Você está na página 1de 4

O ALUNO EM FOCO

IDÉIAS
A seção “Aluno em foco” traz resultados de pesquisas sobre
Nelson Orlando Beltran

em que os alunos são solicitados a


concepções alternativas de estudantes, sugerindo formas de lidar elaborar explicações e a se utilizarem
com estas concepções quando se busca propiciar a eles o de modelos. Nelas constatei uma con-
aprimoramento no processo de construção dos conceitos cepção alternativa freqüente nos alu-
científicos. Neste artigo, o autor nos traz uma reflexão sobre nos de ensino médio.
concepções alternativas de seus alunos, quando deles foi solicitada
a elaboração de modelos para representar e compreender os
movimentos das partículas atômicas. Desenho animado: uma
brincadeira produtiva
simultaneidade e sincronia, modelos animados, concepções alternativas Para poder discutir com os alunos
as idéias que eles elaboram sobre o
comportamento das partículas, realizo
uma atividade que tem se mostrado
bastante elucidativa.

A
compreensão de teorias e a mas de vivenciar situações em que são Nela proponho que os alunos es-
14 aplicação de modelos expli- necessários raciocínios nos quais os colham um dado fenômeno, como por
cativos exige de nossos processos de proposição de expli- exemplo, a fusão de uma substância,
alunos o estabelecimento de relações cações e de recolhimento de observa- a recristalização ou a dissolução. Peço
entre os fenômenos observáveis e o ções dos fenômenos devam ser feitos que produzam uma animação sobre
não diretamente observável universo de forma correlacionada. o fenômeno em que as partículas
das partículas de dimensões Os fenômenos químicos são expli- sejam os ‘personagens’, atribuindo-
atômicas. Por outro lado, apresentar cados com base em modelos atômi- lhes movimentos e representando o
aos alunos do ensino médio as teorias co-iônico-moleculares envolvendo processo antes, durante e depois da
e os modelos explicativos já prontos, movimento e interação entre as partí- transformação.
sem que eles tenham conhecimento culas. Muitas vezes a compreensão A técnica mais utilizada para a pro-
dos processos que levam a sua desses modelos exige de nossos dução da animação é sobrepor figuras
construção, não constitui a melhor alunos abstrações muito difíceis, prin- desenhadas uma a uma em folhas de
estratégia para torná-los indepen- cipalmente para iniciantes do ensino papel, de maneira que a sobreposição
dentes nas elaborações de tais racio- médio. Porém, cada vez que um aluno de figuras crie aos olhos uma ilusão
cínios. Concordo com Lopes (1996) consegue compreender como o mo- de movimento, tal como no exemplo
quando afirma: “...ser muito mais delo explica o fenômeno, e perceber apresentado no encarte da revista.
importante que os alunos compre- as limitações de um determinado mo- Alguns grupos de alunos chegaram a
endam a multiplicidade dos fenôme- delo, ele estará dando passos seguros utilizar videocassete ou ainda recursos
nos com que trabalhamos, reconhe- em direção à aquisição de uma auto- em computação gráfica, porém os
cendo-os, sabendo descrevê-los e nomia de raciocínio altamente desejá- melhores resultados que obtive foram
explicá-los com modelos, em vez de vel no estudante em geral e no de quí- os realizados com animação em pa-
se prenderem a classificações me- mica em particular. pel, possivelmente porque os que
cânicas, como reações de dupla troca, O relato linear sobre a sucessão fizeram o trabalho em vídeo ou com-
simples troca etc.” dos modelos atômicos consagrados putador ficaram muito mais interessa-
Para compreender como os mode- não permite aos alunos compreender dos na técnica de animação do que
los foram e são elaborados, considero os processos envolvidos em suas ela- nos problemas físicos e químicos en-
fundamental que nossos alunos viven- borações. Entretanto, a vivência de si- volvidos. Com essa atividade, pude
ciem situações em que eles mesmos tuações em que tenham a chance de muitas vezes ‘enxergar’ algumas con-
tenham a oportunidade de observar os transitar entre os fenômenos observá- cepções alternativas que nunca per-
fenômenos e elaborar explicações. veis e o inobservável universo dos mo- cebera antes.
Dessa forma, eles podem perceber a delos possibilita aos alunos a compre- Vejam, por exemplo, na Seqüência
abrangência e as limitações de um mo- ensão dos caminhos e descaminhos 1, algumas cenas de uma animação que
delo. Não se trata de construir nova- percorridos na história da química. um grupo de alunas fez para representar
mente todo o conhecimento químico, A seguir, relato algumas atividades a fusão de um pedaço de gelo.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Idéias em Movimento N° 5, MAIO 1997


