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A conversão de um século ao outro - Jean-Pierre Deffieux

O que muda no sintoma é a sua inscrição no campo do Outro e no campo da


cultura [1].
Essa historicidade do sintoma, a conversão histérica que presidiu o nascimento
da psicanálise, está aí para testemunhar isso. Ela foi O sintoma por excelência, primeiro
na clínica neurológica de uma época, depois na clínica psicanalítica em seus primórdios.
Essa eflorescência de paralisias, contraturas, anestesias, quedas e dores foram a forma
sintomática segundo a qual os sujeitos histéricos responderam pelo sintoma a um Outro
médico no final do século passado.
Tomados na epidemia, todos os fenômenos de corpo que se manifestavam de
forma idêntica foram então classificados sistematicamente do lado das conversões
histéricas.
Hoje os tempos mudaram, a epidemia mudou, e o sintoma de conversão histérica
ao longo dos anos, na sua forma neurológica originária perdeu seu brilho.
Como resultado, toda uma clínica de fenômenos de corpo, já presente no século
anterior, extraída do amálgama conversivo da época, aparece agora em sua pureza. Uma
base sólida deve ser dada a esses fenômenos na estrutura, do lado da psicose.
Se o fenômeno histérico mudou em sua forma, seu mecanismo não mudou. A
transposição da energia libidinal desligada da representação, no corporal, descrita por
Freud em 1894, permanece e permanecerá um ponto de certeza clínica anistórico. [2]
O que também não muda é a primazia da estrutura sobre o sintoma que Freud
estabeleceu desde 1905. Se ele escolhe fazer de Dora um caso exemplar é porque ela
apresenta apenas sintomas de conversão menores e porque ela demonstra a lógica
estrutural quaternária que desde então servirá de orientação na clínica da histeria. [3]
É dessa lógica que decorre a escritura do discurso da histérica no Seminário
XVII, O Avesso da Psicanálise, que serve de bússola para identificar a estrutura
histérica na prática.

Novas formas do sintoma de conversão

As formas que as conversões histéricas assumiram nos nossos dias estão


totalmente apagadas pela psiquiatria contemporânea sob o DSM-4, que classifica todos

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os fenômenos de corpo sob o título único de transtornos somatoformes, o que faz
desaparecer a especificidade do mecanismo da conversão.
Essa posição não é admitida pela simples observação clínica. Ela tem, no
entanto, o mérito de lançar luz sobre um fenômeno bastante atual e cada vez mais
freqüente que é o das somatizações.
A dor nas costas, por exemplo, tornou-se hoje em dia muito comum. Mas não há
razão para fazer dela um sintoma típico da histeria moderna, pois constata-se, é claro,
que ela é transclínica. Devemos de fato evitar confundir a estrutura e a identificação
histérica que pode afetar a todos.
A psicanálise deve identificar o que mudou no campo do Outro, há um século,
para o sujeito histérico e suas conversões: a histérica, de todos os tempos, foi solidária
do mestre cuja castração ela denuncia. As conversões neurológicas foram a resposta ao
mestre médico que desde então perdeu completamente o seu lugar de mestre.
Lacan em 1966 em sua intervenção sobre o lugar da psicanálise na medicina
predisse que o médico se tornaria um técnico a serviço da ciência médica e denunciou
“o efeito que o progresso da ciência teria sobre a relação da medicina com o corpo”. Ele
deu a esse efeito o nome de falha epistemo-somática”. [4]
Hoje em dia é muito mais da ciência médica que o sujeito histérico é solidário
para construir seus sintomas ao denunciar essa falha epsitemo-somática.
Seus sintomas de conversão interrogam a ciência médica moderna que se
endereça a um corpo excluindo a relação do sujeito com o gozo.
Já conhecemos há muitos anos em nossas sociedades a relação da mulher
histérica com a especialidade médica que decide sobre a procriação desprezando a causa
do desejo.
Um exemplo muito mais moderno nos abre perspectivas sintomáticas para o
início do próximo milênio. Um programa do tão sério canal Arte mostrou recentemente
o uso científico ofertado à mulher histérica para quebrar a “proibição fálica”. Vimos,
assim, a realização literal do que Lacan anunciou em 1958: “Será porventura preciso
que se nos alie a prática, que em algum momento talvez adquira força de uso, de
inseminar artificialmente as mulheres, desrespeitada a proibição fálica, com o esperma
de grandes homens, para que extraiam de nós um veredito sobre a função paterna?”. [5]
O canal Arte apresentou na América do Norte o que é chamado de associações
de mães solteiras, constituídas por mulheres que fazem a escolha deliberada – sem
apresentarem sintomas de infertilidade – de se submeterem a procedimentos de

