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O/l/IrIIl(r jt/lMilll/lrr'r ourien tI/I Centr« National du Livre

Millistere Français bargé de Ia eulture-

Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro


- Ministério Francês da Cultura _

Título original: Esthétique du montage


Tradução: Cada Bogalheiro Gamboa MI-MÉ-SIS
Revisão: Gabinete Editorial Texro & Grafia ARTES E ESPECTÁCULO --~----------------------------------------~
Grafismo: Cristina Leal
Paginação: Vitor Pedro
A organização contemporânea da sociedade coabita, de forma nem sempre
© Armand Colin, 2007 harmoniosa, com a fruição do espectáculo nas suas mais variadas expressões.
Uma colecção de livros sobre as artes do espectáculo que delas preconizem
Todos os direitos desta edição reservados para
Edições Texto & Grafia, Lda. lima vivência madura justifica-se pela necessidade de reordenar o nosso espaço de
Avenida 6scar Monteiro Torres, n.> 55, 2.0 Esq. participação e adesão críticas; na realidade, o fenómeno do espectáculo encerra
1000-217 Lisboa dimensões recônditas, a que razão e emoção devem ter igual acesso.
Telefone: 21 797 70 66
Em "Mi.mé.sis" terão presença obras de natureza estética, técnica, informativa,
Fax: 21 797 81 03
ou simplesmente lúdica; e, como não poderia deixar de ser, o cinema, o teatro, a
E-mail: texto-grafia@texto-grafia.pt
www.texto-grafia.pt dança, a música, entre outros, serão os protagonistas desta colecção.

Impressão e acabamento:
Papelmunde, SMG, Lda.
1.a edição, Maio de 2010

ISBN: 978-989-8285-16-4
Depósito Legal n.O311164/10

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida
no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,
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será passível de procedimento judicial.
Preâmbulo

A montagem cinematográfica não é apenas uma operação técnica indispensável


~·itura dos filmes. É também um princípio de criação, uma maneira de pensar,
uma forma de conceber os filmes associando imagens. É a essa operação, essa
rosa mentale, que este livro é consagrado. A sua ambição é dupla. Trata-se, por um
l.ido, de realçar a dimensão fragmentária da estética cinematográfica, dimensão
que ela partilha no século XX com muitas outras artes, e que, precisamente, as
ohriga constantemente a funcionar como montagem; por outro lado, trata-se de
tentar uma síntese das diferentes formas dessa montagem tal como foram prati-
( .idas pelos cineastas, em perspectivas, projectos, contextos tão diferentes que será
1111.ressante prestar-lhes atenção.
() primeiro ponto tem a ver com a história das ideias e das formas: acontece
(I"C a maior parte dos domínios de criação artística valorizaram, desde há pouco
IIlais de um século, a noção de fragmento, desfazendo as unidades admitidas
p,lra tentar construir outras, ou para pôr em evidência relações heterogéneas. As
(olagens de Braque ou Picasso, a poesia de Mallarmé, a escultura fragmentada
de Rodin, são outras tantas formas de montagem, se quisermos considerar este
rcrrno como uma noção geral que consiste em associar elementos segundo uma
Ic"gi a inédita e «exterior». Estética dos fragmentos, esta forma de criação valoriza
,I fragmentação mais do que a unidade a priori. Esta (uma narrativa, uma cena,
lima forma musical), que constituía a própria razão da obra, não é mais do que
11m horizonte hipotético dela. Se a mudança de ponto de vista é flagrante no que
1 -spcita à pintura ou à música, artes já constituídas, ele mostra-se consubstancial ao
in 'ma (como à banda desenhada, que lhe é contemporânea), onde esta fragmen-
t.iça em planos e sequências é constitutiva desde o início da realização dos filmes.
primeiro objectivo deste livro é portanto situar o cinema numa perspectiva
('.\1 'ti a geral, e relacionar em particular a montagem com os sistemas contempo-
I. IlCO de fragmentação que marcam a nossa cultura e a nossa visão do mundo.
Por outro lado, tentamos também relacionar as escolhas mais precisas que a
li blória d inerna ~ r e neste d mínio. Ao balizar as grandes etapas da história
d.1 Illolllag '1)1 (qu 'se ord .narn muitas veze numa ordem não cronológica), parece
IIIH'I '1I~,ll1l'( OIlIP,ll.ll t' '~P' j(ll.ll' as díf r nt S f rmas m que os cineastas orde-
11.11.1111()\ (1,11\11\('lIlm d( (r1II1('~,.1\ cscolh.rs que pud -r.un faz 'r no sentido de os

7
OpOI', ti ' os a I't i .ula 1', ou 111 'SIl10 de os as o iar aleatori 'N '
" narn 111(', 1'\1,1 pl'I'Sp' uva
mais «panorâm] a», optámos por trabalhar com exemplos P" I " '. cl cl
t d h' óri d . sos, I li! a os e
~ a a ist na o crnema, e até visitar mais especificamente a obra de três grandes
C1l1eastaspara quem a m t ' . I
P' I dã . on agem e parucu armente importante: Welles, Resnais e
INTRODUÇÃO
,Ia.at ao-;os aSSIm ~ ~casião de descobrir as grandes escolhas, os grandes prin-
cipros que azem pa~t1~lpar a montagem na escrita cinematográfica.
for Deste modo desejarfarnos dar ao leitor uma abordagem didáctica das diferentes A questão da planificação
. mas d~ montagem, e exemplos que as ilustram, tratando-as de um ponto de
VIsta estntarnenre estético, mas constantemente em relação com um h .
d . .fi - . orizonte
e slgnl . caçoes mais a~plo. Para permitir estabelecer a ligação entre esta dupla
per~p~ct1va. e o conheClmento mais empírico que cada um pode ter do cinema
deCl~lmos Juntar um capítulo consagrado à evolução técnica da montagem ' Se existe uma componente do cinema que ao mesmo tempo pode explicar a
part1c~lar aos seus últimos desenvolvimentos, assim como um glossário desti~a~: sua natureza artificial e as suas capacidades de evidência, é de facto a montagem.
a precisar os termos mais específicos deste domínio. I':ssa forma de colar uns aos outros pedaços de película, de aproximar espaços
11 .rcrogéneos, que hoje nos parece tão natural, que não coloca aos nossos olhares
Os meus mais profundos agradecimentos a François 7homas que me ,I', \'j nossa consciência qualquer obstáculo, é com efeito, se pensarmos nisso, um
. . , Ojereceu as
~:;~ qualtdades de leitor com a sua ha.bitual e calorosa acuidade, assim como a Elisa- "IOdo de representação tão complexo quanto inusitado. Mais do que à primeira
Gasquet, montadora, que me deixou partilhar a sua experiência e o seu lirismo. vista parece, a montagem teve de se impor pouco a pouco, forçar os nossos hábitos
de espectadores, recorrer a convenções cada vez mais elaboradas. Basta constatar a
f .rci Iidade com que os telespectadores aceitam hoje uma louca sucessão de imagens,
d ' sobreposições e um ritmo de encadeados inimagináveis ainda há trinta anos,
h.rsta ver a evolução dos nossos olhares face a essas formas de montagem para nos
.tpcrcebermos a que ponto as suas formas e as suas técnicas estão ligadas a um
I ontexto cultural, a suportes particulares, a vontades de representação do mundo
1 uja diversidade e eficácia ultrapassam largamente a nossa consciência.
Muitas vezes se disse que o século XX é o século da imagem, mas eu creio
que seria mais justo dizer que é o século das associações de imagens. A banda
d .senhada, o cinema e a televisão impuseram um olhar fragmentado sobre o
mundo, uma representação que apela às rupturas tanto quanto à continuidade,
(' às associações tanto quanto à unidade. É desta cultura contemporânea, desta
posição eminentemente moderna, que vem a montagem - e através dela, o cinema.

A operação técnica
Mas é ainda preciso pormo-nos de acordo sobre o significado do termo. E, para
.rl .m disso, sobre a operação conceptual que ele abarca. Em inglês, por exemplo,
( lia ma-se cutting à etapa material que consiste em cortar, e depois colar os pedaços
IIr p licula (ou, mais recentemente, em manipular os cursores dos computadores para
1I10l1larvirtualmente, escolhendo os pontos de corte), e editing à concepção geral
do alinham nt ,à ord 'na âo narrativa, à escolha da forma global da montagem.
mllill/( I' 'aliz;) a (lI -raçâo l ni a: a sua importância está longe de ser negli-
I\l'nti:\vd. ) I'ÍI I\lO 'X.1l10 do (rim' no urso dos planos, a sua fluidez e o eu dina-
1l1Í~1II0illll'IIIO IIIIIVI 1111111 p.III(· d.l~ t'Sl'()Ih.,,~ do moru.idor: 11mplano lon '0, uma
a '~;(O visla '111inseri, 'I ,No iru 'I'iol' d 'UIlI ~bl '111.1
\ ~I('I11 o I OIlV'J1 ionado (quer ..scolh.rs 1(111\('11111111I 111111111IllIm 11111h ,10 .x '1IIplo ('111(J,;~I'/lrl'\, ti' I{,IY"IO"II
se trate de ornar uma história, de descrever um plOll'sm, d ' dar a contemplar), 'p::trdOI1(I')H/) 1111111111 \ do umcnuirio a uma séric d , '11lr,vjSI.I~I'IIII'
existe um artesanato da montagem que está ligado à f:l .uld.id . dc ortar na altura I a iern 'S ' 111(-(\1O" ItllIl,ld,l~ 11\1111
S .rvi o de urgên ias psiquiát ri as, N 'l1h\1I1I
própria, de manipular os raccords, de encontrar o gesto, o olhar, o enquadramento elemento exi 'l'iOl de pOIlIIl,I~,10 mn r a a passagem de u ma scquên ia a out rn (11'111
que permitem a montagem mais adequada, À força de repetidos visionamentos na voz-off nem ortina, n .m int .rtítulo. .), mas na maior parte do tempo a " m,II,1
mesa de montagem ou no ecrâ de vídeo, à força de passar e repassar cada plano filma até que um dos interlocutores saia da sala e a porta se feche, Este cI 'n1t:IIIO,
escolhido para encontrar a articulação apropriada, o montador efectua esta operação anódino em si, mas que a montagem reitera de sequência em sequência, rislaliza
tão manual que consistia durante muito tempo em cortar e colar. pouco a pouco na percepção do espectador uma ideia de enclausuram ruo que
está, evidentemente, ligada ao tema escolhido por Depardon, Trata-se de algun,~
«Naépoca, conta Robert Parrish que foi um montador muito solicitado em Hollywood nos segundos dum plano, conservados na montagem por princípio (depois de ( '1'('111
anos 1940 e 1950antes de ele próprio se ter tornado realizador, colávamos os pedaços de sido filmados, evidentemente, também de forma intencional), que resultam de
película com uma cola para filme à base de acetona, e não com fita adesiva, como agora,
uma opção de corte,
Utilizávamos uma coladeira Bell & Howell, que accionávamos manualmente e com o pé,
Colocávamos um pedaço de positivo do lado da emulsão. A seguir raspávamos a emulsão
Encontramos o mesmo princípio de escolha, no momento da sucessão, da
até chegar ao suporte de celulóide, aplicávamos um pouco de cola com um pequeno articulação, quando o objectivo central e o fio do discurso já foram fixados, nUIlI
pincel fino, e por fim pressionávamos sobre o pedaço de película com cola um segundo outro documentário, Hôtel Terminus, de Marcel Ophuls (1977):
pedaço de película, celulóide contra celulóide. Os dois pedaços eram então mantidos
firmemente entre duas placas de metal quente durante alguns segundos, após o que «Hôtel Terminus incluía uma tal abundância de mensagens, enunciadas não por actor ,
se enrolava numa bobine de metal a película assim montada. Cada raccord exigia cerca mas por personagens que desempenhavam o seu próprio papel e falavam da sua vld ,
de quinze segundos, e cada operação suprimia uma imagem, ou seja duas perfurações que era necessário tanto quanto possível concretizar as narrativas. Lucie Aubrac expll ,I
de cada lado da colagem.» que a difusão da mensagem da BBCdependia das condições atmosféricas, que determl
navam a descolagem dos aviões britânicos assim anunciados pela voz das ondas. V m
Robert Parrish, foi grandi à Hol/ywood, Paris, Stock, 1980.
então imagens de arquivo desses aviões, e a narrativa passa de um aspecto da gu rrt
para outro, da resistência francesa ao combate da aviação britânica. [...] Um pequ n
avião voa no céu ao amanhecer. A silhueta de um soldado recorta-se em contraluz. -I
Apesar de ser a época entre as duas guerras aquela que Parrish descreve, as
vigia o voo e olha para o relógio. Lucie Aubrac, entrevistada por Marcel Ophuls, conti-
coisas pouco evoluíram até à montagem vídeo, que frequentemente não é mais nua a falar sobre essasimagens. [... ] Regressamos ao apartamento dos Aubrac para v r
do que a simulação exacta das práticas concretas de cutting. Lucie sorridente terminar a sua história, e regressamos aos aviões. Desta vez, ouvlm
Num filme de ficção de uma trama narrativa densa, a intervenção do cutter, roncar um motor. Em grande plano uma hélice gira. Da carlinga o piloto inglês lanç um
que poderíamos chamar o artesão montador, situa-se na busca da fluidez, das olhar na nossa direcção, e o avião eleva-se no céu. O som prossegue sobre uma lon a
panorâmica filmada por Ophuls. O plano, muito geral, é filmado a partir de um d
melhores articulações possíveis, mais do que na arquitectura global da narrativa.
colinas de Lyon, e mostra a cidade que se estende mais abaixo, à volta do rio. Temo fi
Mas se esta intervenção está limitada aos raccords, não deixa de ter consequências impressão que é do ponto de vista do avião que a descobrimos. Esta sensação r sult
na impressão estética que o filme deixa no espectador. Ela influencia a dramaturgia, principalmente, tanto da sobreposição sonora, como do facto de o avião ingl 5 r
as próprias formas da narrativa. Veremos mais adiante, por exemplo, em que é que acompanhado numa panorâmica que vai na mesma direcção e à mesma velocidad d
plano sobre Lyon. A passagem do preto-e-branco à cor não impede esta ligação dos d I
os raccords são parte integrante da narração. Podemos, por agora, contentar-nos
planos; é ainda mais uma razão para o nosso deslumbramento. O zumbido do motor d
em tomar como exemplo o cinema documental, cujo objecto se deve, mais do que avião morre suavemente, e uma outra voz toma o seu lugar: a de Daniel Cordier, ntl
tudo o resto, impor-se ao cineasta. secretário de Jean Moulin, que conta como, vindo de Londres, saltou de pára-qu d
sobre Lyon. Podemos então passar a um outro apartamento parisiense, à entrevi t d
Daniel Cordier. Foram as imagens de arquivo que nos conduziram de uma sequ n I •

o exemplo documental outra, dos Aubrac a Cordier.»

Albert Jurgenson, montador de H6tel Termlnu •


A operação de raccord, com efeito, é tanto mais importante quanto o filme é em Pratique du montaqe, Paris, F mls, 1 O.
composto por material previamente pouco ordenado, mas ainda assim incontornável,
que caracteriza os «fragmentos de realidade» de que se alimentam os documentários. No rx '1IIplo d, Ilpllltl "li corno no de Depardon, ta solhas d 'n10I1taA"11I
p so bje tivo das s qll ên ias rodadas impõe-se com mais ou-menos fr quên- não aft, 1.1111.11111111111111, d" (dnw, sâ . irnplcs ligaç) .s, III:ISqUl' 111, "ollft'n'llI
I

'S 1'50 d -u-rminadns no morn J1t da montagem, e comi i((1I'111


ia; j, as nrt i '1I1:1~'O a sua (l'X(1I1I. I 1111111 I" I 1111111,1
tl'l'Ia medida a SI!.IIllgir,l,

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() ('di/fi porqu' é lIOIlIII"I',' 11111 1111d, 11.11I, 111,1\LtI11héll\ , (' plllll Ip..lIII(,III\', (101«111'
istnnura do lilm', em rei á l1lo ru '\1111'lHO, c oru () projc t do realizador, com dií] il :11r ihu11I ','11 1'"11 tI"II.lI.l1 ,I \1111int 'IV .ni '111'1I1.lbdo que ,I 011110. ~Olll
as rea ções de uns e de outros no vi ionam 'I1W d,l~ 1'1I he . Trata-se da construção feito, a ·s olh,1 d,1 I '11111111 I dll 1.l1I1l',num tal i t J11:.l, faz tanto 11) 'Ii(; di\)
global do filme, e já não do êxito das ua arri ula . Ma o próprio princípio do argum nLO,d.1 pl.\ldll ,I~,I()I ~ ni a, da rodagem, orno da pr pria rnorua ' '111,
deste editor, de um montador encarregado da estrutura narrativa ou da lógica do ada etapa, orno W ,11'~ d. a ntender na citação precedente, p d traz 'r .1 ~1I,1
filme, coloca um outro problema: o da cronologia das decisões. De facto, é difícil quota-parte de modif a õe . E cada colaborador pode intervir em fun I· 011 â

situar depois da rodagem a escolha de uma estrutura para o filme. ,. Salvo raras tingências diversas. Na fase do argumento em particular, como na da monta' '111
excepçôes I, é a partir da escrita do argumento (para um filme de ficção tal como propriamente dita podem ser feitas muitas escolhas essenciais, respond ndo ~ .,
para um documentário) que a estrutura global se define: a ordem das acçôes, a completando-se ou neutralizando-se, consoante os casos. É sabido que projc tos
aparição das personagens, a distribuição das informações. Essa escolha ao nível filmados a partir de um determinado argumento foram totalmente modifi ado na
do argumento, que dará lugar à forma como são filmadas as cenas (os diálogos, a montagem. Os nomes de Erich von Stroheim e de Orson Welles estão asso iad s :
evolução dos cenários, a lista do guarda-roupa são função de uma lógica de suces- uma quantidade impressionante de filmes «revistos e corrigidos» pelos seus produ
são pr~-estabelecida), é seguida apenas pela operação da montagem propriamente tores após a rodagem, à revelia dos seus realizadores. Ao contrário, um John F rd
dita. E pelo menos a ordem cronológica mais frequente, e aquela que cor responde, ou um Fritz Lang gabavam-se de ter rodado certas sequências, ou alguns film 'S
historicamente, às práticas mais eficazes num sistema de estúdios. na sua totalidade, de modo a que nenhuma alteração estrutural fosse pos ível na
Pode-se também, obviamente, brincar com este modelo. Parrish - ainda ele _ montagem (ou seja, neste caso, fora do seu controlo). A propósito de John F r I,
conta esta piada de um antigo montador: Robert Parrish conta o seguinte:

«- O nome do argumentista, descubro-o no dia em que o vejo estampado no genérico ... «Na época em que o conheci, ele era de uma segurança prodigiosa e rarament s
- Mas, então e o argumento? Insisti eu. Você não lê os argumentos? enganava. Para A Grande Esperança [1939] encomendou uma metragem de película qu
- Claro que sim, então! Mas não antes de ter cortado o negativo. Leio-os simplesmente se revelou assombrosamente exacta. Ele tinha aliás o hábito de dizer aos montador
para ver se o argumento e o filme têm alguma coisa a ver um com o outro. Antes, come- depois de ter terminado a rodagem de alguns dos seusfilmes: «Sobretudo não trabalh m,
çava por ler o argumento, mas isso baralhava-me as ideias.» ainda me estragam a obral»

R. Parrish, op. cito Em Amis amérkains. Entretiens avec les grands auteurs d'Hol/ywood,
por Bertrand Tavernier, Institut l.umiêre/Actes-Sud, 199 ,
Da mesma maneira, Welles, que sempre conferiu à montagem o primeiro lugar
em termos de criação cinematográfica, explica quanto o domínio desta etapa é Esta sobreposição de função, ou melhor este vaivém entre preparação e finaliza âo
essencial, mesmo se ela ocorre no final da produção, e sobretudo por isso:
que se respondem e se completam, mostra bem a natureza frágil da operação d .
montagem, e mais ainda da noção que abarca. Será ela verdadeiramente espe ífi a,
«Não posso admitir que a montagem não seja o essencial para o realizador, o único
momento em que ele controla completamente a forma do seu filme. Quando estou a uma vez que a sua actividade pode confundir-se com outra? Será verdadeiram ru '
filmar, o sol determina qualquer coisa contra a qual não posso lutar, o actor faz intervir criativa, uma vez que a sua margem de manobra pode ser seriamente restringida ,
alguma coisa à qual tenho de me adaptar, e a história também; não faço mais do que partida? Para responder a essas questões, e tentar afastar a ambiguídade respeitam'
controlar o que posso. O único lugar em que exerço um controlo absoluto é a sala de à verdadeira eficiência da montagem, é preciso passar por uma outra noçã ,a d '
montagem: consequentemente, é aí que o realizador é, potencialmente, um verdadeiro
planificação, que clarificará e fixará a precedente.
artista, porque creio que um filme só é bom na medida em que o realizador conseguiu
controlar os seus diferentes materiais e não se contentou em levá-Ios a bom porto.»

Em André Bazin, Orson Wel/es, Paris, Le Cerf, 1972.


A noção de planificação
A função da montagem editing, que intervém antes e depois da rodagem, e
Existe num argumentO uma ordem de apresentação das acçôes que é de e ên ia
que consiste em delinear a arquitectura do filme, é portanto ambígua. É ambígua
«literária», qu 'r dií't'I, llllllPolrável ao ordenamento escolhido pelo narrad r, ou ()
r rnan ism, qu.uul« t 111dI' .iprcsentar uma narrativa. Ma ,mai spc ir. iam '111.
ligad •• !> .II,U1II \111• tllI. 01111\,1,pode .xistir l, rnb .rn uma ord '111lc apr 'S 'nt:I~.I()
I Ex ep o s qu t ndcm, v rdad , a multipli ar-se no cinema moderno (o de Riverr , por
('x('mplo) r IHI in m.t di! '1(. ,11~ uun.u '111PM,1 ,1lAuns um prin ípio de pleno dir itn própi i.r . <11.111111111 '1.1. Um.i /(lI 111.1,n.1Od· tI·~ !t'Vl'l ,I ,ll~,IO, 111,'\dt'
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aqui, '111s 'guida um movim 'mo d 'câmara a a ompanhar o gesto, um onua ,"IIPO \11ill/.u ti' pldllt \li 11,11111 I 1','I 1I ,.111 ,llIdo ,I.\.\illl O olh.u do 1'\1('( 1.1<101 "\11111111
num quarto vazio, et . Esta são já escolhas cinematográficas, indissociáveis da ,I ' próprio 11111 11.11I li' I Itil I Irll di'\( ,,'VI' sobr ,tudo 1111I,\1'1'p,II,I~,111,O 11/1/111I I
imagem que delas resultará. Através destas escolhas, que só podem ser compreen- di 11111
duma narrativa \' 1I1,lh 1111.1,1 olhar.
didas em relaçáo a uma continuidade, esboça-se uma verdadeira escrita fílmica, Apesar d tod,".I\ ,0111-posiçó 'S iemporai ou Iun ionais ((U' OIl\I,Il,llIm
pela qual o espectador é apanhado, conduzido, como o seria pela sintaxe de uma atrás, entre a etapas d 'pr 'para âo e as da montagem propriarn .nt ,ditas, ,IP ',,\I
frase. Esta forma de composição das sequências, que toda a gente qualifica como das semelhanças apar nt das divisões efectuadas antes ou após a rod,lg '111,I
«montagem», é conveniente designá-Ia por «planificação- '. Porque ela intervém preciso ter consciência da oposição absoluta que existe, no espírito, .ntr 'l'Sl.lS dll.I\
de facto antes da rodagem (vindo esta realizar um projecto já definido) e procede formas de operações. A planificação, como dissemos, «projecta», na hip II 'M' dI
sobretudo de um princípio de articulação interna da realidade descrita, e não de uma realização, uma disposição da realidade. Extrai dela algun deralh .~, cswlltl
um princípio de fragmentação/associação. Pasolini falava de «língua escrita da sequências de gestos, evoca graças a estes uma totalidade conhecida d ' IOdos, I)
realidade», sublinhando assim o entrelaçamento das evidências e das escolhas a facto, a planificação pressupõe que o autor e o espectador têm em m '11l' a 111(',111,1
que aquela está submetida na sua representação. representação do mundo, o mesmo «cenário de fundo» sobre o qual fraglll '11111\
A partir de 1920, um cineasta soviético particularmente perspicaz, Lev Kulechov, de acção se tornam compreensíveis, e ajudam a situar. Para que orn alglllll.l.\
dá-se conta de que uma tal distinção está presente nos filmes que são rodados na indicações e alusões cada um compreenda a acçâo, as reacçõe da p 'rsol1ag '11\
época, e que os americanos, em particular, utilizam esse método de «planificação»: e o contexto, é preciso que essas representações sejam partilhadas por to los, tl'lI'
pertençam a uma visão comum.
«Ao procurar reduzir a duração de cada uma das componentes do filme, a duração de O cinema de planificação tem qualquer coisa de metonímico. Propô ' up 'li,"
cada fragmento tomado separadamente e filmado a partir do mesmo lugar, os america-
fragmentos ao interlocutor, para que este, imediatamente, possa reponar-s ':, 101.1
nos encontraram o meio para resolver as cenas complicadas ao filmar apenas o instante
do movimento que é indispensável à acção, sendo a câmara colocada de forma a que lidade sugerida. Mas isso só é possível se existirem entre cada um dos fragm '111m,
o espectador apreenda e perceba o sentido do movimento em questão o mais clara e assim como relativamente à totalidade, relações evidentes, laços estreitos. 1\ id 'LI
simplesmente possível. Vejamos para maior clareza uma cena ao acaso. Por exemplo, da continuidade é portanto indispensável a este princípio da planifi a âo: 0111j
um actor abre a gaveta de uma secretária, encontra um revólver e pensa em matar-se.
nuidade cronológica entre os planos que se sucedem, mas também onunuid,ulc
Se a cena é filmada de tal modo que possamos ver em simultâneo no ecrã a secretária,
toda a divisão e o personagem dos pés à cabeça, mas em que o essencial da cena seja a lógica entre os grandes planos e os planos de conjunto, entre os diferent s p 'da~m
abertura da gaveta, o revólver e o rosto do actor, os olhos do espectador não poderão da acção ou do mundo que são representados separadamente. Na forma d ' 'OJIII)()I
focar-se e vaguearão pelo ecrã, à procurà do gesto do actor no instante exacto. Se ao os planos, na forma de os filmar, mas também na escolha dos raccords qu ' os :r1Ij
contrário, planificarmos a cena segundo os momentos que a compõem: l/a mão abre a culam, um dos critérios principais é esta obrigação de continuidade, de UI1 id.uk:
gaveta, 2/0 revólver, 3/ o rosto do actor, poderemos mostrar cada instante à escala de
da percepção, que determina toda uma estética. O cinema clássico de Hollywood,
todo o ecrã, o que será imediatamente percebido pelo espectador (uma vez que o seu
olhar não será desviado a todo o instante por algo de inútil na imagem). que desde o finaldos anos 1920 ao final dos anos 1950 constitui um sist '111,1de
«Vemos portanto que num filme americano, o número de componentes é multiplicado representação preponderante, assenta neste modelo. Uma unidade ideal prévi.i ~
devido ao método de rodagem que decompõe cada cena numa série de elementos.» aí fragmentada de tal modo que, a partir de pedaços esparsos e esp ta .ularcs, ()
«A Bandeira do Cinematógrafo», escrito em 1920,
espectador possa recompor uma totalidade similar.
em François Albéra, Koulechov et les siens, Festival de Locarno, 1990. O que é que deve então ser designado como «montagem», se a planif 'a~.lo
organiza assim, antes mesmo da rodagem, imagens cinematográfi as?

