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DICIONÁRIO DE
AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO
Alexandre Pessoa Dias
Anakeila de Barros Stauffer
Luiz Henrique Gomes de Moura
Maria Cristina Vargas
(organizadores)

DICIONÁRIO DE
AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

1ª edição

Rio de Janeiro e São Paulo – 2021


Direitos desta edição reservados a: Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz e Expressão Popular

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ


Presidente: Nísia Trindade Lima

ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO


Diretora: Anamaria D’Andrea Corbo
Vice-diretora de Ensino e Informação: Ingrid D’avilla Freire Pereira

Vice-diretoras de Gestão e Desenvolvimento Institucional:


Cristiane Teixeira Sendim e Raquel Barbosa Moratori
Vice-diretora de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico: Monica Vieira

Revisão: Lia Urbini, Aline Piva e Gloria Regina Carvalho


Revisão técnica: Acácio Zuniga Leite, Adalberto Flores G. Martins, Adilson Vagner de Matos,
Alex Kawakami, Alexandre Pessoa, Anakeila de Barros Stauffer, Ana Terra Reis, André Burigo,
Ândrea Francine Batista, Bartira Telles, Caetano de’Carli Viana Costa, Caroline Bahniuk,
Caroline Siqueira Gomide, Ceres Luisa Antunes Hadich, Dominique Guhur, Evanildo
Lima, Felipe Campelo, Flaviane Malaquias Costa, Francisco Toledo Barros Diederichsen,
Gabriel Bianconi Fernandes, Gil Barão, Gladys Myashiro Miyashiro, Isaac Giribet i Bernat,
João Pedro Stedile, José Maria Tardin, Lucinéia Miranda de Freitas, Luiz Henrique Gomes
de Moura Marcela Pronko, Maria Franco García, Marlene Lucia Siebert Sapelli, Mercedes
Zuliani, Nilciney Toná, Nívia Regina da Silva, Paulo Roberto Raposo Alentejano, Pedro Ivan
Christoffoli, Pedro Sergio Vieira Martins, Priscila Facina Monnerat, Roberto Martins de Souza,
Roseli Caldart, Sandra Dalmagro, Talles Reis
Projeto gráfico e diagramação: Zap Design
Capa: Maycon Gomes

1ª edição: setembro de 2021

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA


Rua Abolição, 201 – Bela Vista
CEP 01319-010 – São Paulo – SP
Tel: (11) 3112-0941 / 3105-9500
livraria@expressaopopular.com.br
www.expressaopopular.com.br
ed.expressaopopular
editoraexpressaopopular
SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................................................. 11
Introdução. .................................................................................................................... 13
Acampamentos e Assentamentos. .................................................................................. 23
Geraldo Gasparin, Rosmeri Witcel e Marina dos Santos
Agricultura.................................................................................................................... 29
José Maria Tardin
Agricultura Biodinâmica............................................................................................... 37
Pedro Jovchelevich e Fernando Silveira Franco
Agricultura Orgânica................................................................................................... 43
Murilo Mendonça Oliveira de Souza e Patrícia Dias Tavares
Agricultura Urbana. ..................................................................................................... 51
Juliana Torquato Luiz, Uschi Cristina Silva e André Ruoppolo Biazoti
Agroecologia. ................................................................................................................ 59
Dominique Guhur e Nívia Regina da Silva
Agroecologia nas Nações Unidas ................................................................................ 73
Maureen Santos
Agroecossistemas. .......................................................................................................... 78
Denis Monteiro
Agrofloresta – Sistemas Agroflorestais. .................................................................... 84
Fernando Silveira Franco
Agroindústria e Beneficiamento.................................................................................... 90
Daniel Mancio, Ana Terra Reis e Renata Couto Moreira
Agronegócio................................................................................................................... 97
Paulo Roberto Raposo Alentejano e Daniela da Silva Egger
Agrotóxicos. .................................................................................................................. 105
Karen Friedrich e Vicente Eduardo Soares Almeida
Água................................................................................................................................ 112
André Monteiro Costa
Alimento. ........................................................................................................................ 119
Patrícia Constante Jaime
Antropoceno. ................................................................................................................. 125
Caroline Siqueira Gomide
Articulação Nacional de Agroecologia. .................................................................... 131
Paulo Petersen e Silvio Gomes Almeida
Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA)............................................................... 141
Naidson Quintela e Alexandre Pires
Bens comuns.................................................................................................................... 149
Julianna Malerba
Bioma Amazônico. .......................................................................................................... 157
Silvio Simione da Silva
Bioma Caatinga. ............................................................................................................. 162
Dilma Trovão e Jonas Duarte da Costa
Bioma Cerrado................................................................................................................ 169
Altair Salles Barbosa
Biomas Costeiros............................................................................................................ 175
Igor da Mata Oliveira, Érico Demari e Silva e Ticiano Rodrigo Almeida Oliveira
Bioma Mata Atlântica.................................................................................................. 181
Diogo Cabral, Alexandro Solorzano e Fernanda Tubenchlak
Bioma Pampa ................................................................................................................... 188
Paulo Brack
Bioma Pantanal.............................................................................................................. 194
Fran Paula de Castro e Leonel Wohlfarhurt
Campesinato.................................................................................................................... 201
Armando Bartra Vergés
Capitalismo Verde. ......................................................................................................... 208
Camila Moreno, Larissa Ambrosano Packer
Ciclagem de Nutrientes.................................................................................................. 214
Carlos Armênio Khatounian
Ciclo da Água. ............................................................................................................... 226
Altair Sales Barbosa
Código Florestal............................................................................................................ 230
Luiz Henrique Gomes de Moura
Complexos de Estudo...................................................................................................... 237
Valter de Jesus Leite e Marlene Lucia Siebert Sapelli
Compras Públicas de Alimentos..................................................................................... 245
Silvio Isoppo Porto e Cátia Grisa
Conhecimento Agroecológico. ..................................................................................... 253
Eugênio A. Ferrari, Nívia Regina Silva e Márcio Gomes da Silva
Construção Social de Mercados.................................................................................. 259
Paulo André Niederle e Julian Perez-Cassarino
Convivência com o Semiárido. ....................................................................................... 265
Naidison de Quintela Baptista, Alexandre Pires e Antonio Gomes Barbosa
Cooperação Agrícola.................................................................................................... 271
Pedro Ivan Christoffoli
Cosmovisões. ................................................................................................................... 278
Carlos Barrientos
Cultura e Agroecologia................................................................................................ 287
Jade Percassi, Juliana Bonassa e Sylviane Guilherme
Desertificação. ............................................................................................................... 295
Aldrin Martin Perez-Marin e Luis Felipe Ulloa Forero
Deserto Verde................................................................................................................. 301
João Dagoberto dos Santos
Determinação Social da Saúde. .................................................................................... 308
Anamaria Testa Tambellini e Ary Carvalho de Miranda
Diversidade Sexual e de Gênero..................................................................................... 315
Leonardo Nogueira Alves, Iuri Assunção e Thaís Paz
Ecologia.......................................................................................................................... 321
Leonardo Boff
Economia Feminista. ....................................................................................................... 328
Mirian Nobre
Economia Solidária........................................................................................................ 335
Henrique Novaes
Educação Ambiental...................................................................................................... 342
Rodrigo de A. C. Lamosa
Educação Básica e Agroecologia................................................................................. 348
Anakeila de Barros Stauffer, Dionara Soares Ribeiro,
Elisiani Vitória Tiepolo e Maria Cristina Vargas
Educação do Campo e Agroecologia............................................................................ 355
Roseli Salete Caldart
Educação em Agroecologia........................................................................................... 361
Romier da Paixão Sousa, Carlos Renilton Freitas Cruz, Páulea Zaquini e Danielle Cerri
Educação Politécnica e Agroecologia......................................................................... 368
Roseli Salete Caldart e Gaudêncio Frigotto
Educação Popular em Agroecologia............................................................................ 375
José Maria Tardin e Ronaldo Travassos
Emancipação Humana. ................................................................................................... 383
Gaudêncio Frigotto
Empates............................................................................................................................ 389
Elder Andrade de Paula
Epistemologia da Agroecologia.................................................................................... 394
Dominique Guhur e Nívia Regina da Silva
Estado............................................................................................................................. 403
Sonia Regina de Mendonça
Feminismo Camponês e Popular. ..................................................................................... 409
Iridiani Graciele Seibert, Lizandra Guedes e Kelli Mafort
Financeirização da Economia........................................................................................ 417
Ladislau Dowbor
Fome................................................................................................................................. 424
Maria Emília Pacheco
Formação em Alternância............................................................................................. 429
Salomão Mufarrej Hage, Maria Isabel Antunes-Rocha e Fernando Michelotti
Homeopatia. .................................................................................................................... 439
Pedro Boff, Marcelo Silva Pedroso e Leyza Paloschi de Oliveira
Impérios Alimentares. ..................................................................................................... 447
Julian Perez-Cassarino, Jairo Antônio Bosa e Grazianne Alessandra Simões-Ramos
Institutos de Agroecologia Latino-Americanos (Ialas) ............................................ 455
Itelvina Maria Masioli, João Carlos de Campos e Simone Aparecida Rezende
Interações Ecológicas. .................................................................................................. 460
Inês Claudete Burg
Justiça Ambiental. .......................................................................................................... 469
Marcelo Firpo de Souza Porto
La Via Campesina............................................................................................................ 477
Rita Zanotto e Viviana Rojas Flores
Medicina Tradicional Brasileira................................................................................... 483
Laura Barroso Gomes, Jaqueline Evangelista Dias e Lourdes Cardozo Laureano
Metodologias Emancipatórias....................................................................................... 489
Fabrício Vassalli Zanelli, Willer Araujo Barbosa e Irene Maria Cardoso
Mineração....................................................................................................................... 501
Araê Lombardi e Erivan Camelo da Silva
Movimento Agroecológico. .......................................................................................... 508
Adriano da Costa Valadão e Silvana dos Santos Moreira
Mudanças Climáticas..................................................................................................... 512
Andrei Cornetta
Novas Biotecnologias.................................................................................................... 521
Silvia Ribeiro
Nutrição Vegetal........................................................................................................... 529
Manoel Baltasar Baptista da Costa
Pedagogia do Capital..................................................................................................... 537
Virgínia Fontes
Pedagogia do Trabalho................................................................................................. 545
Caroline Bahniuk e Sandra Luciana Dalmagro
Permacultura.................................................................................................................. 552
Leandro Feijó Fagundes e Fernando Campos Costa
Plantas Medicinais e Fitoterápicos na Saúde Pública. ................................................ 559
Maria Consolación Udry
Política Agrária............................................................................................................. 566
Leonilde de Medeiros
Política Agrícola........................................................................................................... 577
Guilherme Costa Delgado e Sílvio Isoppo Porto
Política Ambiental. ........................................................................................................ 584
Naiara Andreoli Bittencourt
Política Social................................................................................................................ 593
Guilherme Costa Delgado
Políticas Públicas em Agroecologia. ............................................................................ 596
Iracema Ferreira de Moura
Povos e Comunidades Tradicionais. .............................................................................. 603
Monica Nogueira
Práticas e Saberes em Educação e Saúde da População do Campo............................. 609
Etel Matielo e Mercedes Queiroz Zuliani
Produção, Ambiente e Saúde.......................................................................................... 616
Raquel Maria Rigotto e Ada Cristina Pontes Aguiar
Questão Agrária............................................................................................................ 627
João Pedro Stedile
Reforma Agrária Popular. ............................................................................................ 635
Adalberto Martins, Débora Nunes e Geraldo Gasparin
Renda da Terra. ............................................................................................................. 642
João Pedro Stedile
Revolução Verde............................................................................................................ 650
Ceres Hadich e Gilmar Andrade
Ruptura do Metabolismo Socioecológico.................................................................... 659
Luiz Henrique Gomes de Moura
Saneamento Ecológico. ................................................................................................. 669
Alexandre Pessoa e Karla Emmanuella Hora
Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas. ....................................... 676
Alexandre Pessoa Dias e Fernando Ferreira Carneiro
Sementes. ......................................................................................................................... 683
Maitê Edite Sousa Maronhas, Ana Cláudia de Lima Silva e Frei Sergio Görgen
Sistemas Agrários........................................................................................................... 693
Araê Lombardi e Pedro Ivan Christoffoli
Sistema de Certificação Agroecológica ...................................................................... 701
Katya Isaguirre e Naiara Bittencourt
Sistematização de Experiências Agroecológicas.......................................................... 706
Cristhiane Oliveira da Graça Amâncio e Natália Almeida Souza
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. ....................................................... 713
Islandia Bezerra
Solos. .............................................................................................................................. 720
Irene Cardoso e Daniel Mancio
Tecnologias Sociais........................................................................................................ 727
Pedro Ivan Christoffoli
Teia Alimentar. .............................................................................................................. 736
Fábio dal Soglio
Terras Indígenas............................................................................................................. 741
Rosane Freire Lacerda e Saulo Ferreira Feitosa
Território. ...................................................................................................................... 750
Paulo Alentejano e Luiza Chuva
Trabalho......................................................................................................................... 755
Antonio Thomaz Jr.
Transgênicos................................................................................................................... 762
Gabriel Bianconi Fernandes, Hugh Lacey e Leonardo Melgarejo
Transição Agroecológica............................................................................................. 771
Marília Carla de Mello Gaia e Marcelos João Alves
Trofobiose....................................................................................................................... 777
Maria José Guazzelli

Verbetes por eixo............................................................................................................. 781

Anexos............................................................................................................................. 785

Autores (as).................................................................................................................... 801


APRESENTAÇÃO

“No mundo, metade da humanidade tem fome e a outra metade tem medo dos
que tem fome”. A frase de Josué de Castro tem grande atualidade pois, ainda que
tenha se alterado a geografia da fome, a insegurança alimentar permanece como
um dos principais problemas da sociedade contemporânea e é uma das faces da
crescente desigualdade social. Essa reflexão, associada à crítica a um modelo de
desenvolvimento baseado no lucro imediato e que esgota os recursos naturais, está
na base do debate contemporâneo sobre Agroecologia, um dos fundamentos para
um desenvolvimento efetivamente sustentável.
Tema presente no debate institucional há mais de uma década, a Agroecologia
mereceu atenção especial do VIII Congresso Interno da Fundação Oswaldo Cruz,
realizado em 2017, que a definiu como um dos temas prioritários ao se estabelecerem
diretrizes para a Saúde, Ambiente e Sustentabilidade e para a atuação organizada em
torno da Agenda 2030. Para tanto, vem se fortalecendo a perspectiva do trabalho em
rede, com forte participação de movimentos sociais, em torno de programas amplos,
a exemplo do que se refere a Territórios Saudáveis e Sustentáveis.
Por essas razões, vejo com grande satisfação a publicação do Dicionário de Agroeco­
logia e Educação pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV-Fiocruz),
uma obra de produção coordenada com o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) e em parceira com a Editora Expressão Popular. A relação entre
conhecimento e prática presente na perspectiva da Agroecologia só pode se realizar
plenamente a partir da Educação e é este o principal objetivo da presente obra.
Ao reunir nessa edição 106 verbetes, elaborados por 169 autores de diversas
instituições – universidades públicas, institutos federais de educação, movimentos
sociais, institutos de pesquisa – e com representação de autores da Argentina, Gua-
temala e México, ao lado de pesquisadores e educadores brasileiros, o Dicionário de
Agroecologia e Educação contribui para o conhecimento sobre a multiplicidade de
experiências nacionais e locais que dão vida ao conceito de Agroecologia. Resultado
de um esforço coordenado, não se trata de uma simples reunião de temas, mas de
um projeto integrado baseado em amplo diálogo que envolveu a produção coletiva
da obra. O próprio processo de sua construção foi orientado pela perspectiva de se
construir conjuntamente uma Pedagogia da Agroecologia.
A presidência da Fiocruz agradece à Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio, e a todos os parceiros envolvidos, pela organização desse importante
trabalho para a divulgação de saberes e o fortalecimento da ação política necessária
à construção de um novo modelo de desenvolvimento.

Nísia Trindade Lima


Presidente da Fiocruz
INTRODUÇÃO

É com grande satisfação que a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio


da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV-Fiocruz) entrega aos leitores o Dicionário de
Agroecologia e Educação, uma obra de produção coletiva, coordenada com o Mo-
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e em parceira com a Editora
Expressão Popular.
O dicionário vem ao encontro das necessidades e expectativas dos educadores
e educadoras das escolas do campo, inseridos(as) em processos de lutas junto aos
movimentos populares, de articular a Agroecologia com o projeto político pedagógico
das escolas e desenvolver seus fundamentos junto aos conteúdos escolares. O público
a quem se destina esse dicionário é bastante diverso, e almejamos alcançar os/as
educadores/as das escolas do campo, das florestas, das águas e das cidades envolvidos
nos mais diferentes processos de educação e formação; estudantes e trabalhadores de
áreas como saúde, meio ambiente e agrárias; e militantes nos processos formativos
e de organização da classe trabalhadora.
Essa edição apresenta 106 verbetes, que envolveu um conjunto importante de
169 autores e autoras – educadores, militantes, pesquisadores – de 68 instituições
distintas, dentre estas, universidades públicas, institutos federais de educação, movi-
mentos sociais, instituições públicas de pesquisa, organizações não governamentais
e redes. Autores de três países latino-americanos – Brasil, Guatemala e México –
puderam contribuir.
A produção coletiva de um dicionário sobre a Agroecologia é mais uma ferramenta
de luta no confronto ao atual modelo de desenvolvimento capitalista no campo e na
cidade, o qual tem produzido contradições ambientais e sociais cada vez maiores e
mais profundas. A sociedade de consumo e a mercantilização da vida resultam na
ampliação da privatização dos bens comuns, na concentração das terras, na disso-
ciação entre o ser humano e a natureza, bem como no desequilíbrio ecológico. Este
processo está inserido num contexto de mudança no núcleo dinâmico do modo de
produção do capitalismo em que a hegemonia do capital industrial transita para a
do capital financeiro.
As consequências são muitas nas distintas formas de produção da vida e colo-
cam novos elementos para as questões agrária e ambiental. O movimento histórico
do capital, portanto, continua alterando as condições da vida social, exacerbando
as contradições e promovendo novas tragédias ambientais ao procurar expandir-se
ilógica e absurdamente (Fontes, 2010). Nesse sentido, a Agroecologia se constitui
como um dos pilares fundamentais do projeto de sociedade justa, democrática e que
se baseia em novas relações ser humano/natureza.
No processo de construção da consciência, a Educação cumpre papel decisivo ao
contribuir com a instauração de outras relações do novo homem, da nova mulher,
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

da nova família. O desafio é construir novas relações na direção da emancipação


humana ainda sobre as limitadas relações sociais configuradas sob o capitalismo. Ao
buscarmos constituir uma obra que contribua para a ação educativa do educador
e da educadora do campo e da cidade, nos orientamos pela compreensão de que
estes seres humanos são produtos deste tempo histórico, mas podem transformar as
circunstâncias e a si mesmos, se autoeducando enquanto sujeitos coletivos.
Nessa elaboração coletiva, refletimos sobre experiências anteriores e avaliamos
que o Dicionário da Educação do Campo (Caldart et al., 2012), construído também
na interlocução entre a EPSJV e o MST, tornou-se um instrumento não só para
a Educação do Campo, mas ampliou seu uso para outros processos formativos da
classe trabalhadora. No Dicionário de Agroecologia e Educação, optamos por atuali-
zar, em alguns casos, verbetes existentes ou proporcionar um enfoque diferente da
obra anterior.
É importante esclarecer que, no momento de elaboração daquele dicionário,
há nove anos, a Agroecologia não se constituía ainda como uma síntese central
para a Educação do Campo. No entanto, já se consolidava como base fundante não
de uma alternativa, mas sim do único projeto possível de produção de alimentos e
matérias-primas que atende às necessidades das famílias trabalhadoras da cidade e
do campo, bem como da Mãe Terra.
O semear da Agroecologia vem de longe. Entrelaçando lutas populares, conhe-
cimento tradicional e conhecimento acadêmico, movimentos populares e ONGs que
trabalham com Agroecologia constituíram as forças de enfrentamento ao latifúndio
e à Revolução Verde no início de 1980. Suas origens não estão em tecnologias mi-
lagrosas ou pacotes “ecológicos”, mas sim no desenvolvimento de metodologias de
trabalho popular e diagnósticos da realidade que, articuladas a sistemas de aperfei-
çoamento e inovação horizontais dos agroecossistemas, produziram uma diversidade
de iniciativas nos distintos biomas do país.
Também não é fruto exclusivo do campesinato brasileiro. Em todo o mundo, o
movimento camponês enfrentou o modelo de exploração capitalista da agricultura
com a organização popular e lutas de denúncia e defesa de seus territórios e com o
fortalecimento de manejos produtivos que garantissem uma autonomia relativa dos
territórios frente ao capital, baseados em refuncionalização de práticas tradicionais.
As articulações internacionais iniciais entre movimentos camponeses, universidades
e ONGs, durante o final da década de 1980, possibilitaram muitos intercâmbios de
formas de luta e, principalmente, de como articular as inúmeras experiências de
agricultura contra-hegemônicas que se consolidavam.
A constituição da Via Campesina em âmbito mundial, no início dos anos 1990,
potencializou esse intercâmbio e a elaboração coletiva de uma nova agricultura cam-
ponesa frente à capitalista, em um período de emergência do que viria a ser o agrone-
gócio. Na América Latina, nesse período se conformam dois processos importantes:
a Coordenadoría Latinoamericana de Organizaciones del Campo (Cloc), articulando
movimentos camponeses com forte metabolismo socioecológico; e o Período Especial
cubano, que se transforma em uma verdadeira revolução agroecológica. É no mesmo
período que se articula também o Movimiento Agroecológico de América Latina y el

14
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Caribe (Maela), uma rede de ONGs e organizações territoriais que foi decisiva para
os intercâmbios das práticas e elaborações agroecológicas no continente.
Esse processo atravessou a década de 1990 produzindo uma série de saltos
qualitativos, ora articulando encontros de estudantes, profissionais e pesquisadores,
ora implementando sistemas de assistência técnica inspirados na metodologia Cam-
pesino a Campesino (de países como Guatemala, Nicarágua e Cuba), intercâmbios,
pesquisas participativas, feiras e bancos de sementes. A diversidade de iniciativas e
formas organizativas que envolviam movimentos populares, grupos locais, ONGs,
movimento estudantil, sindical e agrário de várias partes do território nacional
amadureceu com esses processos e resultou na construção de redes de articulação,
de forma que as várias experiências pudessem produzir sinergias.
A efervescência desse período tem imediata relação com o avanço de uma nova
forma de organização do capitalismo no campo. A entrada das sementes transgênicas,
base produtiva da agricultura capitalista a partir da segunda metade da década de 1990,
é um ponto-chave para compreender a convergência nas trajetórias dos movimentos de
luta pela terra e da Agroecologia. Isso porque os transgênicos representam a consoli-
dação do neoliberalismo no campo. Do ponto de vista técnico, tem-se o controle sobre
as sementes; do ponto de vista econômico, tem-se o atrelamento dos agricultores a um
reduzido grupo de transnacionais; e do ponto de vista político, tem-se o peso dessas
empresas sobre os governos nacionais. As políticas resultantes desse modelo reduziram
as possibilidades de reforma agrária e de transição agroecológica. Daí a articulação
para enfrentá-lo, que produz um efeito dialético de ampliação das formas produtivas
que se direcionam para a reconstrução ecológica da agricultura.
A consolidação político-ideológica do agronegócio, a partir dos anos 2000, sig-
nificou a entrada do Brasil num novo ciclo de reprimarização da economia. Outras
redes e movimentos estavam organizados no país para denunciar os efeitos sociais e
ambientais resultantes da busca por crescimento econômico a qualquer custo. Esses
movimentos foram aos poucos identificando a necessidade de ter um projeto próprio
que pudessem defender, para além de evidenciar o modelo que rejeitavam. São frutos
desse entendimento os Encontros Nacionais de Agroecologia (ENAs) e, mais adiante,
o encontro Diálogos e Convergências, em 2011, convocado pelos movimentos de
justiça ambiental, economia solidária, comunicação popular, feminismo, segurança
e soberania alimentar e nutricional e saúde ambiental. A luta pela Agroecologia
passou a ser abraçada também por esse amplo conjunto de sujeitos. A retomada de
uma campanha contra os agrotóxicos1 e o novo leque de alianças que ela motivou
– culminando dentre uma de suas ações na elaboração do Dossiê Abrasco2 – podem
ser consideradas como produtos desse processo de convergência de lutas.
Ao mesmo tempo, os movimentos populares camponeses passam a organizar
as diversas experiências concretas existentes, até então muito dispersas, de modo
a incluir a Agroecologia dentro de suas diretrizes programáticas, entendendo a

1
Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotóxicos e Pela Vida, criada em 2011; página oficial:
https://contraosagrotoxicos.org/.
2
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Carneiro et al., 2015).

15
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Agroecologia como único projeto viável para o campesinato brasileiro. O Encontro


Unitário dos Trabalhadores, Povos do Campo, das Águas e das Florestas, realizado
em agosto de 2012, as Marchas das Margaridas (especialmente as de 2011 e 2015) e
os Congressos Nacionais do MST3 demonstram a centralidade que a Agroecologia
assume nessas organizações e em suas reivindicações políticas.
Outro processo mais recente, mas nem por isso menos importante, tem sido a
significativa ampliação da base social que se identifica com a Agroecologia e que re-
conhece a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) como um espaço agregador.
Aqui nos referimos aos povos indígenas, aos quilombolas e aos povos e comunidades
tradicionais, como as quebradeiras de coco, entre outros. Essa identificação reconhece
e ao mesmo tempo reforça uma das características fundantes da Agroecologia, que
é a valorização das práticas tradicionais e do conhecimento local associado.
Esses encontros, em boa parte, são resultado das ações territoriais de construção
da Agroecologia e de intercâmbios e trocas de experiências que nos últimos tempos
vêm mobilizando esses sujeitos nos diferentes biomas. O processo de consultas para
construção da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Brasil,
2012), sua implementação e o próprio funcionamento da Comissão Nacional de
Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) consolidaram a capacidade de rede
e articulação das organizações de caráter territorial ou nacional para construção de
uma perspectiva agroecológica para o campo brasileiro.
É essa confluência que nos permite dizer que a Agroecologia conforma um
movimento que permeia muitos movimentos populares. Nesse processo, cada região,
bioma e sujeito que foi se aproximando trouxe diferentes olhares e referenciais. Alguns
conceitos foram criados e outros ganharam novos significados à luz do processo de
construção da Agroecologia e dos desafios impostos pela conjuntura. A contínua
interpretação e interiorização de conceitos trazidos pelas práticas locais – tais como
rede, escala, território, experiência, cosmovisões – é que vem ajudando a construir
o entendimento que temos sobre a Agroecologia no Brasil e na América Latina.
O livro que está em suas mãos busca contribuir para a sistematização da Agroeco­
logia no Brasil, a partir de um conjunto amplo e diverso de olhares, identificando os
seus fundamentos centrais e como eles podem ser compreendidos pelo conjunto da
classe trabalhadora. Algumas questões fomentaram a urgência de sua elaboração,
a saber: o que as crianças, jovens e adultos precisam compreender sobre a lógica
agroecológica de estabelecer relações entre ser humano e natureza? Qual é o básico
– no sentido da constituição dos fundamentos científicos – que as pessoas precisam
compreender sobre a Agroecologia? Identificamos que a construção deste dicioná-
rio nos dará novas pistas e sínteses para situarmos a Agroecologia num projeto de
transformação social.
Não consideramos, porém, a Agroecologia como um novo projeto de sociedade.
Ela só poderá atingir a sua completude em outra sociedade. Faz-se necessário discutir

3
Desde seu 4° Congresso, o MST aponta a necessidade de construir uma outra matriz tecnológica de
bases sustentáveis, o que é reconhecido como a Agroecologia no 5° Congresso, em 2007, e reafirmada
como única possibilidade para o campesinato brasileiro no 6° Congresso, em 2014.

16
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

sobre Agroecologia a partir da crítica à sociedade capitalista, transformando-a em


processo orgânico em que as experiências e a sua síntese, do ponto de vista técnico,
político e histórico, possam atingir uma ampla escala. A Agroecologia, como pon­
tuamos sinteticamente nessa introdução, abarca uma diversidade de sujeitos, espaços,
concepções, práticas e formas de luta; envolve convergências e contradições, e se
encontra hoje, mais do que nunca, em disputa. Buscamos apresentar, portanto, o
próprio processo de produção de conhecimento sobre a Agroecologia – compreenden-
do o conhecimento como aproximações contínuas sobre a realidade, demonstrando
que não há neutralidade em sua construção.
Nessa perspectiva, a Agroecologia questiona as exigências formativas da pe-
dagogia do capital. Os movimentos de camponeses, indígenas e quilombolas, entre
outros sujeitos, reforçam a relação entre a Agroecologia e a luta pela Reforma Agrária
Popular, pela demarcação das terras indígenas e pelo reconhecimento dos territórios
quilombolas, assim como com outras formas não mercantis de apropriação da terra,
dos bens naturais e culturais, logo, também com outras maneiras de produzir a
existência, não restritas exclusivamente ao lucro.
A relação entre educação e Agroecologia se apresenta como um espaço fecundo
de elaboração. As experiências educativas agroecológicas em curso, em particular no
contexto brasileiro, têm se referenciado nos fundamentos da pedagogia do trabalho
e da educação popular, trazendo matrizes teóricas que exigem o diálogo entre a
educação, o trabalho e a cultura por meio da articulação orgânica entre os processos
produtivos e educativos.
A Agroecologia se anuncia como um terreno fértil de criação de novas relações
de trabalho, na direção da emancipação social em compromisso com a humanidade e
seu futuro, o que se relaciona com a defesa da vida, da saúde e do ambiente, em uma
perspectiva de totalidade. Ela é estratégica para a promoção da saúde nos territórios e
na elaboração de políticas públicas que visem a estruturação da soberania alimentar.
Ao ter como centralidade essas concepções pedagógicas, a Agroecologia agrega
diferentes áreas de conhecimento para apreender a relação sociedade e natureza.
Ao incorporar diferentes tipos de conhecimentos, engloba, portanto, as distintas
formas de produzir e reproduzir a cultura e o conhecimento nos processos formati-
vos formais, não formais e informais, fomentando a constituição de novas relações
e práticas sociais.
O conhecimento agroecológico se estabelece no diálogo entre o conhecimento
popular e o conhecimento científico, entre a teoria e a prática, entre a realidade
imediata e a totalidade social. Coloca os diferentes sujeitos – camponeses e povos
originários e tradicionais, educadores, técnicos, e pesquisadores – em relação. Valoriza
o conhecimento dos povos originários, tradicionais e comunidades camponesas, com
o objetivo de construir, em diálogo com o conhecimento técnico-científico, saberes
e experiências atuais que problematizem e transformem a realidade. A produção e
a socialização do conhecimento agroecológico exigem uma pesquisa sistemática da
realidade com a contribuição efetiva dos diferentes sujeitos.
A presente publicação, datada historicamente, insere-se em um contexto de
profunda degradação ambiental e de mercantilização da vida, expressando-se drama-

17
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

ticamente na particularidade atual brasileira – crimes da mineração, liberação inten-


siva de novos agrotóxicos, desmatamento, queimadas e diversas formas de agressão e
espoliação dos bens comuns. Soma-se a esse cenário desastroso uma intensa retirada
de direitos trabalhistas e previdenciários, além de processos de mercantilização da
educação, da saúde e de outros direitos sociais. Todas essas ações são orquestradas a
favor da acumulação do capital e em detrimento da vida. Esse dicionário soma-se à
denúncia dessa condição e à luta por novas formas de organizar a produção da vida.

O processo de construção do dicionário


Para a construção desse dicionário, tomamos como referências o Dicionário de
Educação Profissional em Saúde (Pereira; Lima, 2008) e o Dicionário da Educação do
Campo (Caldart et al., 2012), buscando realizar uma expressão coletiva da Agroeco­
logia e suas dimensões centrais – ciência, práxis e movimento – com a intenção de
fortalecer a Agroecologia e, em particular, auxiliar os processos de formação nessa
direção.
Não pretendemos que o dicionário tenha um sentido normativo, e sim uma
perspectiva crítica, de diálogo com/entre os diversos sujeitos envolvidos. Também
buscamos nos afastar da dimensão meramente instrucional ou informativa, no sen-
tido de como desenvolver técnicas agroecológicas, pois já existe uma quantidade
razoável de material publicado.
Inicialmente fizemos uma consulta às pessoas e às instituições parceiras no
sentido de indicarem verbetes para a constituição da obra, visto que são sujeitos,
individuais e/ou coletivos, que vêm produzindo sobre a Agroecologia. Com um
primeiro acúmulo de algumas centenas de sugestões, a coordenação da publicação
agrupou alguns conceitos e temáticas em verbetes-síntese e estabeleceu preliminar-
mente quatro eixos agregadores, apresentados e discutidos coletivamente em uma
oficina realizada em junho de 2018 no Rio de Janeiro. A partir da oficina, foi possível
aprimorar os eixos, seus verbetes e ementas.
Ao organizar esta obra, os eixos se tornaram guias metodológicos, não sendo
os definidores da forma final do Dicionário – que se apresenta, portanto, em ordem
alfabética. No entanto, para facilitar o reconhecimento pelo(a) leitor(a), em todo
verbete haverá um ícone específico que o identificará ao seu eixo de origem. Também
ao final do Dicionário haverá a lista dos eixos e seus verbetes correspondentes para
que o(a) leitor(a), na constituição de seus percursos de leitura, possa consultá-los,
caso assim o deseje.
O primeiro eixo – denominado Metabolismo socioecológico: questão agrária,
sociedade e natureza – tem por objetivo discutir a complexa interdependência entre
os seres humanos e a natureza, ou seja, as relações históricas entre a sociedade e a
natureza. Inclui, assim, as condições impostas pela natureza (como os biomas, por
exemplo) e a capacidade dos seres humanos de transformar seus processos por meio
do trabalho. Abrange, portanto, essa relação inscrita no modo de produção capitalista
tardio, no contexto do antagonismo campo e cidade, do conflito entre o agronegócio
e o campesinato, da depredação da natureza e da superexploração do trabalho, entre
outros. Identifica também os sujeitos que se rebelam, se organizam e lutam contra

18
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

o sistema, suas propostas e elaborações teóricas na construção da Agroecologia.


Aborda, enfim, as tecnologias que impulsionaram o desenvolvimento do capital no
campo e a industrialização da agricultura, bem como as modernas tecnologias de
manipulação da vida. É um eixo composto por 44 verbetes, envolvendo um conjunto
de 74 autores e autoras e sendo identificado pelo ícone .
O segundo eixo – Agroecologia e bases ecológicas da agricultura – buscou trazer o
debate sobre a Agroecologia em sua dimensão de ciência que fornece tanto as bases
teóricas e metodológicas para o manejo sustentável dos agroecossistemas como es-
tabelece o diálogo entre os conhecimentos tradicionais e os complexos sistemas que
usam os recursos locais para minimizar a necessidade de insumos externos. Nessa
direção, remete-se às práticas agroecológicas enquanto estratégias dos agricultores
familiares, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais na luta por autonomia
e segurança alimentar. Trata-se de um campo multidisciplinar de conhecimentos
que aplica a visão de sistemas e princípios da Ecologia no desenho e no estudo da
produção agrícola, pecuária e florestal, nas suas relações internas e com o meio no
qual está inserida. Neste eixo foram agrupados 16 verbetes (cujo ícone é ), escritos
por 27 autores e autoras que trazem, portanto, os princípios centrais da Agroecologia
e de algumas correntes e práticas da agricultura alternativa que se fundamentam
em tais princípios.
O terceiro – Organização popular, agroecologia e Estado – procurou trazer para o
debate a Agroecologia em seu processo de consolidação, como elemento dinâmico
da totalidade de um projeto emancipatório dos povos, fomentando uma dimensão
transformadora vinculada a uma práxis territorialmente localizada nas múltiplas
expressões do campesinato. Entretanto, a Agroecologia não está circunscrita a
um projeto autárquico do campesinato, mas está baseada em uma perspectiva de
superação da ruptura metabólica empreendida pelo desenvolvimento do modo de
produção capitalista. Nessa perspectiva, a Agroecologia se relaciona dialeticamente
entre a organização popular e o Estado, uma vez que seus sujeitos – trabalhadores
do campo e da cidade – estão em constante articulação e mobilização, realizando
o embate em torno dos aparelhos estatais e da efetivação de políticas públicas. Os
verbetes articulados por este eixo buscam compreender as mediações entre esses
processos, aprofundando conceitos, formas organizativas da luta popular e políticas
públicas conquistadas nas últimas décadas pela classe trabalhadora. Estão reunidos,
aqui, 24 verbetes, escritos por 35 autores e autoras, identificado pelo ícone .
O quarto e último eixo – Educação, Saúde, Cultura e Agroecologia – coloca a
necessidade de novas exigências formativas na interface entre natureza, trabalho e
cultura, em contraposição à pedagogia do capital, ao compreender a Agroecologia
como reconstrução ecológica e social da agricultura. A relação entre Agroecologia e
educação tem por centralidade o trabalho no campo, desenvolvido pelos movimentos
e sujeitos sociais em luta na direção da emancipação social, comprometendo-se com
a humanidade e seu futuro – o que se relaciona com a defesa da vida e questões rela-
cionadas à saúde e ao ambiente, em uma perspectiva de totalidade. Fundamenta-se,
assim, nos pressupostos da Pedagogia Socialista, da Pedagogia do Movimento, da Edu-
cação do Campo e da Educação Popular, produzindo o diálogo entre o conhecimento

19
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

popular e o conhecimento científico, com necessária relação entre teoria e prática,


instigando a investigação sobre a realidade imediata em conexão com a totalidade
social. Engloba, portanto, as distintas formas de produzir e reproduzir a cultura e o
conhecimento nos processos educativos formais, não formais e informais, fomentando
a constituição de novas relações e práticas sociais. Esse eixo nos fornece um amplo
leque de temáticas, tais como a incorporação da Agroecologia à Educação Básica,
algumas experiências educacionais em Agroecologia e práticas e saberes em saúde,
contrapondo-se aos processos contemporâneos de privatização e mercantilização da
educação pública. Envolvendo 52 autores e autoras em seu processo de elaboração,
apresenta 22 verbetes que poderão ser reconhecidos pelo ícone .
Para dar uma maior unidade à obra, estabelecemos uma orientação geral a todos
os autores: redigir textos aprofundados e conceitualmente rigorosos, mas com lingua-
gem acessível. Assim, foi solicitado aos/às autores/as que desenvolvessem a gênese,
o desenvolvimento e a atualidade de cada assunto tornado verbete, salientando a
práxis (a articulação entre a teoria e prática) como uma necessidade para avançarmos
na construção da Agroecologia. Sugerimos também que, sempre que possível, os/as
autores/as indicassem sugestões de materiais de apoio ao desenvolvimento do tema,
pensando nos/as educadores/as a quem se destina prioritariamente esse material.
Esse esforço de organização procura expressar um todo coerente, sendo possível ao
leitor identificar a intertextualidade, as referências cruzadas entre os verbetes que
compõem o dicionário.
No processo de construção do dicionário, problematizamos e debatemos coletiva-
mente se deveria ser elaborado um verbete específico sobre “Agroecologia”, uma vez
que a compreendemos como síntese e em relação a múltiplas conexões. Chegamos
à conclusão de que seria estratégico para os nossos objetivos apresentar uma síntese
(ainda que provisória) centrada nos sujeitos sociais que estão em sua origem, que a
objetivam em sua práxis cotidiana e que a constituem como luta – os camponeses
e camponesas e povos originários e tradicionais –, pois isso nos permite demarcar o
nosso campo de disputa em torno do que seja a Agroecologia. O(a) leitor(a) poderá
observar que grande parte dos verbetes traz concepções próprias sobre a Agroeco-
logia, de maneira a contemplar a diversidade do debate entre os movimentos e as
organizações, embora sem pretender esgotá-lo.
Também há que se destacar que esta obra foi possível devido ao árduo trabalho
dos coordenadores de eixos, especialistas nos temas em questão, que conduziram um
intenso processo de articulação e diálogo com autores, e que também se tornaram
revisores dos verbetes, pensando minuciosamente em todo o processo de concepção,
de escrita e de revisão.
Antes de finalizar esta introdução, precisamos agradecer às pessoas que se dedica-
ram a construir em muitas mãos esse projeto coletivo. Ela não teria sido possível sem
o comprometimento, a disciplina e o companheirismo dos autores e das autoras desta
obra; além disso, foi de fundamental importância o trabalho da secretaria, a quem
agradecemos na pessoa de Talles Reis, que operacionalizou os encaminhamentos e
articulações entre coordenadores e autores.

20
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Agradecemos aos revisores e revisoras que se dispuseram a dialogar com a obra


e compreenderam que a construção deste dicionário é um ato de militância em
favor da constituição de um país soberano. De igual maneira, agradecemos a todos
os trabalhadores e trabalhadoras da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/
Fiocruz que se envolveram em cada tarefa necessária para viabilizar a elaboração,
produção e edição deste dicionário.
Um agradecimento especial à presidência da Fiocruz, na figura de sua presidente,
Nísia Trindade Lima, e à vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da
Saúde, na figura de Marco Antônio Carneiro Menezes, que acreditaram na relevân-
cia deste trabalho, investindo para que este enfim se concretizasse. Agradecemos
também o apoio da Fundação Heinrich Böll, por meio de seu escritório no Brasil.
Esperamos que esse trabalho coletivo propicie uma leitura tão rica quanto seu processo
de elaboração, contribuindo para que cada leitor e leitora produza sua contrapalavra
(Bakhtin; Volochínov, 1992) e que possamos compreender que “os obstáculos não
interrompem a história ...[e] que o homem cabe apenas na utopia” (Sábato, 2000,
p. 165). Sigamos!

Alexandre Pessoa Dias


Anakeila de Barros Stauffer
Luiz Henrique Gomes de Moura
Maria Cristina Vargas
Organizadores

Caroline Bahniuk
Dominique Guhur
Gabriel Bianconi Fernandes
Coordenadores dos eixos

Julho de 2021

Referências
BAKHTIN, M.; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
BRASIL. Decreto n. 7.794, de 20 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Agroecologia e Pro-
dução Orgânica. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para assuntos jurídicos, 2012.
CALDART, R. S. et al. Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular, 2012.
CARNEIRO, F. F. et al. (org.) Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde.
Rio de Janeiro/São Paulo: EPSJV/Expressão Popular, 2015.
PEREIRA, I. B.; LIMA, J. C. F. (org.). Dicionário de Educação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro:
EPSJV, 2008.
FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV/Editora
UFRJ, 2010. 388 p.
SÁBATO, E. Antes do Fim: Memórias. São Paulo: Companhias das Letras, 2000.

21
A
ACAMPAMENTOS E ASSENTAMENTOS

G er aldo Gaspar in
R osmer i Witcel
M ar ina dos Sa ntos

Trataremos aqui não da gênese dos desenvolvimento dos assentamentos de


acampamentos e dos assentamentos, mas reforma agrária.
de seus vínculos orgânicos e de como Combatendo a clássica acusação
foram se constituindo em formas organi- dos latifundiários e dos inimigos da
zadas para impulsionar a luta pela terra reforma agrária de que os acampamen-
no Brasil a partir do final dos anos 1970 tos são amontoados de pessoas e de
e início dos 1980. Em cada contexto reprodução da miséria, reafirmamos
específico, em função das condições que estes são, antes de tudo, espaços
da própria luta e da necessidade de de luta e resistência. Por isso que, em
responder a seus desafios, esses territó- sua constituição física, levam em conta
rios de luta e resistência também foram os aspectos geográficos que criam as
adquirindo novos sentidos e conteúdos. melhores condições para a resistência
A respeito dos inúmeros fatores que onde ela se faz necessária.
estão na gênese da retomada da luta pela Em geral, os acampamentos pos-
terra e do surgimento do Movimento dos suem um arranjo espacial linear ou
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)1 em forma de círculos. São formados
os acampamentos foram uma das pri- núcleos de moradia que comumente se
meiras formas encontradas para dar transformam em núcleos de base pela re-
visibilidade à luta dos Sem Terra. Com presentação de no mínimo dez famílias.
o próprio desenvolvimento do MST, a Cada núcleo tem a representação de um
forma organizativa acampamento foi se coordenador e uma coordenadora. Em
consolidando como a porta de entrada cada núcleo de base, os membros assu-
na organização política. Assim, há de mem uma tarefa específica no conjunto
se supor que as dinâmicas estabelecidas das tarefas organizadas para manter
dentro dos acampamentos vão ter seu o próprio acampamento – da alimen-
ref lexo imediato sobre a formação e tação, saúde, educação à organização
A C A M PA M E N T O S E A S S E N TA M E N T O S

dos processos de luta. São diversas as injusta distribuição da terra no Brasil.


