos em cloroplastos, or-
plexa série de reações denominadas, con- ganelas celulares nos quais estão localiza-
juntamente, de fotossíntese. De maneira dos os fotossistemas (figura 1), por sua vez
muito simplificada este processo pode ser constituídos pelos: (i) Complexo Coletor de
representado pela equação 6CO2 + 6H2O Luz (LHC) e (ii) Complexo do Centro de
+ luz → C6H12O6+ 6O2. A luz que faz Reação (CCR). Alguns dos elementos cen-
parte desta reação corresponde a fótons trais destes fotossistemas são os pigmentos
que viajaram 150 milhões de quilômetros associados à fotossíntese: clorofila a (Chl a),
do Sol até a superfície terrestre e que são clorofila b (Chl b) e os carotenoides. Carotenoide - uma classe
utilizados para a síntese de carboidratos – ubíqua de moléculas nos
moléculas orgânicas que atuam, em última As clorofilas a e b são quimicamente mui- organismos vivos e relacionada
análise, como “reserva bioquímica da ener- to semelhantes entre si. A clorofila a é o ao caroteno. Trata-se de
pigmento-chave na captação dos fótons e um pigmento de coloração
gia solar”, que serão utilizados como fontes amarelada ou alaranjada
energéticas para os inúmeros processos ce- está presente nos dois complexos (CCR e
que atua em diversos
lulares. LHC), ao passo que a clorofila b tem um pa- aspectos celulares, tais como:
pel acessório e está localizada no LHC. Os fotossíntese, proteção contra o
A fotossíntese ocorre nos tecidos verdes carotenoides parecem atuar principalmente estresse oxidativo e modulação
das plantas (caules verdes, frutos verdes e na fotoproteção, absorvendo e dissipando o da microviscosidade de
principalmente folhas). Os tecidos fotossin- membranas.
excesso de energia luminosa.

Figura 1.
A estrutura do fotossistema. A
fotossíntese é uma complexa
série de reações que convertem
energia luminosa em energia
química dentro do cloroplasto.
Algumas destas etapas ocorrem
nos fotossistemas, localizados nas
membranas dos tilacóides; outras
etapas ocorrem no estroma
(fluido entre os tilacóides).
A imagem representa um
fotossistema e seus componentes:
o Complexo Coletor de Luz (LHC)
e o Complexo do Centro de
Reação (CCR). Os fótons incidem
sobre pigmentos do LHC (como
a clorofila b), sendo esta energia
sequencialmente transmitida
até alcançar um par especial de
clorofilas a localizado no CCR.
A energia do fóton promove a
transferência do elétron (e-) da
clorofila a (Chl a) do CCR para
o aceptor primário de elétrons
(APE). Adaptado de REECE et
al., 2015.

388 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

A VIA DE DEGRADAÇÃO OS MUTANTES


DA CLOROFILA a “STAY-GREEN”
EM FOLHAS SENESCENTES Os mutantes que retêm a coloração verde
Durante o período de senescência normal durante a senescência são conhecidos como
dos tecidos fotossintetizantes da ervilha, a stay-green (do inglês, “permanecem verdes”).
clorofila b é degradada, resultando na cloro- Diversos genes regulam o processo de se-
fila a, em um processo que ocorre em três nescência foliar como, por exemplo, os genes
etapas (figura 2): (i) hidrólise da Chl a em envolvidos na regulação hormonal. Por isso,
clorofilida e fitol pela ação da clorofilase; (ii) falhas na produção de hormônios podem ge-
remoção de Mg2+ da clorofilida, catalisada rar um mutante “stay-green”. Outra forma de
pela Mg-dequelatase, produzindo feoforbí- gerar este fenótipo é por meio de mutações
deo e (iii) clivagem do feoforbídeo por meio em genes da via de degradação da clorofila.
NYC1 é a enzima responsável da feoforbídeo a-oxigenase. No terceiro Neste contexto, destaca-se o gene SGR
por metabolizar a clorofila b em passo, quando de fato a cor verde é perdida, (stay-green), que tem um papel fundamen-
clorofila a. o feoforbídeo é convertido em um catabólito tal no catabolismo da clorofila. Apesar de
incolor. A partir de então, o tecido passa a ser um importante agente neste proces-
apresentar-se com uma coloração “de fundo”, so, seu exato papel ainda é incerto. Alguns
geralmente amarela. A deficiência enzimá- pesquisadores propõem que SGR regule
tica em qualquer uma das três etapas des- (pós-)traducionalmente as proteínas de
critas anteriormente pode resultar em um degradação de clorofila, como a NYC1, a
Enzima PaO, feoforbídeo fenótipo verde. enzima PaO e, possivelmente, também a
a-oxigenase, converte clorofilase (figura 2) (SATO et al., 2007).
feoforbídeo no produto
seguinte da via metabólica de
produção de um catabólito
incolor, o FCC.

