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"ESBOÇO DE PSICANÁLISE” (1940[1938])

Manuela Itapary (Graduanda em Psicologia pela PUC-Rio - IC)

Flávia Lana Garcia de Oliveira (Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ - CAPES)

Pelo que sugere seu título, o texto freudiano “Esboço de Psicanálise” pode suscitar a um leitor
desavisado a expectativa de que se trata de um rascunho ou de uma simplificação dos
fundamentos gerais da teoria psicanalítica. No entanto, encontramos nesse escrito a
densidade de quatro décadas da trajetória de Freud, compactada em um texto ágil que
transmite os conceitos-chave desse campo. Esse é um texto terminal em que Freud se esforça
para sedimentar as teorias sobre o desenvolvimento libidinal do aparelho psíquico, bem como
explorar a coordenação dos elementos cruciais de sua segunda topologia do aparelho psíquica:
as exigências pulsionais do id, os métodos de satisfação do ego e a gestão do superego.

Recapitulando a abordagem da formação e do funcionamento do aparelho psíquico, a partir da


segunda tópica inaugurada no texto “O ego e o id” (FREUD, 1923), Freud observa que o id é a
mais antiga das áreas de ação psíquica no desenvolvimento individual dos seres humanos. Essa
instância conteria tudo que é herdado e está presente desde o nascimento. Por ser a sede das
pulsões, as quais encontram sua primeira forma de expressão psíquica nesse registro, tornam-
se a fonte genuína de todas as investigações psicanalíticas. É a partir da influência do mundo
externo que uma porção do próprio id sofre um desenvolvimento especial, dando origem ao
ego como diferenciação organizada que emerge do caos pulsional do id. Influência esta que
ocorre na medida em que a criança estabelece laços amorosos com aqueles que a cercam e
asseguram o amparo de suas necessidades vitais. Freud define como propriedades intrínsecas
à função do ego os comandos voluntários e a auto-preservação. Por estar em contato com o
mundo externo, o ego recebe os estímulos de fora, armazenando suas experiências através da
faculdade da memória. Exerce, desse modo, uma regulação das excitações, evitando estímulos
altamente intensos e produzindo mudanças no mundo externo para seu próprio benefício. Em
relação ao id, espera-se que o ego desempenhe a missão de controle das exigências pulsionais,
decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas. Também se incumbe do destino pulsional que
será dado às exigências do id, através do adiamento da satisfação em consideração ao mundo
externo, ou sua inteira suspensão. Assim, Freud valoriza o ego enquanto uma instância que
possibilita certo grau de tratamento das pulsões, tendo em vista tanto as exigências do id,
quanto as exigências da civilização. Nessa lógica, o estado de sono representaria uma retirada
temporária das atividades do mundo externo.

A terceira instância do aparelho psíquico é o superego, herdeiro do complexo de Édipo, fruto


da internalização da autoridade parental. Esse nova diferenciação psíquica se distingue, ou
mesmo se opõe ao ego. Assim, o ego precisa lidar com as exigências de três frentes: id,
superego e a realidade. Essa tríade é reveladora de que o ego não é senhor de sua própria casa
e se esmera no trabalho de conciliar as exigências umas com as outras (FREUD, 1923). Ao
longo do desenvolvimento do indivíduo, o superego interioriza não apenas a personalidade
dos pais, mas também as tradições transmitidas no âmbito familiar, tradições raciais e
nacionais, bem como a cultura que os representam. Também condensa elementos relativos
aos sucessores que são figuras substitutivas dos pais, tais como professores, modelos e ideais
sociais admirados. Essas instâncias divergem umas em relação às outras, uma vez que o id visa
à satisfação imediata. O ego, por sua vez, busca manter-se vivo e protegido dos perigos do
mundo externo, enquanto o superego promulga a limitação das satisfações. A força que existe
por trás desses diferentes mecanismos é a dimensão pulsional. Sobre esta repartição do
psiquismo em diferentes instâncias, Freud afirma: “Observar-se-á que, com toda a sua
diferença fundamental, o id e o superego possuem algo comum: ambos representam as
influências do passado – o id, a influência da hereditariedade; o superego, a influência,
essencialmente, do que é retirado de outras pessoas, enquanto o ego é principalmente
determinado pela própria experiência do indivíduo, isto é, por eventos acidentais e
contemporâneos” (FREUD, 1940[1938], p. 157).