A comissões e equipes que dão a dinâmica Chamam atenção para o fato de que há
de um acampamento. Assim, num acam- muita gente sem terra e muita terra sem
pamento, os espaços físicos são criados gente, e estabelecem uma forma de luta
com o objetivo de atender às diversas ne- que foi se consolidando como referência
cessidades: espaço para a escola, para as aos trabalhadores e trabalhadoras que
reuniões das equipes, assembleias, para querem mudar de vida e produzir com
o lazer, aonde se organiza a segurança, dignidade a sua existência.
a horta comunitária etc. É importante compreender também
O acampamento é o lugar do en- o caráter político dos acampamentos.
contro dos despossuídos da terra: traba- Seja na beira de rodovias, seja nas ocu-
lhadores rurais, atingidos por barragens, pações de latifúndios, foram as formas
boias-frias, arrendatários, meeiros, pe- de lutas principais da reforma agrária,
quenos proprietários, parceiros, desem- resultado de um amplo trabalho de base,
pregados. Enfim, famílias que estavam de conscientização e de preparação de
desprovidas do seu direito de produzir lideranças que coordenam essas lutas
alimentos. Trabalhadores expulsos por massivas, tendo por objetivo pressionar
um projeto de agricultura capitaneado governos e mobilizar a sociedade sobre
pela ditadura civil-militar (1964-1984), o problema da má distribuição de terra
que prometia a “modernização” do cam- no Brasil. O caráter político é, sobre-
po quando, na verdade, estimulou a tudo, porque estes acampamentos são
concentração de terra, o uso massivo de organizados sob a lógica da participação
agrotóxicos, a mecanização, baseados em efetiva e não da delegação de poderes
fartos créditos rurais (exclusivos ao lati- e da representação. É político porque
fúndio); ao mesmo tempo que ampliavam se organizam com base em instâncias
o controle da agricultura nas mãos de coletivas de decisão, começando com os
grandes conglomerados agroindustriais, núcleos de base compostos por um de-
na sua maioria pertencentes a corpora- terminado número de famílias, como as
ções internacionais. assembleias, e avançando para instâncias
Ao organizar os acampamentos, o participativas de gestão e de trabalho,
MST explicita o combate à desigualdade chamadas de setores e ou coletivos, que
e à miséria no meio rural, a luta pela se ocupam dos mais diversos assuntos
justa distribuição da terra contra um e ações necessários ao funcionamento
latifúndio violento e atrasado, a luta pela e manutenção daquele acampamento,
reforma agrária e por um novo projeto de como alimentação, saúde, educação,
agricultura e por transformações sociais mobilização, cultura, comunicação,
profundas. As primeiras grandes lutas produção, segurança, formação política,
massivas por meio de acampamentos gênero, finanças, juventude etc.
estão associadas às ocupações de terra, Queremos evidenciar o aspecto da
carregando consigo as principais formas organicidade dos acampamentos, que
organizativas do MST por meio desses reconhece a importância de cada um de
objetivos explicitados. seus membros. Pelos princípios organiza-
Assim, os acampamentos, por si só, tivos, só é acampado quem desenvolve
contêm uma denúncia explícita: a da alguma tarefa, seja ela de caráter mais

24
A C A M PA M E N T O S E A S S E N TA M E N T O S

prático, seja de caráter mais político. Essa Por fim, ainda em seu caráter políti-
é a principal maneira do povo exercer co, a ocupação do latifúndio é uma das A
de fato a democracia, na prática. Não maneiras encontradas para pressionar
delegando poder, mas se fazendo repre- os governos. É um fator importante nas
sentar. Ali, cada pessoa é convidada a negociações, pois gera contradições e
participar, a dar a sua contribuição, a sua mostra para a sociedade e para o poder
opinião, ou ela se autoexclui do processo. político que a solução para o conflito
E é ali, no núcleo de base, que as famílias está no processo de desapropriação do
constroem suas normas de convivência, latifúndio, na distribuição da terra, na
constroem novas sociabilidades na vida realização da reforma agrária. Sabida-
comunitária – onde a democracia é um mente, foram as ocupações de terras
exercício real. nos latifúndios que não cumprem a sua
O caráter político se destaca tam- função social que transformaram o MST
bém porque o acampamento é sempre num dos maiores movimentos popula-
um momento de ruptura na vida dos res da luta pela terra, mas também, na
indivíduos que dele participam. A de- atuali­dade, da luta anticapitalista, da
terminação de enfrentar as difíceis luta antissistêmica no mundo.
condições sob os barracos – em geral de Um terceiro aspecto e imbricado aos
lona preta, nas beiras das estradas e/ou anteriores diz respeito ao caráter peda-
nos latifúndios – é de quem quer mudar gógico, ao caráter formativo. O acampa-
de vida, de quem quer transformar a mento é reconhecidamente um espaço
­realidade. O acampamento pressupõe privilegiado de formação dos futuros
não apenas o ingresso em uma luta, mas assentados, de projeção de como será o
o potencial rompimento com uma posi- assentamento, partindo da organização
ção passiva frente à situação de pobreza da produção e chegando aos aspectos
e marginalização vivida pelo sem-terra. sociais, da moradia, da educação, da
A ruptura também faz referência à ex- organização dos espaços comunitários.
perimentação de uma nova situação A relevância no aspecto formativo é
de vida, com a possibilidade de apren- reconhecida quando os participantes
dizagem de uma forma de convivência podem se constituir “como um novo
mais coletiva e comunitária. Agora, no sujeito social, no sentido de sujeito co-
acampamento, o sujeito se reconhece letivo que passa a participar dos embates
como um coletivo e portador de direitos. sociais” (Caldart, 2004, p. 34). Todavia,
Descobre, pela prática e pelos processos ao participarem da luta pela terra, os Sem
de formação, que acampar sem ocupar Terra reorganizam sua identidade social
dificilmente leva à conquista da terra. com base nessa experiência singular,
Mas descobre ainda que, ao romper a posto que a ocupação de terra e a vida
cerca do latifúndio de forma coletiva, no acampamento proporcionam uma
tensiona também com várias outras experiência que questiona os padrões
cercas, como a do individualismo, do culturais prévios dos acampados, levan-
egoísmo. Reconhece rapidamente que do a uma “mudança de conceitos, de
precisa lutar contras outras cercas, valores, de postura diante de determina-
como a da comunicação, a do capital, das realidades” (Caldart, 2004, p. 35). É
a da intolerância, a do analfabetismo. esse processo de tomada de consciência

25
A C A M PA M E N T O S E A S S E N TA M E N T O S

que confere esse caráter formativo aos vão mudando, embora mantenham a
A acampamentos do MST. É o novo ser mesma essência. Citamos, por exemplo,
social – não mais um indivíduo isolado os acampamentos/assentamentos comu-
em sua problemática social, mas um su- nas: trata-se de uma forma de acampa-
jeito coletivo – que vai proporcionando mento organizado pelo MST desde o
uma nova consciência social. início dos anos 2000. Caracterizam-se
Todavia, a experiência de acampar e por um perfil de público originário da
ocupar o latifúndio é ímpar. Ao ocupar periferia dos grandes centros urbanos;
um latifúndio, mais do que romper a quando consolidados os assentamentos,
cerca, o indivíduo tensiona uma visão as terras geralmente se situam próximas
de mundo que afirma que nada pode ser às grandes cidades, tendo unidades
mudado, que remete a uma aceitação da produtivas em geral menores de 5 hec-
passividade, da eterna repetição de que a tares. A agroecologia e a cooperação
propriedade privada é sagrada, e se per- agrícola encontram importante adesão
mite um momento de crítica com relação e o acesso à terra incorpora diversas
à situação que lhe é apresentada como formas coletiva.
imutável. Em conjunto, eles vão criando Outra referência importante são os
a possibilidade de tomar em suas mãos a acampamentos produtivos ou assenta-
rédea de sua história, de fazer seu próprio mentos populares, realizados a partir da
e diferente caminho. Esse é, a nosso ver, ocupação dos latifúndios. Ao se con-
o caráter pedagógico dos acampamentos solidar a ocupação, estabelece-se uma
e de suas necessárias ocupações. É uma dinâmica e um planejamento para que as
revolução nas consciências das pessoas famílias produzam para o autoconsumo
e que, em geral, não tem mais cami- e vendam o excedente como forma de
nho de volta. A participação no MST autossustento. A opção pelo trabalho
pela “porta” dos acampamentos permite cooperado e pela produção agroecológica
romper com a fragmentação do sujeito também é estimulada constantemente,
e de sua consciência; de um indivíduo como forma de melhorar a qualidade de
alienado de si mesmo e do mundo ele se vida das famílias. Reconhecidamente, os
torna portador de direitos e de uma nova acampamentos terão melhor condição de
sociabilidade que só a luta faz construir. resistência, dada a capacidade de organi-
São os acampamentos, com seu ca- zar a produção e, portanto, as condições
ráter formativo, o espaço privilegiado de econômicas das famílias.
preparar as lideranças, de qualificá-las Outra modalidade é a dos acampa-
para as diferentes tarefas que terá de mentos permanentes e abertos, como
conduzir. É nos acampamentos e nos seus fatores de mobilização das famílias que
intensos processos de luta e resistência querem lutar pela terra. Conforme as fa-
que os militantes se forjam e se compro- mílias anteriores, pelos processos de luta,
metem a ajudar a resolver os problemas vão conquistando a terra, novas pessoas
do povo sem-terra. vão se incorporando no processo do
Poderíamos ainda tratar das formas acampamento permanente que se man-
organizativas diferenciadas dos acam- tém aberto, acolhendo novos sem-terra.
pamentos, sobretudo pelo perfil do seu Em relação aos acampamentos, cabe
público e das conjunturas políticas que ainda ressaltar a preocupação fundamen-

26
A C A M PA M E N T O S E A S S E N TA M E N T O S

tal com a escolarização básica. Acampa- elementos na disputa permanente dos ter-
mentos não são estabelecidos sem que a ritórios. A disputa se dá pela construção A
questão da educação seja equacionada, de uma nova sociabilidade, novos valores,
seja pelas escolas itinerantes, como espa- novas formas de produzir os alimentos,
ços móveis de discussão e aprendizados nova relação com a natureza. Assim, os
no campo, seja pelas escolas mantidas assentamentos representam um acúmulo
pelos governos estaduais e/ou municipais de força social para a luta política, para
onde os acampamentos se localizam. as transformações sociais mais profundas,
Em geral, é a mobilização intensa das já que a reforma agrária não encontra
famílias acampadas, na maioria das ve- espaço no atual projeto de agricultura.
zes sem o apoio do Estado, que garante Os assentamentos se viabilizarão efetiva-
a construção de escolas onde se cultiva mente num outro modelo de sociedade.
a vida comunitária na luta pela terra. Todavia, as forças políticas e eco-
A questão dos assentamentos, mesmo nômicas que representam os interesses
na singularidade das experiências do do projeto do capital tentam impor seu
MST, não pode ser tratada como uma es- projeto também sobre os assentamen-
pécie de “modelo” único. Não seria o caso tos. Apropriação privada dos bens da
de fazer esse tipo de abordagem, já que natureza, domínio do capital estran-
são centenas de formas e projetos de as- geiro e das grandes corporações sobre
sentamentos localizados em praticamente a economia, estímulo à implantação de
todo o território nacional. Trataremos não grandes fazendas para grãos e exporta-
das singularidades dos assentamentos, ção, a padronização dos alimentos, o uso
mas dos elementos mais comuns e que intensivo de agrotóxicos e controle das
conformam uma totalidade desta forma sementes, entre outras ações, compõem
de produzir e conviver na agricultura. o projeto dos capitalistas para o campo,
Simplificadamente, poderíamos hoje denominado agronegócio. Tudo isso
afirmar que os assentamentos são o tendo o Estado brasileiro como indutor
resultado dos processos de lutas dos e a grande mídia para fazer a disputa
acampamentos, das ocupações de terras, ideológica na sociedade.
das jornadas de lutas, das mobilizações Frente a esse modelo, os assenta-
que geram pressões políticas para que se mentos, independentemente de qual
“atenda” a pauta dos sem-terra. Conquis- organização camponesa pertença, vivem
tada a terra, iniciam-se outros processos em uma tensão constante, buscando
de luta para garantir as condições dignas desenvolver um novo projeto de cam-
para se produzir no campo, sobretudo po a partir desses territórios. Aqueles
com uma infraestrutura produtiva ade- que conseguem se estabelecem como
quada. A disputa por políticas públicas uma retaguarda social, uma forma de
que garantam a instalação desses as- resistência para seguir a luta contra o
sentamentos já é parte considerável das capitalismo. Dificilmente os problemas
energias gastas nos processos de luta. dos camponeses serão resolvidos dentro
Nesse sentido, não podemos formular do capitalismo, e em um modelo com as
um conceito preciso, definitivo e acabado características anteriormente descritas.
de assentamento, mas devemos evidenciar Qual então é a práxis que se evi-
a práxis que vai incorporando novos dencia nos assentamentos? Primeira-

27
A C A M PA M E N T O S E A S S E N TA M E N T O S

mente, ante a ofensiva do agronegócio, nizado mais de 160 cooperativas e mais


A destaca-se que os assentamentos se de mil associações que trabalham de
estabelecem como territórios de resis- forma coletiva para produzir alimentos
tência. Desenvolvem permanentemente sem transgênicos e sem agrotóxicos.
uma nova matriz produtiva e induto- Há também mais de uma centena de
ra do desenvolvimento: produção de agroindústrias que melhoram a renda
alimentos saudáveis; atendimento ao e as condições do trabalho no campo,
consumo local; diversificação e pro- mas também oferecem alimentos de
dução agroecológica; preservação dos qualidade e baixo custo nas cidades. No
recursos naturais; geração de renda campo da educação, duas mil escolas
e trabalho para todos os membros da públicas foram criadas em acampa-
família; pesquisa e desenvolvimento mentos e assentamentos, garantindo
de tecnologias adequadas; coope­ração o acesso à educação para mais de 160
agrícola; entre outros aspectos. mil crianças e adolescentes Sem Terras
De outra parte, os assentamentos e alfabetizando 50 mil jovens e adultos
localizados em grandes regiões determi- nos últimos anos. Mais de 100 cursos
nam e dinamizam a própria economia de graduação em parceria com uni-
de toda uma região. É a base econômica versidades por todo o Brasil também
de muitos municípios do país, gerando foram criados para atender à população
renda e desenvolvendo o comércio lo- assentada e acampada.
cal. A produção se destaca não só pela Os assentamentos do MST são con-
qualidade, mas também pela quantidade, quistas oriundas das lutas realizadas pelo
e vai incorporando as diferentes formas movimento em todos os estados por meio
de cooperação agrícola, qualificando a dos acampamentos e das ocupações de
divisão técnica e social do trabalho. terra. Nos assentamentos, a terra passa
Podemos também reconhecer os a ter uma função social: a de garantir
assentamentos pela capacidade de orga- que muitas famílias possam viver com
nizar o convívio social nas comunidades dignidade e sair da condição de pobre-
da reforma agrária, sobretudo com os za, uma vez que produzem e distribuem
núcleos de moradia, aproximação da renda por meio do trabalho.
vizinhança, criando espaços de parti- Para além da produção, geradora de
cipação efetiva; espaços de educação renda, os assentamentos rurais – e não
libertadora e da educação como ferra- apenas aqueles organizados em torno
menta que mobiliza, como a luta contra do MST – reúnem hoje as condições
o analfabetismo e contra o fechamento por excelência para a adoção de prin-
das escolas no campo. Nesse sentido, os cípios e práticas agroecológicos, pois
assentamentos são espaços para recupe- reúnem uma estrutura social agrária
rar a memória histórica da comunidade, com base na unidade familiar, um tra-
da elevação do nível cultural e político, balho agrícola associativo e cooperado.
do cuidado com a vida e a saúde das A preocupação ecológico-ambiental
pessoas e do meio ambiente. passa a ser central. Além da perspec-
Os assentamentos conquistados tiva agroecológica, os assentamentos
pelo MST já reúnem aproximadamente são uma resposta concreta às famílias,
350 mil famílias assentadas, tendo orga- criando condições para o trabalho, para

28
A G R I C U LT U R A

a produção e moradia, ou seja, organi- da reforma agrária defendida pelos


zando a economia e as dimensões da assentamentos do MST: produzir ali- A
vida social, educacional e cultural das mentos, eliminar a fome, superar o ciclo
famílias assentadas. de dependência do mercado capitalista
Todavia, a grande função social e assegurar a produção da maioria dos
dos assentamentos é produzir alimentos alimentos, construindo assim soberania
com fartura. Esse é o sentido primeiro alimentar e autonomia camponesa.

Referência
CALDART, R. S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

Para saber mais


BRENNEISEN, E. O MST e os assentamentos rurais no Oeste do Paraná: encontros e desencontros na
luta pela terra. Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 128-163, 2004.
CARTER, M. Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil [tradução de
Cristina Yamagami]. São. Paulo: Editora Unesp, 2010.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DAS COOPERATIVAS DE REFORMA AGRÁRIA DO BRASIL
(CONCRAB). Novas formas de assentamentos de reforma agrária: a experiência da Comuna da Terra.
Brasília, DF: Concrab/Incra/CRT, 2004.
FERNANDES, B. M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.
VENDRAMINI, C. R. A experiência coletiva como fonte de aprendizagens nas lutas do Movimento
Sem Terra no Brasil. Revista Lusófona de Educação, n. 6, p. 67-80, 2005.

Nota
1
A opção em examinar a experiência do MST deve-se ao fato de, historicamente, ser essa a organi-
zação que assumiu como principal forma de sua luta a ocupação de terras, organizada por meio de
acampamentos, e a posterior conquista de assentamentos. Outras organizações também organizam
acampamentos e conquistam assentamentos, com pequenas nuances em suas formas de mobilização
e organicidade dos sem-terra.

AGRICULTURA

J osé M ar ia Tar din

Na atualidade brasileira e interna- Em direção oposta, convidamos a


cional, o capital no campo se constitui uma análise do assunto a partir do sen-
em agronegócio [ver Agronegócio], ter- tido etimológico do termo agricultura, e
mo que eficazmente expressa sua sínte- indicamos duas alterações pertinentes:
se: “agricultura é negócio” e que, mais a primeira, na forma – agri-cultura –; e
recentemente no Brasil, vem ampla e a segunda, o destaque plural – agri-cul-
insistentemente divulgando sua máxima turas (Tardin, 2012).1
ideológica no slogan: “agro é pop; agro é A forma agri-cultura, posta com o
tech; agro é tudo”! destaque para a sua formação binária,

29
A G R I C U LT U R A

pode tensionar o imaginário comum agroecossistemas, realizando no tempo


A hegemonizado no termo “agro-negócio”, e no espaço distintas formas sociais de
na medida em que instiga a atenção e a existência, de produção e reprodução
reflexão a partir das palavras “cultura” social agri-culturais.
e “negócio”. Consideraremos no termo agri-cul-
Pode-se problematizar o termo “cul- tura tanto os cultivos comumente deno-
tura” em uma perspectiva ampliada do minados de agrícolas (vegetais) como a
seu conteúdo: a expressão das múltiplas pecuária (animais).
exteriorizações e objetivações da práxis
humana nas suas relações na e com a Agricultura – quando, onde, quem,
natureza – as relações sociais em geral, como, por quê?
a produção, a circulação, a distribuição, Mazoyer e Roudart (2010) destacam
o consumo, as regras, normas, o Direito, que a hominização-humanização se
o Estado, as ideologias, as teorias, as apresenta como um processo de trans-
ciências, a filosofia, as cosmovisões, a formações complexas, simultaneamente
ética, a moral, os costumes, as tradições, “biológicas e culturais”. As espécies
as crenças, as religiões, a estética, as hominídeas do mesmo período muitas
artes, a arquitetura, a culinária, ou seja, vezes compartilham o mesmo terri-
produção e reprodução social. tório, e “cada nova geração toma seu
Por sua vez, “negócio” é uma forma impulso no terreno técnico e cultural
temporal de relação social que se dá em enriquecido pelas gerações precedentes,
determinada formação social histórica, de modo que os precursores biológicos
constituindo, todavia, um aspecto da- de uma nova espécie de hominídeos são
quela cultura. Está posto nas relações necessariamente tributários da herança
sociais dentre nós, como determinação técnica e cultural da espécie precedente”
da ordem social burguesa capitalista, mas (Mazoyer; Roudart, 2010, p. 68).
não está posto nas relações sociais dos Dessa maneira, os hominídeos se-
povos indígenas não contatados no inte- guiram estabelecendo miscigenação
rior da floresta amazônica, por exemplo. interespécies, possibilitando a difusão
Verifiquemos também o prefixo de mutações vantajosas e apreensões
agri – campo –, lugar, ambiente, espaço técnicas e culturais, proporcionando a
geográfico, território onde dada cultura transmissão dos saberes e de práticas
se exterioriza e objetiva agri-cultural- adquiridas, todavia não exatamente de
mente, constituindo sistemas agrários geração a geração, dado que as transfor-
[ver S istemas Agrários] compostos por mações se dão variando amplamente a
distintos agroecossistemas [ver Agro ­ depender de cada espécie e período, ade-
ecossistemas] , onde efetiva múltiplos mais das extinções que vão se efetivando.
sistemas de produção. Significativos consensos e compro-
Trata-se de práxis humana, sendo vações reiteram até aqui que o Homo
o humano histórico e cultural. Assim, sapiens sapiens seria a última e única
agri-culturas diz respeito às distintas espécie dos hominídeos que – estando
práxis humanas em suas relações sociais presente em todos os continentes da
na e com a natureza, direcionadas a Terra há 12 mil anos, na atual Era Ceno-
transformar ecossistemas naturais em zoica2 – realiza extraordinária revolução

30
A G R I C U LT U R A

épica: as agri-culturas. Foi após a última a região onde se iniciou a domesticação


glaciação (Época Holoceno) que a do- das primeiras plantas e animais. Nessa A
mesticação de plantas e animais passou a mesma região se situa Jericó, uma das ci-
ser realizada por distintos grupos sapiens dades mais antigas, denotando a relação
sapiens em diferentes lugares e períodos. entre as transformações operadas pelas
Este período é denominado de o “Gran- agri-culturas e o processo de urbanização
de Salto Adiante” (Diamond, 2002, p. que seguirá desde então.
39), destacando-se como principal feito A iniciação original das agri-cul-
a revolução agrícola neolítica, “[...] a turas não se fez linear e progressiva, e
primeira revolução que transformou a mesmo onde houve contínuas relações
economia humana” (Childe, 1983, apud de trocas de bens entre grupos de ca-
Mazoyer; Roudart, 2010, p. 70), desen- çadores-coletores e agricultores que se
cadeando assim a passagem da condição avizinhavam, os primeiros não adotaram
típica da predação para a agri-cultura. prontamente a agricultura, ao que Dia-
A iniciação das agri-culturas não foi mond (2002) acrescenta ser impróprio
uma invenção ou uma descoberta, como atribuir que a agricultura é um feito
se pode pensar, e sequer havia à época direto e imediatamente implicado com
uma escolha consciente entre produzir a passagem do nomadismo para o se-
comida ou ser caçador-coletor, como dentarismo, havendo distintas situações
propõe Diamond (2002, p. 104-105). O quanto a este estado social.
Homo sapiens não nasceu agricultor, ele Um contributo fundamental foi
emerge como coletor-caçador, como bem dado pelo botânico russo Nikolai Ivano-
analisam Mazoyer e Roudart (2010, p. 70): vich Vavilov, que pioneiramente identifi-
Quando ele começou a praticar o cou o que nominou de centros de origem
cultivo e a criação, ele não encon- das plantas cultivadas – oito centros3 –, o
trou na natureza nenhuma espécie que seguiu sendo revisto e aperfeiçoado
previamente domesticada, mas por novas pesquisas (Sereno; Wiethölter;
domesticou um grande número Terra, 2008, p. 54-56).
delas. Não dispunha também de O que é certo e consensual até aqui
instrumentos anatômicos adapta- é que as principais espécies animais e
dos ao trabalho agrícola, mas os vegetais com as quais nos alimentamos
fabricou de todas as maneiras e
– cereais, raízes, frutas, hortaliças –, mas
cada vez mais poderosos. Enfim,
também para fibras, foram domesticadas
nenhum saber inato ou revelado
lhe ditava a arte e a maneira de entre 10 mil e 5 mil anos atrás, com novos
praticar a agricultura, e, graças a feitos posteriores em grau secundário,
isso, ele pôde ajustar livremente complementar. Frise-se que, em que pese
os sistemas de cultivo e de criação todo o desenvolvimento das ciências e
extraordinariamente variados e tecnologias, especialmente a partir do
adaptados aos diferentes meios século XIX, é extrema a insignificância
do planeta, transformando-os de quanto à domesticação de novas espécies.
acordo com suas necessidades e Em relação às plantas, enfatiza-se
de acordo com suas ferramentas. que originalmente as mulheres apreen-
Os achados arqueológicos mais anti- deram a germinação das sementes; no
gos identificam o Crescente Fértil como entanto, distintas ponderações perma-

31
A G R I C U LT U R A

necem em aberto sobre como, a partir de primitiva religião humana estava inti-
A então, se desencadearam as agri-culturas. mamente relacionada com a busca de
Na controvérsia das explicações, alimentos” (Heiser Jr., 1977, p. 21-26), e
Heiser Jr. (1977), em diálogo com vários que nas crenças religiosas seja possível
autores, indica algumas possibilidades: encontrar indícios de como começou a
a) mudança climática que provocou domesticação. Nesta linha de especula-
seca e acabou inf luenciando a aglo- ção, havemos de registrar a perenidade
meração de animais e humanos em do antigo mito da Mãe Terra, ampla-
locais onde havia água, o que favoreceu mente presente em diversas culturas
a domesticação de algumas espécies campônias até o presente.
animais; b) a crescente diferenciação Em direção contrastante com consi-
e especialização cultural das comuni- derações que reconhecem a possibilidade
dades humanas, dado que já estavam de “causas” transcendentes, de ordem má-
familiarizadas grandemente com as gica, miraculosa ou divina, as evidências
espécies que já coletavam e caçavam; c) resultantes de pesquisas arqueológicas e
a pressão demográfica, impulsionadora biológicas das últimas décadas
da busca pela manipulação do ambiente mostram claramente que a domes-
a fim de aumentar a disponibilidade de ticação é um processo de trans-
alimentos; d) a observação do “monte formação biológica, que resulta de
de lixo”, ou melhor, nos amontoados de maneira automática das atividades
detritos dos acampamentos humanos de protocultura e de protocriação,
talvez fossem jogadas sementes e partes quando aplicadas a certas espécies
inaproveitáveis de plantas, onde estas selvagens e que se explica por me-
germinavam ou vegetavam, passando canismos genéticos perfeitamente
compreensíveis. (Mazoyer; Roudart,
a serem colhidas oportunamente. Há
2010, p. 119)
inclusive a sugestão de que a agri-cul-
tura tenha sido iniciada no interior das Nessa direção, dado o longo período
primeiras cidades. de coleta de plantas alimentícias, pode-se
Outras evidências arqueológicas pressupor que por este manejo elementar
demonstram que, originalmente, os tenham se efetivado modificações em
primeiros cultivos se deram na forma certas populações de espécies, indicando
de ‘hortas’ próximas às moradias, sendo a possibilidade de a domesticação ter se
expandidas para as áreas de formações dado anterior ao cultivo. Em contrapar-
arborizadas e herbáceas vizinhas (Ma- tida, nem toda domesticação sempre
zoyer; Roudart, 2010, p. 131). evolui em relações agrícolas, sugerindo
Encontramos no Paleolítico as ba- três formas no processo de domesticação:
ses iniciais do panteísmo, mas também o incidental; o especializado; e o agrícola
da ampla dispersão de estatuetas de (Rindos, 1984, apud Sereno; Wiethölter;
figuras femininas, simbolizando a gra- Terra, 2008).
videz ou dando à luz, caracterizando E mais, ao contrário do que comu-
um culto muito difundido à fertilidade mente se afirmava, de que o início das
da deusa mãe. Ressaltando também a agri-culturas teria se dado nos férteis va-
emergência do politeísmo, reiteramos les dos rios, as evidências corrigem esta
que “não pode haver dúvida de que a informação demonstrando que se dera

32
A G R I C U LT U R A

nas regiões montanhosas e semiáridas tiva – o trabalho excedente –, pois, além


próximas (Heiser Jr., 1977, p. 6). da antiga divisão sexual do trabalho, A
desenvolve-se a divisão social do trabalho.
Agri-culturas: da natureza Dessa maneira, parte dos integrantes da
para a fábrica sociedade deixa de trabalhar, passando a
O trabalho [ver Trabalho] é uma ca- viver do trabalho alheio, instaurando-se
pacidade específica e tipicamente huma- a “exploração econômica da força de
na,4 que o Homo sapiens sapiens realiza de trabalho” e estabelecendo de forma clara
forma complexa e sofisticada; por este, as “classes sociais” fundamentais.
alcança historicamente autoproduzir-se, Em tais “modos de produção”, as
e fundar-se “ser social”, sujeito da práxis classes sociais dominantes alcançam
(Netto; Braz, 2010; Martins, 2016). Em estabelecer a forma de “impérios” – es-
seu devir, estabelece relações sociais na cravismo e modo de produção asiático,
e com a natureza, independente de suas e “feudos” – feudalismo, e organizam
vontades e circunstanciadas pela mate- formas específicas do “Estado”, fortale-
rialidade do meio em que está inserido, cendo a capacidade de exercer de forma
e articula forças produtivas e relações de abrangente a opressão de classe e asse-
produção determinando materialmente gurando para si a apropriação privada da
sua forma geral de vida em sociedade – o riqueza socialmente produzida.
modo de produção. É neste prisma que Outra alteração substancial e mar-
havemos de apreender as determinações cante vai sendo estabelecida com a pas-
que historicamente estão dadas e postas sagem da forma das trocas diretas de
nas agri-culturas de cada época. mercadorias pelo estabelecimento das
O primeiro período agri-cultural se trocas pela moeda (o dinheiro) como
desenvolve com base na divisão sexual equivalente geral do valor, facilitando e
do trabalho, de tipo cooperado e ajuda agilizando as trocas comerciais.
mútua, com partilha equânime da pro- Em todo o processo histórico huma-
dução dentre os integrantes do grupo so- no anterior à Idade Moderna, foram as
cial, no regime de “propriedade coletiva agri-culturas, com seus sistemas agrários5
dos meios de produção”, caracterizando fertilizados por matéria orgânica e mine-
assim o mais longo modo de produção – o rais naturais, que proporcionaram gran-
comunismo primitivo. dezas econômicas e materiais necessárias
As agri-culturas se constituem tam- à sustentação das sociedades e às suas
bém na principal objetivação na produção transformações sociais e econômicas.
dos bens para a satisfação das necessi- Em outro ciclo de revoluções so-
dades humanas nos modos de produção ciais, se estabelece o “modo de produção
escravista, asiático e feudal, sendo carac- capitalista” na Europa, em que se dá a
terístico destes a “propriedade privada dos revolução industrial do século XVIII, que
meios de produção fundamentais” pelo introduz a “divisão técnica do trabalho”
controle impositivo e despótico da terra e generaliza a forma “assalariada”.
e territórios e das e dos trabalhadores no Desde então, tem-se significativos
campo, com relações de trabalho escravo avanços nas ciências, incluindo estudos
e servil. São “modos de produção” onde em agricultura, com uma série de novos
se verifica nova capacidade social produ- conhecimentos que vão sendo alcançados

33
A G R I C U LT U R A

em química, logrando-se estabelecer en- dinários em várias ciências que incluem


A tão as bases da ruptura das agri-culturas a extrema artificialização do ambiente e
de base húmica – centradas no uso da da produção: física quântica, microele­
matéria orgânica – para a fertilização trônica, genética molecular, cibernéti-
mineral – baseada na síntese química –, ca, informática, inteligência artificial,
abrindo caminho para uma nova “revo- nanotecnologia, biologia sintética, que
lução agrícola”. têm seus desdobramentos tecnológicos
Em 1843, é instalada a primeira fábri- sob domínio do capital, com direcio-
ca de fertilizante mineral na Inglaterra, e, namentos configurando novo ciclo de
em 1848, se institucionaliza a agronomia, “revolução na agri-cultura”.
com a fundação do Instituto Nacional Na dinâmica das transformações
Agronômico de Versailles, França. São que vêm se dando no modo de produção
verificados avanços exponenciais em vá- capitalista, em sua atualidade imperia-
rias áreas das ciências – a própria química, lista, a economia mundial passou a ser
a mecânica, a microbiologia do solo, a hegemonizada pelo capital financeiro
genética vegetal e animal, conformando [ver Financeirização], que determina em
um vasto campo de aplicação das tecno- grande escala a agri-cultura, sendo esta
ciências nas agri-culturas. operada sob a exploração e o domínio
Na primeira metade do século XX, direto de megacorporações transnacio-
a agri-cultura de base industrial vai ser nais, também hegemônicas no controle
impulsionada globalmente, apoiada no político e na apropriação do orçamento
crédito bancário e em amplas políticas dos Estados nacionais, configurando
públicas dos Estados nacionais e em insti- sua objetivação agri-cultural – o “agro-
tuições privadas de empresas capitalistas, -negócio”. Impõe em escala mundial um
constituindo a revolução verde [ver Revo­ mesmo padrão agri-cultural e o consumo
lução Verde], em contradição antagônica daquilo que lhe proporciona a maior
com as agri-culturas de distintos povos rentabilidade financeira – alimento é
camponeses e a diversidade ecológica mercadoria –, da mesma maneira que
da biosfera. Definitivamente, o modelo os demais produtos derivados do negócio
de produção hegemônico na agri-cultura agropecuário e florestal.
passa a ser a “fábrica”, em abandono ao A mercantilização é estendida mais
modelo da “natureza” vigente até então. e mais sobre a natureza – terra, água,
Já no século XIX, contraposições vão florestas, sementes, animais; e o labor
se agudizando tanto no âmbito das lutas agri-cultural é subsumido à lógica indus-
sociais por território e reforma agrária trial – a trabalhadora e o trabalhador
quanto no plano técnico, destacando-se rural realizam atividades meramente
as ações impulsionadas por Julius Hensel operacionais. O campesinato submetido a
(1898), inaugurando, talvez, o que pode- essa lógica fica condicionado ao estado de
mos chamar de “reações contemporâneas servidão moderna imposta por contratos
à agri-cultura de base industrial” (ver de “integração”; ou a reproduzir, completa
Khatounian, 2001), até chegarmos na ou parcialmente, o “pacote tecnológico”,
agroecologia [ver Agroecologia]. recorrendo ou não ao crédito bancário.
No século XX e neste início de sécu- Tanto os trabalhadores rurais quanto o
lo XXI, são verificados avanços extraor- campesinato são alijados do reconhe-

34
A G R I C U LT U R A

cimento na participação na produção indivíduos [...]. Com esta formação


social dos conhecimentos agri-culturais social termina, pois, a pré-histó- A
[ver Educação Popular]. ria da sociedade humana. (Marx,
Há significativos casos na história 2008, p. 48)
das agri-culturas em que, localizadamen- Isso porque o capital é uma relação
te, determinadas sociedades humanas social estrutural e necessariamente vio-
entraram em colapso generalizado como lenta, dado que, por suas leis, coisifica o
consequência das contradições em suas ser humano e a natureza na forma merca-
relações sociais de produção e depredação doria; portanto, não comporta racionali-
das bases ecológicas mantenedoras das dade capaz de efetivar soluções ecológicas
condições naturais da fertilidade geral dos sustentáveis ou a emancipação humana.
seus sistemas agrários (como os Anasazis, As agri-culturas camponesas e
no sudoeste do atual território dos EUA; de povos originários historicamente
e os Rapa Nui, da Ilha da Páscoa). engendram distintas capacidades de
Como objetivação setorial do capital, relações sociais de cooperação e de
a realização prática do “agro-negócio” sinergias na e com a natureza, consti-
coloca em movimento um conjunto de tuindo agroecossistemas sustentáveis.
forças produtivas de impactos destrutivos No interior das contradições postas
em escala planetária, em vistas do que, na pelo “agro-negócio”, ao mesmo tempo
comunidade científica, se popularizou o em que sofrem as determinações do
termo “antropoceno” [ver Antropoceno], capital, assumem uma clara posição de
para designar o atual tempo geológico – antagonismo, tensão e conflito, enfren-
“a idade recente do Homem” –, dada a tamento e resistência.
magnitude da insustentabilidade que vem Em movimento oportunista, al-
potencializando nos processos ecológicos guns empresários capitalistas adotam
da Terra. tecnologias de base ecológica-orgânica
– “capitalismo verde” –, superfaturando
Caminhando na Pré-História... a sobre nichos de mercado. No entanto,
reconstrução social e ecológica das preservam o essencial do seu interesse
agri-culturas econômico (relações de exploração da
O surgimento das agri-culturas e a força de trabalho) e, por isso, falseiam
fabricação de instrumentos de pedra sua imagem como negócio sustentável.
polida inauguram o último período da A superação das determinações
Pré-História, o Neolítico. O desenvolvi- sociais que nos mantêm em estados
mento da escrita e da metalurgia indicam desumanos de alienação, em nossas
a passagem para a História, de acordo com relações sociais na e com a natureza, so-
a periodização clássica. Entretanto, pode- mente pode ser posta na direção radical
mos afirmar que seguimos caminhando da emancipação humana pelas classes
na Pré-História, uma vez que sociais oprimidas e exploradas. Situação
as relações de produção burguesas social em que justamente está posto o
são a última forma antagônica do campesinato, que, uma vez consciente
processo de produção social, [...] em sua posição de classe e seu particular
um antagonismo que nasce das e diverso contributo agri-cultural, pode
condições de existência sociais dos se somar nos múltiplos combates que

35
A G R I C U LT U R A

nos transcendam da Pré-História – na à comunidade da Vida. E, cônscios do


A marcha da expansão das liberdades e nosso pertencimento cósmico, demarcar
múltiplas capacidades humanas, no o planeta Terra com pegadas em com-
encontro radical do humano com o hu- passos de mãos dadas, nos realizando
mano, do ser social com o ser natural, sua no Antropoceno, como a Época sapiens
unidade de gênero humano vinculado sapiens de caminhar na História.

Referências
DIAMOND, J. M. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. 3. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2002.
HEISER Jr., C. B. Sementes para a civilização: a história da alimentação humana. São Paulo: Ed. Nacional,
Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.
KHATOUNIAN, C. A. A reconstrução ecológica da agricultura. Botucatu: Agroecológica, 2001.
MARTINS, A. G. F. (org.). Elementos para compreender a história da agricultura e a organização do
trabalho agrícola. Cartilhas do Setor de Produção, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, São
Paulo, v. 1, n. 40, nov. 2016.
MARX, K. Contribuição à crítica da Economia Política. 2. ed. Tradução e Introdução de F. Fernandes.
São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MAZOYER, M.; ROUDART, L. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea.
São Paulo: Ed. Unesp, 2010.
NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
SERENO, M. J. C. M.; WIETHÖLTER, P.; TERRA, T. F. Domesticação das plantas. In: BARBIERI,
R. L.; STUMPF, E. R. T. (Ed.) Origem e evolução das plantas cultivadas. Brasília: Embrapa Informação
Tecnológica, 2008, p. 37-58.
TARDIN, J. M. Cultura camponesa. In: CALDART, R. S. et al. (org.). Dicionário da Educação do
Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular,
2012, p. 178-186.

Para saber mais


OLIVEIRA, A. U. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária. São Paulo: FFLCH, 2007.

Notas
1
Sugerimos consultar também os verbetes “Agroecologia” e “Agriculturas Alternativas” do Dicionário
da Educação do Campo (2012).
2
É usual descrever a origem da agricultura recorrendo à periodização clássica da História, situando-a
no Neolítico – Idade da Pedra Polida. Aqui, a opção é pelas eras geológicas, situando a origem da
agricultura no Holoceno, atual Época do Período Quaternário da Era Cenozoica, no intuito de
destacar as relações entre esses dois sistemas, na medida em que no texto coloca, de forma transversal,
a unidade – História Natural/História Humana – como totalização da História.
3
Centros de Vavilov, ou Centros de Origem das Plantas Cultivadas, identificados nas expedições
realizadas no período de 1919 a 1932, pelo botânico russo Nikolai Ivanovich Vavilov. Inicialmente,
ele identificou cinco centros, e, posteriormente, adicionou-se três centros e três sub-centros ou
centros secundários, sendo: 1) Centro Chinês; 2) Centro Indiano; 3) Centro Asiático Central; 4)
Centro Asiático Menor; 5) Centro Mediterrâneo; 6) Centro Etiópia; 7) Centro América Central;
8a) Centro América do Sul (peruano-boliviano-equatoriano); 8b) Centro América do Sul (Chiloé,
no Chile); 8c) Centro América do Sul (brasileiro-paraguaio).
4
Considera-se aqui o trabalho como categoria ontológica do ser humano.
5
Especialmente Mazoyer e Roudart (2010), e muito bem sintetizado e ampliado por Martins (2016),
identificam alguns dos “sistemas agrários” mais expressivos que alcançamos conhecer de cada período
histórico até o presente, ao que se pode associá-los aos respectivos “modos de produção”.

