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CAMINHO DE EMAÚS

CONFERÊNCIA DE
DOM JOSÉ TOLENTINO
CARDEAL CALAÇA DE MENDONÇA,
ARQUIVISTA E BIBLIOTECÁRIO
DA SANTA IGREJA ROMANA.
POR OCASIÃO DA
BÊNÇÃO SOLENE DO PAINEL DE EMAÚS
CAMINHO DE EMAÚS

Gostaria de congratular-me com o Seminário por


esta sua iniciativa, saudar afetuosamente todos os
presentes, o senhor arcebispo, os formadores do
seminário, os seminaristas, os convidados especiais, e
todos os que escutam esta minha fala, que é uma
reflexão sobre a experiência de Emaús, a qual, no
fundo, é uma experiência fundamental para dizer o
que é a nossa experiência cristã.
Temos a história de dois discípulos desalentados,
cansados, que pensam que é o fim. De certa forma,
nada de original, pois em cada época da história nos
encontramos tantas vezes com esses sentimentos.
Tinham em si expectativas que não viram cumpridas
ou acharam que não se cumpriram. “Esperávamos que
fosse ele a redimir Israel” (Lc 24, 21), e agora estão
entristecidos e desconsolados, sem saber bem o que
pensar.

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É interessante um detalhe: o nome dos dois
discípulos de Emaús. Sabemos que um deles se chama
Cléofas, mas esse nome não é suficiente para arrancá-
lo do anonimato. Talvez sejam apenas dois discípulos,
mas nesta situação semi-anônima eles se tornam
representantes de qualquer discípulo que se confronta
com a fé pascal.
Onde começa a história de Emaús? Ela começa na
estrada. Este é certamente um lugar teológico muito
importante. Dois discípulos caminham para uma
aldeia que fica a sessenta estádios de Jerusalém, e a eles
se junta Jesus. Começa aí um jogo de revelação. Um
jogo que passa pelo seguinte: os discípulos vêm Jesus,
mas não o reconhecem. Há um jogo interessante nesse
maravilhoso texto do terceiro Evangelho: os olhos dos
discípulos estavam impedidos de reconhecer Jesus,
mas não os olhos dos leitores, que desde o princípio
podem entrar nesta situação e percebê-la como um
espelho da sua própria realidade.
O que está acontecendo? Os discípulos pensam que
o seu problema é Jesus, é a condição de Jesus, é não
encontrarem um sentido, uma hermenêutica para a

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compreensão de Jesus. O que o texto nos diz? O texto
diz ao leitor, antecipadamente, que o problema não é
a situação de Jesus, o problema não é Jesus, o problema
é o nosso olhar, a nossa visão, a nossa compreensão.
E um elemento curioso, se quisermos já avançar
para o fim, é pensar que no final da narrativa de Emaús
Jesus desaparece, e isto já não é um problema para os
discípulos, porque eles aprenderam a olhar,
aprenderam a ver Jesus, aprenderam a viver de acordo
com a fé pascal. E esse é o grande desafio que o texto
de Emaús nos faz: termos uma visão pascal da vida, dos
acontecimentos. E isso implica entrarmos num
conhecimento que não é apenas aquele que nossos
olhos e nossas expectativas nos dão, mas é o olhar que
o próprio Jesus é capaz de nos dar.
É interessante que o narrador lucano, a propósito
do olhar dos discípulos, utiliza dois verbos: o verbo
“impedir”, “os seus olhos estavam impedidos” (Lc 24, 16),
isso quer dizer, na linguagem evangélica, o
endurecimento do coração. O coração é que vê
verdadeiramente. É curioso que esse verbo impedir, ou
estar impedido, é um verbo utilizado várias vezes no