3 11 Aluna 1: Não. Deveria ser? 5 23
Eu: Depende do que se quer repre-
sentar. Vejam por exemplo no quadro
11, vocês representaram apenas 16
moléculas. Onde estão as outras ? Para
onde elas foram? Não eram 23 inicial-
mente?
Aluna 1: Confesso que não tínha- 6 24
4 22 mos pensado nisso. Neste quadro
estávamos preocupadas em represen-
tar que as moléculas se distanciavam
umas das outras.
Eu: Por que vocês acham que as
moléculas se distanciam umas das
outras? As moléculas se distanciam 11 29
durante a fusão do gelo?
Aluna 2: No quadro 11 não está
5 23
ocorrendo a fusão. A fusão só ocorre
no quadro 23.
Eu: Explique, pois eu não entendi.
Aluna 2: Até o quadro 22 o gelo está
12 30
sólido, no quadro 23 ocorre a fusão e
no quadro 24 o gelo descongelou e
está água líquida.

6 24 Ficou claro que as meninas con- 15


cebiam uma simultaneidade das par-
tículas de água na fusão do gelo, isto 17 35
é, todas as partículas de água se ‘se-
paravam’ simultaneamente. Elas esta-
vam atribuindo um só instante para a
fusão do gelo.
Até esse trabalho de animação e a
7 36 constatação na conversa que tive com
essas meninas, nunca havia 18 36
percebido essa idéia de
simultaneidade que muitas vezes
aparece nas concepções de nossos
alunos, e acredito que sem esse tipo
de atividade eu dificilmente a teria
notado. A possibilidade de ‘enxergar’
as idéias dentro da cabeça de nossos Seqüência 2: Representação de alunos para
Seqüência 1: Representação de alunas para alunos — e poder interagir com elas a solidificação da água (animação com 36 ‘foto-
a fusão da água (animação com 36 ‘fotogra- gramas’).
mas’).
— é, a meu ver, a grande virtude desse
tipo de atividade. O mesmo caráter de
As perguntas que a ‘visualização’ simultaneidade aparece em outras apresentam movimento de rotação.
de suas idéias me permitiu fazer animações. Vejam, na Seqüência 2, a Todas movem-se em sincronia.
tornaram nossa conversa bastante rica representação que dois meninos A conversa que mantive com os
e propiciaram interessantes reflexões. fizeram para a solidificação da água. alunos sobre essa sincronia foi muito
Reproduzo aqui parte da conversa Nessa representação, os meninos interessante e as seguintes perguntas
que tivemos. não mudaram o número de moléculas que fiz os deixaram muito pensativos:
em nenhum dos quadros. Claramente O gelo se forma instantaneamente
Eu: Nos quadros 3 e 4 estão repre- se preocuparam em conservar as ‘dez ou demora algum tempo? Ele começa
sentadas 23 moléculas, no quadro 5 moléculas’ em todas as cenas da a se formar por dentro ou por fora?
apenas 22 e no quadro 6 o número animação. Porém, é fácil perceber Eles disseram que não tinham pen-
aumenta para 24, voltando para 23 no uma sincronia entre elas. O movimento sado sobre isso e resolveram observar
quadro 7. O número de moléculas foi é apenas de translação, aproximando- novamente a solidificação do gelo.
uma preocupação de vocês durante o as umas das outras. As moléculas, na Incentivei-os a colher novas observa-
trabalho? representação dos meninos, não ções sobre o fenômeno.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Idéias em Movimento N° 5, MAIO 1997