36
A G R I C U LT U R A B I O D I N Â M I C A

A
AGRICULTURA BIODINÂMICA

P edro J ovchelevich
F er na ndo S ilveir a Fr a nco

Apresentaremos aqui alguns ele- propriedade agrícola como uma indi-


mentos importantes para o entendimen- vidualidade, um organismo com seus
to da agricultura biodinâmica, como diferentes componentes (solo, vegetais,
esta foi pensada e desenvolvida ao longo animais, recursos naturais e humanos).
de um período de quase 100 anos, sen- O método considera três pontos básicos:
do considerada pelos que a praticam a) os ciclos das substâncias e forças (for-
e vivenciam como muito mais do que mas de atividade); b) as inter-relações
um método de produção agrícola sem entre os componentes e a localidade; e c)
venenos e adubos químicos. a organização da empresa agropecuária
Rudolf Steiner (1861-1925), cien- (Koepf; Pettersson; Schumann, 1983).
tista austro-húngaro, sistematizou a Sua principal meta é a fertilização
gnosiologia contida em Goethe como dos solos de uma forma duradoura e, a
base científica para o desenvolvimento partir da construção da atividade bio-
da ciência do espírito ou antroposofia. lógica, modificar as condições físicas e
Nasceram, dessa forma, a agricultura químicas do solo. A este aspecto bioló-
biodinâmica, a medicina e a farma- gico deve-se agregar o aspecto dinâmico,
cologia antroposóficas, a pedagogia que consiste no uso de preparações ca-
Waldorf, dentre outras. A antroposofia seiras utilizando substâncias orgânicas e
não é uma religião, é uma ciência que minerais de forma bastante diluída (ho-
permite a construção de um conheci- meopática), que configuram a base do
mento que integra matéria e espírito. método biodinâmico. Tais contribuições
Para Steiner, o pensar é o elo entre o específicas e originais da biodinâmica
homem e a realidade espiritual, berço da partem do uso de preparados de ação
liberdade (Klett; Miklós, 2001). Assim, semelhante aos da homeopatia e dos
iniciou-se em 1924 a pedra fundamental calendários baseados em pesquisa sobre
do Movimento Biodinâmico, em forma a influência dos ciclos astronômicos
de um ciclo de 8 palestras para agri- sobre a terra e as plantas. A agricultura
cultores.1 Esse congresso foi realizado biodinâmica tem seu fundamento não
em Ko­b erwitz, Polônia. É o primeiro só nas práticas comuns à agricultura
movimento de agricultura alternativa a orgânica, mas também no reconheci-
surgir de forma organizada no Ocidente, mento de que a saúde do solo, do mundo
antes da agricultura orgânica e natural. vegetal, animal e do próprio ser humano
O aspecto básico da agricultura dependem de um relacionamento mais
biodinâmica consiste em entender a amplo entre as forças que estimulam os

37
A G R I C U LT U R A B I O D I N Â M I C A

processos naturais (Koepf; Pettersson; capaz de produzir uma renovação. O sítio


A Schumann, 1983). Assim, ela tem como natural deve ser elevado a uma “espécie
objetivo renovar o manejo agrícola, sanar de individualidade agrícola”.
o meio ambiente e produzir alimentos O fundamento para tal transforma-
realmente condignos ao ser humano. ção é a integração harmônica de todos
Esse impulso quer devolver à agri- os elementos ambientais agrícolas, como
cultura sua força original criadora e culturas do campo e da horta, pastos,
fomentadora, cultural e social, força frutas e outras culturas permanentes,
que ela perdeu no caminho à indus- florestas, agroflorestas, cerca-vivas e
trialização direcionada à monocultura capões arbustivos, mananciais hídricos,
e à criação em massa de animais fora várzeas etc. Caso o organismo agrícola se
do seu ambiente natural. A agricultura ordene em volta desses elementos, nasce
industrial priorizou a produção em uma fertilidade permanente e, com ela,
grande escala, com uso intensivo de a saúde do solo, das plantas, dos animais
agrotóxicos, máquinas e energia à base e dos seres humanos.
de petróleo, levando à contaminação do A partida e a continuidade desse
ambiente e à concentração da posse da desenvolvimento ascendente da tota-
terra, entre outros impactos socioam- lidade do organismo agrícola são asse-
bientais negativos. guradas pelo manejo biodinâmico dos
A Agricultura Biodinâmica quer tratos culturais agrícolas e do uso de
ajudar aqueles que lidam no campo a preparados, apresentados pela primeira
vencer a unilateralidade materialista vez por Rudolf Steiner no Congresso de
na concepção da natureza, para que Pentecostes, em 1924. Trata-se de pre-
eles possam, cada um por si, achar uma parados que incrementam e dinamizam
relação espiritual-ética com o solo, com a capacidade intrínseca da planta de ser
as plantas e os animais, e com os irmãos produtora de nutrientes, por mobilização
seres humanos. Não apenas como um química, transmutação ou transubstan-
método de agricultura, mas como uma ciação do mineral morto, ou ainda, por
concepção espiritual da vida baseada na harmonização e adequação na recicla-
ciência espiritual antroposófica, como gem das sobras da biomassa produzida.
um caminho de desenvolvimento do Preparados que simultaneamente apoiam
ser humano. a planta a ser transmissor, receptor e
A biodinâmica quer lembrar a todos acumulador do intercâmbio da Terra
os homens e mulheres que “a Agricultura com o Cosmo, ou seja, beneficiar todo o
é o fundamento de toda cultura, ela tem agroecossistema a partir das influências
algo a ver com todos”. O ponto central vindas do céu em nossa volta, como a luz
da agricultura biodinâmica é o ser hu- do sol, da lua e dos planetas.
mano, que conclui a criação a partir de Adubar na biodinâmica significa, por-
suas intenções espirituais baseadas em tanto, aviventar ou vivificar o solo, diferente
uma verdadeira cognição da natureza. de fornecer nutrientes para as plantas.
Este quer transformar sua fazenda ou A única preocupação que se deve
sítio em um organismo em si concluso ter é o que fazer para que isso aconteça.
e maximamente diversificado; um or- Fornecendo conforto fisiológico, é pos-
ganismo que seja a partir de si mesmo sível abster-se de tudo que hoje em dia

38
A G R I C U LT U R A B I O D I N Â M I C A

parece ser imprescindível na agricultura que Sustenta a Agricultura) que têm se


convencional. No organismo agrícola espalhado no Brasil e em outros países A
biodinâmico não são usados adubos ni- junto ao impulso da biodinâmica.
trogenados minerais, pesticidas sintéticos, Em mais de 50 países, a agricultura
herbicidas e hormônios de crescimento biodinâmica é praticada a serviço do
etc. A concepção do melhoramento bio- cultivo do meio ambiente e da alimen-
dinâmico dos cultivares ou das raças está tação saudável do ser humano. No
em irrestrita oposição à tecnologia trans- mundo inteiro, os produtos biodinâ-
gênica [ver Transgênicos]. A ração para micos são uniformemente comerciali-
os animais é produzida no próprio sítio zados sob a marca “Deméter”. A marca
ou fazenda e a quantidade dos animais Deméter garante uma cultura agrícola
mantidos está em relação com a capaci- baseada em medidas novas nos campos
dade natural da área ocupada. culturais (espirituais, políticos), legais,
O agricultor biodinâmico está em- econômicos e ecológicos.
penhado em fazer somente aquilo pelo
qual ele mesmo pode responsabilizar-se, Os preparados biodinâmicos
a saber, o que serve ao desenvolvimento Os preparados biodinâmicos foram
duradouro da “individualidade agrícola”. desenvolvidos por Rudolf Steiner, com
Isso inclui o cultivo e a seleção das suas base na antroposofia, antes e durante o
próprias sementes e a adaptação e a se- Curso Agrícola, em 1924. Steiner afir-
leção de raças de animais. Além disso, ma que “adubar consiste em vivificar a
a agricultura biodinâmica significa uma Terra” e, com base nesta afirmação, traz
orientação renovada na pesquisa, con- os preparados como sendo mediadores
sultoria e formação profissional. entre a Terra e o Cosmo, ajudando as
O agricultor biodinâmico aprende, plantas em sua tarefa de serem órgãos
dentro do processo de trabalho, a ser de percepção da Terra.
ele mesmo um pesquisador; aprende a Os preparados biodinâmicos são
participar e transmitir sua experiência a similares a remédios homeopáticos no
outros e a fazer de seu estabelecimento que diz respeito às substâncias naturais
um local de formação profissionalizante utilizadas, aos processos de dinamização,
para gerações vindouras. à atuação através de forças e não de
Uma renovação desta natureza substâncias, e por serem utilizados em
desperta o interesse das pessoas que quantidades mínimas, entretanto eles
vivem nas cidades. Elas se ligam a esta não se prendem à teoria ou à prática da
ou aquela fazenda ou sítio, apoiam e homeopatia médica [ver Homeopatia].
ajudam como podem, tornando-se fiéis Eles são elaborados a partir de
fregueses. Elas colaboram na formação plantas medicinais, esterco e silício
de mercados regionais, tornando-se asso- (quartzo), que são envoltos em órgãos
ciados solidários mútuos. Há iniciativas animais, enterrados no solo e subme-
novas de importância fundamental em tidos às influências da Terra e de seus
toda parte para que a agricultura possa ritmos anuais.
enfrentar com sua autonomia regional a Uma de suas funções é harmonizar
globalização do mercado mundial, como o meio onde estarão, atuando por meio
por exemplo as CSAs (Comunidade de um equilíbrio dinâmico entre os

39
A G R I C U LT U R A B I O D I N Â M I C A

diversos componentes do organismo recomenda utilizar no estágio inicial


A agrícola. Entende-se organismo agrí- de desenvolvimento da planta, até que
cola como estrutura formada por solo, as raízes estejam bem estabelecidas.
planta, animal e ser humano. Sendo Aconselha-se utilizá-lo principalmente
assim, trabalha-se com a interação dos na pref loração e frutificação. Reco-
componentes da propriedade. menda-se a aplicação rítmica para o
fortalecimento das folhas contra fungos
Preparado chifre-esterco – 500 e insetos; três dias seguidos na mesma
O preparado chifre-esterco é des- hora, com repetição de duas a três sema-
tinado ao solo e a todos os processos nas. Para a maturação de frutos, fazer a
formativos de desenvolvimento radicu- aplicação na parte da tarde.
lar, assim como favorece a interação das
raízes com o solo e todos os organismos Preparados para composto/
vivos presentes e atuantes. Este pre- biofertilizante – 502 ao 507
parado tem uma atuação vertical, que Os seis preparados elaborados a
permitirá o estabelecimento das raízes e partir das plantas medicinais Milfolhas
posteriormente o desenvolvimento “para (502), Camomila (503), Urtiga (504),
o alto” das plantas; ele traz força para o Casca de Carvalho (505), Dente de
solo, permitindo a formação correta das Leão (506) e Valeriana (507) servem
plantas. O preparado chifre-esterco deve como suplemento ao composto, esterco,
ser aplicado no momento do preparo do chorume e biofertilizante, conduzindo e
solo, na semeadura, no transplante, ou organizando os processos de fermentação
seja, no momento em que se deseja dar e decomposição. Por meio do composto
um impulso ao desenvolvimento radicu- preparado, eles colocam as plantas em
lar. Depois da dinamização, este deve ser uma condição na qual as forças do cosmo
aplicado em gotas grossas, direcionado sejam mais atuantes.
ao solo, ao entardecer. É importante Segundo experimentações práticas,
ressaltar que a água utilizada para a foi comprovado ser eficiente o uso da
dinamização dos preparados seja pro- Valeriana individualmente no caso de
veniente de chuva ou de poço. Não se ocorrência de geada. Este preparado
utiliza água tratada. trabalha com as forças de calor e com
processos nos quais o elemento fósforo
Preparado chifre-sílica – 501 é atuante. Para este fim, o preparado de
A aplicação é direcionada à planta. Valeriana deve ser aspergido sobre a área
Atua diretamente nas funções fotos- afetada pela geada, de modo a fortalecer
sintéticas da planta, favorecendo os a planta em caso de danos. Pode-se,
processos de luz e calor. Este é o “prepa- ainda, utilizá-lo de maneira preventiva
rado da luz”, que traz forças da periferia na noite anterior à geada.
cósmica intensificando a atuação da
luz solar. Este preparado é essencial Fladen
para a estruturação interna das plantas É uma forma de composto na qual
e seu desenvolvimento, assim como são aplicados os preparados de plantas
para a qualidade nutritiva das plantas medicinais e que age como um condutor/
e para a resistência a doenças. Não se orientador nos processos de decomposi-

40
A G R I C U LT U R A B I O D I N Â M I C A

ção. Recomenda-se utilizar em matéria dinâmicas mostravam maior qualidade


vegetal roçada, em recuperação de pas- biológica, física e química do que os solos A
tagens, após a adubação verde ou sobre oriundos de propriedades convencionais.
qualquer material a ser decomposto no Piamonte (1996), em experimentos
campo de cultivo, enriquecendo a ma- comparativos com adubação mineral,
téria húmica, assim como em áreas de orgânica e biodinâmica em cenoura,
agroflorestas, sobre o material podado demonstrou que a massa seca, textura,
das espécies arbóreas e arbustivas usadas conservação, teores de vitamina A e be-
como adubadeiras do sistema. É uma tacaroteno foram superiores em cenoura
forma de utilizar os preparados de com- com adubação orgânica e biodinâmica.
posto em áreas maiores, aumentando a Miklós et al. (1999), trabalhando
influência da ação destes. com compostagem de resíduos da indús-
tria de cana-de-açúcar, demonstraram
Dinamização que, com a utilização de preparados
É um movimento muito especial e de biodinâmicos, houve uma redução con-
grande importância para a propriedade siderável de perdas de nutrientes durante
e para o sucesso da ação dos preparados; o processo de compostagem.
portanto, deve ser feito conscientemente. A agricultura biodinâmica tem his-
Neste processo, as forças contidas nos tória recente no Brasil, iniciando-se
preparados são transmitidas à água por principalmente a partir da década de
meio da agitação contínua. A dinamiza- 1970, com o início da Estância Demétria,
ção deve ser feita preferencialmente em em Botucatu-SP, e percorrendo um ca-
barricas de madeira, mas pode também minho de desenvolvimento e adaptações
ser feita em cerâmica ou aço inox. De- às condições socioambientais tropicais,
ve-se iniciar mexendo-se a água com o expandindo-se e despertando interesse
preparado para um lado, na periferia pri- tanto de agricultores quanto de consumi-
meiramente, e depois até o centro para dores envolvidos na busca da produção
se formar um vórtex; quando este vórtex de alimentos saudáveis. Ainda existem
estiver formado e quase se puder ver o muitos desafios que, pelos sentimentos
fundo da barrica, inverte-se o movimen- e vivências, passam por estratégias de
to, provocando o caos e restabelecendo inclusão social, no sentido de divulgar
a ordem novamente com o redemoinho os conhecimentos adquiridos, tornando
para o novo lado. Desta maneira promo- a produção mais acessível aos agriculto-
ve-se a polaridade associação e dissocia- res, principalmente familiares, e que os
ção. Este movimento deve ser repetido alimentos assim gerados também pos-
por uma hora e o preparado dinamizado sam ser acessíveis para todas as pessoas,
deve ser aplicado em até 3 horas. sendo nesse caso necessários processos
solidários e justos de certificação e de
Estudos científicos comercialização. Do ponto vista ecoló-
Reganold e Palmer (1995 apud Cas- gico, vemos a importância do olhar para
tro, 2005), analisando solos em proprie- a dinâmica e estrutura do ecossistema
dades convencionais e biodinâmicas local, que passa pela observação do papel
na Nova Zelândia, demonstraram que do componente arbóreo no organismo
os solos oriundos de propriedades bio- agrícola, conforme foi proposto por Ru-

41
A G R I C U LT U R A B I O D I N Â M I C A

dolf Steiner em seu curso fundamental, movimento internacional, há diferentes


A no ano de 1924: instituições: Associação Internacional
A Terra necessita de agrupamentos de Agricultura Biodinâmica, Seção de
de plantas, florestas, para ser viva e agricultura do Goetheanum e Associa-
cosmicamente consciente. Ela tem isso ção Demeter Internacional, responsável
realizado, principalmente árvores, com pela certificação.
seus troncos retos, que são um seg- A Associação Biodinâmica tem a
mento de raios que vão do centro da missão de gerar, desenvolver e fomentar
Terra à periferia do cosmo, cuja esfera é a agricultura biodinâmica no Brasil.
espelhada na sua copa. (Steiner, 2001) Desenvolve as seguintes atividades:
assistência técnica e extensão rural,
Associação Brasileira de Agricultura
pesquisa, publicações, sementes crioulas,
Biodinâmica
biossegurança, cursos e conferência,
No Brasil, a agricultura biodinâ-
elaboração de preparados biodinâmicos,
mica é difundida pela Associação Bra-
sítio produtivo demonstrativo, apoio à
sileira de Agricultura Biodinâmica,
comercialização e certificação partici-
sediada em Botucatu-SP, e pela ABD-
pativa Demeter.
-Sul, sediada em Florianópolis-SC. No

Referências
KOEPF, H.; PETTERSSON, B. D.; SCHUMANN, W. Agricultura biodinâmica. São Paulo: Nobel,
1983. 316p.
KLETT, M.; MIKLÓS, A. A. W. Agricultura biodinâmica e nutrição humana. In: MIKLÓS, A. A. W.
A dissociação entre homem e natureza. Reflexos no desenvolvimento humano. São Paulo: Antroposófica;
2001. p. 215-59.
MIKLÓS, A. A. W. et al. Avaliação dos efeitos dos preparados biodinâmicos sobre as perdas de nutrientes
na compostagem. Agricultura Biodinâmica, ano 16, n. 82, p. 27-32, 1999.
PIAMONTE, P. R. Rendimento, qualidade e conservação pós-colheita de cenoura (daucus carota l.) sob
adubação mineral, orgânica e biodinâmica. 1996. Dissertação (mestrado em Agronomia/ Horticultura).
Faculdade de Ciências Agronômicas, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, 1996.
STEINER, R. Fundamentos da agricultura biodinâmica. 3. ed. São Paulo: Editora Antroposófica, 2001.

Para saber mais


WISTINGHAUSEN, C. V. et al. Manual para a elaboração dos preparados biodinâmicos. São Paulo/
Botucatu: Antroposófica/Associação Brasileira de Agricultura Biodinâmica, 2000, 95 p.
______. Manual para uso dos preparados biodinâmicos. São Paulo/Botucatu: Antroposófica/ Associação
Brasileira de Agricultura Biodinâmica, 2000, 77 p.
www.biodinamica.org.br

Nota
1
Titulado e publicado como GA 327 Geisteswissenschaftliche Grundlagen zum Gedeihen der Landwirts-
chaft; em português, Fundamentos da agricultura biodinâmica (Editora Antroposófica, São Paulo,
1993).

42
A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

AGRICULTURA ORGÂNICA

M ur ilo M endonça O liveir a de S ouza


Patr ícia D ias Tavar es

Introdução disputa de poder entre os blocos capita-


A agricultura orgânica está inse- lista e socialista vigente neste período.
rida em um conjunto de perspectivas Embora alguns limites técnicos para
produtivas desenvolvidas a partir das a industrialização da agricultura tenham
primeiras décadas do século XX e que sido superados, os impactos negativos
se contrapõem, de alguma forma, à advindos deste processo foram amplos.
agricultura moderna. Ehlers (1999) Ehlers (1999) destaca a erosão e a perda
conceituou tais perspectivas como da fertilidade dos solos, a destruição flo-
“movimentos rebeldes” que, além da restal, a dilapidação do patrimônio gené-
agricultura orgânica, congregariam a tico e da biodiversidade, a contaminação
agricultura biodinâmica, a agricultura dos solos, da água, dos animais silvestres,
biológica e a agricultura natural. Es- do homem [e da mulher] do campo e
tes movimentos, entre alguns outros dos alimentos. É na contraposição a
(como a permacultura), compartilham este modelo de produção agrícola que a
a crítica ao desenvolvimento da cha- agricultura orgânica e outras propostas
mada agricultura convencional, que produtivas alternativas se desenvolveram
tem base na adubação química, no uso e se consolidaram.
de agrotóxicos, na motomecanização, Portanto, é essencial entender os
nas monoculturas e na ciência genética. conceitos, princípios e técnicas da agri-
Esse “pacote tecnológico” embrioná- cultura orgânica em uma perspectiva
rio da agricultura convencional, embora dialética, ou seja, num movimento que
estruturado no âmbito científico, foi está em constante processo de constru-
prontamente apropriado pela indústria e, ção. Trataremos deste conceito tendo
ainda na primeira metade do século XX, como base seu processo histórico de
passou a ser desenvolvido em escala co- construção, seus fundamentos teóricos
mercial na Europa e nos Estados Unidos. e técnicos, sua importância no conjunto
A agricultura, que apresentava limites paradigmático de desenvolvimento da
técnicos de adaptação à lógica indus- agroecologia (ou agriculturas de base
trial capitalista de produção, iniciou um ecológica) e, por fim, sua formatação e
novo período que atingiu seu auge com consolidação no Brasil.
o advento da Revolução Verde, a partir
dos anos 1960. Esse processo ocorreu no Origem/história da
contexto político-ideológico da Guerra agricultura orgânica
Fria, após a Segunda Guerra Mundial. Em meados do século XIX, o quími-
É importante, portanto, ter em conta a co alemão Justus von Liebig apresentou
A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

importantes estudos sobre a química pletaram o chamado apropriacionismo


A dos solos. A partir de suas pesquisas, (Ehlers, 1999).
propôs a adubação química como substi- As bases da agricultura orgânica
tuição à adubação orgânica e ao húmus foram situadas na crítica ao processo de
(que até então compunham a base da apropriação da agricultura pela indústria.
produção agrícola), dizendo que estes Sir Albert Howard, considerado precursor
não eram indispensáveis para as plantas da agricultura orgânica, dizia que:
(Liebig, 1841). A publicação do livro O lento envenenamento do solo
Química Orgânica em sua aplicação pelos adubos artificiais é uma das
à fisiologia agropecuária,1 de Liebig, maiores calamidades que têm sido
em 1840, propôs que a elevação na infligidas à agricultura e à huma-
produção e na produtividade agrícola nidade. A responsabilidade desse
estariam diretamente relacionadas à desastre deve ser partilhada equi-
quantidade de substâncias químicas tativamente entre os discípulos de
incorporadas ao solo, dependendo da Liebig e o sistema econômico sob
o qual estamos vivendo. (Howard,
quantidade mínima de cada elemento
2007, p. 322)
químico para seu crescimento (Ehlers,
A agricultura está desequilibrada,
1999). Formulou, assim, a Lei do Míni- falta a ponte para unir as duas me-
mo, que dispõe que se um dos nutrientes tades da roda da vida. Essa ponte foi
essenciais para a planta for deficiente substituída pelos adubos artificiais.
(limitante), o crescimento vegetal será Os solos do mundo inteiro estão
fraco, ainda que todos os outros nu- sendo arruinados ou estão sendo
trientes essenciais sejam abundantes lentamente envenenados. Em todo
[ver Nutrição Vegetal]. o mundo o nosso mais importante
capital está sofrendo uma rapina-
Esta teoria chamada Lei do Mínimo
gem. A restauração e a manutenção
e a aplicação desses postulados à
da fertilidade do solo tornaram-se
agricultura impulsionaram a difu-
um problema universal. (Howard,
são da adubação mineral à base de
2007, p. 321)
compostos nitrogenados, fosfatados
e potássicos solúveis, além do uso De acordo com Vanderlinde (2007,
de calcário e de gesso nos processos p. 157), a apropriação da ciência para
produtivos. (Ehlers, 1999, p. 22) atender aos interesses da acumulação
Para além do suposto avanço no capitalista é duramente criticada por
campo científico, foi no setor produtivo, Howard em seu Testamento agrícola.
industrial e agrícola que seus postulados Howard antecipou, ainda, a catástrofe
tiveram maiores consequências, abrindo do agronegócio que leva à destruição da
um amplo e promissor mercado: o de camada de húmus e à sua substituição
fertilizantes “artificiais”. E os adubos por insumos químicos. O “saque” do
químicos não foram os únicos insumos solo agrícola em detrimento de uma
“apropriados” pelo setor industrial. O agricultura que deveria alimentar de
desenvolvimento de motores de com- forma saudável a humanidade é sua
bustão interna e a seleção e produção principal denúncia.
de sementes híbridas e melhoradas, a Ele observa que, quando se faz uso
partir do início do século XX, com- da ciência para produzir novas va-

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A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

riedades de altos rendimentos que trução do húmus do solo, com ênfase em


exaurem até o último grama de como a vida do solo estava conectada A
fertilidade dos solos, adubos mais à saúde das culturas, da pecuária e da
baratos e de efeito mais rápido, má- humanidade. Um solo rico em húmus
quinas que realizam cultivos mais
é a chave para o sucesso da agricultura
profundos e mais pesados, galinhas
(orgânica); a fertilidade do solo é a
poedeiras que põem ovos até a mor-
te, e vacas que se desfalecem num pré-condição para plantas e animais
oceano de leite, deve estar faltando saudáveis (Heckman, 2006; Vogt, 2007)
um pouco de bom senso por parte [ver Solos].
dos responsáveis por estas pesqui- Em Pusa, Nova Delhi, Howard tra-
sas. A constatação de Howard é a balhou com melhoramento e proteção
de que a pesquisa agrícola tem feito de plantas. Já na estação de pesquisa
dos fazendeiros, não produtores agrícola em Indore, cidade indiana,
de alimento de melhor qualidade, ele desenvolveu uma técnica de com-
mas, sim, hábeis saqueadores dos postagem aeróbica conhecida como
recursos naturais. (Vanderlinde,
Processo Indore. Outro objetivo era
2007, p. 158)
fazer compostagem com resíduos orgâ-
Sir Albert Howard construiu este nicos urbanos e usá-los para manter a
entendimento trabalhando com agri- fertilidade do solo. Tendo trabalhado
cultores da Índia, onde estudou e do- em várias áreas agrícolas – cultivo de
cumentou as práticas tradicionais da plantas, proteção de plantas, ciência
agricultura indiana, considerando tais do solo, compostagem, adubação –,
práticas como superiores à agricultura Howard finalmente começou a exa-
científica (Meena et al., 2013). Um minar todo o sistema agrícola. Rein-
elemento basilar das proposições de tegrando as diferentes disciplinas de
Howard foi a valorização dos conheci- pesquisa agrícola, concluiu que a saúde
mentos historicamente desenvolvidos do solo, das plantas, dos animais e dos
pelos camponeses, os quais, em seu seres humanos está inter-relacionada
Testamento agrícola, considerou como (Vogt, 2007). Howard argumentava,
seus professores. Foi a partir da relação ainda, que a produção agrícola e a saúde
com agricultores e agricultoras indianas animal eram um direito inato, e que o
que passou a considerar a importância método mais adequado de lidar com
dos solos na manutenção da produção um patógeno não era destruí-lo, mas
agrícola saudável. analisar o que se poderia aprender com
A primeira sentença do livro ele ou “utilizá-lo para ajustar a prática
Um testamento agrícola, de Sir Albert agrícola” (Heckman, 2006).
Howard, situa qual o entendimento A partir destas experiências e con-
do autor sobre os caminhos a serem cepções, foram construídas bases im-
seguidos pela Agricultura. Ele diz que portantes do que passamos a conceituar
“A manutenção da fertilidade do solo é como agricultura orgânica. O sistema
a primeira condição de qualquer sistema de agricultura defendido por Howard
permanente de agricultura” (Howard, foi cunhado “orgânico” por Walter Nor-
2007, p. 25). O conceito de fertilidade thbourne para se referir a um sistema
do solo de Howard centrou-se na cons- “tendo uma inter-relação complexa, mas

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A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

necessária, de partes, semelhante à das nica, a maioria delas tem no nome e


A coisas vivas”. E foi Lady Eve Balfour nas teorias de Sir Albert Howard um
quem contrapôs a agricultura orgânica ponto de aproximação e convergência.
à agricultura convencional, ajudando E a partir de suas principais teorias e
a popularizar aquela com a publicação experiências foram sendo estabelecidos
do livro The living soil [O solo vivo], em os padrões de desenvolvimento da
1943. Também Jerome Rodale, edi- agricultura orgânica. No entanto, os
tor e um dos primeiros convertidos à elementos técnicos foram sendo, via
agricultura orgânica, foi fundamental de regra, sobrepostos às concepções
na difusão e popularização de concei- sociais e políticas.
tos orgânicos (Heckman, 2006). Estes Diferentes princípios e práticas orien-
foram os caminhos gerais que deram tam abordagens e o desenvolvimento agri-
estrutura às primeiras propostas de cultura orgânica, como os apresentados
agricultura orgânica. no quadro 1.
Alguns conceitos estabelecidos, por
Fundamentos técnicos e teóricos da órgãos governamentais ou por outras
agricultura orgânica instituições, ajudam-nos a compreender
Apesar das diferentes leituras so- os caminhos seguidos pela Agricultura
bre o surgimento da agricultura orgâ- Orgânica. Um deles foi o do Departa-

Quadro 1 – Alguns princípios e práticas da agricultura orgânica.


Meena et al. (2013) Campanhola e Valarini (2001)
Conversão do manejo convencional para o mane- Reciclagem dos recursos naturais presentes no
jo ecológico da terra agroecossistema, em que o solo se torna mais fér-
til pela ação benéfica dos microrganismos
Gestão de todo o sistema circundante para ga- Compostagem e transformação de resíduos vege-
rantir a biodiversidade e a sustentabilidade do tais em húmus no solo
sistema
Produção de culturas com o uso de fontes alter- Uso de métodos mecânicos, físicos e vegetativos
nativas de nutrientes, com rotação de culturas, e de extratos de plantas no controle de pragas,
manejo de resíduos, adubos orgânicos e insumos apoiando-se nos princípios do manejo integrado
biológicos
Manejo de plantas daninhas e pragas por meio de Cobertura vegetal morta e viva do solo, rotação e
melhores práticas de manejo, meios físicos e cul- consorciação de culturas e adubação verde
turais e pelo sistema de controle biológico
Manutenção do gado em conjunto com o concei- Diversificação e integração de explorações vege-
to orgânico, tornando-o parte integrante de todo tais (incluindo as florestas) e animais
o sistema Uso de esterco animal e de biofertilizantes
Controle biológico de pragas e quebra-ventos
Uso de caldas tradicionais (bordalesa, viçosa e
sulfocálcica) no controle de fitopatógenos
Preferência ao uso de rochas moídas, semissolubi-
lizadas ou tratadas termicamente
Opção por germoplasmas vegetais e animais ade-
quados a cada realidade ecológica, com valoriza-
ção das sementes crioulas
Fonte: Meena et al., 2013; Campanhola; Valarini, 2001.

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A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

mento Norte-americano de Agricultura A legislação que trata da agricultura


(USDA), que estabeleceu que orgânica no Brasil (Lei 10.831 de 2003) A
agricultura orgânica é um sistema diz que:
que evita ou exclui largamente o Considera-se sistema orgânico de pro-
uso de insumos sintéticos (tais como dução agropecuária todo aquele em
fertilizantes, pesticidas, hormônios, que se adotam técnicas específicas,
aditivos alimentares) e, na medida mediante a otimização do uso dos
do possível, tem base em rotações recursos naturais e socioeconômicos
e resíduos de culturas, adubos ani- disponíveis e o respeito à integridade
mais, resíduos orgânicos de fora cultural das comunidades rurais,
da exploração, aditivos de rochas tendo por objetivo a sustentabilidade
minerais e sistemas biológicos de econômica e ecológica, a maximiza-
mobilização de nutrientes e pro- ção dos benefícios sociais, a minimi-
teção das plantas. (United States zação da dependência de energia não
Departament of Agriculture, 2019) renovável, empregando, sempre que
[ver Ciclagem de Nutrientes] possível, métodos culturais, biológicos
A Organização das Nações Uni- e mecânicos, em contraposição ao uso
de materiais sintéticos, a eliminação
das para a Alimentação e a Agricultura
do uso de organismos geneticamente
(FAO/ONU, 2019) diz que modificados e radiações ionizan-
[a] agricultura orgânica é um sistema tes, em qualquer fase do processo de
de gestão de produção único que pro- produção, processamento, armaze-
move e melhora a saúde do agroecos- namento, distribuição e comercializa-
sistema, incluindo a biodiversidade, ção, e a proteção do meio ambiente.
ciclos biológicos e atividade biológica (Brasil, 2003)
do solo, e isso é feito usando métodos
As aproximações e contradições
agrícolas, biológicos e mecânicos
em exclusão de todos os insumos entre os conceitos de agricultura orgâ-
sintéticos fora da agricultura. (Food nica e de agroecologia são um tema que
and Agriculture Organization of the deve ser discutido. É essencial não só
United Nations, 2019) definirmos, mas também resgatarmos as
aproximações entre o que conceituamos
No Brasil, as definições da Empresa
como agricultura orgânica e agroecologia.
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Em-
Enquanto a agricultura orgânica tem sido
brapa) se aproximam, em certa perspec-
conceituada a partir da base técnica natu-
tiva, das definições do USDA e da FAO/
ral, que substitui o pacote tecnológico da
ONU, estabelecendo que a
agricultura convencional, a agroecologia
[...] agricultura orgânica caracteriza-se fortalece tais elementos na transição para
pela diversificação e integração da pro- uma agricultura mais sustentável, mas ao
dução interna, sendo o termo orgânico
mesmo tempo situa um processo de tran-
originário da ideia de que a unidade
de produção funcione como um ‘or-
sição política na forma como tratamos a
ganismo vivo’, significando que todas questão da agricultura. Ou seja, mudamos
as atividades da fazenda (olericultura, as relações de poder consolidadas em
fruticultura, criações etc.) seriam par- determinados territórios, garantindo
tes de um corpo dinâmico, interagindo autonomia a camponeses na construção
entre si. (Assis, 2005, p. 14) de seus meios de sobrevivência.

47
A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

A agricultura orgânica tem assumi- e segurança alimentar e nutricional,


A do, nas últimas décadas, uma perspectiva da economia solidária e ecológica, da
ligada ao mercado e às demandas dos equidade entre gêneros e de relações
consumidores, influenciando direta- mais equilibradas entre o mundo rural
e as cidades. (Petersen, 2013, p. 99)
mente as tecnologias adotadas. Este
caminho, em certa medida, tem reduzido No campo da ciência, ainda restam
a preocupação mais ampla com a questão muitos desafios para o reconhecimento da
ecológica e com a sociedade, uma vez agroecologia, pois pensar a agroecologia
que há uma preocupação maior com como ciência é, ao mesmo tempo, exigir
normas de acesso a mercados especiais, seu espaço como área do conhecimento
onde se observa principalmente a cer- científico e colocá-la em risco no contato
tificação do produto em detrimento do com a perspectiva cartesiana hegemôni-
sistema como um todo (Canuto, 1998; ca da ciência positivista. Apesar desse
Assis; Romeiro, 2002). risco, a agroecologia inaugura, junto a
A agroecologia, por sua vez, pode ser outras vertentes, um olhar e prática di-
entendida na perspectiva da “prática, mo- ferentes para a ciência, destacando a
vimento e ciência”, definição que alguns complexidade envolvida na construção
grupos teóricos e movimentos sociais têm do conhecimento e, ao mesmo tempo,
assumido. Como prática, a agroecologia uma ciência que dialogue com outros
tem sido entendida em uma perspectiva saberes e que esteja disposta a propor
nova, modificada e adaptada de agricultu- problemas ancorados em demandas reais
ra ou como técnicas que contribuem para da sociedade. Dessa forma, é essencial
o desenvolvimento da agricultura orgâni- que conquistemos espaços para o reco-
ca (Rosset; Altieri, 1997). Em contrapar- nhecimento da agroecologia no campo
tida, a agroecologia se manifesta como científico, tratando dela por uma linha
prática social também em estratégias para técnica agronômica e ambiental, mas que
construção de autonomia com relação aos também alcance as vertentes artísticas,
mercados de insumos e de trabalho por filosóficas e políticas.
meio da restauração dos mecanismos de
reciprocidade ecológica e social (Petersen, Agricultura orgânica no Brasil
2013). Para Wezel et al. (2009), um movi- A agricultura orgânica tem avan-
mento agroecológico pode ser um grupo çado bastante em todo o mundo. No
de agricultores atuando pela ampliação Brasil, tem sua origem nos movimentos
da agricultura alternativa por meio de de agricultura alternativa, assumindo
parceiros sociais, respondendo melhor diferentes perspectivas a partir dos anos
aos desafios ambientais, ou pode ser um 1980 e se multiplicando na década de
movimento mais político da população 1990. Os Encontros de Agricultura Al-
local ou regional. ternativa e a ação de diferentes ONGs
Como movimento social, a Agroeco­ compõem um dos primeiros passos para
logia mobiliza atores envoltos prática a consolidação da agricultura orgânica
e teoricamente na sua construção, no país. A exemplo de outras partes do
assim como crescentes contingentes mundo, sua estruturação no país ocor-
sociais mobilizados pela defesa da reu a partir de uma ampla diversidade
justiça, da saúde coletiva, da soberania de práticas e experiências.

48
A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

Teve centralidade neste proces- fortalecendo o movimento em todo o


so a valorização dos conhecimentos país, como vimos anteriormente. O A
camponeses e das populações tradi- estabelecimento da Política Nacional
cionais, com o entendimento de que de Agroeco­logia e Produção Orgânica
as agriculturas de base ecológicas, de (Pnapo), em 2012, fortalece a agricultura
acordo com Primavesi (2008, p. 9), orgânica em território brasileiro e, ao
dependem “[...] muito da sabedoria de mesmo tempo, permite uma aproxima-
cada agricultor desenvolvida a partir ção com as concepções mais amplas con-
de suas experiências locais”. Entre os sideradas pela agroecologia [ver Políticas
conhecimentos tradicionais, Primavesi Públicas em Agroecologia].
(2008) situa aqueles relacionados aos [...] com o objetivo de integrar, arti-
solos e seu manejo em relação de par- cular e adequar políticas, programas e
ceria com a natureza. ações indutoras da transição agroeco­
Paschoal (1979), no debate inicial da lógica e da produção orgânica e de
agricultura orgânica brasileira, destacou base agroecológica, contribuindo
que esta perspectiva produtiva é impor- para o desenvolvimento sustentável e
tante porque recupera o solo, ponto de a qualidade de vida da população, por
partida para ser possível produzir sem meio do uso sustentável dos recursos
naturais e da oferta e consumo de
utilização do pacote tecnológico, sem
alimentos saudáveis. (Brasil, 2012)
agrotóxicos e sem adubos minerais solú-
veis. O autor desenvolveu também uma A Pnapo fortalece a discussão so-
diversidade de estudos que demonstraram bre a produção de alimentos saudáveis,
o desequilíbrio ambiental causado pelo que, na elaboração do Plano Nacional
uso de agrotóxicos e adubos químicos, de Agroecologia e Produção Orgânica
causando a eliminação de microrganis- (Planapo), em especial, aproximou di-
mos benéficos e permitindo o crescimento ferentes perspectivas de agricultura de
de variedades resistentes aos insumos do base ecológica desenvolvidas no país.
pacote tecnológico. Tais discussões fortaleceram o reconhe-
A publicação dos livros Manejo eco- cimento e o diálogo entre a agricultura
lógico do solo: a agricultura em regiões orgânica e a agroecologia.
tropicais (Ana Primavesi, 2006) e Pragas, É importante entendermos a agri-
praguicidas e a crise ambiental: problemas cultura orgânica, portanto, como um
e soluções (Adilson Paschoal, 1979) foi contraponto técnico e político ao pa-
essencial para o desenvolvimento da radigma de agricultura convencional,
agricultura orgânica no Brasil. Para além atualmente sustentada pelo pacote
de desenvolverem um cabedal de co- tecnológico do agronegócio. Técni-
nhecimentos para um novo paradigma co porque nos permite desenvolver a
produtivo, de base ecológica, os livros agricultura a partir do estabelecimento
atuaram politicamente na contraposição de uma relação mais equilibrada na
à chamada agricultura moderna, que natureza. E político porque possibilita
gerou e segue gerando amplos impactos a construção de relações mais justas
sociais e ambientais. entre os diferentes sujeitos envolvidos
A partir de 2003, ocorre a inserção na agricultura, assim como com os
da agricultura orgânica na legislação, consumidores.

49
A G R I C U LT U R A O R G Â N I C A

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Nota
1
Tradução livre do original: Organic Chemistry in its application to agriculture physiology”.

50
A G R I C U LT U R A U R B A N A

A
AGRICULTURA URBANA

Julia na Torquato L uiz


U schi C r istina S ilva
A ndr é R uoppolo B iazoti

O termo Agricultura Urbana (AU) de atores que advoga a AU como pos-


não se refere apenas à produção agrícola sibilidade de uma via de transformação
em espaços urbanos. São relações so- social mais ampla e em diálogo com os
ciais, políticas, culturais, econômicas e princípios da agroecologia, e que tem
ecológicas estabelecidas nos territórios acompanhado um processo de tentativa
urbanos e metropolitanos, que envol- de construção de uma política nacional
vem agriculturas. É uma agricultura que de agricultura urbana, desencadeado nos
existe em múltiplas escalas, como hortas marcos do contexto de participação socio-
e quintais, pomares, agroflorestas, as- política em torno da segurança alimentar
sentamentos metropolitanos, quilombos, e nutricional no Brasil.
comunidades indígenas e em territórios
pesqueiros como atividades produtivas e Agricultura urbana:
de subsistência alimentar, as quais, em um conceito em construção
sua maioria, associadas aos espaços de O desenvolvimento da agricultura
moradia. A AU é reivindicada, em uma está diretamente relacionado à urbaniza-
diversidade de contextos, enquanto possi- ção e à vida na cidade. A relação indisso-
bilidade de construção do direito à cidade ciável entre produção de alimentos e for-
e à alimentação saudável e adequada. A mas de constituir cidade, onde estas são
terra urbana é seu chão principal, e uma capazes de se alimentar por meio do que
diversidade de sujeitos dão múltiplos produzem, é verificada em documentos e
sentidos à prática de AU. É por meio de estudos sobre antigas civilizações como
uma visão sistêmica e polivalente que se os incas, maias e aztecas. Como o caso
propõe uma leitura sobre o que é AU. de “Las Chinampas”, hoje localizadas ao
São partilhadas questões centrais que a sul da Cidade do México, uma tipologia
colocam num terreno de disputas histó- ancestral de agricultura que conjugava
ricas. Também são apresentados alguns formas de ocupar terras junto aos lagos
marcos legais e normativos, reconhecidos com estruturas urbanas. Também es-
como atores políticos na história recente tudos realizados em Gana, Paquistão,
da AU enquanto possibilidade de política Índia, Iraque e China demonstram que
pública e social a partir do contexto bra- as cidades produziam seus alimentos e
sileiro. Nesse entremeio, são valorizadas possuíam sistemas complexos de irrigação,
contribuições do Coletivo Nacional de manejo do solo e tratamento dos resíduos
Agricultura Urbana (CNAU), um mo- orgânicos (Van der Ryn, 1995; Smit; Nasr;
vimento composto por uma diversidade Ratta, 1996).

51
A G R I C U LT U R A U R B A N A

Durante o século XX, as expe­riências à cidade democrática, em contraposição


A de AU ganharam destaque em diferen- ao modelo hegemônico de urbanização,
tes contextos históricos e geográficos, apropriação e produção do espaço urbano.
principalmente após a Segunda Guerra A prática da AU pode, então, representar
Mundial. Estas experiências expressam ações concretas que interferem na lógica
uma multiplicidade de práticas, escalas, mercantil dos espaços da cidade e revelar
espaços, sujeitos e vocabulários intima- virtualidades do espaço urbano, contra-
mente ligados aos seus contextos. Isto pondo-se às dinâmicas capitalistas e ao
quer dizer que as práticas de AU são planejamento urbano quando construído
reveladas por um conjunto de situações de cima para baixo.
às quais se entrelaçam diversos aspectos No campo da agroecologia – enquan-
sociais, políticos, econômicos e culturais, to ciência, movimento e prática social – é
e também condições de poderes desiguais recente, do ponto de vista histórico, a
nos territórios, das dinâmicas de cada integração das pautas da AU, embora
lugar e cidade. muitas experiências existentes em diferen-
Para Almeida (2015), o conceito de tes contextos revelem que a agroecologia
AU é um campo aberto e em disputa. A também é um paradigma estruturante de
autora argumenta que práticas que convergem com lutas históri-
a agricultura urbana deve trazer à cas de movimentos por reforma urbana.
tona a reflexão sobre as relações his- São exemplos, no contexto brasileiro, ex-
tóricas entre a agricultura e a cidade, periências registradas principalmente nos
bem como sobre as conexões entre últimos anos no âmbito de movimentos
questões relevantes no mundo atual, como Brigadas Populares e assentamentos
com as relações entre o rural e o ur- de movimentos como MST e Sem Teto
bano, entre a sociedade e a natureza. em contextos urbanos.
(Almeida, 2015, p. 53) Do ponto de vista dos sujeitos, a AU
Nessa perspectiva, principalmente também compreende uma diversidade de
nos últimos 30 anos, a agricultura urbana grupos sociais: mulheres, comunidades
tem estado refletida em uma multiplici­ pesqueiras, agricultores familiares, grupos
dade de questões, muitas vezes indissociá- indígenas, comunidades quilombolas,
veis, a depender do contexto onde ocorre: ribeirinhas, dentre outras comunidades
segurança e soberania alimentar; questões tradicionais em contextos urbanos, jovens
do mundo trabalho; resiliências e acesso a permacultores, dentre outros grupos que
recursos naturais na cidade como terra e dão vida a diferentes formas e expres-
água; condições habitacionais; biodiver- sões das agriculturas urbanas; a roça, a
sidade, planejamento urbano, educação horta, o quintal, o sítio. São praticadas
ambiental, saúde coletiva, saúde mental, individualmente, no âmbito familiar,
circuitos próximos de comercialização, coletivamente (por meio de bases comuni-
sistemas agroalimentares metropolitanos, tárias ou associativas) e por movimentos
agroecologia, dentre outros. sociais. São iniciativas que revelam prá-
Considerando essa perspectiva, a ticas tradicionais de cultivar alimentos,
construção conceitual de AU se apre- plantas medicinais, plantas ornamentais
senta de forma dinâmica e, também está e criação animal para consumo imediato
localizada em pautas de luta pelo direito da família e da vizinhança próxima. Mas

52
A G R I C U LT U R A U R B A N A

também alcançam, ao exemplo de escalas dos fatos que emergem do espaço urbano,
da agricultura familiar, mercados locais considerando inclusive experiências que A
próprios (feiras, distribuição de cestas sempre existiram e resistiram utilizan-
com produtos frescos) e estruturas mais do os recursos naturais disponíveis nos
complexas, ao exemplo de processos que contextos do urbano e reconhecendo
incluem as relações produtor-consumidor, politicamente a contribuição ecossistê-
além de mercados institucionais. mica e social de diferentes sujeitos sociais
No âmbito espacial, pratica-se AU invisibilizados e marginalizados por um
em residências – casas e apartamentos, sistema desigual de sociedade.
quintais, lajes, terraços, telhados, chá-
caras, sítios, terrenos baldios, laterais Espaço urbano e direito à cidade
de estradas, ruas, praças, jardins e áreas No Brasil e em muitos contextos do
públicas não ocupadas por edificações. Sul Global, a urbanização se deu de ma-
Também é comum em ambientes institu- neira diferenciada em relação aos países
cionalizados, tais como escolas, creches, do Norte, como aponta Singer (1985).
asilos, penitenciárias, centros de saúde, Segundo o autor, a problemática urbana
universidades, associações, entre outras que se estabelece no Sul está relacionada
instituições públicas ou privadas. A com- à falta de moradia adequada, ineficiência
posição de espaços ocupados por AU pode nos serviços urbanos como abastecimento
contribuir inclusive para a recuperação de água encanada e esgoto, falha nos sis-
de corredores verdes ecológicos e estar temas de saúde e educação, entre outros.
integrada em sistemas florestais urbanos, A cidade adquire um conceito redu-
dentre outras tipologias espaciais caracte- cionista de centro produtor, composta por
rizadas como áreas verdes. As ocupações políticas, governos, fábricas e mercados.
de terras e imóveis cuja função social não Em contraposição, o campo foi determi-
é cumprida também constituem espaços nado como lugar de produção de alimen-
de AU. Considerando esse contexto, tos e lugar da natureza. A cidade é apar-
compreende-se a agricultura praticada em tada dessas funções. Há uma mudança
diferentes espaços urbanos com a possibi- paradigmática e uma quebra dos vínculos
lidade de múltiplos alcances, em simultâ- comunitários, o rompimento das relações
neo, não unicamente com o objetivo de e da organização de terras comunais e das
suprir a demanda alimentar das cidades, tradições e instituições locais voltadas às
embora destaque a contribuição inequí- estruturas comunitárias agrícolas. Se dá
voca da AU para a segurança alimentar e então a defesa da propriedade privada e
nutricional e para o resgate das culturas e o mercado livre guiado pela oferta e pela
saberes das comunidades. Compreende-se demanda.
a AU num processo de defesa mais amplo, O processo industrial brasileiro ini-
de um outro projeto de sociedade, pautado ciado na primeira metade do século XX
em valores democráticos, de justiça social, atraiu para as cidades do eixo Rio de
ambiental, econômica e cultural. Janeiro – São Paulo grande massa de tra-
Por essa via, as práticas de agricul- balhadores. Uma visão crítica da urbani-
tura na cidade são orientadas por bases zação brasileira tem origem na percepção
agroecológica e popular. Essa concepção de que o movimento migratório de traba-
nos convida a uma abordagem dialética lhadores rurais originou um processo de

53
A G R I C U LT U R A U R B A N A

transformação socioespacial. Camponeses regiões metropolitanas, favelas, cortiços