Sociedade Brasileira de Genética 389


UM GENE

Figura 2.
A relação do gene stay-green
com a cor da semente. A via
Esta regulação mediada por SGR poderia Outros pesquisadores sugerem que a proteí- de catabolismo das clorofilas
ocorrer em diversos níveis: na síntese pro- na SGR poderia atuar facilitando a desmon- a e b envolve uma série de
teica (de NYC1, PaO e/ou clorofilase), na tagem do Complexo Coletor de Luz II (LH- passos, mediados por diversas
enzimas (NYC1, clorofilase,
estabilidade destas proteínas, em suas ativi- CII) (figura 1), liberando a clorofila b para a
Mg-dequelatase, feoforbídeo
dades enzimáticas e/ou na acessibilidade aos entrada na via de degradação da clorofila a a-oxigenase etc). O gene stay-
pigmentos (Figura 2). (AUBRY et al., 2008). green codifica uma proteína
que, de alguma forma, favorece
a degradação dos pigmentos de
clorofila. Alguns pesquisadores
acreditam que ele regule
positivamente as enzimas desta
via; outros sugerem que ela
auxilie na desmontagem do
Complexo Coletor de Luz (LHCII
- light harvesting complex II),
permitindo assim que a clorofila
b entre na via de degradação.
Em sementes yy a proteína SGR
não é funcional, de tal forma
que o processo de catabolismo
do pigmento não ocorre,
levando assim à manutenção da
coloração verde.

390 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O GENE SGR Conforme mencionado anteriormente,


as plantas verdes possuem tanto clorofila
Fator é a unidade hereditária Segundo Mendel, havia um par de fatores
a quanto b, sendo que ambos os tipos so-
proposta por Mendel. De responsável pela característica da cor do
acordo com ele, um indivíduo frem processo de degradação, regulado pela
cotilédone e ele deduziu, pelos resultados
apresentaria dois fatores para proteína SGR de alguma forma ainda não
cada uma de suas características
de seus experimentos, que a cor amarela
completamente esclarecida: ou a proteína
(cor da semente, cor da flor, era dominante. Em 2007, Armstead e co-
SGR auxilia a desmontagem do LHCII,
rugosidade da semente etc). laboradores demonstraram que este fator
Um dos fatores teria sido liberando a clorofila b para degradação, ou
corresponde ao gene SGR em ervilhas. O
herdado do pai e, o outro, SGR regula positivamente as proteínas da
mutante deste gene retém não apenas a
da mãe. Na nomenclatura via de catabolismo da clorofila a (vide a Fi-
moderna, os fatores de Mendel coloração verde no cotilédone durante o
gura 2).
correspondem aos alelos. amadurecimento do fruto, como também
as folhas permanecem verdes durante a se-
nescência. A mutação é recessiva, portanto, PERSPECTIVAS
plantas com o alelo mutante em homozigo- E O GENE SGR
se são stay-green, enquanto as plantas hete- Os mutantes stay-green estão sendo usados
rozigóticas exibem o fenótipo amarelo. atualmente para o estudo bioquímico da via
O gene SGR localiza-se no braço longo de degradação da clorofila em plantas. O ma-
do cromossomo 9 e é formado por quatro peamento e a clonagem do gene s­tay-green
éxons e três íntrons. O segmento de DNA de diversas culturas agrícolas têm sido rea-
que corresponde ao gene apresenta cerca de lizados com o objetivo prático de aumen-
2.000 pares de bases e codifica uma proteí- tar o potencial de produção dos cultivares.
na de 263 aminoácidos (número de acesso Plantas geneticamente modificadas para o
no GenBank: AM884278.1). Ao se com- gene s­­ tay-green manteriam o período fotos-
parar as sequências do gene SGR de planta sintético mesmo sob condições desfavoráveis
selvagem com planta stay-green, algumas di- de cultivo e seriam capazes de sustentar alta
ferenças foram encontradas. A primeira de- produtividade.
las (T12S) foi uma troca de aminoácidos na
posição 12 da proteína: serina no lugar de REFERÊNCIAS
treonina. A segunda diferença foi uma tro- ARMSTEAD, I.; DONNISON, I.; AUBRY,
ca de aminoácido na posição 38 (N38K): S.; HARPER, J.; HÖRTENSTEINER, S.;
ácido aspártico foi substituído por lisina. A JAMES, C.; MANI, J.; MOFFET, M.; OU-
terceira diferença correspondeu à inserção GHAM, H.; ROBERTS, L.; THOMAS,
de dois aminoácidos (isoleucina e leucina) A.; WEEDEN, N.; THOMAS, H.; KING,
I. Cross-species identification of Mendel’s I
na posição 189 da proteína. Ao analisar
locus. Science, v.315, p. 73, 2007.
qual dessas alterações seria a responsável
pelo fenótipo “stay-green”, notou-se que as AUBRY, S.; MANI, J.; HÖRTENSTEINER,
mutações T12S e N38K ocorrem em pep- S. Stay-green protein, defective in Mendel’s
green cotyledon mutant, acts independent
tídeos de trânsito (sequência peptídica que
and upstream of pheophorbide a oxygenase
serve para direcionar a proteína para algu-
in the chlorophyll catabolic pathway. Plant
ma organela celular), enquanto a inserção Mol Biol. v.67, n.3, p. 243-56, 2008.
de isoleucina e leucina na posição 189 ocor-
re em uma região relativamente conservada REECE, J. B.; URRY, L. A.; CAIN, M. L.; WA-
SSERMAN, S. A.: MINORSKY, P. V.;
da proteína SGR. Quando a versão selva-
JACKSON, R.B. Biologia de Campbell. 10ª
gem do gene SGR foi modificada pela in- edição. Porto Alegre. Artmed, 2015.
serção de 6 pares de bases correspondentes
às trincas que codificam isoleucina e leuci- SATO, Y.: MORITA, R.; NISHIMURA,
na na posição 189, observou-se o fenótipo M.; YAMAGUCHI, H.; KUSABA, M.
Mendel’s green cotyledon gene encodes a po-
stay-green, comprovando que referida inser-
sitive regulator of the chlorophyll-degrading
ção de bases leva à perda de função do gene pathway. PNAS, v.104, p. 14169-14174,
(SATO et al., 2007). 2007.