Um comentário interessante sobre reação química aumenta com a eleva-
os dois trabalhos de animação até ção da temperatura do sistema.
agora apresentados é que as par- Um hábito que adquiri com o pas-
tículas da água foram representadas sar dos anos é ler todas as respostas
1 27
com maior espaçamento no estado lí- dadas a uma mesma questão nas pro-
quido que no estado sólido. Uma dis- vas de todos alunos de uma mesma
cussão com os alunos sobre as den- turma, para depois passar à leitura de
sidades e essa anomalia que a água outra questão. Esse hábito me ajuda
apresenta, lembrando-lhes de que o 5 29
a perceber dificuldades que os alunos
gelo é dez por cento menos denso que possam apresentar.
a água líquida, pôde levá-los a repen- As respostas que obtive me pare-
sar as representações propostas. ceram bastante boas em uma primeira
Contudo, não é apenas nas mu- 9 31 leitura. Eis uma delas.
danças de estados que aparecem a A elevação de temperatura provoca
simultaneidade e a sincronia. Vejam, um aumento na energia cinética das
na Seqüência 3, a representação que
moléculas, aumentando os choques e
um grupo de meninos fez da dissolu-
11 35 a energia dos choques, fazendo com
ção e dissociação do hidróxido de
que as moléculas atinjam mais facil-
sódio.
mente o complexo ativado.
O trabalho desses meninos é inte-
ressante em muitos aspectos. Além da Cheguei a reler inúmeras vezes
beleza do ponto de vista artístico, 13 39 cada uma das respostas, pois alguma
pode-se perceber que eles tiveram coisa me intrigava.
muitas preocupações ao fazerem as Vejam outras respostas:
representações: primeira, o número de Elevando a temperatura, as molé-
16 culas recebem mais energia fazendo
partículas não muda, senão quando 15 51
se introduz o hidróxido de sódio. Uma com que elas, ao se chocarem, atin-
segunda preocupação, que fica clara jam o complexo ativado com maior fa-
neste trabalho, é a de atribuir um movi- cilidade, reagindo mais rapidamente.
mento de rotação para as moléculas O aumento de temperatura faz as
17 53
de água. Uma terceira preocupação moléculas atingirem o complexo
elogiável, é a de representar a disso- ativado com maior facilidade, pois os
ciação iônica das partículas. Pode- choques ocorrerão com maior energia.
mos, sem muito esforço, encontrar Percebi o que havia de estranho,
outros atributos no trabalho dos 19 55 ao reler a resposta dada por uma das
meninos, mas não se deve deixar de alunas, Daniela Munhoz.
perceber a simultaneidade na sepa- Ao elevarmos a temperatura do
ração — dissolução e dissociação — sistema, aumentamos a energia ciné-
das partículas do hidróxido de sódio. 21 59 tica média das moléculas, fazendo
Neste trabalho aparece também a com que um maior número de cho-
sincronia no movimento das partículas. ques atinja a energia do complexo
Simultaneidade camuflada, em ativado, aumentando então a rapidez
prova na 3ª série do 2º grau 23 63 da reação.
Qual era a grande diferença entre
Após um trabalho de semanas a resposta de Daniela e as outras?
envolvendo diversos experimentos —
O que havia de estranho nas
que propiciaram muitas reflexões so-
respostas dos outros alunos?
bre a velocidade das reações quími- 25 71
Foi então que me perguntei se
cas e a identificação dos principais
fatores que as influenciam — e após
Seqüência 3: Representação dos alunos para alguns de meus alunos da terceira
a dissolução do hidróxido de sódio (animação série do nível médio não estariam
diversas discussões sobre os modelos com 74 ‘fotogramas’).
explicativos de que podemos lançar apresentando a mesma concepção de
mão para compreender e explicar os prova foi satisfatório, porém as respos- simultaneidade que constatei nos alu-
fenômenos envolvidos, submeti meus tas que a maioria dos alunos deu a nos da primeira série nas atividades
alunos da terceira série do nível médio uma das questões me deixou surpre- de animação? Será que essas respos-
a uma avaliação escrita com a expec- so. A questão proposta foi: tas apresentam um raciocínio de si-
tativa de que os resultados mostras- Explique, usando a teoria das coli- multaneidade de ‘comportamento’ das
sem um domínio bastante grande dos sões e o conceito de complexo ati- moléculas? Será que eles acham que
conceitos envolvidos. O resultado da vado, por que a velocidade de uma todas as moléculas atingem a energia

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Idéias em Movimento N° 5, MAIO 1997


