Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CONFERÊNCIA DE
DOM JOSÉ TOLENTINO
CARDEAL CALAÇA DE MENDONÇA,
ARQUIVISTA E BIBLIOTECÁRIO
DA SANTA IGREJA ROMANA.
POR OCASIÃO DA
BÊNÇÃO SOLENE DO PAINEL DE EMAÚS
CAMINHO DE EMAÚS
3
É interessante um detalhe: o nome dos dois
discípulos de Emaús. Sabemos que um deles se chama
Cléofas, mas esse nome não é suficiente para arrancá-
lo do anonimato. Talvez sejam apenas dois discípulos,
mas nesta situação semi-anônima eles se tornam
representantes de qualquer discípulo que se confronta
com a fé pascal.
Onde começa a história de Emaús? Ela começa na
estrada. Este é certamente um lugar teológico muito
importante. Dois discípulos caminham para uma
aldeia que fica a sessenta estádios de Jerusalém, e a eles
se junta Jesus. Começa aí um jogo de revelação. Um
jogo que passa pelo seguinte: os discípulos vêm Jesus,
mas não o reconhecem. Há um jogo interessante nesse
maravilhoso texto do terceiro Evangelho: os olhos dos
discípulos estavam impedidos de reconhecer Jesus,
mas não os olhos dos leitores, que desde o princípio
podem entrar nesta situação e percebê-la como um
espelho da sua própria realidade.
O que está acontecendo? Os discípulos pensam que
o seu problema é Jesus, é a condição de Jesus, é não
encontrarem um sentido, uma hermenêutica para a
4
compreensão de Jesus. O que o texto nos diz? O texto
diz ao leitor, antecipadamente, que o problema não é
a situação de Jesus, o problema não é Jesus, o problema
é o nosso olhar, a nossa visão, a nossa compreensão.
E um elemento curioso, se quisermos já avançar
para o fim, é pensar que no final da narrativa de Emaús
Jesus desaparece, e isto já não é um problema para os
discípulos, porque eles aprenderam a olhar,
aprenderam a ver Jesus, aprenderam a viver de acordo
com a fé pascal. E esse é o grande desafio que o texto
de Emaús nos faz: termos uma visão pascal da vida, dos
acontecimentos. E isso implica entrarmos num
conhecimento que não é apenas aquele que nossos
olhos e nossas expectativas nos dão, mas é o olhar que
o próprio Jesus é capaz de nos dar.
É interessante que o narrador lucano, a propósito
do olhar dos discípulos, utiliza dois verbos: o verbo
“impedir”, “os seus olhos estavam impedidos” (Lc 24, 16),
isso quer dizer, na linguagem evangélica, o
endurecimento do coração. O coração é que vê
verdadeiramente. É curioso que esse verbo impedir, ou
estar impedido, é um verbo utilizado várias vezes no
5
evangelho para falar dos adversários de Jesus. É como
se os discípulos não estivessem sendo discípulos. O
segundo verbo é o verbo “reconhecer”, que implica um
certo nível de conhecimento que não é apenas
gnosiológico, não é apenas teórico, mas é um
conhecimento afetivo, que se dá através da fé pascal.
Acompanhemos, então, os discípulos.
O seu problema, como vimos, é uma leitura da
ressurreição. A passagem de Emaús nos coloca uma
pergunta: Como é que tu interpretas a ressurreição?
Como a vês? Qual é a hermenêutica pascal que utilizas?
Isso é muito importante, porque a páscoa pede de nós
uma viagem, um deslocamento, um olhar novo e
diferente sobre a realidade. A páscoa supõe a
experiência de Emaús. A visão dos dois discípulos de
Emaús é, ainda, uma visão pré-pascal. Eles precisam do
encontro do caminho, do encontro da Palavra e do
encontro da Fração do pão. Estes são os lugares da
mistagogia da iniciação de todo cristão. Para
entendermos o Jesus pascal, precisamos voltar ao
caminho, escutar de maneira aprofundada a Palavra e
ter a experiência da mesa. Mas não devemos ter receio.