Sociedade Brasileira de Genética 391


UM GENE

O gene SBEI e a
rugosidade das
ervilhas de Mendel

Gabriel José de Carli1 e Prof. Dr. Tiago Campos Pereira1,2


1
Programa de Pós-Graduação em Genética, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
2
Departamento de Biologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

Autor para correspondência: tiagocampospereira@ffclrp.usp.br

392 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

G regor Mendel contribuiu para o entendimento de


mecanismos básicos da herança genética, realizando
observações e registros precisos e detalhados ao fazer
cruzamentos entre linhagens de ervilha. No entanto, naquela
época não havia conhecimentos suficientes para se desvendar
e entender a natureza molecular dos fenótipos/genótipos
envolvidos em seus estudos. A primeira característica
fenotípica, daquelas estudadas por Mendel, a ter sua base
molecular elucidada foi a relacionada aos fenótipos liso/rugoso
das sementes de ervilha. O lócus r foi identificado em 1990 e
a proteína starch-branching enzyme I (SBEI) reconhecida como
a responsável por esta característica. O enfoque deste trabalho
é o modelo, proposto por Battacharyya e colaboradores, para
explicar a rugosidade de sementes de ervilhas com genótipo rr.

Sociedade Brasileira de Genética 393


UM GENE

O DESENVOLVIMENTO gia necessária, por exemplo, para o cresci-


mento da plântula nos primeiros momen-
DA SEMENTE tos após a germinação. Estes grãos são ricos

A s sementes são compostas basicamen-


te por três partes: um tecido embrio-
nário diplóide (2n) envolto por um tecido
em dois polímeros de glicose: a amilose (de
cadeia linear, mais simples) e a amilopecti-
na (de cadeia ramificada, mais complexa).
triplóide (o endosperma), ambos protegi- A ramificação observada na amilopectina é
dos externamente por uma casca. Sabe-se gerada pela ação da enzima starch-branching
que durante o desenvolvimento da semente enzyme I (enzima I de ramificação do ami-
ocorre a produção de estruturas intracelu- do) ou SBEI. Por serem ricas em glicose,
lares de reserva, como os grãos de amido ou ambas servem como excelentes reservas
amiloplastos (Figura 1) que fornecem ener- energéticas.

Figura 1.
Grão de amido na célula vegetal.
Esta estrutura de reserva
Durante o desenvolvimento da semente (Fi- O GENE SBEI E SEUS ALELOS energética é também conhecida
gura 2), diversas moléculas presentes nas como amiloplasto, sendo rica
No ano de 1990, Battacharyya e colabora-
células contribuem para criar uma pressão em dois polímeros de glicose:
dores clonaram o gene SBEI, associado aos a amilose e a amilopectina.
osmótica, levando a um acúmulo de água nos
fenótipos liso/rugoso (lócus r, do inglês ru- A enzima responsável pela
tecidos da semente. Entre estas moléculas
gosus, rugoso; WHITE, 1917). Eles iden- ramificação característica da
podemos citar a sucrose. amilopectina é a starch branching
tificaram dois alelos (R e r) (Figura 3), que
Posteriormente, no processo natural de ama- enzyme I (SBEI). Os hexágonos
apresentam uma alta expressão nas primei-
representam o monômero - a
durecimento da semente, grande parte da ras etapas do desenvolvimento da semente molécula de glicose.
água inicialmente acumulada é perdida (Fi- que declina nas fases tardias. O alelo R gera
gura 2), resultando em uma estrutura ma- um RNA mensageiro de ~3.500 nucleotíde-
dura e seca. Este baixo conteúdo hídrico da os, cuja tradução resulta na proteína SBEI,
semente madura é uma característica essen- de 922 resíduos de aminoácido (aa) (~105
cial que a torna viável por longos períodos de KDa), responsável por adicionar ramifica-
tempo mesmo em condições adversas, assim ções (ligações α-1,6) às cadeias de glicose,
como ocorre em esporos e pólen. gerando amilopectina. Sucrose (também conhecida
como sacarose) é um
dissacarídeo formado por
glicose e frutose.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Por outro lado, o RNA mensageiro corres- é incapaz de exercer atividade enzimática. A
pondente ao alelo r apresenta ~4.300 nu- sequência de DNA que está inserida no alelo
cleotídeos e menor abundância. Ele possui mutante possui alta semelhança à família de
Transposon Ac/Ds, (do uma inserção de DNA de 800 pares de bases transposons Ac/Ds, do milho, descoberta
inglês - Activator/Dissociation situada em um éxon na porção 3’ do gene. por Barbara McClintock na década de 1940.
Transposable Element). Esta mutação é responsável pela perda de 61 Portanto, postula-se que, durante a evolução
Transposons, também
conhecidos como elementos aa na extremidade carboxi-terminal. Apesar um elemento transponível dessa família te-
transponíveis, são entidades da proteína resultante ainda possuir 861 aa nha se inserido acidentalmente em tal gene,
genéticas capazes de fazer (~93% do tamanho da versão funcional), ela convertendo o alelo R no mutante r.
novas cópias de si mesmas e
integrá-las em outras partes do
genoma. “Ac/Ds” foi uma das
primeiras classes de transposons
descobertas.