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evangelho para falar dos adversários de Jesus. É como
se os discípulos não estivessem sendo discípulos. O
segundo verbo é o verbo “reconhecer”, que implica um
certo nível de conhecimento que não é apenas
gnosiológico, não é apenas teórico, mas é um
conhecimento afetivo, que se dá através da fé pascal.
Acompanhemos, então, os discípulos.
O seu problema, como vimos, é uma leitura da
ressurreição. A passagem de Emaús nos coloca uma
pergunta: Como é que tu interpretas a ressurreição?
Como a vês? Qual é a hermenêutica pascal que utilizas?
Isso é muito importante, porque a páscoa pede de nós
uma viagem, um deslocamento, um olhar novo e
diferente sobre a realidade. A páscoa supõe a
experiência de Emaús. A visão dos dois discípulos de
Emaús é, ainda, uma visão pré-pascal. Eles precisam do
encontro do caminho, do encontro da Palavra e do
encontro da Fração do pão. Estes são os lugares da
mistagogia da iniciação de todo cristão. Para
entendermos o Jesus pascal, precisamos voltar ao
caminho, escutar de maneira aprofundada a Palavra e
ter a experiência da mesa. Mas não devemos ter receio.

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O que é maravilhoso na cena de Emaús, o que é
maravilhoso em cada tempo da vida da Igreja, e na
história de cada um de nós, é que Jesus tem a iniciativa,
é ele que vem ao nosso encontro, é ele que inaugura
um diálogo, é ele que nos faz a primeira pergunta. E os
discípulos, respondendo a Jesus, o nomeiam. Aí dizem:
“Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras
diante de Deus e de todo o povo, nós esperávamos que fosse
ele a redimir Israel” (Lc 24, 19).
É interessante que nessa apresentação que fazem de
Jesus ao próprio Jesus, do Jesus que há dentro deles,
eles mostram um resumo do próprio evangelho.
Começam a referir-se a Jesus como o nazareno, Jesus
de Nazaré, e referem vários episódios que percebemos
estarem ligados às passagens de Nazaré.
Nomeadamente, a ida de Jesus à Sinagoga, quando os
seus não o reconhecem. Jesus é referido por eles,
sobretudo, como o profeta, como o dispensador da
graça de Deus. Mas essa visão é uma visão pré-pascal,
visto que o Jesus profeta não é, ainda, o Jesus Filho de
Deus. Não é, ainda, o Jesus Messias Salvador. Por isso
eles terão de fazer um caminho, para dar um passo em

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frente, a fim de sentir que Jesus é o detentor do
verdadeiro poder messiânico. Algo que, de certa
forma, eles ainda não acreditam, pois acreditar em
Jesus é um processo, é um caminho, é um
aprofundamento.
Podemos acreditar que Jesus é um profeta, que é um
enviado de Deus, que é o dispensador do bem, do
milagre, e não acreditar verdadeiramente que Jesus é o
Filho de Deus. E essa descoberta da fé é algo que vai
amadurecendo gradualmente em nosso coração. De
certa forma é o desafio que nos é apresentado em
Emaús.
Essa é certamente a tarefa mais urgente, mais
necessária, ou seja, o amadurecimento de nossa fé
cristológica. Em quem eu creio, quando eu creio em
Jesus? O que eu creio quando creio em Jesus? É esse
amadurecimento que nos torna verdadeiramente
cristãos. Não se trata de um texto do passado. Emaús
conta a situação dos discípulos, conta como nos
fazemos discípulos no confronto com a hermenêutica
pascal. Há um obstáculo nos olhos dos discípulos, e
um obstáculo no nosso coração e no nosso olhar.

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É muito curioso que o texto de Emaús está muito
centrado na dramática da visão, na problemática do
ver. Eles contam: "Nós esperávamos que fosse ele quem
haveria de restaurar Israel, e agora, além de tudo isso, é hoje
o terceiro dia que essas coisas sucederam. É verdade que
algumas mulheres dentre nós nos alarmaram. Elas foram ao
sepulcro, antes do nascer do sol; e, não tendo achado o seu
corpo, voltaram, dizendo que tiveram uma visão de anjos, os
quais asseguravam que está vivo. Alguns dos nossos foram ao
sepulcro e acharam-no assim como as mulheres tinham dito,
mas a ele mesmo não viram” (Lc 24, 21-24).
É muito interessante esta tríplice dramaticidade da
visão: as mulheres vão e veem, não veem a Jesus, mas a
mensageiros celestes que afirmam que Jesus vive. As
mulheres contam aos discípulos, estes vão ao sepulcro,
mas não veem Jesus. Podemos perceber, então, que há
uma construção sobre o sinal da oposição: ver e não
ver. Daí perguntamo-nos: Por quê no sepulcro os
discípulos não veem? Por quê no sepulcro as mulheres
não veem? Porque o sepulcro é um lugar contrário à
vida. O que se pode ver no sepulcro, em relação à
ressurreição, é o sepulcro vazio. O que se pede é a

