Você está na página 1de 40

PRELÚDIO

Jorge Barbosa (1902-1971); Cabo Verde.

Quando o descobridor chegou à primeira ilha


nem homens nus
nem mulheres nuas
espreitando
inocentes e medrosos
detrás da vegetação.

Nem setas venenosas vindas no ar


nem gritos de alarme e de guerra
ecoando pelos montes.

Havia somente
as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas
de vôo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.

E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pela fúria dos temporais.

Quando o descobridor chegou


e saltou da proa do escaler varado na praia
enterrando
o pé direito na areia molhada
e se persignou
receoso ainda e surpreso
pensando n'El-Rei
nessa hora então
nessa hora inicial
começou a cumprir-se
este destino ainda de todos nós.

VOCÊ: BRASIL
Jorge Barbosa (1902-1971); Cabo Verde.

Eu gosto de você, Brasil,


porque você é parecido com a minha terra.
Eu bem sei que você é um mundão
e que a minha terra são
dez ilhas perdidas no Atlântico,
sem nenhuma importância no mapa.
Eu já ouvi falar de suas cidades:
A maravilha do Rio de Janeiro,
São Paulo dinâmico, Pernambuco, Bahia de Todos-os-Santos.
Ao passo que as daqui
Não passam de três pequenas cidades.
Eu sei tudo isso perfeitamente bem,
mas Você é parecido com a minha terra.

E o seu povo que se parece com o meu,


que todos eles vieram de escravos
com o cruzamento depois de lusitanos e estrangeiros.
E o seu falar português que se parece com o nosso falar,
ambos cheiros de um sotaque vagaroso,
de sílabas pisadas na ponta da língua,
de alongamentos timbrados nos lábios
e de expressões terníssimas e desconcertantes.
É a alma da nossa gente humilde que reflete
A alma das sua gente simples,

Ambas cristãs e supersticiosas,


sortindo ainda saudades antigas
dos sertões africanos,
compreendendo uma poesia natural,
que ninguém lhes disse,
e sabendo uma filosofia sem erudição,
que ninguém lhes ensinou.

E gosto dos seus sambas, Brasil, das suas batucadas.


dos seus cateretês, das suas todas de negros,
caiu também no gosto da gente de cá,
que os canta dança e sente,
com o mesmo entusiasmo
e com o mesmo desalinho também...
As nossas mornas, as nossas polcas, os nossos cantares,
fazem lembrar as suas músicas,
com igual simplicidade e igual emoção.

Você, Brasil, é parecido com a minha terra,


as secas do Ceará são as nossas estiagens,
com a mesma intensidade de dramas e renúncias.
Mas há no entanto uma diferença:
é que os seus retirantes
têm léguas sem conta para fugir dos flagelos,
ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem
porque seria para se afogarem no mar...

Nós também temos a nossa cachaça,


O grog de cana que é bebida rija.
Temos também os nossos tocadores de violão
E sem eles não havia bailes de jeito.
Conhecem na perfeição todos os tons
e causam sucesso nas serenatas,
feitas de propósito para despertar as moças
que ficam na cama a dormir nas noites de lua cheia.
Temos também o nosso café da ilha do Fogo
que é pena ser pouco,
mas — você não fica zangado — é melhor do que o seu.

Eu gosto, de Você, Brasil.


Você é parecido com a minha terra.
O que é é tudo e à grande
E tudo aqui é em ponto mais pequeno...
Eu desejava ir-lhe fazer uma visita
mas isso é coisa impossível.
Eu gostava de ver de perto as coisas
espantosas que todos me contam
de Você,
de assistir aos sambas nos morros,
de esta cidadezinha do interior
que Ribeiro Couto descobriu num dia de muita ternura,
de me deixar arrastar na Praça Onze
na terça-feira de Carnaval.
Eu gostava de ver de perto um lugar no Sertão,
d de apertar a cintura de uma cabocla — Você deixa? —
e rolar com ela um maxixe requebrado.
Eu gostava enfim de o conhecer de mais perto
e você veria como é que eu sou bom camarada.

Havia então de botar uma fala


ao poeta Manuel Bandeira
de fazer uma consulta ao Dr. Jorge de Lima
para ver como é que a poesia receitava
este meu fígado tropical bastante cansado.
Havia de falar como Você
Com um i no si
— “si faz favor —
de trocar sempre os pronomes para antes dos verbos
— “mi dá um cigarro!”.
Mas tudo isso são coisas impossíveis, — Você sabe?
Impossíveis”.