6
O que é maravilhoso na cena de Emaús, o que é
maravilhoso em cada tempo da vida da Igreja, e na
história de cada um de nós, é que Jesus tem a iniciativa,
é ele que vem ao nosso encontro, é ele que inaugura
um diálogo, é ele que nos faz a primeira pergunta. E os
discípulos, respondendo a Jesus, o nomeiam. Aí dizem:
“Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras
diante de Deus e de todo o povo, nós esperávamos que fosse
ele a redimir Israel” (Lc 24, 19).
É interessante que nessa apresentação que fazem de
Jesus ao próprio Jesus, do Jesus que há dentro deles,
eles mostram um resumo do próprio evangelho.
Começam a referir-se a Jesus como o nazareno, Jesus
de Nazaré, e referem vários episódios que percebemos
estarem ligados às passagens de Nazaré.
Nomeadamente, a ida de Jesus à Sinagoga, quando os
seus não o reconhecem. Jesus é referido por eles,
sobretudo, como o profeta, como o dispensador da
graça de Deus. Mas essa visão é uma visão pré-pascal,
visto que o Jesus profeta não é, ainda, o Jesus Filho de
Deus. Não é, ainda, o Jesus Messias Salvador. Por isso
eles terão de fazer um caminho, para dar um passo em
7
frente, a fim de sentir que Jesus é o detentor do
verdadeiro poder messiânico. Algo que, de certa
forma, eles ainda não acreditam, pois acreditar em
Jesus é um processo, é um caminho, é um
aprofundamento.
Podemos acreditar que Jesus é um profeta, que é um
enviado de Deus, que é o dispensador do bem, do
milagre, e não acreditar verdadeiramente que Jesus é o
Filho de Deus. E essa descoberta da fé é algo que vai
amadurecendo gradualmente em nosso coração. De
certa forma é o desafio que nos é apresentado em
Emaús.
Essa é certamente a tarefa mais urgente, mais
necessária, ou seja, o amadurecimento de nossa fé
cristológica. Em quem eu creio, quando eu creio em
Jesus? O que eu creio quando creio em Jesus? É esse
amadurecimento que nos torna verdadeiramente
cristãos. Não se trata de um texto do passado. Emaús
conta a situação dos discípulos, conta como nos
fazemos discípulos no confronto com a hermenêutica
pascal. Há um obstáculo nos olhos dos discípulos, e
um obstáculo no nosso coração e no nosso olhar.
8
É muito curioso que o texto de Emaús está muito
centrado na dramática da visão, na problemática do
ver. Eles contam: "Nós esperávamos que fosse ele quem
haveria de restaurar Israel, e agora, além de tudo isso, é hoje
o terceiro dia que essas coisas sucederam. É verdade que
algumas mulheres dentre nós nos alarmaram. Elas foram ao
sepulcro, antes do nascer do sol; e, não tendo achado o seu
corpo, voltaram, dizendo que tiveram uma visão de anjos, os
quais asseguravam que está vivo. Alguns dos nossos foram ao
sepulcro e acharam-no assim como as mulheres tinham dito,
mas a ele mesmo não viram” (Lc 24, 21-24).
É muito interessante esta tríplice dramaticidade da
visão: as mulheres vão e veem, não veem a Jesus, mas a
mensageiros celestes que afirmam que Jesus vive. As
mulheres contam aos discípulos, estes vão ao sepulcro,
mas não veem Jesus. Podemos perceber, então, que há
uma construção sobre o sinal da oposição: ver e não
ver. Daí perguntamo-nos: Por quê no sepulcro os
discípulos não veem? Por quê no sepulcro as mulheres
não veem? Porque o sepulcro é um lugar contrário à
vida. O que se pode ver no sepulcro, em relação à
ressurreição, é o sepulcro vazio. O que se pede é a
9
passagem a um outro lugar. Um lugar de vida, para que
Jesus possa se revelar como o vivente. É isto que os
discípulos terão de descobrir.
