FOLIAS, FOLIOES E SAIAS:
A INSERCAO DA MULHER NO FOLCLORE DE REIS
NO MUNICIPIO DE BEBEDOURO
Guilherme Falcon PUPO”
RESUMO: Este trabalho inicia a andlise da dindmica cultural existente no
fato singular da inser¢do da mulher no folclore de reis, insergdo esta
especifica da cidade de Bebedouro, e algumas de suas implicagdes
referentes 4 propria dindmica e ao papel da mulher enquanto agente de
permanéneia cultural
UNITERMOS: Cultura, folclore, cidadania, mulher, folia de reis
Vem descendo a rua do Comércio, da pequena
Bebedouro (municipio do interior de Sao Paulo, na regiéo
nordeste do Estado), por época dos festejos natalinos, a
companhia de santos Reis. Musicas de louvagao, marchinhas,
batidas dos bumbos, repiques e triangulos, junto ao toque
difuso dos pifes (pequenas flautas feitas artesanalmente de
bambu ou cano, coloridas e enfeitadas de fitas) animam os
palhacos que vio dangando a marmelada (danga de passos
aleatorios e rapidos, onde os mascarados demonstram toda sua
Graduando em Histéria. Orientadora: Dulce Maria Pamplona Guimaraes,
ENSAIOS DE HISTORIA, Franca, v.2, n.2, p.63-70, 1997 63habilidade). Tipico evento de muitas cidades do interior
paulista nos anos 40, em que 0 povo se retane nas ruas abrindo
caminho para a companhia que passa. A bandeira de reis
desce dangando na m&o de um folido, enfeitada de fotos,
flores, santinhos ¢ todo tipo de prendas que os devotos ¢ og
pagadores de alguma graga recebida conseguiram dependurar
nela, Tudo muito comum, porém, quem segura a bandeira de
santos reis esta de saias, E Maria Baiana. E a companhia que
passa leva esse mesmo nome, o de sua organizadora:
‘Companhia de Santos Reis da Maria Baiana.
Maria Baiana, Clementina, Maria Pires, a finada
Bonifacia, nomes comuns e populares do folclore
bebedourense, o da folia de reis, constituem o aspecto mais
singular deste folguedo naquela cidade; a participagdo da
mulher na dinamica cultural do folclore
Apesar de sua singularidade, 0 nosso tema pode para
alguns nao causar nenhum estranhamento, logo que a
participagéo da mulher em muitas manifestagdes do folclore
nacional ndo se demonstra assim tdo rara, encontrando-se
mesmo na folia de reis lugar como cozinheira, costureira das
fardas dos folides, devota, rezadeira etc. Porém, 0 que nos
chamou a atengaio nestas folias de Bebedouro foi, antes de
mais nada, a presenga da mulher também nos cargos primeira
importincia para a festa, organizando, _patrocinando,
carregando a bandeira ou comandando, sendo mesmo muitas
vezes a principal responsavel pelo giro das companhias ¢
realizagao da folia. O segundo fato é que essas mulheres esto
1 sozinhas, néo estio acompanhando seus maridos ou
companheiros.
A presenga destas mulheres na folia de Bebedouro ¢
marcante na historia da cidade e, apesar de raramente serem
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citadas nas monografias da histéria da cidade, ocupam lugar
na boca € no imagindrio do povo. Sua marca aparece desde 0
surgimento da primeira companhia de reis na cidade, a
companhia da, ja falecida, Maria Baiana, que, apesar de nfo
mais existir, deixou muitos folides que montaram suas
proprias companhias, como é 0 caso da companhia da
Clementina, onde sua festeira, dona Cleméncia Perrone
(conhecida por Clementina), apesar da idade avangada,
representa ainda hoje, todos os anos, a cidade no festival de
folclore de Olimpia (realizado anualmente na segunda semana
de agosto, tendo no ano de 1998 sua 33* edigao).
A reflexdo sobre nosso objeto, o entendimento de sua
origem, conseqiiéncias, assim como sua importéncia,
principiam-se com 0 desvendamento de sua dinamica cultural.
Pautada na persisténcia e na resisténcia, o fato, a folia de reis,
inscreve € constréi em seu meio a propria continuidade,
instaurando dentro dele 0 pedago onde convivem
dinamicamente fato, meio, individuos, coletividade em
relagdes miiltiplas onde nenhuma das partes é dispensdvel.
Desta forma a continuidade, sempre necesséria, se da a partir
dos meios, elementos e relagdes existentes e disponiveis,
rectiando-se, ressignificando-se e reinscrevendo-se na arena
das relagdes sociais e culturais.