Jorge Barbosa é um escritor cabo–verdiano, nasceu na ilha de Santiago e morre em


Portugal. Colaborou em várias revistas e jornais portugueses e cabo–verdianos. A
publicação de Arquipélago em 1935 foi um marco para o nascimento da poesia cabo-
verdiana, e por isso é considerado o pioneiro da moderna poesia cabo verdiana, onde os
problemas sociais e políticos passaram a constituir uma das grandes temáticas do
escritor.

Jorge Barbosa escreveu ainda Ambiente (1941), Caderno de um Ilhéu (1955, Prémio
Camilo Pessanha) e, na altura os proibidos, mas editados mais recentemente, Meio
Milénio, Júbilo e Panfletário.
CARTA DE UM CONTRATADO
António Jacinto (1924-1991); Angola.

Eu queria escrever-te uma carta


amor
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma cara


amor
uma carta de confidências íntimas
uma carta de lembranças de ti
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí...

Eu queria escrever-te uma carta


amor
que recordasse nossos dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura nossa separação...
Eu queria escrever-te uma carta
amor
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta


amor
uma carta que te levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levasse puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...

Eu queria escrever-te uma carta...


Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!
CASTIGO PRO COMBOIO MALANDRO

António Jacinto (1924-1991); Angola.

passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem

o comboio malandro
passa

Nas janelas muita gente


ai bô viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda pra vender

hii hii hii


aquele vagon de grades tem bois
muú muú muú

tem outro

igual como este dos bois


leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato

Tem bois que morre no viaje


mas o preto não morre
canta como é criança
"Mulonde iá késsua uádibalé
uádibalé uádibalé..."
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo na trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem

Comboio malandro
O fogo que sai no corpo dele
Vai no capim e queima
Vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho

Se na lavra do milho tem pacacas


Eu faço armadilhas no chão,
Se na lavra tem kiombos
Eu tiro a espingarda de kimbundo
E mato neles
Mas se vai lá fogo do malandro
- Deixa!-
Ué ué ué
Te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Só fica fumo,
Muito fumo mesmo.

Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
E os brancos chamar os pretos pra empurrar
Eu vou
Mas não empurro
- Nem com chicote -
Finjo só que faço forca
Aka!

Comboio malandro
Você vai ver só o castigo
Vai dormir mesmo no meio do caminho.

António Jacinto do Amaral Martins, poeta angolano, ganhou reconhecimento através


de sua poesia de protesto. Devido à sua militância política anti-colonialista e de base
marxista, foi exilado no Campo de Concentração de Tarrafal, em Cabo Verde, no
período de 1960 a 1972. Voltou para Angola em 1973, e se juntou ao MPLA
[Movimento Popular de Libertação da Angola]. Com a independência do país frente à
colonização portuguesa em 1975, foi nomeado Ministro da Educação e Cultura, cargo
que ocupou até o ano de 1978. O poema abaixo, um dos mais expressivos de sua obra (e
quiçá de toda a literatura angolana).
PENA

José Craveirinha (1922-2003); Moçambique.

Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.

Mas não me chames negro.

Assim não te odeio


Porque se me chamas de negro
encolho os meus elásticos ombros
e com pena de ti sorrio.

GRITO NEGRO

José Craveirinha (1922-2003); Moçambique.

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei o teu carvão, patrão.

Poema “Grito Negro” declamado por Craveirinha

http://www.youtube.com/watch?v=p6Ug9c2riCU

ÁFRICA

José Craveirinha (1922-2003); Moçambique.

Em meus lábios grossos fermenta


a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturado com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos


a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.

Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos


e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.
E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo
vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíça
um filme de heróis de carabina ao vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das balas e aos gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço


rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens que inventaram
A confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux Klan, Cato Mannor e Sharpeville
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre o ninho morno de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extingiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta
instintos de asas em bando nas pistas do éter
infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinta côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo do Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero


Perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, amens
e bíceps do meu povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros


do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.

AFORISMO
José Craveirinha (1922-2003); Moçambique.
Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:

Não era interrogada


e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente


podiam pôr-nos de rastos
mas não podiam
ajoelhar-nos.