Freud também retoma a sistemática da teoria das pulsões, realizando uma nova análise
descritiva do segundo dualismo pulsional entre Eros e a pulsão de morte. O objetivo de Eros
seria o de unificação, enquanto a tendência disruptiva da pulsão de morte leva o que é vivo a
um estado inorgânico. Freud ressalta que, na prática, essas duas modalidades da pulsão
operam juntas, em tensão opositiva, ou combinadas mutuamente. O equilíbrio pulsional é
fundamental para a vida humana. As forças de atração e repulsão que governam as pulsões
são fundamentais. A esse respeito, Freud indica que um resultado contrário, desregulado,
como, por exemplo, o excesso de agressividade sexual, transformaria um amante em um
criminoso sexual. Já a diminuição do fator agressivo o transformaria em um impotente. Assim,
a combinação das pulsões exerce uma influência decisiva em nossas vidas. O ato de comer,
numa nova exemplificação de Freud, seria uma destruição do objeto com o objetivo final de
incorporá-lo.O ato sexual, por sua vez, seria um ato de regressão com o intuito da mais íntima
união.

Nessa direção, Freud reacende as principais coordenadas lançadas em seus “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905). Lembra que a psicanálise rompeu com as
antigas visões e gerou espanto com seus achados de que a vida sexual está presente desde o
nascimento, da postulação de que há uma diferença entre o “sexual” e o “genital”, bem como
com a irredutibilidade da excitação sexual à função reprodutora. Nessa retomada, Freud
também ressalta que, desde a tenra infância, existem sinais de atividades corporais claramente
ligadas à sexualidade e que mais tarde reaparecem na vida erótica adulta. Essas atividades
chegariam ao seu clímax por volta dos cinco anos de idade, sucedida pelo período de latência
que se estende até a puberdade, quando a vida sexual é aflorada novamente em novas vestes.
Esse primeiro período sexual no tempo infantil sofre uma amnésia e por isso não nos
recordamos de tais atividades. É esse ponto de partida que dá ensejo a toda a técnica analítica
sobre a etiologia das neuroses e sobre a constituição humana.

O indivíduo é guiado por exigências libidinais do id e que insistem em suas demandas ao ego.
Durante a infância, o corpo do bebê funciona como uma zona erógena, de prazer, tomada
pelas exigências libidinais do id do qual ainda não se diferenciou o ego. A primeira zona
erógena seria a boca. A realização da satisfação ocorre mediante a amamentação, já que essa
é a primeira fonte de prazer experimentada pelo indivíduo, nesse primeiro momento ainda
aliada ao saciamento da necessidade vital. Porém, o bebê ultrapassa a necessidade de nutrição
e passa a buscar outras fontes de prazer atreladas à oralidade. Por essa razão, a busca da
satisfação deve ser chamada de satisfação sexual. Após esse primeiro período centrado na
sucção e na persistência do sugar, a criança passa por outra fase, a fase anal-sádica. Com o
aparecimento dos primeiros dentes, o bebê se vê as voltas com impulsos sádicos e busca a
satisfação pela via da agressão e na função excretora. Os impulsos agressivos já estão
presentes no id, como incidência desintegradora da pulsão de morte. A terceira fase é
denominada como fálica e se assemelha muito com a forma final assumida pela vida sexual.
Aqui o órgão sexual propriamente dito aparece em cena. Porém é o falo, o órgão masculino,
que está em vigor. Tanto o menino quanto a menina partem da premissa da presença
universal do pênis, na qual predomina a oposição fálico-castrado: os meninos enquanto
possuidores do falo e as meninas tendo de se a ver com o fato de não possui-lo. É nessa fase
que a sexualidade infantil atinge seu apogeu e prepara-se para entrar em latência. A partir daí
meninos e meninas seguem diferentes desdobramentos no complexo de Édipo. O menino
ingressa nessa fase quando começa a manipular o pênis e simultaneamente tem fantasias de
realizar algo com a mãe. Porém, esse desejo é interditado pela possibilidade da castração
representada pela função paterna. O pai representa aquele que detém o falo. Por isso, se
afasta da mãe enquanto objeto incestuoso e se identifica ao pai como modelo ideal. Para
Freud, esse confronto com a diferença sexual é traumático e constitutivo. A ele se segue o
período de latência e determina futuras consequências na vida sexual na fase adulta.