Figura 2.
Alterações de volume durante
a formação da semente.
Durante o processo natural de
desenvolvimento da semente,
a pressão osmótica dentro das
células vegetais, gerada por
moléculas como a sucrose, leva
a um acúmulo de água nos
tecidos e consequente aumento
do volume. Posteriormente, em
etapas finais do amadurecimento
da semente, ocorre a
desidratação, cuja perda de
água promove o efeito oposto -
redução do volume dos tecidos.
Uma vez que as sementes rr
possuem mais sucrose, elas centração maior de sucrose (glicose + fru-
acumulam comparativamente
GENÓTIPOS E FENÓTIPOS
tose) nas sementes de genótipo rr em com-
mais água (devido à elevada A incapacidade da enzima codificada pelo
pressão osmótica). Na etapa paração às de genótipo RR e Rr (Figura 4).
alelo r em adicionar cadeias laterais (rami-
de desidratação, a semente Isto se deve a um fato simples: a síntese de
ficações) aos polímeros de glicose impossi-
perde água e reduz muito de amilose e amilopectina, que são polímeros de
volume. A casca (representada bilita a produção de amilopectina. Há pelo
glicose, utiliza esta molécula de açúcar. Con-
pela linha externa verde) não menos duas consequências derivadas disto.
encolhe. Consequentemente,
tudo, a produção de amilopectina demanda
ao acompanhar a redução de Primeiro, sem a produção de amilopectina, muito mais glicose (devido ao seu tamanho e
volume dos tecidos internos (linha que é um dos principais componentes dos ramificações). Portanto, nas sementes de ge-
laranja), ocorre o enrugamento. grãos de amido, sementes de genótipo rr nótipo rr, a grande quantidade de glicose não
Note as linhas paralelas possuem grãos menores e profundamente polimerizada em amilopectina é convertida
descontínuas: a maior expansão
fissurados. Segundo, observa-se uma con- em sucrose.
inicial de volume pelas sementes
rr pode ser acompanhada.

Sociedade Brasileira de Genética 395


UM GENE

Figura 3.
Diferença molecular entre o alelo
R e r. O retângulo azul superior
representa o alelo R, que codifica
uma versão funcional da enzima
I de ramificação do amido (SBEI).
O estudo de Battacharyya e
colaboradores (1990) evidenciou
Durante o amadurecimento de sementes te menos água durante a desidratação, há que um elemento de transposição
rr, acontece o curioso fenômeno de enruga- apenas uma leve redução do volume interno da classe Ac/Ds se integrou
na porção 3’ do gene da SBEI,
mento, devido a uma conjunção de fatores da semente. Portanto, a casca da semente gerando assim o alelo r, cujo
(Figura 2). Lembre-se de que durante o de- retrai-se apenas um pouco, conferindo um produto não é funcional. O RNA
senvolvimento normal da semente, a sucrose aspecto liso à superfície da mesma. mensageiro (linha sinuosa com
no interior da célula contribui na geração de a cauda poli-A) e a proteína
(barra cinza) são apresentados
uma pressão osmótica que promove um acú- CONCLUSÕES logo abaixo dos respectivos
mulo inicial de água nos tecidos e esta pres- O gene SBEI é pleiotrópico, afetando não alelos. A imagem é uma versão
são é proporcional ao número de moléculas apenas a composição final de carboidratos simplificada, sem a descrição de
no interior da célula. Portanto, uma vez que (que resulta em alterações na pressão osmó-
éxons e íntrons. A linha vermelha
células rr possuem uma quantidade maior tracejada evidencia uma perda
tica e no aspecto da superfície da semente), de 61 aminoácidos na porção
de sucrose, a pressão osmótica é maior, pro- mas também de outras biomoléculas tais carboxi-terminal da proteína
movendo um acúmulo proporcionalmente como lipídeos e proteínas (BATTACHA- codificada pelo alelo r. Triângulo:
maior de água e grande aumento do volume RYYA et al., 1990). Adicionalmente, outras região regulatória (promotor - P).
das células e dos tecidos. N: amino-terminal. C: carboxi-
análises evidenciaram que sementes RR de- terminal.
Por conseguinte, durante a etapa de desidra- senvolvidas em um meio de cultura hiperos-
tação, as sementes rr têm grande conteúdo mótico, apresentam alterações na composi-
de água a perder, levando-as a uma drástica ção de legumina, expressando o fenótipo rr. Legumina – componente
redução do volume celular e dos tecidos, sen- das sementes de muitas
Desta forma, o estudo do gene SBEI pode- leguminosas; caseína vegetal.
do diminuído o conteúdo interno da semen- rá fornecer uma maior compreensão sobre
te. Neste processo a casca da semente não so- a relação entre pressão osmótica, desenvol-
fre redução de suas dimensões e, por não ser vimento e composição diferencial de biomo-
elástica, ocorre o enrugamento. Uma vez que léculas nas sementes, tanto de ervilha como
sementes RR acumularam comparativamen- em sementes de outras espécies.