José João Craveirinha (Lourenço Marques, 28 de Maio de 1922 – Maputo, 6 de


Fevereiro de 2003) é considerado o poeta maior de Moçambique. Em 1991, tornou-se
o primeiro autor africano galardoado com o Prémio Camões, o mais importante prémio
literário da língua portuguesa. Como jornalista, colaborou nos periódicos
moçambicanos O Brado Africano, Notícias, Tribuna, Notícias da Tarde, Voz de
Moçambique, Notícias da Beira, Diário de Moçambique e Voz Africana. Utilizou os
seguintes pseudónimos: Mário Vieira, J.C., J. Cravo, José Cravo, Jesuíno Cravo e
Abílio Cossa. Foi presidente da Associação Africana na década de 1950. Esteve preso
entre 1965 e 1969 por fazer parte de uma célula da 4.ª Região Político-Militar da
Frelimo. Primeiro Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos
Escritores Moçambicanos, entre 1982 e 1987.
PRESENÇA AFRICANA

Alda Lara (1930-1962); Angola.

E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!...

- A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
A do sol bom,
mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...

Sim!, ainda sou a mesma.


- A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11...Rua 11...)
pelos negros meninos
de barriga inchada
e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,


de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...

E eu revendo ainda
e sempre, nela,
aquela
longa historia inconseqüente...

Terra!
Minha, eternamente...
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios baloiçando,
mansamente... mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...

Alda Lara - ALDA LARA (Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque.
Benguela, Angola, 9.6.1930 - Cambambe, Angola, 30.1.1962). Era casada com o
escritor Orlando Albuquerque. Muito nova veio para Lisboa onde concluíu o 7º ano dos
liceus. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, licenciando-se por
esta última. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes
do Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos. Depois da sua
morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia.
Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe postumamente toda a obra e nesse caminho
reuniu e publicou já um volume de poesias e um caderno de contos.
ADEUS À HORA DA LARGADA

António Agostinho Neto (1922-1979); Angola.

Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe


a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico

somos os teus filhos


dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz


os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

VOZ DO SANGUE (AGOSTINHO NETO)

António Agostinho Neto (1922-1979); Angola.

Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue

Ó negro esfarrapado do Harlem


ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South

Ó negro de África

negros de todo o mundo

eu junto ao vosso canto


a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.

Eu vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.

António Agostinho Neto (ANGOLA, Região de Ícolo e Bengo, 17 de Setembro de


1922 — Moscovo ou Moscou, 10 de Setembro de 1979) foi um médico angolano,
formado na Universidade de Lisboa, que em 1975 se tornou o primeiro presidente de
Angola até 1979. Em 1975-1976 foi-lhe atribuído o "Prêmio Lênin da Paz".

Fez parte da geração de estudantes africanos que viria a desempenhar um papel decisivo
na independência dos seus países naquela que ficou designada como a Guerra Colonial
Portuguesa ou Guerra do Ultramar como também é conhecida. Foi preso pela PIDE e
deportado para o Tarrafal, sendo-lhe fixada residência em Portugal, de onde fugiu para
o exílio. Aí assumiu a direcção do Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA), do qual já era presidente honorário desde 1962.
MESTIÇO!

Francisco José de Vasques Tenreiro (1921-1963); São Tomé.

Nasci do negro e do branco


e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande


uma alma feita de adição

Foi isso que um dia


o branco cheio de raiva
cantou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah! Mas eu me danei…


e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!… Mestiço!

Quando amo a branca


sou branco…
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é…

CORAÇÃO EM ÁFRICA

Francisco José de Vasques Tenreiro (1921-1963); São Tomé.

Caminhos trilhados na Europa


de coração em África
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sl sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos de trigo sem bocas
das ruas sem alegrias com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em Á'frica.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não.
Ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho:
Oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) -
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama policroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) -
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillen
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am America
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações nos belos
poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu e no mistério do
Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em
África,
de coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delicias do zénite
reduzindo a pontos as sombras dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação os mosquitos da nocturna
picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que tem a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop nos lábios
enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) olha
um negro (óptimo), olha um mulato (tanto faz)
olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes e areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho a brisa da tarde.
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata perdida na carapinha
alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou as riscas
e o coração entristece a beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África
e chora fino na arritmia de um relójio cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens negros escravos dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos aliseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antipoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da
existência.
Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.
MÃOS

Francisco José de Vasques Tenreiro (1921-1963); São Tomé.

Mãos que moldaram em terracota a beleza e a serenidade do Ifé.