A desenraizados do meio rural tornaram-se e ocupações no centro da cidade são
marginais no espaço urbano para serem exemplos concretos das lutas cotidianas
transformados em exército industrial de e da produção do espaço.
reserva (Singer, 1985). Nestes locais, a prática da AU rede-
A complexidade da produção do es- senha o espaço e a paisagem urbana. Em
paço urbano e o crescimento das cidades lugar de terrenos ociosos, hortas comuni-
relaciona-se não somente à industriali- tárias, praças e áreas de lazer. Em tornos
zação, mas ao crescimento do setor de desses processos coletivos emergem os
serviços que se estruturou como um modo debates sobre: direito à alimentação
de acumulação tipicamente urbano. É no saudável e adequada; qual cidade se
espaço urbano onde uma nova exploração quer e como construir o direito à cidade;
desses trabalhadores se configura, na violência urbana nas periferias; mobili-
medida em que o trabalho informal se dade urbana e saneamento ambiental.
amplia, o custo de reprodução da mão de No campo simbólico, há a valorização
obra diminui e os trabalhadores buscam dos saberes e das memórias ancestrais;
sua reprodução e sobrevivência às pró- das culinárias populares, das sementes
prias custas. Esses trabalhadores também crioulas; das plantas medicinais e das
desempenham o papel de consumidores relações solidárias.
necessários à implantação da indústria e Essas experiências nas cidades são
do vasto setor de serviços que se estrutura ilhas de re-existência que inscrevem no
à sua margem (Oliveira, 2013). espaço urbano outros modos de vida
O aumento da demanda urbana por contrários à imposição do sistema capita-
produtos, incluindo os alimentos, deu ao lista. Se, por um lado, o modo capitalista
Capital a oportunidade de penetrar no de produção provocou o inchaço das
campo brasileiro por meio da produção cidades e o esvaziamento do campo, rom-
agrícola em maior escala. Em contra- pendo a relação metabólica [ver Ruptura
partida, permitiu a maior especialização do Metabolismo Socioecológico] existente
dos espaços, com funções econômicas entre seres humanos e a natureza (Foster,
bastante demarcadas. Esses processos 2012), gerando desequilíbrios e excessos
históricos circunscritos no espaço urbano de desperdício no ambiente, por outro,
aprofundaram a dicotomia campo-cidade/ as práticas dos sujeitos que realizam a
rural-urbano, fragmentando as relações AU nos apontam para a construção de
entre sociedade e natureza na medida espaços que valorizam a reprodução da
em que atestava uma visão fraturada da vida em todas as suas manifestações,
vida e dos espaços (Kois; Morán, 2015). reconectando a sociedade urbana com
No entanto, a produção do espaço a natureza.
urbano não resulta apenas da intervenção
dos proprietários dos meios de produção, A possibilidade de recomposição das
proprietários fundiários, promotores imo- relações sociedade e natureza via
biliários e do Estado. Os sujeitos margi- agricultura urbana
nalizados também produzem espaço na Os debates anteriores também de-
cidade (Corrêa, 2016). Os movimentos nunciam uma visão de cidade destituída
de luta por moradia, assentamentos em da sua composição ecológica quando tra-

54
A G R I C U LT U R A U R B A N A

tada pela lógica da economia capitalista. Os sujeitos que produzem alimen-


De um lado, se perpetua uma imagem tos na cidade, organizados em torno de A
intacta de natureza e se reproduz de forma movimentos de AU, interpelam a visão
artificial espaços de contemplação onde reducionista e dualista entre sociedade e
a sociedade está apartada da natureza e natureza e reivindicam a sua superação
a vê como “objeto” a ser dominado, ex- por meio de processos democráticos onde
plorado e conservado com fins de reserva os cultivos agroalimentares no espaço
de recursos naturais. De outro, a cultura urbano contribuem na recomposição
do consumo, cunhada dentro do sistema das relações dos seres humanos com a
capitalista, provoca desperdício dos bens natureza e a produção da abundância
naturais e níveis elevados de poluição e (Biazoti, 2020).
degradação ambiental.
Essa desigualdade ambiental se ex- Marcos legais e institucionais sobre a
pressa também como desigualdade so- agricultura urbana no Brasil
cial. A população pobre é a que mais No Brasil, o tema da AU é de­
está exposta “aos riscos decorrentes da sassistido de políticas públicas e sociais
localização de suas residências, da vul- que atendam a diversidade de práticas de-
nerabilidade destas moradias a enchentes, senvolvidas. Há uma enorme lacuna entre
desmoronamentos e à ação de esgotos a as experiências de agricultura urbana que
céu aberto, afetados pela poluição do ar, estão nos espaços urbanos e a existência
da água, do solo” ­(Acselrad, 2000, p. 2). de um aparato institucional no âmbito de
As diversas experiências de AU pre- políticas que promovam e atendam essa
sentes nos territórios vêm demonstrando modalidade e seus sujeitos. Entretanto,
que os contextos urbanos não são apenas há iniciativas e programas de agricultura
lugares de consumo e de produção de urbana desenvolvidos por alguns governos
desperdício, mas podem ser também locais (âmbitos estadual e municipal)
espaços de produção agrícola orientados que ainda carecem de uma abordagem
por princípios agroecológicos onde estas sistêmica, inter e multissetorial, e que
práticas recuperam a dimensão da natu- deem conta de articular a pluralidade
reza como parte da cidade e da produção de áreas da educação, saúde, urbanismo,
do espaço urbano. habitação, agricultura, cultura, dentre
Um exemplo é o reconhecimento da outros setores possíveis de atenderem uma
cidade como produtora de nutrientes que política de AU.
se transformam em um importante insu- No início dos anos 2000, a partir
mo para a agricultura – seja no campo do Programa Fome Zero, a introdução
ou na cidade – por meio do tratamento da temática da Segurança Alimentar
e gestão dos resíduos orgânicos urbanos. e Nutricional (SAN) significou uma
O novo paradigma de não mais tratar janela institucional aberta ao tema da
como lixo os resíduos advindos de ma- agricultura urbana, a exemplo do tema
teriais orgânicos, e sim como parte de do abastecimento alimentar. A insti-
um ciclo – veio da terra, volta à terra – é tuição da Lei Orgânica de Segurança
um princípio ecossistêmico que parte da Alimentar e Nutricional (Losan, Lei n.
concepção aqui advogada de agricultura 11.346/2006) foi um marco para a pró-
urbana. pria AU. As Conferências de Segurança

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A G R I C U LT U R A U R B A N A

Alimentar e Nutricional empreendidas Programa de Aquisição de Alimentos


A pelo Conselho Nacional de Segurança (PAA) e Programa Nacional de Ali-
Alimentar e Nutricional (Consea) evi- mentação Escolar (Pnae), bem como o
denciam tais convergências. Mas é no acesso aos procedimentos para a emis-
Plano Nacional de Segurança Alimen- são de Declaração de Aptidão ao Pronaf
tar e Nutricional 2012-2015 (Plansan) (DAP), com o objetivo de diminuir as
que a indicação da implantação de uma desigualdades econômicas e dar maior
Política Nacional de Agricultura Urba- acesso a políticas públicas por parte
na (Pnau) é inscrita pela primeira vez. de agricultores urbanos. Também há
No mesmo ano de implementação interface com políticas de agricultura
do Plansan (2012), quando o Governo e produção orgânica e a possibilidade
Federal encerra o Programa de Agri- de buscar garantir assistência técnica
cultura Urbana, abrigado no Ministério como a política de Assistência Técnica
de Desenvolvimento Social (MDS), a e Extensão Rural (ATER) e a transição
sociedade civil cobra o governo e rei- ecológica [ver Transição Agroecológica].
vindica a continuidade, não somente A AU está contemplada na Política
do programa, mas da ampliação de Nacional de Agroecologia e Produção
iniciativas e construção de uma política Orgânica (Pnapo) e expressa no Plano
nacional de AU. Nacional de Agroecologia e Produção
Em 2014, cria-se o GT de AU do Orgânica (Planapo). Outra importan-
Consea, que assume três objetivos cen- te referência é a Política Nacional de
trais: a elaboração de um documento Resíduos Sólidos (PNRS), principal-
orientador ao processo de construção mente no âmbito da gestão de resíduos
de uma Política Nacional de AU; a orgânicos, que vem sendo reivindicada
realização de um encontro nacional de por comunidades para que tenham
AU; e orientação de criação de um co- autonomia na gestão de ciclos de tra-
mitê técnico de AU dentro da Câmara tamento e reutilização dos resíduos
Intersetorial de Segurança Alimentar orgânicos. O Estatuto da Cidade (Brasil,
(Caisan). 2001) é outro importante campo legal
Ainda no campo da alimentação, a a ser explorado no âmbito da defesa da
Emenda Constitucional n. 64/2010, que agricultura urbana, pois a função social
modificou o art. 6° da Constituição de da terra urbana, da propriedade, pode
1988 e incluiu o direito à alimentação ser recuperada por meio de práticas de
junto aos direitos sociais, possibilitou a agricultura urbana.
crescente argumentação da agricultura Dessa maneira, compreende-se
urbana como uma das possibilidades que os governos e sociedade civil de-
de garantir alimentos saudáveis para o vem assumir o caráter multissetorial
conjunto da sociedade. e acolhedor da AU e materializar as
Desde 2010, há um esforço de políticas voltadas para o bem viver.
movimentos de agricultores, redes de A possibilidade de a agricultura para
AU e ONGs de integrar agricultores vida ser novamente capaz de alimentar
urbanos em programas e políticas e as cidades, em parceria com o campo,
mercados institucionais destinados à dependerá dessas recuperações que
agricultura familiar, ao exemplo do engendram um outro urbano possível.

56
A G R I C U LT U R A U R B A N A

Referências
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Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), Central Única dos Trabalhadores (CUT) (RJ),
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R. L. de. Teorias e práticas urbanas. Belo Horizonte: C/Arte, 2015.
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de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Ecologia Aplicada). ESALQ/CENA, Universidade de São
Paulo, 2020.
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de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais
da política urbana e dá outras providencias. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 05 mar. 2021.
______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos jurídicos. Lei 11.326 de 24 de
julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a formulação da política nacional da agricultura familiar
e empreendimentos familiares rurais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11326.htm. Acesso em: 29 abr. 2021.
CORRÊA, R. L. Sobre agentes sociais, escala e produção do espaço: um texto para discussão. In:
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processos, escalas e desafios. São Paulo: Contexto, p. 41-51, 2016.
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HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
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SMIT, J.; NASR, J.; RATTA, A. Urban agriculture: food, jobs, and sustainable cities. New York: UNDP,
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VAN der RYN, S. The toillet papers: recycling waste and conserving water. Sausalito, Califórnia: Eco-
logical Design Press, 1995.

Para saber mais


Documentos produzidos pela Coletivo Nacional de Agricultura Urbana: http://aspta.org.br/2015/04/cau/
AUE! – Grupo de Estudos em Agricultura Urbana, da Universidade Federal de
Minas Gerais: https://aueufmg.wordpress.com/
Fundação RUAF – Centro de Expertise em Agricultura Urbana e Sistemas
Alimentares: http://www.ruaf.org
IDRC – International Development Research Centre.
http://www.idrc.ca

Agricultura Urbana e Suburbana em Cuba


Marcelo Durão Fernandes D’Oliveira

Com o colapso do bloco socialista europeu e a queda da URSS em 1989, somado ao forta-
lecimento do bloqueio econômico, comercial e financeiro estadunidense implantado desde 1962,
Cuba se obrigou a repensar a sua produção de alimentos, como medida para garantir a Segurança
Alimentar. Mudou radicalmente suas técnicas de produção e colocou a agroecologia como eixo
fundamental da sua agricultura (Briz & Felipe, 2015).
Três importantes programas foram desenvolvidos para impulsionar a produção de alimentos,
assim como promover a agroecologia em todo território Cubano: o Movimento Campesino a Cam-
pesino (MCaC), da Associação Nacional de Pequenos Agricultores-ANAP; o Programa de Inovação
Agropecuária Local (Pial) e o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Suburbana e Familiar.
A produção de hortaliças em zonas urbanas começara a ser desenvolvida a partir de 1987,
visando a máxima utilização dos recursos locais e o estabelecimento de formas sustentáveis
de agricultura (Nodals, et al 2012; Gnau, 2018). Em 1997 constituiu-se o Grupo Nacional

57
A G R I C U LT U R A U R B A N A

de Agricultura Urbana, que promoveu a organização de um sistema estruturado desde as


A Unidades de Base até o nível nacional, nas 14 províncias e 169 municípios de Cuba, baseado
na Agroecologia.
Em 2009 se estrutura o Programa Nacional de Agricultura Urbana, Suburbana e Familiar,
para a planificação de uma produção agroecológica diversificada de alimentos frescos (vegetais
e animais), plantas medicinais, ornamentais, flores e produtos florestais, realizada dentro dos
perímetros das cidades e povoados e na sua periferia, num raio de 2 a 10 km, ajustando-se estes
parâmetros a um Projeto Municipal para o máximo de aproveitamento de combustível e água,
amplo uso da tração animal e comercialização o mais direta possível (Minag, 2018). Este sistema
promove a interrelação entre Seres Humanos, Cultivos, Animais e Meio Ambiente, aproveitando
as facilidades da infraestrutura urbanística que propiciam a estabilidade da força de trabalho,
envolvendo a participação das mulheres, jovens e idosos.
Diversas são as modalidades produtivas existentes: organopônico; organopônico semi protegi-
do; finca (sítio) suburbano; hortas intensivas; hortas caseiras ou pátios; cultivo doméstico; cultivo
protegido; autoabastecimento de empresas. As mais usuais são os Organopônicos (sistema fechado
de construções retangulares, de produção sem contato direto com o solo) e as Hortas Intensivas
(canteiros em sistema aberto). Todos esses sistemas devem se localizar o mais próximo possível
da destinação final da produção (Oliva; Novo, 2010; Inifat, 2010).
A Agricultura Urbana em Cuba tem sido acompanhada desde seu início pelo Instituto de
Investigaciones Fundamentales em Agricultura Tropical (Inifat), órgão que coordena o Movimento
(Grupo) Nacional de Agricultura Urbana e Suburbana (GNAU). Participam do GNAU pesqui-
sadores, técnicos e extensionistas de 7 ministérios e 17 instituições de pesquisa relacionadas à
produção de alimentos, à capacitação e aos serviços de infraestrutura organizativa. O Programa
também recebe apoio, de acordo com as necessidades locais de produção, elaboração e distribuição
de alimentos, de diversas organizações: Associação Nacional de Agricultores Pequenos (Anap),
Federação de Mulheres de Cuba (FMC), Central de Trabalhadores de Cuba (CTC), Associação
Cubana de Técnicos agrícolas e Florestais (ACTAF), Associação Cubana de Produção Animal
– ACPA e do grupo empresarial de cana e açúcar AZCUBA (Gnau, 2018).
O Programa de Agricultura Urbana, Suburbana e Familiar dispõe de um conjunto de in-
fraestruturas com impactos de importância econômica, alguns deles: Centros de Reprodução de
Entomófagos e Entomopatógenos (CREE); Centros Integrais de Alimentação Animal; Clínicas
veterinárias municipais; Rede de centros de monta e inseminação artificial; Rede de centros e
microcentros de adubos orgânicos; Rede de consultórios – tenda do agricultor; Rede de fincas
municipais de sementes; e Viveiros Populares e Tecnificados (Minag, 2018).
Possui 19 Subprogramas baseados na Agroecologia, dos quais 5 são agrícolas, 3 pecuários e
11 de apoio, que se integram de forma multi, inter e transdisciplinar, com enfoque participativo
das mulheres e jovens. Um dos subprogramas consiste na capacitação, através de um processo
participativo em que camponeses e técnicos das instituições de pesquisa e ensino, buscam refletir
e agir sobre os problemas concretos, utilizando prioritariamente o Método Campesino a Campe-
sino, onde os próprios camponeses são os formadores (ver Educação Popular). Em 2017, foram
formados 41.764 produtores (Minag, 2018).
O Programa de Agricultura Urbana, Suburbana e Familiar está em 12.588,91 km2 do território
nacional, aproximadamente 14% da área agrícola do país, e tem proporcionado a geração de mais de
350 mil empregos, dos quais 70 mil são ocupados por mulheres e 78,5 mil por jovens (Nodals, 2014).
Em 2018, foram produzidas 1.268.276 toneladas de hortaliças e condimentos frescos, em 8.638
ha de organopônicos, hortas intensivas e cultivos semiprotegidos, com a previsão de se chegar
ao final de 2019 com 10 mil ha e uma média de produção de 12 kg/m2/ano. Havia 134.963 fincas
que utilizavam 101.252 juntas de boi. Foram produzidas 11,56 toneladas de sementes certificadas,
com ênfase nos cultivos de alface, acelga chinesa, rabanete, cenoura e vagem. Estima-se que a
produção animal tenha superado as 100 mil toneladas de carne (de aves, suínos, ovinos, caprinos
e coelhos), 1,8 milhões de litros de leite de cabra e mais de 300 milhões de ovos. E foram emitidas
licenças comerciais para mais de 300 fábricas de sucos de cooperativas vinculadas ao Subprograma
de Frutas (Minag, 2018).
Enfim, o Programa Nacional de Agricultura Urbana, Suburbana e Familiar tem alcançado
importantes resultados na produção de alimentos, na capacitação dos produtores, na geração de
resultados técnicos-científicos e de experiências de produtores de referência, com impactos na
esfera econômica-social e na biodiversidade (GNAU, 2018).

58
AGROECOLOGIA

Referências:
NODALS, A. R.; CONCEPCIÓN, N. C.; RUÍZ, J. S. Programa de Agricultura Urbana y Subur- A
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Global e Internacional. Madrid: Ministerio de Agricultura, Alimentación y Medio Ambiente de
Espanha; Editorial Agrícola Española, 2015.
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y Familiar para el año 2018. Habana: Ministerio de Agricultura de Cuba; Instituto de Investigaciones
Fundamentales en Agricultura Tropical, 2018.
OLIVA, E. M.; NOVO, M. G. (Orgs.). Manual Tecnico para Organoponicos, Huertos Intensivos y
Organoponia Semiprotegida. 7a. ed. La Habana: Instituto de Investigaciones Fundamentales en
Agricultura Tropical; Asociacion Cubana de Tecnicos Agricolas y Forestales, 2010.
MINAG. Ministerio de Agricultura de Cuba. Balance Nacional de Agricultura Urbana, Suburbana y
Familiar. La Habana: Instituto de Investigaciones Fundamentales en Agricultura Tropical; Grupo
Nacional de Agricultura Urbana, feb. 2018.

Para saber mais


FUNES-MONZOTE, F. R. Agricultura Con Futuro: La Alternativa Agroecológica Para Cuba. Ma-
tanzas: Estación Experimental “Indio Hatuey”, Universidad de Matanzas, 2009. Disponível em:
https://www.socla.co/wp-content/uploads/2014/Agricultura_Funes_Monzote1.pdf

AGROECOLOGIA

D ominique G uhur
Nívia R egina da S ilva

Ao mesmo tempo em que vem buscando conexões mais abrangentes


ganhando visibilidade e importância sempre que possível.
na sociedade, a agroecologia conser- A agroecologia tem sido reafirmada
va uma multiplicidade de sentidos, por um conjunto de sujeitos sociais,
alguns consensuais, complementares organizações, instituições de pesquisa e
ou convergentes, outros nem tanto. ensino como uma ciência, um enfoque
Embora esse crescimento venha se ou disciplina científica, como prática
dando em âmbito internacional, pode (social) e como movimento ou luta po-
haver diferenças importantes entre lítica. Pode apresentar uma abordagem
países e regiões do mundo (Wezel et restrita, como um campo de cultivo
al., 2009). No presente texto, nos con- agrícola; considerar um agroecossistema
centramos na América Latina e, mais mais complexo, como uma unidade de
especificamente, no Brasil, ainda que produção (estabelecimento rural, assen-

59
AGROECOLOGIA

tamento de reforma agrária) ou mes- camponeses, povos tradicionais e ori-


A mo uma região; abarcar todo o sistema ginários pelas condições de sua própria
agroalimentar; ou convidar a repensar o reprodução social; seja na importância
metabolismo sociedade-natureza, como da agroecologia para a saúde e a sobera-
parte de um projeto societário. nia alimentar, que mobiliza também os
Em todos esses níveis e dimensões, trabalhadores urbanos; seja, enfim, no
a agroecologia se apresenta como uma debate de um outro projeto societário.
contraposição a determinadas práticas,
enfoques ou concepções. Propomos tra- Agroecologia: antecedentes
çar alguns fios condutores que possam históricos e processo originário
ajudar a compreender a agroecologia Como toda produção humana, a
no momento atual,1 a partir daqueles agroecologia precisa ser pensada no
que têm sido reiteradamente apontados contexto das relações sociais e dentro de
como seus sujeitos principais, a saber, os seu desenvolvimento histórico. Embora
camponeses e camponesas (em sentido o uso contemporâneo do termo tenha
amplo)2 e povos originários, tomados surgido em meados do século XX, é
enquanto classe social em luta. importante insistir que se pode identifi-
O que atualmente chamamos de car a origem do que hoje chamamos de
agroecologia tem sua origem nas práxis agroecologia nas objetivações agri-cultu-
camponesas e dos povos originários ao rais dos povos originários e camponeses
longo de aproximadamente 12 mil anos (Hecht, 1989; Rosset; Altieri, 2017),
de criação e recriação das “agri-culturas”, desenvolvidas e acumuladas por gera-
as quais se encontraram, dialeticamente, ções, em modos de ser dialeticamente
com a ciência moderna desenvolvida a sinérgicos e antagônicos (ou seja, de
partir do século XVII, em um processo cooperação e complementariedade, mas
de tensões, saltos e regressões. Resulta também de exploração e depredação),3
igualmente das contradições do próprio nas relações entre si e com a natureza
capitalismo (que para se reproduzir, (Tardin; Guhur, 2017).
degrada as bases materiais de produção: Os povos originários e camponeses
a natureza e o trabalho/trabalhador) foram os primeiros agricultores, cria-
e das lutas e processos históricos de dores e pesquisadores que, ao longo de
resistência dos camponeses e povos ori- gerações, identificaram, domesticaram,
ginários contra seu avanço no campo. selecionaram e conservaram as espécies
Somente a partir do século XX esse úteis aos seres humanos;4 que desenvol-
processo passou a ser sistematizado e veram ferramentas, formas de trabalho e
organizado como um corpo próprio de técnicas de produção adaptadas às mais
conhecimentos científicos, adquirindo diferentes situações; que configuraram
maiores contornos de luta política no agroecossistemas e sistemas de produção,
início do século XXI, com organizações em um processo de coevolução com as
da sociedade civil, destacando-se os condições naturais locais e, a partir de
movimentos camponeses. sua imbricação e cotidianidade com a
No momento atual, a dimensão natureza, constituíram as mais antigas
política da agroecologia ganha cada cosmovisões [ver C osmovisões]. Foram
vez mais centralidade: seja na luta dos eles também que permitiram, enfim, o

60
AGROECOLOGIA

levantar de civilizações e garantiram a intensificadora da alienação do


produção de alimentos para abastecer ser humano (de si mesmo, da A
os trabalhadores das cidades e de outras natureza, do gênero humano,
classes sociais, nos diferentes modos de do produto do seu trabalho).
produção e formações sociais, sob explo- Os conhecimentos e saberes tradi-
ração, opressão e dominação violentas; cionais agroecológicos foram convenien-
muitas vezes identificados com posições temente apropriados e sistematicamente
políticas, sociais e culturais conserva- desqualificados,6 paralelamente às reite-
doras ou reacionárias, mas muito ativos radas tentativas de destruição dos meca-
em revoltas populares, guerras de inde- nismos endógenos de sua codificação,
pendência e revoluções (Tardin, 2012). controle e transmissão, pela dominação
A ascensão do modo de produção de classe, racista e sexista (Hecht, 1989).
capitalista alterou ampla e violentamen- Alguns séculos se passariam antes que
te a dinâmica milenar de reprodução do chamassem a atenção de pesquisadores,
campesinato (Marx, 1983), trazendo a marcando assim o “ressurgimento” da
seguinte realidade:5 agroecologia.
a) expulsão violenta dos campo-
neses da terra para, de um lado, Contribuições ao desenvolvimento
concentrar os meios de produ- da agroecologia
ção nas mãos da classe dos pro- O ressurgimento contemporâneo
prietários e, de outro, produzir o da agroecologia não é obra do acaso. A
trabalhador “livre”, despossuído, consolidação e expansão do capitalismo
necessário à indústria e à exis- industrial exigiu uma intensificação
tência de um mercado interno; da agricultura que já no século XIX
b) submissão dos povos originários levava à exaustão dos solos na Europa
da África, América e Ásia ao e na América do Norte (Foster, 2005;
genocídio, à escravidão e à do- Mazoyer; Roudart, 2010). A busca por
minação colonial, destruindo as solucionar esse problema esteve na ori-
formas anteriores de organiza- gem das pesquisas que deram origem
ção e reprodução social; às bases científicas e tecnológicas da
c) separação do campo e da cida- revolução verde [ver Revolução Verde] e,
de, rompendo assim as bases do simultaneamente, a diferentes estudos e
metabolismo ecológico e social, movimentos que foram decisivos para a
e tornando a indústria fabril e constituição da agroecologia.
o trabalho parcelar o modelo a A partir de 1860, pesquisas pionei-
ser aplicado a todas as esferas da ras na microbiologia do solo tornaram
produção, inclusive a agricultura; conhecidos processos biológicos funda-
d) subordinação da natureza e do mentais, como a decomposição da maté-
trabalho humano ao imperativo ria orgânica, a nitrificação e a fixação do
de geração do lucro, em uma nitrogênio, elementos que comprovam
exigência sempre crescente de a base orgânica da nutrição das plantas
produtividade e de redução de (Silva, 2010).7 Paralelamente, contu-
custos, violentadora dos tem- do, as descobertas de Justus von Liebig
pos e processos da natureza e passaram a orientar a ciência agrícola a

61
AGROECOLOGIA

partir de uma concepção de fertilidade permaneceram extremamente margi-


A do solo restrita à natureza mineral da nalizadas (Ehlers, 1994), e os avanços
nutrição das plantas, 8 baseando-a em da ecologia e da agronomia seguiram
fertilizantes industriais – “mesmo que seu de forma majoritariamente separada na
limite já [tivesse] sido apontado no final academia, ao mesmo tempo que orien-
do século XIX” (Primavesi; Primavesi, tavam massivamente práticas agrícolas
2018, p. 38).9 “desecologizadas” e “desculturalizadas”
Ao que tudo indica, o termo (Leff, 2002). A subsunção (ou subordi-
“agroeco­logia” surgiria pela primeira nação) formal da agricultura à indús-
vez em 1928, em um livro escrito por tria era gradualmente transformada em
Basil Bensin (agrônomo russo que pos- subsunção real, por meio da articulação
teriormente emigrou para os EUA), para de tecnologias e práticas que, quando
descrever o uso de métodos ecológicos disseminadas aos países periféricos, fica-
na produção comercial de cultivos. No riam conhecidas como Revolução Verde.
mesmo ano, o agrônomo americano Esse processo aprofundou a divisão do
Klaus Klages, embora sem citar o nome trabalho entre campo e cidade, entre
“agroecologia”, escreveu um artigo consi- concepção e execução, acelerando a
derado pioneiro na aplicação da ecologia fragmentação dos conhecimentos. Apro-
[ver Ecologia] à ciência agrícola, em que fundou também a alienação do trabalho,
analisava a distribuição das espécies desconectando-o das necessidades hu-
cultivadas, chamando a atenção para manas e provocando estranhamento na
as complexas relações existentes entre a relação com a natureza.
planta e seu ambiente (Klages, 1928) e As consequências negativas da Re-
incluindo em uma obra posterior fatores volução Verde tornaram-se cada vez mais
históricos, técnicos e socioeconômicos explícitas e difíceis de ignorar. Primavera
(Wezel; Soldat, 2009). silenciosa, publicado por Rachel Carson
Diversos outros estudos importantes em 1962, foi um marco na denúncia dos
datam das décadas de 1920-1930. Alguns efeitos dos agrotóxicos sobre o ambiente
deles deram origem, no mesmo período, e a saúde humana, e influenciou de ma-
a sistemas agriculturais de base ecológica neira ampla todo o movimento da con-
que integravam modos de vida e visões tracultura das décadas de 1960 e 1970,
de mundo bastante amplas: a agricultura período em que também se multiplica-
biodinâmica [ver Agricultura Biodinâmi­ ram as pesquisas a respeito dos sistemas
ca], fundada na Alemanha por Rudolf tradicionais de agricultura camponesa e
Steiner, em 1924; e a agricultura natural, indígena (Wezel et al., 2009).
fundada no Japão por Mokiti Okada em Nesse contexto de contestações,
1935 (e com contribuições também de uma série de movimentos políticos, aca-
Massanobu Fukuoka). Ambas surgiram dêmicos e camponeses intensificaram
integradas a sistemas filosóficos e reli- críticas e retomaram as potencialidades
giosos – a proposta de Steiner englobava anteriores à Revolução Verde, demar-
também uma pedagogia e uma medicina; cando um processo tecnológico e de
a de Okada incluía a arte. práticas agrícolas que se contrapunha à
Entretanto, com o avanço da Segun- agricultura industrial, cada vez mais do-
da Revolução Agrícola, essas iniciativas minante. Podemos citar, dentre os mais

62
AGROECOLOGIA

influentes (Ehlers, 1994; Jesus, 2005): estadunidenses. Passou-se a reconhe-


a agricultura orgânica [ver Agricultura cer como agroecologia um conjunto de A
O rgânica] (disseminada nos EUA por práticas agrícolas tradicionais e formas
Jerome Rodale, com base nos estudos de organização desenvolvidas por cam-
do inglês Albert Howard, cuja obra fun- poneses e povos originários, especial-
damental fora publicada em 1940); a mente na América Latina (Altieri, 1989;
agricultura biológica (popularizada na Gliessman, 2001). Outra contribuição
França por Claude Aubert, na década fundamental para esse reconhecimento
de 1970, com base nas ideias do suíço foi dada por Eduardo Sevilla-Guzmán e
Hans Peter Muller) e a permacultura Manuel Gonzáles de Molina, ambos liga-
[ver P ermacultura] (desenvolvida na dos ao Instituto de Sociologia e Estudos
Austrália por Bill Mollison, no final da Camponeses (Isec) da Universidade de
década de 1970). Todas estas iniciativas Andaluzia, Espanha.
são frequentemente agrupadas sob a de- No âmbito acadêmico, os estudos e
nominação de “agriculturas alternativas” pesquisas passaram a crescer exponen-
e, com exceção da agricultura biológica, cialmente, ampliando-se para novos
se desenvolveram também no Brasil. campos do conhecimento e abordagens,
No Brasil, o movimento de contes- conduzindo, na década de 1990, a uma
tação às bases da modernização conser- consolidação e reconhecimento insti-
vadora da agricultura ganhou força a tucional (Wezel; Soldat, 2009). Houve,
partir da década de 1970, com grupos nesse período, acúmulos significativos
de intelectuais, profissionais das ciências dos movimentos de resistência à Re-
agrárias – destacando-se a Federação das volução Verde, da produção científica
Associações de Engenheiros Agrônomos e da retomada das práticas e sabedoria
(Faeab) –, estudantes de universidades tradicionais camponesas e ameríndias,
públicas e ambientalistas configurando que conduziriam, nos anos seguintes,
o “Movimento de Agricultura Alterna- a uma ampliação das dimensões e do
tiva”. O movimento estudantil também conceito de agroecologia. Na Améri-
teve papel destacado na organização ca Latina, foram criados o Consórcio
dos Encontros Brasileiros de Agricul- Latino-Americano de Agroecologia y
tura Alternativa (EBAAs) e Encontros Desarrollo (Clades), em 1989, e o Movi-
Regionais de Agricultura Alternativa mento Agroecológico Latino-Ame­ricano
(ERAAs), na década de 1980. Dentre (Maela), em 1992.
os pioneiros do pensamento agroeco- No Brasil, se estabelece a partir dos
lógico brasileiro, podemos citar: Artur anos 2000 um calendário permanente de
Primavesi, Ana Maria Primavesi, José mobilizações, atividades e eventos massi-
Lutzenberger, Adilson Paschoal, Se- vos que resultaram de articulações esta-
bastião Pinheiro e Luiz Carlos Pinheiro duais, regionais e nacionais dos diversos
Machado. movimentos e organizações, dentre os
Foi a partir dos anos 1980 que o uso quais podemos destacar: o Encontro
do termo agroecologia se popularizou, Nacional de Agroecologia, que resultou
sob grande influência dos trabalhos de na criação da Articulação Nacional de
Miguel Altieri e de Stephen Gliessman, Agroecologia [ver Articulação Nacional
ambos pesquisadores de universidades de Agroecologia (ANA)] e a Jornada de

63
AGROECOLOGIA

Agroecologia (Paraná),10 desde 2002; a e diversidade; que envolve o trabalho


A campanha “As sementes são patrimônio como objetivação fundante, mas o trans-
da Humanidade” (da Via Campesina [ver cende, revelando o humano como ser
Via Campesina]) e o Congresso Brasilei- criativo e autoprodutivo, “produto e cria-
ro de Agroecologia, que deu origem à ção da sua autoatividade” (Netto; Braz,
Associação Brasileira de Agroecologia 2010, p. 44). Compreender a agroecolo-
(ABA), desde 2003; a Campanha Perma- gia como práxis sugere a possibilidade de
nente Contra os agrotóxicos e Pela Vida, incorporação consciente da dimensão
desde 2011 [ver Agrotóxicos]; a Feira Na- ecológica da vida ao ser social desen-
cional da Reforma Agrária, desde 2015. volvido; além de nos permitir apreender
São criadas escolas, centros de formação suas múltiplas objetivações (trabalho,
e institutos de agroecologia, com ofertas práticas, ciência, luta, cultura...) ou mo-
de cursos não escolares e escolares em mentos de maneira integrada, sem perder
nível técnico, tecnólogo, especialização de vista suas relações e mediações.
e mestrado; e também a incorporação da Em uma primeira aproximação, a
agroecologia à Educação do Campo [ver agroecologia poderia ser reduzida a um
Educação do Campo]. conjunto de técnicas e práticas de pro-
Em âmbito internacional, é impor- dução agrícola. Entretanto, nas práticas
tante destacar a criação, em 2007, da sociais originárias e camponesas, não
Sociedad Científica Latino-Americana completamente subsumidas ao capitalis-
de Agroecología (Socla) e a realização, mo, se encontram entranhados os siste-
em 2015, do Fórum Internacional sobre mas de conhecimento tradicionais, razão
agroecologia, em Nyéléni, no Mali pela qual recuperar as práticas é também
(para detalhes sobre o desenvolvimen- resgatar os saberes tradicionais que foram
to da Agroecologia em outros países e estão sendo erodidos: “costuramos com
latino-americanos, ver Altieri, 2017; as mãos dos povos o tecido vivo de nossa
Gliessman, 2013). biodiversidade que também representa
Ao longo de sua história, a agroeco­ nossa memória, nossas culturas” (Jor-
logia foi incorporando contribuições filo- nada de Agroecologia, 2019).
sóficas e científicas em diversos campos A prática social agroecológica se
do conhecimento, consolidando princí- expressa ao mesmo tempo como um
pios, métodos e critérios de análise e de- ato prático-material e como ideação e
senvolvimento, e suscitando discussões reflexão, em uma relação dialética ação-
a respeito de uma epistemologia própria -pensamento-ação, práxis, ação cons-
[ver Epistemologia da Agroecologia]. A ciente sobre a natureza que transforma
dimensão científica da agroecologia, também o próprio sujeito. A produção
embora essencial, não é suficiente para camponesa é ao mesmo tempo uni­dade
compreendê-la. de produção e reprodução da vida,
produção e consumo; logo, a produção
A agroecologia como práxis: agroecológica não é isolada das demais
prática, ciência, luta esferas da vida. A práxis agroecológica,
A práxis é uma categoria teórica que baseada num tipo particular de relação
inclui todas as objetivações humanas, com a natureza e em uma racionalidade
materiais e ideais, em sua complexidade “mais ecológica”, tem implicações na

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AGROECOLOGIA

vida cultural, social, estética, lúdica e novas técnicas, instrumentos e máqui-


afetiva – o que às vezes acaba se tradu- nas que sejam adequados ao manejo A
zindo na identificação da agroecologia ecológico, à diminuição da penosidade
como “modo de vida” (Fórum Interna- do trabalho agrícola e ao aumento de
cional de Agroecologia, 2015). sua produtividade. Trata-se de superar
Em segundo lugar, como processo as modernas técnicas e tecnologias da
de transformação da natureza orientado Revolução Verde, selecionando, adap-
ecologicamente, as práticas agroecoló- tando e apropriando criticamente aque-
gicas constituem um processo de tra- las adequadas às “necessidades humanas
balho [ver Trabalho] particular, e envol- genuínas” (Foster, 2005), a partir de cri-
vem elementos e processos da natureza térios ecológicos, sociais e culturais, não
(solo, água, biodiversidade), insumos, redutíveis a uma pretensa “eficiência”
ferramentas, instrumentos, máquinas econômica nem à lógica produtivista.
e instalações; saberes e conhecimentos O estudo de sistemas agrícolas tra-
agroecológicos; mas, igualmente, uma dicionais por pesquisadores de diversas
determinada divisão do trabalho, níveis áreas, mesmo que muitas vezes tenha
de cooperação, cadeias de comando e resultado na simples validação de prá-
hierarquias da autoridade, e métodos ticas tradicionais (Kuhn, 1992), foi o
específicos de coordenação e controle11 ponto de partida para o desenvolvimento
que nem sempre se diferenciam dos de conceitos e de hipóteses explicativas
processos não agroecológicos. A unidade do funcionamento de sistemas de pro-
camponesa agroecológica, normalmente dução agroecológicos (Hecht, 1989) e
baseada na família, tende a reproduzir para o estabelecimento dos princípios
relações patriarcais, além disso neces- fundamentais da agroecologia (Rosset;
sitando em muitos casos de força de Altieri, 2017). O reconhecimento dessa
trabalho complementar (sazonal ou per- relação de origem, dos povos originários
manente). Na sociedade capitalista, em e camponeses como sujeitos produtores
que a produção camponesa se encontra de conhecimento e portadores de crité-
subordinada, mesmo que eventualmente rios próprios de sua organização, siste-
alcançando algum grau de autonomia matização e validação, desencadeou uma
relativa [ver Campesinato], essas relações série de debates sobre a relação entre
de trabalho podem continuar a reprodu- ciência e saberes tradicionais e sobre a
zir padrões de exploração e opressão, de participação dos camponeses na pesquisa
gênero, de geração, étnica (“de raça”) e agroecológica (Articulação Nacional de
de assalariamento; ou avançar, por meio Agroecologia, 2007).
de experiências associativas, coope­ A ciência moderna surgiu na Eu-
rativas e autogestionárias diversas, para ropa do encontro entre, de um lado, a
níveis de superação de tais padrões. observação empírica, a experimentação
São contradições cujo enfrentamento e a busca das causas dos fenômenos que
prático revela e constrói determinadas caracterizavam as práticas e os saberes
intencionalidades sociais e políticas do dos artesãos qualificados e, de outro, o
movimento agroecológico. pensamento matemático, lógico e siste-
Finalmente, a prática agroecológica mático de uma elite de eruditos e huma-
incorpora também às antigas tradições nistas com formação universitária. Nesse

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AGROECOLOGIA

encontro, os saberes populares e artesa- xões etc. – de maneira que os próprios


A nais foram apropriados, sistematizados camponeses alcancem certo grau de
e codificados e serviram à formulação controle sobre a pesquisa e possam efeti-
de novas teorias e conhecimentos e do vamente apropriar-se de seus resultados.
próprio método científico. Entretanto, O conhecimento assume formas
“os artesãos que haviam produzido os históricas, condicionadas por relações
conhecimentos de base seriam dora- sociais e formas de organização do tra-
vante privados de seu papel criativo nas balho. A separação entre o sujeito que
ciências e de qualquer controle sobre “pensa” (o cientista/pesquisador, es-
elas” (Conner, 2011, p. 407), e a ciência pecializado na produção da ciência) e
se tornaria o monopólio de uma elite aquele que trabalha (no campo, o sujeito
científica altamente especializada para, camponês, responsável pela aplicação
mais tarde, associar-se diretamente ao de técnicas) corresponde à divisão do
capital como força produtiva direta. O trabalho existente na sociedade capi-
encontro que dá origem à agroecologia, talista moderna, não sendo algo dado,
portanto, não é novo, mas enfrenta o natural (Rolo, 2015). Tal desigualdade de
desafio de se realizar em outras bases: saberes e poderes entre os sujeitos sociais
como “diálogo de saberes”, que se en- não pode, portanto, ser completamente
contram a partir de um compromisso resolvida sem enfrentar os fundamentos
ético-político, de classe, para refletir estruturais do capitalismo.
criticamente e agir sobre o mundo a A agroecologia é política e “[...]
ser transformado e humanizado sem exige que enfrentemos, desafiemos e
negar as diferenças entre os saberes e transformemos as estruturas de poder
culturas, que se tornam base para uma da sociedade” (Declaración del Foro
mútua problematização (Freire, 2005). Internacional sobre Agroecología, 2015,
Nessas bases, deve-se repensar a p. 5). É a contestação e negação do agro-
“participação na pesquisa agroecológica”, negócio, pois entre ele e a agroecologia
quando se refere à participação de um não há possibilidade de coexistência,
sujeito (normalmente, os camponeses uma vez que se trata de uma disputa
e camponesas) na intencionalidade de conf lituosa por terra, território [ver
outro (normalmente, o pesquisador, téc- Território] e condições de produção e
nico ou extensionista), em função de um comercialização, que reafirma a ques-
interesse comum (um agroecossiste­ma, tão agrária [ver Questão Agrária] como
processos agroecológicos etc.). Métodos um problema estrutural do capitalismo
e técnicas diversas permitem variados (Alentejano, 2014).
graus dessa participação. O desafio é Trata-se também de formular, anun-
organizá-la de maneira que seja o pes- ciar e construir projetos de vida coleti-
quisador a participar na intencionalidade vos, como sintetizado, por exemplo, no
dos camponeses, construindo conjunta- lema da Jornada de Agroecologia do
mente, sendo por eles convocado – para Paraná: “Terra livre de transgênicos
propor a forma de organização de um e sem agrotóxicos; cuidando da terra,
experimento comparativo; para identi- cultivando biodiversidade e colhendo so-
ficar ou quantificar elementos, explicar berania alimentar; construindo o projeto
processos e tendências, apreen­der cone- popular e soberano para a agricultura”.