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 4.
Relação dos genótipos RR, Rr
e rr com o acúmulo de sucrose
na semente. O alelo R codifica REFERÊNCIAS ding Starch-Branching Enzyme. Cell, v. 60, p.
a versão funcional da enzima 115-122, 1990.
BATTACHARYYA, M. K.; SMITH, A. M.;
SBEI. Portanto, sementes RR WHITE, O. E. Studies of Inheritance in Pisum.
ELLIS, T. H. N.; HEDLEY, C.; MAR-
e Rr são capazes de sintetizar
TIN, C. The Wrinkled-Seed Character Proceedings of Amercian Philosophical Society,
a amilopectina. Uma vez que
a enzima codificada pelo alelo of Pea Described by Mendel Is Cause by a v. 56, p. 487-588, 1917.
r não é funcional, sementes rr Transposon-Like Insertion in a Gene Enco-
não produzem amilopectina,
consequentemente deixando uma
grande quantidade de glicose
disponível. Estas moléculas são
então convertidas em sucrose
(glicose + frutose). E1: enzima
envolvida na biossíntese de
amilose; E2: enzima envolvida na
biossíntese de sucrose.

Sociedade Brasileira de Genética 397


UM GENE

Mais sobre a
natureza molecular
dos fatores
mendelianos

Tiago Alves Jorge de Souza1 e Tiago Campos Pereira1,2


1
Programa de Pós-Graduação em Genética, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.
2
Departamento de Biologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.

Autor para correspondência: tiagocampospereira@ffclrp.usp.br

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

O s estudos de Mendel continuam sendo relevantes


para o ensino da Genética na atualidade, apesar de
terem sido publicados há um século e meio. O advento
da Biologia Molecular tem permitido um avanço nas
análises das variações moleculares associadas aos sete
caracteres estudados por Mendel em ervilha. No entanto,
ainda não se sabe ao certo quais são exatamente os genes
associados a algumas dessas características. Dos sete
caracteres, a cor e a forma da semente são usualmente os
mais abordados e utilizados para exemplificar os conceitos
de hereditariedade. Os genes envolvidos nesses caracteres
já foram clonados, sequenciados e relativamente bem
descritos. No presente artigo abordamos os lócus dos
outros cinco caracteres originalmente estudados por
Mendel, dando especial ênfase à natureza molecular e à
função dos genes relacionados a eles.