Na perspectiva freudiana, a menina passa por esse processo de uma maneira única, pois
depois de tentar em vão se equipararao menino, ela precisa reconhecer a falta do pênis. Para
Freud, o reconhecimentoda inferioridade do seu clitóris gera efeitos permanentes em seu
caráter. Essas três fases não se sucedem de forma cronológica. A primazia da fase fálica sobre
as fases anteriores organiza o excesso pulsional e redireciona a libido para a posição sexual.
Essa regulação libidinal irá permitir a entrada do indivíduo na cultura. As conseqüências
maiores desse processo irão surgir na puberdade. Na vida adulta os resíduos das fases
autoeróticas irão aparecer através de fixações libidinais na sexualidade perversa polimorfa
manifesta nos sintomas, pois “este processo nem sempre é realizado de modo perfeito. As
inibições em seu desenvolvimento manifestam-se como os muitos tipos de distúrbio da vida
sexual” (FREUD, 1940[1938], p. 166).

No decurso de “Esboço de psicanálise”, Freud também revisita a primeira tópica do aparelho


psíquico, baseada na distinção entre a consciência, o pré-consciente e o inconsciente
articulando-a, desta vez, aos ordenamentos da segunda tópica. A consciência é designada
como um estado altamente fugaz. O pré-consciente se refere a conteúdos que podem
facilmente passar da qualidade de ausente da consciência para consciente. Já o inconsciente
possui material psíquico de difícil acesso, não irrompe a consciência de maneira direta e
precisa de nossos esforços para vir a ser consciente, mesmo quando temos a impressão de
estar superando resistências muito fortes. Um relaxamento dessas resistências, com um
consequente impulsionamento do material inconsciente, realiza-se no estado do sono com o
rebaixamento das censuras do pré-consciente, o que prefigura o trabalho do sonho.

Freud acentua que a função da fala produz uma especificidade na constituição do ego devido à
conexão que este passa a estabelecer com os resíduos mnêmicos de percepções visuais e
auditivas. Por esta razão, a periferia perceptiva pode ser excitada em muito maior grau a partir
de dentro também, de modo que as excitações decorrentes de acontecimentos internos
podem se tornar conscientes. Nesse caso, o teste de realidade comparece como um artifício
que permite discriminar a percepção do mundo externo e as moções internas. Segundo Freud,
oego possui a qualidade de ser pré-consciente. Essa seria sua característica primordial. O
estado pré-consciente torna-se facilmente acessível à consciência mediante as vinculações no
campo das representações. O id e o inconsciente estão intimamente ligados, de igual maneira
como o ego e o pré-consciente. Portanto, se originalmente tudo era id, o ego se enraíza e se
desenvolve a partir dele através das contínuas ingerências do mundo externo. Ao longo desse
percurso, alguns conteúdos inconscientes se tornaram pré-conscientes e são assim
incorporados ao ego. Outros conteúdos permaneceram alojados no id, imutáveis e de difícil
acesso. O ego ainda em constituição desenvolveu algo do material inconsciente do qual se
originou, se destacando do mesmo. Essa última parte do id, abandonada pelo ego, é o que se
configura como o recalcado.

É importante ter em vista que essa formulação topográfica do aparelho psíquico entre o ego e
oid articulada às qualidades psíquicas do pré-consciente e do inconsciente instaurauma
diferenciação que é mais didática do que prática em sua essência. Dito isso, reconhecemos que
a energia psíquica ocorre de duas formas: livremente móvel e ligada. Freud sustenta que a
distinção entre o estado inconsciente e o pré-consciente reside em relações dinâmicas desse
tipo. As leis que regem o id não são as mesmas que regem o ego. A primeira é designada pelos
processos primários que buscam a satisfação imediata de prazer, enquanto a segunda é
designada como sendo os processos secundários, de acordo com o princípio da realidade.

