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Havia somente
as aves de rapina
de garras afiadas
as aves marítimas
de vôo largo
as aves canoras
assobiando inéditas melodias.
E a vegetação
cujas sementes vieram presas
nas asas dos pássaros
ao serem arrastadas para cá
pela fúria dos temporais.
VOCÊ: BRASIL
Jorge Barbosa (1902-1971); Cabo Verde.
Jorge Barbosa escreveu ainda Ambiente (1941), Caderno de um Ilhéu (1955, Prémio
Camilo Pessanha) e, na altura os proibidos, mas editados mais recentemente, Meio
Milénio, Júbilo e Panfletário.
CARTA DE UM CONTRATADO
António Jacinto (1924-1991); Angola.
passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-que-tem te-quem-tem
o comboio malandro
passa
tem outro
Comboio malandro
O fogo que sai no corpo dele
Vai no capim e queima
Vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
Já queimou o meu milho
Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
E os brancos chamar os pretos pra empurrar
Eu vou
Mas não empurro
- Nem com chicote -
Finjo só que faço forca
Aka!
Comboio malandro
Você vai ver só o castigo
Vai dormir mesmo no meio do caminho.
Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.
GRITO NEGRO
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei o teu carvão, patrão.
http://www.youtube.com/watch?v=p6Ug9c2riCU
ÁFRICA
E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.
AFORISMO
José Craveirinha (1922-2003); Moçambique.
Havia uma formiga
compartilhando comigo o isolamento
e comendo juntos.
Estávamos iguais
com duas diferenças:
E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!...
- A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
A do sol bom,
mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
E eu revendo ainda
e sempre, nela,
aquela
longa historia inconseqüente...
Terra!
Minha, eternamente...
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios baloiçando,
mansamente... mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...
Alda Lara - ALDA LARA (Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque.
Benguela, Angola, 9.6.1930 - Cambambe, Angola, 30.1.1962). Era casada com o
escritor Orlando Albuquerque. Muito nova veio para Lisboa onde concluíu o 7º ano dos
liceus. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, licenciando-se por
esta última. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes
do Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos. Depois da sua
morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia.
Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe postumamente toda a obra e nesse caminho
reuniu e publicou já um volume de poesias e um caderno de contos.
ADEUS À HORA DA LARGADA
Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida
matou em mim essa mística esperança
Eu já não espero
sou aquele por quem se espera
Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura
Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melancólicos do blue
Ó negro de África
Eu vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo
Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.
Fez parte da geração de estudantes africanos que viria a desempenhar um papel decisivo
na independência dos seus países naquela que ficou designada como a Guerra Colonial
Portuguesa ou Guerra do Ultramar como também é conhecida. Foi preso pela PIDE e
deportado para o Tarrafal, sendo-lhe fixada residência em Portugal, de onde fugiu para
o exílio. Aí assumiu a direcção do Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA), do qual já era presidente honorário desde 1962.
MESTIÇO!
Mestiço!
CORAÇÃO EM ÁFRICA
António Jacinto
Quem?
- "Monangambééé..."
A MINHA DOR
Dói
a mesmíssima angústia
nas almas dos nossos corpos
perto e à distância.
EM VEZ DE LÁGRIMAS
Só um choro em seco
põe no vértice da minha dor
o mais intenso
auge do luto.
Magaíça
E um dia,
o comboio voltou, arfando, arfando...
oh nhanisse, voltou.
e com ele, magaíça,
de sobretudo, cachecol e meia listrada
e um ser deslocado
embrulhado em ridículo.
A mocidade e a saúde,
as ilusões perdidas
que brilharão como astros no decote de qualquer lady
nas noites deslumbrantes de qualquer City.
SACRÁRIO
Ausência do corpo.
Amor absoluto.
Hosanas de Sol.
De chuva.
De areia.
E andorinhas
resvalando as asas
no consternado ombro cinzento
de uma nuvem.
Noémia de Sousa
ILHA DOURADA
Rui Knopfli
Poeta moçambicano, Rui Knopfli nasceu em 1932, em Inhambane, Moçambique, e
faleceu em 1997. Desde finais dos anos 50, desenvolveu uma sólida obra poética que
não é facilmente incluída nas correntes literárias moçambicanas, assumindo-se antes
como continuadora da tradição lírica do Ocidente. Camões, Carlos Drummond de
Andrade, Fernando Pessoa ou T. S. Eliot poderiam servir de referência para analisar a
poética de Knopfli. Isto apesar de, por ter nascido em plena savana de Moçambique,
muita da sua imagética remeter para paragens africanas. A concisão e o cuidado formal
de que se revestem os seus poemas reflectem um sentir contido e desencantado, perante
uma realidade muitas vezes altamente agressiva.
ANTES DE PARTIR
Antes de partir
Encherei os meus olhos, a minha memória
Do verde (verde, verde!) do meu País
Para que quando tomado pela saudade
Verde seja a esperança
Do regresso breve
Antes de partir
Encherei os meus ouvidos, a minha memória
Do palpitar que esmorece, enquanto a noite
Cresce sobre a cidade e no campo
Feito o silêncio dos homens e dos rádis...
CANTA CAMARADA
Canta camarada
Deixa que o teu sonho verdade
Flua límpido nos anseios da tua voz quente
Pois este é o teu dever, o teu direito.
Canta camarada
Que a recordação da tua dor
Seja como a terra revolvida
Em cada época, para a sementeira.
Canta camarada
Apenas alguns nomes, para que seja exaltado o anónimo
Apenas os mortos, porque os vivos
Ainda podem desmerecer da nossa gratidão.
Canta camarada
Pois é a única benesse
Que te reservaste na oferta da tua juventude
Em Holocausto no altar da revolução.
DESPERTAR
Waldir Araujo (1971); Guiné Bissau.
WALDIR ARAUJO
Nasceu em 1971, na Guiné-Bissau. Desde muito cedo que mostra interesse pela
literatura. Em 1985 vence um prêmio literário no Centro Cultural Português de Bissau
que lhe concede a sua primeira viagem a Portugal, onde prosseguiu os estudos.
Freqüenta o curso de Direito em Lisboa, que acaba por abandonar, para abraçar o
Jornalismo. Desde 1996 que é jornalista, exercendo atualmente a profissão na RTP,
Rádio e Televisão de Portugal - Canal África. Tem vários textos, prosa e poesia
publicadas dispersamente em revistas e jornais literários de Portugal e Brasil.
A PROMETIDA
Tony Tcheca
Dóli só
Djena sem ninguém
do romance inocente
a tragédia bacilenta
a permuta
a prometida
três
dias
depois
da lua
corpo de mulher
inerte como o silêncio
firme como a recusa
repousa intacta
num sono inviolável
TONY TCHECA