Apesar de o termo «planificação» não ser ainda utilizado, já que Kulechov para
a designar emprega a maior parte das vezes uma expressão como «montagem de
planos americana», é de facto o seu princípio que ele descreve, opondo-o a uma
A colagem como escolha última
Na maior par!' Ia, Vl"I,C~, orno vimos, a montagem a tual não '(-uivam '111'
2 Découpage, no original. O termo designa no vocabulário cinematográfico a divisão das várias mais que uma utu iuu.i ,11I, uma «aplicação» da planifi a 50, ~onstillli 1'111IOdll
cenas do argumento em planos a filmar, última fase da preparação do filme no papel. Em português o aso o 1t'1I1I0di 11111 l" 111•.•1i111-nto baseado no prin (pio da fragJII '111.1~,IO'd,l
este procedimento costuma chamar-se planificação. Tendo passado do campo da realização ao dos
r' onst iruiç.m ()I I '1"111'\" I I.d,l ti' um cinemn de 1lI01lt.lgl'lII, qu.md» 1.1/('1111)\
estudos cinematográficos, o termo refere também de modo mais genérico a estrutura do filme
enquaru série de planos e sequências. (N. da T.) rdi.'r~lIll,1 ,11',1111.1. .1111I I I 1III1IlI.IdOlt'!t,(: 1'111
,dl'o Ullllpll'I.1 1111'1111'
dift'lI'llll' qlll'

14
pensamo. Ei enstein, Welle ,Resnais u odard utilizam de facto a ItHlltl.ll' -m -onu. rio, 11.11.11,1, 1"" li' 11I '1'11' 1II1,I~Ol"\,d ·Ml\lil.lI tlIll'\ptllHI IIll.I\, 1111.1
numa óptica muito mais radical. impr 'vlslbllid.1I11 I" 111,",1 " I'lIdl·11.1111'SIllO dl'/,t'I' S "(li' d,l ..\1; . 111'dld.1 d.1
Nas grandes sequências do Couraçado Potemkine (1925), de Outubro (1927) ou .riaiividn I· do 11111111.111111
hll 11.10'. movido por n .nhuma n .' 'ssi,b I" M'j.1I\II.tI
de Alexandre Neuski (1938), as imagens entrechocam-se, colidem, respondem-se, for, imp sta pOl \1111\1.\1'111.1dr I .('·r n ias exteriores à imag 11I:,I() onu. i io, '\1.1
sem propor o trajecto límpido de um olhar que unifica. Na sua sucessão, os planos .rn p siçâo d {ir/,rl' nusc 'r, do interior desta, um erto núrn '1'0 de . 'os I\OVO\
não elaboram uma continuidade, mas antes uma série de sobressaltos que, longe de Yann Dedet, um d s gr ndcs montadores franceses contcrnporân os, r.tI.1:lMilll
ajudar a conduzir o olhar (como é o caso no exemplo desenvolvido por Kulechov), da concepção da montagem para Dusan Makavejev:
o deixam algo interrogativo. Os contrastes entre planos gerais e grandes planos dos
rostos, na famosa cena da escadaria de Odessa no Couraçado Potemkine, são fonte «Makavejev vinha à projecção das rushes e guardava unicamente aquilo d qu (,IV,',
de emoção sensível, de caos na percepção. Eles não dividem nem o espaço de uma independentemente de qualquer consideração de narrativa, de lógica: podia r h\lO
vezes o mesmo gesto em cinco takes diferentes! Edeitava fora sem escrúpulo um pl,\ll )
narrativa nem o tempo de uma acção: em geral não se referem exactamente aos
de corte ou um pedaço de uma cena que não lhe provocava emoção.»
mesmos lugares ou ao mesmo momento (não se distinguem nos planos de conjunto
as cenas que os planos aproximados mostram em detalhe). São planos cuja sucessão Cinématographe, n.O108, Março 1985, «L m nt ur-.»,

não é de ordem realista, mas demonstrativa. É a «estrutura» do acontecimento


que é mostrada, mais do que o próprio acontecimento. No ecrã toma forma uma A montagem, executada como uma «colagem», substitui pela urpr .sa 'p '(0
espécie de Acontecimento, liberto das contingências do episódio. É um Pânico, aleatório qualquer espécie de necessidade, como as colagens dos pintor 'S SUl 1('.1
um Massacre, não uma acção que decorre e passa. Como o golpe de sabre que o listas, ou as de Braque e Picasso, que associando matérias e figuras in .sp .rnd.rx,
cossaco desfere no final dessa sequência, repetido três vezes, é uma suspensão do provocavam formas novas, e acasos apaixonantes.
acto brutal em proveito da manifestação emblemática da brutalidade.
Encontramos em O Homem e o Mar (1934), esse «poema documental» de Robert
Flaherty, uma utilização similar da repetição sincopada de um gesto, que retira
As implicações estéticas
a este o seu carácter funcional, para atingir uma espécie de movimento essencial.
São apenas breves imagens que mostram um pescador de Aran a partir pedras Assim, pode dizer-se que a montagem obedece a duas lógicas, qll por v "/,.~
para limpar um terreno, levantando acima da cabeça um maço pesado que volta se opõem e outras se completam, que são a da planificação e a da Ia '111.EIlI
a deixar cair: o gesto é repetido não pela personagem, mas pela montagem, que numerosos filmes contemporâneos faz-se uso de uma e outra; a prirn ira I r 'si I
lhe confere então toda uma outra força, tal como um escultor poderia dar conta principalmente ao ordenamento das grandes estruturas narrativas, a egundn ll1;tÍ,\
plasticamente da essência de um gesto, e não de uma das suas simples ocorrências. à disposição interna de certas sequências. Um cineasta como John assav tcs PI,I
Poderíamos citar outras sequências: em Welles a noite de amor de Une histoire tica de forma espectacular esta dupla organização do material filmado: '111Rostos
immortelle (1967), ou em Godard a longa cena de O Acossado (1959) no quarto de (1968) por exemplo, as sequências ordenam-se segundo a cronologia ap na Ia d .
Patricia. Tanto num como no outro, a montagem associa nesses momentos (e em uma só noite, mas no interior de cada uma delas é antes o ritmo do 1110111 'nlO~,
tantos outros das suas obras) planos cuja coerência temporal ou a lógica da acção dos risos, dos silêncios, a ruptura reiterada e composta das ligaçõe aft Iiv.is '
não são manifestas. Num mesmo lugar, duas personagens são representadas, por físicas que presidem às razões da montagem. Num estilo completam rue 11(',
repentes, por estilhaços, como sob um efeito estroboscópico, de uma forma que em rente, os filmes de Takeshi Kitano, Sonatine (1992) ou Fogo de Artificio (L9( 8) pOl
nada restitui uma continuidade. A sucessão desses planos não nasce portanto de exemplo, organizam-se, por um lado em torno de um projecto narrativo global
uma planificação prévia, mas da colagem de instantes, de gestos, de atitudes ou de que evidentemente é da ordem da planificação (evolução da intriga, su S 'fio dm
situações cuja ligação é subterrânea, hipotética, mais a revelar do que a constatar. indícios na descoberta das personagens, etc.), e que por outro lad gra as a um.i
Assim se mostra um encontro amoroso ou sexual singular (em Une histoire imortelle utilização da montagem dentro das próprias sequências, jogando 0111os Iuluor ',~,
tal como em O Acossado, que tomámos como exemplos), mas não o desenrolar o choques, os sobressaltos irrealistas, arrastam a escrita fílmi a para lima OUII.I
desses acontecimentos. Também aí, uma espécie de suspensão, de apresentação I gica de r prcs mação.
fora da duração e da acçâo, se substitui à mecânica realista do encadeado. P de onsid '1.11M qu '.1 16gi a de planifi ação é um dos aspc tos mais 'al':1
Já não é uma necessidade que esta «colagern» manifesta, contrariamente àquilo rcrísti os 111(111\111,1(I.",j o. Pr 'S rvs a unidade . a ont inui I.1dr 11111\\,1 Il'dl
que presidia à operação de planificação. Já não se trata de respeitar uma ordem, . .rradu til \I rI 1111\11 'lI\! Iouu.un um" spécic ti . I ·ja r(~id., onde ~ . o( 'H'I t· ,I
lógi a u ronológi a, na qual o espectador se reconheceria facilment . Pelo 1 ·pn'\l'IIt.I~ 111d" 111111111111III',h ,I n-c unhccid.i , 111\·tILI•.11I1'1IIl'llllllpl('l'Il~ vI,I, (-1.1

16
I', 'J"T'Gii""1 \:'1 I

fi)l·tal· . o ird .nam 'IHO das i 'as, c de um mundo comummente p 'r ·\)Ido. 'r I'U 11.1'I 1'.1", ,,1••
,I
li
l'rI ••• " " "'1"'''"'"\ •• ••••",.III11.II'H
A planifi a ão, mo princípio, propõe um trajecto (da consciência e do olhar) u ,I d~ ,I••
lUontag lU
'lil ••

1'1 " •• JII"\ li trAia lU n mundu


I"" u
tlulU tI •• t.
num cenário e segundo modalidades que cada um conhece. Tal não impede os
MOll'agclIl Allh 111,,\.111 lIarro,," 1'1.11I\p.1I 11 III UIII 11",,"1 •• 1'1."111,,.,\.111
recursos dramáticos e o suspense: Hitchcock é dos que situam as trajectórias dos marr«tiva IIl'n'''~ rios (111111111(.,) ,'v,d('II'('
seus filmes nesse contexto globalmente convencional, mas obtém com isso efeitos Mo,"agcm (:()lIrl'()I"a\'~o Escolhas I)CI110nSI':l\,1O UII' '"l1l1do "IIX'"111
menos convencionais. O mesmo acontece com Lubitsch e Hawks no domínio da dtscursiva inteligfvcls (0111111'1.
:l

comédia, ou ainda hoje em dia com Cronenberg: a planificação é evidentemente Montagem Desconrínuo Ecos Conexões Sugesiao 111IIUllldo
ti ' correspon- aleatórias
ferramenta de grandes criadores. E o mundo que ela lhes permite descrever, não " p('C(l'I)('1
ti n ias
sendo «novo», não reserva menos surpresas! É uma das belezas da forma clássica,
permitir que sejam infinitamente possíveis as mais subtis variações.
Mas não devemos deixar-nos enganar pelo aspecto «def n itivo» d . um ql LltI 111
Quando, ao contrário, se trata de modificar a percepção das coisas, e já não
ti .ste género. Cada filme é constituído por vários tipos de monlag .m, :lS~()1.llIdll
os acontecimentos percebidos em si mesmos, quando a montagem se compraz
por vezes a colagem ao enxerto, ou o enxerto à planificaçã . Nenhum /illlH' 1('1111
em justapor ruídos ou imagens que não é habitual ver associados, o próprio
I ' orrendo unicamente a um destes procedimentos; eles são ap n S ,11.1 1'1 ~II
princípio dessa colagem põe em causa a questão da representação. A montagem
'as dominantes, cujo equilíbrio muda de um filme para outr , p r V"/,<:,\ I· 111111
em Vertov, em Godard, em Cassavetes, desfaz essa teia demasiado convencio-
x .quência para outra.
nal, remenda-a ostensivamente, expondo a fragilidade da trama, o seu carácter
frequentemente artificial. Esta colagem, na sua própria base, manifesta o arbi-
trário das soluções que se «impõem», que fazem passar a sua concepção por uma
necessidade. Não nos espantemos então que a montagem, variando assim entre
soluções de planificação e de colagem, seja um dos principais desafios do cinema
moderno. Um dos desafios de uma representação do mundo que interroga os
modelos tradicionais.
Assim, falar de montagem é sempre falar de uma operação que evolui entre
dois pólos, que equilibra as suas influências de maneira singular, diferente em cada
filme, e que se compõe das duas concepções, bastante diferentes, porém. Mas,
não sendo da mesma ordem, a montagem-planificação e a montagem-colagem
servem a mesma arte, ou o mesmo campo de expressão. Articulam sons e imagens
segundo um certo número de projectos em que podem participar tanto as lógicas de
continuidade como as lógicas de ruptura. Contribuem assim para contar histórias
(montagem narrativa), para estabelecer relações de sentido (montagem discursiva),
para, esporadicamente, fazer nascer emoções (montagem de correspondências).
A tabela seguinte, com todos os defeitos de simplificação que implica um
ordenamento em semelhante matéria, tenta clarificar as características destes tipos
de montagem, as suas grandes distinções, mas também, por cruzamento, as apro-
ximações conceptuais entre as suas diferentes estéticas. Veremos que a montagem
narrativa, em toda a linha que lhe diz respeito, está ligada à unidade necessária da
narrativa, que induz raccords, articulações e um modo de compreensão que estão
de algum modo ao serviço desta unidade. Pelo contrário, a montagem discursiva e
a montagem por correspondências mantêm o princípio de planos que constituem
cada um uma entidade, juntando-se portanto segundo uma razão mais «exterior». É
preciso então substituir a planificação de uma unidad • já nstituída pelas noções
de enxerto ou de colagem, que mar am b '111() t ,11; II 'r subalterno da operação
d jun âo rclativam .m '. :1I<:n fio n lar a l.1\1.1 11111 dm ""'111 .ruos,

IR
II )

A montagem narr v

Quando o cinema começou a popularizar-se no final do é ulo X I X, .1 (111 11


sidade suscitada por essas imagens em movimento foi tão viva qu ' num 1'1illl' 11)
lempo não foi possível encontrar-lhes uma lógica de apresentação. :Hh 1!l1I1('I 1,1
muito curto (alguns minutos no máximo), e no interior de cada um d ·I·~.I~ (1'11.1
sucediam-se como outros tantos quadros relativamente autón m s.

Como escreve André Gaudreault:

«Ora um filme, no início do cinema, era um plano ou, se quisermos, um plan


[... ] é preciso distinguir três períodos essenciais na formação do modo d r ri
fílmica que iria impor-se ulteriormente:
a) o período do filme num só plano: apenas rodagem;
b) o período do filme com vários planos sem continuidade: rodagem m nta em, !l1.I'
sem que a primeira seja, de maneira verdadeiramente orgânica, ef tu d m ("I1~. 11
da segunda;
c) o período do filme com vários planos contínuos: rodagem em função d m nl"lJl 111
[... ] Podemos precisar que a maior parte dos filmes até 1902 não t m m,ll dI 11I11
plano, que o ano de 1903 anuncia o início do recurso à multiplicação do pldlH ~ (11,11
mas limitado: nesse ano um filme raramente comportava mais de d z pl n \) I IIlh
os cineastas não segmentaram verdadeiramente as suas cenas, film nd p )lI,uHo
em função da montagem, senão após o início da década de 1910.»

André Gaudreault, Ou littéraire ou filmique, sy 1 m(' tlu u (11,


Méridiens-Klln k I k, 191111

Notemos que a última etapa que André Gaudreault distingu 011 ~p()lId
mais ou menos ao que chamaremos «montagem articulada»: é aqu .la P;\I,I .1 1I11,d
a montagem aparece verdadeiramente como constitutiva do incma. S -..:\PI('( IMI
algum tempo ainda para se tornar mais do que uma operação mal rial ti ·1/1\.1\ ,111,
e participar «activamerue» no movimento dramático.
É que não era na 1.1n.u mal, nem para o cineastas, nem para os '!\p' 1.1IIIIl \,
estabele r '1111Çilll.11; '11\ lima ntinuidade qu a arti ula s .Ioui :1111'11\(' 11111.1\
om as ouu.is: 1'\1.1 \1'1 i .1 pl irucira Fun âo da rnoniag '111, I 'rll1ílÍr:h illl,ll\l'l\\
« oruar 11i\11'111.1" ( 11111111.IIIHI.I ::H1drt':llIlt: II • pod '1l1(),~dizer ((U('.\ '~I lh.1
dOlllÍ 11.1II\(' d"11I1 1111 111.111111111,1.\'1 ('~I{'lÍ('1 d.1 n.III.I~.III, "PI('( i~II.1(111I di
11111.1
que aqu .la qu' regia trabalh do inea tas d inícios era antes UIlI.I M "Ii a rifh. li: tlll •iua da pla n ifi " ao
da atracçâo.»'
Podcmos s Til I o 1"111',11'11 d.1 pLlni(1 ,I ,10 om lnt 'II"U) 1I,11I.lliv.1,11110111'.11
Até então, não existia nenhuma razão para que as imagens, organizadas umas em
da urras m ·11.1!'t·lI~I11 () I '.di/ ..idor arn 'ri 'ano filma '1\(1' Il)OH t· 11)1 ,N,IO
relação às outras, formassem uma narrativa. A banda desenhada ainda mal existia
'o um a ter t rahn lhnrlo n 'sS' s .nt id (os in asias ingl's 'S que tI('Sigll.1I1I1I
(vai desenvolver-se, como o cinema, no início do século), e a pintura clássica não
p ,I nome colcctiv d s Ia de Brighron, por exemplo, j havi: m inovado 111'''1
tem verdadeira tradição narrativa. De facto, se alguns retábulos, essencialmente
domínio), mas as suas pe quisas são de tal modo sisternát i as que rc] r'~ '111.1111,
no final da Idade Média, foram divididos em vários quadros (os polípticos), raros
são os que disso tiram partido para funcionarem como suportes de uma narrativa. num corpo de quatrocentos a quinhentos filmes, um onjunt pan i 'Idallll '1111
Pelo contrário, quando tal acontece, quando a vida de um santo ou de uma santa onvincente.
é contada nas suas etapas principais, o pintor constrói uma entidade espacial Tem necessidade de fazer sentir aos espectadores que existe, I· umn I '1101,
única para representar os diferentes episódios (encontramos exemplos famosos outra, de um plano ao outro, uma continuidade espacial ou ternp ra I: qut' .\ .\1 <, ,11)
deste procedimento em A Lenda de Santa Úrsula, de Carpaccio, ou O Pagamento de orre, apesar da mudança de quadro, numa unidade diegéti a id 'nlÍlil, vl·1
do Tributo, de Masaccio), Memling fará a mesma coisa com a paixão de Cristo, Assim, através de efeitos de montagem e de escolhas de disposi ôcs '11O!'I: ril.1\.
representando numa mesma cidade, num mesmo «plano», os diferentes episódios o realizador produz efeitos de continuidade ou de descontinuidad '. 1~11I'lhr OM
da Quinta e Sexta-Feira Santas. O espectador do início do século não está portanto Ilome and Sunshine, por exemplo, mostra duas divisões ondgua, :11\;111111.1
habituado, culturalmente, a incluir uma imagem num fluxo narrativo, um fluxo representada frontalmente como um quadro teatral, com uma ârnnra qlll' 11.10
que se apoia nela mas a ultrapassa. Ao contrário, os quadros fixam, fecham, esta- pode nem mover-se nem variar os planos no interior dos cenári . Na .III~ 11\ .1
bilizam. Vai ser necessário ultrapassar os seus limites, literalmente atravessá-tos; portanto da representação directa das portas de comunicação entre as di!' 're\ll ',\
fazer de modo a que o olhar «esqueça» a imagem tão depressa çomo a apreende, divisões, é preciso utilizar a montagem para dar ideia da continuidade ·Sp.1 .11
a integre num movimento de desapossamento. Também nisto se pode constatar E Grifhrh coloca à esquerda do plano uma jovem tocando pian , nqunnio 1111
esse processo tanto nos filmes dos anos 1900-1910 como nos álbuns de banda plano seguinte, um homem, à direita, escuta com atenção e sorri .n a 111 ado, A
desenhada da mesma época, nos Estados Unidos. disposição espacial e a montagem criam uma relação entre os plan s qUl' ~h 11.1
Vai assim desenvolver-se primeiramente o princípio dos filmes narrativos, que .orno contíguos no espaço diegético cada um dos quadros em que d . orrc a .1\<, .io,
atraem não apenas porque os temas são exóticos, ou as acções espectaculares, mas Iloje isso parece-nos muito simples, mas era preciso conceber, (az '1' a -h.u,
porque a história tem o espectador suspenso e paralelamente impõe-se essa «escrita que a sucessão no ecrã de duas imagens pudesse evocar no espírit do 'SP'1 Lido I
fílmica» que consiste em ligar os planos entre si, em dar a cada um deles um equi- lima contiguidade espacial. É o fundamento da montagem narrativa: aqu .1:111\1.
líbrio tal que só possam ser considerados e compreendidos na continuidade da sua impõe uma unidade lógica por meio de elementos fragmentados, qu são )~pl.lIlIl\
sucessão. Será inútil explicar que se trata aqui do próprio princípio da planificação su essivos. Porque, para poder criar uma evolução, indispen ávcl ? apr 'S '111.1\,\tI
clássica. Toda a história do cinema, desde a década de 1910 até à década de 1950, ti' qualquer história, é preciso inscrever a acção ou as personagen numa un id.IIl!·,
no período que se convencionou considerar a idade de ouro do cinema clássico, num quadro de percepção homogénea, o único a poder tornar-s o qu.ulro dI
assenta neste princípio. E ainda hoje, evidentemente, a maioria dos filmes utiliza r .Icrência desta evolução. Só existe transformação em relação a uma r ~ r ncin rix.l:
esta convenção, segundo a qual imagens devem contar uma história, participar .1 montagem, tal como pouco a pouco Griffith a utiliza, vai permit ir ao 111'~II\(I
num projecto de narrativa. A extrema legibilidade desses processos narrativos, e a I 'mpo assegurar a permanência, e significar a evolução.
sua concordância de facto com a expectativa dos espectadores, explicam talvez o É aquilo a que chamo, a propósito desse cineasta unanirnern 111' onsid 'Lulo
domínio absoluto, ou quase, que exerceram sobre a representação cinematográfica. .orno um pioneiro da linguagem cinematográfica, uma «pragmáti a da pia n ill ,I~,I(I»
Mas aquilo que se tornou um reflexo - esperar que os planos sucessivos contem Uma forma de conceber a sucessão dos planos em função da per p fio do t~l\' 1.1
uma história, ou façam parte, simplesmente, de uma sequência narrativa - teve dor, em que nenhuma regra nem convenção rege se na ép a s prin Ipiu. I~ti
primeiro de se impor, precisamente, a um público que não estava preparado para r.IZ r portanto sentir a mobilidade temporal, paralelam 11l unidade do l'~p.I~O
isso. Foi, em particular, o génio de um D. W. Críflith que o tentou, mais sistema- ti' per epçâ ; a varia fio gra as à permanên ia. Mai pr isarncru ': no iru 'I'i(ll til
ticamente do que os outros, com tanto sucesso a partir de 1908. um m sm qu, lro (0\1 I um m mo plan ), p rador p< d .vklcnr '111\'1\11
.11'1"md 'r a ·vol\l~.1Od' \11\1:1história graças aos movlm 'nlOS "no ••; li m, 1 Oi'
t' d . t 'mpo tI; Ia P'1a .onsu n 'ia do qu.ulro. M.I •
('xi.~t'aI \\lH.1 IIl1ld,lIl di 1\1\',.11
3 A. Gaudreaulr, op. cito 1.11.1que ,111,111.11 .1111/1111111111\',1.
rll ,1.1Iq\lil,l IOd.l,1 ~\I.I.unplhudc,
J PII'I i\o podl I

22
Illllddlloll l'\1.11 'llI!)()I.did,llk do olhar, que
corrclativarn .ntc um.r rcmpor.rlklndc ,illlldt.lIl,jd.lIl, 11111111 I"" I 1 1111111.1 IrIlI.IIIV,I\ pll.lllIll\ r11Í1 IXpllllli 1.1. rlll

li, r 'I" 'S '11I.l~:tO,Voltar atrá ,propor irnultaneidades, eliminar períodos inteiros 1909, Fr:tnd ti
1111 .111111 .11 1 I. I \I I'\ll' 0111 .nt: do a PI()P(/)~ilOele \1\11 fillll 'lll),1

da a â e l rna possível a partir do momento em que o corte é utilizado na .1 âo se passa 11\1111 I ,11111

perspectiva de uma construção temporal que ultrapassa o desenrolar da acção


«Mostram-nos ntt Lllrh' utrcl p rspectiva do balcão, e para compr nd r o mp rl,I
em cena, E só é possível apreender essas variações temporais na condição de as mento do público qu r ncontra, devemos compreender que eles est o v r
compararmos com a permanência de outras situações, essas conduzidas por um do caminho-de-ferro que já vimos na totalidade. É aqui que um pouco mais d h bllid di
movimento contínuo. É assim que a planificação assegura ao mesmo tempo a na preparação deste filme para a sua apresentação em público teria podido faz r d I
continuidade e a descontinuidade da acção. um modelo do seu género. Setivesse havido alternância de cenas curtas entre o b I
e o palco do teatro, mostrando a progressão da acção no palco e o efeito produzido n
Vários efeitos de planificação/montagem vão portanto, muito simplesmente,
público, a impressão geral teria sido bem melhor.»
balizar o nascimento das convenções fílmicas ligadas à narrativa. As entradas e
New York Dramatic Mirrar, 29 de Maio d 190,
saídas de campo, por exemplo: em lhe Lily and the Tenements, Griffith modifica-
citado por Noél Burch em La Lucarne de nntint, Nathan, 19 1.
-as sistematicamente consoante as suas personagens se deslocam de uma divisão
para outra, ou de um edifício para outro. Nos dois casos, elas saem do ecrâ por
um extremo do enquadramento, e, depois de um corte, entram de novo, num Compreende-se em que medida o facto de alternar as cenas, ou me mo os
outro cenário. Mas, se existe uma continuidade espacial entre os dois lugares (se planos, é decisivo na representação das temporalidades, e ~m pa~ticular na d.a
as duas divisões são contíguas), as personagens que saem pela direita do primeiro simultaneidade, que é nada menos do que a representaçao conjunta d dois
enquadramento vão entrar pela esquerda no segundo, permitindo assim uma momentos presentes. Criffith, rapidamente, utiliza alternâncias rápidas de plan~)~,
continuidade de movimento, como seria o caso entre duas vinhetas de banda as quais, num contexto particular, expõem a simultaneidade das a~ções. b~1
desenhada. Ao invés, se as personagens mudam de lugar, se estão numa outra 7he Lonedale Operator, uma mulher é atacada numa pequena estaçao ferrovi
casa, depois de ter deixado o plano precedente pela direita, entram de novo pela ária enquanto o noivo, avisado do perigo, t~nta, conduzindo uma loc motiva,
direita, criando uma descontinuidade do movimento que podemos considerar chegar ao lugar o mais depressa possível. E preciso mostrar .que, en.~uanto :1
como sintomática da descontinuidade espacial (evidentemente podemos substituir heroína resiste, fechada num escritório, o condutor chega. Griffith utiliza, par.l
direita/direita por esquerda/esquerda). Assim, talvez de maneira intuitiva, sem esse efeito, uma montagem alternada, graças à qual o espectador cornpr .ndc
procurar fazer disso uma regra, Griflith utiliza a montagem, o alinhamento dos que não há somente sucessão entre as acções apresentadas no ecrâ, mas sirnul
planos, para dar ao espectador indicações primordiais sobre as circunstâncias nas raneidade também. O facto de dividir as acções em planos curtos, e de o fazer
quais a história decorre. alternar, «estabiliza» efectivamente o tempo dos dois segmentos, e de .aI \I m
O que é verdadeiro para a unidade espacial é-o também, de forma mais com- modo interrompe-Ihes o fluxo. Na Europa serão precisos alguns anos para qu .
plicada, para a unidade temporal. À falta de fornecer indicações explícitas, que esta convenção se sistematize, quando nos parece tão simples hoje ... e foi h:\
acabarão por parecer penosas (relógios, sombras que se alongam, etc.), é preciso muito ultrapassada pelo cinema moderno Í!
fazer sentir ao espectador as simultaneidades, as distâncias temporais, as relações Pode-se, portanto, considerar que a simultaneidade exprimida pela moruag '11\
cronológicas. Nada era menos evidente do que ligar a sucessão dos planos a uma alternada não é de facto mais que uma excrescência, uma ,utilização marginal
sucessão equivalente das situações diegéticas: o curso do tempo nunca havia sido da linearidade da acçâo sugerida pela montagem de corte. E por cada uma das
suportado, na nossa cultura, pela sucessão de quadros diferentes, uma vez que acções «avançar» de um plano para outro que podemos aperceber-nos do S'\I
cada um deles, pelo contrário, é como que arrancado ao tempo (isso é verdade, entrecruzamento como sintomático de uma simultaneidade. Também aí, é sobre
em particular, na pintura religiosa, ou nos retratos do século XIX, quer sejam um fundo de unidade necessária, de linearidade temporal, que' a montag m ! od .
picturais ou fotográficos. Têm como função «imortalizar»). Portanto, a imagem introduzir, por vezes, variações mais subtis. Mas é também por isso que s re 'um
com o cinema deve proporcionar um escoamento temporal que não lhe é habitual. no tempo (jlash-back) são muito mais delicados, mesmo inconcebí~ei à pr~ml'ir;l
E pouco a pouco os cineastas vão impor uma analogia entre sucessão dos planos e vista. Será preciso esperar que um certo número de convençóe sepm vali Ia Ia~
sucessão dos momentos da acçâo. Os raccords, os gestos ou as acções continuadas pelo uso para que a narrativa possa correr o risco (em relação à sua legibilidad') It·
de um plano para outro são para isso os utensílios privilegiados (cf parágrafo
seguinte). Gradualmente, passar de um plano a outro equivale para o espectador ~A prop ,111I d.1 11.111,11 I (I" Il.Ivid W. ,rifTith. I 'I seao 0111 !!.r.lI1dl' proveito .1\ .111.Ihr' dI'
a avançar no desenrolar cronológico. Mas não é assim tão simples: algumas repre- ). AUl1l01ll r d( I 11,11,,111 us ] (/0 111/1 amerirain (P.lris, FI,lllllll.\lioll, t')HO), .'" tll \1111111,'
dt A. <:,1\1111(",,11, t I" I 111 I "I,tl tlltl/llllftlJ(lIlphif{lIr (P.I"', Nat h.rn, tl)')O, I· dt~.I", 1')1)'»)
sentações temporais exigem uma percepção apurada desse desenrolar. É o nso da