Sociedade Brasileira de Genética 399


UM GENE

O s experimentos do monge Gregor Mendel,


que tiveram início em 1856 e foram publica-
dos apenas em 1866, trataram de sete caracteres Caráter é um atributo
qualitativos em ervilha (Pisum sativum) (Figura fenotípico observável de um
1) e acabaram por revolucionar a compreensão da organismo; o mesmo que
“característica” ou “traço”.
hereditariedade. Apesar de se tratar de um estudo
realizado há 150 anos, os seus resultados continu-
am sendo válidos para introduzir conceitos básicos
de Genética. Obviamente, ao realizar os seus expe-
rimentos, Mendel não tinha conhecimento sobre
Gene é a unidade física gene, meiose ou mesmo DNA. Ele utilizou letras
fundamental da hereditariedade. para representar os fatores e os estados de domi- Fator é a unidade hereditária
Uma sequência de ácido nância ou recessividade associados à variação feno- proposta por Mendel. De
nucleico que codifica um único acordo com ele, um indivíduo
RNA funcional ou um único
típica dos caracteres.
apresentaria dois fatores para
polipeptídeo. Posteriormente, White (1917) representou esses cada uma de suas características
fatores com símbolos que são utilizados ainda hoje (cor da semente, cor da flor,
rugosidade da semente etc).
Lócus é o sítio ou local para se referir ao lócus gênico relacionado a esses Um dos fatores teria sido
no cromossomo onde um caracteres: A (para cor da flor); LE (comprimento do herdado do pai e, o outro,
determinado gene está caule); I (cor do cotilédone); R (forma da semente) da mãe. Na nomenclatura
localizado. moderna, os fatores de Mendel
GP (cor da vagem); V (forma das vagens) e FA (po-
correspondem aos alelos.
sição das flores).
Mais recentemente, com o advento da Biologia Mo-
lecular, tornou-se possível estudar mais profunda-
mente os genes envolvidos nos caracteres analisados
por Mendel (REID; ROSS, 2011). No entanto, até
o momento, apenas quatro caracteres possuem seus
genes e respectivas funções plenamente descritos.
Lócus LE - Antes da era Para outros dois caracteres há apenas genes candi-
da Genética Molecular e datos (Tabela 1).
Genômica, a identificação dos
genes geralmente era feita por Os caracteres mais amplamente discutidos e utiliza-
“Genética Direta” (Forward dos para exemplificar as leis de Mendel são a cor e a
Genetics): observação de um forma da semente. No entanto, apesar de pouco es-
fenótipo mutante, seguida por
análises de cruzamento (estudos tudados, os outros cinco caracteres foram igualmente
de ligação) para se identificar o importantes nas análises com mono e diíbridos, para
lócus (região do cromossomo) a postulação dos conceitos básicos da 1ª e 2ª leis
associado àquele fenótipo. mendelianas. Dessa forma, neste artigo nos propo- Leis Mendelianas:
A identificação do lócus não
mos a abordar, de forma sucinta, o que se sabe atu- conjunto de princípios sobre
implicava automaticamente
almente acerca da função e da identidade dos genes a hereditariedade que foram
em se conhecer o gene,
identificados por Mendel em
principalmente naquela época, associados a esses cinco caracteres (extensivamente
seus estudos. A primeira lei
em que os genomas não revisto em ELLIS et al. 2011; REID; ROSS, 2011). de Mendel afirma que os dois
eram sequenciados. O lócus
alelos de um par segregam-
era apenas uma região do
cromossomo (por exemplo: 1. COMPRIMENTO DO CAULE se durante a formação dos
gametas. A segunda lei afirma
cromossomo 3, braço longo, Sabe-se que existem vários genes relacionados à que os alelos de dois genes
região 23). A identificação de
produção de hormônios de crescimento em plantas. distintos segregam-se de
genes só pode ocorrer após
As descrições da variação no comprimento do caule maneira independente durante a
o sequenciamento molecular
formação dos gametas.
do lócus gênico (e estudos entre as linhagens puras (dominantes e recessivas)
funcionais). Historicamente, realizadas por Mendel, aliada às variedades de ervi-
deu-se o nome de LE ao lócus lheiras disponíveis naquela época, fornecem indícios
do gene que estaria associado
ao “comprimento do caule”.
suficientes para sugerir que o lócus LE é o respon-
LE é o nome do lócus, o nome sável por este caráter (DAVIDSON, et al. 2003;
do gene é Giberilina 3-oxidase WHITE, 1917).
(GA3ox).

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Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Figura 1.
Os sete caracteres estudados No entanto, a real função e identidade do mentadas estavam associadas a flores roxas
por Mendel. As naturezas gene associado a este caráter ficou envolta enquanto que as sementes claras ou despig-
moleculares de cinco
em mistério até 1980, quando ficou claro que mentadas estavam associadas a flores bran-
características (cor da flor,
posição das flores, cor da vagem, ele estava relacionado com o nível de regu- cas. A relação entre esses fenótipos era um
comprimento do caule e forma lação da giberelina bioativa GA1. Após uma claro indício de pleiotropismo de um único
da vagem) são apresentadas no análise molecular detalhada desse lócus (se- gene que estaria localizado no lócus A, mas
texto. A forma e cor da semente quenciamento aliado a estudos funcionais) não se sabe ao certo se Mendel notou isto.
são descritos nos artigos das
foi identificado o gene GA3ox codificador da
páginas 392 e 386 deste número Não só em ervilheiras, mas em vários ve-
da Genética na Escola. enzima Giberilina 3-oxidase (anteriormen-
getais, os compostos de antocianina são os
te denominada 3β-hidroxilase, responsável
responsáveis por conferir pigmentação ver-
por converter o precursor inativo GA20 em
melha, roxa ou azul às flores. Dessa forma,
GA1), essencial para a síntese de giberelinas.
iniciou-se uma busca na região cromossômi-
Clonagem: uma série de Após a clonagem e sequenciamento desse ca correspondente ao lócus A por genes rela-
procedimentos de Biologia gene, foi possível identificar e caracterizar al- cionados à via de antocianina (ELLIS et al.
Molecular que resulta na guns mutantes (le-1, le-2, le-3). Esses mutan- 2011; REID; ROSS, 2011).
obtenção de uma sequência
tes são deficientes na produção da enzima e
genética (por exemplo, um Apesar desta estratégia não ter sido bem su-
gene) isolado e inserido dentro apresentam níveis de giberelina 10 vezes me-
cedida, os pesquisadores encontraram outro
de um vetor (por exemplo, um nores do que o verificado nas plantas LeLe
plasmídio).
gene (ainda no lócus A) que poderia estar in-
selvagens. Essa diferença foi especialmente
diretamente associado à biossíntese de anto-
evidenciada nas partes aéreas das plantas.
cianina - o gene bHLH (basic helix-loop-helix
Devido à deficiência de produção da GA transcription factor).
3-oxidase nas plantas lele, elas apresentam
bHLH é um gene codificador de um fator de
comprimento do caule menor do que as
transcrição, um tipo de proteína que regula a
plantas selvagens (LeLe) e que as heterozi-
expressão de diversos outros genes. Portanto,
gotas (Lele). É importante ressaltar que essa
seria possível que bHLH estivesse regulando
diferença de tamanho entre os caules desses
indiretamente os genes da via de biossíntese
dois genótipos se deve à diferença no com-
de antocianinas.
primento da região dos internodos, não ao
número de nós (ELLIS et al. 2011; REID; Posteriormente bHLH foi sequenciado e a
ROSS, 2011). confirmação de seu envolvimento na colora-
ção das flores veio por meio de experimentos
2. COR DAS FLORES nos quais flores brancas foram revertidas em
pigmentadas quando bombardeadas com o
Mendel observou a existência de uma asso-
alelo bHLH selvagem. Portanto, o lócus A
ciação entre o revestimento da semente (tec-
está associado à ação de uma proteína de pa-
nicamente denominada testa) e a coloração
pel regulador da transcrição gênica (ELLIS
das flores de ervilheiras. Mais especificamen-
et al. 2011; REID; ROSS, 2011).
te, ele notou que sementes com testas pig-