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passagem a um outro lugar. Um lugar de vida, para que
Jesus possa se revelar como o vivente. É isto que os
discípulos terão de descobrir.
O que temos em Emaús que podemos dizer que é,
também, o símbolo da nossa vida, da nossa história, da
nossa Igreja, o símbolo atual da nossa situação de fé?
Qual é a questão em Emaús? A questão é esta: será que
o problema é que não vemos, ou o problema é que não
cremos? Não acreditamos o suficiente, não
amadurecemos a fé pascal. Permanecemos, ainda,
numa imagem de Jesus pré-pascal. É interessante que
Jesus se torna o protagonista, e, num processo de
autorrevelação, Jesus vai acusar e denunciar a nossa
visão reduzida, e vai dizer: “Ó gente sem inteligência!
Como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que
anunciaram os profetas!” (Lc 24, 25). Isso nos mostra
que, para Jesus, o problema não era o fato de eles
serem incapazes de ver, mas de serem, neste momento,
incapazes de crer. "Porventura não era necessário que
Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?"
(Lc 24, 26).

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Este é o momento da palavra. Este é o momento
central. São Jerônimo dizia que ignorar a Palavra é
ignorar o próprio Cristo. E tem toda a razão, pois na
Palavra é Cristo que nos explica Cristo, é Cristo que
nos revela Cristo. Por isto é que um cristão não pode
viver sem a Palavra de Deus. Sem ela, não
mergulhamos na fé pascal, ficaremos sempre na
superfície. Acharemos sempre que nosso problema é
de visão, quando na verdade temos um problema de
fé, da fé que nasce da escuta da Palavra de Deus. Nela,
o próprio Deus nos fala. É disto que os discípulos se
dão conta, pois um deles diz ao outro: “Não se nos
abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho e
nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32).
Este ardor do coração fala de um encontro íntimo,
profundo, real, que provamos num encontro com a
Palavra de Deus. Certamente o episódio de Emaús,
colocado no final do evangelho, aparece como um
pequeno resumo do grande evangelho, serve como
uma chamada de atenção dos leitores, dos discípulos a
colocarem no centro a Palavra de Deus.

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É interessante que a Palavra de Deus nos ensina
muito sobre a pessoa de Jesus. O caminho da vida, com
suas questões, seus dramas, seus obstáculos, nos ensina
muito. Mas a hospitalidade nos ensina outro tanto. Há
um evangelho que aprendemos somente na
hospitalidade. Somente nesta forma, que se traduz
num desejo de relação, no desejo de um encontro.
Para o leitor de Lucas, a casa e a mesa não são
surpresas. Vemos ao longo do evangelho cenas
importantes. Vemos a mesa ser o cenário, o lugar por
excelência da revelação de Jesus e do seu
conhecimento mais profundo. Jesus é acusado de
comer e beber com os pecadores. Mas, neste ponto, a
refeição torna-se o momento da conversão, o momento
vocacional, o momento da grande transformação.
Pensemos a ida à casa de Zaqueu, que se tornou o
ponto de partida para uma vida nova, para uma vida
ressuscitada. Pensemos na pecadora anônima, que
entra como uma intrusa na casa de Simão, durante a
refeição. Mas o fato nos mostra a sua compreensão de
quem é verdadeiramente Jesus. Ela sabe que é ele que