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inseminação artificial de doadores desconhecidos para darem à luz a “filhos sem pai” –
esse é o termo oficial. Essas associações, agora muito bem organizadas, oferecem a
essas mulheres a oportunidade de construírem pelo computador o retrato robótico do
doador de sua escolha, o futuro pai virtual. O esperma é então selecionado a partir dessa
escolha.
Ainda mais exemplar da clarividência de Lacan, vimos um homem, responsável
por uma associação pesquisar no “Who Who”, os perfis físicos e intelectuais ideais do
futuro doador com quem ele entraria em contato.
Em seguida nos é apresentado o mercado da fertilidade em Montreal, onde,
como uma feira de exposição, uma multidão de estandes fazia o artigo sobre a qualidade
e a garantia de fertilidade do esperma colocado à venda. Essa reportagem mostrou de
maneira muito perspicaz o júbilo dessas mulheres com a ideia de prescindir do homem e
do falo para ter um filho. Mas esse júbilo desapareceu em seguida para dar lugar ao
sintoma: depois de uma dezena de inseminações malsucedidas, as jovens exaustas e
deprimidas abandonaram decepcionadas seus projetos. Algumas acabaram
engravidando e não esconderam seu desânimo com a chegada do filho. Uma delas
guardava preciosamente a multa do estacionamento do centro de inseminação para
poder mostrar ao filho no dia em que ele se preocupasse em saber quem era seu pai.
Esse exemplo mostra, mais uma vez, que a histérica sempre esteve desde a
antiguidade à frente de seu tempo. As conversões à la Charcot há muito tempo não as
interessam mais e os psicanalistas tem um real interesse em seguir as mutações do
Outro da histérica e não mais procurar seus sintomas do lado de lá.

A leitura psicanalítica da hipocondria

Do lado de lá há muito mais para se descobrir, pois os fenômenos de corpo


clássicos todavia ainda não desapareceram neste final de século.
Um estudo baseado em uma série de dez pessoas acompanhadas por um
psicanalista por pelo menos seis meses, relata, sem detalhar sua história clínica, as
linhas de força estruturais desses fenômenos.
Apresentamos aqui cinco delas:
1- Uma moça de 20 anos foi encaminhada por uma fixação obsessiva em uma dor
de dente aguda que a fazia sofrer constantemente desde os 4 anos de idade.

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2- Uma mulher de 50 anos apresentou no curso de sua análise, iniciada vários anos
atrás, um desconforto e uma dor que circulava por todo o corpo e que provocava
rigidez nos movimentos e no andar; dez anos antes do início de sua análise, após
duas intervenções cirúrgicas ela ficou paralisada por dois anos.
3- Fabiana, 22 anos, foi acompanhada durante uma hospitalização devido a fortes
dores paralisantes nos quatro membros, que se resolveu após três meses de
tratamento.
4- Carla, 20 anos, está em entrevistas psicanalíticas há dois anos porque apresenta
uma espasticidade e um bloqueio dos membros inferiores que dificultam a
marcha e que se seguem a quedas repentinas que põem em risco sua vida.
5- Uma jovem de 30 anos sofre de anorexia muito grave por um período no fim da
adolescência, e de transtornos digestivos acompanhados de dores que invadem
sua vida psíquica.

Todos esses sujeitos são do sexo feminino. Por um lado, encontramos esses
fenômenos de corpo bem mais frequentemente em mulheres e, por outro lado,
optamos por incluir apenas mulheres nesse estudo para nos colocarmos no mesmo
terreno das conversões histéricas.
Tentamos afirmar a estrutura procurando primeiro demonstrar a neurose, isto é,
os efeitos da inscrição do sujeito no discurso da histérica, e essa pesquisa nos levou
a cada vez a nos afastar dessa estrutura.
Por outro lado, é antes o velho termo psiquiátrico clássico da hipocondria, hoje
quase esquecido, que pensamos para esses sujeitos, mas devemos dar a esse termo
uma nova definição esclarecida pela nossa teoria psicanalítica atual.
Em todos esses sujeitos encontramos associado ao fenômeno corporal, em um
momento ou outro, um elemento de sensibilidade, podendo chegar em alguns deles
até a emergência de um elemento interpretativo. Em um desses casos, a
sensibilidade sempre esteve presente desde a infância; em um segundo caso, vimos
surgir durante o tratamento uma fixação persecutória com o terapeuta que foi
acompanhada de uma diminuição acentuada do fenômeno corporal; um terceiro
caso, ainda mais revelador, uma verdadeira oscilação rítmica apareceu entre os
momentos interpretativos e as manifestações do fenômeno corporal. Esses indícios
da estrutura paranóica sempre permaneceram mascarados ou discretos e difíceis de
detectar.