24
IlIi\IIII,1I pl) ,I~, E qu o cspc .mdor tenha ons i n ia dos 11101111
,1,\ 111111111que pl.IIIO~ r 'pl!'M'II!.II\I Iti I I I I"I I"1'11 I 111I'11'111,',
'"
vI'mlo o ,,'
11 1'",1,1 dIIlILI, 1',11,1

01'1' 'S nu do s 'U olhar oin ide m o presente da acção para o pod 'I .rh.md nar ,I .squ .rdn, llldllt I( 111111111111. 111111111111 rarrort! I, Ollllllllld,ld' '~p I ll~ \ '1,\
'I
requerido
I
. lIlIl P,\lIIII',II,1 \I 0\1110,·1"
\, naruo cfc IiV'II11
' , -nt \ nc l'~~lll.ldl
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m m nt nearnente.
Ter em consideração esta etapa da planificação/montagem que constitui o nn rrativa, a n ' ' 's~ld,ld!' d ' \111i 1,ld ' I .rnporal, qu I 't '1'\11Ina a UI11I'/,I~,10 dm
cinema de Griffith é compreender, graças à função narrativa que ele de facto lhe rarcords. O mesmo S 'p,l~sa .om os raccords de gestos. Aqu i 1rat ~ se d ' I od,'1

atribui, a natureza dual desta operação que liga tanto quanto rompe, que concebe mudar o ângulo da filma 'em ao mesmo tempo que se f< a sufi I 'ntt'IIII'llI: ,I
uma continuidade para poder exprimir os seus intervalos. ,I .çâo para que a continuidade desta se imponha, apesar da rupLUra do '011:. bll
Une histoire immortelle (Orson Welles, 1967), Jeanne Moreau dá uma 101 'Lld,1
ao seu interlocutor: o plano é cortado no meio do gesto, e o ge t ()111inu.i 110
. t porém bastante mais afastado Não se pode encontrar um \lido
Os raccords I
pano segulll e, . I
mais eficaz de sugerir aos espectadores que a história não é afectada I '10 () ~1.:1
Os raccords são precisamente, junto de um ponto de corte (o momento que lançamos sobre ela, e que existe uma necessidade temp~ra~ uma 'SPI'I \(
preciso em que os planos se sucedem), um meio de criar a continuidade dos de evidência autônoma da diegese que, não impedindo as vanaço de I ngulo,
planos. Fazer raccord é, como o termo o indica, fazer com que o corte 5 não seja também não depende delas. Também aí compreendemos a que p nt 'S\,I pl.l
sentido como uma ruptura definitiva e radical, mas como uma costura, que nificação/montagem está ao serviço de uma narração, de tal mod , .(i :I:, 1\\1'
permite juntar pedaços diferentes com a maior discrição. Trata-se de camuflar o seu objecto, a acçâo representada, parece incluí-Ia, impor a s~a evid n 1,1.A \
a cesura, de apagar a sua impressão, conservando ao mesmo tempo a qualidade suturas operadas pelos raccords impõem com tal força o sentim nt I ' I\I~I,I
de articulação que está na base das mudanças de plano. .ontinuidade que a linearidade temporal torna-se a ossatura da draru: 11111'1,1,
Neste jogo antagonista de continuidade/descontinuidade ao qual se entrega (~ assim no primeiro filme de Louis Malle, Fim-de-semana no Ascensor (\1) I):
a montagem, os raccords são portanto a principal ferramenta dá continuidade. enquanto o universo da heroína é o do sonho e .da su~p~nsão ~o tempo. ..() d,:
Nada de mais normal, em consequência, do que encontra-los no período de pcrsonagem masculina está dependente de uma artlculaçao ínexorável da dur.«, ,10,
maturidade do cinema clássico, quando tudo parece evidente na altura em que esta mecânica temporal, este meticuloso ajustamento dos mom~nt~ '111r' ~l
terão tendência, como verernosva desaparecer - ou pelo menos a transformar- () impulso da intriga do filme, e é a montagem que impõe essa ideia, ~Iralllr
-se - no cinema moderno. () primeiro quarto de hora, seguimos ~s gestos da personagem mas Ulr~,,~~.
de
Todos os raccords assentam numa dupla continuidade: a da acção e a do plano em plano, sem que seja perceptível qualquer ruptura: a tra~a, 11.11.1
olhar. A primeira é sugerida por um conjunto de correspondências que, de um do tempo condiciona os seus actos. Os raccords s,ob~e '" g~stos ~ulttplr, an~ ~"
plano ao outro, asseguram a unidade da diegese (a segunda, de que falaremos acompanham-no nas mínimas deslocações. O pnnClplO nao consl~tc ap "" ,111
mais adiante, assegura uma continuidade da narrativa, de narração, mais do que .srabelecer uma unidade (que um plano-sequência também poderia tra n: 111111('):
da acção, mas contribui por isso para a realização desta última.) Evocámos já mas em impor articulações, consecuções, uma mecânica da ac,ção que S' V,II
as entradas e saídas de campo a propósito de Griffith; é um dos raccords mais transformar numa mecânica do real. Aqui o tempo só pode articular-se nu m.t
simples, que se baseia não numa lógica espacial da representação (sair de um continuidade linear: é o efeito dos raccords privilegiados pela montag rn. LlI!J,,\
lado do ecrã para entrar do outro ... ), mas numa lógica de movimento no ecrã, res diferentes, acções diferentes estarão, então, no mesmo filme, pre s por ~U,I
que poderíamos chamar «lógica gráfica», de que dependem os planos sucessivos. vez na rede do tempo, sem que sejam necessários sinais explícitos, s raccorrls
Tomemos o exemplo de um jogador de futebol que avança com a bola nos pés: impõem uma ordem. É sem dúvida a sua função princ~pal. , "
se passamos de uma câmara à outra durante a sua corrida, parece-nos normal Outro tanto se poderia dizer, embora de modo mais matizado, a ~rop6sl1 o
que ele entre pela esquerda do quadro depois de ter saído do anterior pela dos campos-contracampos, que são raccords de uma outra natureza, al1~da qllt'
direita, porque nos parece normal vê-Ia ir sempre na mesma direcção no ecrâ, inteiramente votados, também eles, a uma lógica narrativa, xpôem uma SlIlI:lÇIO,
tal como no campo. Os raccords de entrada e saída serão então absolutamente lima ligação de acontecimentos entre vários elementos da diege .Trn: gin '11l0~
respeitados. Em contrapartida, se fizermos um documentário sobre o jogador em lima personagem a Ihar para uma estrada que se estende à sua rr ru '; I od ,rI,l
questão, insistindo sobre as múltiplas facetas do seu talento, teremos o cuidado mos mostrar arnl as num só plano: deixaríamo ver, da strada . da \ 'rson,\~ '111.
de variar os movimentos e as acções no interior do quadro, fazendo alternar os . proximi Ia I" 1\\.1\ 1\,1(\mosrraríamo a sua liga âo, () ol,har, qUl' é o O\)Jl' to
.nrral do t,lIllPI1 11I1I11.1I,1I1l\lO, ':11111 o oru ra .ampo '1'1:1,IÇOIlI-clm 'lHO. "I"
5 Cut no original. (N da T.) I)Ot.\ (no « 111111111111
'1"' Hlll.llld 1\,II1h 'S .\fillll.1 que, 1111111,1
1l,II1,IIiv,I. uo 11(\(.111.

26
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M ~Ii s prop )(' 111111111111111111 .11 ,,,,,(//(/1 ('xplídlm, \\1', desde lo!,o, ÍI11pCll'1II .111
d 'M • a ()J1l • .im '11l0 ti imediato um elemento da narrativa. Já não' 11.1duração,
olhar a vid n i.I.1[1.II 1111dI 11111.1olllinuidatl' di '~"tí ,I.
agora, que o raccord constrói a história, é na notação dos estados. Assim, quando
Narrativa «I1':1
I1Sp.1I
l'llI 'li, 11' ·~~idad· la onunuidadc r' 'rida; própria dkg('M',
Cary Grant, em Intriga Internacional (Alfred Hitchcock, 1959), chega a uma
,'.10 qualidades da planil] .I~':t()/Illomagem que mo trarn om qu • :lulOridad . (','LI
planície deserta para um hipotético encontro, começa por inspeccionar o local:
M' impôs, tanto aos espe tadorc omo aos exegetas, até di farçar s S 'lIS 1'1 li" im
uma vintena de campos-contracampos sucessivos, sem interrupção na alternân-
pr .ssupostos. Mas se os raccords visuais servem para estabele er a id 'ia ti ' \1111,1
cia, rosto da personagem/visão subjectiva, manifestam a solidão do protagonista.
Existe aqui, na sucessão dos planos, não a analogia de uma sucessão de momentos, rnntinuidade, vão encontrar também na banda sonora um aliad d vulto.
mas ao contrário a expressão de um estado. Que na sequência evidentemente se
tornará uma componente narrativa. Um outro exemplo, complementar, pode
ajudar a compreender de forma mais precisa o princípio: irei retirá-lo a Nostalgia Os raccords sonoros
(1983), do cineasta soviético Andrei Tarkovski. Um artista no exílio filmado no
Efectivamente, o som impôs-se muito depressa como princípio de SlI1111':1:a I J

presente, a cores, lembra-se de algumas cenas da sua juventude que aparecem no


( .rca de 1908-1910, quando os filmes não eram sonoros, era um narrad )1' li11('
ecrã a preto e branco. A um dado momento, num corredor, no presente, olha a
g .ralmenre assegurava a ligação entre as diferentes acções mostradas no -cr.i. l:
nuca da mulher que o acompanha; ela vira-se com energia. Sobre este movimento
,I montagem vai assumir, sub-repticiamente, esse papel. Permitindo aos ons . ,\
Tarkovski monta o movimento similar de uma outra mulher, a preto e branco,
depois novamente o olhar do homem, hoje. Pode supor-se que a personagem, ao
imagens, por exemplo, associar os efeitos de continuidade e de descontinui t.ld '
ver uma, «revê» a outra. O campo-contracampo manifesta bem o acontecimento ti ' que atrás falámos.
Os raccords sonoros consistem assim, na maior parte das vezes, em ass . 'li 1'111
que constitui o olhar, mas não apoia esse olhar em nenhuma realidade temporal
IIl11a permanência musical ou dialogada ,enquanto, visualmente, o planos ~l'
mensurável. Não é apenas um passado difuso que volta: é de facto o momento do
.in iculam uns com os outros por corte. E inútil citar exemplos: ele abun Iam
olhar que é assinalado, e portanto o seu lugar essencial na narrativa, ligado a um
('111todos os filmes, tanto e tão bem que, pelo contrário, é difícil imagina r qm'
protagonista singular. Também aqui, é preciso insistir sobre o carácter manifesto
~ . possa sistematicamente adoptar um princípio diferente, onde cada 01'1' visu.il
do raccord: ele conta talvez mais do que qualquer outro signo visual. Mesmo não
(orresponderia a um idêntico corte sonoro; quando isso se dá, é o efeito de ruptura
«mostrando» nada, no sentido estrito do termo, estabelece ligações que são da
ordem da narração, e por vezes da mais explícita das narrações. que é manifestamente procurado.
Os narratologistas interrogam-se muitas vezes sobre a capacidade que o cinema Banda de som e banda-imagem assemelham-se a duas arquitecturas qu dcs
tem de contar sem recorrer às palavras. É por vezes avançada a hipótese de uma lizarn uma sobre a outra, cada uma organizada para si mesma, mas tamb '111 '111
narração fílmica que se contentaria em mostrar a evolução, sem ter os meios para I .laçâo à outra. A unidade do filme não depende apenas da sua compl m .nuu l
descrever verdadeirament~ a história de que esta evolução é a matéria, para enun- dade no plano (voz correspondente às personagens, ruídos síncrono em reln 50.
ciar as suas articulações. E verdade que esse modo narrativo se encontra cada vez ,\ .çâo, etc.), mas também, e talvez cada vez mais, da unidade de cada um ti '~~t'N

mais no cinema contemporâneo, que elimina as transições. Mas o princípio do onjuntos, visual e sonoro. A legibilidade da narrativa, assim como a sua o 'r 11
raccord de continuidade, de que acabamos de ver alguns exemplos, é precisamente lia dramática, assentam nesta dupla articulação, de um plano com outro, c do
o de manifestar uma ligação intencional entre os planos, que é assimilável a uma ~OI11com a imagem, que é da competência, evidentemente, da monta '111. 1.\ ,\
narrativa concreta. Quando Méliês, em A Viagem ao Reino do Impossível (1904), .omplexidade desta é tanto mais evidente se considerarmos que ao h qucs 1m
faz entrar um comboio na boca do sol, ele serve-se desses raccords como duma planos sucessivos se somam os do universo sonoro e os do universo visual '!lI I '
transição explícita para que o espectador compreenda que a cena seguinte se desen- ele . Godard, logo nos seus primeiros filmes, demonstra este fenómen ,l\nl'S d
rola no interior do astro, local evidentemente desconhecido de todos ... As nuvens fazer dele um dos registos mais ricamente criativos do seu cinema. L go no inl io
transformam-se então em paredes rochosas, o clarão do sol torna-se uma claridade d ' O Acossado (1960), por exemplo, Jean-Paul Belmondo canta a v I. ru . do ~ell
vermelha no fundo do cenário, e o veículo entra em campo numa continuidade arro o nome daqu Ia om quem se vai encontrar: «Pa-Pa, Pa-tri ia!.);' sobre t .\(1.,
de movimento: todos os elementos da imagem são solicitados a transformar-se, lima das sílal as, SUl'I' um plano diferente da pai a em. À oru inui Ia I, sonO!.I
'Sl< as o iadn 11111.1 d,'\ullllÍnllid de a ntuada do [luxo visual. L~ 'SI:! distol~.HI
n-l.u.iviv.i a Pll'll 11\,11111.111\1,1cio c in .ma, pondo em cvicl ncin :1.\ ()IlVl'Il~O(,~(1"'.1
6 R. Banhes, «Introduction à l'analyse structurale des récits», Communications, n.? 8. 1966,
~ '\1,1\<11.,('1\1 ,() l.ud, dl' !lImll,ll ~llllpl('''IH'1I1
'~II\It\l!.II\1 \'11111"'1'"\11 ".1,1 11.111
retomado em Poétique du récit, Paris. Le euil,1977.
')
28
o jo 'O da I' .prcs .ntaçâo, mas ele o usar para fins narrativos pll'l \11 I' I \1111na 10g1 I qll(·.I dll .I, 1111.1111111111
111\"ivo dos ill,\I<l11('S d.1 dlq~(,M>.> IIICdld.1qu .
notável banda onora de Nouuelle Vague (1990), onde as fra cs das dllm'l1lcs per- g 'I1Sd ·~.ql.II(>11111
.I~ 1111:1
sonagens, sobrepostas, repetidas, destacadas de diferentes maneiras, por vezes em Analogia 1<1'Illpn d" 111111('1)/1<1
'mpo da a 5.0», s m r perfeita em terrn s de
francês, por vezes em italiano, compõem com a situação representada na imagem dura ao, impôs-se '111lO1l1r.lpal lida no que diz respeito ao principio de sucessão.
uma narrativa extraordinariamente complexa, de que a própria dificuldade de I~sem dúvida uma das onven õcs mais fortemente enraizadas do cinema.
produção e de compreensão é um dos temas. E é graças a ela que rapidamente o cinema incluiu nas suas narrativas saltos
A pista fornecida pela montagem do som é tanto mais interessante, em termos temporais, e retrocessos (os famosos jlashbacks), que constituem a partir dos anos
narrativos, quanto permite à narrativa desligar-se da acção como um escritor O uma das características da narrativa cinematográfica clássica. Se não tivesse
que toma a liberdade de um comentário, ou desenvolvendo o curso de uma voz essas possibilidades de alcançar um episódio distante no tempo, passado ou futuro,
interior relativamente à descrição dos factos. Ela permite também separar duas .1narrativa cinematográfica perderia evidentemente muita da sua riqueza. Só gra-
temporalidades, dois fluxos de escoamento diferentes, cuja complementaridade é ~as a uma tal flexibilidade é que o cinema pode aspirar a igualar a liberdade do
fonte de sentido, enquanto por outro lado é mantida, na duração, a unidade de romance, de que Herman Melville falava nos seguintes termos, em 1852: «Esta
cada um, que garante a possibilidade narrativa. narrativa avança ou recua conforme o caso.» E talvez mesmo ir mais longe do que
É assim em A Estrela Perdida"? do cineasta indiano Ritwik Ghatak (1960). ·1·, associando a uma base muito realista dispositivos que escapam às convenções
Uma mulher velha, miserável, é sustentada pela sua filha solteira; um dia, ao ·ronológicas. Um dos recursos principais dessa narrativa cinematográfica, de que
cozinhar o arroz que crepita no fogão, percebe que a filha encontrou alguém, talvez nem sempre tenhamos apreendido a especificidade, é a variação das durações,
que quer casar-se, e que então o seu meio de subsistência irá desaparecer. Uma () embate das épocas, em suma, a elasticidade do quadro temporal. Essas praias de
vez enunciada esta situação, de cada vez que a mãe vê os dois amantes, Ghatak vacuidade caras a Antonioni, esses momentos de lucidez suspensos, característicos
utiliza na banda sonora o ruído do arroz cozinhado, que lembra as consequências dos amanheceres de Fellini, essas acelerações brutais na acção de que um John
materiais da ligação ... Trata-se de facto de contar alguma coisa, de tirar partido da
Woo e um Wong Kar-wai são hoje especialistas, encontram a sua força, a sua
ambivalência dos sentimentos da mãe, da sua razão secreta, e da sua persistência no
energia ou o seu mistério na modelagem do tempo que a narrativa audiovisual
tempo. A montagem som/imagem funciona aqui como um comentário narrativo:
permite. O Tempo Reencontrado, realizado por Raoul Ruiz (1999), oferece uma
explica a história. A temporalidade própria dos fenómenos - e o confronto dessas
prova suplementar das combinações complexas que a imagem permite, quando se
temporalidades - é um dos registos da narrativa complexa do século XX, quer
ocupa de uma narrativa em que se misturam e se enrrecruzarn episódios situados
escrita quer filmada. A montagem som/imagem toma então a seu cargo tanto a
de forma muito diferente no tempo, e que agem, mutuamente, uns sobre os outros.
linearidade necessária, quando se trata de impor a ideia de uma evolução, quanto
Ora a montagem intervém de forma essencial nessas composições narrativas,
a diversidade, sem a qual a profusão do mundo não poderia ter lugar na narrativa.
a dois níveis muito diferentes. Primeiramente, é preciso notar uma vez mais que
A riqueza das bandas sonoras de Resnais, Altman e Fellini testemunha o modo
a montagem assegura a unidade, a primeira coesão; ela enuncia a regra. Para
como o cinema moderno abarcou uma tal exuberância sem por isso sacrificar as
parafrasear Roland Barthes falando da linguagem, a montagem é normativa, uma
estruturas narrativas.
vez que dá sentido à sucessão das imagens. É ela que indica, fundamentalmente,
a existência de uma ligação entre os planos, uma ligação de ordem temporal. Esta
ordem não é evidentemente «natural», ainda que o hábito nos induza a pensá-lo,
Variações temporais Quando vemos uma sucessão de quadros, uma sequência de imagens num ecrâ
de computador, quando folheamos as ilustrações de um livro, nenhuma lógica
A montagem com base nos raccords, tal como acabamos de a descrever, e que
poderíamos chamar montagem articulada, uma vez que o seu princípio é o de de sucessão no tempo se impõe inicialmente ao nosso olhar. Constranger, sub-
permitir uma organização mecânica dos fragmentos, conferindo-lhes transições repticiamente, o espectador a pensar as cenas no tempo é a primeira função
narrativa das articulações que acabamos de estudar. O papel da montagem é
suaves, constrói antes de mais, como vimos, uma ordem temporal. Impõe uma
estrutura de sucessão, em que os momentos, eles próprios interligados, formam preponderante, mas tem por base a convenção. É num contexto narrativo a priori
que a ordenação da narrativa é dada pela montagem.
uma irreversívellinearidade. É impossível, neste dispositivo, entrever uma outra
Daí por exemplo carácter surpreendente, e literalmente inexplicável, da his-
iória contada por nvid Lyn h em Estrada Perdida (1996), em que as cenas do
7 Os títulos assinalados com asterisco correspondem a traduções das versões francesas dos

títulos das obras, soviéticas (russas no caso de Sokurov) ou indianas, que náo estrearam em Por- fim mar arn 11111 r 'gl'l'~soàs do iní io, ao tempo que era o delas, enquanto uma
tugal. (N da T) a> ao S' lcs '1111111111 li o, s 'gund() um prin Ipio d· su
("" 1(>1.11 ssão que par ia
30 1i
I.'tssi o. .f 'il ) J . surpresa . d ' irr ealidade pro urado p r yl1 I1.1\\('111.1«pelo ()Idelll 'Ill '11<1(I dlt. I o c uut ruuum dI
1111 1'1111111111 .1111\1111do, 111,11
11 I
absurdo» nesta convenção de sucessão que a montagem articulada asse lira. É por ,"~ 'glll ado p 'Im 111 11111I "ti til rll, O~ 111'SIllOS '11 ,Idl'.Ido~. A1'1'11.1.'o 1'0111
li dI
a linearidade temporal constituir para os espectadores um fundo de percepção ruptura é sinallz., 10, .1 IIl.alOI ".111' 10 I .mpo por 1I111aal1"ll\()d(),~ 10 M)1I1(11)
indubitável que a violação desta ordem cria um mal-estar. da imagem, por Ulll flllldido Ill,\i~ ou m 'no insist nt . ;n onuamos IIIIIIH')II\II\
E é a um tal a priori que devemos também a legibilidade dos vaivéns das nar- -xcmplos em Manki .wi :to (J lomictdio, 1948; A ondessa Descalça, 19 ,·Il.), '111
rativas no tempo. Separado do c?rpo principal do filme, um bloco homogéneo (O Mundo a Seus Pés, L941), em Walsh (The Enforcer, 1951) , .rn rnulios O\lIIO~,
como o fiashback constitui de certa forma uma unidade «deslocada», Ele funciona Estas modificações na representação (que por vezes vão até à op i '50 '111r' ,I l ()I
com a mesma lógica do conjunto (sucessão dos planos, linearidade), mas desloca , () preto e branco) explicam-se por uma modificação de e iados d OI1Si 11 i.r: ,I
simplesmente o momento olhado. Como se a história existisse «em reserva», ou I' ordação das personagens orienta a narrativa de forma diferente, Mas cst . 'ft. 111
«em potência», e passeássemos, ao sabor da narração, um projector sobre este d ' montagem em que a articulação é sinalizada tende a desapare 'r.
ou aquele dos seus episódios, para a frente ou para trás. Não faremos aqui uma Uma das apostas do cinema moderno consistiu mesmo em lirninnr .~".,
longa reflexão sobre a questão dos fiashbacks; digamos apenas que estão ligados, protocolos de ruptura, o que cria uma percepção desfasada no e pe iador 1\1' W
de maneira complexa, à arquitectura narrativa do filme. Geralmente encontram v~ mergulhado numa outra época sem o perceber imediatamente. in a 'tas OlHO
uma legitimação na presença ostensiva de uma fonte narrativa: seja um narrador Bergman (Lágrimas e Suspiros, 1973), Resnais (Hiroshima Meu Amor, L9 9· Murlrl,
off, seja uma personagem activa. A primeira tem como função contar: pode voltar 1%3), Tarkovski (O Espelho", 1974), ou mais recentemente Kitan ( R"/,II",fI
atrás como muito bem quiser, autorizando o seu estatuto todas as mudanças de Regressam, 1996; Fogo de Artifício, 1998) utilizaram esse proce o d rama li o, q\ll'
situação no tempo. Por definição, a sua presença permite dessolidarizar o tempo da se pretende ao mesmo tempo perceptível e ambíguo. Particularmente '111FII,I((I
narrativa e o da história: o conhecimento desta passa então por uma lógica que já de Artifício, o cineasta japonês mostra várias vezes uma cena de maran a qu '
não é a sua própria, mas de facto a do narrador. Ora este pode «viajar» no tempo impossível compreendermos imediatamente em que momento da hist ria se sil 11.1.
à sua vontade~ Condensa episódios, volta atrás, trata numa única imagem cenas Mas a dúvida em que se encontra o espectador é provocada por uma rupt III ,I dI'
repetitivas ... E assim com os narradores de O Prazer (Max Ophuls, 1953), é assim 10m que revela a diferença temporal. A ausência de som ambiente e crtos ralrut],
com o de [ules e [im (François Truffaut, 1962), ou o de O Quarto Mandamento mostram a distinção do tipo de realidade, mas nada indica uma itua 50 '10110
(Orson Welles, 1942). Mas também o de um filme mudo como A Multidão (King lógica mais precisa na história. É preciso que o espectador «interv nha» '1\1.10
Vidor, 1927), que resume a infância da personagem principal numa espécie de 110desenrolar do filme, que ele próprio experimente várias hipót s 5, a li 111dI'
prólogo de natureza diferente da própria acção. É nesta «natureza diferente» que r 'colocar no seu lugar, se pode dizer-se assim, o episódio em que t50. 1':1LOd.1
intervém a montagem. Seja no filme de Welles, no de Vidor ou no de Truffaut, .1subtileza desta narração consiste em tornar ambíguas apenas algumas '11.1'.
assistimos a uma condensação temporal, um «precipitado narrativo», que abre a ou algumas séries de planos - as dos actos violentos, no caso, que f rrnnm 1111I.1
narrativa. Ora como é que ela se manifesta? Através de uma montagem cujo prin- espécie de tela de fundo intemporal. Em paralelo, os planos qu apr s ru.un .1
cípio de articulação já não se encontra na própria acção, mas no seu comentário. -volução dos sentimentos e das relações do casal principal, esses planos hl 'vr~
Ao fim de alguns minutos, a acçâo vai retomar o seu curso, impor o seu ritmo, , pouco explicativos, devem absolutamente ser apreendidos numa progr ·~~.Io
tomar o tempo do seu desenvolvimento. A força destes filmes (que neste caso t ronológica nítida, O trabalho de montagem consiste então em entr 1'lJ:t.:1I 11111.1
são apenas exemplos) é associar efectivamente, de maneira bastante ambígua, o " 'de de cenas cuja linearidade é intencionalmente imprecisa, com uma S I'Í' dI'
tempo da narrativa e o da acçâo, No episódio do Modelo (O Prazer), Ophuls de crias cuja progressão deve ao contrário ser muito sinalizada. Pod mos nvalt.u
forma muito precisa mistura articulações de ordem narrativa, cujos raccords são n .ste caso a riqueza e a subtileza das capacidades narrativas da m ruas '111,11111,'
constituídos pela voz, ou por movimentos de câmara, e articulações de ordem Vl:Z que ela pode apoiar-se numa base de continuidade a priori. . devido .10
activa, onde encontramos raccords sobre o gesto, campos-contracampos, uma (;1 to de o espectador esperar instintivamente um desenrolar linear ' oruluuu
linearidade mais clássica que devolve a autonomia (aparente) à diegese. Para além do acontecimentos da diegese que a mínima informaçã em ruptura '0111(""t.1
da presença de uma voz off, aqui é portanto a montagem, e o trabalho específico convençâo assume um i níficado manifesto. Mais uma vez, s ri ntínua c: x ~Iit
sobre os raccords, que distingue a lógica temporal da narrativa e a da história. d .scontlnua 5 . prin '(pios rganizadore da trama d film. As prim 'ir.l~ ~.IO
Quando as variações temporais são devidas a uma personagem activa na die- para o espc Ia 101'rOlllo um guia dccisiv ; a undas ao ont r: rio I 'I 11I110,
gese, os sinais de ruptura são mais pontuais. A passagem do presente ao passado ,lraSl m nl,ohlil'.IIIII1I1.ljlllt'lvir.Anarraliva ompôcsc nssim dc um.t rcl.rç.ro
é mesmo tanto mais marcada quanto a fluidez antes e depois permanece idêntica: c omplcxa '1\1111111111111'0' 111 ,,11a.1I,PIOpOSiÇ.1Onu rr.u iva ' ·~pt· r.ulor. I~ CI 'IIU dI'
não são duas ordens de tempo ontíguas ( omo vimos há pouco), mas .1 III .srna 01111.1111.1111
ÍI I 1'111111 J 11111M.I"OIl:

32 II
I. A M< lN IA .1 M NAlmAllVA

«A I1,Htdllv I uma olh: o v lor figurativo do cinema depend d \ (1111itl que IIII~. ~ ln ,dd 1\111',111111
(11'111111). 10lllpkt.11II ·lIt(· l'1II1l1Llg.11.1,((11' d M I , ~,a1.1
mpr ga no controlo d ssaescolha. O filme não converte automaticament o movimento ti. jantar para 11111(111111111.11
o \ '11.\ onvidudos. ;111toda '~t;l sequ n LI, 1.11110
em ~inamismo narrativo e a sua inteligência não consiste em seguir o devir que o afecta orno a atitude dm (OIlVI ,l\, 1.1111(1como hábitos U 'S ob '!lOS I ,10 l'stl.ll!l', ·jlCl,
mevltavelm.ente. A narrativa é uma ordem: sem dúvida ela não se impõe; pode apenas
tanto como a riqu '1.;\ '() III,tI estar que caracterizam esta so i .da I', "o '(lI I\' '1\11
ser presumida; mas aceite esta presunção, já não posso escapar à organização que a
importa. A ruptura crur a imagem social transmitida pel lugar' .ss '!o p(-~ 11\1\
representação cinematográfica quer definir.»
in onvenientes numa noite de recepção. Ruptura na narrativa que substitui 1i
Alain Masson, Le Récit au cinéma, Cahiers du cinéma, 1994.
omentário do romancista, o diálogo da personagem, o aparte do narraclor. E/dlll
de planificação que Hitchcock utiliza em proveito da história.
Um plano inteiro consagrado a um gesto, a um objecto, a um pi ar d ' olhll,
Rupturas de tom esse plano não dura mais que alguns segundos, e é mais importante enquanto 1'1.11111
porque é discordante, autónorno, acrescentado, A essência da monta em p -rm 11 iI
P~ra além dos jo~os temporais, existem rupturas na montagem articulada que ~ diferença imiscuir-se no próprio projecto de unidade - está na emana 50 ti 'SM',\
permitem outros efeitos de narração, outros efeitos de intriga. Montar não é apenas planos (ou mesmo desses cortes) que estruturam a continuidade dout ra form.r,
elabor~r suce~sões:. na citação anterior, Alain Masson alude a isso. Na própria ordem Em Sangue do Meu Sangue (Mankiewicz, 1949), um homem saldo da pti
narrativa, a disparídade dos materiais (planos, sons, pontos de vista, e tantas outras sâo encontra os irmãos que o tinham traído, Gera-se uma discussâ nt rc dt's:
heterogeneidades) permite digressões múltiplas. E sem dúvida, uma vez instalada oferecem-lhe dinheiro, champanhe, um charuto. Plano de conjunto: ,I· '~L
~ma primeira articulação dinâmica, a planificação também tem a qualidade de poder sentado no meio dos outros, recusa o champanhe e depois o charuto; I vania s',
ln~err~mper: suspender, deformar, comentar a acção cujo desenho está a esboçar. ,I câmara acompanha-o, depois a cada um dos seus irmãos, no mesm plano, dt'
A lntrlga existe nessa condição. A dramaturgia alimenta-se disse; acompanhar o a nuncia a vingança que preparou contra um, depois contra o segundo (:1 • m.u.í
desenrolar da acçâo teria poucos atractivo se não existisse esse gesto, esse instante, enquadra-os à vez no mesmo movimento) e o terceiro, Afasta-se, o final do 1'1.1110
~obre o ~~al o olhar .se detém, que a inteligência surpreende de passagem, e que enquadra-o sozinho contra uma parede da divisão. Corte. Os três irmãos são pl1l
e necessano, no sentido lato do' termo, compreender. Quer dizer ter em conta
sua vez enquadrados em contracampo. Também aí a oposição entre os irmãos' .1
reinserir numa totalidade. E essa totalidade, a unidade do movimento narrativo:
personagem principal é sublinhada pela planificação, enquanto a unidad r do L.
abre-se então, dilata-se, para poder acolher todos os ecos da disparidade manifes-
infiel, e a sua rejeição total, são dadas pela unidade do plano.
tada então. Petr Kràl: «Um olho, um gesto, um rosto, concentra subitamente em
Encontramos ainda uma dimensão totalmente diferente nos planos que, '11\
Hitchcock toda a acçâo na sua presença - graças a um grande plano, por exemplo
vez de dividir, de marcar uma cesura na acção, a suspendem por um in t a nt " "
-, a sua vida própria cria um fascínio que vai além da intriga e do «suspense» que,
não concentram o movimento como, por exemplo, em Hitchcockou Manki 'wil/,
de repente, ela resume e dilata ao mesmo tempo, reabsorvendo-o nela ... » Em A
antes o relativizam. Deleuze compara-os a naturezas mortas, em Ozu por rx .mplo:
Mulher que Viveu Duas Vezes (1958), é uma cor insistente, a forma de uma cabe-
leira; em Os Pássaros (1963), um casal de periquitos numa gaiola ... Em Fritz Lang «Ajarra de Primavera Tardia [1949] intercala-se entre o meio sorriso da filha si grlm,\I,
o ro~t~ de uma mulher reflectido num espelho, como num sonho ... (Suprema que lhe surgem. Existe devir, mudança, passagem. Mas a forma do que mud, n. o f.

Decisão, 1944; A Casa à Beira do Rio, 1950; Cidade nas Trevas, 1956). Um plano muda, não passa.É o tempo, o tempo em pessoa,«um pouco de tempo em estado pur »",
que ~ão se mencionaria na história, que nenhuma passagem do argumento teria .No momento em que a imagem cinematográfica se confronta mais intimam nt m li
fotografia, distingue-se desta também da forma mais radical. As naturezas mort d 1\1
prev~st~. ~as pe,rtence à narrativa: envolve o espectador num processo de recepção
duram, têm uma duração, os dez segundos da jarra: esta duração da jarra é pr cI m
da história que e propriedade singular do próprio filme. a representação dos estados mutáveis [... ]. A bicicleta, a jarra, as natureza morte
Em Sob o Signo do Capricórnio (A. Hitchcock, 1949), um homem que acaba de as imagens puras e directas do tempo.»
desembarcar na Austrália visita uma prima: um plano de dez minutos mostra a sua Gilles Deleuze. L'lmage-temps, Édltions d Mlnult, I 8',
chegada à esplêndida e misteriosa propriedade, a apresentação ao dono da casa, a
chegada protocolar dos diferentes convidados, que curiosamente vêm sem as suas
ra as ima{!,'m ,,', podl'll\ .idquirir esta qualidad I' «t .rnpo no 'stado 1'11(l» 1
mulheres. A prima (é ela que convida) ainda não apareceu; sentam-se à mesa, a
câmara - sempre o mesmo plano desde a chegada, diante da impressionante mansão na ondi~.1O dI' \,'1 1I11111111t (I,. no urso de lima a ~ii() (nuo Ullltl.I 11 1IIMI:LtI
- passa por todos os convidados e pára obre lhos, subitamente as ombrado , orno 11111,11di111,1111I11111 d 11111Iiu, ',d no \lIMI, ,lind,I (111('illl/lVl'l '1'".,i\Il'lItl')
do d no da ca a qu lha para fora de ampo. .ort '. ~rand plano dl' 1111~ P S ElIlllntl.11I1I1 1<1'1111>1111
I IlIdl'IIII\I\,I(llllp/l,itodl'l'iI,lIHI'IIII'I'Vlldl'dlll\1111I11

3~
di~'1 .nt .s, d r duas s ri 'S temporais d .rnon irados pela montag '111, -<"IIPI' .nde- E ~Innrrnr lv», pOI 1111111.
11'1111".11 "h.1 dl.II". til .1, II.HIM 11.111I ..".11.1110li 11111.1
-se orno é que esta rupturas introduzidas pela montagem são mpl .rnenros, I('~ ritr », ma~ Ir 1111111111'11111\1ru.
dilatações extremas, mais do que verdadeiros cortes, Elas obrigam, como dissemos, A itar isso ~ '11.1\ ,111111,1~ 11111,1
V "I. na armadilha da 'vi I n i.r. .. 10111'111.1111
a conferir espessura ao sentimento que o fluxo primeiro parecia impor ao filme. P .la pr pria rnoru.iu 'Ill! No .11ll1o 10 d um .nt rio, ximo '1lI qll.llqll·1 0111111.
A evolução trágica (aqui o sentimento experimentado pela heroína de Primavera se há narrativa, é porqu ' a moruag ma constr i, a ond .nsa, :1suspcudv. .1 11111 I
Tardia) é temperada pela montagem: a dramaturgia fica profundamente modifi- rompe, etc. A sucessão das etapas da caça à morsa em Nltnl/k (Rol 'I I 1I!."1lII •
1922) poderia representar a ilustração mais simples di o, LI ainda () LI(10 di
cada, assim como a narrativa apreendida pelo espectador.
Não devemos julgar que essa utilização da montagem esteja reservada ao cinema isolar, no meio de tantas outras acçôes, as que dizem re peii ao i lu, til' ,1\ )11"111
moderno ou, uma vez que dele retiramos duas ilustrações, ao cinema japonês. Em numa linha nítida, de as abstrair de alguma forma de uma I >mp()lalid,ldl IIIU
1923, Eric von Stroheim filma uma obra magistral: Aves de Rapina; não sabemos Ihes é própria; é marcar presença de narrador. Sucede o me mo ~'nÓIII '1101'111t )
quem, entre o montador, o produtor e o realizador (que a renegou com veemência / [ornem e o Mar (Flaherty, 1934), quando a família do pes ad r salvo :I I 'dI' d.1
e sem ambiguidade), é responsável pela montagem final, mas nem por isso ela .~guas agitadas, apesar do assalto das ondas. A montagem rápida dos ·1'1lll'lllm 1'111
encerra menos tesouros subtis. No primeiro quarto de hora, as duas personagens rú ria, os planos aproximados da espuma, os raccords de movim ruo sol» ',l\ I 11\1,1
.nroladas que vêm embater contra as rochas, compõem uma r alidacle pOIIIII.II!.I
masculinas confessam o sentimento que nutrem pela mesma mulher. A cena passa-se
pelos esforços desajeitados das personagens, os corpos esgotad s, a que Ias P,II!'I11.1
num bar, à beira mar; o ambiente está tenso, os planos aproximados sucedem-se,
" de facto a montagem que constrói a história, bem como a lógi a de OIllPII'('I",ill
pode temer-se um confronto (que chegará algum tempo depois ... ). E, no ponto
dos acontecimentos. São exemplos de sequências narrativas imis ufdns nu qll.1I11I1
mais alto desta tensão, intercala-se um plano sobre as teclas do piano mecânico:
mais descritivos, e cuja dramaturgia, por isso, surge ainda mais natural. AI '.11',111 ,I
movimento nervoso, sugestão de uma música dramática. Depois um plano das
ralávamos de filmes nos quais a suspensão da acção era excep i nalj aqui, '1.1 .1"
pessoas que passeiam no molhe, descontraídas, alheias ao drama que se desenrola.
contrário a regra, e a tonalidade narrativa assume o ar de um episódio :Id 1'11\.11,
E por fim a câmara enquadra as ondas, o mar vazio, o espaço aberto ao infinito. A
tensão abrandou, regressamos ao interior do café, ao piano mecânico, a conversa que parece acontecer por força das coisas.
É sem dúvida o que inspira a André Bazin a sua famosa página sob r · :1«111(111
retoma. A montagem da acçâo, do confronto das personagens, foi, também nesse
momento, moderada por esses planos intercalados, essa suspensão do tempo que, 1,Igem interditas":
no sentido mais forte, alimenta a intriga para o espectador.
«Quando o essencial de um acontecimento depende de uma pres nç Imull, 1\1.1di
dois ou mais factores da acção, a montagem é interdita [...] Seria In on bfv I q\ll
«Anarração é uma sucessão de hipóteses, em parte modeladas sobre as das personagens. famosa cena da caça à foca de Nanuk não nos mostrasse no mesmo pl n "~ 1<111I,
Anarrativa não é dada, ela tacteia. Paradoxalmente, esta consideração reconhece à ima- o buraco, depois a foca. Mas não tem qualquer importância que o r to d~ qu 1\111
gem a sua verdadeira riqueza. Afalha, a relação, o uso incerto do detalhe, a alternância do seja planificado ao gosto do realizador. É necessário apenas qu unldad \p li 11\1
argumento e da intriga são algumas das peças desse trabalho hesitante: narrar o que se vê.» do acontecimento seja respeitada no momento em que a ruptura d t lr n IUlfl\lul.,
A. Masson, op. cito a realidade na sua simples representação imaginária. Foi de resto o qu I. lm 111

compreendeu Flaherty, excepto em alguns momentos em que obre p I 11 1i ',li


consistência. Se a imagem de Nanuk espreitando a caça na orla do bur dI ql 10t
Para a montagem, construir uma história não é portanto apenas impor uma uma das mais belas imagens do cinema, a caça do crocodilo víslv 1m nt r ,,11/111111 111'
«montagem» em Louisiana Story [1948] é uma fraqueza. Em contrap rtlda, n m \1110
linha (o que permanece essencial), nem inflecti-Ia (o que em múltiplas direcções
filme, o plano-sequência do crocodilo apanhando a garça, filmado num an t. 11111lI,
o cinema moderno sabe utilizar), é também temperá-Ia, dar-lhe um outro valor. é simplesmente admirável.»

Muitas vezes evocado, este texto é aliás também muitas v z s mnl iUII'I!'11
Narrativa documental Lido: não se trata de uprimir a montagem, nas sequên ias d 'S rit as, (I';I! ,I ~ . 11(ItI
Ainda uma palavra sobre as relações que ao redor da narrativa tecem o orde- c nntrário de int grar n: lógi a da montagem prin ípio do plano ~ 'q\! 1111.1
namento do real e o das imagens. O cinema documental oferece a este respeito Toda a ~ r a de f'l·.did.ldl' dcsI " toda a sua C r a d «r vela fio» , 'Nl. 11,11)M') 11.1

um campo particular de reflexão. Mais ainda que o cinema de ficção, finge com-
por com uma matéria e uma ordem do mundo que lhe preexistem: a evolução, a • 1',,1.111.1(1
•• 11,1011,""li .,11I ,( ahlrr, til/ ("I/hllll CIIII') \, (' IClilI",td"di'pul 111(I/lr., I

transformação seriam [enórn no n 'ss. rios, 'n50 o r ultad d um ,lIlifl i , ,/"r Ir tilll/llll I. I 01 ,,111111. ,li, " ")')')

\6
.dl '11\.1l.1111'1111. 111 111 1111 1.llllt I ~p 'I\lV,I', 11111111
Aqlll, ( .1 1110111.1)',
unidade do plano, '0111 na sua unidadc afirrnada.o quc 6 (pm,\v·I.lll.IIlirdo
di~p'rS:la.II'II(,.llIdllltllllllllllllllldlloln'l d.I~·lllllHi.I.l\dlfl'1 111~l.ll(fl
momento em que, por outro lado, a planificação da acção e do espa o .sr.rbcleceu
M.I~, olhn ndo lO1l1 111.11.IIIII~.IO, .Ipl'1 'b 'mo nos de 1IIl' m divl'IMI~ 11111111111
outra norma. Como no exemplo de Sob o Signo do Capricórnio descrito mais atrás
toS de a LÍvida I, '~I,to li '.1 los, impli itarneru , '111 POll(:\S llnh.is n.\lI,11 ,1\
- mas ao contrário - é a ruptura na lógica dos planos que produz o significado.
1I11lilOprecisas: 1 'ma dos trabalhos de alvenaria, a r 'Ia ôcs S '!lI im ·1It.ti, do
No meio de uma cena com vários planos, impõe-se um plano-sequência, com
filh mais novo com a vizinha, e, mais marcada ainda, a f itura 10 p.to, (h
uma unidade própria, aparentemente heterogénea. Bazin, nas mesmas páginas,
distingue narrativa e realidade - com razão. Mas é para denegrir uma em proveito ccna em cena, é esta última actividade que estabele e a m inuidadc do di,l
da outra: «A mesma cena, consoante é dividida em vários planos na montagem Entre a amassadura da manhã e a cozedura da tarde, p r duas r 'rson;lgl'lI\
ou mostrada em plano de conjunto, pode não passar de má literatura ou tornar- liferentes, uma multiplicidade de gestos participaram na sua elaboração, M'III
-se grande cinerna.»? Aqui ele deixa-se sem dúvida arrebatar em demasia: é por que o espectador se aperceba imediatamente das suas ligações; é d 'pois <JlIl'l,ll'
surgir no centro de uma narrativa construída que a realidade parece de repente se dá conta que efectivamente lhe contaram uma história, a da feiuir: Sl'IlI,III,d
tão bela, tão entusiasmante. Poder-se-ia imaginar um documentário feito com 10 pão. Por exemplo, uma personagem que transporta um fardo .0111 :t ,~\I,I
dezenas de planos-sequência mostrando garças comidas por crocodilos, seria f()fquilha, no início, só encontra lugar na história dez minutos d pOIS, {(u:Illdo
isso por si só «grande cinema»? Evidentemente que não: é o surgimento de um o fardo serve para acender o fogo no forno. Os indícios narrativ . r .lru ivos ,I
«pedaço de realidade», tratado como uma entidade, e oferecido como tal pela .sia «história do pão» estão assim disseminados no meio de dez outr g 'slm do
montagem, que faz da narrativa à qual pertence um êxito ... trabalho da quinta, mas compõem, no fim de contas, uma verdadeira hisI61 LI.
Também no documentário a essência da narrativa depende do equilíbrio E para ser completo, o realizador mostra ao almoço o patriar a a or~a I' P,II,I
entre ruptura e continuidade estabelecido pela montagem. Entre a dissemina- .1 refeição da família um pedaço de pão que tira de uma gaveta e, I'MIlSl:t rd«,
ção das notações e a sua selecção. Nos exemplos citados po~ Bazin, o plano- um dos filhos semeando o grão no campo: imensas elipses que rem 1 m pal.l .IS
-sequência é notável porque, precisamente, oferece um risco de disseminação duas extremidades desta «história» da feitura do pão: o seu início, e seu filll."
(das acções no interior do plano); e porque esse risco assumido se encontra, no Aqui a montagem dispersa, mas as imagens têm suficiente continuidad . int 111.1
fim de contas, a servir a linha da narrativa. Eis o que de facto é notável: que esse pa ra que a narrativa se estabeleça. Pode dizer-se, de forma mais pre isa l:tIW'/,
pedaço de realidade encontre o seu lugar exacto na organização previamente que a montagem dispersa suficientemente para criar um realism próprio ,10
estabelecida pela montagem. «O realismo reside aqui na homogeneidade do documentário, mas que globalmente está organizada para que a narra :to 11,10
espaço», diz ainda Bazin. Seria mais exacto dizer, julgo eu, que o realismo reside se desagregue. Este equilíbrio subtil mostra uma outra faceta da moru.u; '111
sempre na desordem aparente da representação, e que a desordem, aqui, está narrativa, que no documentário deve ter em conta a aparência de desord '1111I11\
«em embrião», está potencialmente, na homogeneidade do plano-sequência - ,ISconvenções elegeram frequentemente como marca do real.
porque esta admite uma possível dispersão dos elementos do real (enquanto a
ordem, narrativa e dramática, está evidentemente na planificação, que domina
a cena). E a narrativa, organizada pela montagem, encontra de algum modo a
sua justificação logo que, ousando a desordem potencial do plano-sequência, A montagem em acção (1): Welles, ou a narrativa
encontra aí de facto o puro intermediário da sua ambição. Como se a realidade,
na inocência da sua entro pia, emergisse apesar de tudo para corroborar a linha Se é particularmente interessante estudar a utilização que We\l faz Ia.~ pos
narrativa da montagem. sibilidades da montagem, é por ele ter afirmado várias vezes a import ân 1,1\lIH
Encontramos o mesmo princípio, num estilo completamente diferente, quando .oncedia a esta operação, mas também porque um dos temas principai da sua olH,1
~ disseminação, ou a desordem, são artificialmente propostas pela montagem. ~a continuidade. De um ponto de vista tanto formal como diegéii 0, a ((li '~I.ICl
E por exemplo o caso em Farrebique (Georges Rouquier, 1947), documentá rio da ruptura e da ligação, da continuidade ou da distinção alimenta a maior I),II\('
sobre a vida de urna família de camponeses de Rouergue. Durante o primeiro dos seus filmes. O princípio aqui não é o de propor uma exegese ti 'SL\ oln.r, ,I
quarto de hora o espectador assiste aos trabalhos e ocupações de um dia na quinta: [ue não faltam rn mt: dore , mas poder confrontar a uma ampla apr iXOIl:,\Il.11
carrega-se uma carroça, dá-se de comer às galinhas, acende-se o forno, prepara- matéria a ara t ,tI~ti ,I~ ~1.1montagem narrativa tais orn a aba mos ti' as d('/IIlII,
-se a massa do pão, etc. Três ou quatro personagens são assim acompanhadas, Por c ta m 'SIlI.I 1.1/.\11,11,111-nunr m S aqui - nã é d rodo a P -rspc 'lÍV,1 dt'~\(
livro na 1\111'111.1ti ,ti11I ,I 1(1ll'Illatribuir a rnontag -m ti ,(jniliv,I dm (tllll'~ ti'
W -llcs: 1l'llllIll d 11111111111111.11 rlll \011I' tos OIllO S' 1l0S .lpll'~I·I1I.IIII,u-ut.uuln
9lbid.
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38
impl .srn rue evitar aqu les em qu e p d onsiderar que a I d 11dtOIllIlIll:lgem I': pl.lndo O ,1\1,1" 1.1111"1,,I 111"l.ltlll ''1110Xjrll,ldo, .1 ,.\IId.1 111.11111 ( ''11(11.1 .1
é estranha à organização geral, e ao projecto global do realizador 11). .uuplia .0 ti 'S~l' til I.tll" \. 111111IIIIIII'I/l'I\Ihl'III. IÍlo d.1 11.1I1.ltlV,I.!Itll' M V.II
s 'guir: ap sar dos POIlIU\ I 1\1.1'li ssivos, s .mpr . () m '~I~I()OhJl'll IVII, I 11
11I' m enigma, qu . ~.I() vb,ldoli, Mas a ontinuidad . rab '1'·II:I.p ,1.11M 'tI\,11I
o Mundo a Seus Pés: o interior e o exterior
ti 'pressa choca m um raccortl muito mais complexo. orn c! '110, l·IH\II.IIIIII
A intriga de O Mundo a Seus Pés baseia-se na questão de poder ou não penetrar .1 janela, com as sa adas góti as, ocupa toda a superf i do '~r.I, p.•.,\.IIIIII\
a verdade de uma existência, compreendê-Ia a partir «do interior», de tal forma do exterior ao interior sem nos apercebermos. Os detalhes arquuc ·Iur.d~ qll
que os seus mecanismos e as suas razões possam ser partilhados, Conhecer o -nquadravarn a janela iluminada são substituídos por elemcnt s de 1·( 01.1\.111
segredo de «Rosebud», saber o que fez correr Charles Foster Kane, e o conduziu interiores, cortinados, divâ, que surgem devido a uma extin ã rn m '111.IH'.Id.1
à queda, é ao mesmo tempo a busca do jornalista do filme, e a aposta da própria [uz.. «E é preciso tempo para que as certezas vacilem e o espe tador ()I11!,1!·!'III!.I
narrativa, tal como Welles a conduz. As actualidades cinematográficas tentam que um fundido-encadeado o transportou para o quarto e que a luz vem :lglIl.I
primeiramente esboçar o retrato do magnata: manifestamente não conseguem, d . fora, da noite escura em que há pouco estava mergulhado, atrav 'S d ·st.I ,.IlIrI,1
ou conseguem-no mal, ficando à superfície, e contentam-se em alinhar alguns que não mudou em nada e diante da qual se recorta~ s~m.pre as ~ rnbras ti· 11111
lugares-comuns. Esta sequência assume de algum modo a forma de aviso: o cinema lorpo e de uma cortina, que passaram da esquerda a direita devid ) :. nlll(I.III~.1
é superficial, não pode esclarecer a verdade íntima das coisas; é de facto o filme do eixo.» 12É a «oscilação das certezas» que é notável aqui: para r ,:tllz.lf .1 p.l\
das News on the March, que no interior do próprio filme de Welles, manifesta a \.Igem do exterior ao interior, Welles perturba a lógica ,d~ n ssa ~ r 'p<,.IO; o
sua incapacidade de investigação eficaz. É desta impotência cinematográfica que que deveria fazer-se na continuidade provoca, ao contrario, uma II1V'I'S.IOti."
partimos, seguindo o investigador, na pista do «verdadeiro» Kane. E é, portanto, I .ferêncías um momento de instabilidade.
com o mesmo desafio que se encontra confrontada a mon.tagem wellesiana, o Toda a ambiguidade da montagem narrativa por meio da continuidad . of'·,· (' ,\I
de estabelecer uma ponte entre interior e exterior, ou, mais exactamente, entre .iqui ostentando, se assim podemos dizer, os efeitos sensíveis da ua utiliza"Io: ( .10
interioridade e exterioridade. É ainda de uma problemática da continuidade que passar do exterior ao interior «como se nada fosse», é ao te~t~r a~agar :~s1I1.~1t.I\
se trata, e da capacidade da escrita cinematográfica a explicar 11.De facto, tem-se do obstáculo, que Welles provoca o incómodo; como se a evidên I.ad ) dISP()~II.' o
a impressão, ao longo de todo o filme, de que a diegese acumula os elementos de \ olocasse ela própria um problema, Como se devêssemos necessana~ .ru '~ 'I~III o
ruptura, obstáculos à visão ou à compreensão, limites intransponíveis na passagem .11tifício da continuidade. Paradoxo notável: quando os pontos d VISIa 'XI '1Itlll"
de um mundo ao outro, e que pelo contrário a montagem de Welles se empenha , . multiplicam, os raccords de continuidade (a janela) asseguram a li aç:ío, 111,1\
em estabelecer pontes, passagens - «encavalgamentos», como diríamos na métrica .issirn que a passagem é qualitativa, então o raccord de continuid: d· (a ),\11·1.1
de uma frase que baralha as separações entre os versos ou estrofes. imutável) torna-se a causa de uma ruptura - pelo menos sensível. • xist '1\1111'~IIIO
O primeiro desses raccords de continuidade, que permite ao olhar do espec- momentos em que a continuidade, apesar de intencional na narrativa, I 'vd.1 (.(,1
tador ir além da diversidade dos planos que lhe são propostos, e portanto esta- própria a sua arbitrariedade.
belecer uma ligação entre eles para além da sua heterogeneidade, é um raccord Um pouco mais tarde, produz-se a mesma ambiguidade, através d ' um Jogo di
extremamente original, pouco utilizado noutras situações no cinema. Trata-se planificação espantoso, também aí no momento de entrar no interi r d ' um.r (.".1
da permanência de um ponto luminoso no ecrâ, que não muda de lugar apesar P 'Ia janela. Trata-se da famosa sequência na pensão de família,.muilas.v ·:t.es, h,lIl.l
da sucessão das imagens: quando o castelo de Xanadu é visto de vários ângulos, d .vido ao dispositivo em profundidade de campo que permite seguir o di. IlIgo
com ambientes diferentes, mesmo quando é visto ao contrário, reflectido na água do adultos em primeiro plano continuando sempre a ver ao fundo, na nev , I)
de um lago, uma janela iluminada encontra-se sempre no mesmo local do ecrâ, jovem Charles que brinca. É a forma de entrar na divisão que n int '1:'S~,I.11[" .
Plano A: a criança no exterior faz uma bola de neve, e lança-a na d ir C, .10 d.I
10 É aí que se encontra a ambiguidade dos produtos «de estúdio», se, ao confrontar lógicas dife- l ârnara. Corte.
rentes, como era frequente em Hollywood, ninguém assegurou a síntese até ao fim. Argurnentisraís), Plano B: num raccord de movimento, a 120°, a bola vem d sfazcr S 'Ot)1 1,1.1
realizador(es), monradoríes), sob as ordens de um produtor mais ou menos presente e mais ou menos rabuleta «MR KANE> n ARDING HOUSE». orte,
em situação de avaliar, nem sempre tinham, longe disso, a mesma ideia do filme. Pode ler-se a este
Plano : r (.?,I·••MI lU pl.mo A, ma m p mo d partid de um 1/'Il/lrllill,1'.
respeito Hollyioood. Ia norme et Ia marge, de Jean-Loup Bourget (Paris, Nathan-Cinérna, 1998).
11 A este respeito será útil ler o muito pertinente capítulo consagrado à «estrutura» do filme
ti 'r uo, qu Il·vrl.l '1\1( I I . 1\1.11.1,
d 'f'a to, ·SI. já no iI1t.rior da cas.l; ('SI' pl.ll\lI
no livro de Jean-Pierre Berthomé e François 111Omas, Citizen Kane (Flammarion, Paris, 1992).
Numerosas explicações técnicas muito pre isas, m rela 5 aos raccords que estudam s neste
desenvolvimento, sã aI ~ rne idas. preseru ,lphlllo, n ",se plan . d v -lh milito, I' 1/1/11