O que temos em Emaús que podemos dizer que é,
também, o símbolo da nossa vida, da nossa história, da
nossa Igreja, o símbolo atual da nossa situação de fé?
Qual é a questão em Emaús? A questão é esta: será que
o problema é que não vemos, ou o problema é que não
cremos? Não acreditamos o suficiente, não
amadurecemos a fé pascal. Permanecemos, ainda,
numa imagem de Jesus pré-pascal. É interessante que
Jesus se torna o protagonista, e, num processo de
autorrevelação, Jesus vai acusar e denunciar a nossa
visão reduzida, e vai dizer: “Ó gente sem inteligência!
Como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que
anunciaram os profetas!” (Lc 24, 25). Isso nos mostra
que, para Jesus, o problema não era o fato de eles
serem incapazes de ver, mas de serem, neste momento,
incapazes de crer. "Porventura não era necessário que
Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?"
(Lc 24, 26).
10
Este é o momento da palavra. Este é o momento
central. São Jerônimo dizia que ignorar a Palavra é
ignorar o próprio Cristo. E tem toda a razão, pois na
Palavra é Cristo que nos explica Cristo, é Cristo que
nos revela Cristo. Por isto é que um cristão não pode
viver sem a Palavra de Deus. Sem ela, não
mergulhamos na fé pascal, ficaremos sempre na
superfície. Acharemos sempre que nosso problema é
de visão, quando na verdade temos um problema de
fé, da fé que nasce da escuta da Palavra de Deus. Nela,
o próprio Deus nos fala. É disto que os discípulos se
dão conta, pois um deles diz ao outro: “Não se nos
abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho e
nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32).
Este ardor do coração fala de um encontro íntimo,
profundo, real, que provamos num encontro com a
Palavra de Deus. Certamente o episódio de Emaús,
colocado no final do evangelho, aparece como um
pequeno resumo do grande evangelho, serve como
uma chamada de atenção dos leitores, dos discípulos a
colocarem no centro a Palavra de Deus.
11
É interessante que a Palavra de Deus nos ensina
muito sobre a pessoa de Jesus. O caminho da vida, com
suas questões, seus dramas, seus obstáculos, nos ensina
muito. Mas a hospitalidade nos ensina outro tanto. Há
um evangelho que aprendemos somente na
hospitalidade. Somente nesta forma, que se traduz
num desejo de relação, no desejo de um encontro.
Para o leitor de Lucas, a casa e a mesa não são
surpresas. Vemos ao longo do evangelho cenas
importantes. Vemos a mesa ser o cenário, o lugar por
excelência da revelação de Jesus e do seu
conhecimento mais profundo. Jesus é acusado de
comer e beber com os pecadores. Mas, neste ponto, a
refeição torna-se o momento da conversão, o momento
vocacional, o momento da grande transformação.
Pensemos a ida à casa de Zaqueu, que se tornou o
ponto de partida para uma vida nova, para uma vida
ressuscitada. Pensemos na pecadora anônima, que
entra como uma intrusa na casa de Simão, durante a
refeição. Mas o fato nos mostra a sua compreensão de
quem é verdadeiramente Jesus. Ela sabe que é ele que
12
pode perdoar os seus pecados, ou seja, é ele que lhe
pode dar uma vida nova.
Acontece, contudo, algo muito especial no contexto
da mesa. Na parte do caminho e da palavra, temos
diante de nós um diálogo. Trata-se de uma chave
dialógica. No caminho temos os discípulos e temos
Jesus. Na palavra, temos o leitor, os discípulos e Jesus.