Mãos que na cera polida encontram o orgulho perdido do Benin.
Mãos que do negro madeiro extraíram a chama das estatuetas olhos de vidro
e pintaram na porta das palhotas ritmos sinuosos de vida plena:
plena de sol incendiando em espasmos as estepes do sem-fim
e nas savanas acaricia e dá flores às gramíneas da fome.
Mãos cheias e dadas às labaredas da posse total da Terra,
mãos que a queimam e a rasgam na sede de chuva
para que dela nasça o inhame alargando os quadris das mulheres
adoçando os queixumes dos ventres dilatados das crianças
o inhame e a matabala, a matabala e o inhame.

Mãos negras e musicais (carinhos de mulher parida) tirando da pauta da Terra


o oiro da bananeira e o vermelho sensual do andim.
Mãos estrelas olhos nocturnos e caminhantes no quente deserto.
Mãos correndo com o harmatan nuvens de gafanhotos livres
criando nos rios da Guiné veredas verdes de ansiedades.
Mãos que à beira-do-mar-deserto abriram Kano à atracção dos camelos da aventura
e também Tombuctu e Sokoto, Sokoto e Zária
e outras cidades ainda pasmadas de solenes emires de mil e mais noites!
Mãos, mãos negras que em vós estou pensando.

Mãos Zimbabwe ao largo do Indico das pandas velas


Mãos Mali do sono dos historiadores da civilização
Mãos Songhai episódio bolorento dos Tombos
Mãos Ghana de escravos e oiro só agora falados
Mãos Congo tingindo de sangue as mãos limpas das virgens
Mãos Abissínias levantadas a Deus nos altos planaltos:
Mãos de África, minha bela adormecida, agora acordada pelo relógio das balas!

Mãos, mãos negras que em vós estou sentindo!

Mãos pretas e sábias que nem inventaram a escrita nem a rosa-dos-ventos


mas que da terra, da árvore, da água e da música das nuvens
beberam as palavras dos corás, dos quissanges e das timbilas que o mesmo é
dizer palavras telegrafadas e recebidas de coração em coração.
Mãos que da terra, da árvore, da água e do coração tantã
criastes religião e arte, religião e amor.

Mãos, mãos pretas que em vós estou chorando!

FRANCISCO JOSÉ DE VASQUES TENREIRO

Escritor e professor universitário são–tomense. Em Portugal desde os dois anos de


idade, doutorou–se em ciências geográficas na Faculdade de Letras de Lisboa, de que
veio a ser assistente. Foi, ainda, a partir de 1950, professor no Instituto Superior de
Estudos Ultramarinos, doutorando–se em Ciências Sociais em Inglaterra (1961).
Enquanto estudante, esteve ligado à Casa dos Estudantes do Império, onde decorriam
actividades políticas e culturais, vindo a ser, em 1951, um dos fundadores do Centro de
Estudos Africanos, cuja acção era clandestina.
Colaborou em diversas publicações com textos de natureza literária e científica.
Publicou, em 1950, Acerca da Casa e do Povoamento da Guiné, para além de diversos
outros volumes sobre temas africanos, de que se destaca a monografia, orientada para a
geografia humana, São Tomé (1961). Na literatura, estreou–se com Ilha de Nome Santo
(1942). Em conjunto com Mário de Andrade, publicou, em 1953, o caderno Poesia
Negra de Expressão Portuguesa.
MONANGAMBA

António Jacinto

Naquela roça grande não tem chuva


é o suor do meu rosto que rega as plantações:

Naquela roca grande tem café maduro


e aquele vermelho-cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado


pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!

Perguntem às aves que cantam,


aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo? quem vai à tonga?


Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?
Quem capina e em paga recebe desdém
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinqüenta angolares
"porrada se refilares"?

Quem?

Quem faz o milho crescer


e os laranjais florescer
- Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar


maquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?
Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande - ter dinheiro?
- Quem?

E as aves que cantam,


os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras


Deixem-me beber maruvo, maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras

- "Monangambééé..."
A MINHA DOR

Noémia de Sousa (1926-2003); Moçambique.

Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distância.

E o preto que gritou


é a dor que se não vendeu
nem na hora do sol perdido
nos muros da cadeia.

EM VEZ DE LÁGRIMAS

Noémia de Sousa (1926-2003); Moçambique.

Só um choro em seco
põe no vértice da minha dor
o mais intenso
auge do luto.

Magaíça

Noémia de Sousa (1926-2003); Moçambique.

