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O CARÁTER ANTINATURALISTA DA CRONOFOTOGRAFIA

A BUSCA POR UMA POÉTICA CIENTÍFICO-ARTÍSTICA


por: Marco Aurélio Gomes Lacerda

O presente trabalho tem por objetivo introduzir uma reflexão sobre o modo pelo
qual a inserção do tempo acontece na cronofotografia, e, não somente, demonstrar o valor
estético e as implicações paradoxais de tal inserção. Para tal, reter-nos-emos, primeiramente,
no sentido de uma explanação dos seguintes termos: anamorfose e cronotopo. Faremos,
adiante, uma tentativa de esboçar um possível paralelismo entre a arte e a ciência no que tange
o valor poético-estético da anamorfose cronotópica.

O termo “anamorfose” designa, em princípio, a distorção da forma de


determinado objeto, sendo tal processo passível de se dar sobre variados modos. Ademais, é
possível afirmar que nas primeiras aplicações do termo fazia-se comum a apresentação da
anamorfose como um deslocamento de pontos de vista, como, por exemplo, no quadro Os
Embaixadores de Hans Holbein:
Importante destacar que, na superfície da tela, além do
conteúdo e dos detalhes renascentistas, destaca-se uma
figura distorcida, bizarra e anamórfica em seu centro,
esta é, pois, uma anamorfose de perspectiva, que se
trata, por sua vez, de uma caveira feita sobre uma
perspectiva distinta do resto das figuras da tela.

É importante ressaltar que o significado do


termo “anamorfose” não se limita ao escopo da
deformação de perspectiva, abrange, sobretudo, para
nós, todo e qualquer rompimento com o renascimento.
Em outras palavras, a anamorfose será aqui tematizada como fuga e degeneração do realismo
e tudo que é análogo a isto.

O cronotopo, por sua vez, é o termo que designa espaço-tempo. Se faz importante
a ênfase em tal termo, uma vez que este verbaliza o entrelaçamento entre tempo e espaço.
Para que, enfim, façamos uma investigação mais precisa, tratemos, portanto, da anamorfose
cronotópica, isto é, a deformação da figura através do movimento (ou, melhor, através da
materialização do tempo no espaço). Tendo isso como objetivo, abordaremos a maneira pela
qual as anamorfoses cronotópicas foram inseridas na história da arte, selecionando, assim,
artistas que se utilizaram da cronofotografia para obter ou uma fuga do clichê realista, e,
noutra ocasião, como no caso dos cientistas, com o fim de obter um gráfico do movimento (se
este é estético ou não, nos caberá dizer posteriormente).

Abordar o tempo e a fotografia numa mesma conjuntura soa, amiúde, estranho,


uma vez que muito comumente se admite a imagem fotográfica como um congelamento dos
instantes, e, por isso, a fixação de um determinado intervalo temporal num quadro parece ser
justamente a proposta da fotografia. Por este motivo, faz-se clara a noção de que a inserção do
tempo na fotografia é como um paradoxo gerador de anamorfoses; pois as figuras que, em
princípio, deveriam ser ordenadas em repouso para que fosse feito o registro realista da
fotografia tradicional, quando em dissonância com a inércia, i.e., quando registradas em
movimento, aparentam ter tido suas identidades, de certo modo, desfiguradas, demonstrando,
assim, terem passado por um processo anamórfico do tipo cronotópico.

Para se obter tais anamorfoses é comum a utilização de câmeras que permitem


uma regulagem manual de sua velocidade de obturação, fazendo com que, desse modo, a
captação da imagem seja mais lenta que a velocidade do objeto capturado, resultando na
captura de diferentes estágios do movimento da figura, e, por conseguinte, numa anotação do
movimento. Um exemplo de tal anotação
ocorre na fotografia de 1912, feita por
Jacques-Henri Lartigue, a qual é resultado de
uma lenta velocidade de obturação, isto é, um
tempo de exposição demasiado longo em
relação ao carro fotografado, capturando
instantes sucessivos do movimento de uma
figura muito rápida e colocando-os em um
mesmo quadro1.

Seguindo o mesmo método,


Frederic Fontenoy desenvolve suas
“metamorphoses”, que além de
possuírem todo o glamour da

1
É interessante ressaltar que desta provável anamorfose cronotópica involuntária, surgira um
novo método de se representar a velocidade em desenhos, utilizado por desenhistas e artistas
gráficos.
animalidade retratada, podem ser ditas como um manifesto contra a busca pelo repouso dos
corpos, e, não somente, um grito em prol do movimento e do percurso do corpo no espaço.
Nota-se que todos os esforços do positivismo tecnológico se dão, todavia, no sentido da
privação de tais efeitos anamórficos, tendo em vista a busca pelo repouso e a eliminação do
tempo, uma busca pela manutenção do paradigma realista da fotografia, isto é, pelo clichê. Ao
passo que artistas como Fontenoy ressalvam o poder de criação da arte e afirmam o valor
estético das anamorfoses na fotografia contra as tentativas de clichetização do fazer
fotográfico.