~o
ó terminará após algun minuto (com um corte) para reen 01111.11
11111
ponto de I l"indJ'ooh\l.ltldll 1 1 111.1'11 111 1.111I1I11I.1I\1I1,,1.1(,1I11.11I.11I1I1.ld.1\1
1I.1\.lqlll
vista exterior da casa.
Ih·s .rims 1\1.11110111 1111.I, 11\1111 1\.10, pOl outro l.ido, 1111tito III.ti\ 111\1\11111\11
Esta planificação de três planos é interessante porque provoca, mais uma vez, 110fi lrnc, W·I\ ".\IIl1dlll'llI .1 I 111p.\l1 il ulu r os rarcord. de 'OI1IÍIlIIid.u] ' 1\1I.llIdll \1
uma sensação de mal-estar, de «batota», em relação ao espaço. De facto espera- I rnt a de exprimir gróllldl'\ l·lip~I".\I -mporais. ra estas são rI' .qu -m 'S, 11111.1
V('/I\"1
-se que a articulação entre os dois primeiros planos se faça no exterior: para que c.ida um do testemunhos 111' on tituern o filme brc não uma l'1:tp:t d.1 vill.1
a câmara se vire para a tabuleta da pensão da família, é preciso que ela tenha ti • Kane, mas com frcquên ia um largo período, cuja evo a á v .rn ~()I ll'pOI \1
seguido o gesto da criança no exterior, e que se encontre entre a criança e a casa. ,IOS outros. Examinemos de forma mais precisa cada um des es raccords, d ' 1\11\
No momento em que o plano C retoma o plano A, o espectador espera, portanto, ,dguns ficaram célebres,
logicamente estar ainda no exterior. Como não é esse o caso, o momento em que Em primeiro lugar, aquele que anuncia precisamente o episód io d: p 'I1S,IO11.
toma consciência de estar no interior coincide, como no exemplo precedente, com l.urulia: o jornalista abre o manuscrito das Memórias de That b r " na p; l'ill.1
um sentimento de perturbação. O plano B não é apenas um insert informativo: ele branca, a câmara descreve um movimento para a direita, como para n S P -rruit l:
articula-se impecavelmente com o plano A e desloca-o totalmente em relação ao ler as palavras escritas à mão. Sobre este fundo branco, progressivamem " a cs Iil.1
plano C. A cena que se segue é construída com tanta minúcia segundo o princípio ,Ipaga-se, e, sempre no movimento da esquerda para a direita, apare c um r;lpazjnhll
da unidade (de lugar, de plano, de olhar) que não se pode considerar como aciden- que brinca na neve. A passagem do papel à neve, das palavras à p rson:ll-\ '111,.1
tal esta planificação «em ruptura». Ela manifesta, aqui também no momento de passagem de mais de sessenta anos, faz-se, portanto, da forma mai imp 'I' 'pl Ivel
uma passagem exterior/interior, o sentimento de que a continuidade, facilmente Ilue existe, com uma vivacidade indubitável no entanto, e sem que algum «.\.dlO>I
realizável na forma (na narrativa), não é tão fácil nem tão evidente no espírito. ~ .ja de que ordem for torne manifesta a distância temporal. O rncsrno a 0J1It'll'l,1
Estranha hesitação, no limiar do conhecimento, da intimidade, a dessas con- no final da sequência, quando, ao abandonar o trenó que a neve cobre, o olhar, 0111
torções que dão à continuidade um aspecto de artifício, quando teria sido tão .1ajuda de um fundido-encadeado, reencontra o papel branco sem qu n 'nhUIII.1
simples utilizar um raccord clássico ... através dos paradoxos voluntários de Welles, tI ansição seja manifestada. Notar-se-á na passagem que a ligação ronol )l'iLI
desenha-se a perturbante dualidade da montagem, capaz de exprimir ao mesmo I' dada (tal como o afastamento) por um movimento lateral, enquanlO que, 1111
tempo a evidência e a incerteza. I oração da sequência, o raccord exterior/interior se faz na profundidade da i111.1
Um terceiro efeito de montagem, mais à frente no filme, ilustra ainda esta g .rn. É uma figura que regressa várias vezes durante o filme: o movirn 'nlO~ dI'
forma de colocar o espectador «do outro lado», enquanto ele se julga ainda aquém memória fazem-se como que à superfície das coisas, enquanto as aproximnç )t",
do obstáculo. No momento em que Karie, Leland e Bernstein vêem na montra do ,ISrevelações da intimidade, como vimos, efectuam-se através de uma p .n 'II.I~.111
Chronicle a fotografia dos colaboradores do poderoso concorrente, a câmara faz oncrastante. Não será mais difícil passar algumas décadas do qu '11lJ':11pOI
um travelling em direcção a essa fotografia, até apagar as margens do quadro; após 11111 a janela? Poderíamos pensar assim, mas a montagem deWelles nã onvid.i »
um clarão luminoso, que depois compreendemos ser o de um flash, as personagens I .sponder afirmativamente: é na passagem «qualitativa» que a planifi a fio 1I1:1I!.1
abandonam a pose e animam-se. Estamos já alguns anos depois, e os colaboradores .1cesura, e não na do tempo.
em questão passaram-se para o inimigo, reunidos para festejar o Inquirer. Aqui o Outra sequência na qual os anos «voam»: os famosos pequenos-almoços '111II'
raccord manifesta, portanto, não apenas a passagem exterior/interior, mas também Kane e a sua primeira mulher, que vêem os protagonistas envelbe cr, a SII:t 1('1.1
a passagem dos anos, e a mudança de sorte dos dois órgãos de informação. Lugar, ~'IO arrefecer progressivamente, e a sua aparência tornar-se sombria. Para :.1(-111
tempo, acçâo, tudo se viu modificado no próprio momento em que nada mudou na d' a narração desta história conjugal constituir um bloco, enquadrad ) por doi,
imagem! (No sentido literal do termo, uma vez que a «foto» de partida é de facto, movimentos de câmara simétricos englobando o mesmo cenário, exist . a \\111
desde o início do plano, a incrustação do grupo vivo na montra). Se esperamos que eleito de repetição dos raccords no interior da sequência que c nf rc ao 'MO.I
a montagem dê conta, mais ou menos, do movimento da narrativa, este raccord é mente cronológico uma fluidez acentuada ainda pelo tom dos diálog s. ,OIlH)M'
no mínimo paradoxal. Em todo o caso significativo de uma preocupação reiterada se tratasse de uma só conversa, filmada em campo-contracampo, em qu ' al~\II\.,
da parte do realizador/montador, relativamente aos efeitos de coincidência entre cortes entre as personagens são substituídos por efeitos de fifage' J. A posiç.io i111\1
ligações diegéticas e ligações narrativas. i.ivel dos protag ni: t. s, a p rmanência do cenário, e esse m vim 'nLOart ili i.il .1.1
Trata-se de facto, nos três exemplos que acabamos de evocar, de sinalizar a t. rnara no morn -nio -m que o «olhar imaginário» pa sa da per onag '111m: "'ldill.1

evolução da narrativa, tanto como sublinhar o salto que esta deve sofrer, para
passar de um elemento da história a outr . Se a montagem é aqui narrativa, ela 1\Filllgr (\\(1111"'1111.1,11'"1111111'1Iwvollll1l.riO.g r.rlmcnuobridour.rv ,d('IIII1.ljI,lllIlI.
IlIlt.lI. pid.l. '1"1 \( "I' "111"" 1111111"
11111.1
IIll.lgrlllllllll r.llt.1d d filli~,lCIl'\p.'ll.tI,
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é-o no, nrid pl no ~ rt do Irmo: d .scri fio xpre De rev 'r o .ivan
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."llIpIOIl\I 111111111,/1'11 ( I I)
para a personagem feminina, todos esses elementos, que fizer.11I11'1. '~.IIII.me a I- .\ hi~I<,>1
i.1til 11111111111111111111 1111111.111111101'0110 . p.lglI 1'.11.1dC)l1I11II OUI 11111.1
notoriedade desta sequência, contribuem de maneira sinérgica para a sua fluidez. IIII.lh 'r jOVCIII. 111.1,1111111 '111.11111
.11,111101 I .scrvado ... EM.I hbI6d.llllll· /.1'11\01111,11
Procedamos também aí por comparação; sabe-se que Welles utiliza quando o deseja 11.\1\1.rinh ·il'():' . Idl'llllllIllIll 111111 ,1,\ 'OIH' eu, C O v .lho hOI\l '1\1qU'1 11I,11.11o
as rupturas bruscas: gritos, luz, grandes planos, poderiam ter aqui vindo escandir 'lI p der s brc o 1I11111do,
~ohl . ,I r'. lidade, fazendo rn que .xista li IUjJO(111('I
as etapas da degradação das relações entre os esposos. Mas não é nada disso, é I untado, e que p ssa s 'r .oruado aquilo que se desenrol u... mp'" .nd . ~ . PC)!
mesmo uma vontade de continuidade que preside à organização desta sequência, 11111 lado que a personagem tem uma dimensão bem wellesiana: mo o uinl.m
apesar dos anos que passam e cristalizam as distâncias. d . A Sede do Mal (1958), ela procura não só controlar a realidade, 011I0 11\.';,
Montagem em continuidade, ainda, para a série de representações da segunda I'X:I tamente controlar a narrativa dela. Todos os heróis de Welles t ruam a~,~illl
esposa, Susan Alexander. Estas sobrepõem-se numa brilhante sequência de varia- marcar o seu poder modificando a posteriori os sinais da realidade (1 an . nos .~I·1I\
ções, planos das manchetes dos jornais, planos do público, do maestro, de Susan jornais, Quinlan nos seus relatórios). Mas para além desta persona .m ara , .
cantando sob os projectores ... A banda sonora é contínua, enquanto os jornais, IIstica, apreendemos por outro lado que a intenção central do realizad r vj~.• (I
cujos títulos variam, noticiam espectáculos sucessivos, em várias grandes cidades PiO esso de constituição de qualquer narrativa. A questão que no fundo 010.1
do país. Não apenas o espectador passa assim sem choque de uma data à outra, ,I história contada por Karen Blixen, e depois por Orson Welles, é a da di~· r ·1l~.1
como percorre também uma trajectória dramática, uma vez que perto do final da entre instantes vividos e episódios contados. No próprio seio de um pro '11\0
sequência a voz de Susan extingue-se, enquanto a lâmpada do projector se apaga mirnético, como distinguir o que faz a história (o narrável) do que 6 fi a vivido
docemente (sendo o plano seguinte o do suicídio de Susan). Existe portanto uma (11:10fixável através de uma forma narrativa)? Não é essencial o conteúd 'xist '11 i.tI
progressão e variação (esgotamento), mas Welles monta esta sequência numa perfeita d.1 resposta dada a esta questão, mas a forma como um filme poderá apres '1l1: 1.1.
harmonia linear. Também aí, não se trata tanto de descobrir como de percorrer. .orno estabelecer na narrativa fílmica uma distinção entre o que sobr 'SS:1i 11:1
Não são encadeados qualitativos o que a montagem nos convida a fazer, ainda que u.urativa e o que não sobressai? A montagem, mais uma vez, propõe uma S 11I~·.1c).
os acontecimentos que aí se desenrolam, como no caso dos pequenos-almoços, Ela estabelece, no decorrer do filme, uma distinção entre as arti ula 'S 111'

sejam importantes na sua própria progressão. Mais exactamente, são encadeados lundarn a narração. Num primeiro tempo, tudo o que organiza as li a ) '5 'Ill
de uma outra qualidade. . rorno da personagem principal. Este é um homem solitário, isolado d mundo ('

É de facto, em definitivo, o que tende a mostrar esta prática da montagem em dos outros, que se recusa a estabelecer seja com quem for relações que p d .ri.uu
O Mundo a Seus Pés: que na própria orientação narrativa existem várias formas de ohrigá-lo, «consumi-lo». A montagem utilizada para ele, quer dizer o onjunto dOI\
tratar a continuidade, respeitando ao mesmo tempo o mínimo de linearidade que ruccords que rodeia as suas aparições, distingue-o por isso. Na imagem o horn '\lI
('~t;Í sempre encostado a um fundo que impede a visão de se prolongar para além
exige a narração. Assim, conduzindo uma narrativa através de pedaços dispersos
de recordações, de representações, de subjectividades, Welles mantém ao mesmo cI -lc: um grande respaldo da poltrona em vime, uma rede, a obscuridad da noite,
I onstituern obstáculo a qualquer tentativa de um olhar longínquo. A p rsonng '1lI
tempo a aposta de lhe conservar a unidade, mesmo assinalando as rupturas essen-
ciais que a desgastam. Uma linha directriz: o apagamento das cesuras temporais; . assim cortada do seu ambiente pela disposição cenográfica. Mas a lisa fio 111'
um princípio de ruptura: o artificio sublinhado da passagem ao interior. Não poderia surgir da planificação, para mais na lógica narrativa em que film' \ .
são apenas duas séries de raccords diferentes, são dois tipos de ligações em que a ' u ua, é também quebrada. Quando a personagem dialoga com os seus int .rlo \I
própria distinção possibilita reflectir sobre o princípio da narrativa: aquilo que faz rores, quando está em relação com o campo hipotético que se abre diaru ' ti ·1.1,

a sua unidade, aquilo que lhe permite exprimir a diferença. Graças à montagem, .1 .rrticulaçâo da montagem deveria poder mostrá-Io. Ora precisarnent os '()II!.'.\
Welles permite à continuidade narrativa não arrebatar no seu movimento todas as q\le articulam os campos-contracampos de que ela faz parte separam espa os S '11\
identidades, todos os fragmentos do mundo: ele junta à força do fluxo a expressão 111.dida comum entre si. No sentido literal do termo, não têm prop r 'S om
do seu obstáculo. paráveis, não se organizam nem se constroem segundo uma ordem ontínua. N.I
conversa inicial entre Mr. Clay e o seu contabilista, a profundidade de :1l11pO.
muito importante por trás deste, aprofundando o espaço de maneira ara t 'r(s, k .1,
Une histoire immortelle: o que é narrável e o que não é
I nquanro nos plan rn ()ntracampo a visão estaca na personagem d S'lI 1':111.10.
É um dos últimos filmes de Welles, rodado para a televisão francesa em 1966. I'"xiste um não-rnrrrml dl' pl'rsp tiva que quase poderíamos hamar aru i ratrorrl.
Adaptado de uma novela de Karen Blixen, retoma o tema de forma depurada: um M.IÍ qu um. IIIIHIII.I, ( 1111I.' opo: i ã entre s doi amp s qu aqui S' '11 cn.i.
homem idoso, Mr. Clay, pouco antes de morrer, decide encenar, para que aconteça I·h r p til M' .\ ,Iqlllllll" dtl ddlogo .nrr lay O marinh .iro rc rur,ulo p.11.1
realmente, uma lenda ontada pel s marinh ir em t dos o rnare: do mundo. le.tli'lar .1 h.\IOIII 111111111 I 1111'1im .lro plano, vista -m 1111/("("(', 1:1'1, I\()hlt·,\~.til
um tal efeito de perspe uva que a pcrsonagem na outra ponla p.Ul'U' I Jcgada fll.U110S11\1111.1
101',11 1111 11 11111111.1, olld,' I" I.Hlo ~'II.II.I d" 10111.11,1111'\11111
para muito longe no campo, e tão afastada daquela que, na perspc uva da plani- d' man 'ila ~lIlIIII.I, o \111 ".tI 11111.1
lt·ft'i~.lo. A pl ·~~.I,,I ohM'qllimitl.ldr, \I !"1\
ficação, está hipoteticamente à sua frente, O raccord (imagem e som) estabelece Irssionalism <.1m Il.ul" 11,,1"1.1111 .1 .1 ~.I(), irnnsmit indo lhe 'SSl' .I~p ·,10 lIII.'"
uma continuidade de facto, mas esta mais não faz do que realçar a disjunção dos sonhado quc o 'pi~6dio tI,·v, I 'I, ()1l10uma v a âo SlI' .stiva no s -io ti' 11111,1
espaços em presença. Obviamente, a planificação integra-se numa unidade de u.rrrativa mai at ma a()s [ctulh -s. gestos sucedem " S objc LUsup.u 'U'III
espaço e de tempo, mas essa unidade é de algum modo contradita pela oposição 11.1mesa como por en anto, ma a rapidez de execução e o de lizar dos plano, M'III
dos «mundos» habitados pelas personagens, e a oposição dos espaços que elas hoques nem rupturas apenas reforçam a sensação de uma liga ã OIlSI.IIlIl', til
habitam. Este antagonismo verá a sua lógica levada ao extremo quando, no final lima tensão temporal estrita que ordena os fragmentos. É a h i t ria qu ' ti . oru-,
do filme, Mr. Clay desaparece pura e simplesmente da planificação, escapando a Implacável, tal como foi sempre contada, e tal como deve realizar-se, s 'gllll 10.1
sua própria morte à narrativa; o fluxo da diegese contorna esta personagem que vontade do dono da casa: necessidade e linearidade da narrativa e tâ n: h.I~' d.1
se inscrevia resistindo, a contra-corrente das articulações habituais. Illontagem.
Mas nem por isso estas estão ausentes do filme. As acções comuns, os movi- Completamente diferente é o procedimento para a noite de am r qu ' :I jov '111
mentos da intriga que pedem uma representação «mecânica», fazem uso delas de o marinheiro vão viver. Fechados num quarto no meio do qual se cn 01l1r<1\1111.1
forma muito lógica. Assim acontece com as deslocações do contabilista na cidade: r.rrna rodeada de cortinas de musselina, os dois saem literalmente da hisdlll.l,
raccords no movimento, raccords de direcção, planificação linear presidem a estas l'~ apam-se dela, no preciso momento em que Mr. Clayos imagina a I1SIIIII; LI,
acções, e em particular ao seu encontro com Virginie. Os seus gestos, os seus () encontro dos dois parece algo completamente diferente do episódio, m 'SIllO !II('
passos, são acompanhados por uma planificação que confere unidade e coerência 1 .nrral, de um argumento pré-escrito. E enquanto Mr. Clay, na varan Ia, assbl '
ao tempo que demoram e aos espaços atravessados. Articulações simples, para .10nascer do dia, ao apagar das lanternas, e declara a despropósito: «É ap 'nas 11111.1
gestos que pertencem a uma história, para histórias que se inserem como tantos história ... a minha história», aqueles que se esperava que a representass'l11 viv '1\1
outros pedaços organizados com coerência na intriga contada pelo filme. Este, lima coisa completamente diferente. É esta distância, esta subversão Ia orcl '111
enquanto narrativa, ordena os planos, constrói os movimentos, procura as ligações IlIIposta pela narrativa que a montagem assume.
e efeitos de continuidade. Ordenação legível, esperada, em que os fragmentos Os primeiros falsos raccords surgem quando Virginie, antes de se deitar na C.III1.I,
encontram cada um o seu lugar e a sua função num conjunto dirigido e assinalado .Ipaga as velas dispostas diante dos espelhos. Os planos sucedem-se mostrando .1
por elementos de cenário, e uma cronologia da acçâo cuja lógica temporal não ma virada para a esquerda, ora virada para a direita; ela sopra uma, dua , I r 'S v ,LI"
sofre nem discussão nem ambiguidade. Durante a discussão no exterior entre o ()~ planos são mais breves, a montagem mais rápida, e o gesto repct -S ' ~ 'ri lido
contabilista e a jovem, Welles multiplica os raccords de movimento e os raccords ,I percepção do espectador, que assiste a uma acção cujo encadeamento j. n.1I1,.
nos gestos, dando a impressão que a narrativa não pode deixar um instante as I'gível. Com efeito, a repetição por um lado, e a inversão por outro, p ·r1l1.Il.IIl1
suas personagens, atenta à mínima progressão da história. O ritmo imposto pela o movimento dos planos, como se de repente já não houve se linearidad " 11I.1\
montagem, sustentado por ligeiros movimentos de câmara que acompanham as lima espécie de suspensão/dispersão dos momentos. Será o reflexo no sp 'Iho 1I"'
deslocações das personagens, dá à sequência uma fluidez, uma continuidade, que Inverte a direcção do rosto de Virginie? Então é possível que os planos '111l\ll('
ilustram este rubato de que o cineasta fala a André Bazin: .1 vemos soprar «ao contrário» sejam apenas ecos dos precedentes, maniftoM.1
mente uma estagnação temporal- como se voltássemos sisternati arn .ru ' .111.,.
«Euprocuro um ritmo exacto entre cada enquadramento e o seguinte. É uma questão de Será um simples efeito de desorientação, associado à agitação em que s 'I) 01111.1
ouvido: a montagem é o momento em que o filme tem a ver com o sentido da audição .1jovem? Então já não é a cronologia, mas a própria lógica da narrativa qu ' ('M.
[... ] Uma forma, como o maestro que interpreta um pedaço de música com rubato ou .rrrasada, Num instante a narração bifurca, ou mais radicalmente ainda, IlIl1d.1
não. É uma questão de ritmo e, para mim, o essencial é isso: a cadência»
de natureza; os raccords de necessidade são esquecidos, em favor de um I 'III! o
André Bazin, op. cito ~lIspenso. Esta primeira perturbação da narrativa pela montagem cn oru ra (" o
.ilguns minutos mais à frente, quando o marinheiro chega por ua V "I, à am.r,
É assim também na chegada do marinheiro à rica mansão de Mr. Clay: ele é Toda as referên ias 1 .mporais desaparecem da encenação. A luz é onsramc, ti -ixou
introduzido na sala de jantar, é instalado, os criados servem-lhe de beber, e a ordem d ' haver per p' lÍV.1t'1II profundidade de campo (num filme em qu 'Ia abu ml.i,
impecável do jantar desenrola as suas etapas, Sequência muito curta, marcada por c orno já nouiruos), l' U\ 1111"((11'I/, d -ixarn de con truir uma linhr úni ':1. '!(ltI I.'
m
uma montagem rápida, em que o planos parecem apressar-se, sobrepor- e por vezes pl.\I10S '~I(\O h.iul: .••111 Iltll 11111.1 111'I •• ibn ada, difus: legitimada p 'Ia 1I111~~t'(jIl.1
uns aos urros - om s W:'II s 5 r v 5S' de rep nt num e til r I'!'I; filO. Ma q\ll' -nvolvc .1I I1111 1111 '1"1 \I.. d".1O IIll..~IIl() I -mpo '1"'.1 IOd.\ .\ ., 'q\1 III LI,

ft
um asp l ompletarnerue irr aI. Welles alt ma cruâ as '11.1\ 110 1111 uor, rn
os dois amantes, e as cenas no exterior, com Mr. Clay ou o seu onr.rhilista, ada
vez que vemos aquele estamos de novo no tempo das histórias, no ordenamento
contínuo dos gestos, numa duração com referências legíveis. A varanda em que
ele se encontra estrutura o espaço em perspectiva, aí vemos despontar o dia de
um plano ao outro, e as próprias acções da personagem (apagar a lanterna) levam A montagem discursiv
em conta este avanço lógico do tempo. Na diegese, é uma personagem ligada a
uma tradição secular, que além disso recita profecias, e se revela um intermediário
privilegiado entre o passado e o presente, de que tem uma consciência objectiva; à
volta dele articulam-se planos que desfiam eles mesmos uma temporalidade linear
e límpida. Quanto a Mr. Clay, já o dissemos, ele resiste a este tempo, e a narrativa, e a montagem narrativa utiliza a aparente evidência de um mund 111((11 •

que continua a correr, esquece-o literalmente. t) .spectador se reconhece, mundo para o qual transpõe a necessidade das om ]
No quarto, é a própria narrativa que é esquecida. Quando o «tremor de terra» uuidades e das relações lógicas que, por outro lado, lhe organizam a cxist n 'LI,
ocorre, como a jovem lhe chama, a montagem atinge o cúmulo da confusão: existe uma outra forma de montagem que, não procedendo de forma mim 'li ,I,
plano aproximado do casal, depois o rosto da mulher em contrapicado, o busto lenta demonstrar relações e organizar significações que não são óbvias. ~ () qu .
do homem também em contrapicado, por fim as costas deste, que se destaca no li .signaremos por montagem significante, a qual, ao utilizar as formas d dis 1I1'liO,
fundo azul uniforme, sem referência realista ao ambiente do quarto. Raramente possibilita construir um mundo a cujo fluxo já não basta abandonar-se,
um acto sexual terá sido filmado de forma tão pouco figurativa, tão fulgurante Segundo Christian Metz, «o cinema tem como material principal um njunto
e irreal. A montagem utilizada por Welles para esta curta cena rompe qualquer de fragmentos do mundo real, mediatizados pela sua duplicação mecâni a, qu ' :1
noção de continuidade, e até qualquer ideia de narrativa. Sucedem-se planos, IOlOgrafia permite, É principalmente pela forma de os organizar, de os aproxi 111.11,
que transmitem uma brutal emoção, mas que o fazem mais por meio de um qllc o cinema, subtraindo-se ao mundo, se torna um discurso sobre o mundo .» "j
agregado de estilhaços do que pela continuidade. São momentos diferentes da Justapondo duas realidades a priori sem medida comum, esta monta m qu '
noite, talvez dispersos na cronologia, mas atravessados por um idêntico impulso. «se torna discurso», e que poderíamos portanto chamar de forma mai nmpl.i
Encontramos aí um princípio de colagem mais que de articulação, o qual traduz «montagem discursiva», obriga cada uma destas realidades a assumir um s 'nl ido
um estado diferente de representação, uma natureza distinta dos instantes trata- IIOVO, a ser olhada de outra forma, a entrar na lógica de uma significação dif rcnt "

dos. Enquanto, para chegar até aqui, os acontecimentos se tinham encadeado, e Esta «outra lógica», nascida de uma associação de fragmentos, não é uni amcnrc
os planos se haviam ligado, e enquanto, durante esse tempo, as personagens no 11 ma lógica de sentido; ela já tinha sido, amplamente, considerada pela abordng '111
exterior se dispõem a retomar o curso das horas, na associação violenta dos planos l'slética do início do século. Antes do cinema, a pintura já estava empenhada n 'SS:I
e dos corpos joga-se um momento fora do fluxo, que não poderá encontrar lugar via há vários anos: para certos artistas a unidade do quadro, se persiste mais ou
em nenhuma história. É um momento que não poderá ser reduzido ao estado de 111 'nos quanto ao motivo, não se baseia já num traço que liga, mas na justaposic ,tO

fragmento logicamente combinado na continuidade de outros fragmentos. E não ti' entidades elementares. São por exemplo o pontilhisrno, o divisionisrn ), qu '
é por esse momento ser mais belo, ou melhor tratado, ou valorizado formalmente. .ihrern caminho às escolas do século XX. Tal como os pintores que descobr 111qu '
Ele nada tem de notável a não ser a sua alteridade: ele adquire a sua consistência .IS ores não são percebidas da mesma maneira consoante as cores que as rod 'iam,

no encastrarnento narrativo a que está submetido. Os seus planos caóticos formam os cineastas, muito rapidamente, compreendem que partido podem tirar da ju.~
um todo precisamente porque não pertencem à lógica exterior. Aí reside a força da t.iposiçâo dos planos. Esta não é apenas mais ou menos harmoniosa, mo S 'I i••
narrativa: ela transporta consigo até o que lhe resiste, para lhe cristalizar o sentido. ,I ontiguidade de duas cores mais ou menos complementares: para além d ·lit.1
Une histoire immortelle compõe-se, assim, de disposições narrativas diversas, r onvivência relativa, é o próprio «valor» das imagens que é modificado p 'Ia SlIa
que correspondem a uma forma diferente de apresentar o acontecimento, para o proximidade, como as cores na teoria do «contraste sim,ultâneo » d elaun: y. ~ ()
inserir numa narrativa ou para o libertar dela, até ao paradoxo que consiste em que Bresson traduz nas Notes sur te cinématograpbe": «E preciso qu uma irna ' '111
representar, no meio de uma história, o próprio inenarrável. S(' uansforme em cont.lllO com outras imagens como uma cor em orua to l'Otll

H ,hrbli,11I Mrt ., 1.1111 11/1,1., lII/i"lIl1ll1flllrillrllll"P,l1is,Klin kvic k,I97 ,


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outras or .s. Um azul não é o mesmo azul ao lad de um v .rdc 11111111
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de um vermelho, Não há arte sem transtormação,» estrutura ruu r.u lv.i, 11111'1111 11,111111.1~ dis urslvas, que pcnui: '111 'kitos ti· ~ g
Veremos, no capítulo seguinte, as correspondências sensíveis e as relações esté- lIifi ado por 0111I11111 ,It, ,ill A ,1111,110prim .iro episódio, os "rás de ·OIl1IHII.I\IOI
ticas que alguns cineastas fizeram nascer de uma tal prática da montagem, Por lnt rvêrn mai rI' 'llll 'llIl'1I1'111 • do qu 'a história o exigiria; cn 011(1'3111 man ·11':1 dI'
agora, dediquemo-nos às construções intelectuais que daí resultaram, se opor, no final, a f 011'S I ·Iigioso , também eles estranhos à história, Es: 'S plallOS
inseridos na continuidade, fragmentos dos sistemas que representam, ()Il1P) -m