66
AGROECOLOGIA

A crescente preocupação, em todo buscar as condições para coletivamente


o mundo, com a questão ambiental, a resistir, resgatar e promover formas de A
alimentação e a saúde, bem como a gran- agricultura cada vez mais ecologicamen-
de capacidade do capitalismo de abrir te orientadas: “A agroecologia nos convi-
novas frentes de acumulação, e de se da a estarmos juntos no ciclo da vida, o
reajustar e reorganizar diante das crises que implica que também devemos estar
para seguir se reproduzindo, vêm con- unidos no ciclo da luta” (Declaración del
formando a proposta de um “capitalismo Foro Internacional Sobre Agroecología,
verde” [ver Capitalismo Verde], que, sob 2015, p. 1).
a aparência de um discurso ecológico,
esconde um aprofundamento da espo- Território e políticas públicas
liação e mercantilização da natureza e Promover a agroecologia significa,
da exploração dos trabalhadores. Para o para os camponeses e povos tradicio-
campo, são propostos ajustes meramente nais e originários, lutar cotidianamente
tecnocráticos, tais como a intensificação contra a despossessão e expulsão da
sustentável (que inclui os transgênicos), a terra, contra a mercantilização dos bens
agricultura de conservação, a agricultura comuns [ver Bens Comuns], a criminali-
climaticamente inteligente, produção e zação dos movimentos sociais populares,
conservação de florestas para sequestro as restrições de acesso à terra, à água
de carbono e o manejo integrado de [ver Água], às sementes [ver Sementes] e
pragas, aos quais se soma o agronegó- demais meios de trabalho. Na disputa por
cio dos orgânicos, na busca por nichos seus territórios e por condições materiais
de mercado e preços que restringem o e culturais de produzir e viver, enfrentam
consumo dos produtos às camadas mais poderosas forças contrárias em processos
abastadas. Nesse contexto, diversas ins- de intenso conflito (Michelotti et al.,
tituições e organismos internacionais, e 2018), frente às quais precisam organi-
mesmo empresas transnacionais como zar-se coletivamente, e, muitas vezes,
a Monsanto, começaram a utilizar o buscar alternativas locais comunitárias,
termo para designar tal conjunto de ­cooperativas e autogestionárias.
“alternativas” (Fórum Internacional de O neoliberalismo, de fato, caracte-
Agroecologia, 2015; Altieri, 2017; Ros- riza-se por reduzir a atuação do Estado
set; Altieri, 2017), revelando assim uma no provimento de serviços e políticas
tentativa de apropriação e amoldamento públicas, delegando justamente aos pró-
da agroeco­logia ao autointitulado “agro- prios indivíduos, aos laços sociais locais
negócio sustentável”. e ao apoio comunitário parte da respon-
Essa disputa reforça o caráter pro- sabilidade pelo combate à pobreza e à
fundamente político da agroecologia e a desigualdade social, com base nas noções
centralidade do campesinato, dos povos ideológicas de “capital social” e “empreen-
originários e comunidades tradicionais dedorismo”, no contexto de fragmentação
e extrativistas, os quais, por meio de das lutas da classe trabalhadora e de
formas organizativas diversas, redes de desmobilização dos sujeitos políticos cole-
articulação e movimentos populares, tivos que são seus representantes (Neves,
incorporam-na a partir dos anos 2000 2005; Neves; Pronko; Mendonça, 2009).
como objetivo estratégico e passam a Embora iniciativas autônomas sejam

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AGROECOLOGIA

válidas e de indiscutível importância, é recursos à compra direta de produtos


A preciso ao mesmo tempo organizar a luta da agricultura familiar; o Programa de
coletiva por políticas públicas, pelo acesso Aquisição de Alimentos (PAA); a Políti-
à mais-valia social (orçamento público) ca de Educação do Campo e o Programa
e pela responsabilização do Estado na Nacional de Educação na Reforma Agrá-
garantia de direitos, na proteção social ria (Pronera); a construção do Plano de
e da natureza. Agroecologia e Produção Orgânica (Pla-
Em contrapartida, muitas políticas napo); e a luta pelo Programa Nacional
públicas, gestadas no contexto neolibe- de Redução de Agrotóxicos (Pronara),
ral, trazem em seu bojo normatizações transformado em projeto de lei como
incompatíveis com o modo de produção Política Nacional de Redução de Agro-
e reprodução da vida dos camponeses e tóxicos (Pnara). Todas essas iniciativas,
povos tradicionais e originários. embora insuficientes, foram importantes
A adoção da agroecologia em larga por evidenciar a elevada capacidade
escala também é consequência da con- de resposta e de resultados, mediante
cepção de mundo que os camponeses investimentos proporcionalmente pe-
criticamente desenvolvem como negação quenos. Elas impulsionaram a ampliação
da matriz tecnológica e de produção da produção agroecológica camponesa,
dominantes (Carvalho, 2007); passa pelo em comunidades tradicionais e assenta-
desenvolvimento de formas de coopera- mentos da reforma agrária, bem como o
ção [ver Cooperação]; está relacionada à desenvolvimento de experiências12 agro-
necessidade de programas institucionais ecológicas diversificadas e inovadoras a
de pesquisa e de desenvolvimento de partir de biomas [ver Biomas] e culturas
máquinas e equipamentos apropriados, locais. Além disso, trouxeram a agroe-
de tecnologias sociais [ver Tecnologias cologia para o centro dos debates sobre
Sociais], de formação e apoio técnico; de alimentação e saúde, que dizem respeito
educação popular [ver Educação Popular a toda a sociedade, mas especialmente
em Agroecologia]; de políticas de acesso aos trabalhadores urbanos.
a créditos e de incentivo à produção,
beneficiamento, agroindustrialização e Soberania alimentar,
comercialização ou distribuição da pro- saúde e agroecologia
dução. É inseparável da reforma agrária Os movimentos da Via Campesina
[ver R eforma Agrária], da demarcação deram origem, em 1996, ao princípio da
das terras indígenas e do reconheci- soberania alimentar, que trata a questão
mento dos territórios quilombolas e das da produção, distribuição e consumo de
populações tradicionais. São necessárias alimentos saudáveis como constituintes
políticas públicas de saneamento ecoló- indispensáveis da soberania dos povos.
gico [ver Saneamento Ecológico], habita- A alimentação saudável não se restringe
ção, educação, transporte, cultura e lazer à questão nutricional e biológica, nem
para o campo, território de trabalho, de a um ato individual e impessoal. Ali-
vida e de promoção da agroecologia. mentação é ato político, é um direito
Destacamos, nesse sentido, o Pro- coletivo, em que se expressa a cultura
grama Nacional de Alimentação Escolar de cada povo, e que sofre as pressões e
(Pnae), com destinação de 30% dos imposições das políticas neoliberais e

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AGROECOLOGIA

do poder decisório das corporações do sinérgicos devido às diversas fontes e vias


sistema agroalimentar. de contaminação diária. A
A valorização dos alimentos re- Além da contaminação química
gionais e daqueles ligados às tradições decorrente do uso de agroquímicos, a
culturais contribuem para o resgate de monocultura e a expansão das fronteiras
cultivos alimentares locais, para a con- agrícolas, com a concentração de terras e
servação da biodiversidade e para uma de poder, vêm reduzindo drasticamente
produção agroecológica diversificada. a biodiversidade e as riquezas naturais,
Nessa perspectiva, as mulheres do cam- chegando a comprometê-la na escala
po desempenham um papel estratégico de grandes extensões dos biomas. Todo
na garantia da soberania e segurança esse conjunto de fatores interfere nega-
alimentar e nutricional [ver S oberania tivamente na determinação social da
e S egurança A limentar e N utricional], saúde [ver Determinação Social da Saú­
mesmo que seu trabalho seja muitas ve- de], com maior extensão e intensidade
zes invisibilizado ou pouco reconhecido para os camponeses e povos originários,
[ver Economia Feminista]. resultando em processos de violações
A homogeneização dos padrões de de direitos, de desterritorialização e de
consumo alimentar em todo o mundo, ampliação da vulnerabilidade socioam-
com a generalização dos alimentos [ver biental, expressão da vulnerabilidade
Alimentos] ultraprocessados (com gran- institucional em promover a proteção
des quantidades de sal, gordura, açúcar, social e a saúde pública, enquanto direito
conservantes, corantes e saborizantes de todos e dever do Estado.
artificiais) e restrição do acesso aos pro- As práticas agroecológicas trazem
dutos frescos, diversificados e agroecoló- outra dinâmica para a saúde. Os modos
gicos, atinge diretamente os trabalhadores de produção e de reprodução da vida dos
urbanos, aumentando a ocorrência de camponeses, historicamente ocultadas ou
obesidade, hipertensão, diabetes e outras descaracterizadas pelo modelo produtivista
enfermidades, além da desnutrição e da insustentável, são redimensionados e or-
ameaça da fome [ver Fome]. ganizados pela agroecologia, valorizando
Outro fator fundamental para a de- as culturas nos territórios e as práticas e
fesa da agroecologia e sua relação com a saberes em educação e saúde da popula-
saúde é o combate ao uso do agrotóxico. ção do campo [ver Práticas e Saberes em
No Brasil, o agronegócio [ver Agronegó­ Educação e Saúde da População do Campo].
cio] é um grande consumidor e promotor E, ao contrário do que insistem os
da ampliação do uso desses produtos nos mitos difundidos a respeito da agroeco­
territórios e, por meio de pressão junto às logia, diversos estudos apontam que os
instâncias do poder público, alterna com sistemas agroecológicos são produtivos,
os Estados Unidos a posição de maior economicamente viáveis e mais estáveis
consumidor do mundo. A contamina- ao longo do tempo do que os sistemas
ção hídrica, atmosférica, edáfica (dos convencionais baseados na Revolução
solos), das plantações, da fauna, da flora Verde. A agroecologia se constitui como
e dos ecossistemas resultam em diversos a base da produção de alimentos no mun-
e graves impactos à saúde ambiental do (Holt-Giménez; Patel, 2010; Canuto,
e humana, com efeitos cumulativos e 2011; Rosset; Altieri, 2017).

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AGROECOLOGIA

Os sujeitos que ao longo da história popular para um poder popular” (De-


A foram os responsáveis por manter as ba- claración del Foro Internacional Sobre
ses de reprodução biótica dos elementos Agroecología, 2015, p. 22).
da natureza (Sevilla Guzmán, 2011) A agroecologia popular, camponesa,
têm, neste momento, sua permanência ameríndia, quilombola e de todos os
na terra e sua reprodução social grave- povos tradicionais “[...] compõe hoje a
mente ameaçadas pelo agronegócio. Ao dimensão afirmativa da negação radical
assumirem para si também a missão de da ordem social do capital, integrando o
abastecer os trabalhadores das cidades confronto das classes fundamentais da
com alimentos agroecológicos, os cam- sociedade capitalista no desafio de cons-
poneses, povos tradicionais e originários trução da alternativa social hegemônica
transcendem a luta nos territórios, ins- do trabalho” (Caldart, 2017, p. 116-117).
crevendo a agroecologia no debate entre Nessa perspectiva, a agroecologia
projetos de sociedade. orienta a objetivação de agroecossiste-
mas produtivos de alimentos saudáveis,
Agroecologia e projeto societário potencializadores da biodiversidade
O fundamento necessário do ca- ecológica e da diversidade sociocultural;
pitalismo é a permanente reprodução que tem como base a práxis camponesa,
ampliada do capital, e não a satisfação dos povos originários e tradicionais
de necessidades humanas genuínas ou (trabalho produtivo, processo de traba-
naturais (Foster, 2005), com o lucro lho, tecnologia; e simultânea e dialeti-
antepondo-se à vida em todas as suas for- camente, ideação e reflexão, saberes,
mas. Esse sistema econômico se sustenta conhecimentos, concepção de mundo/
em uma relação social necessariamente cosmovisões, teoria, valores, estética...),
violenta, dado que se baseia na apro- reconectando saberes tradicionais e co-
priação privada da riqueza socialmente nhecimentos científicos. Afirma-se na
produzida e na exploração dos seres luta política, dos territórios até o âmbito
humanos e da natureza, se necessário até nacional e internacional, em aliança com
a exaustão. Assim, é no âmbito das lutas os trabalhadores da cidade, na busca
e da resistência dos povos contra o capi- por superar as contradições impostas
talismo que se inscreve a agroecologia. pela estrutura capitalista, patriarcal e
A amplitude das reflexões, lutas e racista; por rearticular o metabolismo
práticas da agroecologia faz com que socioecológico [ver M e tabolismo S o ­
muitas vezes, inclusive, ela seja con- cioecológico] entre campo e cidade; e
fundida com uma proposta política e pela apreensão consciente da dimensão
societária em si mesma, o que ela de fato ecológica da vida como uma dimensão
não é. Trata-se de debater e construir, em fundamental da emancipação humana.
aliança com os trabalhadores urbanos, Insere-se, assim, na busca por construir
em escala nacional e global, um projeto uma sociedade de produtores livremente
de luta e superação do atual modo de associados com a sustentação de toda a
produção capitalista, para “reestabelecer vida, em que os seres humanos possam
o curso alterado da coevolução social e realizar-se enquanto autoprodutores e
ecológica” (Sevilla Guzmán; Molina, criativos, e reconhecer-se como partíci-
1996): “Propomos uma agroecologia pes da teia da vida.

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TARDIN, J. M. Cultura camponesa. In: CALDART, R. S. et al. (org.). Dicionário da Educação do Campo.
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à restauração revolucionária da relação metabólica sociedade-natureza. In: MOLINA, M. C. et al. Análise
de práticas contra-hegemônicas na formação dos profissionais de Ciências Agrárias: Reflexões sobre o programa
Residência Agrária. v. 2. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2017, p. 44-99.
TIBAU, A. O. Matéria Orgânica e Fertilidade do solo. São Paulo: Editora Nobel. 1978.
WEZEL, A; SOLDAT, V. A quantitative and qualitative historical analysis of the scientific discipline
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https://wp.ufpel.edu.br/consagro/files/2010/09/WEZEL-Historical-analysis-Scientific-Agroecology.pdf.
Acesso em: 15 jan. 2021.
WEZEL, A. et al. Agroecology as a science, movement or practice. Agronomy for Sustainable Development,
n. 29, 2009, p. 503-515. Disponível em: http://agroeco.org/socla/pdfs/wezel-agroecology.pdf. Acesso em:
15 jan. 2021.

Notas
1
Uma reflexão anterior desse debate coletivo se encontra em Guhur, D.; Toná, N. Agroecologia.
In: Caldart, R. S. et al. (org.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular, 2012, p. 57-65.
2
Camponeses, aqui, no sentido amplo dado pela Via Campesina, e ratificado pela Declaração de Di-
reitos Camponeses da ONU (2018): pequenos agricultores e criadores, povos indígenas, quilombolas
e transumantes, sem terra e trabalhadores assalariados do campo, povos do campo, das águas e das
florestas que se dediquem ao pastoreio, à pesca, à silvicultura, à caça e coleta e ao artesanato.
3
O reconhecimento do protagonismo histórico fundamental das e dos camponeses e povos originários
não significa afirmar que toda agricultura camponesa tradicional seja necessariamente agroecológi-
ca, nem na atualidade, nem no passado. Sabe-se que muitas sociedades e civilizações entraram em
declínio e chegaram mesmo ao colapso em função de práticas ecológicas depredatórias (muitas vezes
associadas a outros fatores), como “[...] desmatamento e destruição do hábitat, problemas com o solo
(erosão, salinização e perda de fertilidade), problemas com o controle da água, sobrecaça, sobrepesca,
efeitos da introdução de outras espécies sobre as espécies nativas e aumento per capita do impacto
do crescimento demográfico” (Diamond, 2007, p. 8). Assim como, no Brasil, a “modernização da
agricultura” pressionou fortemente esses sujeitos à adoção de relações e práticas de depredação, e
segue de maneira muito mais brutal na atualidade com o agronegócio.
4
No mundo todo, os camponeses conservam ainda hoje pelo menos dois milhões de variedades de
plantas cultivadas e cerca de 7 mil raças animais (ETC Group, 2009, apud Rosset; Altieri, 2017).
5
Os camponeses e, principalmente, as mulheres camponesas organizaram movimentos de resistência
ativa e de luta contra o processo de acumulação primitiva do capital – ver Federici (2017).
6
Os europeus que traficaram escravos e fundaram fazendas escravistas na Carolina do Sul, por
exemplo, receberam “[...] todo o crédito pelo engenhoso sistema de irrigação dos arrozais que essas
Africanas [trazidas como escravas da África do Oeste] tinham desenvolvido em diversos tipos de

72
AGROECOLOGIA NAS NAÇÕES UNIDAS

zonas úmidas”, e cujos conhecimentos foram essenciais para a implantação dessa cultura nos EUA
(Carney, 2001, apud Conner, 2011, p. 137; tradução nossa). Também o guano, excremento de aves
que se tornou o primeiro adubo nitrogenado a ser transportado da América para a Europa, no século
A
XIX, já era utilizado centenas de anos antes pelos povos originários.
7
Húmica, onde o solo não é um reservatório passivo de nutrientes (matérias inorgânicas).
8
Tibau (1978) relata que se iniciou um reinado de certa forma despótico do NPK.
9
Em Ehlers (1994) estão referenciados outros estudos pioneiros. O próprio Liebig destacou que sua
descoberta da nutrição mineral das plantas não “criava” a fertilidade do solo (Tibau, 1978).
10
Desde 2012, a Teia dos Povos da Bahia também realiza a Jornada de Agroecologia.
11
Para uma discussão mais ampla do processo de trabalho, ver Harvey (2014).
12
Com essas políticas públicas, foram desenvolvidas experiências em diversos campos: manejos e
práticas agroecológicas, pesquisas, formação, educação em agroecologia etc.

AGROECOLOGIA NAS NAÇÕES UNIDAS

M aur een Sa ntos

A agroecologia surge nas Nações nização das Nações Unidas (ONU), em


Unidas, em especial, a partir do debate especial na Organização das Nações
sobre sistemas alimentares globais, e mais Unidas para Alimentação e Agricultura
recentemente, no âmbito das discussões (FAO, na sigla em inglês), mas tam-
sobre agricultura e mudanças climáticas, bém em outras agências e organismos
e da proteção e conservação da biodiver- como no Conselho de Direitos Humanos
sidade. O diagnóstico de que a fome e a (CDH), com destaque para a aprovação,
insegurança alimentar e nutricional no em 2018, da Declaração das Nações
mundo têm estreita relação com as práticas Unidas sobre Direitos dos Camponeses
hegemônicas e insustentáveis do complexo e Camponesas e de Outras Pessoas que
agroindustrial global – que por meio de Trabalham em Zonas Rurais (Resolução
suas grandes corporações e do sistema 39/12), que inclui menções à agroecolo-
financeiro controlam de ponta a ponta gia em quatro artigos. No âmbito de regi-
todos os elos da cadeia agroalimentar mes internacionais ambientais, o tema é
(Wezel et al., 2009; Grain, 2009; HLPE, tratado nos debates e, indiretamente, nas
2012; De Schutter, 2010a; Rosset; Altieri, negociações de mudanças do clima e de
2017; Santos; Glass, 2018) – trouxe a agro- proteção da diversidade biológica, como
ecologia como um paradigma de mudança, poderá ser visto mais adiante.
de solução para parte do enfrentamento Nesses espaços oficiais, seu conceito
desses grandes desafios globais. ainda é visto como dinâmico e multidis-
Nesse sentido, o tema vem ganhan- ciplinar, atendendo a distintas visões e
do força nos últimos dez anos na Orga- prioridades dos Estados que atuam no

73
AGROECOLOGIA NAS NAÇÕES UNIDAS

sistema das Nações Unidas, ainda que ONU, pela defesa da agroecologia como
A exista um ponto de partida comum ao uma perspectiva política que congrega
reconhecer a agroecologia “como ciên- princípios da reforma agrária [ver Ques­
cia, movimento social e prática” (Wezel tão Agrária], da soberania alimentar [ver
et al., 2009). Todavia, se, por um lado, o Soberania Alimentar], dos direitos huma-
alcance da agroecologia expressa vitó- nos, da justiça ambiental, da igualdade
ria importante da Via Campesina [ver de gênero, entre outros.
Via Campesina] e aliados, que incidiram Nesse sentido, um dos marcos im-
nas Nações Unidas a partir da práxis portantes é o Relatório sobre Agroeco-
camponesa com uma pauta orienta- logia e Direito à Alimentação do Relator
da pela luta por direitos e por outras Especial das Nações Unidas sobre o
subjetividades, com vistas a construir direito à alimentação apresentado na
políticas públicas para agroecologia [ver 16a Sessão do Conselho de Direitos Hu-
Políticas P úblicas para A groecologia] manos da Assembleia Geral das Nações
nos espaços multilaterais; por outro, há Unidas, em 2010. No relatório, Olivier
contradições profundas inerentes a esse De Schutter identifica a agroecologia
processo, no qual as institucionalidades como um modelo de desenvolvimento
internacionais, ao refletirem a lógica agrícola mais alinhado com o direito hu-
de produção e reprodução do sistema mano à alimentação adequada e que tem
capitalista, buscam enquadrar essas o melhor potencial para atingir os quatro
subjetividades, padronizando ou criando pilares da segurança alimentar e nutri-
novas interpretações que possam atender cional (disponibilidade, acessibilidade,
aos anseios da transformação capitalista uso e estabilidade), além de fornecer van-
e da apropriação dos bens comuns [ver tagens para o enfrentamento dos desafios
Bens Comuns]. Essa é a linha tênue pela impostos pelas mudanças climáticas,
qual a agroecologia vem se equilibrando. em matéria de resiliência e adaptação
(De Schutter, 2010a). Outros relatórios
Breve histórico foram publicados na sequência, e o Re-
Nas Nações Unidas, há alguns mar- latório Final, lançado em 2014, reafirma
cos em que a agroecologia aparece a a agroecologia como modelo de produ-
partir dessa perspectiva de conceito ção sustentável e de desenvolvimento,
dinâmico e multidisciplinar. São reflexos estabelecendo conexões entre o direito
do espaço que ela vem ocupando nas à terra, o combate à pobreza, à fome e à
pesquisas científicas, políticas governa- desnutrição e a defesa da soberania ali-
mentais e repertórios de organizações e mentar como caminho a seguir. Dá um
movimentos sociais, mas, sobretudo, da importante destaque às recomendações
longa trajetória de vivências e transmis- formuladas pela Declaração dos Direitos
são de conhecimento baseada nos modos dos Camponeses e Camponesas da Via
de vida de camponeses e camponesas, Campesina. Essa declaração foi pedra
povos indígenas e originários, e popu- fundamental para a criação do grupo
lações tradicionais de todo o mundo. de trabalho no Conselho de Direitos
Esses elementos constituem um estado Humanos sobre direitos dos camponeses,
de permanente disputa conceitual frente que negociou e aprovou, após seis anos,
à lógica de mercado que prevalece na a Declaração das Nações Unidas sobre

74
AGROECOLOGIA NAS NAÇÕES UNIDAS

Direitos dos Camponeses e Camponesas um Simpósio Internacional sobre Agro-


e Outras Pessoas que Trabalham em ecologia para a Segurança Alimentar e A
Zonas Rurais, que será tratada mais Nutricional, cujo resultado foi publicado
adiante (De Schutter, 2010b; La Via em formato de relatório, no qual o grande
Campesina, 2010). destaque são as interações da agroeco-
No campo das contradições, apon- logia com os chamados ciclos virtuo­sos
ta-se a publicação pela FAO, com apoio e serviços ecossistêmicos (Food and
do Banco Mundial, em 2010, do infor- Agriculture Organization of the United
me sobre Agricultura Climaticamente Nations, 2015) [ver Capitalismo Verde].
Inteligente (CSA, na sigla em inglês). Nos anos seguintes, de 2015 a 2018, a
Apesar de não estar presente no informe FAO começa a tratar o tema regional-
uma definição formal, a CSA é descrita mente, promovendo encontros em vários
como uma agricultura resistente à mu- países da América Latina, Ásia, África
dança climática com vistas a garantir a e Europa.
segurança alimentar, promovendo que os Em 2018, é aprovada a supracitada
solos e os cultivos sejam menos vulnerá- Declaração dos Direitos dos Camponeses
veis a secas, chuvas ou ao aumento geral (Human Rights Council, 2018), onde a
da temperatura. O chamado ganho triplo agroecologia é mencionada em quatro
(triple win), por sua resiliência, adaptação artigos.1 São eles:
e mitigação. O argumento principal 1) Artigo 16, § 4: Os Estados devem
é que a agricultura pode ser utilizada tomar todas as medidas necessárias
para absorver o CO2 da atmosfera, por para garantir que suas políticas e
seu potencial de compensar carbono. O programas de desenvolvimento rural,
informe propõe que sejam oferecidos aos agrícola, ambiental, comercial e de
produtores locais financiamento para investimentos contribuam efetiva-
tornar seu solo mais resistente e produ- mente para proteger e fortalecer
tivo, ao mesmo tempo em que possa ser as opções locais de subsistência e
para a transição para modos sus-
utilizado para capturar carbono e trans-
tentáveis de produção agrícola. Os
formá-lo em créditos a serem vendidos a
Estados devem estimular a produção
empresas poluidoras a partir de esquemas sustentável, incluindo a produção
de compensação. agroecológica e orgânica, sempre que
Na sequência, em 2012, o Painel possível, e facilitar as vendas diretas
de Especialistas de Alto Nível sobre de agricultores para consumidores.
Segurança Alimentar e Nutricional 2) Artigo 17, § 7: Os Estados tomarão
(HLPE, na sigla em inglês) do Comitê de medidas visando à conservação e
Segurança Alimentar Mundial da FAO uso sustentável da terra e de outros
publica seu 3° Relatório, cujo tema é recursos naturais utilizados em sua
segurança alimentar e mudanças climá- produção, inclusive, entre outros, por
meio da agroecologia, e assegurarão
ticas, no qual aponta de forma bastante
as condições para a regeneração
tímida que práticas agroecológicas têm
de capacidades biológicas e outras
sem dúvida grande contribuição para a capacidades naturais e ciclos.
adaptação às mudanças climáticas, mas 3) Artigo 20, § 2: Os Estados toma-
que carecem de pesquisas e de escala rão medidas apropriadas para pro-
(HLPE, 2012). Em 2014, a FAO organiza mover e proteger os conhecimentos

75
AGROECOLOGIA NAS NAÇÕES UNIDAS

tradicionais, inovação e práticas de ra, e o reconhecimento da agroecologia


A camponeses e outras pessoas que pode ser compreendido como parte disso.
trabalham em áreas rurais, incluindo
sistemas tradicionais agrários, pasto- A berlinda agroecológica nas Nações
ris, florestais, pesqueiros, pecuários
Unidas: entre a captura corporativa
e agroecológicos relevantes para a
e o perigo da simplificação
conservação e uso sustentável da
diversidade biológica. A agroecologia busca superar a lógi-
4) Artigo 25, § 1: Os camponeses e ca de reprodução capitalista. No fundo,
outras pessoas que trabalham nas sua abordagem aponta uma luta por
áreas rurais têm direito a uma forma- direitos, que também é uma luta por
ção adequada aos ambientes agroe- conhecimento e reconhecimento. Nesse
cológicos, socioculturais e econômi- sentido, é relevante destacar que a condi-
cos específicos em que se encontram. ção do campesinato na América Latina,
Questões cobertas por programas de Ásia e África é diferente da Europa, onde
treinamento devem incluir, mas não as entranhas do modelo de produção
se limitar a, melhorar a produtivi-
industrial e suas exigências de escala
dade, o marketing e a capacidade de
e produtividade dão importante peso
lidar com pragas, patógenos, choques
do sistema, efeitos de produtos quí- para o sistema de trocas e para as novas
micos, mudanças climáticas e outros tecnologias [ver Campesinato]. Portanto,
eventos relacionados ao clima. as visões sobre a agroecologia dentro
das Nações Unidas são distintas, já que
É possível apontar diferenças entre
o campesinato no Sul Global a entende
o tratamento dado à agroecologia pela
também como um espaço de resistência,
FAO e pelo Conselho de Direitos Hu-
ambientado a partir não de um simples
manos. Na FAO – principal espaço da
sistema de trocas de mercadoria, mas
ONU em que o tema é tratado e onde as
de trocas de saberes e reprodução desse
discussões e propostas de políticas vêm
saber por meio da produção alimentar.
evoluindo ao longo dos últimos anos
As casas de sementes [ver Sementes], por
–, há uma perspectiva mais ampla de
exemplo, são espaço vivo dessa prática,
localização da agroecologia em um pa-
ciência e movimento social.
radigma de mercado, muitas vezes con-
Outro risco presente se encontra na
fundido com intensificação sustentável
abordagem do tema em relação ao debate
ou compatíveis com abordagens do tipo
e negociações de mudanças climáticas,
agricultura climaticamente inteligente
onde a centralidade do carbono é o eixo
e/ou economia dos ecossistemas e da
principal. Há um perigo em transformar
biodiversidade para agricultura (TEEB
a agroecologia em mais um modelo de
Agriculture). No CDH, percebe-se maior
captação de CO2, incluindo nos sistemas
espaço para a atuação e incidência a
da agricultura camponesa os cálculos de
partir de construções coletivas dos movi-
carbono e sua esfera de compensação no
mentos sociais e de povos e comunidades
mercado global. Um exemplo disso já
tradicionais. Ainda que a agroecologia
vem acontecendo em projetos de agricul-
seja tratada de forma secundária, o CDH
tura climaticamente inteligente na Amé-
tem demonstrado mais empatia e espaço
rica Latina e África, que se utilizam de
para a luta pela garantia do direito a ter-
práticas agroecológicas como a adubação

76
AGROECOLOGIA NAS NAÇÕES UNIDAS

verde, utilização mais eficiente da água sina na formulação e realização da prática


e cuidados com o solo como parte da agroecológica, tendo isso como elemento A
chamada intensificação sustentável com central para o enfrentamento dessa con-
contabilização da redução de emissões tradição apontada e de outras que possam
de gases de efeito estufa. Essa captura surgir nos distintos processos de regulação
pelas vias do mercado é financiada com e que podem limitar a transformação que
parcerias público-privadas, mercado de a agroecologia representa.
carbono e compensação, emissão de
títulos verdes, permissões de emissões Nota da autora
nos esquemas de limite e comércio (cap Enquanto esse verbete estava sendo
and trade) e subsídios públicos. desenvolvido, o Painel de Especialistas
Logo, como apontado anterior- de Alto Nível sobre Segurança Alimen-
mente, há uma contradição inerente ao tar e Nutricional (HLPE, sigla em inglês)
tratamento da Agroecologia no âmbito do Comitê de Segurança Alimentar
da Organização das Nações Unidas, Mundial (CFS, sigla em inglês), da FAO,
expressa na regulação dessas relações estava concluindo seu novo relatório,
via esses espaços oficiais. Ao incor- cujo tema é Abordagem Agroecológica
porar a agroeco­logia em documentos e outras inovações para a agricultura
oficiais, que partem de conceitos frios, sustentável e sistemas alimentares que
por um lado, permite-se a disputa dos melhoram a segurança alimentar e nutri-
rumos das políticas públicas e do Direito cional.2 Apesar do rascunho zero ter sido
Internacional, mas, por outro, arrisca- aberto para consultas e contribuições
-se à simplificação, se desencontrando online, não foi possível utilizá-lo como
do conceito vivo, nascido e criado na referência nesse verbete, por ser um do-
diversidade inerente das lutas campo- cumento em construção. A versão final
nesas e dos modos de vida dos povos e do relatório foi apresentado na 46a Sessão
comunidades tradicionais que fazem da Plenária do CFS em outubro de 2019.
agroecologia o que ela é na atualidade. É importante citá-lo para futuras con-
Portanto, é fundamental reafirmar sultas sobre o tema, pois será relevante
o papel protagonista dos camponeses e referência no debate internacional sobre
camponesas do mundo e da Via Campe- políticas públicas para agroecologia.

Referências
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and Other People Working in Rural Areas. Genebra, 2018. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/
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https://undocs.org/A/HRC/16/49 Acesso: 28 mar. 2019.
______. Special Rapporteur on the right to food. Report to the Human Rights Council (A/65/281) on
access to land and the right to food. Nova York: Nações Unidas, 2010b. Disponível em: https://undocs.
org/A/65/281. Acesso em: 28 mar. 2019
FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). Final Report
for the International Symposium on Agroecology for Food Security and Nutrition. Roma, 2015. Disponível
em: http://www.fao.org/3/a-i4327e.pdf. Acesso em 02 abr. 2019.
GRAIN. The International Food System and the Climate Crisis. Outubro, 2009. Disponível em: https://
www.grain.org/article/entries/734-the-international-food-system-and-the-climate-crisis. Acesso em:
28 mar. 2019.

77
AGROECOSSISTEMAS

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and Nutrition of the Committee on World Food Security. Roma: FAO, 2012. Disponível em: http://www.
A fao.org/fileadmin/user_upload/hlpe/hlpe_documents/HLPE_Reports/HLPE-Report-3-Food_securi-
ty_and_climate. Acesso em: 28 mar. 2019.
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Development. v. 29, n. 4, dez. 2009, p. 503-515.

Para saber mais


HILMI, A. Agroecology Reweaving a New Landscape. Suíça: Palgrave, 2018. p. 5-30.

Notas
1
Tradução livre dos artigos. Originais em inglês disponíveis em: https://digitallibrary.un.org/re-
cord/1650694/files/A_HRC_RES_39_12-EN.pdf. Acesso em: 15 jan. 2021.
2
Tradução livre do inglês: Agroecological approaches and other innovations for sustainable agriculture
and food systems that enhance food security and nutrition.

AGROECOSSISTEMAS

D enis M onteiro

A aranha tece pensar como usar este conceito em proje-


Puxando o fio da teia tos pedagógicos. Compreendemos como
A ciência da abelha, educadores não somente quem trabalha
da aranha e a minha em processos educativos formais, mas
Muita gente desconhece também lideranças comunitárias e todos
“Na asa do vento”, os profissionais de organizações que, em
João do Valle e Luiz Vieira seus trabalhos de base, assessoram as co-
munidades do campo, das florestas, das
Introdução águas e das cidades para fortalecer suas
Acreditamos muito no potencial lutas por mais democracia e para cons-
pedagógico do conceito de agroecos- truir propostas alternativas aos padrões
sistema. Como este texto será lido por de ocupação dos territórios e de consumo
educadoras e educadores, desejamos que de alimentos impostos pelo capitalismo
as informações e reflexões aqui trazidas em sua fase neoliberal. As ideias que
possam inspirar nossa criatividade para desenvolvemos estão inspiradas no prin-

78
AGROECOSSISTEMAS

cípio político do comum, como proposto enriquece pelos ambientes de interação


por Dardot e Laval (2017). e troca de saberes promovidos nas redes A
de agroecologia que vão se formando e
Os frutos dos agroecossistemas se fortalecendo nos territórios. A riqueza
saudáveis e sustentáveis das experiências que vimos no IV ENA,
Comida de verdade no campo e na feira e nas tendas dos biomas são o
na cidade. Foi o que vimos na Feira de resultado de mudanças significativas nos
Saberes e Sabores realizada durante o IV agroecossistemas nos últimos anos, que
Encontro Nacional de Agroecologia (IV só aconteceram porque houve muitas lu-
ENA), em junho de 2018, no Parque Mu- tas e mobilizações por mais democracia.
nicipal de Belo Horizonte, Minas Gerais, As lutas pressionaram as institui-
e é o que vemos nas Feiras da Reforma ções, o que contribuiu para as mudanças
Agrária e da Agricultura Familiar que se positivas nos agroecossistemas. Quando
espalham pelo Brasil. Açaí da Amazônia, falamos instituições, não nos referimos
juçara da Mata Atlântica, farinha e sa- somente aos órgãos governamentais,
bonetes de babaçu, artesanatos de capim como as prefeituras, o Instituto Nacional
dourado, paçoca de pinhão, óleo de rufão de Colonização e Reforma Agrária (In-
e remédios caseiros das plantas nativas cra), as entidades de assistência técnica
do Cerrado ou cultivadas nos quintais, e extensão rural ou as universidades,
mel de abelhas, arroz, feijão, peixe fres- entre outros. Também nos referimos às
co, cuscuz de milho crioulo, farinha de famílias, onde há desigualdades entre
mandioca, pães caseiros, ovos, abóboras, mulheres e homens e entre jovens e adul-
galinha de capoeira, bananas, mangas, tos; às igrejas presentes nas comunida-
hortaliças, suco de uva, açúcar mascavo, des, associações comunitárias, sindicatos
cafés premiados, queijo, goiabada, doces de trabalhadores e trabalhadoras rurais,
de leite, chocolates artesanais e muito escolas do campo, cooperativas.
mais. Toda essa diversidade produtiva,
cada vez mais valorizada e presente em Artificialização dos ecossistemas
nossas casas, é fruto dos agroecossis­ Esses agroecossistemas, cujos frutos
temas cuidadosamente manejados pelas vimos no ENA e vemos nas feiras, são
famílias que vivem nas comunidades expressão de um movimento vigoroso de
camponesas, nas aldeias indígenas, construção de alternativas sustentáveis
quilombos, assentamentos da reforma aos padrões impostos pelas corporações
agrária, territórios das comunidades e do agronegócio que vão destruindo os
dos povos tradicionais, nas comunidades ecossistemas e expulsando as popula-
pesqueiras e nos pequenos espaços nas ções tradicionais dos seus territórios para
cidades onde se pratica a agricultura implantar agroecossistemas muito arti-
urbana (ver Figura 1, adiante, p. 785). ficializados e, portanto, dependentes de
insumos sintéticos externos e vulneráveis.
Mudanças positivas nos O modelo das corporações, a cha-
agroecossistemas e as instituições mada Revolução Verde, imposto em todo
Agroecossistemas se mantêm férteis, o mundo a partir de meados do século
saudáveis e produtivos com o passar dos XX, tem como base as grandes proprie-
anos se a arte milenar da agricultura se dades, a destruição das florestas para dar

79
AGROECOSSISTEMAS

lugar aos monocultivos, o uso intensivo As paisagens formadas pelos


A de máquinas pesadas (arados, grades, agroecossis­temas descritos acima são
colheitadeiras) movidas a combustíveis muito diferentes daquelas formadas por
fósseis e de sistemas de irrigação de alto ecossistemas com pouca interferência
custo energético e que desperdiçam mui- das ações humanas, como as florestas,
ta água, o uso de fertilizantes sintéticos campos nativos e manguezais.
que empobrecem os solos e contaminam A agroecologia pode ser compreen-
as águas e de sementes transgênicas das dida como uma ciência que busca aplicar
corporações multinacionais [ver Revolu­ os princípios da ecologia à agricultura,
ção Verde]. Além disso, é um modelo que e que pretende apoiar as estratégias das
utiliza grande quantidade de agrotóxicos famílias em seu trabalho de desenhar e
que contaminam os trabalhadores, as manejar os agroecossistemas para que
águas e os alimentos e empobrecem ain- estes possam ser produtivos, saudáveis e
da mais os solos. Os sistemas de criação sustentáveis, ou seja, manter sua fertili-
animal do agronegócio têm como base dade e produtividade com o passar dos
o confinamento de raças com baixa di- anos. A agroecologia também contribui
versidade genética e pouca rusticidade, o para as lutas das famílias agricultoras por
uso de rações transgênicas e de grandes autonomia frente à lógica da economia
quantidades de medicamentos. capitalista regida por grandes corpora-
São, portanto, agroecossistemas ções multinacionais.
com pouca biodiversidade, cuja fertili- O agroecossistema é, portanto, uma
dade é degradada muito rapidamente, unidade fundamental de pesquisa e
já que a biomassa, ou seja, a matéria intervenção. Na definição de Gliess-
orgânica viva ou morta, é destruída pelas man, “um agroecossistema é um local
tecnologias empregadas e não é reposta, de produção agrícola compreendido
os solos ficam expostos e os nutrientes como um ecossistema” (2000, p. 61).
não são reciclados, as fontes de água não Por meio do seu processo de trabalho,
são cuidadas. Estes agroecossistemas as pessoas modificam a estrutura e o
muito artificializados adoecem muito funcionamento dos ecossistemas para
facilmente e contribuem para o adoeci- satisfazer suas necessidades e para aten-
mento das pessoas. der às necessidades de outras pessoas não
diretamente envolvidas na agricultura,
Um pouco de ecologia de com base nas relações de reciprocidade
ecossistemas1 e de trocas mercantis.
Os ecossistemas têm uma estrutura
O sol das Américas
O cio da África composta por fatores abióticos: radiação
A energia que muda solar, temperatura, água e nutrientes; e
As quatro estações por fatores bióticos: organismos vivos
O pendão do trigo que interagem no ambiente [ver Intera­
A mão dos padeiros ções Ecológicas Positivas]. A interação
A lã dos carneiros entre os fatores abióticos determina
O mar os sertões a biodiversidade dos ecossistemas, ou
“Espiral do tempo”, Geraldo A
­ zevedo seja, as comunidades de organismos
e Carlos Fernando vivos, incluindo os solos onde vivem as

80
AGROECOSSISTEMAS

comunidades dos seres escondidos [ver estão pouco visíveis, como é o caso do
Solos].2 Olhares atentos nos permitem trabalho realizado pelas mulheres de A
identificar nos agroecossistemas as dife- produção diversificada de alimentos
rentes espécies que ali interagem, plantas nos quintais e arredores das casas, que
que vão desde ervas rasteiras até grandes melhora a qualidade da alimentação das
árvores, animais de diferentes portes, famílias, ou a renda obtida com a comer-
incluindo grande diversidade de insetos cialização dos frutos do extrativismo.
e aranhas, e muitos microrganismos. Foi em diagnósticos como estes que
As interações dinâmicas entre os as comunidades identificaram que as
componentes estruturais determinam o terras estavam cansando, ficando fracas,
funcionamento dos ecossistemas, no qual e discutiram a importância de evitar
dois processos fundamentais ocorrem queimar e de repor a matéria orgâni-
(Gliessman, 2000): o fluxo de energia e ca e trazer plantas adubadoras para os
a ciclagem de nutrientes. O sol é a fonte agroecos­sistemas; que era preciso resga-
primária de energia. As plantas conver- tar as variedades crioulas e selecionar as
tem energia em biomassa. A energia flui melhores sementes para que os roçados
das plantas para os consumidores e de- produzissem mais e que havia formas
compositores [ver Teia Alimentar]. Parte naturais de melhorar o armazenamento
da energia é utilizada pelos organismos, das sementes, sem usar agrotóxicos;
formando biomassa vegetal e animal; que os animais passavam fome durante
a outra parte é dissipada no ambiente uma parte do ano e portanto era preciso
sob a forma de calor, pela respiração diversificar a produção de forragens e
dos organismos e pela decomposição da armazená-las no período chuvoso para
biomassa. Os principais reservatórios os animais terem o que comer no tempo
de nutrientes para os ecossistemas são a seco; que as mulheres estavam muito
atmosfera e os solos. Os nutrientes são sobrecarregadas indo longe buscar água
armazenados na biomassa, e retornam de qualidade ruim, e que, portanto, era
aos solos pela decomposição da matéria preciso ter estratégias e tecnologias para
orgânica [ver Ciclagem de Nutrientes]. armazenar água perto de casa; que muita
fruta se perdia porque não se armazenava
Inovações nos agroecossistemas a polpa; que a renda que as famílias con-
Muitas organizações que atuam seguiam vendendo para os atravessado-
junto às comunidades com um enfoque res era muito baixa e que, portanto, seria
agroecológico realizaram diagnósticos interessante que elas se organizassem
participativos dos agroecossistemas. para fazer feiras nas cidades próximas;
Trata-se de um trabalho de mobilização que, caso conseguissem estruturar as
das famílias junto aos assessores para feiras, seria possível ampliar a produção
identificação dos problemas enfrentados de hortaliças, frutas, ovos, geleias, pães
no dia a dia do trabalho na agricultura e bolos; que muitos conhecimentos sobre
e de reflexão coletiva sobre como expe- as plantas medicinais e seus usos estavam
rimentar possíveis soluções. Também morrendo junto aos mais velhos, e que
é uma pesquisa que ajuda a identificar era preciso organizar intercâmbios para
experiências interessantes que existem que as novas gerações aprendessem como
nas comunidades, mas que muitas vezes fazer os remédios caseiros; que era possí-

81
AGROECOSSISTEMAS

vel tratar os animais com homeopatia e como construção de cisternas para


A com plantas medicinais; que era possível, armazenar água de chuva, para beber,
em vez de comprar ultraprocessados de cozinhar e irrigar as plantas, apoios
péssima qualidade nos mercados, me- para aprimoramento de cercas, gali-
lhorar muito a alimentação das famílias nheiros, currais, apriscos, mas também
nas comunidades valorizando o que melhoria das moradias e de estruturas
produzem e fazendo oficinas para trocar de beneficiamento e comercialização
e experimentar receitas. da produção [ver Tecnologias S ociais].
Inovações como essas foram possí- As políticas de compras institucionais,
veis porque, como dito no início deste como o Programa de Aquisição de Ali-
texto, as instituições mudaram a sua mentos (PAA) e o Programa Nacional
forma de agir. As mulheres e os jovens de Alimentação Escolar (PNAE), e as
se organizaram em grupos e comissões, políticas de valorização dos produtos
os sindicatos passaram a reunir as famí- da sociobiodiversidade, trouxeram mu-
lias das comunidades para refletir sobre danças significativas nos desenhos dos
como resolver os problemas identificados agroecossistemas, pois permitiram a
nos diagnósticos dos agroecossistemas diversificação da produção com intro-
e a organizar feiras e festas de sementes dução de novos cultivos, aumento dos
e outros eventos nos municípios [ver criatórios e a comercialização de ali-
Sementes]. Foram organizados intercâm- mentos que se perdiam pela inexistência
bios, e as agricultoras e os agricultores de mercados. Outras políticas públicas,
passaram a acreditar que são capazes como a melhoria de estradas, o progra-
de experimentar soluções, a partir de ma Bolsa Família e o maior alcance da
diálogos com as equipes de assessoria aposentadoria para os/as trabalhadores/
e tendo como base a agroecologia [ver as rurais, também contribuem para
Intercâmbios Agroecológicos]. mudanças nos agroecossistemas. (ver
Recentemente, em que pese ser Figuras 2 e 3, adiante, p. 786).
um processo incipiente e de alcance
limitado, algumas políticas públicas do O potencial pedagógico dos
período democrático foram acessadas agroecossistemas
pelas comunidades e contribuíram sig- Este pequeno artigo será lido por
nificativamente para esses processos muitas educadoras e educadores, das es-
de inovação nos agroecossistemas. As colas do campo e também das cidades, de
políticas favoreceram ambientes de cursos formais e informais onde estudam
interação e de troca de saberes, como agricultoras e agricultores ou que for-
os núcleos de agroecologia que se for- marão profissionais que trabalharão em
maram nas universidades e institutos entidades que assessoram diretamente as
federais, a política de assistência téc- comunidades. É um campo muito fértil
nica e extensão rural, os programas para trabalharmos processos educativos
de convivência com o semiárido, as contextualizados com grande potencial
iniciativas de educação do campo. Al- transformador. O conceito de agroe-
guns programas permitiram também cossistema, ao qual nos aproximamos
que houvesse mudanças positivas nas aqui, pode dar uma grande contribuição
infraestruturas dos agroecossistemas, para montarmos projetos pedagógicos

82
AGROECOSSISTEMAS

complexos e interdisciplinares que pro- e estudar as formas geométricas da natu-


movam a interação entre as escolas e as reza. Os geógrafos ajudarão a interpretar A
comunidades. as paisagens e suas transformações ao
As agricultoras e os agricultores longo do tempo e a desenhar mapas dos
das comunidades onde vocês moram ou agroecossistemas e das comunidades,
trabalham são guardiões de um grande bem como podem ajudar a compreender
patrimônio ecológico e cultural que as disputas pelos recursos naturais dos
deve ser valorizado nos processos edu- territórios onde estão as comunidades.
cativos. O processo de trabalho na Os educadores da área da química e
agricultura é complexo, envolve uma da biologia têm um prato cheio, podem
gama muito ampla de conhecimentos, ajudar a conhecer toda a biodiversidade
articula trabalho intelectual e habilida- presente nos agroecossistemas, os fluxos
des manuais refinadas. das águas, dos nutrientes e da radiação
Os agroecossistemas que vemos hoje solar, podem ajudar a pensar como cui-
são o resultado de histórias de vida de dar das águas e como ter solos vivos.
muita luta. Os olhares das educadoras Podem também estudar os princípios
da área de ciências humanas e sociais ativos das plantas medicinais e o valor
podem ajudar os estudantes a revelar nutricional dos alimentos colhidos nos
essas histórias, resgatando a memória das agroecossistemas. As aulas de educação
famílias e a linha do tempo dos agroe- física podem refletir sobre os exercícios
cossistemas, associando-as à história do corporais realizados pelas agricultoras
Brasil. Podem também ajudar a refletir e pelos agricultores no seu processo de
sobre as desigualdades históricas entre trabalho e como prevenir problemas de
mulheres e homens na nossa sociedade saúde decorrentes de posturas erradas.
patriarcal e sobre as contribuições da Para além dos campos do conheci-
economia feminista e a importância de mento citados acima, uma contribuição
discutir a questão da divisão justa do muito importante das/os jovens nas
trabalho doméstico e de cuidados. As escolas e das/os educadoras/es é ani-
áreas de arte e de letras podem ilustrar ou mar processos de mobilização nas suas
contar essas histórias de várias formas, comunidades, trazendo agricultoras/es
com vídeos, pinturas, desenhos, poesias, para dentro das escolas para contarem
cordéis, livros, fotos. Podem registrar suas experiências, indo até os agroecos-
as receitas de pratos tradicionais e de sistemas e procurando conhecê-los com
remédios caseiros. Os físicos podem profundidade, ajudando a identificar
ajudar os estudantes a entender como experiências interessantes nas comu-
funcionam os equipamentos utilizados nidades ou fora delas e organizando
no processo de trabalho nos agroecos- visitas de intercâmbio que mobilizem
sistemas e a influência dos astros na várias famílias das comunidades. As-
natureza. A matemática pode explicar sim, as escolas certamente darão uma
aos estudantes como organizar a contabi- grande contribuição para que haja mu-
lidade de tanta diversidade de produção danças positivas nos agroecossistemas
comercializada, ou como associar as das comunidades onde estão localizadas,
medidas tradicionais utilizadas pelas produzindo cada vez mais Comida de
comunidades ao sistema métrico decimal Verdade no Campo e na Cidade.