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pode perdoar os seus pecados, ou seja, é ele que lhe
pode dar uma vida nova.
Acontece, contudo, algo muito especial no contexto
da mesa. Na parte do caminho e da palavra, temos
diante de nós um diálogo. Trata-se de uma chave
dialógica. No caminho temos os discípulos e temos
Jesus. Na palavra, temos o leitor, os discípulos e Jesus.
Mas quando chega o momento da mesa, Jesus tem o
protagonismo total. O versículo 30 deste relato de
Emaús diz-nos o seguinte: "Aconteceu que, estando
sentado conjuntamente à mesa, ele tomou o pão, abençoou-
o, partiu-o e entregou-lho.” Reparemos que todos os
verbos têm Jesus como sujeito. Aquele que antes era o
forasteiro, agora é o anfitrião. Agora é aquele que
partilha conosco o pão da sua própria vida. Essa
interessante sequência de gestos, demonstrados pelos
verbos, mostra-nos que Jesus não só tomou o pão, mas
que se dá ele mesmo naquele pão. Esses verbos são um
reenvio para a dádiva da cruz que nós celebramos em
cada sacrifício eucarístico. Ali, naquele momento, os
discípulos compreendem, por fim, que estão diante de
Jesus, confirmando a sua fé pascal.

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A passagem de Emaús nos ajuda a compreender a
teologia da Eucaristia, e o que acontece em cada
Eucaristia. Jesus torna-se o anfitrião do nosso desejo de
hospitalidade. Queremos ser acolhidos, abraçados,
salvos, e ele vem e se coloca no centro, como pão, como
alimento que é capaz de dar sentido à nossa vida. A
Eucaristia é pão para a fé, é pão que sustenta um crer
que abre a nossa visão. Naquele momento os
discípulos compreenderam tudo. Para que possamos
compreender a fé pascal, devemos passar por dentro da
Eucaristia. Celebrar com profundidade o mistério
eucarístico. Porque a Eucaristia é a chave
hermenêutica para entender essa viagem cristã, de
iniciação, que se chama Emaús.
Emaús é qualquer lugar. É o nome que damos ao
caminho. À iniciação ao mistério, à mistagogia, à
experiência, à fome de algo mais, às lágrimas e ao riso
que entregamos a Jesus. É o novo começo. E muitos
autores valorizam este aspecto.
Podemos fazer uma relação entre Emaús e o livro do
Gênesis. Primeiro porque, no Gênesis, tudo acontece
pela força da Palavra. Deus cria pela força de sua

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Palavra criadora. Devemos acreditar que Deus nos cria
e nos recria. Que há uma nova criação em nós, que
acontece pela força do encontro com essa Palavra.
Deus disse e aconteceu.
O segundo aspecto é percebermos que, quando
Adão e Eva abrem os olhos, eles percebem que estão
sós e nus; quando os olhos da fé dos discípulos de
Emaús se abrem, assim como os nossos, nós
percebemos que não estamos sós, e que a nossa vida
foi recriada a partir da certeza da fé. O coração deles
ardia, e esse fogo torna-se o princípio de um novo
caminho, que os discípulos passam a trilhar.
O terceiro aspecto é a comunidade. O caminho de
regresso é um caminho para o coração da comunidade.
Jerusalém é a comunidade dos onze que, em torno a
Pedro, testemunham a fé no Ressuscitado. Isso faz com
que os discípulos passem da solidão para a companhia,
do individualismo para a comunidade. É interessante
que eles chegam e ouvem aquilo que a comunidade
proclama: “O Senhor ressuscitou verdadeiramente e
apareceu a Simão” (Lc 24, 34). Há uma verdade da nossa
fé que podemos descobrir tateando, fazendo nossa

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experiência pessoal. Mas, depois, é a fé da comunidade
que confirma e certifica o caminho de fé e
amadurecimento que fizemos. “O Senhor ressuscitou
verdadeiramente e apareceu a Simão” (Lc 24, 34).
O que abre os nossos olhos? O que nos faz ver? O
que nos dá uma compreensão de que não estamos sós?
De que há um terceiro caminhante que caminha ao
nosso lado? É a fé. Os olhos dos discípulos, tal como
os nossos, são olhos abertos pela fé.
O que peço ao Senhor, para cada um de vós, é que
a fé esteja, de fato, no centro, e que permita a cada um,
e à comunidade, um caminho pascal. Onde a
profundidade do mistério pascal se torne a chave para
o mistério que cada um de nós é. Como lembrava o
Concílio Vaticano II, Cristo é a chave para o mistério
do ser humano.

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