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda


engoliu o mamparra,
entontecido todo pela algazarra
incompreensível dos brancos da estação
e pelo resfolegar trepidante dos comboios
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
seu coração apertado na angústia do desconhecido,
sua trouxa de farrapos
carregando a ânsia enorme, tecida
de sonhos insatisfeitos do mamparra.

E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.

Ás costas - ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?


trazes as malas cheias do falso brilho
do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
á cata das ilusões perdidas,
da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
lá nas minas do Jone...

A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.

SACRÁRIO

Noémia de Sousa (1926-2003); Moçambique.

Ausência do corpo.
Amor absoluto.
Hosanas de Sol.
De chuva.
De areia.
E andorinhas
resvalando as asas
no consternado ombro cinzento
de uma nuvem.

E uma hérbia mantilha


teu sacrário
velando.

Noémia de Sousa

Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares (Catembe (Moçambique), 1926 —


Cascais, 2003) foi uma escritora e jornalista moçambicana. Noémia estudou no Brasil e
começou a publicar em O Brado Africano.
Entre 1951 e 1964 viveu em Lisboa, onde trabalhou como tradutora, mas, em
consequência da sua posição política de oposição ao Estado Novo teve de exilar-se em
Paris, onde trabalhou no consulado de Marrocos. Começa nesta altura a adoptar o
pseudónimo de Vera Micaia.
A sua obra está dispersa por muitos jornais e revistas. Colaborou em publicações como
Mensagem (CEI), Mensagem (Luanda), Itinerário, Notícias do Bloqueio (Porto, 1959),
O Brado Africano, Moçambique 58; Vértice (Coimbra), Sul (Brasil).
Poeta, jornalista de agências de notícias internacionais, viajou por toda a África durante
as lutas pela independência de vários países.
VELHO COLONO

Rui Knopfli (1932-1997); Moçambique.

Sentado no banco cinzento


entre as alamedas sombreadas do parque.
Ali sentado só, àquela hora da tardinha,
ele e o tempo. O passado certamente,
que o futuro causa arrepios de inquietação.
Pois se tem o ar de ser já tão curto,
o futuro. Sós, ele e o passado,
os dois ali sentados no banco de cimento.

Há pássaros chilreando no arvoredo,


certamente. E, nas sombras mais densas
e frescas, namorados que se beijam
e se acariciam febrilmente. E crianças
rolando na relva e rindo tontamente.

Em redor há todo o mundo e a vida.


Ali está ele, ele e o passado,
sentados os dois no banco de frio cimento.
Ele a sombra e a névoa do olhar.
Ele, a bronquite e o latejar cansado
das artérias. Em volta os beijos húmidos,
as frescas gargalhadas, tintas de Outono
próximo na folhagem e o tempo.

O tempo que cada qual, a seu modo,


vai aproveitando.

ILHA DOURADA

Rui Knopfli (1932-1997); Moçambique.

A fortaleza mergulha no mar


os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio
As gentes calam na
voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da "Amizade"
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento

Rui Knopfli
Poeta moçambicano, Rui Knopfli nasceu em 1932, em Inhambane, Moçambique, e
faleceu em 1997. Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que
não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas, assumindo-se antes
como continuadora da tradição lírica do Ocidente. Camões, Carlos Drummond de
Andrade, Fernando Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a
poética de Knopfli. Isto apesar de, por ter nascido em plena savana de Moçambique,
muita da sua imagética remeter para paragens africanas. A concisão e o cuidado formal
de que se revestem os seus poemas reflectem um sentir contido e desencantado, perante
uma realidade muitas vezes altamente agressiva.
ANTES DE PARTIR

José Carlos Schwarz (1949-1977); Guiné Bissau.

Antes de partir
Encherei os meus olhos, a minha memória
Do verde (verde, verde!) do meu País
Para que quando tomado pela saudade
Verde seja a esperança
Do regresso breve
Antes de partir
Encherei os meus ouvidos, a minha memória
Do palpitar que esmorece, enquanto a noite
Cresce sobre a cidade e no campo
Feito o silêncio dos homens e dos rádis...

CANTA CAMARADA

José Carlos Schwarz (1949-1977); Guiné Bissau.

Canta camarada
Deixa que o teu sonho verdade
Flua límpido nos anseios da tua voz quente
Pois este é o teu dever, o teu direito.
Canta camarada
Que a recordação da tua dor
Seja como a terra revolvida
Em cada época, para a sementeira.
Canta camarada
Apenas alguns nomes, para que seja exaltado o anónimo
Apenas os mortos, porque os vivos
Ainda podem desmerecer da nossa gratidão.
Canta camarada
Pois é a única benesse
Que te reservaste na oferta da tua juventude
Em Holocausto no altar da revolução.