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AG R O F L O R E S TA – S I S T E M A S AG R O F L O R E S TA I S

Sugerimos aos interessados em apro- vem sendo utilizado em várias regiões do


A fundar os estudos sobre o conceito de Brasil e em outros países, com resultados
agroecossistema a leitura de outro texto muito interessantes.
que fizemos para o Dicionário da Educa- Um panorama rico de experiências
ção do Campo (Monteiro, 2012), pois am- desenvolvidas em todo o país, orienta-
bos os textos têm abordagens diferentes e das pelos princípios da agroecologia,
se complementam. Indicamos também o pode ser visualizado na série de vídeos
livro de Petersen e colaboradores (2017), Curta Agroecologia, produzidos pela Ar-
que aborda o Lume, método de avaliação ticulação Nacional de Agroecologia em
econômico-ecológica de agroecossiste- parceria com o Canal Saúde, da Fiocruz
mas desenvolvido pela AS-PTA Agri- e na revista Agriculturas: experiências
cultura Familiar e Agroecologia, que em agroecologia, editada pela AS-PTA.

Referências
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA (ANA); CANAL SAÚDE. Curta Agroecologia.
Disponível em: www.canal.fiocruz.br/programa/index.php?p=curta-agroecologia. Acesso em 1 jan. 2021.
REVISTA AGRICULTURAS. Rio de Janeiro: AS-PTA. Agriculturas: experiência em agrologia.
Disponível em: aspta.org.br/revista-agriculturas/. Acesso em: 1 jan. 2021.
DARDOT, P.; LAVAL, C. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. 1. ed. São Paulo: Boitempo,
2017.
GLIESSMAN, S. R Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre: Editora
da Universidade/UFRGS, 2000.
MONTEIRO, D. Agroecossistemas. In: CALDART, R. S. et al. Dicionário da Educação do Campo. Rio
de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular, 2012, p. 67-73.
PETERSEN, P. et al. Método de análise econômico-ecológica de Agroecossistemas. Rio de Janeiro: AS-P-
TA, 2017.

Notas
1
Essa parte é uma versão revisada de Monteiro (2012).
2
Ouvimos essa expressão interessante em palestra da professora Irene Cardoso, da Universidade
Federal do Viçosa, em referência às comunidades de organismos que vivem nos solos.

AGROFLORESTA – SISTEMAS AGROFLORESTAIS

F er na ndo S ilveir a Fr a nco

Em uma perspectiva agroecológica, quência, na mesma área. Esses sistemas


os sistemas agrof lorestais (SAFs) ou buscam conciliar o aumento de produ-
agroflorestas são formas de uso da terra tividade e a rentabilidade econômica
que combinam a produção de culturas com a proteção ambiental e a melhoria
agrícolas e/ou animais com espécies da qualidade de vida das populações
florestais, simultaneamente ou em se- rurais. Cada cultura ou espécie é plan-

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AG R O F L O R E S TA – S I S T E M A S AG R O F L O R E S TA I S

tada de acordo com seus requerimentos que proteja os fragmentos remanescentes


ecológicos, possibilitando, desta forma, e promova a manutenção da cobertura A
seu desenvolvimento normal, atendendo arbórea nas áreas de produção agrícola,
a necessidade de nutrientes, água, luz e tanto no entorno de áreas protegidas
espaço (altura, diâmetro e tipo de copa), como nas áreas de conexão dos frag-
sendo todas essas características cuida- mentos. Essa estratégia tem sido usada
dosamente combinadas. em alguns projetos de conservação com
Esta prática é muito interessante comunidades do entorno de unidades
para a agricultura familiar campone- de conservação e de manejo de bacias
sa por reunir vantagens econômicas e hidrográficas em diferentes regiões do
ambientais. A utilização sustentada dos Brasil, onde os sistemas agroflorestais fo-
recursos naturais aliada a uma menor ram desenvolvidos de forma participativa
dependência de insumos externos resulta com as comunidades como alternativa
em uma maior segurança alimentar e econômica e que possibilite a conserva-
econômica não apenas para os agriculto- ção dos recursos naturais.
res, mas também para os consumidores. Um sistema agroflorestal toma o
Consideramos os sistemas agroflo- ecossistema local como referência para
restais não somente como uma técnica sua elaboração e manejo, observando
silvicultural ou um enfoque de manejo a estrutura, a função e a dinâmica das
dos recursos naturais, mas também uma espécies locais, buscando estabelecer um
prática agroecológica de conservação sistema análogo ao que ocorre na região,
da biodiversidade, dos solos e das águas no sentido de imitar a natureza [ver
nas áreas tropicais. Isso porque promove Agroecossistema]. Assim podemos asso-
objetivos de desenvolvimento agrícola ciar a agricultura e a floresta dentro de
sustentável para os agricultores com re- princípios da sucessão natural conside-
cursos escassos, como os familiares, pos- rando o arranjo temporal do sistema, as
sibilitando benefícios socioambientais características ecológicas das espécies
e econômicos, que se contrapõem aos envolvidas no sistema, tanto arbóreas
impactos advindos com as monoculturas. quanto herbáceas, e suas finalidades
Além disso, os SAFs desempenham uma ecológicas e econômicas.
função importante na conservação da Tendo a luz como força primordial
diversidade biológica em paisagens des- produtora da vida, a sucessão natural
matadas e fragmentadas, estabelecendo é o processo pelo qual as plantas se or-
habitat e recursos para as espécies ani- ganizam no espaço (altura das árvores,
mais e de plantas; mantendo a conexão tamanho da copa) e no tempo (ciclo de
da paisagem e diminuindo os efeitos vida, produção, acumulação de matéria
negativos e a pressão sobre os fragmentos orgânica), para otimizar o compartilha-
florestais remanescentes; e possibilitan- mento de recursos e o aproveitamento
do áreas de amortecimento no entorno da radiação solar. Desta maneira, grupos
de áreas protegidas [ver Interações Eco­ de espécies mais rústicas, denominadas
lógicas Positivas]. Dessa forma, as práti- pioneiras, como a embaúba (Cecropia
cas agroflorestais deveriam ser levadas spp.), facilitam as condições para grupos
em conta nos esforços e políticas públicas de espécies mais exigentes, como é o caso
para a conservação ampla da paisagem da juçara, por exemplo. Assim, o sistema

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AG R O F L O R E S TA – S I S T E M A S AG R O F L O R E S TA I S

vai evoluindo, tendendo à complexifica- e social. Diferente das monoculturas,


A ção das relações ecológicas e a uma maior que utilizam apenas um estrato e que,
capacidade de autorregulação. Isso leva a do ponto de vista temporal, mantém a
uma fase na qual o equilíbrio ecológico sucessão ecológica sempre em seu estágio
confere maior resistência a pragas e doen­ inicial, o das plantas colonizadoras, as
ças, por exemplo [ver Teia Alimentar]. agroflorestas podem extrair produtos
As espécies usadas em uma agroflo- de até quatro estratos (ou andares) dife-
resta podem ser classificadas de acordo rentes em uma área muito reduzida, ou
com a fase da sucessão na qual elas são seja, pode-se produzir mais em uma área
mais bem adaptadas. Neste caso, elas menor (ver Figura 5, adiante, p. 788).
podem ser pioneiras, secundárias ou Algumas vertentes consideram
climácicas. As pioneiras são adaptadas a adequada a implantação de agrof lo-
um ambiente mais pobre em nutrientes restas com algumas poucas espécies
e normalmente mais ensolarado, que de grande interesse econômico, apro-
pode ser denominado estágio de colo- ximando-se mais de um consórcio de
nização. As secundárias se desenvolvem espécies, uma vez que, mesmo sendo
melhor em um estágio mais avançado, arbórea, é conduzida como uma espécie
chamado de fase de acumulação, pois agrícola. No entanto, de forma a tirar o
parte do entendimento que o sistema melhor proveito da proposta dos SAFs
já tenha acumulado maior quantidade e otimizar o uso dos recursos, é preciso
de matéria orgânica. Por fim, as cli- que haja no mínimo uma espécie por
mácicas se inserem em um momento estágio sucessional e/ou uma espécie
em que o sistema já se encontra mais para cada estrato; dessa maneira, mi-
estabilizado e complexo, chamado de nimizam-se os problemas com as cha-
estágio da abundância. As espécies madas “ervas daninhas”, utilizando
colonizadoras desempenham um papel melhor a luz e todo o potencial produ-
de facilitadoras para as espécies mais tivo das espécies. Portanto, ocupando
exigentes, proporcionando um ambiente todos os estratos e garantindo todas as
mais sombreado e úmido e acumulando funções ecossistêmicas, além de uma
biomassa e nutrientes no solo (ver Figu- produção diversificada, o agricultor
ra 4, adiante, p. 787). também encontrará menos problemas
Além dessa dinâmica no tempo, com plantas espontâneas indesejadas.
existe a estrutura que se refere à organi- A elevada diversidade também diminui
zação espacial da floresta, visando o uso o problema com insetos e doenças, pois
compartilhado da luz. É característico a diversidade atrai inimigos naturais
das florestas nativas uma distribuição contra as “pragas” e equilibra a oferta de
vertical onde as copas das árvores se alimento para os insetos, controlando as
sobrepõem em vários andares. Se pla- infestações. Além disso, se o agricultor
nejados e manejados de maneira seme- optar por uma diversidade mais elevada,
lhante aos sistemas naturais, os sistemas através da utilização de mais de uma
agroflorestais têm o potencial de serem espécie no mesmo estrato ou que cum-
tão produtivos quanto as florestas tro- pra a mesma função ecológica, ele irá
picais, com a diferença que os produtos conferir, assim, uma maior “resiliência”
retirados são de interesse econômico para o seu sistema, ou seja, a agroflores-

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AG R O F L O R E S TA – S I S T E M A S AG R O F L O R E S TA I S

ta será capaz de se recuperar mais rápido Capina seletiva


frente às perturbações e retornar ao seu Consiste em selecionar as espécies A
estado original sem muitos prejuízos que surgem espontaneamente no siste-
[ver Ciclagem de Nutrientes]. ma, capinar com enxada, incorporan-
Para viabilizar que toda essa com- do-as ao solo quando indesejadas. É
plexa dinâmica de sucessão ocorra da importante, neste momento, interpretar
melhor maneira, é necessário um manejo o motivo pelo qual tais espécies apare-
constante para conduzir à evolução do ceram no sistema, assim estas plantas
sistema. Para tanto, devemos nos inspirar espontâneas deixam de ser problemas e
nos seres renovadores, que em florestas passam a ser indicadoras. A guanxuma
naturais realizam o manejo da sucessão (Sida rhombifolia), por exemplo, muitas
natural. Tais elementos podem ser desde vezes indica pontos de compactação
raios que abrem clareiras e permitem um do solo.
pulsar de vida novo, até besouros serra-
dores que executam podas minuciosas Poda
nas florestas o tempo todo. Inspirado Permite ajustes fundamentais no
nos agentes naturais que conduzem a crescimento das árvores e a acumulação
dinâmica da sucessão, o manejador deve no solo da matéria orgânica podada;
sempre buscar acelerar os processos que dinamiza o sistema, renovando as plan-
ocorreriam naturalmente, mas de ma- tas velhas e impulsionando as plantas
neira muito mais lenta. Em vista disto, em crescimento. As podas podem ser
três manejos fundamentais merecem feitas com a intenção de ajustar o es-
destaque: a cobertura do solo, a capina trato adequado de cada indivíduo, ou
seletiva e a poda. para melhorar a produção de frutos, ou
ainda para incorporar matéria orgânica
Cobertura do solo ao solo. Além disso, serve para abrir luz
É fundamental que o solo, tanto dos para estratos mais baixos, e diminuir a
canteiros quanto das entrelinhas, esteja competição por água em épocas de seca.
sempre coberto com uma boa camada A agrofloresta é uma tentativa de
de matéria orgânica. Sobre os canteiros, harmonizar as atividades da agricultura
normalmente se usa uma camada de com os processos naturais da vida exis-
palhada fina para facilitar o plantio e, tentes em cada lugar em que atuamos,
nas entrelinhas, o mais adequado é po- e representa grande potencial para as
sicionar toras de madeira e material mais regiões tropicais, naturalmente ricas
grosseiro, para uma lenta decomposição. em biodiversidade, por proteger os solos
Esse manejo: das intensas chuvas e da insolação di-
• beneficia a manutenção de umi- reta. A grande diversidade de produtos,
dade no solo; segurança alimentar, sustentabilidade
• beneficia a nutrição das plantas; ambiental, incremento da fertilidade
• evita a compactação do solo; do solo e redução gradativa nos custos
• aumenta a quantidade de vida de produção fazem da agrofloresta uma
no solo, inclusive micorrizas; excelente opção como prática produtiva
• diminui o surgimento de plantas para a inserção na agricultura familiar
espontânea. do Brasil.

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AG R O F L O R E S TA – S I S T E M A S AG R O F L O R E S TA I S

Além das agroflorestas sucessionais é indicado que parte do vento passe por
A citadas acima, há diferentes outras formas entre as árvores. Desta forma, as faixas de
de se reintroduzir árvores em paisagens árvores trazem grande conforto fisiológico,
agrícolas onde as florestas foram total- com mais água no solo e no ar, um equi-
mente retiradas. Pode-se aqui citar as líbrio entre a transpiração e fotossíntese
faixas de árvores, como as cercas viva e das culturas associadas, melhorando assim
quebra-ventos, ao redor de cultivos e pas- a saúde das plantas e sua produção, além
tagens, formando um pequeno microcli- de evitar custos de irrigação e agrotóxicos
ma que ajuda na manutenção da água no (ver Figura 6, adiante, p. 789).
local e o estabelecimento de uma rede de Além dos sistemas e das propostas
processos de vida, que promove serviços sistematizadas e surgidas mais recente-
ecológicos e econômicos para a família e mente, podemos citar também formas
a comunidade. Podemos ter incrementos tradicionais, nas quais agricultores, em
de produção dos cultivos e das árvores, diversos contextos sociais e ecológicos,
retornos econômicos como madeiras buscaram introduzir e manter as árvores
e frutas. As cercas vivas, além de sua em seus sistemas de produção, obtendo
finalidade imediata, podem atuar como bens e serviços ambientais. Um exemplo é
abrigos para aves e com efeitos benéficos no sul da Bahia, onde temos florestas ma-
sobre o controle biológico de insetos. nejadas pelo ser humano há muito tempo
Cercas vivas adensadas podem diminuir e onde existem cacauais sombreados de
os efeitos nocivos do vento, além de im- forma tradicional, chamados de sistema
pedir a passagem de animais e de pessoas. cacau-cabruca. A cabruca consiste em
Como exemplo muito utilizado nas pro- fazer o raleamento da floresta nativa ou
priedades, podemos citar as cercas vivas um bosqueamento (inclusive retirando
densas formadas com sansão-do-campo madeiras nobres), eliminando a vegetação
ou sabiá (Mimosa caesalpiniaefolia). O de menor porte e mantendo o predomínio
vento é importante variável que afeta a das árvores de grande porte, e introduzir
produtividade das culturas por aumentar as plantas de cacau. Esse sistema permite
as perdas de água por evaporação e trans- a conservação da camada de matéria or-
piração (evapotranspiração). Também gânica sobre o solo, mantendo a ciclagem
é um fator de disseminação de vetores de nutrientes natural da floresta, manten-
patológicos. No caso do cafeeiro, que é do um ambiente saudável e um conforto
uma planta de baixa tolerância aos ventos, fisiológico bom para o cacau, eliminando,
a produtividade começa a cair com ventos assim, o grande uso de insumos externos.
pouco fortes. Com ventos mais velozes, No passado, esse sistema ocupou extensas
surgem danos mecânicos nas folhas, que áreas de Mata Atlântica no estado da
são portas de entrada para fungos e bacté­ Bahia; porém, em decorrência da mo-
rias, sendo que o mesmo acontece com as dernização da agricultura, iniciada ali
bananeiras. Os quebra-ventos devem ser nos anos 1960, surgiram doenças como
alinhados perpendicularmente aos ventos a vassoura-de-bruxa, e muita dificuldade
dominantes da região e não formar uma na produção. Além disso, as sucessivas
barreira muito fechada ou muito densa. crises em decorrência da queda do pre-
Para permitir sua funcionalidade, um bom ço do cacau no mercado internacional
quebra-vento deve ser “permeável”, ou seja, levaram muitos donos de florestas com

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AG R O F L O R E S TA – S I S T E M A S AG R O F L O R E S TA I S

cacau a explorar de forma sistemática as agricultura, como citado para a cabruca


madeiras comerciais e houve uma dramá- na Bahia. No Paraná, no decorrer dos A
tica redução das áreas ocupadas por esse últimos 15 anos, o número registrado de
sistema. Hoje, nas áreas remanescentes faxinais caiu muito, porém observa-se
de cabruca, os agricultores têm procurado um progressivo renascimento do interesse
dinamizar esse sistema, praticando podas pelo sistema, tanto por parte de comu-
adubadoras e aumentando a diversifica- nidades de agricultores familiares como
ção da sua composição. Em contrapartida, por parte de entidades governamentais
o cacau é também cultivado na forma de e não governamentais e instituições de
agroflorestas, sejam elas com baixos níveis pesquisa. Alguns projetos têm buscado
de biodiversidade, ou mesmo reunindo melhorar a renda familiar dos faxinalen-
um grande número de componentes que ses, a partir da própria dinâmica e forma
são manejados de forma dinâmica. O de manejo dos faxinais. Potencializando o
sistema é implantado em uma capoeira, que já é praticado, diversas propostas têm
ou mediante plantio do cacau e espécies sido contempladas, como por exemplo,
de serviço, como adubadoras e bananeiras aumentar a quantidade e a qualidade de
em uma roça, para efeito de sombreamen- erva-mate, mediante o enriquecimento
to e formação de cobertura morta. com mudas de boa procedência, e melho-
Outro sistema agroflorestal tradicio- ria na práticas de manejo, diversificar e
nal, praticado no sul do Brasil, é o faxinal. agregar valor aos outros produtos dos faxi-
Trata-se de um sistema de economia fami- nais, como o pinhão, ervas medicinais,
liar comunitária, baseado em um ambien- frutíferas nativas, plantas ornamentais,
te de floresta nativa, tendo como espécie apicultura, sementes, bem como o turis-
dominante o pinheiro-do-paraná, e onde mo rural ecológico comunitário, apoiado
animais domésticos são criados soltos, em na beleza das paisagens e valor histórico
pastagens comunitárias (criadouros cole- cultural que caracterizam algumas regiões
tivos com equinos, suínos, caprinos, aves de maior concentração de faxinais.
e raramente bovinos). Nesses criadouros O desenvolvimento do tema da con-
coletivos se concentra a maior parte da servação da biodiversidade por meio dos
coleta da erva-mate como fonte de renda SAFs deve ser visto em um contexto
complementar. Nas mesmas propriedades, integrado com o ordenamento territo-
as áreas de plantar (quase que exclusiva- rial, considerando que a paisagem rural
mente com culturas de ciclo curto) são tende a ser uma matriz de retalhos de
individuais e separadas dos criadouros floresta remanescentes, sistemas agrícolas
coletivos por valos e/ou cercas. e agroflorestais, cercas vivas, quebra-
O sistema faxinal tradicional pre- -ventos e árvores isoladas inseridos na
serva a biodiversidade local, se tornando paisagem regional. Esse mosaico de pai-
mais evoluído e permanente quando com sagem agroflorestal deve ser visto como
menor sobrecarga de animais. Infelizmen- reserva potencial de biodiversidade em si,
te, esse sistema que se baseia em uma conservação da capacidade produtiva do
rara forma de organização camponesa solo e produção de água em quantidade
sofreu, a partir da década de 1960, um e qualidade de forma sustentável, com o
gradativo processo de desestruturação, consequente bem viver das pessoas do
em decorrência da “modernização” da campo e da cidade.

89
AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

Para Saber Mais


A BARBOSA, T. M. Semeando agroecologia: árvores na agricultura familiar. Rio de Janeiro: ASPTA, 2014,
28p. Disponível em: http://aspta.org.br/2014/06/semeando-agroecologia-arvores-na-agricultura-familiar/.
Acesso em: 01 jan. 2021.
CORRÊA, N. E. et al. Agroflorestando o mundo de facão a trator: gerando práxis agroflorestal em rede.
Barra do Turvo: Cooperafloresta, 2016. Disponível em www.cooperafloresta.com.br. Acesso em: 01
jan. 2021.
CALDEIRA, P. Y. C. Sistemas agroflorestais em espaços protegidos. Secretaria de Estado do Meio Am-
biente, Coordenadoria de Biodiversidade e Recursos Naturais. 1. ed. São Paulo: SMA, 2011. Disponível
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AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

Da niel M a ncio
A na Ter r a R eis
R enata C outo M or eir a

As Agroindústrias são as unidades damento da divisão social do trabalho na


industriais responsáveis pelo beneficia- sociedade moderna, houve a separação
mento e transformação de produtos agrí- entre a agricultura e a indústria, entre
colas, visando sua conservação. Segundo o campo e a cidade; a agroindústria,
Christoffoli (2012), a autonomização de para além do beneficiamento, surge
partes do processo produtivo agrícola e como processo autônomo em relação à
o desenvolvimento da agroindústria en- agricultura, e também crescentemente
quanto atividade autônoma em relação à dependente dela.
agricultura surge a partir do desenvolvi- Neste texto, esperamos aportar ele-
mento da indústria e das cidades com a mentos que evidenciem a forma como
expansão do capitalismo, principalmente as agroindústrias foram sendo imple-
nos séculos XVIII e XIX. Com o aprofun- mentadas no contexto da questão agrá-

90
AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

ria brasileira, observando o modelo de atendimento aos interesses da indús-


desenvolvimento imposto, no qual a tria. Evidenciou-se a relação de mútua A
agroindústria tem importância crescente dependência entre as atividades do se-
na apropriação do valor produzido ao tor agropecuário e dos demais setores,
longo do processo de industrialização ­atuando de forma complementar e in-
da agricultura. Nesse processo, a apro- terdependentes (Ianni, 1973).
priação do valor gerado pelo trabalho na Na década de 1930, durante o gover-
agricultura e na agroindústria passa a ser no Vargas, o Ministério da Agricultura
“condição necessária para a acumulação passa a compor a estrutura governa-
capitalista” (Christoffoli, 2012, p. 73). mental da República; a estratégia foi de
Assim pretendemos também apontar estimular a industrialização e a diver-
para as contradições e necessidades de sificação agropecuária, reforçando os
superação desse modelo dependente a suportes políticos baseados em grupos
partir da Agroecologia. econômicos fortes. Ao setor agrope­
cuário, coube a geração de divisas para a
Da agroindústria do engenho ao importação de máquinas e equipamentos
complexo agroindustrial necessários ao setor e à indústria, que se
No Brasil, a agroindústria que es- desenvolvia pelo aumento da demanda
teve ligada ao avanço do modo de pro- interna. O desafio era superar os regiona-
dução capitalista remonta aos tempos lismos para a construção de um governo
da Colonização, em meados do século que pudesse ter centralidade nas ações,
XVI, em que a estrutura do engenho de e a estratégia adotada foi a criação de
cana-de-açúcar representava o principal diversos institutos com capacidade de
modelo agroindustrial da plantation regular atividade de determinados se-
escravista (Prado Junior, 2006). Ou- tores, como o Instituto do Açúcar e do
tras culturas agrícolas foram sendo Álcool (IAA).
implantadas, seguindo esse modelo até Com o golpe de 1964, toma curso
o início do século XX, acentuando o um pacto agrário tecnicamente moder-
caráter exportador de produtos primá- nizante e socialmente conservador, man-
rios da economia brasileira, ou seja, de tendo as oligarquias rurais detentoras de
matérias-primas para abastecimento grandes extensões de terra (Delgado,
das indústrias das metrópoles, como é o 2005). Sob o regime militar e à custa de
caso do tabaco, do algodão, do café, do vultosos empréstimos internacionais,
látex da seringueira e do cacau. ocorre a modernização das técnicas im-
Após a Primeira Guerra Mundial portadas na agricultura e de integração
(1914-1918), estreita-se a relação entre com a indústria, sem alterar as relações
o uso de novas técnicas na produção arcaicas que sempre marcaram a questão
agrícola e as demandas das agroindús- agrária brasileira, reforçando e amplian-
trias. É o caso das indústrias têxteis, por do as relações de superexploração [ver
exemplo, que passaram a exigir padrões S uperexploração] da força de trabalho
na produção de fibras de algodão, com rural ao longo do tempo, compreendida
maior regularidade agrícola, impon- no sentido mais amplo que lhe atribui
do assim a necessidade de adequação Marini (1991), na essência da reprodução
das técnicas de produção agrícola para das próprias relações de dependência.

91
AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

Esse processo de concentração de Agroindústria no ciclo recente do


A terras e de renda, com a adoção dos capital no agronegócio
pacotes tecnológicos, foi feita de forma Com a desregulamentação neoli-
a ampliar as relações de produção do beral da economia brasileira nos anos
capital sobre os territórios, inviabilizan- de 1990, novamente se estabelece uma
do a sobrevivência do campesinato e onda de centralização de terras e de
aumentando a produtividade com base capital. As agroindústrias deixam de
em uma agricultura intensiva em capital receber subsídios e uma nova estratégia
[ver Campesinato]. Para Delgado (1985), de financeirização, baseada no capital
ocorre uma integração de grau variável especulativo internacional agindo sobre
entre a produção primária de alimentos a agricultura, forja o lançamento do
e matérias-primas e vários ramos indus- agronegócio no ano 2000.
triais (oleaginosos, moinhos, indústrias O novo ciclo de concentração de ca-
de açúcar e álcool, papel, papelão, fumo, pitais no campo impõe, com base na cria-
têxtil, bebidas, entre outros). O Estado, ção de políticas públicas ou de controle
portanto, proporciona a modernização ideológico, aos “pequenos agricultores” a
do latifúndio e a constituição de gran- subsunção à lógica do mercado mundial,
des e médias empresas agroindustriais e tanto pela integração direta às agroin-
multinacionais, que se tornam as prota- dústrias quanto pela ação dos agentes
gonistas no processo de desenvolvimento atravessadores. Essa integração, seja
agrícola, formando os complexos agroin- formal – por meio de contratos nos quais
dustriais (CAI), ou seja, um conjunto de recursos são adiantados para garantir a
processos formado por setores produtores produção homogênea e planificada à
de insumos e maquinarias agrícolas, de empresa e ao agricultor, que entrega toda
transformação industrial e de distribui- ou parte de sua produção – ou informal
ção, comercialização e financiamento, – pela ação dos mercados que monopo-
evidenciando forte dependência de um lizam os processos agroindustriais que
em relação aos outros (Goodman; Sorj; necessariamente convergem a estes –,
Wilkinson, 1985). gera um sistema que distancia o campo-
Para Mazoyer (2008), historicamen- nês e sua família de parte importante dos
te, os produtores agrícolas foram sendo meios de produção, e portanto, de sua
desincumbidos de uma parte importante autonomia para produzir e se apropriar
de suas atividades no campo e das corres- de sua própria produção.
pondentes rendas, reduzidos muitas vezes A imposição de integração do cam-
a uma atividade de simples produção pesinato ao modelo capitalista agroin-
de matérias-primas agrícolas, integrada dustrial se dá também pela implemen-
aos complexos agroindustriais de forma tação das políticas públicas, como foi
submissa. Desse processo, persiste a o exemplo da formulação do Programa
agricultura subordinada às demandas Nacional de Fortalecimento da Agri-
da agroindústria capitalista, dependente cultura Familiar (Pronaf), que em 1999
do Estado e do mercado internacional reuniu todos os créditos destinados à
e mantenedora de padrões de superex- agricultura familiar e levou a uma pa-
ploração do trabalho e de destruição do dronização da forma de acesso ao pro-
meio ambiente. grama, direcionando o crédito a poucos

92
AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

cultivos restritos às demandas e pacotes apontam que apenas dez empresas con-
tecnológicos dos CAI, e não respeitan- trolam a industrialização de alimentos, A
do a diversidade dos sujeitos sociais do entre as quais se destacam a Nestlé,
campo e da agricultura camponesa. a JBS, a Tyson Foods, a Mars, a Kraft
Posteriormente, como termo jurídico, a Heinz, a Mondelez, a Danone, a Uni-
Agricultura Familiar definiu a amplitude lever, a General Mills e a Smithfield
e os limites da afiliação de produtores (Santos; Glass, 2018). O processo de
pela categorização oficial do Pronaf. Em beneficiamento e o de agroindustrializa-
24 de julho de 2006, foi aprovada a Lei ção são elos extremamente importantes
da Agricultura Familiar, Lei n. 11.326, na organização das cadeias produtivas.
que entre os seus critérios engloba uma Nesses setores, se concentram em média
massa heterogênea de produtores rurais, cerca de 48% do valor total da produção
desde produtores pauperizados com me- segundo estudos da Oxfan (2016); junto
nos de um hectare a produtores com cem à comercialização, garantem o direciona-
hectares altamente capitalizados, formas mento do que produzir, quanto produzir
tradicionais de subsistência, e formas e como produzir, ditando as regras do
modernas de integração aos mercados, desenvolvimento rural.
desde que a família seja proprietária dos A concentração do mercado por
meios de produção e, ao mesmo tempo, parte dessas empresas faz com que a pro-
executora das atividades produtivas. Há dução advinda da agricultura camponesa
neste processo uma intencionalidade de tenha a renda que gera transferida por
integrar a agricultura de base camponesa uma dupla subordinação: na produção
como parte do agronegócio, mercantili- (com a dependência imposta aos pacotes
zando todas as fases do processo produ- tecnológicos) e na comercialização (com
tivo e fortalecendo a estratégia de pro- a presença de atravessadores ou com a
dução e beneficiamento extremamente produção integrada às agroindústrias).
concentrada das grandes agroindústrias A concentração também mantém ao
multinacionais. camponês os riscos da produção diante
Em 2018, todo o mercado mundial das intempéries ambientais e outras de-
de commodities agrícolas foi centralizado correntes de oscilações de mercado, di-
por quatro corporações: Archer Daniels minuem responsabilidades trabalhistas,
Misland (ADM), Bunge, Cargill e Louis assim as empresas ficam apenas onde são
Dreyfus Company. A estratégia do capi- possíveis maiores lucros com os menores
tal tem sido monopolizar a comerciali- riscos, concentrando ainda mais a renda
zação de três principais matérias-primas e riqueza produzida pelo campesinato.
(a soja, o milho e o trigo), que podem
ser comercializadas como alimento, A agroindústria campesina
agrocombustível ou ração para animais, e a agroecologia
a depender das condições do mercado. O processo de beneficiamento e de
Somam-se a essas commodities outras, agroindustrialização na agricultura cam-
como os subprodutos da cana-de-açúcar, ponesa é pauta de luta dos mais diversos
da palma e do arroz. Quando falamos da movimentos populares do campo na atua­
agroindústria alimentícia, o quadro de lidade que, por meio de suas sínteses, o
concentração não é diferente. Estudos incorporaram como bandeira importante

93
AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

na disputa entre projetos de desenvolvi- associações ou cooperativas, em que


A mento para o campo brasileiro e latino- pesem os limites enfrentados na des-
-americano. Essa bandeira está registrada continuidade das políticas públicas. O
no Programa Agrário do Movimento dos I Plano Nacional de Reforma Agrária
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (PNRA) tem como uma de suas medidas
e é parte importante da formulação da a criação do Programa Especial de Crédi-
reforma agrária popular [ver R eforma to para Reforma Agrária (Procera), que
Agrária Popular]. Da mesma forma, o se constitui como uma linha de crédito
Movimento dos Pequenos Agriculto- que visa proporcionar aos camponeses
res (MPA) também sintetiza no Plano assentados financiamentos destinados
Camponês as agroindústrias familiares ao apoio à produção e à comercialização.
como componente fundamental. Na Via Ainda ao final de 1990, é criada
Campesina Internacional se identifica uma nova modalidade do Procera, cha-
um esforço para acumular debates e teo­ mada Teto II, que representou uma das
rizações que propõem um novo modelo mais importantes políticas da época que
de organização do campo, baseado na se destinava à estruturação de agroin-
hegemonia dos camponeses e que passam dústrias vinculadas às cooperativas e
também pelo acesso e controle das estru- associações dos camponeses assentados.
turas de benefício e agroindustrialização Evidente que, em meio à crise, a criação
adequadas à lógica camponesa. Apesar de agroindústrias de pequeno porte e que
das grandes diferenças do desenvolvi- não questionavam o modelo produtivo
mento das forças produtivas, das classes e calcado nos pacotes tecnológicos e na
da correlação de forças, têm-se enquanto concentração e centralização nos CAI
tarefa, neste “programa para a agricultura logo mostrou sua inviabilidade, levando
campesina”: os agricultores a uma difícil situação de
Desenvolver a organização de endividamento (Reis, 2015).
agroindústrias em pequena e média Desde então, poucos programas
escala, na forma cooperativa, sob foram organizados para atender a essa
controle dos trabalhadores [...]. A demanda e desenvolver as agroindústrias
agroindústria é uma necessidade camponesas, com destaque para o Terra-
do mundo moderno para conservar forte e o Terrasol, ambos vinculados ao
alimentos e transportá-los para as ci- Incra, mais recentemente. No entanto,
dades. Mas devemos garantir que as todos, nessa disputa com o capital, ti-
agroindústrias estejam sob controle
veram e têm problemas concretos de
dos trabalhadores e camponeses para
execução, inviabilizando ou dificultando
que a renda do maior valor agregado
aos produtos seja distribuída entre os profundamente sua implementação.
que trabalham. (MST, 2015, p. 121) Em que pese o cenário de avanço do
capital e a consolidação de uma estraté-
O final dos anos 1980 e início dos gia econômica que busca mercantilizar
1990 foram marcados por uma crescente todas as faces da produção e da reprodu-
organização e mobilização dos trabalha- ção da vida, julgamos importante elencar
dores rurais assentados, no sentido de os acúmulos e aprendizados sobre qual
consolidar importantes experiências no papel a agroindústria vem desempenhan-
que se refere às formas de organização, do nessa construção contra-hegemônica.

94
AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

O primeiro aprendizado refere-se à representando um dos maiores entraves


necessidade de construir autonomia nos que o agricultor encontra para agregar A
processos, desde a produção de insumos, valor à produção, como trazem à reflexão
passando pela produção, beneficiamento, Moreira et al. (2007). No entanto, mesmo
agroindustrialização, até a comerciali- com as dificuldades de formalização da
zação dos alimentos. Ter autonomia e atividade, a importância da agroindús-
controle sobre a produção nos permite tria familiar ainda se destaca como al-
romper com a dependência dos pacotes ternativa para ampliar a disponibilidade
tecnológicos e definir as práticas e téc- de produtos alimentícios para as popula-
nicas a serem utilizadas de acordo com ções urbanas e rurais que, por um lado,
a realidade de cada território. possam trazer um impacto favorável ao
Já o controle no processo de indus- agricultor – com a diminuição das perdas
trialização está intimamente ligado ao agrícolas, a manutenção de subprodutos
processo de comercialização. As experiên- e resíduos orgânicos importantes para
cias mais exitosas de agroindustrialização os agroecossistemas [ver Agroecossis ­
e beneficiamento sempre estiveram vin- tema] – e, por outro, agreguem valor ao
culadas a uma ação conjunta de comer- produto, incrementando a renda familiar
cialização, por via institucional (como e viabilizando social e economicamente
é o caso do Programa de Aquisição de a produção e vida camponesa.
Alimentos ou do Programa Nacional de Segundo Mior (2005), a origem e a
Alimentação Escolar), por venda direta evolução das agroindústrias familiares
(feiras e cestas), pela difícil disputa jun- podem ser vistas sob a ótica da constru-
to ao mercado convencional ou outras ção histórica, na qual um conjunto de
modalidades [ver Construção Social de fatores sociais, econômicos e culturais
Mercados; Compra Pública de Alimentos]. interage em estratégias diferenciadas à
Muitas dificuldades se colocam tam- capitalista, envolvendo várias dimen-
bém do ponto de vista da legislação, o sões e consolidando uma concepção
que interfere negativamente na orga- de campesinato. Dentre elas, podemos
nização dessas estruturas camponesas. destacar o fortalecimento da produção
Essas legislações impõem a processos fa- em pequena escala, da diversificação
miliares um procedimento e uma lógica produtiva, da agroecologia, da autono-
adaptados às grandes agroindústrias, por mia e do controle dos trabalhadores,
muitas vezes inviabilizando as pequenas da geração de trabalho e renda para as
e médias pelo excesso de burocracias ao famílias camponesas, do envolvimento
colocar as mesmas normas para proces- dos jovens e das mulheres nas relações
sos e escalas completamente diferentes. de produção na valorização de todos os
Um exemplo é a produção de queijos ou membros da família pelo trabalho, da
panificados, cujas exigências inviabili- descentralização de rendas, da redução
zam plantas agroindustriais pequenas, do êxodo rural, além do estímulo a es-
aumentam excessivamente os custos de tratégias de cooperação articuladas aos
produção e comercialização e impõem movimentos sociais. Para Christoffoli
barreiras sanitárias, trabalhistas, am- (2010), essas iniciativas agroindustriais
bientais, tributárias, fiscais e previden- no campesinato só se mantêm susten-
ciárias praticamente intransponíveis, táveis no tempo, influenciando direta-

95
AGROINDÚSTRIA E BENEFICIAMENTO

mente o desenvolvimento do campo, do preço de seus produtos, são funda-


A se estiverem ancoradas na formação mentais no estabelecimento de outras
de redes e complexos cooperativos na relações com o mercado. A agroindus-
perspectiva da intercooperação, como trialização aparece nesse caso como
forma de contrapor e minimizar os efei- alternativa real dentro da perspectiva
tos da competição aos conglomerados do cooperativismo e da construção da
capitalistas. agroecologia. Do que adianta produzir
Um segundo aprendizado que nos sem agrotóxicos, dentro de um desenho
remete à reflexão se refere a como a cons- no qual os princípios da agroecologia
trução de autonomia nos processos deve são priorizados, mas na hora de benefi-
estar vinculada à luta por políticas pú- ciar e agroindustrializar os produtos se
blicas que assegurem assistência técnica, misturam e caem na vala comum das
créditos, incentivos à cooperação e à commodities e dos alimentos conven-
comercialização, além de formação de cionais? Nesse sentido, é necessário
profissionais das próprias comunidades, organizar as cadeias produtivas agro-
todas essas como ações que permitam ecológicas, fortalecendo experiências
uma gestão que dialogue com os inte- em todos os elos, mas também sob o
resses coletivos e garantam qualidade e controle do campesinato.
organização para acessar mercados di- É por meio dessas estruturas or-
retos. Segundo Zamberlam (1994), os ganizativas da classe trabalhadora do
agricultores familiares têm normalmente campo que será possível sustentar a
alternativas desfavoráveis de acesso a tais agroecologia, pois criam alternativas
políticas públicas, ressaltando o gargalo da de renda, trabalho, organização produ-
comercialização. Em regra, a possibilida- tiva e cooperação, garantindo não só a
de a que têm acesso é comercializar sua produção de alimentos saudáveis, mas
produção com grupos oligopolizados, em também a conservação destes de forma
que os preços são fixados unilateralmente. saudável e ampliando a atuação cam-
As alternativas de comercializar via ponesa nos territórios, desenvolvendo
esquema tradicional (feiras, pequenos formas de apresentar seus produtos e
mercados, de casa em casa), no qual o levar a cultura camponesa a cada região
produtor tem maior poder na definição do Brasil e do mundo.