.11ravés da montagem como que um efeito dialéctico que alimenta a intriga, indo
o fragmento como princípio .10 mesmo tempo para além da história, E já antes, nos documentá rios, 'S(, ti';!
um tipo de montagem que Kieslowski apreciava, utilizando um plano r orr 'n(~ ••
A primeira «reviravolta» da montagem relativamente à planificação é a impor-
'nigmático, que só encontra significado no filme através da sua confronta ao om
tância que ela obriga a conceder, por princípio, aos fragmentos considerados em
O~ outros, mas que esta integra no conjunto. Em Fabryka (1970), por cx 1111'10.
si mesmos, Os diferentes momentos do filme, os planos ou as imagens, as linhas
.ilternarn planos de operários a trabalhar, planos rápidos, com cortes se OS,:l ~',I\)
ou os sons, já não se reportam a uma totalidade formada pelo filme, mas a uma
fragmentada, e planos das chefias a conversar. Pouco a pouco compr cnd '11I0S
entidade que lhes diz directamente respeito, Se na planificação narrativa «tudo que é a própria oposição desses planos, e dessas realidades, o tema de Kicslowski
o que é notado é notável», é-o em relação à própria narração, à totalidade que na descrição da fábrica, E esses planos de gestos, de movimentos, de eSDr os, 11:1
ela constitui, enquanto num tipo de montagem mais próximo da colagem, cada sua própria materialidade, na espessura da sua carne, por serem fragmentados.
fragmento ecoa a sua própria esfera de significação, A montagem consiste então remetem tanto para o Trabalho como noção, como para o «mundo do trabalho»
precisamente em associar essas entidades, ou seja, em valorizá-Ias enquanto tais .orno objecto de discurso, bem mais do que para uma acção precisa e identif ávcl,
no próprio momento em que as confrontamos, . Aliás, em Kieslowski como noutros, a estética do fragmento não é inc mpat [vc]
O discurso, utilizando cada plano como elemento significante, é da ordem orn um princípio narrativo: é muitas vezes complementar. Ela permite, num dado
dessa colagem «intelectual». Quando, no Couraçado Potemkine, Eisenstein monta momento, inverter o ponto de vista. Abandonar o fio principal para habitar, p ·10
sucessivamente planos que representam os olhares dos marinheiros e as espingardas 01har ou pela consciência, subitamente, um mundo à parte, Ou então deriva r pa 1':1
dos soldados, ou a bota branca de um oficial e a boca escancarada de um rebelde lima ideia, um sistema de significação, diferentes dos precedentes. O plano t'1I1
que grita, não são apenas dois elementos da intriga que ele confronta, são eviden- ruptura é como um toque de címbalos na ordem do pensamento; obriga a mudar
temente duas esferas mais amplas, dois universos que se abrem ao pensamento, de tempo, de princípio, de referência. Fragmentário, faz ribombar a ua r()r~.1
solicitados pelo fragmento, Obviamente, encontraremos numerosos filmes clás- explosiva; emblemático, ele reorganiza devido à sua capacidade de sentido, N:'o
sicos nos quais os uniformes de uns ou os locais de habitação de outros também " este o princípio, por exemplo, das Histoirets) du cinéma, de jean-Lu odnrd
remetem para um universo social, para determinações culturais, O filme realista, (l999)? Em vez de submeter excertos de filmes e fotogramas a um discurso cxt 'riOI'
tal como o romance, funciona a partir destes indícios, destes detalhes, Mas em que, reflectindo uma cronologia ou uma ideologia histórica, ordenasse um fluxo ti .
Eisenstein, por exemplo, o curso do filme não integra estas notações apenas para ilustração, ele deixa que os fragmentos escolhidos 16detenham o olhar, rclanc '111
delas se alimentar: pelo contrário, ele imobiliza-se, graças à montagem, na enti- ,1 reflexão, componham pela montagem outras significações,
dade que o plano sugere e cristaliza, O fragmento, então, já não é um detalhe, é «Libertar imagens simples é recusar fazer imagens do mundo demasiado om
uma representação, plexas, é fazer com que a mesma imagem (ou som) seja uma imagem d ' luta l'
A bota de um oficial sobre as teclas de um piano, no Couraçado Potemkine, não -rn luta», declarava Godard em 197617, Imagens, ou planos, que constr rn UIl\,1
é apenas um detalhe realista: a brevidade do plano, e o seu enquadramento, fazem totalidade ao mesmo tempo que permanecem homogéneos sob outra ordem, orno
dele uma escolha precisa, dada e percebida como tal. Acentuada pela grandeza ,\C a sua pertença ao filme fosse passageira; pontual, voluntária, determinada.
do plano, é de facto esta imagem que é dada a ver, e dada a ver como diferente Pouco a pouco, aliás, na evolução da sua obra, Godard leva a rnontag '111ao
das que a precedem ou continuam, O laço de um sapato, uma boca aberta, um .xtremo desta lógica, utilizando cada vez mais citações. Delas poderiam s liz 'I'
olho em grande plano: é uma verdadeira estética do fragmento que este tipo de que são emblemas de fragmentos. Não apenas fragmentos de (realidade», d ' 'Sp;l~o
montagem organiza, Encontramos ecos mais recentes em Resnais, em Kieslowski,
em Kubrick. Podem inserir uma imagem, desligá-Ia do fluxo, de tal modo que 1(, Uma vez <)lU' rv di 1111'111111('m' cssário que esses ex erros tcnha rn sido cs olhidos; 11'('"
c ont ra rn s a ,\lllhll',ldd"dl d'lllll.ld,1 11,1 im r duçã - d s elCI11Cl1I1S ((1m!os d 'I -rmln.ulu
as correspondências que ela sugere entram em ressonância com a sua envolvência I" 'viam '1111',I' .1,11(111 1, '(I" 1111'111 111,1I,,,til' 11:1ollstituiçfill do 111111(',
Hlrnica.
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50
ou de corpo, elas são Iragmeruos de representa ôe , de artifícios ], PlllpOMOS.Se ''I rcs ·111:tv.IIIIM 1111111111111di 11111111I111,1,.,f '1.1,dl' uru muudu dlllll'lIl1 d.IIIIHI,
as imagens são todas fragmentos do mundo, as citações, enquaru tais, r 'metem que S pre ·tlLI 11111".".1 ( 11I1111 ~l' .1 .ucnçno I ;Irlil \11.11,.1 JlI(l)dlltld.ldl qlll
primeiramente para unidades aparentes que são elas mesmas, na sequência, apre- mnnifcstam 'sS'~ 1'111111.1.11.1111
111m onícrisscm ao seu 'spa~(). ' .\11.1pl ·~l'II~.I.
endidas como fragmentárias. As citações questionam assim o próprio princípio .tlguma cai a d . sa ".1 10 0\1 P -lo m 'nos de diferente. rostos,'1I\ p:1l1Í \11.11,
da unidade. Quer sejam visuais: cartazes de filmes, capas de livros, etiquetas de .ipareciarn nesta e p i, ti . «dcsprendirnenro» essencial. P d 'mos P 'rg\l 111.11 11m
embalagens, publicidades, nos filmes dos anos 1950 ou 1960 (Charlotte et Véronique, .ué que ponto o halo de luz que envolve os grandes plan s da str .las 11m .11111\
O Acossado, Deux ou trois choses que je sais d'elle), ou textuais, nos filmes dos anos 1930 (pensemos uma vez mais em Greta Garbo iluminada por William D.lllich
1990, estas citações, em Godard, explicitarn o carácter ambíguo da montagem, ou, talvez mais ainda, em Marlene Dietrich tal como a fotografo u L" ;,11111\
que cria unidade a partir de elementos discordantes, retirados de outras unidades. nos filmes de Sternberg - Marrocos [1930], Fatalidade [1931], t .) nao Idl 'l.I
Estarnos longe da planificação tradicional que requeria uma unidade a priori, e 'S e desprendimento, essa forma de representar como estando «alhur SI) o Imlo
incontestável, do representado. filmado desse modo, Existe, na montagem desses grandes plan s, a pond 'I.I~.IO
Esta estética do fragmento encontra sem dúvida no grande plano o seu modo de uma entidade que inílecte o curso das imagens, com o risco - extr .rnamcuu
mais habitual. Quer seja no cinema clássico, romanesco, no cinema publicitário limitado, e muito controlado - de por um instante o interromper. n nt rnrcuu»
ou documental, o grande plano, inserido numa continuidade, montado, portanto, .ilgo desse trabalho de ruptura nos grandes planos dos cartazes que ziga V '111IV
em relação com os planos circundantes, cristaliza duas qualidades: esteticamente, utiliza, ou mais tarde em Godard, modificando explicitamente a narur ':t.a d.1
concentra a atenção, fixa o olhar; e intelectualmente, pelo contrário, dispersa, ou representação, para um efeito mais acentuado, claro, mas de prin ípi id 111 j( o,
antes estende a esfera de representação da imagem. Por ser deformado, desviado, Voltaremos a este assunto 18,
valorizado pelo artifício da proximidade, o objecto do grande plano ganha em Grandes planos, fragmentos, inserts (que é o termo que muitas vez 's ti 'Sjg".I
capacidade de atracçâo. É também por ser fragmento, incompreensível em si mesmo, 11m plano que rompe a continuidade) participam, portanto, num me aniSll10
impensável, inusitado enquanto tal, que a sua beleza ou a sua forma fascinam. O I omplexo, que faz intervir qualidades discordantes: é, com efeito, de forma S 'lIsfwl
que já Rilke admirava na escultura fragmentária de Rodin, o que Fernand Léger que eles rompem ou acentuam o curso da representação; são os nossos olhos, m
destacava nas suas investigaçóes picturais, o cinema vai realizar sistematicamente. 110SS0Souvidos, a percepção de um espaço ou de uma ordem de propor 50 11'11'
Do rosto de Greta Garbo à seringa de Pu/p Fiction, passando pelas baionetas de .1sua aparição aíecta, mas é de modo intelectual que eles reorientarn n :1 ~,IO,
Eisenstein, o grande plano deu provas da sua capacidade de fulgurância, de arre- E preciso insistir neste aspecto, cuja natureza é frequentemente edul or.ul.r. A
batamento, de ruptura estética. ordem da montagem é também uma ordem de pensamento, Contra ria 111 l'1IIt' .10
À partida, esse grande plano não passa de uma «aproximação», um efeito de llue a moda ou um certo comodismo incitam a crer actualrnenre, é uma 01' ·I.I~,I( I
lupa ou de focalização sobre um aspecto da cena. É assim que ele é utilizado por Intelectual que preside às conexões entre os planos, A visão de uma fa a m gt .\IId,
Griffith em lhe Lonedale Operator quando uma chave-inglesa escondida sob um plano, em Hitchcock, remete para a ideia de um acto, de uma intenção, lc 11111.1
lenço, que toda a gente julgara ser um revólver, é mostrada de perto, no fim do suspeita, mesmo se estas sequências lógicas estão mascaradas por um rfi'lll/lI/1
filme. Este plano desvenda o embuste, articula-se com a narrativa conduzida até formal e emocional. A montagem, no concerto de O Homem que Sabia eml/litlll/l
então, fecha-a. O mesmo se passa quando Hitchcock faz um enquadramento (1934), ou em tantas outras sequências célebres do autor de Intriga Internnriorutl,
fechado em Os 39 Degraus (1935), para mostrar com insistência a particularidade desencadeia no espectador emoções ligadas à compreensão, às ligações I gi 'as, . .\
física do chefe dos espiões: o plano explica, completa, situa-se na linha da narrativa. relações de causa e efeito, Os grandes planos encarregados de ampliar () I ' Imo
Mas esta utilização do grande plano, em suma funcional, continua a ser do da dramarurgia, sejam eles de uma corda que se desfia, de um ferr lho (c: h.ulo,
domínio da planificação, e da articulação do olhar - próxima da articulação de um parafuso que se desenrosca, só criam suspense se estiverem em r bç'flO '0111
narrativa. É totalmente diferente quando o plano se desliga do fluxo. Quando o .1compreensão que desencadeiam, Toda a arte de Hitchcock é pre isam .ru :1 h
aumento da grandeza do plano não é a continuação de um movimento ou de uma misturar as conexões lógicas com os efeitos de pura sensibilidade, pa ra 31 .nu.n ,I
explicação, mas ao contrário uma mudança de natureza, de referente; falando de implacável simplicidade das primeiras, A montagem, também aqui, perturba os
forma literal, uma mudança de quadro. É o que se passa em Eisenstein; é o que se ~.ntidos, e ordena p nsarn nto.
passava quase sempre na época do mudo nos Estados Unidos: os grandes planos,
filmados na maior parte das vezes depois de tudo o resto, noutros cenários, não
beneficiavam necessariamente da mesma iluminação, do mesmo fundo, das mes-
,O Sobi e 111\111111
1,111I11
1"••1, ,,," ,,1111\(' n n." 10 ti" Rruu» 8r1f!/ dr .I/lf/lll/. <til lh 1111'
ma condições de filmag m. Não ram «raccord». Na sua própria mar .rinlid d , 1.111\
'11«"{n",.I~""I"
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o cinema soviético 1)\1~ 'ja, p.U.1 li \1111 '1'1 11 I 1111,111\1111.1 '111 Ii.ti ('( II( .i» (1111',(0101.\11.111
j(11I1I1l1.1~
por jUM,II)()si<..lo,p '11IIit . illl.lglll.ll .I
írcntc- -Ir 'nl . d\l," 1I.t1I.1,ull .1)11.1j\I)IlIM<lS,
Escapando à lógica de um cinema narrativo de essência romanesca, os cineastas xun res lu ão. ESI.IIIII~,I(IdI ,11I01I1.1'·m dialé ti a» ' ómodn, sobretudo pOIIlIIl'
soviéticos fazem, desde a década de 1920, convergir as suas pesquisas para uma c orresponde à tcrrn inolu >ia . :IOSmodelos dominantes da id .ologla nuux iSI.I. I >t-
utilização da montagem diferente daquela que era proposta pelo cinema estran- I.l to, o que é preci r 't 'r dos onflitos que a montagem de i nst 'i n 'omitl'·I.I,
geiro, e pelo cinema americano em particular. Mais especificamente, é a noção de (. que, uma vez situados na continuidade fílmica, eles constituem uma unid.uh
planificação, que está em jogo, e que rejeitam no todo ou em parte 19, bem como R .ferindo-se aos últimos escritos de Eisenstein, Jacques Aumont afirma:
a noção, mais difusa sem dúvida, da história como objecto do cinema. A recusa
de um cinema que seria puro divertimento, de um cinema que não mostrava as «Eisensteinjoga, cadavez mais,asduas cartasao mesmo tempo: a da contradiç o ( nt n fiei ••
como conflito, alimento vivo de qualquer fenómeno, e princípio mesmo da m nt , 11\
realidades políticas e sociais complexas (cinema cujos meios estéticos, sobretudo,
fílmica) e a da unidade enquanto reabsorção da contradição: "Porque, enquanto m t ti),
seriam por natureza incapazes de as mostrar), associada a uma pressão ideológica
a nossa montagem já não é o decalque de uma luta de contrários [... l. ela é o r xo d,I n
extremamente consequente deram a essas tentativas, a essas experiências, um unidade desses contrários [.. .l. a unidade socialista que vem substituir todos o uk I.
aspecto de sistema cuja repercussão se acentuou com o tempo. Junta-se a isso o e todas as épocas do antagonismo" (Dickens, Griftith et naus, 1942).»
lugar predominante que Eisenstein ocupou na história do cinema, desde a estreia J. Aumont. op. fi
do seu Couraçado Potemkine (1925), e a quantidade considerável de escritos teó-
ricos que lhe devemos, nos quais a noção de montagem é sempre preponderante.
Não é lugar para fazer uma história desse cinema, nem mesmo a dos seus A montagem é portanto o meio pelo qual se expõem os conflitos, . "<lu ·I(
conceitos históricos. Só à evolução da noção de montagem em Eisenstein, Jacques .uravés do qual eles encontram a resolução no Uno. Isto mostra a qu . p01l1O .1
Aumont consagrou um livro inteiro, denso e preciso 20. Em contrapartida, no lIlontagem é ao mesmo tempo um local de choques (plásticos, dramáci os, di W
I icos) e um meio de abarcar o mundo em geral. Este encontra a sua unida lc 1\.111
panorama que nos ocupa, de uma arte da montagem em acção, e de uma reflexão
sobre os próprios filmes, é essencial, evidentemente, considerar o que cineastas lia continuidade, no raccord, mas mais seguramente na oposição ostentada qu'
como Dovjenko, Dziga Vertov e Eisenstein puderam oferecer a essa estética do .1montagem permite, e que acompanha, de facto, o princípio cinernaiogrr li o.
fragmento. Este é mesmo entendido como a totalidade das «associações de imag 'ns» dI'
Quando se lêem os textos de Eisenstein sobre a realização, e em particular as que o filme é constituído:
apreciações críticas de algumas das suas aulas21, a vontade de análise do mundo, e
«Assim ele chega a considerar, por exemplo, que, desde o nível mais elem nt r.
das situações que ele procura representar, é manifesta. Nas propostas de adaptações
passagem de um fotograma ao seguinte, existe qualquer coisa "da ordem da" monte) orn,
que dão cor às suas exposições - e aos seus exercícios com os alunos - é flagrante
uma vez que a partir de duas imagens imóveis, conseguimos dar a imagem d um m
a vontade de compreensão das diversas componentes de uma cena. mento. No outro extremo, Eisenstein encontra fenómenos de montagem na su
E esta compreensão prévia é como que sustentada pela montagem, vindo esta de no encadeado das diferentes cenas (episódios). Da micromontagem à macrom nt 111
algum modo representar a própria análise. De tal maneira que poderíamos falar de (ostermos são de Eisenstein em Montage, 1937),passando pela montagem "norm I", IIti I
montagem analítica como, a propósito de Braque e de Picasso, se falou de cubismo fragmentos, o conceito, a noção, o princípio de montagem é responsável por 111. I
a homogeneidade ideal que dantes, noutros termos mas para os mesmos re ult dos, (l
analítico. A planificação acompanha a visão, a montagem explica a análise. Não
conflito assegurava.»
que seja necessário recorrer à montagem para desencadear a compreensão de uma
//)/1.
acção dramática, como é evidente. Mas em Eisenstein o primeiro princípio que dá
sentido ao universo dramático é a noção de conflito. E portanto, para compreender
o mundo, é preciso compreender os seus antagonismos. Entre as classes sociais, Assim, a montagem tal como surge em Eisenstein - nos seus filrn ·s, . n.1II
entre os indivíduos, entre as tomadas de posição, todos esses conflitos encontram unicamente nos seus escritos - é como o reflexo de uma operaçá int I· uml d,'
a sua ilustração na oposição construída pelas imagens e pelos planos. A montagem .rpreensâo do mundo, dos seus mecanismos e do seu modo de ser. Mas o I '11110
serve ao mesmo tempo para expor esse conflito, para o afirmar, e para o assimilar, 1(1'flexo» não é suli i '1)[ .: ,~, na, mãos dos cineastas a montagem é um, arte, "1)(11
"Ia ser capaz d ' r 'VI'I." I (' IIH~1I1Ode provocar uma compre nsâo da r 'alidad " c 1\,\0
tini am rue d ,11(\I 1I!t1/ I" 1\" IIIOSIrnr O mundo doutra 01, n 'ira, p ·rlllit(· 11111.1
19 Cf. mais acima, «A questão da planificação».
20 Montage Eisenstein, Paris, Albatr s, 1979. .11'1. ·ns:'o nuv.i, 1111tI""1 11" ti I I 111(\ '11(:110, laro ((u . o olha . 1.\11111 '11111111
21 .M.EiscnSl'in c V. Nijny, Mrttrr rn rênr, P.lIi\. U ;F., 01. .10118»,1<)7\ \11'n~flio d .111til 1111111
, 11IItll 111..1.1.11.\1i~.111d.1 pl r~pl't tiv.t n.t pi 111\11.1,
1111
do romance na literatura, não é apena a n equên ia de UI1I.1101111.1 ele P .nsar: \'11(1' !lI) .1111,(.1 11111,11111111 ,,111111.qlll' l\O~ 1.1/1'111
il do 111.11\111111'.
IIqllll 111
constitui também a sua ferramenta. Da mesma maneira, a m nt.iucm através de III.tiSaproxim.u]u, dll 11111 I .1111111I1111.11~
,I ril,U.!O, OlllpO '11111111.1
to!.did.ldl' olld
confrontos, o cinema do conflito, é muito mais do que um reflexo: é uma forma c.ida um dos '1'111'11111\1 I ti ,11111'\de parti ipt r no xinjuruo. Pl'm.llIlII~ 11\"1
de compreender e de fazer compreender. Há investigação, ao mesmo tempo que I 'XlO extrernam .nt . p '11111'111 que Roland Barthe nsagrou a I r S p '1I~,ldOlI",'
demonstração, na montagem, tal como a pratica Eisenstein. que ligam os fragmentos' a I ialidade, onde escreve o seguint , .rn parti .ul.u, ,I
Tomemos duas sequências famosas, tiradas do Couraçado Potemkine e de Ale- propósito de Inácio de Loyola:
xandre Nevski. No primeiro, aquando do massacre na escadaria de Odessa, são-nos
apresentados dois grupos que se opõem e que podemos considerar «analisados» «Aimagem é de forma muito precisa uma unidade de imitação; divide-se a mat ri lrnlt: VI I
(que é precisamente a vida de Cristo) em fragmentos de modo a que possam s r ntldo-,
pela montagem, descritos nos seus aspectos mais característicos, à maneira de um
num quadro e ocupá-Ia completamente; os corpos incandescentes do inferno, o . rll
comentário discursivo. Os soldados do czar primeiro: grandes planos das botas, dos condenados, o gosto amargo das lágrimas, as personagens da Natividade, asd Uilhn.\
grandes planos das baionetas, plano de costas dos uniformes enfileirados. Nenhum Ceia, a saudação do anjo Gabriel à Virgem, etc., são unidades de imagens (ou "p nt ").
rosto, nenhum gesto individual, nenhum olhar; porém, uma decomposição dos Esta unidade não é imediatamente anedótica; só por si não constitui automatl m nt
corpos, como uma enumeração de signos ou, mais precisamente, insígnias mili- uma cena completa, mobilizando, como no teatro, vários sentidos ao mesmo t ml :.1
tares. A seguir, o ritmo das linhas e das riscas, que acentua a análise do batalhão imagem (ou imitação) pode ser puramente visual, ou puramente auditiva, etc. qu .1
sustenta, é poder ser fechada num campo homogéneo, ou melhor ainda, enquadrada,
como um ordenamento imutável: linha das espingardas ordenadas, dos degraus da
«[... ] A imagem inaciana não é uma visão, ela é uma vista, no sentido que est palavra
escadaria monumental, composições geométricas implacáveis, de que a montagem
tem na arte da gravura ("Vista de Nápoles", "Vista de Pont-au-Change", etc.); t. vi I.
seca acentua a impressão. No outro lado, pelo contrário, os rostos móveis, uma deve ainda ser tomada numa sequência narrativa, um pouco à maneira da sant Ur lIlil
boca que grita, um corpo que cai, um outro que se arrasta, as feições mais elegantes de Carpaccio ou das ilustrações sucessivas de um romance.»
devastadas pela dor. O homem sem pernas foge diante dos soldados sem rosto. Os
R.Barthes, Sade, Foutiet, Loyola, Le 5 ull, 1 /1.
homens (e as mulheres, sobretudo) afrontam o inumano, e a sua desordem choca
com a organização impecável da máquina repressiva. É na decomposição das formas
que o realizador encontra simultaneamente a expressão das individualidades e da Esta «imagem» que Barthes refere bastante sintomaticamente, e qu' n '~I •

ordem implacável. É uma demonstração. Mas assim que no final da sequência a \ aso é um sistema de representação, uma organização de pensarnent , podcri.i
câmara, por três vezes, regressa ao gesto de um cossaco armado de um sabre, ou ~ .•.vista como equivalente do sistema de montagem, que no mesmo rnovirn 'IHO
quando enquadra em plano aproximado o rosto da mulher gritando de dor, para lá l.tz conhecer o todo, cada uma das partes, e o modo de junção destas, neste a~o
do gesto dos actores, e da expressão que manifestam, é a fragmentação do acro, o () conflito, É aliás isso que permite a este tipo de montagem ser simultan arn '111'
seu estilhaçamento, a cadência dessas fulgurâncias impostas que criam a sensação dinâmico e analítico, construindo e dissecando ao mesmo tempo.
de uma outra verdade, de uma dimensão a elucidar. Investigação da montagem. Num outro domínio, deixando menos espaço ao narrativo, Dzig Verto
«Criar não é deformar ou inventar pessoas e coisas. É estabelecer entre as pes- c oncretiza também esta abordagem de uma montagem com dupla fu n fio, )lI('
soas e as coisas que existem e tal como existem, relações novas», escreve Bresson 22. insiste tanto na entidade de cada elemento como na combinação que eles [ormnm.
É esta função de invenção, de criação, de proposição - como se o sentido se Rejeitando o princípio da ficção dramática, filmando durante mu itos a nos 1':11.1
inventasse à medida que ocorrem os confrontos - que a montagem de Eisenstein actualidades cinematográficas, o cineasta tem como projecto explí it Ia I' do
.IS

acrescenta à demonstração. Podemos encontrar de novo este duplo estatuto, por mundo uma representação em que os efeitos de olhar substituiriam os r,'it()~ d 1,1
exemplo, na famosa batalha sobre o lago gelado de Alexandre Nevski. Reencon- máticos da história, E Dziga Vertov multiplica as aproximações, as per pc tiv,I\,
tramos aí, como em Potemkine, a composição das imagens em função das forças os confrontos de imagens filmadas aqui e ali, mas compostas sempre orn mult.i
em presença: os camponeses russos estão dispersos no horizonte, formando uma pcrtinência. Na sua obra-prima O Homem da Câmara de Filmar" (1929), .f' 'ilO~
massa compacta, e como que surgindo dos volumes naturais do local, enquanto de montagem são tão numerosos como variados, Mas eles são todos d domínio
os cavaleiros teurónicos organizam-se no ecrâ em rigorosas figuras geométricas, daquilo que poderíamo chamar uma «montagem intelectual», expre sáo I' '!ir,u!.1
tão arbitrárias quanto grandiosas. Uma vez dispostos esses elementos cenográfi- .iliãs d~ Eisenstein. li s .]a, d as ociações que só podem ser apreendidas na Oll
cos, Eisenstein acentua as características plásticas graças aos enquadramentos, e di ão de cornpr til I{ I. (' pOI V''/, 'S mesmo de nomear, o cont úd da imag 'II~,
o potencial de conflito graças à montagem. A música, o ruído das armas que se A lebre qu IH1,1do 011.11\1J1I' S' abrem ao ac rdar, uj piscar mom.rd»
em ahern: n i.II.ljlld I "'111 I til! 1t111.1l'r, harn ru das p 'rsianns, . I 'pois da ti,
22 Op. cito d· urna ol>j('\ I '11111111'1111I , LI ~IIJII ncia qu' rcln 'iOIl:! c misrur., .I,~aI! '11111,1\

S6
ao mundo ass ia sobr tudo diferente rnanif sta Ó '5 da id '1.1. "A IIll1hina ão 11111I I 111• .I, '111I 11111( 11111
olll ig,1 ~I 10111.11 (.\Valo que 1\.1101'.1111''',11111rdllll
dos documentos uns com os outros é calculada de forma qu ' 1 ... 1 ,11 'nas restem q\l' avança l q\ll! -1011'1111.1". ill,11lInu '1 I odc p.11.11.U,,, pOli! 0.11111'\,
I 11111

os encadeamentos semânticos de pedaços que coincidem com os en adeamentos I dI I. 1I1.lr,1íilmar as mulheres \l,1 ale hc; uru pOli Il
nham s visto li li! 111'1,111111
visuais», declara Vertov em 1928 a propósito desse filme. Entre um olho cuja pál- mais tarde veremos rowgl.llIl.l~ (c nao apena imag ns parada ), d .pois li p.1( 1.1.1
pebra bate e um diafragma que se abre, não é a forma ou o movimento que são .1 orrer numa ban nda LI' montagem ... Esta caleche que pára abrupt arn '!ll .
similares, é o fenómeno, o seu princípio. A mesma coisa em relação à lavagem de portanto a utilização imediata, e sensitiva, da montagem como criad ra d . rit mos,
um passeio e uma mulher que lava a cara numa bacia. É o tema que se encontra (' a ilustração mais «conceptual», que deve passar pela consciência d e p tadoi,
associado pela montagem. Como se o cineasta fosse da ideia particular (um plano, da própria operação de montagem.
uma cena) à ideia geral (a acumulação das cenas por comunidade de conteúdo). Encontramo-nos numa concepção da realidade feita de uma as ia 50 ti .
«Eu, cine-olho, eu crio um homem muito mais perfeito do que Adâo, eu crio fragmentos, sejam estes quais forem, e sem que a totalidade formada em d ·fin i
milhares de homens diferentes segundo diferentes modelos e esquemas prévios» Iivo tenha existência prévia. Por mais que os filmes de Vertov constituam a 1.1
(Vertov, 1923). urn uma totalidade, é a parte de cada plano, a sua parte na soma, que importa.