Mas quando chega o momento da mesa, Jesus tem o
protagonismo total. O versículo 30 deste relato de
Emaús diz-nos o seguinte: "Aconteceu que, estando
sentado conjuntamente à mesa, ele tomou o pão, abençoou-
o, partiu-o e entregou-lho.” Reparemos que todos os
verbos têm Jesus como sujeito. Aquele que antes era o
forasteiro, agora é o anfitrião. Agora é aquele que
partilha conosco o pão da sua própria vida. Essa
interessante sequência de gestos, demonstrados pelos
verbos, mostra-nos que Jesus não só tomou o pão, mas
que se dá ele mesmo naquele pão. Esses verbos são um
reenvio para a dádiva da cruz que nós celebramos em
cada sacrifício eucarístico. Ali, naquele momento, os
discípulos compreendem, por fim, que estão diante de
Jesus, confirmando a sua fé pascal.
13
A passagem de Emaús nos ajuda a compreender a
teologia da Eucaristia, e o que acontece em cada
Eucaristia. Jesus torna-se o anfitrião do nosso desejo de
hospitalidade. Queremos ser acolhidos, abraçados,
salvos, e ele vem e se coloca no centro, como pão, como
alimento que é capaz de dar sentido à nossa vida. A
Eucaristia é pão para a fé, é pão que sustenta um crer
que abre a nossa visão. Naquele momento os
discípulos compreenderam tudo. Para que possamos
compreender a fé pascal, devemos passar por dentro da
Eucaristia. Celebrar com profundidade o mistério
eucarístico. Porque a Eucaristia é a chave
hermenêutica para entender essa viagem cristã, de
iniciação, que se chama Emaús.
Emaús é qualquer lugar. É o nome que damos ao
caminho. À iniciação ao mistério, à mistagogia, à
experiência, à fome de algo mais, às lágrimas e ao riso
que entregamos a Jesus. É o novo começo. E muitos
autores valorizam este aspecto.
Podemos fazer uma relação entre Emaús e o livro do
Gênesis. Primeiro porque, no Gênesis, tudo acontece
pela força da Palavra. Deus cria pela força de sua
14
Palavra criadora. Devemos acreditar que Deus nos cria
e nos recria. Que há uma nova criação em nós, que
acontece pela força do encontro com essa Palavra.
Deus disse e aconteceu.
O segundo aspecto é percebermos que, quando
Adão e Eva abrem os olhos, eles percebem que estão
sós e nus; quando os olhos da fé dos discípulos de
Emaús se abrem, assim como os nossos, nós
percebemos que não estamos sós, e que a nossa vida
foi recriada a partir da certeza da fé. O coração deles
ardia, e esse fogo torna-se o princípio de um novo
caminho, que os discípulos passam a trilhar.
O terceiro aspecto é a comunidade. O caminho de
regresso é um caminho para o coração da comunidade.
Jerusalém é a comunidade dos onze que, em torno a
Pedro, testemunham a fé no Ressuscitado. Isso faz com
que os discípulos passem da solidão para a companhia,
do individualismo para a comunidade. É interessante
que eles chegam e ouvem aquilo que a comunidade
proclama: “O Senhor ressuscitou verdadeiramente e
apareceu a Simão” (Lc 24, 34). Há uma verdade da nossa
fé que podemos descobrir tateando, fazendo nossa
15
experiência pessoal. Mas, depois, é a fé da comunidade
que confirma e certifica o caminho de fé e
amadurecimento que fizemos. “O Senhor ressuscitou
verdadeiramente e apareceu a Simão” (Lc 24, 34).
O que abre os nossos olhos? O que nos faz ver? O
que nos dá uma compreensão de que não estamos sós?
De que há um terceiro caminhante que caminha ao
nosso lado? É a fé. Os olhos dos discípulos, tal como
os nossos, são olhos abertos pela fé.
O que peço ao Senhor, para cada um de vós, é que
a fé esteja, de fato, no centro, e que permita a cada um,
e à comunidade, um caminho pascal. Onde a
profundidade do mistério pascal se torne a chave para
o mistério que cada um de nós é. Como lembrava o
Concílio Vaticano II, Cristo é a chave para o mistério
do ser humano.
16