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AGRONEGÓCIO

Paulo R oberto R aposo A lenteja no


Da niela da S ilva E gger

“Agro é tech, agro é pop, agro é ciar alguns dos processos associados ao
tudo!” Desde 2016, todos os dias somos agronegócio.
bombardeados durante um minuto por A palavra agronegócio é recente
essa propaganda no horário nobre da na língua portuguesa; não existia até os
maior cadeia de televisão do país, cuja anos 1990. Trata-se de uma tradução da
intenção é nos fazer crer que tudo que palavra inglesa agribusiness. A própria
existe no campo brasileiro está vinculado Associação Brasileira do Agronegócio
ao agronegócio. Este seria responsável (Abag) era denominada Associação Bra-
pelo bem-estar da população brasileira, sileira do Agribusiness até os anos 2000.
seja por produzir os alimentos que abas- A mudança fez parte de uma estratégia
tecem as cidades, seja por contribuir de marketing para popularizar a noção
para a geração de emprego e renda no de agronegócio.
campo e na cidade, além de contribuir A noção de agribusiness foi cunhada
para a sustentação da nossa economia, originalmente nos Estados Unidos por
por meio de vultosos saldos comerciais. John Davis e Ray Goldberg na década
Mas será que essa imagem auto- de 1950, e incorporado ao vocabulário
projetada do agronegócio corresponde político brasileiro em 1993 quando da
à realidade? Que faces do agronegócio fundação da Abag. Três anos antes, Ney
essa propaganda esconde? E o que há Bittencourt de Araujo, Ivan Wedekin e
de verdade nessa imagem? Buscaremos Luiz Antonio Pinazza publicaram o livro
neste verbete apontar as origens dessa Complexo agroindustrial – o agribusiness
expressão, analisar as contradições que brasileiro, no qual empregam pioneira-
envolvem seu uso generalizado e eviden- mente a palavra agribusiness na análise

97
AGRONEGÓCIO

do campo brasileiro. Mas seu uso per- como forma de obter saldos na balança
A manece restrito ao longo dos anos 1990. comercial para pagar as dívidas do país.
Essa década é marcada por uma Entre os setores estimulados estava o
forte crise da agricultura brasileira, com agronegócio, livre do pagamento de
a falência generalizada de agricultores impostos sobre a exportação de produtos
e agroindústrias, no rastro das medidas primários, desde a Lei Kandir, de 1997.
neoliberais que retiraram subsídios, redu- Configura-se a partir de então um
ziram créditos e expuseram a agricultura movimento para elevar o agronegócio
à competição de outros países com a à condição de um dos pilares da eco-
redução de taxas alfandegárias. nomia brasileira, ao mesmo tempo que
Foi ainda uma década em que houve a reforma agrária é apresentada como
um grande avanço da luta pela reforma anacrônica e os movimentos sociais do
agrária no Brasil, com o fortalecimento campo, como violentos e atrasados.
e multiplicação dos movimentos que Com o aumento da demanda mun-
lutavam pela terra, em especial o Mo- dial das chamadas commodities na década
vimento dos Trabalhadores Rurais Sem de 2000, impulsionada pelo crescimento
Terra (MST). Sob forte pressão polí- da economia chinesa, as exportações
tica, em especial após os massacres de brasileiras de produtos agropecuários se
Corumbiara e Eldorado dos Carajás, o expandiram fortemente em quantidade e
governo Fernando Henrique Cardoso foi valor, e o agronegócio foi se fortalecendo
obrigado a acelerar e ampliar a criação cada vez mais. O valor médio anual das
de assentamentos, pois havia grande exportações passou de US$ 50 bilhões
apoio popular à reforma agrária e ao no período 1995/1999 para cerca de US$
MST. Isto foi facilitado pela queda ge- 200 bilhões no final da década de 2000,
neralizada do preço da terra no país na com a participação dos produtos básicos
década de 1990, resultado do desmonte passando de 25% para 45% da pauta
das políticas de apoio à agricultura e de exportações em 2010; somados aos
da falência de agricultores (Delgado, semimanufaturados, este número passa
2012). Mas, ao mesmo tempo, o governo para 54,3%, configurando a reprimari-
buscou medidas de desmobilização da zação do comércio exterior (Delgado,
luta pela terra e repressão e contenção 2012, p. 95).
dos movimentos. Foi nesse cenário que, Para esse crescimento do agronegó-
articuladamente, governo, latifundiários, cio, contribuiu decisivamente a adoção
grandes empresas do setor agropecuário de um conjunto de políticas: trabalhistas,
e mídia iniciaram uma massiva campa- que promoveram a flexibilização das
nha de desmoralização e criminalização relações de trabalho; ambientais, cujos
do MST e de construção de uma imagem marcos regulatórios foram revisados; de
positiva do agribusiness, logo rebatizado infraestrutura, sobretudo escoamento da
de agronegócio para tornar essa nova produção; de ordenamento territorial e
imagem mais palatável. regularização fundiária; e de financia-
Este processo coincide com uma mento (Heredia; Leite; Palmera, 2010).
guinada na economia do país. Pressio- No caso dessa última, houve uma
nado pela crise cambial de 1998/1999, forte retomada do crédito rural, que
o governo estimulou as exportações havia decaído fortemente ao longo dos

98
AGRONEGÓCIO

anos 1990 e foi alavancado novamente. a bancada possuía 214 deputados e 24


Em 2003/2004, o valor total do crédito senadores associados, respectivamente, A
rural foi de 32,6 bilhões de reais, sendo 41,7% e 29,6% do total de parlamentares.
27,2 bilhões para a agricultura patronal A Bancada cresceu ainda mais na atual
e 5,4 bilhões para o Pronaf (Programa legislatura, iniciada em 2019, somando
Nacional de Fortalecimento da Agri- 245 deputados e 39 senadores, o que
cultura Familiar). Já em 2016/2017, estes corresponde a 47,8% da Câmara e 48,1%
valores pularam para R$ 232,88 bilhões do Senado.
no total, sendo R$ 202,88 bilhões para Neste cenário, ao mesmo tempo que
a agricultura patronal e R$ 30 bilhões o agronegócio se fortalecia, a reforma
para a agricultura familiar. Isto sem fa- agrária – enquanto política estrutu-
lar nos subsídios, que segundo Delgado ral de reordenamento das relações de
(2012) somaram R$ 86,6 bilhões entre propriedade e de produção no campo
2000 e 2010. brasileiro – foi sendo deixada de lado,
No rastro do crescimento econômi- limitando-se a política agrária à criação
co, o agronegócio foi também se fortale- de assentamentos em áreas mais confli-
cendo politicamente. Não à toa, pratica- tuosas. Contribuiu também para isso a
mente todos os ministros da Agricultura elevação do preço das terras, no rastro
nas últimas duas décadas foram figuras da expansão das commodities (Delgado,
de destaque do agronegócio, como Ro- 2012). Com isso, mesmo os assentamen-
berto Rodrigues (então presidente da tos anteriormente criados passaram a
Abag) no primeiro governo Lula, Kátia ser visados pelo agronegócio, em seu
Abreu (à época, presidente da Con- movimento expansivo em busca de novas
federação Nacional da Agricultura) terras. Almeida (2009) denominou de
no governo Dilma, Blairo Maggi (um agroestratégias um conjunto articula-
dos maiores produtores de soja e dono do de discursos, ações e mecanismos
da maior empresa de processamento e construídos por agências multilaterais e
comercialização de soja brasileira) no go- conglomerados financeiros e agroindus-
verno Temer e Teresa Cristina no gover- triais para incorporar novas terras para
no Bolsonaro. Além disso, no primeiro a expansão da produção de commodities
governo Lula, o Ministro do Desenvol- agropecuárias. Segundo o autor, essa
vimento, Indústria e Comércio Exterior visão se associa a “uma imagem hiperbo-
foi o ex-presidente da Sadia (uma das lizada do Brasil e de seu potencial agrí-
maiores empresas do setor de carnes na cola. De acordo com esta formulação, no
ocasião), Luiz Fernando Furlán. Brasil, a terra seria um bem ilimitado e
Talvez a maior expressão política permanentemente disponível” (Almeida,
do fortalecimento do agronegócio seja o 2009, p. 68).
crescente poder da Bancada Ruralista, Nessa perspectiva, áreas de pre-
maior e mais influente bancada setorial servação ambiental, terras indígenas,
do parlamento brasileiro. Denominada quilombolas, de assentamentos rurais
oficialmente de Frente Parlamentar e de uso comum são obstáculos a serem
da Agropecuária, vem atuando na de- removidos, visando ampliar a oferta de
fesa dos interesses do agronegócio no terras no mercado que vive um momento
Congresso; na legislatura 2014-2018, de intenso aquecimento, derivado do

99
AGRONEGÓCIO

crescimento da demanda internacional como aumenta o número de empresas


A por commodities agrícolas e do cres- envolvidas em negócios com terras em
cente interesse de grupos estrangeiros todo o mundo.
na aquisição de terras no Brasil. Esse Essa demanda global por terras tem
aquecimento, que vinha se dando desde sido denominada land grabbing ou aca-
o início dos anos 2000, se intensifica paramiento de tierras, não havendo ainda
a partir da crise econômica de 2008, uma expressão brasileira de consenso.
quando ocorre uma nova rodada de Trata-se de um processo de captura de
investimentos financeiros de capitais terras, com fins produtivos ou especu-
ociosos e especulativos em busca de lativos, operado por agentes financeiros
rendimento a juros. Um dos focos desses e empresariais de diversos setores, com
investimentos é o mercado de terras, seja sustentação estatal, na escala de milhares
para investir na produção de alimentos de hectares em diversas áreas do mundo.
e agrocombustíveis, cujos preços estão A captura de terras pode acontecer
em elevação, seja por a terra ser vista de inúmeras formas, tanto legais – com-
em períodos de crise como uma reserva pra, arrendamento – quanto ilegais de
de valor. Assim, amplia-se a presença no apropriação das terras – como os casos
país de empresas estrangeiras que atuam de grilagem, baseados na falsificação de
no agronegócio, mas também empresas e títulos de propriedade. Envolve, ainda,
fundos de investimentos para quem a ter- mudanças na legislação fundiária de
ra é um meio de valorização do capital, o vários países, de forma a facilitar a aqui-
que podemos chamar de “terceirização” sição de terras por estrangeiros, o que,
dos negócios com terras. Esse interesse segundo Levien (2014), vai redefinir o
estrangeiro nas terras brasileiras incide “gerenciamento” das terras no mundo,
no controle sobre as terras, recurso na- criando especificidades nos usos e formas
tural, genético e energético central nas de propriedade privada da terra em cada
disputas geopolíticas após 2008. território. McMichael (2014), por sua
Vale destacar que esse não é um vez, chama a atenção para o fato de que
processo restrito ao Brasil. Segundo esta dinâmica pode implicar transfor-
relatório da Grain (2016), estima-se que, mações da função social da proprieda-
entre 2008 e 2016, cerca de 40 milhões de da terra que abrem caminho para a
de hectares de terras tenham sido nego- transformação desta em ativo financeiro
ciados no mundo. A organização aponta e imobiliário. Nesse sentido, processos
que, em 2008, este processo envolveu de regularização fundiária são funda-
cerca de 100 empresas e 30 milhões de mentais para dar segurança jurídica ao
hectares, aumentando para 35 milhões capital investido em terras. Em outras
de hectares em 2012 e chegando a 40 palavras, dificilmente o land grabbing
milhões de hectares transacionados por ocorre sem a participação do Estado.
490 empresas em 78 países, em sua maio- No Brasil, o principal exemplo disso
ria no Sul Global, como destaca também é a Lei 13.465/2017, também conhecida
Sassen (2016). Tais dados relevam que o como “Lei da Grilagem”. Entre outras
processo de aquisição e negociações de coisas, sob o manto da regularização
terras continua crescendo e se expan- fundiária, ela legaliza os processos de
dindo, geograficamente localizado, assim grilagem de terras e abre caminho para

100
AGRONEGÓCIO

a privatização das terras dos assentamen- pesquisa apoiado pela Oxfam Paraguay e
tos rurais, aprofundando a mercantiliza- produzido por Guereña; Villagra, (2016), A
ção da terra. Outro exemplo é a pressão cerca de 14% das terras estaria em poder
dos ruralistas contra a demarcação de de brasileiros.
terras indígenas e quilombolas e contra No território brasileiro, a expan-
a desapropriação de terras para a reforma são do agronegócio se materializa no
agrária, paralisadas desde o golpe que avanço da fronteira agrícola, principal-
levou Temer à presidência, com forte mente sobre áreas do Cerrado, que é a
apoio do agronegócio. principal região brasileira produtora de
Com a expansão geográfica do pro- grãos, apresentando os maiores índices
cesso de captura de terras, Harvey (2004) de produtividade em diversas culturas
sinaliza que vários países se tornaram como soja, algodão herbáceo, milho,
alternativas para o aumento e expansão da café e cana-de-açúcar. Mas o Cerrado é
produção de commodities agrícolas, geran- também um dos principais mananciais
do novas ondas de grilagem e monopólio do país, com águas vertendo para as
fundiário que corroboram com a trans- bacias dos rios Paraná, São Francisco,
formação das relações sociais e territoriais Tocantins e Parnaíba e a presença dos
como um todo. Na América Latina, se- aquíferos Urucuia, Guarani e Bambuí.
gundo Svampa (2013), estamos vivendo, o Hoje, com o agronegócio consolidado
chamado “consenso das commodities”, quer no Cerrado de Mato Grosso, Goiás e
dizer, uma espécie de consenso político e Mato Grosso do Sul, a expansão se volta
ideológico de que a única via legítima ou para o Matopiba, que envolve as áreas
possível para o desenvolvimento passa pela de Cerrado dos estados do Maranhão,
exploração intensiva e em grande escala Tocantins, Piauí e Bahia. O Matopiba
de recursos naturais para a produção de concentra grandes unidades de conser-
produtos primários. vação do Cerrado brasileiro; não obstan-
Assim, configura-se uma nova te, é considerado pelo agronegócio como
­geopolítica de recursos naturais e terras, a última fronteira agrícola do Brasil, com
marcada por uma guinada das políticas grande interesse das empresas atuantes
neoliberais destinadas à agricultura e no mercado de terras. Essas empresas,
ao comércio de alimentos em propor- de capital nacional e internacional,
ção global. O agronegócio brasileiro se atuam por meio da aquisição de terras
integra amplamente a essa dinâmica, “brutas” e na venda dessas propriedades
sendo o Brasil, ao mesmo tempo, país depois de convertidas em áreas agrícolas
de origem e destino dos investimentos. desenvolvidas (Pitta; Mendonça, 2015).
Isto é, ao passo que capitais estrangeiros, Evidencia-se que a incorporação de
principalmente dos EUA, da UE e da novas áreas é condição fundamental para
China chegam ao país para adquirir ter- a dinâmica do agronegócio, ampliando o
ras, também observamos investimentos domínio territorial e abrindo novas fron-
de empresas e empresários brasileiros teiras por meio da “acumulação por es-
em terras de países da África, como poliação” (Harvey, 2004), processo vio-
Tanzânia e Moçambique, ou da Amé- lento de apropriação e expropriação dos
rica Latina, como Argentina, Bolívia recursos naturais, terras e territórios que
e Paraguai, onde, segundo relatório de imprime nos territórios padrões de con-

101
AGRONEGÓCIO

flito expressos em sistemáticos despejos, Além das questões do desmatamen-


A cessão irregular de terras, cerceamento to e dos agrotóxicos, também a água
de acessos públicos, cercamento de terras [ver Á gua] tem se mostrado objeto de
de uso coletivo, impedimento de acesso à disputas que revelam a face desigual e
água, captação em escala industrial dos perdulária do agronegócio. Um episódio
recursos hídricos, desmatamentos, entre ocorrido em novembro de 2017 ilustra
outros conflitos. Observa-se, assim, que bem essa situação. No município de
a violência é parte constitutiva da lógica Correntina, no oeste da Bahia, uma
do agronegócio, haja vista a persistência, fazenda que captava água de um rio,
em pleno século XXI, de elevados índices que historicamente garantia água para
de assassinatos, despejos e expulsões nas a população local, foi depredada por
disputas por terra no país, com requintes moradores insatisfeitos com a falta de
de crueldade, quando se considera que água para beber, enquanto a fazenda
em 2017 foram nada menos que cinco utilizava-a em larga escala para irriga-
massacres de camponeses, quilombolas ção. O conflito de Correntina chamou
e indígenas no campo brasileiro. a atenção para o fato de que 70% da
Defrontados com tais críticas, os água doce utilizada no Brasil é destina-
representantes do agronegócio buscam da à irrigação, muitas vezes através de
reconfigurar o discurso e a imagem, pivôs-centrais que desperdiçam grandes
escamoteando suas práticas históricas de quantidades de água, enquanto falta
violência no campo. Mas o agronegócio água nos lares de muitos brasileiros e
tem enfrentado dificuldades para impor não por escassez de chuva, mas pela
sua agenda e criar uma boa imagem apropriação desigual do elemento.
pública. Talvez a principal delas venha Para contornar essas críticas, o agro-
dos embates no campo ambiental. O negócio buscou desenvolver um discurso
primeiro grande embate neste sentido de sustentabilidade e responsabilidade
foi a reforma do código florestal [ver ambiental (Bruno, 2008). Dentre essas
C ódigo Florestal], defendida pelos re- ações, destaca-se o “Movimento de Va-
presentantes do setor, mas que contri- lorização do Agronegócio – Sou Agro”,
buiu para associá-lo ao desmatamento criado em 2011, que utilizava em suas
e à destruição das florestas. O segundo campanhas publicitárias conhecidos
embate nesse campo refere-se à discussão atores globais para difundir uma imagem
sobre os agrotóxicos [ver Agrotóxicos], positiva do agronegócio. O foco principal
insumos intensamente consumidos pelo do movimento era desfazer o que consi-
setor. Diante de pressões como a da deravam discriminação das populações
“Campanha contra os Agrotóxicos e pela urbanas contra o setor, decorrente do
Vida”, articulada por diversas entidades suposto desconhecimento do seu papel
ambientalistas e movimentos sociais do na sociedade brasileira sobre a “vocação
campo e da cidade, o agronegócio tem agrícola” do país e seu potencial para ser
buscado estratégias as mais diversas, o “celeiro do mundo”, isto é, contribuir
desde mudar a legislação para alterar para combater a fome [ver F ome] que
o nome oficial desses produtos para assola muitas pessoas mundo afora.
“defensivos agropecuários” até negar os Outro instrumento de difusão da
malefícios destes. imagem do agronegócio que vem sendo

102
AGRONEGÓCIO

desenvolvido nas últimas décadas são as articulação entre complexo agroindustrial,


intervenções junto às escolas. A princi- propriedade fundiária monopolizada e A
pal dessas iniciativas é o Programa Edu- financiamento estatal. Poderíamos acres-
cacional Agronegócio na Escola, criado centar a sustentação político-ideológica da
em 2001 pela seção da Abag de Ribeirão grande mídia empresarial como outra base
Preto (SP) e que, por meio de convênios, fundamental do agronegócio – não à toa,
busca incidir sobre as escolas públicas os grandes grupos empresariais da mídia
da região, que conta com 90 municípios integram a Abag.
(Lamosa, 2016). Inicialmente foi feito O fato é que a expansão constante
um convênio com a Secretaria de Edu- do agronegócio significa a intensificação
cação do Estado de São Paulo para atuar da repressão e da violência na expro-
em escolas do Ensino Médio, o qual se priação das terras e das lavouras que
encerrou em 2008. De 2009 em diante, produzem alimentos para a população.
os convênios passaram a ser feitos com Lavouras estas que são, predominante-
as secretarias municipais, com foco nos mente, dos pequenos produtores, povos
alunos do 8° e 9° ano do Ensino Funda- indígenas, quilombolas e camponeses em
mental. O programa, que começou sendo suas várias formas de viver.
realizado em sete municípios, chegou a Os dados recentemente publicados
75 em 2012, envolvendo 150 professores pelo IBGE como resultados do Censo
e 14 mil alunos. Somados os anos de rea- Agropecuário de 2017 indicam que au-
lização do Programa, entre 2001 e 2013, mentou a concentração de terras com os
a Abag contabilizou 110 mil estudantes grandes estabelecimentos com mais de
envolvidos, que participaram de visitas a mil hectares, que são apenas 1% do total,
eventos e empresas do agronegócio e de passando a controlar 47,5% das terras,
concursos de redação, frases e desenhos. contra 43% no Censo de 2006. Também
Os professores, por sua vez, concorriam houve redução do pessoal ocupado na
a premiações decorrentes das atividades agropecuária, de 16,5 milhões para 15,5
realizadas (Lamosa, 2016).1 milhões, e aumento dos produtores que
O uso desse conjunto de estratégias usam agrotóxicos, cujo índice passou de
de propaganda revela os esforços do 26,9% em 2006 para 33,1% em 2017. A
agronegócio para se afirmar perante a esses dados podemos somar a informação
sociedade brasileira. Mas não tem sido de outra pesquisa do IBGE, a Pesquisa
fácil, diante das contradições que lhe são Agrícola Municipal, que aponta um
inerentes, pois, como nos lembra Delga- crescimento de 30 milhões de hectares
do (2012), a superexploração do trabalho na área plantada com soja, milho e cana-
(expressa na extensão da jornada de -de-açúcar e uma redução de 5 milhões
trabalho dos assalariados rurais e na de hectares na área plantada com arroz,
multiplicação de acidentes de trabalho e feijão e mandioca.
aposentadorias por invalidez no campo) Fica evidente, portanto, que esse
e dos recursos naturais (desmatamento, modelo agrário hegemonizado pelo agro-
uso cada vez mais intensivo de agrotó- negócio não interessa ao povo brasileiro,
xicos e de água) são bases fundamentais pois aumenta a desigualdade social, reduz
para a acumulação de capital no agrone- empregos, contamina alimentos, traba-
gócio, definido por esse autor como uma lhadores, solos e águas para ampliar a

103
AGRONEGÓCIO

produção de commodities controladas cada forma agrária e pelo desenvolvimento


A vez mais por corporações transnacionais, da agroeco­logia, sem o que o campo
ao passo que a área destinada à produção brasileiro continuará sendo um espaço
da comida dos brasileiros decresce. de violência, de devastação, de superex-
A superação do modelo do agro- ploração do trabalho e de desigualdades
negócio passa pela retomada da re- profundas.
Referências
ALMEIDA, A. W. B. Agroestratégias e desterritorialização – os direitos territoriais e étnicos na mira
dos estrategistas dos agronegócios. In: Federação de Órgãos para Assistência Soc. e Educacional. O
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BRUNO, R. Movimento sou agro: marketing, habitus e estratégias de poder do agronegócio. 36° Encontro
Anual da ANPOCS. Caxambu/MG, 2008.
DELGADO, G. C. Do “capital financeiro na agricultura” à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em
meio século (1965-2012). Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2012.
GRAIN. El acaparamiento global de tierras en el 2016 – sigue creciendo y sigue siendo malo. Barcelona, 2016.
GUEREÑA, A.; ROJAS VILLAGRA, L. Yvy Jára – Los dueños de la tierra en Paraguay. Asunción:
OXFAM, 2016.
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HEREDIA, B.; LEITE, S. P.; PALMERA, M. Sociedade e Economia do “Agronegócio” no Brasil. Revista
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LAMOSA, R. A. C. Educação e agronegócio: a nova ofensiva do capital nas escolas públicas. Curitiba:
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LEVIEN, M. Da acumulação primitiva aos regimes de desapropriação. Sociologia e Antropologia, v.4,
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MCMICHAEL, P. Rethinking Land Grab Ontology. Rural Sociology, 79, jan. de 2014.
PITTA, F. T.; MENDONÇA, M. L. A empresa Radar S/A e as especulações com terras no Brasil. São
Paulo: Outras Expressões/Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2015.
SASSEN, S. Expulsões: brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e
Terra, 2016.
SVAMPA, M. “Consenso de los commodities” y lenguages de valoración en América Latina. Revista
Nueva Sociedad, n. 244, 2013.

Nota
1
Outra iniciativa importante neste campo é o Programa Agrinho, criado pela Federação da Agricultura
do Estado do Paraná no final dos anos 1990 e posteriormente replicado em outros estados.

Commodities
O termo commodities (mercadoria, em inglês) se refere a um conjunto específico de produtos
que tem escala, padrão e cotação internacional de produção e comercialização. São, em geral,
matérias primas minerais ou agrícolas, ou produtos semielaborados, tais como soja, milho, trigo,
café, minério de ferro, aço, alumínio, petróleo.
Estes produtos são produzidos em larga escala em vários países do mundo, não apresentam
diferenças significativas do ponto de vista qualitativo – ainda que entre os minerais haja algumas
diferenças importantes de teor – e são destinados principalmente para o comércio internacional.
A comercialização deles é dominada por grandes corporações transnacionais e a cotação interna-
cional destes produtos é definida em bolsas de valores específicas, como a Bolsa de Chicago para
as commodities agrícolas e as Bolsas de Londres e Nova Iorque para o petróleo. Nestas bolsas e em
várias outras espalhadas pelo mundo as commodities são transacionadas todos os dias, às vezes com
antecipação de 5 anos em relação à produção, isto quer dizer, por exemplo que a soja plantada hoje
já foi vendida em 2016 e a soja vendida hoje só será plantada em 2026...
Para uma análise mais pormenorizada de como se desenvolveu a formação das commodities
agrícolas e sua importância atual ver o verbete Commodities agrícolas no Dicionário da Educação
do Campo.

104
AGROTÓXICOS

A
AGROTÓXICOS

K ar en Fr iedr ich
Vicente E duar do S oar es A lmeida

Agrotóxico é o termo utilizado na são: o registro, a fiscalização, o monitora-


Constituição Federal (Brasil, 1988) e na mento e a vigilância de agrotóxicos.
lei federal 7.802 de 1989 (Brasil, 1989). O registro de um novo produto
Os agrotóxicos são definidos na agrotóxico é avaliado pela área da saú-
legislação brasileira de 1989 como de, represenxtada pela Anvisa; do meio
os produtos e os agentes de processos ambiente, pelo Instituto Brasileiro do
físicos, químicos ou biológicos desti- Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
nados ao uso nos setores de produção, Renováveis (Ibama); e da agricultura,
no armazenamento e beneficiamento pelo Ministério da Agricultura, Pecuá­
de produtos agrícolas, nas pastagens, ria e Abastecimento (Mapa) (Brasil,
na proteção de florestas, nativas ou 1989; Brasil, 2002). Cada órgão avalia
implantadas, e de outros ecossiste- o produto sob sua área de competência.
mas e também de ambientes urbanos, Caso um deles encontre algum aspecto
hídricos e industriais, cuja finalidade
impeditivo de registro, o produto não
seja alterar a composição da flora ou
deve ser registrado.
da fauna, a fim de preservá-las da ação
danosa de seres vivos considerados De acordo com a legislação brasilei-
nocivos. (Brasil, 1989) ra de 1989, é proibido o registro de agro-
tóxicos que causem danos ambientais,
Neste verbete, serão apresentados para os quais não existam antídotos;
conceitos e informações básicas que pos- ou que causem mutação genética, cân-
sam subsidiar a discussão sobre agrotóxicos cer, distúrbios hormonais, problemas
em diferentes espaços, voltando-se para reprodutivos e más-formações fetais
fatores que influenciam o uso desses pro- (teratogênese) (Brasil, 1989). Ainda
dutos e aumentam seus danos à saúde e ao assim, por diversas razões existem pro-
ambiente. Também será discutido o motivo dutos amplamente usados no mercado
pelo qual esses fatores que promovem o brasileiro com potencial de causar esses
uso de agrotóxicos se mostram, ao mesmo efeitos, dentre os quais:
tempo, como barreiras ao desenvolvimento a) autorização há mais de 30 anos
da agricultura de base agroecológica. sem o produto ter passado por
processo de revisão de registro
Regulação de agrotóxicos contemplando estudos científi-
Diferentes instâncias do Estado cos mais atualizados; manifes-
brasileiro possuem funções específicas tação de efeitos não esperados
e intransferíveis no que diz respeito a quando na presença de outros
questões pertinentes à saúde, ao meio agrotóxicos ou de componentes
ambiente e à agricultura. Essas funções presentes nos produtos formula-

105
AGROTÓXICOS

dos cuja investigação não é soli- crianças, mostram o aparecimento de


A citada no momento do registro; doenças que não haviam sido identifica-
b) pouca ou ausência de sensibili- das ou previstas no momento do registro
dade dos estudos experimentais do produto, como câncer, problemas
patrocinados pelas indústrias nos fetos, abortos, infertilidade, impo-
que tem como objetivo subsi- tência etc. (Aguiar, 2017; Gurgel, 2017;
diar a autoridade regulatória Pignati et al., 2017; Friedrich, 2017).
da área da saúde (no Brasil, Efeitos sobre a biodiversidade (abelhas,
a Anvisa). A metodologia dos pássaros, entre outros) também têm sido
estudos exigidos das indústrias observados, motivando a restrição de
é pouco sensível para detectar agrotóxicos em outros países (European
esses efeitos; manifestação de Comission, 2013). Estudos científicos
efeitos como mutação genética, e relatos de apicultores têm mostrado
danos sobre o sistema de defesa uma queda expressiva de populações
(imunológico) ou hormonal de abelhas em diversas partes do Brasil
(endócrino) de organismos vi- e do mundo.
vos; e As iniciativas de Estado de moni-
c) fragilidade e assimetria nas torar os danos e a presença de resíduos
ações de mediação entre os in- de agrotóxicos em água, alimentos e no
teresses públicos e de grandes meio ambiente, ou de promover ações
setores econômicos. (Friedrich, de vigilância das populações expostas,
2013; 2017; Gurgel, 2017) mostram-se insuficientes para desenhar
Estudos científicos independentes a real presença desses químicos no
têm demostrado que, muitas vezes, o nosso dia a dia e avaliar seus reais ou
produto formulado pode ser mais tóxico potenciais impactos. O monitoramento
que o ingrediente ativo (IA) testado da água para o consumo humano é
para aprovação do uso e comercializa- previsto na Portaria 2.914/2011 do Mi-
ção (Mesnage; Antoniou, 2018). Um nistério da Saúde, sendo que a água de
exemplo é o IA glifosato, que tem como rios, lagos etc. deve ser monitorada de
produto comercial mais conhecido o acordo com diretrizes da resolução do
Roundup, fabricado pela empresa de Conama (Conselho Nacional do Meio
agrotóxicos e de sementes transgêni- Ambiente) (Brasil, 2005).
cas Monsanto, adquirida em 2016 pela Do mesmo modo, alimentos de
Bayer (que, além de produzir agrotó- origem animal ou in natura são moni-
xicos e transgênicos, também produz torados pela Anvisa ou pelo Mapa. Os
medicamentos) [ver Transgênicos]. Em resultados são preocupantes, tanto por
diversos estudos, o Roundup e outros conta da presença de IA não autoriza-
produtos à base de glifosato mostraram dos como pelo fato de serem utilizados
maior incidência em danos celulares, acima dos limites máximos permitidos,
genéticos e más-formações do que o IA ou mesmo que não tem registro no
isolado (Almeida et al., 2018; Mesnage Brasil (Agência Nacional de Vigilância
et al., 2015). Estudos em populações Sanitária, 2016). Outro aspecto impor-
de trabalhadores/as ou moradores/as tante é a presença de misturas de IA em
de áreas rurais, incluindo gestantes e uma única amostra coletada e analisada

106
AGROTÓXICOS

que também foi observada no Programa, ambientais, como os que atingem as


sendo que mais de 20% apresentavam espécies não alvo. A
três ou mais resíduos (Agência Nacional Os efeitos agudos são muito co-
de Vigilância Sanitária, 2016). Dados de muns em trabalhadores da agricultura,
monitoramento de produtos industriali- da indústria química ou aplicadores
zados são ainda mais escassos. de produtos domissanitários nas resi-
A fiscalização da comercialização e dências ou em controle de endemias
do uso dos agrotóxicos é realizada, em (campanhas de Saúde Pública). Eles
geral, por órgãos vinculados à agricul- podem também se manifestar a partir
tura e tem como principal instrumento do consumo de água ou de alimentos
as indicações previstas em bula e o contaminados com grandes quanti-
que é prescrito através de receituário dades de agrotóxicos. São ainda afe-
agronômico. No entanto, uma das prin- tados moradores próximos a áreas de
cipais lacunas de informação está na aplicação, principalmente onde ocorre
não publicitação dessas prescrições e, a pulverização aérea, que incluem cam-
portanto, no que é comercializado por poneses, assentados da reforma agrária
cultura, por município e para quais tipos e acampados, comunidades indígenas,
de problemas agronômicos. quilombolas, dentre outros. Alguns
Os órgãos de saúde das três esfe- casos mais emblemáticos merecem
ras de governo atuam para prevenir, destaque, como a pulverização aérea
diagnosticar e tratar as intoxicações de uma escola rural no município de
das populações expostas. Nesse caso, Rio Verde, Goiás, em 2013, com o
dificultam o planejamento e a eficácia inseticida Engeo Pleno da Syngenta
dessas ações a ausência de informa- (composto pelos ingredientes ativos
ções mais apuradas sobre os produtos tiametoxam e lambda-cialotrina), que
comercializados, aplicados e, principal- levou à intoxicação de 92 pessoas,
mente, dispersados por aeronaves; e o dentre elas estudantes e trabalhado-
diagnóstico e notificação dos casos de res e trabalhadoras (Carneiro et al.,
intoxicação e óbito associados aos agro- 2015). Em 2018, foram relatados mais
tóxicos. A notificação das intoxicações de 90 casos de intoxicação aguda pelo
exógenas por agrotóxicos é compulsória herbicida Paraquat, sendo que mais
e os dados são disponibilizados pelo de 50 eram crianças, também em uma
Sinan/Datasus. escola rural, dessa vez no Paraná. A
pulverização aérea tem sido a causa
Efeitos sobre a saúde de muitos casos de intoxicação aguda,
Os efeitos que os agrotóxicos cau- mas também de efeitos mais tardios
sam sobre a saúde humana podem ser (crônicos).
agrupados em agudos e tardios. Agudos Já os efeitos crônicos, que podem
são os efeitos imediatos e que ocorrem ocorrer através do contato com quanti-
nas primeiras 24 horas após a exposição; dades pequenas de agrotóxicos, tendem
tardios são os que podem ocorrer muito a se manifestar em uma população ainda
tempo após a exposição, meses, anos ou maior. Esses efeitos incluem problemas
décadas. Essas duas classificações tam- reprodutivos, alterações nas funções
bém podem ser utilizadas para danos dos hormônios, do sistema de defesa

107
AGROTÓXICOS

do organismo (imunológico), câncer, vivos (Tabela 1), sendo que um agro-


A dentre outros. Um estudo realizado no tóxico pode causar diferentes efeitos
estado do Ceará, mais especificamente ao mesmo tempo. Do mesmo modo
na Chapada do Apodi, em uma área que a classificação relativa ao tempo
dominada pela fruticultura irrigada, para aparecimento dos efeitos (agudos/
mostrou casos de más-formações congê- crônicos), vários desses efeitos podem
nitas e puberdade precoce em crianças se manifestar em diferentes espécies
da região (Aguiar, 2017). animais vertebrados ou invertebra-
Outro modo de classificação dos dos, e ainda, vários IA podem exercer
agrotóxicos é quanto ao órgão ou efeitos tóxicos em diversos órgãos e
função fisiológica que esses produtos funções vitais dos seres vivos (Pettis
afetam nas pessoas ou em outros seres et al., 2012).

Tabela 1 – Classificação dos agrotóxicos conforme


órgão ou função fisiológica afetada
Característica do produto Órgão ou função fisiológica afetada
Neurotoxicidade danificam o sistema nervoso
Hepatotoxicidade prejudicam o fígado
Nefrotoxicidade prejudicam os rins
Imunotoxicidade comprometem as funções do sistema de defesa (imunológico)
Desregulação endócrina alteram as estruturas ou funções dos hormônios e glândulas
Cancerígenos ou carcinogênicos causam câncer
Teratogênicos causam problemas na formação do embrião ou do feto
Mutagênicos causam alterações no material genético
Fonte: Elaboração própria

Diversas restrições impostas aos exposição (por exemplo, ingestão diária


trabalhadores e trabalhadoras para que aceitável) que não consideram as situa-
preservem sua saúde e o meio ambiente ções reais de uso (misturas, grupos mais
podem ser impossíveis de serem adota- vulneráveis, falta de informação sobre
das frente aos determinantes sociais perfil de contaminação de água e ali-
que o modelo do agronegócio impõe às mentos etc.) (Carneiro et al., 2015). Do
populações do campo (Abreu; Alonzo, mesmo modo, mais distante ainda dos
2016; Carneiro et al., 2015; Gurgel, 2017; processos decisórios está uma avaliação
Friedrich, 2017; Pignati et al., 2017). integrada entre danos ambientais e seus
O risco acumulado de um ingre- reflexos sobre as populações humanas.
diente ativo usado ao mesmo tempo
na agricultura, no ambiente domésti- Papel da ciência, ciência
co, nas campanhas de saúde pública, independente e Cartel do Veneno
como medicamentos veterinários, não A atuação da ciência na temática
é avaliado, mas ainda assim os produtos dos agrotóxicos pode ter um papel con-
são aprovados pelas autoridades regula- traditório. Áreas como a toxicologia e a
tórias que definem limites “seguros” de química subsidiam a definição dos limi-

108
AGROTÓXICOS

tes “seguros” para a exposição humana tóxicos e Transgênicos. Essas formas


e a dispersão ambiental, mas raramente de organização têm papel crucial para A
ponderam sobre as limitações metodo- reunir denúncias, dados técnicos e cien-
lógicas, apontadas anteriormente nesse tíficos, atuar para o cumprimento da lei
texto. Em contrapartida, frequente- e fortalecer modos de produção agrícola
mente culpabilizam os agricultores orgânicos e agroecológicos.
como responsáveis pelas intoxicações e
danos ambientais decorrentes (Abreu; Modelo de produção e de
Alonzo, 2016). desenvolvimento no campo
A desqualificação e os ataques so- Segundo o IBGE (2015), em seu re-
fridos pela pesquisadora Rachel Carson latório sobre Indicadores de Desenvolvi-
ao denunciar os efeitos dos agrotóxicos mento Sustentável, o uso de agrotóxicos
para o grande público (Carson, 2015) se estaria associado a ganhos de produti-
repetem de forma coordenada ao longo vidade no atual modelo agrícola. No
da história (Pinheiro; Nasr; Luz, 1998; entanto, estudos indicam que o uso de
Van den Bosch, 1978; Shiva, 2017). No agrotóxicos no Brasil estaria associado
Brasil, tanto ataques a cientistas e insti- a uma lógica muito mais econômica (de
tuições como ameaças e assassinatos de mercado e de dependência tecnológica)
lideranças camponesas que denunciam do que no incremento da produção de
contaminações são frequentes e inibem alimentos (Almeida et al., 2017). Entre
a atuação e a inserção de novos atores os anos de 2000 e 2012, o consumo de
nessa luta. Nesse contexto, toda a so- agrotóxicos no Brasil cresceu 10 vezes
ciedade perde, pois tais incursões e suas mais do que a população e quase o do-
consequências repercutem na definição bro da produtividade. Na soja, principal
e execução de políticas públicas volta- cultura transgênica do país, para cada
das à preservação da biodiversidade, tonelada de agrotóxico usado houve
segurança alimentar, prevenção de uma diminuição da produtividade de
doenças crônicas, promoção de saúde 16 toneladas em grãos colhidos ao fim
e agroecologia. do período estudado, o que revela que
o modelo econômico privilegia a in-
Papel da sociedade civil tensificação da dependência química,
Em 2011, a partir da criação da auferindo maior taxa de lucro para a
Campanha Contra os Agrotóxicos e indústria do veneno/semente, em con-
Pela Vida, que tem a adesão de organi- traposição ao necessário zelo pela boa
zações científicas, movimentos sociais técnica agrícola e o respeito ambiental
e pesquisadores, ações de comunicação e a saúde da população.
e divulgação de dados sobre os im- A União Europeia, por exemplo, por
pactos dos agrotóxicos ganham força. meio do seu regulamento n. 1185/2009
Ao mesmo tempo, diversos setores do (European Comission, 2009), estabele-
Ministério Público passam a atuar de ce mecanismos relativos às estatísticas
forma mais coordenada em torno do sobre os agrotóxicos que reforçam a
tema, por meio da criação de diversos necessidade de coleta de informações
Fóruns Estaduais e do Fórum Nacional estruturadas sobre o uso dessas subs-
de Combate aos Impactos dos Agro- tâncias, especialmente quanto à sua

109
AGROTÓXICOS

natureza e aplicação nas principais marginalização dos movimentos so-


A culturas plantadas na região. Dispor ciais; desmonte das políticas de refor-
de estatísticas pormenorizadas e atuali­ ma agrária, agricultura familiar e de
zadas sobre as vendas e a utilização de demarcação de terras indígenas; cortes
agrotóxicos em escala local é conside- orçamentários em áreas como saúde e
rado, pela União Europeia, como ins- educação; ataques sob diversas formas
trumento importante para análise das de direitos humanos.
políticas públicas e o desenvolvimento Sem dúvida, o modelo agrícola do
sustentável, por meio de indicadores presente deve se voltar à sustentabilidade
agroambientais relevantes sobre os ambiental e à saúde, dimensões cada vez
riscos para a saúde e ambiente. mais presentes na demanda civilizatória
O Brasil, no entanto, caminha a global dos Estados. E, para isso, a informa-
passos largos no sentido inverso, por ção e a participação ativa da sociedade no
meio das diversas medidas voltadas à controle e monitoramento do uso dessas
desregulamentação na área de agrotóxi- substâncias, assim como buscar estabele-
cos, transgênicos, segurança alimentar, cer a agroecologia como a política pública
meio ambiente e trabalho; ao desmonte prioritária para a agricultura brasileira
dos órgãos de fiscalização; cerceamento é, portanto, o único caminho possível,
das pesquisas independentes e perse- pois dele depende a sobrevivência das
guição de docentes e pesquisadores; populações humanas e dos ecossistemas.

Referências
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que dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o
armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o
destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização
de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federa-
tiva do Brasil, 2002. Brasília, Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/
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______. Lei n. 7.802, de 11 de julho de 1989. Dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a
embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial,
a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a clas-
sificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, e dá outras

110
AGROTÓXICOS

providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 1989. Brasília, Brasil. Disponível em: http://
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111
ÁGUA

A
ÁGUA

A ndr é M onteiro C osta

A construção de sentidos se dá remetem ao jogo dos encontros, dos


no processo de interação social, entre relacionamentos, afetos e prazer. Por
sujeitos, na disputa de narrativas (Koch, fim, existem as águas energizantes, das
1997). Há uma motivação, que pode ser florestas, corredeiras e cataratas, com
por processos de objetificação-material, seus habitantes, exuberância e abun-
como produção de sentido da água dância da paisagem.
como mercadoria, que no contexto capi- Essas sete águas, como perspecti-
talista é hegemônico. E há processos de va filosófica e expressão artística da
subjetivação-simbólica, como produção existência humana e não humana na
de sentidos da água como bem comum. terra, conformam a produção de sen-
Gaston Bachelard (2018), no livro tidos da água como pulsão de vida,
A água e os sonhos: ensaio sobre a ima- de subjetivação, que contribuem para
ginação da matéria, traz a produção de produzir e reproduzir a vida, material e
sentidos em que há pulsão de vida e simbolicamente.
de morte. Como uma arqueologia da Uma outra produção de sentido
água, sugere trilhas para se desvendar das águas se relaciona com a pulsão de
esses sentidos. morte, de objetificação e apropriação
Na coreografia “Água”, de 2001, pelo capital: a água como mercadoria
criada para o Brasil, Pina Bausch – ou commodity. As águas domadas1 se
inspirada em Bachelard – recria sete caracterizam pela artificialização de
sentidos de vida para as águas. As águas cursos d’água por barramentos para
claras nos remetem “a todos os jogos acúmulo em reservatórios, como os
das águas claras, das águas primave- açudes, barragens, hidroelétricas e a
ris, cintilantes de imagens, é preciso artificialização de rios, como os canais e
acrescentar um componente de poesia: as transposições de bacias hidrográficas.
o frescor” (Bachelard apud Cypriano, As águas capturadas são as apropriadas
2005, p.123). As águas que vinculam pelo capital; podem ter como fonte as
invocam desejos e vontades na relação águas domadas, mas também os polos
com o outro, o amor. As águas místicas de irrigação ao longo de rios ou por ex-
são purificadoras, de renovação das tração de águas subterrâneas. As águas
forças sagradas e de religiosidade. Nas contaminadas percorrem todo o ciclo
águas festivas, o lúdico, os banhos de dos processos produtivos na agricultu-
rio, mar e piscinas aceitam os exces- ra, com os agrotóxicos e fertilizantes,
sos, desejos e transgressões (Cypriano, e na pecuária, com vacinas, medica-
2005). As águas mornas são relaxantes mentos, hormônios e excrementos. As
como o pôr-do-sol, estimulam encontros águas virtuais são as incorporadas aos
e aproximações. As águas sensuais processos produtivos na agricultura e

112
ÁGUA

que se constituem em commodities. O inter-relacionados na construção de


britânico Tony Allan (2003) cunhou sociedades mais democráticas e que A
o conceito de água virtual, em que tenham a vida (humana e não humana)
definiu mecanismos para estimar o como centralidade da ação coletiva:
volume de água utilizada em processos “os Direitos Humanos e os Direitos da
produtivos, exportados como commo- Natureza, que articulam uma ‘igualdade
dities; conectando assim, água, carne, biocêntrica’, sendo analiticamente dife-
grãos, frutas, cana-de-açúcar e negócio. renciáveis, se complementam e trans-
Os ecologistas chamam a água virtual formam em uma espécie de direitos da
de pegada hídrica. As águas dissipadas vida e direitos à vida”. Essa perspectiva,
são as vazões que deixam de compor o fundamentada na inclusão dos direitos
ciclo da água em decorrência de desma- da natureza nas constituições da Bolívia
tamento; compactação do solo; redução e do Equador, lança novos olhares para
da infiltração e alimentação dos aquífe- pensarmos a água como bem comum.
ros; aumento do escoamento superficial; Os povos originários e comuni-
assoreamento; redução de vazão de dades que vivem no modo de vida
base de aquíferos; redução de vazão tradicional (indígenas, quilombolas,
superficial de riachos e rios; alteração camponeses etc.) estabelecem vínculos
do regime de chuvas. As águas salini- de valor de uso com a água e os ecos-
zadas acontecem quando a intrusão sistemas. A terra, a vegetação, a água
salina adentra os rios em decorrência da e a paisagem são meios de produção e
redução da vazão dos rios que chegam reprodução de vida, que conformam a
ao mar, abaixo da vazão ecológica deter- identidade, portanto, têm uma dimensão
minada pelos órgãos ambientais, que é simbólica [ver Cosmovisões]. Esses povos
a vazão mínima que o rio deve alcançar e comunidades são os que protegem
na foz, evitando que o mar adentre o rio o ambiente. Onde há ecossistemas e
demasiadamente. As barragens super- biomas preservados na América Latina,
ficiais e subterrâneas também podem há o modo de vida tradicional. A pro-
passar por processo de salinização, por teção da vida e da água tem a resistên-
concentração de cloretos de sódio. As cia desses povos e comunidades. Esses
águas exterminadas são os riachos e territórios são os bens comuns, onde a
rios que secaram em seus trechos altos água é central, e onde há a pressão do
ou médios ou totalmente, bem como grande capital para transformá-los em
lagoas, lagos e aquíferos. Estes processos territórios de produção de commodities.
são decorrentes da alteração dos ciclos O sentido simbólico de uma indígena
de chuva, desmatamento, desertificação desvela esse lugar de fala: “a água não
[ver D esertificação] e superexploração pode ser privatizada, a água não tem
de água. dono, a água é do tempo, a água é dos
encantados. A nossa luta é pela vida, a
Água como Bem Comum água faz parte de nós e a água também
Com base em uma perspectiva do somos nós” (fala da indígena Tainá
bem comum, dos direitos da natureza Marajoara, Fórum Alternativo Mundial
e do direito humano, Acosta (2016, da Água, Brasília, março de 2018). No
p. 140) defende que estes devem estar mesmo Fórum, outra dimensão das

113
ÁGUA

águas místicas: “quando eu eduquei as pessoais e domésticos; as instalações


A minhas filhas, sempre tinha um dia da de água e de saneamento devem estar
semana em que saíamos sempre muito dentro ou próximas ao lar; o Estado
cedo, de manhã, sem falar nada. Íamos deve tomar medidas para concretizar
em silêncio à beira d’água, cantar para esses direitos (Organização das Nações
ela, louvar a água como forma de agra- Unidas, 2010). A água “deve ser segura
decimento à pureza de nossas relações” e de qualidade e não representar risco à
(fala da indígena Maria Alice Freire, saúde; deve ter cor, cheiro e sabor acei-
Conselho Internacional das Treze avós táveis, evitando que o indivíduo busque
Indígenas, 8o Fórum Alternativo Mun- fontes alternativas não seguras; e deve
dial da Água, março, 2018). ser acessível” (Neves-Silva; Heller,
Essas águas remetem também às 2016, p. 1866).
florestas, ao paraíso e aos mitos, como O abastecimento de água e o es-
nas viagens de barcas e suas carrancas gotamento sanitário são componentes
no São Francisco, que protegiam o do saneamento, que se caracteriza pela
nego ou caboclo d’água. Com o fim das relação do humano com seu ambiente,
barcas e a chegada dos vapores, Carlos referente à qualidade de vida; à saúde
Drummond de Andrade (2015, p. 177) – prevenção, proteção e promoção; à
pergunta: “Onde as carrancas?/O Rio segurança alimentar e nutricional; e à
São Francisco está sem mistério e poe- proteção ambiental. No Brasil (2006),
sia? [...] já não crê nos mitos que a figura a água foi considerada direito humano
de proa conjurava [...]?”. Destituir os antes da Resolução da ONU, por meio
mitos, o simbólico e os vínculos com as da Lei n. 11.346, que instituiu o Sistema
águas é desenraizar-se. Onde a poesia? Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional, ao considerar a água como
Água como Direito Humano alimento no Art. 40, inciso I.
O direito humano ao acesso à água As dificuldades postas ao acesso
está relacionado ao fato de que ela é adequado aos serviços têm valor subs-
imprescindível à reprodução da vida e, tancial e expressam-se no direito hu-
assim, da saúde. O acesso está relacio- mano fundamental, sem impedimentos
nado, fundamentalmente, às necessi- às tecnologias disponíveis, aos direitos
dades dos indivíduos e diz respeito aos sociais, em face dos quais “os indiví-
serviços de abastecimento de água e ao duos são iguais só genericamente, mas
esgotamento sanitário, este como água não especificamente” (Bobbio, 2004,
residuária. Este acesso pode se dar por p. 65). Nesse sentido, importa estabe-
serviços coletivos ou individuais. A lecer parâmetros para o acesso à água
ONU, por meio da Resolução 64/292, e suas barreiras, tais como as seguintes
de 28 de julho de 2010, declarou que o dimensões desenvolvidas e adaptadas de
acesso à água limpa e segura e ao sa- Fekete (1996): i) geográfica – aspectos
neamento básico são direitos humanos físicos que dificultam: distância, barrei-
fundamentais. Estes devem ter preços ras, acidentes geográficos, topografia; ii)
razoáveis e as pessoas devem contribuir organizacional – obstáculos decorrentes
de acordo com suas possibilidades; da forma de organização dos serviços:
a água deve ser suficiente para usos tipo de tecnologia e soluções, quanti-