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Em vários desses sujeitos, nós constatamos que a parte do corpo onde ocorriam
os fenômenos tinha assumido para eles um valor do Outro. Toda a sua relação com
o mundo e sua organização estava subordinada a esse laço que se tornara ao mesmo
tempo seu tormento e seu suporte essencial. Constatamos ao mesmo tempo que essa
parte do corpo lhes tornou-se estranha, eles a consideravam como não pertencente a
eles, funcionando de maneira bastante autônoma e eles reclamavam que não tinham
controle sobre ela.
A mobilidade do gozo entre os fenômenos sensoriais e corporais, bem como a
função do Outro que uma parte do corpo pode ter assumido para esses sujeitos,
referem-se à conhecida definição dada por Lacan em 1966 para a paranóia: “a
paranóia como identificador do gozo no lugar do Outro como tal” [6]. Nos casos
encontrados nesse estudo, deve-se antes argumentar que a hipocondria identifica o
gozo no lugar do corpo como Outro.

Fenômeno não é sintoma

Esses fenômenos de corpo que comparamos à hipocondria não podem ser


considerados como tendo um estatuto de sintoma no sentido que Lacan dá ao final
de seu ensino, e não apenas porque não são, como o sintoma de conversão histérica,
uma formação interpretável do inconsciente.
Dois sujeitos que entraram no nosso estudo, Carla e Fabiana, vêm aqui para
mostrar isso. O vínculo que essas duas jovens tinham com o seu pai não deve ser
confundido com o laço de amor do sujeito histérico pelo seu pai porque se tratava
nesses casos de uma alienação, tal como podemos ver somente na psicose, isto é, um
laço ao pai ao mesmo tempo imaginário e real, sendo o pai ao mesmo tempo
especular e o Outro absoluto.
Carla fazia quedas graves que chegaram a provocar uma fratura do crânio e que,
desde então, foram seguidas pela quase impossibilidade de dar um passo. Acabamos
por descobrir sem que ela mesma pudesse estabelecer os laços causais, que o antigo
negócio da família de seu pai que representava para ela seu ideal de vida futura (ser
como o pai) havia falido algum tempo antes do começo das suas quedas e que o pai
que até então fazia par com a sua filha tinha quase a derrubado.
Fabiana que apresentava dores agudas nas mãos e nos pés havia usado todas as
noites durante oito anos uma casca de gesso para tratar uma escoliose grave. É o seu

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pai quem todas as noites amarra o corpete em suas costas. No dia em que o corpete
foi retirado, ela não mais “se sentiu apoiada”, diz ela. Algum tempo depois, em um
momento onde seu pai estava muito doente e com dores, o fenômeno doloroso
surgiu nos quatro membros, área do corpo da filha que o pai não conteve.
Foi a falência do pai e o seu “deixar cair” no primeiro caso e a perda da
contenção do corpo pelo pai no segundo caso que provocou o surgimento dos dois
fenômenos de corpo. A particularidade do laço ao pai, a amarração do imaginário e
do real, responde nesses sujeitos à sua forclusão simbólica. Ora, é surpreendente
notar que foi no momento de ruptura desse laço paterno que surgiu o fenômeno
hipocondríaco que amarra o imaginário do corpo ao real do gozo. Houve uma
espécie de transferência, um deslocamento, do nó IR do pai ao corpo. Por isso, não
há razão para considerar esse fenômeno como um sintoma, ainda que ele consiga
por outro lado limitar, bordear o gozo a ponto de que não se produza nenhuma outra
manifestação da psicose. Acontece também que esses sujeitos passam a elaborar, a
partir do fenômeno, um saber delirante que passa a dar sentido a isso.
Esse fenômeno de corpo a ser distinguido de um sintoma evoca o fenômeno
psicossomático, que é outra modalidade não sintomática do retorno do gozo no
corpo. O percurso que este artigo segue, que vai da histeria aos “novos fenômenos
de corpo”, é apenas um esboço de uma pesquisa necessária sobre as surpresas que o
corpo nos reserva à medida que entramos no século XXI.
Portanto, não será questão aqui de conclusão.

Notas
1. MILLER J.-A. et LAURENT É., «L’Autre qui n’existe pas et ses comitês d’éthique» (1996-1997)
(inédit).
2. FREUD S., «Les psychonévroses de défense», Névrose, psychose ET perversion, Paris, PUF, 1894,
p. 4.
3. FREUD S., «Fragment d’une analyse d’hystérie», Cinq psychanalyses, Paris, PUF, 1905.
4. LACAN J., «La place de la psychanalyse dans la médecine», Extrait de Cahiers du Collège de
médecine n°12, Expansion, 1966, pp. 761-774.
5. LACAN J., «Subversion du sujet et dialectique du désir», Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 813.
6. LACAN J., «Présentation des Mémoires du président Schreber», Ornicar ? n°38, Paris, Navarin,
1986, p. 7.

Tradução: Arryson A. Zenith Jr.


Extraído de: La Cause Freudienne, 38, Fevereiro 1998, p. 27-31

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