Sociedade Brasileira de Genética 401


UM GENE

Tabela 1.
Descrição dos sete caracteres
estudados por Mendel (Baseado
em REID; ROSS, 2011).
I. II. III. IV. V. VI. VII.
Característica Fenótipo Fenótipo Símbolo O gene já é Genes Função gênica/
dominante recessivo do lócus conhecido? candidatos Processo biológico

Estrutura do cloroplasto
Cor da vagem Verde Amarelo GP Não LCD1 (?)
na parede da vagem

Posição da flor Axial Terminal FA Não CLV1 (?) Funcionamento do meristema

Formação de esclerênquima
Forma da vagem Inflada Murcha V (?) Não Não há
nas vagens

Conversão do precursor inativo


Comprimento
Alto Baixa LE GA3ox - GA20 em GA1
do caule
(hormônio de crescimento)

Fator de transcrição
Cor da flor Roxa Branca A bHLH - (regulação de genes da via
de biossíntese de antocianina)

Forma da Enzima de ramificação


Lisa Rugosa R SBE-I -
semente do amido - I

Cor do
Amarela Verde I Stay-green - Degradação da clorofila
cotilédone

3. COR DAS VAGENS na com mutações no gene LCD1 apresen-


tam fenótipo pálido em condições normais
O lócus GP está relacionado à cor verde das
de crescimento, o que é um indicativo de au-
vagens na sua forma selvagem e à cor amarela
sência de clorofila. Dessa forma, existe uma
na sua forma mutante (WHITE, 1917), po-
elevada chance desse gene ter sido indireta-
rém ainda não foi sequenciado.
mente estudado por Mendel (ELLIS et al.
Atualmente, cogita-se que essa variação na 2011; REID; ROSS, 2011).
coloração se deva a uma falha na formação
de complexos de clorofila no tecido da va- 4. POSIÇÃO DAS FLORES
gem. A partir do conhecimento acumulado
Mendel observou que as flores podiam ser
acerca do lócus GP, da identificação de genes
axiais, estando presentes ao longo do caule
em outras espécies que regulam o desenvol-
ou terminais estando arranjadas em uma fal- Sintenia é a ocorrência
vimento do cloroplasto e da possibilidade de
sa umbela (ou guarda-chuva) na parte termi- de dois ou mais genes em
conservação de sintenia entre os genomas um mesmo cromossomo. A
nal do caule. Essa concentração de flores na
de ervilha e Medicago truncatula, pode-se “conservação de sintenia” se
extremidade do caule provavelmente se deve
afirmar que a identificação do gene associa- refere à observação da mesma
a falhas na organização celular do meristema sequência (ordem) de genes
do ao caráter estudado por Mendel (cor das
apical da planta. Apesar do termo técnico de determinado cromossomo
vagens) deve aparecer em breve na literatura. preservada entre espécies
utilizado para descrever essa característica
Foi verificado que na região do genoma seja fasciação, é importante ressaltar que ele evolutivamente distantes.
de M. truncatula que é sintênica ao lócus não foi utilizado nos escritos originais de
GP de ervilhas está localizado o gene Me- Mendel. No entanto, a contínua utilização
dtr7g080590 que codifica uma proteína do desse termo para se referir a essa caracterís-
lúmen do cloroplasto que tem grandes simi- tica levou White (1917) a utilizar a sigla Fa
laridades com o gene LCD1 de Arabidopsis para representar o lócus relacionado a esse
thaliana. Curiosamente, plantas de A. thalia- fenótipo.