Andrew Davidhazy, fotógrafo húngaro, possui em seu catálogo fotografias


recheadas de anamorfoses; algo peculiar que acontece em suas capturas é, entretanto, não só a
anamorfose cronotópica, mas, esta, acompanhada de uma anamorfose de perspectiva. O que
acontecia em suas fotografias era, não uma velocidade
lenta de obturação, mas o registro da foto ao longo de
determinado intervalo temporal, processo este possível,
somente, pela utilização de um dispositivo fotográfico
desenvolvido por ele mesmo. Resultando disso, assim,
que não somente os fotografados se movimentavam, mas,
também, a câmera, gerando efeitos bastante peculiares.

Outro célebre fotógrafo aqui solenemente


homenageado é David Hockney. Hockney obtinha anamorfoses cronotópicas através da
colagem de diferentes pontos de vista fragmentados de uma mesma imagem, isto é,
representava a tridimensionalidade do espaço utilizando-se de um modelo cubista, o qual
apresentava diversas partes de uma mesma figura, possuindo, cada
uma destas, uma perspectiva única. O que resulta deste processo é, ao
mesmo tempo, uma veemência peculiar ao representar o processo de
visão humano, uma vez que apresenta múltiplos espaços da imagem
de maneira nítida, entretanto, em tempos diferentes (assim como faz o
olho humano, incapaz de ver nitidamente todas as partes de uma
imagem no mesmo instante), e, de outro lado, uma enorme abdicação
dos valores realistas de representação.

Com efeito, é necessário que fique clara a distinção da anotação do movimento na


cronofotografia e a ilusão do tempo na imagem cinematográfica. Esta última é alvo da
seguinte problematização: não há espaço para o tempo no cinema. Tal afirmação pode, em um
primeiro contato, soar incoerente de maneira absurda, entretanto, se dá de maneira mais clara
quando demonstramos de que modo o efeito de movimento propiciado pelo cinema é
elaborado. Grosso modo, a imagem cinematográfica pode ser dita como uma sucessão de
fotogramas congelados, i. e., na tentativa de promover uma sensação de movimento no
espectador, o cinema dispõe-se de uma sucessão de imagens numa velocidade tal que sejam
imperceptíveis os intervalos entre um fotograma e outro. Neste processo, o tempo é o mero
intervalo entre um instante congelado e outro, portanto, imperceptível; o movimento é, por
sua vez, uma ilusão causada pela continuidade das imagens apresentadas.

Dado, portanto, que devemos abordar aqui as imagens que trabalham de fato com
a anotação do movimento, isto é, com a intenção de retratar o deslocamento dos corpos no
espaço, cabe-nos explorar, pois, os fazeres nos quais tais intenções estiveram mais fortemente
presentes e declaradas. Étienne-Jules Marey foi fisiologista e, segundo Arlindo Machado,
positivista de formação2; o fim de
seus trabalhos e experiências se
dava sempre no sentido de uma
compreensão científica dos
corpos. Os trabalhos de nosso
interesse são, todavia, aqueles
voltados à compreensão do
movimento dos corpos no espaço.

Marey interessava-se no movimento dos seres vivos e, para que o capturasse de


maneira significativa, propunha uma decomposição do movimento dos corpos de acordo com
o deslocamento professado por eles; para tal, utilizava de um instrumento criado por ele
próprio, intitulado de “fuzil fotográfico”. O dispositivo de captação de Marey capturava seus
objetos de maneira sequencial e os superpunham de acordo com o trajeto proposto pelo
fisiologista, tornando possível a realização de seu mais interessado fim, o de estudar o
movimento dos corpos através de um gráfico criado por estes mesmos.

Que fique claro, no entanto, que, mesmo o método de Marey sendo considerado
um dos pilares para o desenvolvimento da imagem cinematográfica, o fisiologista francês
possuía grande aversão à ideia de que, ao invés da superposição das imagens dos corpos, fosse
feito um desenrolar das imagens com o fim de tornar a figura móvel, gerando, assim, a ilusão

2
MACHADO, Arlindo. 1993, pg. 9
do movimento própria da produção cinematográfica. O desenrolar das imagens seria, para
Marey, um inútil passo em direção à representação do mundo em displays.

Pode ser dito, visto que há no fazer científico de Marey uma clara aversão ao que
chamamos de clichê, que o antirrealismo, ou, mais propriamente, o antinaturalismo, não
parece ser próprio, unicamente, do fazer artístico, sendo ele, também, do fazer científico,
como nos evidencia a pesquisa de Marey. Pomo-nos, portanto, num problema que fora talvez,
até o momento, silenciado: a preocupação estética (que foge ao escopo das ciências práticas e
úteis) existente no fazer científico de pesquisadores como Marey.

Torna-se elementar que, para a conclusão do pensamento aqui proposto,


apresentemos a seguinte questão: até que ponto não há uma poética naquilo produzido com
fins estritamente científicos? Ou, melhor, as cronofotografias de Marey devem ser vistas
somente do ponto de vista científico ou nelas ainda restam quaisquer valores estéticos? A
resposta à estas questões não poderia ser dada aqui senão como um esboço indeciso
expressado através do seguinte termo: talvez.

Referências Bibliográficas:
MACHADO, Arlindo. Anamorfoses cronotópicas ou a quarta dimensão da
imagem. In: [S.l: s.n.], 1993.

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