Três, quatro, cinco planos de desportistas repetindo os mesmos gestos; são Os elementos da montagem de Vertov não são como palavras acrescentadas 0\1
filmados em cidades diferentes, em estádios que nada têm a ver uns com os cortadas a um texto, mas como números adicionados ou subtraídos a uma ont.i.
outros. Não são indivíduos, não são nem atletas nem lançadores do disco. São (~a própria identidade do resultado, a sua natureza, e não a sua qualidad , qu . ~ .
representações «por acumulação» do Atleta, do Lançador do Disco. A gesta antiga, veria modificada por uma outra escolha.
que passava pela perfeição da síntese, é substituída pela adição e pela repetição.
Vertov, sem dúvida mais do que Eisenstein, deixa em aberto a questão da síntese:
não faz desta uma unidade fechada, mas a combinação de entidades. Um e outro As figuras de retórica
exibem o poder do descontínuo, mas as imagens de Eisenstein, possivelmente
Conceber que o cinema pode produzir sentido (e não apenas imitação), . '111
por terem mais a ver com a narração, parecem esgotar mais cedo o fluxo dessas
particular que a montagem é susceptível de desencadear articulações de ord '1Il
entidades discordantes. Pelo menos é o que o espectador transportado pela acção
intelectual, leva os cineastas a utilizar os elementos visuais e sonoros em combinas' )l'~
pode sentir; em contrapartida, em O Homem da Câmara de Filmar", estando
oxpressivas que vão muito para além da coisa mostrada. Verdadeiras «figuras I·
as sequências cuidadosamente separadas no que se refere ao tema, a escansão é
estilo», quer dizer articulações invulgares e não obstante pouco a pouco difi':I
mais marcada, juntando à linha da forma (autonomia do plano) a linha do tema
tias, são criadas por cineastas da montagem - os que a consideram um enun ia 101
(autonomia da sequência),
de realidade. Trata-se de aceitar que cada plano, ou cada elemento da monta ' '11\
Mas a montagem de Vertov é ainda mais do que isso. Para além do tema e
(podendo este elemento ser tanto uma sequência de planos como um d ralhe
da associação de ideias, reílecte a compreensão subtil de uma temporal idade que
valorizado da imagem, ou ainda um elemento sonoro), se torna um fragm ruo til'
atravessa os estados, e lhes modifica os traços. Uma vez que à justaposição, à
discurso, e deixa de ser «registo» puro e simples da realidade. E trata-se d a .ir.u
confrontação ou à repetição das «idéias», se soma a tensão do fluxo que os trans-
llue cada um desses elementos já não seja um momento do real captado, mas um
porta. Ainda em O Homem da Câmara de Filmar", a montagem abranda a um
~igno, uma «imagem» no sentido figurado do termo, quer dizer, uma de igna 50.
dado momento, como fazendo esquecer a presença discursiva do cineasta, para
Tal como uma palavra ou uma expressão, na linguagem, remetem para uma 'Ob.l
deixar o espaço alargar-se, e algumas jovens rir numa caleche, levadas por uma
sem, por isso, oferecerem uma duplicação analógica. Este é um ponto essen ial, '1lI
luz branca, e pelo trote de um cavalo. Até então todas as sequências foram muito
lermos estéticos - e portanto ideológicos - desta utilização da montagem ouu)
fragmentadas, «rompidas», o ritmo foi o da montagem, e não o do corpo ou dos
articulação discursiva: ela remete para uma representação consciente e manifcsr.i,
gestos das personagens. Ali, nesta avenida, a velocidade dos cavalos dá ao filme
.nquanto a montagem narrativa a maior parte do tempo se esforçava, precisa rn .m "
uma outra respiração - mais clássica, mais mimética, diríamos. Ora a imagem,
de repente, imobiliza-se. O cavalo pára, o impulso do olhar é detido no mesmo por apagar esta dimensão explícita de representação.
Comecemos por um x mplo simples, o da metáfora. Esta consist , r ·sumi.
momento. A paragem na imagem é também uma forma de ruptura, e talvez a
mais pura de todas: não é nem o tema nem a figuração que se vêem interrompi- darnente, numa ornptu.içao implícita.
dos, é o próprio movimento das imagens, e, porque não, da própria projecção.
E é isto que de facto se passa, uma vez que esta paragem remete efectivamente Plan A: Iltll I( J, 1111111
di 11Ilh.l~ avança.
o espectador para outra r alidade, qu é a d pr pri cinema. O artif] io visual PI, no B: 111' I \ 1111 " 111 .tI 11111.1
ho ~ldo 111'Iro.

SR
ado da m ·tá/ora: os op .rários s50 (tratados) amo (IV 111.1\.N.IO pode ser
·'i '.!li(j p.rr i.r] de \1111,1
'1111 1'" 11,11111I 111Ic últilllU .IM) (1,11.11~. LI d, 11111,1
H·V"!.I
rnais simples: é a sequência inaugural, uma das mais célebres, d . "i'lIIj1o Modernos ~,IOpar 'lar, ·lIqll.llIllI. 1\111111111.1/',1111,.1nfase r .sulta d.1 .lciçuo. du 'P j\1.1Íl',d.1
(1936~, =-: filme de Chaplin. Em Eisenstein, são os kulaks (esses camponeses distin ão. ua nrln o 011dh \I di' bordo do Potemkine ' atirado ao mnr dur.uue o
propneranos das suas terras, que a propaganda estalinisra queria eliminar, aquilo IlI00im, vem S as Slla~ 1\l1l1·I.ISP" .sas por um cordão. Não é a ioralidad ' do ~1'1I
de que todo o cinema soviético numa dada época se ocupou), comparados a I orpo, são os seus atributos sibilinos que assinalam o destino da persona 7 '111.Orn

porcos. Ou então são, mais uma vez, ovelhas a balir que vêm substituir os fiéis estas lunetas escolhidas entre tudo o resto para designar o médico são a .xprcssuo
~ezando e cantando a Deus. Ou então, de forma mais subtil, uma gota de chuva, da sua traição (ao inspeccionar com elas a carne a fervilhar de verme, ri ilj '0\1
Justaposta a um rosto de mulher, torna-se a metáfora de uma lágrima. É ainda, que estava boa para consumo), e mais longinquamente, do seu estatuto so inl,
num filme de Boris Barnet, o banco de gelo que começa a estalar na Primavera 1igado ao saber. A sinédoque, aqui, assume todo o seu interesse, ou seja rodo o
para evocar os sentimentos cada vez menos frios dos jovens que ali vão passear. , -u valor de amplificação do sentido. Em Aguenta-te canalha (1971), Sérgio L 'OIW
Em suma, a metáfora, substituição de um elemento significante por um outro utiliza logo no início uma montagem fraccionada que procura os mesmos ~'il()S
depressa é u~a figura chave da montagem soviética, desenvolvida em particula; ti . sentido. Os viajantes de uma diligência de luxo, muito ricos, fazem tr a dos
por P~~ovkme, que a utilizará nas suas grandes narrativas épicas. É uma figura ';1 mponeses do México, comparando-os a animais; e Leone enquadra em pia no
de retonca, uma ferramenta do discurso fílmico: a ovelha ou o gelo não remetem muito aproximado as bocas destas personagens, comendo, arrotando, babando
para a sua realidade e para a sua individualidade, mas para a ideia geral que as se, no sentido literal e em sentido figurado. Monta estes planos das b as, til'
engloba; estamos de facto no coração da montagem das significações, elemento de Iorrna tal que são unicamente esses lábios, esses dentes, a saliva e a masrigaçfio
discurso e de expressão. Muitas metáforas irão ser utilizadas em seguida. Flores que 'Iue representam as personagens durante a conversação. Também aí, a expr 5SftO
~~rcham, a te~~estade que faz estragos, etc., mas é sobretudo o cinema publici- ultrapassa de longe o real denotado.
tano: grande utilizador da montagem, que delas irá tirar proveito, justapondo as Outras, muitas outras figuras de estilo se tornam possíveis através da monta' ·m.
qualidades de um produto e as dos referentes que o valorizam. «Ponha um tigre Refira-se a gradação: uma evolução da situação que a aproximação aos esta los
no seu rnotor!»: durante muito tempo a imagem do tigre Esso ilustrou a metáfora descritos torna ainda mais espectacular. São por exemplo os famosos pequ 'nos
da energia. Apenas uma justaposição de imagens: o bê-a-bá da montagem. Mas .ilmoços de O Mundo a Seus Pés, já evocados, em que os esposos de cena para 'na
uma justaposição que, no seu próprio princípio, apaga o mimetismo da imagem, vc tornam mais distantes, e depois cada vez mais hostis um ao outro. Talvez não
a sua transparência primeira, em suma o seu realismo, e lhe confere um estatuto valha a pena insistir mais neste efeito de retórica, de tal modo ele está intimam '111'
de signo, de quas:-símbolo, elemento que escapa ao seu meio de origem para ligado à montagem: no discurso escrito ou falado, ele já requer efectivam 'nl '
se tornar, como Vimos antes, fragmento autónomo, desligado, suficientemente uma organização das palavras que é do género da «montagem rápida», Traia-se
desarticulado para se poder associar de outra maneira. de suprimir os elementos de transição para que a evolução entre duas situa 'S

O.m~sm~ s~ passa cO,m a utilização, retórica por excelência, do fragmento que cornparáveis seja ainda mais surpreendente. Já em 1911, em The Two Paths, riCTiIh
constitur a smedoque. E uma figura de estilo que consiste em mostrar (ou dizer) mostra um casal numa oficina de marcenaria, o homem trabalha, a mulher sturn:
apenas uma parte do que se quer exprimir. Figura eminentemente económica, .ilgum tempo depois um bebé brinca sob a bancada; depois duas crianças nlais
uma vez que não exige que seja representada a totalidade do referente, convém velhas substituíram o bebé, sem que nenhum dos pais tenha mudado de lu 'ar no
pa.rticularme.nte aos constrangimentos do cinema: uma roda que gira no vazio quadro. Uma forma de transmitir o curso tranquilo das coisas, O cinema mudo
evita a necessidade de mostrar todo o acidente, e a sombra de uma pantera substitui .unericano do anos 1920, que soube com infinito talento utilizar a expressão ao
vantajosam~n.te a sua figuração, d!recta. É aliás, como se vê, um procedimento que longo das suas narrativas, ofereceria numerosas ilustrações desta figura de SIilo,
ultrapassa visivelmente o domínio da montagem, uma vez que está intimamente corno doutra, muito próxima, a repetição. A mesma montagem com cortes se os,
liga~o ,à dramaturgia visual. Quando se diz que uma imagem «sugere», é geralmente o mesmo apagamento das transições, para salientar a identidade das situa 'S, A
de smedoque que falamos, quer dizer, de figuração parcial. Uma personagem de Multidão (1928), obra-prima muda de King Vidor, utiliza esse modo expr .ssivo
um filme da qual só vemos a mão, ou de quem só ouvimos a voz (em Carta a de cada vez que se trata de significar a uniformidade dos comportamentos so 'iai,~,
~rês M~lhe~es de J. Mankiewicz, por exemplo), existe através deste processo: não em particular em r mo da a tividade dos empregados de escritório, Num J''gislO
e sugerido, e de facto «mostrado», mas parcialmente. O que inscreve a montagem rornpletament dir'r 'IlI '. !,l'OS arax utiliza em Má Raça (1986) lima su 'SS:IO
no coração do sistema: não é efectivamente na exposição global do cenário que de retratos rnosu.md« )111/('11('Hino he com um lenço de pap I d 01' diferente
esta sinédoque se produz, mas na escolha que a fragmentação permite. O efeito sobre olhos, ,I 11111I. 11111" I) ImIO, d tal forma qu ornposrn, :t1J':1V'~d.1
que a montagem possibilita não tem nada a ver com aquele que a illlminação I 'p .ti 50 di!., (111' , 1 li., ,111.1m coucs, lima 'SI1':11 ir. 'a~'ão d· ill.~lalll. IIl'OS
60 (li
uja ma não 6 i rual à adi ã quantitativa, ma tra a o '~"II li dI 11111,1mulher d('vi~la~()h\('l"llIlIl I ,11.111111 11',lIlIdoll.l~O ,11,1(11'1 ,Iilo ,1I\(·(I\\l(l.ld('(II'
misteriosa e lúdica (esta figura da repetição irónica era declinada vint ' anos antes c.rda plano r 'IIH'II111.11111111
I I .I .I,ule c onhe ida, pura todo um nuuu]o, )1.11.111111.1
em O Desprezo (1963) onde Godard «fragmentava» Brigitte Bardot e fetichizava viiuaçâo cmin '1111'111( 111111I III1!.n Iv -I. Não é mais do qu aquilo que 'h,llll.lllIm
as várias partes do seu corpo). Jogo de repetições como Guitry tinha feito com 11111 lugar-comum, Na .I~,IdI' h.inho om as cores da moda, m a 'ss6rio~ de
Jaqueline Delubac em Le Roman d'un tricheur (1936) imaginando-a diferente em vonho, o espectad r ti 'V • I . .onhccer num instante - num plano muito uno
cada plano, dissipando a sua personalidade no capricho das múltiplas roupas que 1\ horizonte dos seus desejos e o território do plausível; na família reunida, n,l~
a faz usar (uma em cada plano), quando a apresenta como podendo ser arlesiana, lOupas das crianças, no carro e no jardim, ele reconhece também de im xlinio ,I
da Martinica, ou parisiense, segundo a fantasia do seu olhar. .. Imagem social a que aspira.
E já agora, acrescente-se a estas combinações retóricas as antíteses ((a antítese é Extrair de um sistema complexo um quadro representativo, que fun ionc dl'
uma oposição de duas verdades em que uma esclarece a outra, escrevia La Bruyêre: maneira autónoma e veicule a ideia desse sistema, é o princípio da fragm nt a ':to
não será uma definição surpreendentemente próxima daquilo que a montagem lJue definimos mais atrás. Sugerir as relações que podem unir as personag ns, ()~
pode produzir, quando trata cada um dos seus fragmentos como entidades signífi- objectos e o ambiente, é o princípio da montagem, que acrescenta expressão ond '
cantes uma em relação à outra?), a elipse (que tanto pode manifestar-se na junção . primeira vista só existe apresentação e reconhecimento. A retórica e o lugar
entre dois planos, no inrersrício «retórico» da montagem, como na duração de um comum juntam-se assim no cinema publicitário, que funciona de fa tOlHO
plano-sequência), o anacoluto (que seria apenas o equivalente do falso raccord, lima ferramenta de propaganda, de que a montagem é uma alavanca privil giad:1.
desde que este seja manifesto, e em suma ostensivo), a acumulação, etc, Anúncio para uns jeans Levi's: América dos anos 1960, música ambi rue,
personagens tipadas, cenário característico. Um jovem, fardado de rniluar, vai
.ipanhar um autocarro, e deixar a namorada: até à sua partida, os raccords s!io
o cinema publicitário íluidos, dinâmicos. Conduzem a acçâo, impulsionam as personagens para a rI' .nt "
Depois o rapaz desaparece do quadro, e a sua imagem por trás de uma jan ,Ia '
Não há muitos géneros cinematográficos que elaborem mensagens. Os filmes .ipagada por um fundido. A rapariga está no seu quarto, abre um embrulho qu' ,1,
de intervenção (política), os filmes militantes, os filmes pedagógicos, que seriam Ihe deixou, e que contém uns jeans. A foto do rapaz desaparece também, pia no ti '
os seus produtores privilegiados, ocupam um espaço público extremamente c orte de uma saia caída no chão, plano da rapariga em jeans passando a mão nas
limitado. Em contraparrida, com o cinema publicitário, estamos em presença nádegas: o produto tornou-se o herói do filme, em vez e no lugar da persona .m.
de um discurso que procura representar o mundo segundo finalidades precisas Iodo o trabalho da montagem (raccords, cortes, fundidos, mas também a su 'SS30
(influenciar o olhar do espectador em relação aos produtos apresentados, sobre a das localizações de objectos e personagens nos planos) visa substituir o rapaz qu '
forma de os consumir, a sua própria relação com a sociedade, etc.), organizando de partiu pelas calças, encadeando as posições e os movimentos. Dezasseis planos '111
modo muito consciente os elementos figurativos da diegese. Os filmes publicitários vinte segundos: é preciso ser-se muito rápido para dar as informações, e para isso
constroem demonstrações; são filmes de propaganda, no sentido literal do termo. há que rarefazê-Ias. As mudanças frequentes de planos permitem relativam .ru . a
De propaganda comercial, inteiramente dedicada à influência. Nesse aspecto são -ste aspecto impor os indícios, mais do que deixá-los à apreciação do espe u dOI,
apaixonantes, dado que a montagem é uma das suas alavancas privilegiadas. De Mas uma tal sucessão só pode ter sentido se a lógica for dada pelo próprio fluxo: o
facto, trata-se muitas vezes de filmes muito curtos (30 a 40 segundos nos anos papel da montagem. Assim, através dos seus próprios constrangimentos, brevidade
1980, 8 a 20 segundos é o mais frequente actualrnenre) nos quais, contudo, os do filme, articulação das ideias, a publicidade impõe ao cinema formas de di urso
espectadores devem reencontrar o seu universo, mais ou menos realista, mais ou notavelmente económicas. É preciso convencer: os planos estão ligados por UIlI,I
menos sugerido. O princípio é portanto o de dar informação suficiente em muito necessidade implacável; e fazê-lo depressa: no ecrã só vemos o que vai no sentido 10
pouco tempo, mas da forma mais clara possível, privilegiando a legibilidade raccord. Henri Colpi foi um dos grandes montadores franceses, tendo trabalha 10
dos elementos essenciais. Geralmente, isso traduz-se em numerosos planos, de -rn particular com Alain Resnais, realizando nessa altura filmes publicitários:
conteúdo extremamente seleccionado: cenografia minimal (para destacar o mais
rapidamente possível algumas informações determinantes) e montagem rápida «Namontagem publicitári ,não podemos esperar que a personagem feche a port ,p r
(para permitir a expressão). isso precipitamo ora ord; n. O h tempos mortos ... Napublicidade, eles têm um t nl,
Este primeiro traço dominante da «estética publicitária» (ou se preferirmos da muito parti ul.tr dI fUlldldo I n nd do, que não tem nada a ver com a t cnl d um
filme norm 11.NIIII1\,II""1111 . () I rI<,lei do faz-se entre 16 321mag ns. Aqui I Iaz m
sua «estratégia») tem como consequência dar a cada plano, e a cada articulação,
ncad do dI ·11111 r.llr 10 '" 1\ I qll,'~( um pl no úni O d tal modo <10 brl ad ,1 I I
uma importância con íderável, qu d vem apr s ntar-n um univ rso, . 11mP nt r pld ""1'1' 1111
I' \1111111 I , 1'"1VI/I ~ I n, o I anç v m ( V rei,d h,1 t lIe.1d

62 fi \
1\ ,v\n, , lW,rW\ 11' .e 11/1' 01VI

sonho. No sonho, que é extremamente cinematográfico, n m ,t1I>' fi. mud nça de


possibilida I·~ 11< 1111111 .ldor.I~. A propaganda
" 111'1'1111 lnc luiudo O!lt'l.l\ li"
plano: de repente estamos em grande-plano sobre uma personag m nqu nto antes
estávamos num plano geral. Nunca temos a sensação do corte. Portanto o sonho faz I· ensibilizaçao 01111,I 1 d,"g.1 ou ,\ vcl idad a v lant pode 'S!.\I' III.ai, •
encadeamentos à maneira da publicidade, não vemos as mudanças de plano.» vontade para fazci .\ ., 0111.1dt, m.mt 'r os conflitos com pr p sit de lipj(it.1I
cx olhas de sociedade. h .ortcs r ncmam então a sua função. Lembramo no~ plll
Cinématographe, n.O79, Junho de 1982, «Le cinéma publicitaire».
-xernplo de um spot publi itário de Patrice Leconte opondo o univ r Ia tI'O!,.1
. o da família; os enquadramentos, as cores, os elementos da ima em s .rvi.uu
Esta aparente ausência de cortes, sublinhada por Colpi, é interessante; necessária este confronto, e a montagem, longe de estabelecer uma continuidad , d· r.IZl'I
pela frequência das mudanças de plano, ela confere unidade ao mundo representado. Iigação, acentuava as oposições.
De facto, se compararmos o cinema publicitário ao que mais atrás dissemos do
cinema soviético, pode considerar-se que ele funciona segundo um mesmo princípio
dialéctico, mas em que a confrontação seria totalmente suavizada. Princípio geral:
Os documentários de arquivos
estabelece-se u~ mundo, um referente estereotipado no qual o espectador pode
reconhecer-se. E a operação de «escolha do público-alvo», indispensável a qualquer No documentário, discurso e demonstração estão longe de ser rar . Não ~
operação de marketing ou de publicidade, que consiste em fazer concordar o fundo por as imagens serem provenientes de uma realidade não programada qu . n.rn
do cenário - no sentido amplo do termo - com os interlocutores visados. Uma vez podem ser reunidas segundo um princípio exterior, e demonstrativo. Ta 111111\
instalado esse universo (é o termo frequentemente utilizados pelos publicitários), .iqui, o aproveitamento de imagens para fins políticos ou ideológico poclci 1.1
é preciso introduzir nele o produto considerado. Seja para que ele melhore este oferecer numerosos exemplos. Vimos, no Kuwait, na Roménia, em Áfri a,l11uila'
universo, e o «culmine» de algum modo, seja para que nele se integre. É a operação manipulações recentes modificar a percepção dos acontecimentos ...
verdadeiramente dialéctica: o encontro de duas realidades. Um plano da margem Mas para que essas operações de montagem não se confundam com o int 'IHO
de um rio, um plano da embalagem de detergente. Um plano das ruas de Nova que muitas vezes as ocasiona, e para que a manipulação - no sentido literal que
lorque, um plano de calçado desportivo. É preciso que cada entidade tenha a sua .IS caracteriza não seja assimilada automaticamente a uma intrujice de vi Ias li'
autonomia, e é preciso que possam completar-se. Não é do domínio do óbvio: é I,IS,recorramos a exemplos fora da actualidade. Para ver a que ponto a latir ud .~
preciso convenc~r o espectador. O discurso é por isso indispensável, mesmo se (' as implicações da montagem de fragmentos podem ser importantes sem qu . ,\
vem escondido. E preciso demonstrar que aquela massa e este universo italiano se 'c misturem forçosamente conotações pejorativas, vejamos por exernpl omu
fundem; é preciso demonstrar que este computador e este universo tecnológico procede Alain Resnais quando co-realiza Guernica (1950), ou Mar el phuls
têm a mesma essência. O encontro das duas realidades funciona como uma figura Veilléesd'armes (1994).
de atribuição: transmite-se ao produto os atributos do universo no qual ele é A curta-metragem de Alain Resnais tem por tema o quadro de Pi asso, b '11\
imerso. Tal como no cinema de propaganda, atribui-se a este ou àquele individuo c orno o próprio acontecimento histórico a que aquele se reporta. Digamos que
as virtudes escolhidas, ou a este ou àquele povo os piores crimes. O princípio de ele mistura, precisamente, na sua própria matéria, o momento real e a sua r pr'
montagem é como a demonstração estética de tais coincidências. vcntaçâo; confundem-se os objectos estéticos e os fragmentos de realidad , OlHO
A confrontação não está forçosamente ausente deste tipo de montagem. Acontece , . cada «pedaço», enquanto tal, fosse de natureza equivalente. Como se r ()I H'
por vezes que queremos proceder por antinomia, opondo o produto ao universo l inematográfico fosse suficiente para colocar o acontecimento real ao me 1110nível
descrito. Assim, muitos produtos de limpeza enfrentaram exércitos de micróbios e til! existência que a sua representação. Uma vez estabelecida esta identidad , li .1
de germes, vastidões de sujidade, acumulações de gordura. " Para perceber até que .1forma como o filme se constrói: servindo-se de todos os períodos de cria 50 do
ponto essas montagens, embora simplistas, são também elas máquinas ideológi- pintor, utiliza quadros, detalhes, fragmentos, e compõe graças a eles lima 'SI' ~
cas, basta constatar a sua servidão ao espírito da época: durante os anos 1970, é a I i, de elegia dramática sobre os crimes de guerra, o sofrimento e a esperan a. A
agressividade e a conquista que são representadas pela montagem publicitária; os particularidade da montagem reside precisamente no facto de Resnai asso ial
detergentes «atacam» a sujidade, as enzimas são «glutões», o mundo é um lugar de num mesmo movim nto (p r vezes num mesmo olhar, num grito, numa ali! ud .)
confrontos diversos. A partir dos anos 1980, ao contrário, os detergentes começam ( orpos ou rosto qu rOI.11llpi ntados separadamente, com anos de d istân ia, I .\1.1
a «proteger as cores», a «respeitar o ambiente», etc, A montagem preferiu, então, a exprimir o h rrm t' ,I dt'\oI.,\ .10, cl as ocia rostos pintad p r Pi so no in I jo
fusão à confrontação. Os fundidos, as montagens na imagem, tornaram-se mais
do é III ,silh""!.1 1ti 1111'" 1.1 ruuirn d P i de li mie: rr 111.ntos I'~M' ~I\I.I
frequentes. Podemos tomar essa dialé ti a dul orada como repre entativa da dlo. ()n~1I 11, 111I. ,( 11111111111'1111,11111.1
ord .rn c 11111
scruido que 11.10CXb!1.11I1
operação de inAuên ia qll a publi i lnde ollM,6i gra as, montagt'lll e ,S sua
110m.u -i i.rl 1111 11111' 1"" d, 11111I lig.1 V('I!OV11"' .1\\1111.1,('111()
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l lomcm ti" Crl/1/1l1'fl til' Fill/III,,\ um plano ti' uma mulher ,I dllllllll, 11111 plano IlO S'gllnt!o, 11111.1 1111111'.11 I~.III (o~ dI! ig .ntcs S irvi s, as .rimónias nazis): m
ti' um artaz em que as pcrsonagen , parecendo olhá-Ia, faz .m «c hlu» .olocando II't:S fomes dl' /111.11\111 10\..1111 h 't r géneas, mas uma continuidade sonora e
'11\ '

o indicador sobre os lábios. Elementos esparsos (e que o são manifestamente, daí .irt i ulaçô s iru ·III.I~, ( phuls
onstrói um discurso.
a importância desta reflexão «em actos» sobre a heterogeneidade das fontes de Outra sequên ia: uma jornalista da Antena 2 é interrogada acerca da espe-
representação) associados numa articulação nova: é uma montagem de documentos 'ificidade de ser mulher nesta profissão/corte/entrevista de uma jornalista que
que é da ordem do discurso, impossível de assimilar a um acto de simples reg isto, participou no desembarque na Normandia em 1944/corte/excerto de Paraíso
ou de «captação», Infernal, de Howard Hawks (1939), em que uma mulher rivaliza com um homem/
Podem analisar-se da mesma maneira algumas passagens de Veillées d'armes, orte/continuação da entrevista em Sarajevo. O mesmo princípio: Ophuls apro-
documentário de Marcel Ophuls sobre os correspondentes de guerra, em grande xima acontecimentos, conversas e sequências de ficção para estabelecer conexões
parte consagrado ao cerco de Sarajevo durante o inverno de 1992-1993. Ophuls inrelectuais, entre ideias, e entre tipos de representação. O processo é audacioso:
procede aí, em termos de montagem, utilizando o que poderíamos chamar enxertos. obriga o espectador a estabelecer relações que não são evidentes. É a habilidade
Associações voluntaristas, acrescentos exteriores, imagens coladas com intenção da montagem, a fluidez dos raccords, a semelhança aparente das situações que
demonstrativa; é o olho do cineasta que ordena, é o seu espírito que recompõe, servem de argumentos. Eis o poder e a perversidade destes modos de operar: o
procedendo segundo a arbitrariedade das associações que só o conteúdo do discurso discurso da montagem significante não pode ser racional, é estético, no sentido
legitima. Fontes heterogéneas, mais uma vez, mas que vão «pegan) naturalmente ... .1 mplo do termo. É a habilidade da forma (e a sua inteligência, nos casos citados)
como «pega» um enxerto num tronco. Retiro esta metáfora do enxerto a um pintor que serve de argumentação, e que consegue ou não a adesão. A impressão de um
surrealista; não é um acaso: .ontracampo sobre a cidade em chamas, a confusão de uma banda-sonora e de uma
imagem dessíncrona. Mas, como em qualquer produção de sentido paradoxal- e
«Voltando às criaturas de aspecto híbrido saídas de um automatismo que pratiquei com é de facto o caso aqui, o enxerto está fora das regras -, o arbitrário acompanha a
entusiasmo desde há quase cinquenta anos sem tréguas, eu apresentaria aquilo que me
descoberta. Há tanto risco em tomar este tipo de montagem por garantido (para
separa dos meus companheiros de estrada: eu não sou pela colagem, eu sou pelo enxerto.
lima demonstração, que ela não é) como interesse em o considerar capaz de abrir
(Um eminente naturalista confirmava-mo: "as suas criatura são vlávels")»
horizontes novos. Toda a diferença de princípio entre o cinema de propaganda e
A. Masson, La Mémoire du monde, Skira, 1974.
do Marcel Ophuls reside nisso: um finge trabalhar sobre o real e camufla os seus
elementos retóricos, o outro manipula ostensivamente representações até fazer
Vê-se bem o que caracteriza o enxerto para André Masson, e o que o torna, delas um dos temas explícitos do seu filme. Com meios similares: justaposição,
parece-me a mim, aplicável à montagem significante: é preciso que ele seja viável, .issociaçâo, sobreposição; montagem.
quer dizer, que ele imponha quase «naturalmente» a sua existência, contrariamente
à colagem. Que uma vez estabelecida a conexão, realizada a ligação entre dois
elementos que não esperávamos nessa relação, é preciso que a sua junção pareça
o mais possível normal, compreensível, lógica. Não é isto, no fim de contas, e
esquecendo todo o hábito de linguagem, aquilo que vimos em acçâo em Eisenstein, A montagem em acção (2): Resnais, ou o discurso
essas aproximações improváveis que se tornam os fundamentos de uma visão, esses
confrontos que cimentam uma explicação do mundo? De Hirosbima Meu Amor (1959) a É Sempre a Mesma Cantiga (1997), Alain
Em Veillées d'armes, portanto, é este procedimento que a montagem adepta: Resnais não deixou de experimentar o cinema como arte da montagem, na qual
uma ideia chama outra, a qual desencadeia uma comparação, ela mesma ligada a ada imagem, exposta a encontros surpreendentes, se afirma primeiramente
uma explicação anterior, etc. No alto de uma montanha que domina Sarajevo, o .orno um fragmento do mundo. Fora de qualquer realismo, os planos sucessivos
chalé de alguns dirigentes sérvios: no interior, sacerdotes ortodoxos abençoam a não surgem tanto como pertencendo a uma unidade já constituída, que seria a
casa, entoando cânticos religiosos/corte/imagens de casas bombardeadas, de telha- realidade, mas antes como os elementos de uma totalidade que se constrói a si
dos a arder, de habitantes fugindo sob as balas (o quotidiano no vale); os cânticos mesma, um discurso, uma representação, uma subjectividade. Reivindicando o
religiosos continuam/cortelregresso ao papa ortodoxo na janela que domina o vale/ .rrrificio da repr S .rua âo, o cineasta leva ao extremo a sua lógica, constituindo
cortei a preto e branco, uma cerimónia nazi em que participam os dignitários da o filme como 1I1ll.1 unldn I· uja escrita é para si mesma a sua legitimidade e
Igreja Católica, os mesmos cantos religiosos do início continuam a acompanhar ,\ sua pl' 1'1 i.1 t 111 11 111 1.1 Nt·,\.\ forma unitária (ma não fechada), de tipo dis-
estas imagens. No primeiro ortc, uma aruinornia (a b nçâ ,os str:IA()~da guerra), cursivo, \~( 'li,' I1 Iu!'." 1111I11.I\ll S, oposi ('5 ou d .monsrra Ô 'S, utilizando