402 Genética na Escola | Vol. 11 | Nº 2 | Sup. | 2016


Genética na Escola – ISSN: 1980-3540

Em ervilhas existem alguns lócus que são Pv eram as mais comumente encontradas na
capazes de conferir este fenótipo fasciolado, época de Mendel.
sendo que os lócus Fa e Fas são os dois prin-
Dos sete caracteres estudados por ele, esse é
cipais candidatos. Estudos com A. thaliana
o que foi descrito com a menor riqueza de
têm ajudado a identificar genes candidatos
detalhes, o que dificulta a determinação de
para esses lócus. Dentre eles se destacam
genes candidatos para explicar tal caráter. No
o gene CLAVATA 3 (CLV3), codificador
entanto, uma análise dos aspectos fisiológi-
de pequenos peptídeos secretados e o gene
cos durante o desenvolvimento das vagens
CLAVATA 1 (CLV1), codificador de uma
pode vir elucidar essa questão (ELLIS et al.
proteína transmembrânica receptora destes
2011; REID; ROSS, 2011).
peptídeos, localizada no meristema apical.
Estas interações transmitem um sinal que CONSIDERAÇÕES FINAIS
mantém a população de células meristemáti- Em 1866 o trabalho de Mendel foi publica-
cas sob controle. Falhas na sinalização CLV do lançando os fundamentos da hereditarie-
promovem um acúmulo de células meriste- dade. Ao longo do século XX, um esforço
máticas, como visto nos fenótipos fasciola- conjunto e articulado entre diferentes áreas
dos de clv1 e clv3. Curiosamente, buscas em - evidências históricas, estudos fisiológicos,
Medicago sp. por regiões sintênicas a Fa e a análises bioquímicas e mais recentemente
Homólogo: que possui Fas identificaram sequências homólogas a dados moleculares - têm permitido identifi-
uma origem evolutiva CLV1, o que reforça a possibilidade de ter
comum. Portanto, sequências car e caracterizar alguns dos genes respon-
sido esse o gene indiretamente estudado por sáveis pelos caracteres originalmente estuda-
homólogas são sequências
de DNA que possuem um Mendel (ELLIS, et al. 2011). dos por ele.
ancestral comum, resultando
em uma conservação parcial da 5. FORMA DAS VAGENS No momento, o quebra-cabeça está par-
sequência nucleotídica entre cialmente resolvido. As funções celulares/
espécies diferentes. Os fenótipos inflado ou murcho das vagens
bioquímicas exatas de alguns destes genes
se devem à presença ou à ausência de uma
já foram determinadas. Porém, ainda restam
camada de revestimento de esclerênquima,
três caracteres cujas naturezas moleculares
respectivamente. Esse revestimento permite
precisam ser entendidas. Estas informações
a manutenção da estrutura da parede das va-
irão não apenas enriquecer os detalhes da in-
gens infladas enquanto que sua ausência leva
crível história traçada por Mendel, mas tam-
a vagem a se retrair em volta das sementes,
bém permitirão estabelecer novas relações
resultando em um aspecto murcho. Ao me-
genótipo-fenótipo com potencial impacto na
nos dois lócus podem estar associados a esta
agricultura.
característica: o lócus P e o lócus V (localiza-
dos em cromossomos distintos).
REFERÊNCIAS
Tanto as vagens ppVV quanto PPvv pos- DAVIDSON, S. E.; ELLIOTT, R. C.;
suem faixas reduzidas de esclerênquima, ao HELLIWELL, C. A.; POOLE, A. T.;
passo que plantas duplo-mutantes ppvv não REID, J. B. The pea gene NA encodes ent-
apresentam esta camada de esclerênquima. -kaurenoic acid oxidase. Plant Physiology, v.
Todos esses genótipos geram o fenótipo 131, p. 335-344, 2003.
murcho, em maior ou menor intensidade ELLIS, N. T. H.; HOFER, J.M.I., TIMMER-
(ELLIS et al. 2011; REID; ROSS, 2011). MAN-VAUGHAN, G. M.; COYNE, C. J.;
HELLENS, ROGER P. Mendel, 150 years
A partir das descrições de Mendel não é pos-
on. Trends in Plant Science. v. 16, n. 11, p.
sível afirmar com exatidão qual foi a varian-
590-596, 2011.
te estudada por ele em seus experimentos
(ppVV ou PPvv). No entanto, é assumido REID, J. B.; ROSS J. J. Mendel’s Genes: Toward
que ele analisou a variação do lócus V, pois o a Full Molecular Characterization Genetics,
v. 189, n.1, p. 3–10, 2011.
fenótipo do mutante em relação a este lócus
se encaixa de forma mais adequada em suas WHITE, O. E. Studies of Inheritance in Pisum.
descrições. Outra evidência nesse sentido re- Proceedings of Amercian Philosophical Society,
side no fato de que sementes com o genótipo v. 56, p. 487-588, 1917.

Sociedade Brasileira de Genética 403

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