Fonte: Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990.

JOSÉ CARLOS SCHWARZ

Nasceu em Guiné Bissau a 6 de Dezembro de 1949. Estudou em Bissau e Dacar. É


considerado o pioneiro da musica moderna guineense. Preso político, foi deportado para
a Ilha das Galinhas. Após a independência foi diretor do Departamento de Arte e
Cultura. Músico, compositor e intérprete, participou nas antologias de poesia guineense
Mantenhas para quem luta e Momentos primeiros de construção. Morreu a 27 de Maio
de 1977 num acidente de aviação em Cuba.
RAIAR

Waldir Araujo (1971); Guiné Bissau.

Desabrochei nas vésperas do cântico da liberdade


Cresci pueril emaranhado nos ecos de uma epopeia
Acreditando por ser acreditar a grande verdade
Entoei os cânticos de louvor à morte da centopeia

O tempo emprestou-me a tenacidade da dúvida


E do tempo, aliado me fiz e da dúvida a espada
Segui os rastos da vontade de entender tal vida
A realidade vislumbrou-me uma dureza pasmada

Questionei os dogmas para saber mais além


Cruzei saberes e dissabores na alma atormentada
E do além ainda distante, do saber muito aquém...
Exorcizei com versos a tormenta alimentada

No presente, nada mais é do que o não adquirido


Nada mais se disfarça para dúvidas semear
No presente, não mais vago é o caminho escolhido
Ladeando a realidade sim, com o sonho no limiar

DESPERTAR
Waldir Araujo (1971); Guiné Bissau.

Ergui a taça do vinho e num só gole


Traguei a essência das palavras, engoli
Gota-a-gota as frases deslizaram-se adentro
Sereno, repudiei as faces carentes de alento

Ergui a voz e soltei as frases dilacerantes


As palavras que ansiavam, escutaram, inertes.
Os gestos imobilizaram-se, olhares húmidos!
Do verbo, deslizei-me então nos gerúndios:

Querendo, lutando, acreditando, negando


Provoquei, invocando o medo sonegado
Dos murmúrios pedi barulho, agitação
Dos olhares vagos se projectaram acção

Ergui o olhar e vislumbrei um céu nubloso


O prenúncio de uma noite no fundo do poço
Invoquei as divindades num parco discurso
E fez-se luz! Escolhemos outro percurso!

WALDIR ARAUJO

Nasceu em 1971, na Guiné-Bissau. Desde muito cedo que mostra interesse pela
literatura. Em 1985 vence um prêmio literário no Centro Cultural Português de Bissau
que lhe concede a sua primeira viagem a Portugal, onde prosseguiu os estudos.
Freqüenta o curso de Direito em Lisboa, que acaba por abandonar, para abraçar o
Jornalismo. Desde 1996 que é jornalista, exercendo atualmente a profissão na RTP,
Rádio e Televisão de Portugal - Canal África. Tem vários textos, prosa e poesia
publicadas dispersamente em revistas e jornais literários de Portugal e Brasil.
A PROMETIDA

Tony Tcheca

Dóli só
Djena sem ninguém
do romance inocente
a tragédia bacilenta

papá homem grande


se meteu
uma vaca
um saco de farinha
um tambor de cana
umas folhas de tabaco

a permuta
a prometida

três
dias
depois
da lua

com fome de amor


boca acre não come
com sede de ternura
garganta seca rejeita água
as lágrimas engrossam
e rolam
no rosto macilento

Djena dezassete chuvas


Djena uma vida por viver
Djena a prometida
Djena mulher de hoje
tem fome
não come
tem sede
não bebe

corpo de mulher
inerte como o silêncio
firme como a recusa
repousa intacta
num sono inviolável

(IN: "Vozes poéticas da lusofonia",Sintra, 1999)

TONY TCHECA

É natural de Bissau, é poeta e jornalista, um dos nomes de referência da literatura da


Guiné-Bissau… Autor de “Noites de Insónia na Terra Adormecida” em que escreveu
em poesia os sentimentos nos momentos logo após a independência do seu país, as
esperanças de um povo. Isto foi em 1987. Em 2008 publicou “Guiné Sabura que Dói”.
Foi coordenador de várias antologias poéticas.

Você também pode gostar