Nesse grande mapa que vai montando acerca das interrelações em jogo no funcionamento
psíquico, Freud retoma a psicanálise dos sonhos como uma importante chave de compreensão
dos mecanismos que regem o inconsciente. São formações originadas do funcionamento
inconsciente que logram acesso à consciência através de mecanismos que as disfarçam. Os
pensamentos pré-conscientes que obtiveram reforço de um impulso pulsional inconsciente
entram em cena na elaboração onírica. A organização do ego não está, entretanto, paralisada.
Sua influência censora pode ser vista na distorção imposta ao material inconsciente: “Com a
ajuda do inconsciente, todo sonho em processo de formação faz uma exigência ao ego – a
satisfação de um instinto, se o sonho se origina do id; a solução de um conflito, a remoção de
uma dúvida ou a formação de uma intenção, se o sonho se origina de um resíduo da atividade
pré-consciente na vida de vigília” (FREUD, 1940[1938], p. 181).

O mais interessante é perceber que a regras que regem a lógica do ego não têm peso no
inconsciente. Como assinala Freud, do ponto de vista do ego, o inconsciente poderia ser
considerado o Reino do Ilógico, no qual os impulsos com objetivos contrários coexistem lado a
lado, sem que surja qualquer necessidade de acordo entre eles. Essa é a lógica própria ao
inconsciente:

Em um novo tempo deste texto, Freud realiza uma incursão mais voltada para o campo da
clínica psicanalítica. Freud aponta aqui o sofrimento neurótico como resultado de desarmonias
quantitativas entre as exigências de satisfação do id e as exigências do teste de realidade.
Ambas precisam ser manejadas pela constituição psíquica de cada individuo. O surgimento das
psicoses também é atrelado às consequências desses distúrbios, porém de modo pouco
acessível aos métodos psicanalíticos de intervenção. Quanto à etiologia das neuroses, Freud a
remete às vicissitudes do aparelho psíquico na tenra infância, ainda que seus sintomas possam
não aparecer até muito mais tarde, quando oego desamparado defende-se por meio de
tentativas de fuga (recalque), que, posteriormente, se mostram ineficazes e que se
apresentam como restrições no futuro do indivíduo. Nenhum individuo humano é poupado de
tais exigências traumáticas.

Freud também observa que, na prática clínica, o ego enfermo promete ao analista a mais
completa sinceridade, assim como colocar à nossa disposição todo o material que a sua auto-
percepção lhe fornece. Garante-se ao paciente a mais estrita discrição. Freud define a função
do analista como compensadora da ignorância do paciente sobre seu inconsciente, na medida
em que contribui para devolver a seu ego o domínio sobre as regiões perdidas de sua vida
mental – o que chamará de uma pós-educação exercida pelo trabalho analítico. No entanto, o
ego do paciente está longe de contentar-se em desempenhar o papel de nos trazer passiva e
obedientemente o material que pedimos e de aceitar nossa tradução do mesmo e nela
acreditar. O paciente não fica satisfeito de encarar o analista como um auxiliar e conselheiro
que, além do mais, é remunerado pelo trabalho que o guia numa difícil escalada de montanha.
Pelo contrário, com a emergência da situação transferencial, o paciente localiza no analista a
relação com as figuras parentais, transferindo para ele sentimentos e reações que,
indubitavelmente, aplicam-se a essas relações primevas. A transferência, portanto, ao mesmo
tempo em que é um instrumento clínico de insubstituível valor por revelar conflitos
originários, por outro, é delicada por seu componente resistencial e pela potencial liberação de
desprazer. É ambivalente, na medida em que abrange tanto o vínculo amoroso quanto à
hostilidade primariamente depositada nos pais. A superação das resistências é a parte de
nosso trabalho que exige mais tempo e maior esforço. Freud segue essa aposta visto que pode
ocasionar uma alteração vantajosa ao ego, a qual será mantida independentemente do
resultado da transferência e se manterá firme na vida.

BIBLIOGRAFIA:

FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. VII.

________. (1923). Eu e o Isso. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XIX.

________. Esboço de psicanálise (1940 [1938]). In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XXIII.

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