Estas mulheres da comunidade continuaram suas
devordes, sua £8 e as devogdes dos maridos da forma que
sabiam fazer, da forma que aprenderam e nesta forma de rezar
garantiram a continuidade deste folguedo. Com Maria Baiana,
migrante da Bahia, a folia de reis, algo trazido de seus
familiares, apresentou-se como uma forma de continuar e
cultivar um costume das suas origens, sendo um modo de
guardar, construir e inserir sua identidade. Era ela o elemento
ENSAIOS DE HISTORIA, Franca, v2, n2, p.63-70, 1997 65disponivel e conhecedor da tradigio, tornando-se por isso
elemento chave desta continuidade, elemento de persisténcia,
“Folias” posteriores, “descendentes”, afilhadas da Companhia
da Maria Baiana, como a Companhia de Reis da Clementina,
nao surgiram desta continuidade migrante, que tenta transpor
um fazer da terra natal, logo que sua persisténcia era a da
cultura jé instalada, existente ¢ transformada. Porém, os
processos que a descrevem, ao garantir sua presenga, sdo
muito semelhantes: trata-se da apropriagéo de elementos
disponiveis. Clementina (Cleméncia Perrone) assumiu a
companhia de seu marido apés sua morte, continuando ¢
garantindo sua originalidade e fidelidade, “ironicamente”
ressignificando-a, transformando-a para que nao mudasse.
O que mais nos chama a atengo neste processo € que,
em nenhum momento ou dado de nossa pesquisa em
Bebedouro (relatos, entrevistas, pesquisas em arquivo
jornalistico), foi revelado qualquer trago de resisténcia moral
‘ou machista contra as “mulheres folionas”, no que se refere a
legalidade e legitimidade cultural ¢ simbélica de suas fungées,
tanto como organizadoras ou articuladoras das relagdes de
propiciagio e aproximago com o sagrado (nfo sé na
qualidade de rezadeiras das preces ¢ louvagdes, mas como
contentoras de toda a aura magica e mistica tipicas da
religiosidade popular). Sua presenga sim, causava € causa
admiragdo ¢ respeito entre os devotos e folides (notério nas
entrevistas quando se perguntava aos folides sobre a origem
da folia de reis em Bebedouro, ou da importéncia da
companhia da Clementina na historia do folguedo na cidade; ¢
ainda no fato de muitos folides se declararem, orgulhosos,
afilhados da Maria Baiana ou da Clementina).
Isto nos é explicado por dois motivos: o primeiro se
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encontra no préprio processo da continuidade, em que as
mulheres eram aquele elemento disponivel, “elas estavam 14,
elas aprenderam, elas continuaram”. E de uma forma onde a
necessidade de continuidade e a persisténcia foram maiores
que a moral. Na escolha dos elementos para constituir sua
identidade, a do devoto e do foliao, o fazer da festa, da folia,
do folguedo, por quem quer que fosse, teve maior peso que os
“tabus” morais da sociedade. Pensando a tradi¢ao, segundo
Vagner Gongalves da Silva (1996), como algo em
transformagao, podemos entender que a constituigdo de uma
tradigao ¢ da propria identidade nao se dao s6 pela lembranca
e acumulagao de caracteres materiais, sociais e culturais.
Tradigéo também € abandonar, ignorar, esquecer. Ficou a
festa e na festa se esqueceram alguns vicios sociais.
O segundo motivo encontra-se na histéria das folias
de reis de Bebedouro, quando descobrimos, como ja foi
falado, que o surgimento das folias na cidade deu-se a partir
de uma mulher, Maria Baiana, criando de certa forma um
antecedente cultural,
‘A forma de participagao destas mulheres no folclore
demostra, antes de uma conquista de espaco e emancipagio, a
pluralidade dinamica de um determinado fazer cultural, a
construgdo e persisténcia da identidade, que no seu realizar-se
atravessa morais ¢ limites, nao destruindo-os mas adequando-
se entre eles ou dando-lhes menor valor na equagao. Desta
forma ao garantir sua dinamica, apesar de nao trazer em si
uma historia de luta feminista, ndo deixa de exprimir a
importéncia da presenga da mulher na continuidade das
tradigdes, da identidade ¢ cultura de determinado grupo e
local.
ENSAIOS DE HISTORIA, Franca, ¥2,n2, 63-70, 1997 67As “folionas”, os “folides de saias” estio acabando,
desaparecendo na cidade de Bebedouro, restando atualmente
apenas a Companhia de Santos Reis da Clementina junto aos
poucos relatos e histérias que povoam o imagindrio da gente
da cidade. Contudo nunca se poderé esquecer que, através de
si, estas mulheres garantiram nao s6 a continuidade de um
fazer cultural, mas afirmaram o papel da mulher como
elemento presente, atuante ¢ articulador do meio, da cultura e
da sociedade, sem diferenga de valor. Na continuidade da
festa de reis, de suas cores, sons e bandeiras, nfo sé se
rescreveu um costume, uma tradig&o, mas se construiu o
respeito e os esbogos de uma cidadania.
PUPO, Guilherme Falcon. Frolics, Carousers and Skirts: Woman
Introduction in Kings of Folklore in Municipal District of Bebedouro
Ensaios de Historia, Franca, v.2, n.2, p.63-70, 1997
ABSTRACT: This work introduce an analyses of cultural dynamics that
is found in the singular fact as introduction of women in “kings”
folklore, introduced in Bebedouro town and some of its results in woman
role and her own dynamics as acting of cultural establishment.
KEYWORDS: Culture, folklore, citizenship, woman, “‘folia de reis”
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Fontes
Arquivo jomalistico do jornal “A Gazeta de Bebedouro”.
e Entrevistas coletadas junto aos folides da cidade.
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