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rV1 • 1'\ Mn~ 17\l,T-M111) \JI~ IV""

cada imagem e cada som como outros tantos signos cuja v.rlid:ul lcpende p" iso OIlV '11l(I" 11' I ,Idlll d.1 .\\1.\ validad '. T d O pr je to inernat gráfico
essencialmente da estrutura. ti' Re nais a illl~rl.l~.lo do 1161 rio princípio de montagem: associar elementos
Uma tal concepção assenta numa planificação muito precisa, que é a matriz dispersos para lar um ~ .nrid sua justaposição, um sentido novo. Correndo o
incontestável do filme, e de que nem a filmagem nem a montagem se afastam 23. risco de simplificar, u ma vez mais, iremos mais longe: a planificação é uma etapa em
Mas, no próprio quadro desta «autoridade» da planificação, um lugar é deixado que são «adiantadas» contradições (no sentido em que se «adiantam» argumentos),
(ou preparado) aos efeitos sensíveis que a montagem poderá provocar. Com Res- · a montagem uma etapa durante a quallhes procuramos uma resolução. Poderia
nais, numa proporção diferente consoante os filmes, a montagem é ao mesmo dizer-se que existe em Resnais esta interrogação incessante: «como fazer coabitar
tempo a arquitectura de um conjunto (Hiroshima Meu Amor, ou O Meu Tio da -lernentos do mundo tão diferentes?» Tão diferentes como uma sensação presente
América [1980], por exemplo) e a música do momento (O Último Ano em Marien- · uma recordação (Hiroshima Meu Amor), tão diferentes como um sentimento de
bad [1961] ou Amor Eterno [1984]). Esta dupla função, assumida, trabalhada, de ulpabilidade pessoal e um sentimento de culpabilidade colectiva, tão diferentes
formas incessantemente renovadas, permite fazer a ligação entre uma montagem como os destinos de Trotski e o de Stavisky, ou o das três personagens de O Meu
discursiva e uma montagem de correspondências que aqui temos, por necessidades Tio da América, etc, Não apenas no plano dos temas ou das proposições narra-
relacionadas com a análise, distinguido claramente. t ivas, mas também no plano da forma: como fazer coabitar a audição da música
De facto, como Eisenstein (de quem este traço o aproxima muito mais do que · o interesse por uma intriga dramática (Amor Eterno), as teses de um psicólogo,
os temas das suas obras respectivas), Resnais pratica um cinema «cerebral», mas li ma ficção contemporânea e excertos de filmes antigos (O Meu Tio da América)?
com ferramentas sensíveis. São os ritmos, as luzes, contrastes de preto-e-branco A heterogeneidade dos materiais acrescenta uma dimensão fundamental a esta
ou de cores, que provocam e mantêm um processo intelectual que os ultrapassa. montagem, como vimos a propósito de Veillée d'armes, de Marcel Ophuls. São
É talvez a quintessência de uma estética da representação, e esse é o objectivo {ectivamente colagens que operam aqui, cuja heterogeneidade é manifesta, mas
de cada um destes dois cineastas. Youssef Ishaghpour comenta a propósito de de que a montagem se ocupa para lhes conferir uma unidade.
Hirosbima Meu Amor: Cada filme de Resnais é assim um «desafio»: o da suposta dispersão, à qual
.1 montagem se encarregaria de propor articulações satisfatórias. É por isso, sem
«É, pela primeira vez na história do cinema, um fluxo de pensamento e de emoção como reduzir o cinema de Resnais a uma construção intelectual (que ele também é),
Eisenstein queria: "Aestrutura do diálogo reconstruído segundo a base específica dos
meios de expressão do cinema sonoro será a do monólogo interior (... dizia ele), que que podemos falar de «demonstração», ou de «discurso»: um sistema que força à
aquece a abstracção glacial e ascética do processo intelectual isolado, transpondo-o para sua lógica os elementos dispersos que integra. Mas é um sistema interrogativo: as
um plano mais próximo do sujeito e das suas emoções." Foi Resnais que realizou, por olagens, não sendo manifestas, impõem no entanto o heteróclito, e oferecem-
fim, "a quarta dimensão do cinema" através da montagem mimética, rítmica, harmónica, no, tal qual, como objecto poético. Numa obra assim, planificação e montagem
contrapontística, intelectual,jogando com as luminosidades, as tonalidades, com ínfimas
sem grande ambiguidade encontram maneira de se revezar e completar nas suas
nuances do cinzento para as paisagens, com a nitidez, com a intensidade, com as escalas
dos planos, com as durações, os volumes, o grafismo, as direcções, os motivos musicais [unçôes respectivas. É o que exprime o montador Albert jurgenson a propósito de
múltiplos e o não-sincronismo do som e da imagem.» A Vida é um Romance (1983), que mistura três episódios da história de um castelo:
Y. Ishaghpour, D'une image à l'autte,
«Nocaso de filmes concebidos e planificados de forma tão precisa, as escolhas de mon-
Denoêl, col. «Médiations», 1982.
tagem limitam-se a pouca coisa. No caso, acho que apenas invertemos uma sequência
ou duas, coisas mínimas. Tanto mais que é no fim de contas um filme muito homogéneo,
É de facto a montagem que aqui se encontra descrita, cujos elementos de expressão para minha grande surpresa. Esperava choques constantes entre os períodos, os géneros
e as personagens, e de facto nada disso: passa-se de uma época à outra de maneira muito
puramente sensitivos são postos em evidência, relativamente a um tratamento do
natural, a tal ponto que eu acabei por me perguntar se as pessoas se aperceberiam das
argumento que emanaria por denominação. À semelhança do de Eisenstein, o «fluxo passagens. E no entanto os estilos dos cenários, de luz, de guarda-roupa não têm nada
de pensamento e de emoção» que Resnais constrói é ao mesmo tempo plástico, a ver. Mas é assim: não há neste filme uma única colagem que se "oiça".Obviamente,
sonoro, e discursivo; é a partir de elementos sensíveis que constrói uma unidad isso tem a ver com a concepção de Alain,e com a sua realização. [...] Víamos as rushes,
intelectual. Mas esta unidade não tem nem a evidência do mimetismo (necessidad escolhíamos as takes em conjunto, e depois deixávamo-nos guiar pelas próprias ima-
gens, pois todas s olhas de estrutura estavam há muito estabelecidas. Procedíamos
narrativa), nem a do aleatório (poesia das correspondências): é preciso impô-Ia, é
unicament p I. I o de imagens, mas na realidade essas associações existiam já
na cab ç d AI,\IrI, I lI.1 pl nlficação, pelo menos em embrião.»
23Leia-se a propósito, para separar as funç s rcspe tivas da planificação e da rn nragem em
Resnais, as análises muito perspi az s ti' l-rançols 'I hOIlI.I.IIIO ~ -u llvr I:Alclierd'Altli/l Rr nais (Paris, Entr vista com Albert Jurgenson,
Flnmrnnrion. 1989),qu lu lul aitld,1 1111I,1til I vl\l.lllltllAlh 11 IUI!\t'Il\OIl.1t101l1.1I1111""(ln',I\I.1. I //1 IIII/(()I/mpll ,n.o 88, Abrild 1 8 ,« p I I AI In R n I ».

11M 61
Ao quc resp ndern, de forma mu uo sintornáti a, estas d . -I.II.I~ m'~ do 'i nca .ta
,Ilisp 'r:;,I() II~ 11111111",111 I d()~ ~ '11li 111'lHOS (1:1 jovem [ranccsa (Enunanu ,\I,
na mesma revista: Riva m I Jirml,illll/) t 1111I \l'lIlId .: disp '[Sã do detalhes e fragmento das obras
de Pica 50 .m ;111'/'1111'11.

«Sim, eu sei que Nuytten " e Jurgenson, entre outros, estavam à espera de choques de A montagem d 'SI ·S filmes elabora-se portanto a partir de vestígios q~e cons-
imagens ... Talvez esta suavidade inesperada seja uma qualidade, talvez seja um defeito, I ituem, aqui e ali, os objectos quotidianos o.u as obras. de art~, .os veget~Is "" as
ainda é muito cedo para o saber, e é isso que é divertido. No papel pensávamos ver esculturas, os títulos de jornais. A sua dispandade expnme a lógica heteróclita do
rupturas; e uma vez o filme rodado, trata-se de soldaduras, de deslizamentos. É por este
mundo, mas sobretudo a dificuldade de conseguir recolher num mesmo movimento,
tipo de surpresas que vale a pena fazer um filme.»
numa mesma unidade, estes estilhaços com estatutos tão variados.
Cinématographe, n.O 88.
«Os espectadores ficaram chocados porque Manet havia colocado ~o ~es~o quad.ro

Aqui, nitidamente, a planificação coloca alteridades, e a montagem, plano a


plano, estabelece ligações. A propósito de O Meu Tio da América, a questão regressa,
tura de géneros inabitual e sem dúvida chocante. Em Hiroshima =r=
elementos que tínhamos o hábito de mostrar separadamente. EXIstia ali uma mis-
como o
título já o indica, misturam-se também coisas que geralmente nao sao tratadas ao
e o mesmo montador fala a François 1homas da dificuldade que poderia haver mesmo tempo, conta-se uma história de amor abordando aconteCimentos dolo~osos
para montar os excertos de filmes antigos, as intervenções do professor Laborit e utilizando um contexto pouco habitual sem que os protagonistas nele participem
(que expõe as suas teses antropológicas), as imagens das experiências com os ratos, no presente.»
e os elementos da própria diegese: Alain Resnais,em Les Lettres françaises, 14 de Maio de 1959.

«Éuma montagem muito complexa no fim de contas: estava sempre em apuros, faltava-
-me sempre qualquer coisa. No meio de uma cena de comédia podia ser interrompido Os vestígios que desfilam diante da câmara de Guernica são t.odos artifícios,
por uma intervenção de l.aborit, pelos ratos ou por uma imagem de cinernateca. Era representações: fotografias misturadas, quadros reenquadr.ados, Imag~ns sobre-
portanto muito difícil ritmar uma cena. Enquanto não tínhamos, por exemplo, o texto postas. Eles fazem do filme, como irá acontecer em Noite e Neuoeiro (1~5~),
de Laborit que acompanhava as imagens, era muito difícil fazer uma avaliação. O que
um filme tanto sobre a transmissão do acontecimento como sobre o propno
fizemos, Jean-Pierre Besnard e eu, foi cortar os planos normalmente: indicávamos na
margem que tal plano durava mais um minuto, que podíamos utilizar se tivéssemos
acontecimento. Para já, a questão principal é «como é que nos recordamos?»; ou
necessidade. Tudo isso era muito dirigido, de modo nenhum ao acaso, mas Alain tinha antes, no limite: «que montagem permite à recordação viver, e transformar-sei»
deixado uma grande margem, pois nem sempre sabia em que sítio essas "rodagens" Os vestígios do bombardeamento de Hiroxima estão organiza~~s num museu,
paralelas iam sobrepor-se, continuar-se. Não se pode dizer que a construção de O Meu os acontecimentos são reconstituídos no filme apresentado aos VISItantes: a perso-
Tio da América tenha sido estabelecida na montagem, mas ela foi profundamente
nagem feminina realiza o mesmo périplo que os espectadores de, ~uernica ~través
regenerada nesse momento.»
das representações, e da sua montagem. A sua voz encantatona (<<EuVI-OS...
A. Jurgenson, op. cit. Eu vi-os ... »), lembra a de Maria Casares lendo a propósito do drama espanhol
o texto de Paul Eluard. Elas são, uma e outra, o princípio de agregação dessas
imagens de fontes heteróclitas cuja confusão é tão comovente c~~o signifi~at~v~:
Guernica e Hiroshima Meu Amor
não existe representação privilegiada, não existe ordem nem lógica na HI~tona
Em Guernica (1950), Resnais trata de um bombardeamento, um facto histórico ou na recordação. A montagem permite-se a desordem porque a recordaçao e a
importante, através de documentos de época e de múltiplos quadros ou esculturas consciência estão elas próprias condicionadas por essa desordem. Como escreve
de Picasso, dos quais são apenas mostrados, na maior parte do tempo, detalhes, Marie-Claire Ropars-Wuilleumier:
fragmentos. Só um desses quadros, o famoso Guernica, evidentemente, tem relação
com o acontecimento histórico, mas todos são levados por Resnais a participar na «Essestempos confusos, essesespaços misturados esboçam pouco a pouco um universo
representação do horror e do drama. obcecante, em que o problema essencial não é o de confrontar uma personag~m c~m
um drama, mas apenas, segundo a expressão de Aqnes Varda, "desenredar as hgaçoes
Em Hiroshima Meu Amor (1959), o realizador trata também de um bombar-
de um homem com o mundo". [...] A questão em Hiroshima não é a do amor, mas a da
deamento, agregando mais uma vez vestígios objectivos (fotos, vítimas nos hospi-
possibilidade d viver no instante, de escapar a esta des.trui~ão perpétua do presen::e
tais, objectos encontrados) e representações, em que a recordação e a consciência pela record {, d r cordação pelo presente. Uma hgaçao profun~a existe entao
ocupam uma parte considerável. Mas esta consciência está ela própria estilhaçada: entre Hlroxlm- () .un r, n o há evidentemente medida de comparaça~ entre o amor
alem \l1'IPOII" t ,I nHlrtl d Hlroxima, mas nos dois casos a recordaç~o é destrutiva
dir ior de rOIOf\l'afia do filme.
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t Iv i. O Ignlfi do do prlm Iras planos do filme, carn qu Irll,ul I 11 pul rne lisa, tttn rárlo, ,\( IU!III 1111 li I I' I' III1,Iqhl.r1 qu t nd d ntr d nó. A p r
"passagem da pele como fonte de extrema dor à pele fonte de extr m pr i. r".» sistematl m 1111 I \I I !,W I qw d descobrir qu a ap r nt d ord m d
M.-C!. Ropars-Wuilieumier, Esprit, Junho de 1960, imaginário IIdl'I \1111 III,IP,I, amo nas histórias de plratas.»
Retomado em L'Écran de Ia mémoire, Le Seuil, 1970. Chris Marker, apresentação do seu CO-Rom /mm mory,
Centre Georges-Pompidou, 1998.

Na aparentedesordem, na explosão das fontes, surgem ligações novas, sentidos


inesperados ... E uma das características fundamentais deste tipo de montagem, Se Resnais não procura uma lógica interna nos detalhes dos quadros, ele inv nu
concebido para escapar às lógicas comuns e susceptível de construir outros esque- lima outra: olhares trocados, gestos que se respondem, um horror partilhad p I'
mas, outros modelos, modos de pensamento nascidos de associações novas. Em olhos e rostos que no entanto estão disseminados em quadros longínquos, a an s
Guernica, a utilização dos fragmentos de Picasso é sintomática: são mais de uma de distância/". A partir desta heterogeneidade das fontes, o cineasta compõe um
centena de obras de Picasso, datadas de 1902 a 1949 (esboços, estudos, litografias, discurso, um implacável requisitório cujos elementos, como será mais tarde o a O
esculturas, etc.) que constituem a matéria do filme, obras modificadas, retomadas, em Noite e Nevoeiro, se reúnem numa lógica reencontrada.
reenquadradas, com uma total liberdade, e que se associam ao texto de Eluard. A Guernica, assim como Hiroshima, expõem a essência dessa montagem qu .
liberdade de Resnais é provocatória: não só não respeita a integridade dos quadros, constrói um mundo - ou um discurso sobre o mundo, o que é, neste caso, equiva
como recompõe verdadeiramente através da montagem outros grupos, outras lente - a partir de fragmentos de géneros diferentes. Não é verdadeiramente urna
relações entre as personagens ou os elementos pintados. Um exemplo apenas, mas .olagern, já que esta se contentaria em justapor os elementos, sem os poder arei ula I'
cujo princípio pode ser generalizado a todas as partes dos filme: após os versos de cfectivamente. Nestes dois filmes, se a dispersão permanece, ela constrói também
Eluard ditos por Maria Casares: LI ma continuidade lógica. Continuidade forte, com ligações seguras: mesmo S •
cstarnos no domínio da ficção, da criação poética, tal não impede que as relaçõ 'S
«Iesfemmes et les enfants ont le même trésor
que operam aqui, a sua força de persuasão, o carácter afirmado da demonstração,
Oans les yeux, les hommes le défendent
Comme ils peuvent»."
não deixem nenhuma ambiguidade sobre o intento. Os termos «demonstra ão»,
«discurso», podem parecer exagerados a propósito de tais obras; mas isso seria
desconhecer a força da sua construção, negar-Ihes o carácter implacável- me m
Seguem-se sete planos sem comentário. Vê-se primeiramente (A): a cabeça se o próprio Resnais se defende de qualquer didactismo. A montagem de Hiroshima
invertida de O Cego (desenho, 1902), depois (B) um detalhe de O Actor (1905), não é da ordem da proposição, nem a de Guernica ou de Noite e Nevoeiro. Um
depois, como em contracampo, um detalhe (C) de Mulher com Leque (1905), de plano de uma mão, a seguir de outra, um plano da desolação, a seguir da revolta:
novo o plano precedente (B), depois (D) A Morte de Arlequim (1905), o mesmo .1 montagem dos afectos bem como a das cenas «documentais» cria ao redor da
plano que anteriormente de Mulher com Leque (C), e por fim (E) uma ampliação personagem interpretada por Emmanuelle Riva uma unidade de sentido qu ,
deste último. O rosto do Actor e o da Mulher parecem responder-se, e o gesto sendo de uma dimensão sensível não pertence menos ao domínio da afirmação.
desta mesma mulher parece ilustrar o verso de Eluard. Toda uma cenografia, em A questão do tempo, primordial é certo, incomodou razoavelmente os com n-
torno da morte, se instala, sem se dever a Picasso, mas a fragmentos de Picasso: a tadores desta obra, que têm tendência a focalizar-se nas relações complexas qu
unidade é recriada para além dele. Resnais, que é o rnontador, como que se apro- nela estabelecem passado, presente, futuro, memória, etc, Mas esta «recompo i 50
priou de uma matéria fílmica na obra de Picasso, como outro cineasta teria feito do tempo» é apenas uma manifestação do movimento mais geral que leva tantos
com uma paisagem, o corpo de um actor, um acontecimento «captado»; dessa íilmes de Resnais a reconstituir uma unidade a partir de fragmentos e de deralh 'S
matéria ele recompôs uma forma. Chris Marker, muito tempo depois, junta-se que abandonaram o seu conjunto original. A montagem discursiva encontra aqui
a este projecto com as suas próprias imagens, numa obra intitulada lmmemory, força de expressão ligada a uma extrema subtileza, Os documentos de Guernira,
baseada nas relações que estas imagens podem manter: os sentimentos das personagens de Hirosbima Meu Amor (e as suas sensações), são
I' ·tirados do seu contexto de origem, «desenquadrados», transportados para uma
«A minha hipótese de trabalho era de que qualquer memória um pouco longa é mais outra luz, uma outra org. nizaçâo, onde encontram uma outra razão. Quint s ên ia
estruturada do que parece. Mesmo fotos tiradas ao acaso, postais escolhidos segundo
a disposição do momento, começam, a partir de uma certa quantidade, a desenhar um

2S « as mulheres e as crianças t mo rn smo t S 1110/ nos olhos. 5 h m ns d ndcm no I mo


pod rn» (N. da T.)

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da montagem cinematográfica, cuja aparente função de rra 'rl\rllt.r~,1O se revela ,111, Ioga do r ·.tI >I' 1 1 i 111.1 ' .ns S' d 'Sla a m do seu ambi '111 o de
I I dlllll rlll'~

possibilidade de recomposição, e da qual a cultura contemporân '3 ná essa de se partida, . r' OIl'lHI '11111111,1 IOI.did,ldc n va, é por a m ntagem já não se ligar
alimentar, esses efeitos de síntese estão associados a uma concepção «musical» que de nenhuma mn n 'ir.1 ,lO ~ 'U ionteúdo (a história é cortada indiferentemente
consiste em manter vivo, ao lado de disposições téticas, uma organização rítmica entre duas cenas, no int .rior de uma outra, logo após uma réplica, ou após
das imagens e dos sons. um tempo de suspense: não há regra nem sistema), mas ao equilíbrio global
que estes tempos musicais permitem na intriga.
Estamos assim, em Amor Eterno, na presença de uma montagem que, puro efeito
Amor Eterno: estâncias
de forma, age sobre a percepção do conteúdo. Esta história entre duas personagens
Os longos travellings depois de planos com montagem rápida, as respirações de casadas uma com a outra, esta intriga à volta do seu futuro, do seu destino, dos
um plano geral ou as alternâncias de voz compõem em todos os filmes de Resnais seus sentimentos, vê-se modificada e enriquecida pelas escansões do ecrâ nevado.
um ritmo formal pretendido e preparado com cuidado pelo cineasta. Um ritmo I)evido à sua insistência, afectam a nossa atenção; devido às suas repetições
que unido à sucessão dos fragmentos que se produz no ecrâ, lhes confere uma inopinadas elas perturbam a nossa percepção da duração, devido ao seu carácter
espécie de legitimidade nova para «estarem juntos». As articulações do discurso .ibstracto, elas relativizam a objectividade aparente das situações. Numa palavra,
de conteúdo são como banhadas numa forma musical que as fortalece, cristaliza, fazem-nos sentir que nem tudo é tão simples como uma visão convencional e
impõe. É a coreografia dos movimentos de câmara, em O Canto do Estireno (1958), mimética das sequências representadas pelos actores nos quereria fazer acreditar;
em Stauisky, O Grande Jogador (1974) ou Providence (1977), são as escansões dos jue efectivamente, nesta história, o tempo não é tão linear, tão mensurável como
cortes, em Muriel ou O Meu Tio da América, que constituem a verdadeira forma, é hábito, e que há talvez uma outra forma de compreender o que se tece entre as
a síntese dos materiais utilizados nesses filmes. personagens, e em cada uma delas. O tema do filme está efectivamente ligado à
Mas há um filme que, mais do que qualquer outro, eleva a montagem ao Icmporalidade suposta do além, à percepção de uma vida após a morte, em suma
nível de uma música, é Amor Eterno. Filme sem igual desse ponto de vista, ,I uma dimensão desconhecida, e dificilmente comunicável, que vem imiscuir-se
associa uma narração muito clássica a um dispositivo muito mais experimental, na vida das personagens. Uma delas pensa ter estado «do outro lado», ter morrido
que consiste em fazer intervir no decorrer da narrativa, de maneira irregular t· ressuscitado, e lembrar-se mais ou menos das sensações que experimentou. Ora
e aparentemente aleatória, um ecrã semeado de partículas brancas sobre um ,IS interrupções na projecção (ou antes as interrupções na continuidade diegética)
fundo negro, acompanhado de uma música contemporânea. Cinquenta e duas lavorecem precisamente no espectador um sentimento «flutuante» da vida objectiva,
vezes ao longo do filme, aparece este ecrã, durante alguns segundos, por vezes corno se a unidade desta fosse rompida, como se, pouco a pouco, se esboroasse a
mais, sem que possamos compreender o sentido destas interrupções, nem a ompacticidade da sua representação. O realismo das cenas representadas já não
lógica das suas aparições. Mas pouco a pouco, o espectador integra na sua visão é suficiente para manter a ilusão de um mundo coerente e homogéneo: a suspeita
a experiência desses «buracos negros», a escansâo dos momentos musicais, o de alteridade iníiltra-se com a reiteração dos ecrâs abstractos. Uma alteridade
ritmo dessas «síncopes». Pouco a pouco, é a sensação desses momentos que r a dical: a da morte - e mais ainda, da sua recordação -, que uma montagem sem

compõe a matéria do filme, fazendo esquecer o desejo de explicação. Como se onteúdo exprime, uma verdadeira escrita do inalcançável.
esses efeitos de suspensão da narrativa devessem levar o espectador a escutar Amor Eterno leva ao extremo pesquisas efectuadas noutras ocasiões por Res-
de outra maneira, a considerar com um outro sentimento a história que se nais sobre as influências recíprocas da forma e do significado. Porque, em vez de
desenrola diante dele. Esses elementos «abstractos. tornam-se então compo- os misturar ele distingue-os, para os fazer interagir no momento da montagem.
nentes da própria narração. Puro elemento formal, o plano dessas partículas Por um lado uma narrativa linear muito simples, e por outro a pura abstracção;
brancas é o fragmento de uma outra ordem, de um outro tipo de imagem, o absolutamente reconhecível e o que escapa a qualquer compreensão. Talvez não
não representativo, não narrativo, e que no entanto vem misturar-se a uma haja forma mais radical de montagem: são as categorias da percepção que aí se
continuidade mimética. Reencontramos a combinação das fontes, das unida- -ncontrarn diferenciadas e postas em confronto, e não apenas os objectos dessa
des originais, levadas aqui ao extremo, uma vez que já não se trata de associar percepção.
unidades de representação diferentes (como com os quadros de Picasso, ou com
os documentos de arquivo), mas de um lado sequências de ordem mimética, e
do outro, planos que recusam a representação figurativa. «Montador, Resnais,
tal como Eisenstein, con idera a imagem mo um imaginári ,elemento de
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