choques ocorreriam com maior ener- não correspondem aos fenômenos
Veja como funciona a gia, alcançando a energia do comple- observados. Com isso, permito a eles
técnica de animação xo ativado simultaneamente. reelaborarem as idéias sobre os fenô-
Recorte o encarte, obtendo as A simultaneidade concebida pelas menos e muitas vezes desenvolverem
36 figuras retangulares.Organize-as meninas na fusão do gelo, que só pu- ‘novas’ maneiras de enxergá-los. Com
em ordem númerica, colocando-as de perceber na atividade de desenho esse trabalho, as idéias sobre a
uma sobre a outra como um monte animado, é bastante semelhante à movimentação das partículas ficam ‘vi-
de cartas de baralho. apresentada pelos alunos da terceira síveis’, permitindo um diálogo com os
Segure firmemente com uma série ao responder a questão da pro- alunos sobre o tema.
das mãos o monte de 36 figuras e va, pois ao dizerem que as moléculas Qual é a razão de muitos alunos
com a outra faça as figuras passa- iriam atingir ao mesmo tempo a ener- apresentarem essas concepções de
rem na frente de seus olhos com gia do complexo ativado explicitavam simultaneidade e sincronia nos movi-
uma velocidade constante. Repita a concepção de simultaneidade. Acho mentos das partículas? A simultanei-
a operação algumas vezes até que eu não perceberia essas dificul- dade apresentada é própria dessa
encontrar a melhor velocidade para dades que meus alunos da terceira atividade de animação? Afinal, parece-
enxergar uma animação contínua série apresentavam nesse momento me mais fácil desenhar movimentos
nos movimentos desenhados nas se não tivesse identificado essa con- sincronizados e simultâneos. Acho
figuras. cepção de simultaneidade em outro que não, pois meus alunos da terceira
A superposição de figuras, de- momento, com a aplicação da ativi- série, que apresentaram dificuldades
senhadas com pequenas mudan- dade de animação. para a compreensão do uso do mo-
ças de uma para a outra, cria aos Pude constatar, em outros momen- delo de complexo ativado e muitos
olhos humanos uma ilusão de mo- tos, que essa concepção de simulta- outros em outros momentos em que
vimento contínuo, dando-nos a neidade das partículas é muito mais percebi essa concepção, não fizeram
impressão de que os corpos dese- freqüente do que em geral percebe- a atividade de animação. Porém, sa-
nhados movimentam-se sem inter- mos. Contudo, acredito que sem o tra- ber a razão por que os alunos apre- 17
rupção. balho de animação dificilmente con- sentam essas concepções alternativas
seguiria perceber a concepção de poderia ser um tema bastante interes-
simultaneidade e de sincronia que sante a ser investigado. Se você fizer a
do complexo ativado simultaneamen- meus alunos apresentaram. investigação, escreva-nos relatando-a.
te? Será que eles concebem que todas Esse episódio no estudo de cinéti-
Nelson Orlando Beltran é professor de química
as moléculas de um sistema possuem ca reforçou para mim a necessidade do nível médio na Escola Logos, em São Paulo, e
a mesma energia? de atividades como a de desenho ani- mestrando na Faculdade de Educação da Universi-
Resolvi conversar com os alunos mado desde a primeira série. Esse tipo dade de São Paulo.
sobre as questões relativas à simulta- de atividade possibilita trocas nas
neidade e constatei, durante a conver- quais tenho a chance de chamar a
sa, que muitos deles apresentavam atenção de meus alunos sobre alguns Referência Bibliográfica
essa concepção alternativa: segundo fatos que são observáveis mas que a LOPES, A.R.C. Reações químicas: fe-
animação proposta não está explican- nômeno, transformação e representa-
eles, todos os choques ocorreriam
ção. Química Nova na Escola, n. 2, p. 7-
com a mesma energia, e ao se elevar do, ou, ainda, chamar a atenção sobre 9, nov. 1995.
a temperatura do sistema, todos os alguns movimentos das partículas que

EVENTO
Pesquisa na Formação em Química”, e sessões coordenadas).
XVII EDEQ
que se desenvolverá articuladamente Maiores informações podem ser
O XVII EDEQ (Encontro de Debates a sub-temas como: “Pesquisa em obtidas pelo endereço:
sobre o Ensino de Química) será rea- Educação Química”, “Pesquisa na For- Coordenação do XVII EDEQ
lizado de 16 a 18 de outubro de 1997, mação do Professor de Química, Universidade Regional do Noroeste
na UNIJUÍ (Universidade Regional do “Iniciação Centífica na Formação em do Estado do Rio Grande do Sul -
Noroeste do Estado do Rio Grande do Química”, “Pesquisa na Formação do UNIJUÍ
Sul), em Ijuí - RS. Profissional Químico” e “Iniciação Departamento de Biologia e Quí-
Objetivo geral Científica na Formação de Profissio- mica - DeBQ
Propiciar o confronto de idéias e nais não Químicos”. Caixa Postal 560, Ijuí - RS
práticas sobre o papel da pesquisa na A Programação abrange palestra CEP 98700-000
formação dos proficionais e educa- sobre o tema central, sessões de de- Tel: (055) 332-7100
dores em Química. bates, mini-cursos e apresentação de Fax: (055) 332-9100
O tema central do encontro será “A trabalhos na forma de painéis (postes Email: edeq97@super.unijui.tche.br

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Idéias em Movimento N° 5, MAIO 1997

Você também pode gostar