114
ÁGUA

dade e qualidade da água disponível; Um Milhão de Cisternas-P1MC insti-


iii) sociocultural – perspectivas da po- tuiu, no âmbito do Sistema Nacional A
pulação: gênero, cuidado com a água, de Segurança Alimentar e Nutricional,
hábitos, participação nas soluções; iv) as cisternas de água de chuva para
econômica – consumo de tempo, ener- consumo humano. A água como ali-
gia e dinheiro: preço da tarifa dos ser- mento e para a ampliação da produção
viços e necessidade de compra de água de alimentos, para consumo familiar e
(caminhão-pipa, água mineral). para venda, a partir de processos sociais
A privatização dos serviços de participativos com uso de tecnologias e
abastecimento de água e esgotamento processos sociais, como a agroecologia,
sanitário se insere no contexto do neoli- se constitui como potência a partir de
beralismo na Europa na década de 1980, redes constituídas nas últimas décadas
e, na América Latina, na década se- que devem ser plataforma para políticas
guinte. Na América do Sul, a privatiza- universais de acesso.
ção ocorreu com conflitos importantes, O direito humano à água, em servi-
como na Argentina, Equador e Bolívia ços urbanos ou em áreas rurais, requer
– onde ocorreu a “guerra da água”, em ser pensado em sua multiescalaridade
Cochabamba –, mas com processos de (do local ao nacional) e em sua mul-
reestatização dos serviços, que foram tidimensionalidade (relativo a vários
emblemáticos. No Brasil não houve temas, campos e ações); são dimensões
expansão significativa da privatização. de integralidade para a formulação
No novo ciclo de acumulação do capi- de políticas públicas e organização de
tal, pós-crise de 2008, a privatização serviços.
ressurgiu, inclusive no Brasil. Do ponto
de vista do direito humano, é possível Água como mercadoria
que se tenha serviços privatizados e A água destituída de símbolos, coi-
que esses direitos sejam atendidos. Em sificada e objetificada é a apropriação
sociedades com iniquidades sociais, pelo capital e a negação do modo de
como na América Latina e África, não vida tradicional. “Recurso hídrico” é
é factível que esses direitos humanos a objetificação da vida, é a disputa em
estejam resguardados sob concessão arenas, em que o Estado neoliberal e
privada. A mercantilização da vida, o capital ditam as regras e controlam
neste novo ciclo do capital, passa pela as arenas decisórias. A negação dos
apropriação dos bens comuns, como a símbolos, do místico, leva à objetifi-
terra e a água, os serviços de saneamen- cação da água.
to, e pela água engarrafada, objetificada O discurso da escassez como es-
como mercadoria. É o controle da vida tratégia para a captura da água e da
e sua monetarização. terra, que ocorre em geral por meio
O acesso ao abastecimento de água de grilagem e truculência, consiste em
e ao esgotamento sanitário no meio transformar um bem comum e valor
rural se caracteriza, historicamente, por de uso em mercadoria e valor de troca.
iniciativas desarticuladas entre os entes Nesse contexto, emerge a monetariza-
federativos, não existindo políticas ção do bem comum, que se transforma
nacionais. No semiárido, o Programa em mercadoria. Reterritorializar a água

115
ÁGUA

como bem comum para a água como 395) o caracteriza como “todos os tipos
A recurso hídrico é deslocar os processos de negócios que hoje surgem a partir
de decisão sobre o acesso de uma es- da água”. Estes abrangem, segundo
fera do campo dos valores humanos e esse autor, energia hídrica, irrigação,
dos direitos da natureza, portanto, de carcinicultura, saneamento ambiental e
subjetivação da vida, para uma esfera água engarrafada. Acrescente-se, ainda,
de mercado e de arenas decisórias e de a mineração, polos petroquímicos e
coisificação da água como mercadoria. pecuária. Em uma perspectiva ampla,
Esse processo se dá pela apropriação envolve todos os processos de captura
da água pelo capital e transfere a esfera da água pelo capital, com impactos am-
de decisão do campo dos valores para a bientais e processos de vulnerabilização
esfera do mercado, em um processo de para povos e comunidades tradicionais
monetarização da natureza-vida. É um e também para o consumo humano em
marco a assunção da ONU, em 1992, áreas urbanas.
da água como bem econômico (Flores; A expansão dos conflitos por água
Mizoczky, 2015). sinaliza uma transição, em que a luta
A centralidade econômica dos paí- apenas pela terra não é mais suficiente
ses em desenvolvimento é o que Gudy- para a reprodução da vida, mas passa
nas (2009) cunhou como neoextrativis- a ser fundamental a luta pela água.
mo, que se caracteriza pela exportação A expansão do capital, sobretudo mi-
de commodities, sobretudo grãos, carne, neral, e do agronegócio tem induzido
celulose, etanol, minérios e petróleo. os conflitos no campo, que devem ser
Esse modelo requer grandes extensões compreendidos como conf litos por
de terra e é hidrointensivo. O agronegó- terra/água, como aponta o relatório da
cio, como maior pauta de exportação, é Action Aid (2017) relativo à região de
o setor de maior consumo de água, cerca desenvolvimento do Matopiba (acrôni-
de 70%. Este setor exerce pressão sobre mo das siglas de Maranhão, Tocantins,
povos e comunidades tradicionais, em Piauí e Bahia) no Cerrado. As comuni-
busca de terras e água, sobretudo por dades tradicionais têm sido expulsas de
meio de grilagem. O binômio água/ suas terras por meio de grilagem, com o
terra é central para entender as fron- capital apropriando-se de terra e água.
teiras de expansão e a captura desses Os conflitos por água no Brasil, segundo
bens comuns pelo capital, sobretudo o a Comissão Pastoral da Terra (CPT)
financeiro, após a crise de 2008. Este (2017), têm se expandido nos últimos
processo se caracteriza pela mudança anos, com crescimento de 150% entre
dos territórios de vida, de valor de uso, 2011 e 2016. Em 2017, em 197 conflitos
pela apropriação do capital, em valor de por água, mais de 35 mil famílias foram
troca, sobretudo por meio da especula- afetadas, sendo cerca de 70% associados
ção financeira (Action Aid, 2017). Os à mineração. O binômio dos conflitos
territórios se reconfiguram e a água des- por terra/água ainda não está sendo
titui-se de sentidos simbólicos para ser devidamente captado.
coisificada enquanto recurso hídrico. A As águas domadas e capturadas se
água constitui-se, assim, em commodity, caracterizam como territórios de ex-
em um hidronegócio. Malvezzi (2012, p. clusão – em torno de grandes açudes,

116
ÁGUA

barragens, canais e em polos de irriga- ção da natureza e conformam sentidos/


ção –, onde há alto consumo de água pulsões de morte. Contribuem para A
e insumos, com baixa incorporação de reduzir ou eliminar a vida no planeta.
mão de obra, devido à mecanização e A agricultura industrial – ou o agrone-
aos insumos químicos. A população gócio – é responsável, segundo Raj Patel
camponesa é incorporada em pequena (2017), pela sexta extinção em massa de
quantidade como trabalhadora; outra espécies do planeta – a quinta extinção
parte participa como trabalho precari- foi há 65 milhões de anos –, decorren-
zado ao capital; e a maior parcela tem te da redução da biodiversidade pelo
que migrar ou viver com baixos níveis desmatamento e a contaminação por
de vida. O hidronegócio captura água/ fertilizantes e outros químicos, criando
terra, destrói e exclui. O líder indíge- zonas mortas no mar. A artificialização
na e xamã do povo yanomami, Davi da agricultura por meio de produção
Kopenawa, lança “[...] um apelo contra de espécies únicas segue estratégia de
o perigo que a voracidade desenfreada controle da vida pelos transgênicos. O
do Povo da Mercadoria faz pesar sobre ciclo da água decorrente do desmata-
o futuro do mundo humano e não hu- mento em larga escala é completamente
mano” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 51). alterado e um novo ciclo vicioso se
As águas contaminadas são as dos conforma: o desmatamento aumenta
grandes polos de irrigação e das grandes a compactação do solo, que aumenta
extensões do agronegócio, em que pes- o escoamento superficial e que, por
soas e ambiente são afetados. Relatório sua vez, aumenta o assoreamento dos
da FAO (Food and Agriculture Orga- cursos de água, reduzindo a infiltração
nization of The United Nations, 2018) da água no solo, o que reduz a vazão de
questiona em seu título: mais pessoas, base dos aquíferos, que reduz a vazão
mais alimento, pior água? E sugere que média dos rios e que reduz a precipi-
as práticas agrícolas são insustentáveis e tação média. Este ciclo altera o regime
ameaçam a saúde e os ecossistemas. Em de chuvas, com longos períodos secos e
muitos países, a maior fonte de contami- precipitações intensas e concentradas
nação das águas é a agricultura, e não em períodos curtos.
as cidades ou indústrias. E o poluente A alteração do ciclo das chuvas e
químico mais comum nos aquíferos são a redução média da precipitação pro-
os nitratos, oriundos da agricultura, que vocam as águas dissipadas em bacias
lança nos cursos de água agrotóxicos, hidrográficas, com uma vazão que deixa
sedimentos, matéria orgânica e sais. de compor o ciclo da água da bacia
Bilhões de pessoas são afetadas, com e que precisa ser considerada e esti-
custos anuais de bilhões de dólares que mada, pois ainda não é reconhecida
se convertem, no discurso economicista, pela ciência. Este processo decorre de
em externalidades do “desenvolvimen- práticas predatórias de exaustão da
to”. E não são incorporadas aos custos água, e vulnerabiliza povos tradicionais,
do setor. mas também populações urbanas, por
Os sentidos simbólicos da água são restrições no acesso ao abastecimento
reconfigurados em sentidos concretos de água. A bacia do São Francisco,
no processo de apropriação e objetifica- por sua relevância nacional, é um caso

117
ÁGUA

emblemático de processos produtivos humano e animal e a reprodução do


A predatórios, com desmatamento e su- modo tradicional de vida.
perexploração de água e dissipação de Os processos de apropriação da
vazão, caracterizando o que Harvey água pelo capital, transformando bens
(2004) chama de acumulação por es- comuns essenciais à vida em merca-
poliação. Tais práticas de acumulação doria, em um contexto de ampliação
se intensificaram a partir da crise de da concentração de renda via capital
2008, com a financeirização do capi- financeiro, tende ao aprofundamento
tal no campo associada a práticas de da pulsão de morte e à captura dos bens
grilagem de terra e expulsão de popu- comuns. A tendência é que o povo da
lações tradicionais. O rio São Francisco mercadoria amplie a concentração do
é também um caso emblemático das capital via o binômio, indissociável,
águas salinizadas, decorrentes da redu- terra/água via os territórios de povos
ção de vazão e da intrusão salina; ali, e comunidades tradicionais, bem como
processos produtivos agrícolas foram em áreas de proteção e preservação
inviabilizados, bem como o consumo ambiental.

Referências
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Literária/Elefante, 2016.
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sismo sudamericano actual. In: Extractivismo, política y sociedade (vários autores). Quito: CAAP (Centro
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HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
MALVEZZI, R. Hidronegócio. In: CALDART, R. et al. (org.). Dicionário da educação do campo. Rio de
Janeiro/São Paulo: Escola politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular, p. 395, 2012.

118
ALIMENTO

KOPENAWA, D; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Beatriz Perrone-Moisés


(trad.). 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KOCH, I. V. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.
A
NEVES-SILVA, P.; HELLER, L. O direito humano à água e ao esgotamento sanitário como instrumento
para promoção da saúde de populações vulneráveis. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 6, p. 1861-1870,
jun. 2016, p. 1861-1869, 2016.
PATEL, R. Industrial farming is driving the sixth mass extinction of life on Earth. 2017. Disponível
em: https://www.independent.co.uk/environment/mass-extinction-life-on-earth-farming-industrial-a-
griculture-professor-raj-patel-a7914616.html (2017). Acesso em 16 dez. 2018.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). O direito humano à água e ao saneamento. 2010.
Disponível em: http://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitation_me-
dia_brief_por.pdf Acesso em 29 nov. 2018.

Para saber mais


Água, sua linda: http://aguasp.com.br/
Portal Beiras d’Água: www.beirasdagua.org.br
Associação Ambientalista Corrente Verde: https://pt-br.facebook.com/Associa%C3%A7%C3%A3o-
-Ambientalista-Corrente-Verde-210269232480964/
Observatório Plurinacional de Águas: https://oplas.org/sitio/
Movimento de Atingidos por Barragens: https://www.mabnacional.org.br

Nota
1
Agradeço à Maiana Maia/Fase, pela contribuição original das categorias de águas domadas, águas
capturadas, águas contaminadas e águas exterminadas.

ALIMENTO
Patr ícia C onsta nte Jaime

Alimento é qualquer substância de alimentar em dado contexto social e


contida na natureza que se possa es- cultural. A alimentação está enraizada
perar que seja ingerida por seres vivos na cultura e é carregada de significações
e que seja capaz de fornecer nutrientes históricas, de curta ou longa duração.
necessários para a manutenção da vida. Assim, formam-se os padrões alimen-
Dada a diversidade das espécies que tares que representam um conjunto de
precisam se alimentar, o alimento não alimentos frequentemente consumidos
é uma substância única, mas sim agru- por indivíduos e populações, e que ex-
pamentos complexos e diversos de com- pressam o que se come e como se come
postos químicos criados pela natureza como resultado de um processo sob
sob controle biológico-evolucionário. A controle biológico-sociopolítico-socio-
comida é a representação do alimento cultural-evolucionário.
na vida das pessoas; como tal, envolve a Obviamente, há diferentes perspec-
combinação não aleatória de alimentos tivas conceituais sobre o que é alimento.
que é moldada a partir da disponibilida- Deparamo-nos com paradigmas distin-

119
ALIMENTO

tos que consideram, em um extremo, o o conceito de alimento adotado no


A alimento como mercadoria dotada de Regulamento Técnico de Boas Práticas
determinadas características que lhe para Estabelecimentos Comerciais de Ali-
atribuem valor monetário; no outro, o mentos e para Serviços de Alimentação, da
alimento como o elemento central da Secretaria de Estado da Saúde de São
vida. Esse último reconhece o alimento Paulo (Portaria CVS 5, de 09 de abril
como um bem material e imaterial e de 2013 – Artigo 7°, Sessão III):
parte do patrimônio cultural de um Alimento: toda substância ou
povo e nação. mistura no estado sólido, líquido,
Se pensada a alimentação como o pastoso ou qualquer outra forma
processo essencial para a manutenção adequada, destinada a fornecer
da vida e dependente do binômio ali- ao organismo humano os nutrien-
mento-homem – visto sob outro ângulo, tes necessários para sua formação,
da comida e do comedor –, o alimento manutenção e desenvolvimento, e
precisa ser considerado para além da satisfazer as necessidades sensoriais
e sócio-culturais do indivíduo. (São
perspectiva química (sua composição
Paulo, 2013, p. 2)
em nutrientes), botânica (caracterís-
ticas morfológicas e suas relações ge- O conceito citado, se por um lado,
néticas) ou nutricional (relação com contempla as dimensões biológicas e
a saúde). É preciso reconhecer que a socioculturais do alimento, por ou-
alimentação é resultado de uma cadeia tro ignora que, a princípio, ele é uma
de processos, que se inicia na prepara- substância da natureza que, por ação
ção do solo, sementes, mudas e insumos, humana, poderá passar por diferentes
envolve ciclos de plantio e colheita e o tipos e intensidades de processamen-
uso sociocultural do alimento para con- to. O processamento não está livre
sumo humano, processos nos quais ele- de introdução de riscos à saúde e ao
mentos da natureza e da cultura têm um ambiente, riscos esses que se somam
papel crucial (Ribeiro; Jaime; Ventura, aos reconhecidos benefícios para segu-
2017). Diferentes tipos de tecnologia e rança higiênico-sanitária do produto e
o adensamento de seus usos vêm sendo redução do desperdício de alimentos. É
cada vez mais empregados não apenas importante dizer que o processamento
nas etapas de produção do alimento in de alimentos faz parte da história da
natura, mas também no processamento humanidade desde que o homem des-
dos alimentos até a mesa do consumi- cobriu o fogo e a cocção de alimentos,
dor final, de tal modo que questões sendo esta descoberta reconhecida
tecnológicas e financeiras determinam como a primeira grande revolução tec-
as características dos alimentos desde a nológica que impactou os destinos do
produção até o consumo. Muitas vezes, homem na Terra. Assume-se que, há um
as normas sanitárias ignoram, em sua par de séculos, a maioria dos alimentos
totalidade e sob a perspectiva ampliada consumidos é processada de alguma
de risco em saúde, a influência do pro- forma. A questão central é que, no
cessamento dos alimentos na definição último século, o ultraprocessamento
das características finais do produto de alimentos passou a moldar o sistema
alimentício. Tomemos como exemplo alimentar e a inf luenciar os padrões

120
ALIMENTO

alimentares tradicionais, de tal modo Os ingredientes culinários processados


que a categorização dicotômica dos são importantes na composição de uma A
alimentos em in natura ou processados/ alimentação saudável e prazerosa, sendo
industrializados não dá conta da com- usados para temperar e cozinhar ali-
plexidade do fenômeno e seu impacto mentos e criar preparações culinárias.
sobre a qualidade nutricional da dieta, Eles devem ser utilizados em pequenas
a saúde humana, o meio ambiente e a quantidades porque o excesso pode
dinâmica social. levar a desequilíbrios na alimentação,
Monteiro e colaboradores (2018) como, por exemplo, o consumo ele­
apresentam uma inovadora proposta de vado de sódio. Mas, por outro lado,
classificação de alimentos, denominada os ingredientes culinários processados
Nova, que considera a extensão e o junto às ervas e condimentos trazem
propósito do processamento industrial vida, sabor e diversidade às prepara-
a que foram submetidos os alimentos ções culinárias, aguçam os sentidos
antes de sua aquisição e consumo pelos sensoriais e memórias gustativas. Há
indivíduos. A classificação Nova aloca quase 100 anos, o sociólogo Gilberto
os itens alimentares em quatro grandes Freyre, em seu Manifesto regionalista,
grupos: alimentos in natura ou minima- defendia o valor das tradições culinárias
mente processados; ingredientes culiná- familiares e destacava as receitas de
rios processados; alimentos processados bolos, doces, guisados e assados como
e alimentos ultraprocessados. referência simbólica da cultura popular.
Os ingredientes culinários fazem parte
Alimentos in natura ou das receitas culinárias que marcam a
minimamente processados construção da identidade de um povo.
Esse primeiro grupo contém os
alimentos que são obtidos diretamente Alimentos processados
de plantas ou animais e que não sofrem Ao longo da história, o ser humano
qualquer modificação após deixarem descobriu que alimentos in natura ou
a natureza. Também fazem parte os minimamente processados duram mais
alimentos que passam por processos tempo quando recebem sal, açúcar, vi-
tradicionais e mínimos de processa- nagre ou óleo; com isso, evoluímos para
mento com a finalidade de aumentar a produção de alimentos processados.
sua duração e, às vezes, facilitar o seu Esses alimentos compõem o tercei-
preparo, contudo, sem ferir a integri- ro grupo da classificação Nova e são
dade da matriz alimentar. Exemplos produtos manufaturados derivados de
de alimentos deste grupo são as raízes alimentos in natura ou minimamente
e tubérculos, cereais, feijões e outras processados que passaram por processos
leguminosas, frutas, verduras e legumes, de adição de sal, açúcar, óleo ou vinagre
carnes, ovos, leite e castanhas. e que foram cozidos, secos, fermentados
ou preservados por métodos como salga,
Ingredientes culinários processados salmoura, cura e defumação, podendo
Substâncias extraídas de alimentos ser acondicionados em latas ou vidros.
ou da natureza, como açúcar, sal, óleos, Aditivos que prolongam a duração do
banha de porco, manteiga e vinagre. produto, que protegem as propriedades

121
ALIMENTO

originais e impedem a proliferação de vários aditivos químicos que não so-


A microorganismos, podem ser usados em mente garantem a segurança sanitária
alimentos minimamente processados, dos produtos finais, mas, principal-
ingredientes culinários processados e mente, por meio de aditivos sensoriais
alimentos processados. O processa- (tais como intensificadores de sabor e
mento de alimentos nestes casos visa cor, emulsionantes, sais emulsionantes,
aumentar sua durabilidade e torná-los edulcorantes, espessantes e agentes
mais agradáveis, modificando ou apri- antiespumantes, de volume, de car-
morando suas qualidades sensoriais. Os bonatação, de formação de espuma,
padrões alimentares tradicionais, em de gelificação e de glazeamento) lhes
diferentes partes do mundo, contêm os conferem cor, sabor, aroma e textura
alimentos processados que são utiliza- que naturalmente não teriam. Exem-
dos como ingredientes de preparações plos de alimentos ultraprocessados são
culinárias ou como parte de refeições. preparações prontas para o consumo,
É possível dizer que a chamada “comida macarrão instantâneo, refrigerante,
de verdade” é feita a partir da combina- mistura para bolos, achocolatado, sopa
ção de alimentos in natura, minimamen- em pó, caldo industrializado em cubo
te processados, ingredientes culinários ou em pó, biscoito recheado, sorvete,
e alimentos processados. salgadinho em pacote, bebidas lácteas
e iogurtes adoçados e aromatizados, sal-
Alimentos ultraprocessados sichas, carnes temperadas e empanadas,
O quarto grupo difere dos demais dentre outros.
por ser composto exclusivamente por Para arrematar o processo de pro-
criações industriais. São produtos ali- dução do alimento mercadoria, há um
mentícios que contêm pouco ou ne- forte investimento em publicidade e
nhum alimento inteiro. Nos alimentos lobby junto ao poder público. É cada
ultraprocessados, não há mais a ma- vez mais intensa a influência da publi-
triz alimentar. Na sua produção, são cidade de alimentos ultraprocessados
empregadas modernas e sofisticadas na formação dos hábitos alimentares.
tecnologias para obter uma formula- A publicidade evoca afeto, carinho e
ção industrial barata para a indústria cuidado, elementos que historicamente
e hiperpalatável para o consumidor. fazem parte da cultura alimentar e estão
Tais formulações utilizam ingredientes na base da influência do alimento na
extraídos de alimentos in natura, como formação da identidade. Para gerações
uma variedade de açúcares (tais como mais novas, as memórias gustativas
frutose, xarope de milho rico em fru- podem não estar mais relacionadas a
tose, açúcar invertido, maltodextrina determinadas receitas, aromas, sabores,
e dextrose), óleos modificados (óleos pessoas e lugares, mas sim por marcas
hidrogenados ou interesterificados) e de alimentos ultraprocessados que fo-
proteína (como proteínas hidrolisadas, ram desenvolvidas em laboratórios e
isolado de proteína de soja, glúten, empresas de publicidade.
caseí­n a e “carne separada mecanica- Há sólida evidência científica de que
mente”). Como parte do processamento, os alimentos ultraprocessados afetam
os alimentos ultraprocessados recebem negativamente a qualidade da alimen-

122
ALIMENTO

tação, a saúde, a cultura, a vida social e públicas, a exemplo de relatórios de


o ambiente. A denominação alimentos agências das Nações Unidas (Food and A
ultraprocessados não é uma simples Agriculture Organization of the United
substituição de termos, como “junk food” Nations, 2015; Organización Paname-
ou “alimento porcaria”, “dieta ocidental” ricana de la Salud, 2015) e em Guias
ou alimentos ricos em sódio, açúcar e Alimentares publicados por países da
gorduras. Deste ponto de vista, a classi- América Latina (Brasil e Uruguai).
ficação Nova, ao considerar a extensão O Guia Alimentar para a População
e propósito do processamento de alimen- Brasileira, publicado pelo Ministério da
tos, busca os nexos entre saúde, nutrição Saúde em 2014, recomenda que a base
e sistema alimentar. da alimentação deva ser composta por
Há uma intrínseca relação entre a alimentos in natura ou minimamente
produção de alimentos ultraprocessados processados, preparações culinárias e
e o modelo do agronegócio [ver Agro ­ que sejam evitados alimentos ultrapro-
negócio] que se volta para os mercados cessados. Destaca que uma alimentação
internacionais de commodities agrope- saudável deriva de um sistema alimentar
cuárias para produção de insumos ou voltado à produção de comida de verda-
ingredientes alimentares – como o óleo de, adotando um princípio que “alimen-
e a proteína da soja ou o açúcar da cana tação saudável necessariamente deriva
–, utilizados pelos impérios corporativos de um sistema alimentar socialmente e
das indústrias transnacionais de alimentos ambientalmente sustentável” (Brasil,
(Monteiro e Cannon, 2012) [ver Impérios 2014, p. 23). Desta forma, precisa ser
Alimentares]. O aumento da produção, considerado o conjunto de tecnolo-
oferta e consumo de alimentos ultra- gias aplicadas em toda cadeia alimen-
processados está articulado à revolução tar, envolvendo processos que vão da
verde [ver Revolução Verde] que, a partir produção, transporte, abastecimento,
da década de 1950, impôs um mode- comercialização e consumo. Mesmo
lo de produção de alimentos baseado alimentos in natura podem trazer riscos
em monoculturas especializadas, com à saúde e ao meio ambiente quando
modificação genética de sementes, uso são produzidos a partir de sementes
disseminado de fertilizantes químicos e transgênicas e com uso de agrotóxicos
agrotóxicos que tem levado à poluição [ver Agrotóxicos]. Neste sentido, as re-
de cursos d’água, lençóis freáticos e comendações do Guia Alimentar para
solos, com consequências ecológicas a População Brasileira se aproximam
e sanitárias muito nefastas, além do dos princípios da agroecologia [v er
empobrecimento da biodiversidade, da Agroecologia], que nos direcionam para
gestão insuficiente de seus resíduos am- um modelo agroalimentar que garante,
bientais, em especial das embalagens e da de forma articulada, a produção de ali-
produção de injustiça social, pois afasta mentos agroecológicos com soberania e
as famílias do campo e concentra renda. segurança alimentar e nutricional [ver
Alimento ultraprocessado tem sido S oberania e S egurança A limentar e Nu ­
um conceito mais e mais explorado em tricional], justiça social e distribuição
pesquisas científicas e nos meios de de renda, promoção da saúde pública e
comunicação e aplicado em políticas sustentabilidade ambiental.

123
ANTROPOCENO

Referências
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Alimentar para a população brasileira. 2ª ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: http://
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retora Técnica do Centro de Vigilância Sanitária. Portaria CVS n. 5, de 09 de abril de 2013. Regulamento
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SP, abr. 2013. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=253540. Acesso: 30 set. 2018.

Para saber mais


Sugestão de vídeos
DEPARTAMENTO DE ATENÇÃO BÁSICA. Nico e o tubérculo. 2017. Disponível em: https://youtu.
be/biq3xE3O3Zc. Acesso: 25 nov. 2018.
DEPARTAMENTO DE ATENÇÃO BÁSICA. Caminhos da comida. 2017. Disponível em: https://youtu.
be/BYw0EVdQbV8. Acesso: 25 nov. 2018.

Sugestão de cartilhas
BRASIL. Ministério da Saúde. Caderno de atividades Promoção da Alimentação Adequada e Saudável:
Educação Infantil. Ministério da Saúde, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Brasília, DF: Mi-
nistério da Saúde, 2018. 92 p. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/
caderno_atividades_educacao_infantil.pdf . Acesso: 25 nov. 2018.
BRASIL. Ministério da Saúde. Caderno de atividades Promoção da Alimentação Adequada e Saudável:
Ensino Fundamental I. Ministério da Saúde, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Brasília, DF:
Ministério da Saúde, 2018. 128 p. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/
caderno_atividades_ensino_fundamental_I.pdf . Acesso: 25 nov. 2018.

ANTROPOCENO

C aroline S iqueir a G omide

A partir dos anos 2000, uma polê- marcado por transformações humanas
mica surgiu na ciência e extrapolou para no planeta, caracterizando uma época
os debates políticos e ambientais: há em que os estratos geológicos são domi-
um novo período geológico no mundo, nados por materiais de origem humana.
chamado Antropoceno. Um período Cientistas do mundo todo, de diferentes

124
ANTROPOCENO

áreas do conhecimento, estudaram essas significa “totalmente novo” e representa


transformações e debateram o assunto a época interglacial estável ou pós-glacial A
com o objetivo de comprovar e estabe- (10 a 12 mil anos atrás), quando surge
lecer o novo período. a agricultura. Antropoceno significa
A escala de tempo geológico é divi- “novo humano”; representa uma época
dida de acordo com registros de eventos em que a humanidade se torna a princi-
importantes que estão nas rochas. Essa pal responsável por mudanças rápidas na
organização do tempo é chamada de Terra (Foster; Clark; York, 2010), mas,
datação relativa das rochas, e subdivide seguindo a lógica definida para nominar
os 4,6 bilhões de anos de existência do a escala, a melhor definição seria uma
planeta Terra em intervalos menores de época em que os estratos geológicos são
tempo. Esses intervalos são denominados dominados por restos de origem humana
pela Comissão Internacional de Estrati- (Angus, 2016).
grafia (ICS – sigla em inglês), parte da As épocas são marcadas por fenôme-
União Internacional de Ciências Geo- nos naturais e dominância de espécies;
lógicas (IUGS – International Union of a humana é a primeira que atua como
Geological Science), conforme ilustração agente de transformação geológica,
(ver Figura 7, adiante, p. 790). como descrito por Charles Lyell a partir
Para entender a comissão, é preciso de 1830 e por Robert Sherlock, em 1922.
esclarecer o termo estratigrafia, especia- Charles Lyell escreveu os Princípios de
lidade que estuda os eventos e sucessões Geologia e influenciou uma geração de
geológicas globais. Por exemplo, o perío- cientistas (inclusive Charles Darwin)
do Jurássico é marcado pela presença dos com a popularização do princípio das
dinossauros na Terra; já a extinção dos causas naturais e a famosa frase “o pre-
dinossauros data do período Cretáceo. sente é chave do passado”. É o primeiro a
Diante dessa lógica de divisão do descrever a ação geológica da humanida-
tempo geológico, o conceito de An- de, detalhando a influência na geografia
tropoceno foi criado como proposta física por meio da mineração [ver Mine­
de que o período atual (Holoceno) ração], obstrução de baías, construção
chegou ao fim e entramos em um novo de cidades e aração realizadas para a
período, marcado pelas transformações agricultura, expondo a terra por longos
humanas. Insere-se, portanto, o elemen- períodos e alterando o curso natural do
to humano como fator explicativo da solo (Pellogia; Ortega, 2016). Sherlock
morfologia, da estrutura e da fisiologia (1922) escreveu O homem como agente
das paisagens e do ambiente geológico geológico: um relato de sua ação sobre
(Pellogia; Ortega, 2016). a natureza inanimada, descrevendo as
A época geológica mais recente mudanças na superfície terrestre em
reconhecida pela comissão é parte do pe- descrições próximas ao que foi escrito
ríodo Quaternário, que tem sua origem por Lyell.
ligada à presença humana e às grandes O primeiro geólogo a utilizar o ter-
glaciações (há aproximadamente 2,6 mo foi o soviético Aleksei Petrovich
milhões de anos), com modificações da Pavlov, em 1922, e tanto antropoceno
fauna de mamíferos e alterações no nível como antropogeno foram aplicados por
do mar (Pomerol et al., 2013). Holoceno geólogos soviéticos por um tempo, mas

125
ANTROPOCENO

não repercutiram no restante do mundo (Head, 2014; Haraway, 2015; Moore,


A (Angus, 2016). Portanto, Lyell, Sherlock 2016; Hartley, 2016), mas nenhum deles
e Pavlov foram os primeiros cientistas a teve tanta entrada no mundo científico
descrever os impactos geológicos da ação devido às comprovações e evidências de
humana no planeta. registro geológico como o Antropoceno,
Depois da proposição de Crutzen e apenas este termo é debatido na ICS.
e Stoermer (2000), o termo ganhou Ainda existem aqueles autores que de-
projeção e cientistas de diversas áreas fendem que continuamos no Holoceno
passaram a utilizá-lo. A maioria dos estu- e nada deve ser alterado.
dos iniciais foram baseados em termos de Enquanto existe um debate se de-
mudanças ambientais planetárias e não veria ser um termo da história da terra
nos registros geológicos da ação humana. ou da história humana como decisão
Pellogia; Ortega (2016) afirmam científica ou política, Paul Crutzen
que a introdução de um tema de in- colocou o termo na estratigrafia (Zala-
teresse geológico feita de uma forma siewicz et al., 2017), elencando processos
não geológica levou a uma aparente que ficam registrados na história da
surpresa dos geólogos em relação à sua Terra como o consumo de combustíveis
repercussão e a duas demandas para fósseis, a alteração química do solo – já
esses cientistas: verificação dessa con- que nitrogênio (e outros elementos)
cepção em termos estratigráficos e uma é aplicado como fertilizante sintético
reavaliação dos critérios da estratigrafia em quantidades maiores que o fixado
quando aplicadas a terrenos produzidos naturalmente –, até a construção de
artificialmente. Uma das principais barragens e outras grandes obras de
dificuldades é a inversão do raciocínio infraestrutura (Crutzen, 2002).
geológico clássico, que partia do registro O conceito foi aceito por diversas
para formular o tempo relativo e agora áreas de atuação, desde a Química, Bio-
deveria partir de evidências e fenôme- logia, Geologia, Sociologia, História,
nos que ficarão registrados. Geografia, Antropologia, Ciência Po-
Um termo correlacionado é o lítica, Ciências Naturais, até Filosofia.
­Tecnógeno, proposto por Ter Stepanian O que está em debate, principalmente
(1988); a intenção era substituir o Holo- no grupo de trabalho do Antropoceno
ceno, caracterizando que os últimos 10 a (AWG, na sigla em inglês), é a época em
12 mil anos foram marcados principal- que ele começa, o que é importante para
mente por tecnologias humanas. a definição na ICS, mas o fundamental é
Os geólogos que estudavam registros o reconhecimento das evidências de que
humanos em camadas estratigráficas o ser humano é um agente geológico que
aceitaram melhor o conceito de An- modifica o planeta de formas irreversí-
tropoceno, mas alguns defendem que o veis, registrando suas ações e efeitos na
seu início seja na Revolução Neolítica, história geológica da Terra.
enquanto outros defendem que seja parte Em 2016, os 35 membros da comis-
do Tecnógeno ou do Holoceno. Outros são (de 13 países e cinco continentes)
termos surgiram ao longo das pesquisas, estiveram de acordo que o conceito de
como Antrobsceno (Parikka, 2014), Eco- Antropoceno é geologicamente real e
noceno (Norgaard, 2013) e Capitaloceno a maioria está de acordo que seja uma

126
ANTROPOCENO

época que signifique o fim do Holoceno os nutrientes e atacar as crescentes fitos-


(Trischler, 2017), o que sugere que a sanidades, inicia-se o uso de fertilizantes A
comissão está mais perto de declarar o e pesticidas sintéticos. O excesso de nitro-
termo um tempo geológico formal. gênio no solo provoca uma sobrecarga em
O Antropoceno traz o conceito de ecossistemas aquáticos; quando há erosão,
que a aceleração da atividade humana o solo transporta sedimentos para esses
altera o planeta de maneira intensa, e ambientes, causando eutrofização e afe-
atualmente existe o debate entre três tando todo o ecossistema. Como registro
possibilidades de marco temporal inicial: geológico, é possível encontrar resquícios
i) a Revolução Neolítica (Ruddiman, de atividade minerária, a retirada de com-
2005); ii) a Revolução Industrial (Crut- bustíveis fósseis, a alteração (geo)química
zen; Stoermer, 2000; Crutzen, 2002; do solo e possível acúmulo de biomassa
Zalasiewicz et al., 2011); e iii) a grande onde pode ter ocorrido eutrofização e alta
aceleração marcada pela evolução do mortandade de seres aquáticos.
ambiente urbano no século XX (Steffen; No século XX, com a grande acele-
Crutzen; McNeill, 2007; Zalasiewicz et ração, a humanidade conhece a biosfera,
al., 2011; Williams et al., 2013; Zala- o globo completo; a população aumenta
siewicz et al., 2015; Steffen et al., 2015). e coloniza toda a superfície, produz e uti-
Na Revolução Neolítica, o ser hu- liza muito alumínio, concreto, plásticos,
mano deixa de caçar e coletar alimentos, armas nucleares (Angus, 2016). Grandes
e cultiva seu próprio alimento, domestica cidades com áreas muito extensas são
as plantas e animais e, com isso, ocorre preenchidas por construções, carros,
transformação no adensamento ou des- computadores, celulares e diversas máqui-
matamento, irrigação e na diversidade nas são utilizadas e descartadas todos os
alimentar, se restringindo principal- dias. Novas paisagens são criadas, “apro-
mente às plantas cultivadas; os humanos ximadamente 50% da superfície da terra
transformam-se em sedentários e aumen- foi transformada por ação humana direta,
ta a população. O registro desse período com consequências significativas para a
é marcado pelos artefatos e os pólens das biodiversidade, ciclagem de nutrientes,
plantas encontrados nos sedimentos. estrutura do solo, biologia e o clima” (An-
A produção de CO2 e metano também gus, 2016, em tradução livre). No campo,
pode ter aumentado. O marco temporal as mudanças são igualmente impactan-
do Neolítico foi rejeitado pela maioria tes; só no Brasil, foram adicionadas 22,8
do grupo de trabalho do Antropoceno. milhões de toneladas de fósforo em seus
Na Revolução Industrial, há diminui- solos nos últimos 50 anos (Dias, 2018).
ção da população rural e crescimento da A agricultura, que historicamente teve
urbana, intensificação do uso de minérios como objetivo a produção de alimentos e
(carvão para abastecer as máquinas e bens de trabalho, agora está subordinada
ferro e outros para construção destas), in- à geração de lucro.
dustrialização da agricultura e utilização Há uma intensificação da ativida-
de combustíveis fósseis. A intensificação de industrial, gerando chuva ácida, e
da agricultura empobrece o solo pois não aumento da construção de barragens
há reposição de biomassa e nem tempo de água para geração de energia e abas-
entre uma plantação e outra. Para repor tecimento (70% da água do mundo é

127
ANTROPOCENO

utilizada para agricultura), causando foram descritas rochas sedimentares


A alterações em ecossistemas fluviais que com tecnofósseis (fósseis de materiais
anteriormente eram interligados. Houve antropogênicos) denominadas anthro-
intensificação da atividade mineral para poquinas (Fernandino et al., 2020).
abastecer a indústria, o que gerou diver- Habitats marinhos e costeiros estão
sos impactos, dentre eles, o aumento de muito alterados; 50% dos manguezais
construção de barragens de rejeito com foram removidos; mais de dois terços
alto potencial de destruição em caso de da área de dois biomas terrestres e mais
rompimento; só no Brasil, houve diversos de metade da área de quatro biomas
casos, os mais desastrosos foram em Ma- foram convertidas para o agronegócio
riana, MG (2015), deixando 19 mortos, [ver Agronegócio] (Angus, 2016).
e Brumadinho, MG (2019), com 246 A indecisão na definição temporal
mortes confirmadas e 24 desaparecidos se dá pela dificuldade de prever como as
até a data de fechamento desse texto. evidências registradas nestes três perío-
Ainda enquanto efeitos da ação hu- dos ficariam preservadas em camadas de
mana nos últimos anos, houve a extinção gelo, sedimentos, espeleotemas (forma-
de algumas espécies que podem causar ções rochosas que ocorrem em cavernas)
colapsos de ecossistemas, acidificação e rochas (Waters et al., 2014). Porém, a
dos oceanos, destruição de recifes de maioria dos autores parece concordar
corais (aproximadamente 20% dos corais com o marco da grande aceleração da
do mundo foram destruídos e mais 20%, urbanização (Zalasiewicz et al., 2015),
degradados), degelo das calotas polares no grupo este de pesquisadores que com-
Hemisfério Norte, liberando metano que põem o AWG na ICS.
estava aprisionado no gelo e acelerando Além dessas inúmeras alterações
o aquecimento global (Crutzen, 2002; abordadas anteriormente, o fato que
Foster; Clark; York, 2010; Angus, 2016). gerou maior consenso como marca-
Sinais geoquímicos ref letem o dor primário do Antropoceno entre
desenvolvimento industrial, como a pesquisadores da comissão (AWG) é a
composição química da atmosfera, que utilização de armas nucleares, segundo
passou por mudanças em resposta à relatório da Subcomissão de Estratigrafia
combustão de combustíveis fósseis (Za- Quaternária (s/d). Waters et al. (2016)
lasiewicz et al., 2017) e à utilização de encontraram evidências de que houve
fertilizantes. Desde a era pré-industrial, precipitação de radionuclídeos artificiais
a quantidade de N2O (oxido de nitro- de testes de armas nucleares e estão
gênio) aumentou em 17% na atmosfera; registradas em camadas de sedimento e
nos últimos 40 anos, a eficiência de fer- de gelo espalhados pelo mundo.
tilizantes nitrogenados caiu em dois ter- Segundo relatório da Subcomissão
ços, e o consumo por hectare aumentou de Estratigrafia Quaternária (s/d), na
sete vezes (Angus, 2016). Existem mais votação realizada pelo grupo de trabalho
de 200 minerais que surgiram por ações (AWG) em maio de 2019, 88% dos votos
humanas (Hazen et al., 2017), desde a defendem que o Antropoceno deve ser
mineração até a disposição de lixo que tratado como uma unidade cronoestra-
provoca reações químicas e forma novos tigráfica formal e que o principal guia
minerais; além disso, recentemente, para a base do Antropoceno deve ser um

128
ANTROPOCENO

dos sinais estratigráficos em meados do bolismo S ocioecológico] pelo processo


século XX, sendo mais uma evidência de que Foster (2005) descreve como rup- A
que em breve teremos um novo tempo tura metabólica ecológica, causando os
geológico formal. desequilíbrios que são descritos como
A proposta original, de Crutzen e evidências do Antropoceno.
Stoermer (2000), defende o início na Esses desequilíbrios são descritos
Revolução Industrial; por isso, alguns por Foster, Clark e York (2010) como “a
autores sugerem o nome Capitaloceno ruptura ecológica global”, referindo-se
para ele. O termo Capitaloceno significa, à ruptura geral na relação humana com
para Moore (2016), os registros deixados a natureza decorrente de um sistema
pela era do capitalismo, como a ecologia alienado de acumulação de capital sem
mundial do poder, capital e natureza. fim. O uso desse termo sugere a afir-
Nessa perspectiva, o capitalismo orga- mação da possibilidade de caminhar
niza a natureza, deixando-a a um custo para um potencial evento catastrófico
baixo com o objetivo de acumular capital que poderia destruir o mundo como o
(Escalera-Briceño; Angeles-Villa; Palafox- conhecemos, mais precisamente com
-Muñoz, 2018). Porém, o termo encontra riscos reais à vida no planeta que podem
resistência porque o capitalismo é um ser alcançados caso o ritmo de degra-
sistema econômico de aproximadamente dação continue.
600 anos, enquanto o período proposto Angus (2016), que compartilha
é de aproximadamente 200 anos, além da visão de ecologia política de Fos-
de arriscar fugir ao tempo geológico, pois ter e M
­ oore, descreve o conceito, no
poderia propor o feudaloceno, escravo- livro Facing Anthropocene [Encarando
ceno (Angus, 2016). o Antropoceno], como uma ferramenta
O modo de produção capitalista importante de organização dos ecosso-
tem papel fundamental na causa dos cialistas para unir o maior número de
desequilíbrios, e essa discussão remete pessoas que concordam em enfrentar
ao debate de alguns autores sobre a os agentes das mudanças climáticas e a
ecologia política e como o capitalismo indústria de combustíveis fósseis, pois
organiza (ou desorganiza) a natureza. devemos atuar ativamente na constru-
As concepções de Moore (2016), Fos- ção de lutas ambientais e transformar
ter (2005) e de Foster; Clark e York esse caminho que vem sendo trilhado
(2010) se diferenciam no que tange aos pelo capitalismo.
resultados dessa organização do capital As bases agroecológicas podem re-
sobre a natureza, mas os debates acerca construir os ecossistemas e a intervenção
do tema não serão abordados aqui; o humana de forma a reduzir o processo de
importante é destacar que diversos au- transformação destrutiva do meio am-
tores contribuem para a construção da biente e se coloca como uma ferramenta
dimensão ecológica do marxismo eco- didática, política e ecológica de recupe-
lógico e concordam que o capital e sua ração do metabolismo ser humano – na-
forma de se relacionar com a natureza tureza, caracterizando uma revolução na
são ameaças para o planeta, a alteração produção de comida, fundamental para o
da relação ser humano-natureza e do enfrentamento dessa nova era geológica
metabolismo socioecológico [ver Meta­ em que estamos.

129
ANTROPOCENO

Referências
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130
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

A
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

Paulo P etersen
S ilvio G omes A lmeida

A Articulação Nacional de associação às históricas lutas pela terra


Agroeco­logia (ANA) define-se como e em defesa da reforma agrária, esse
uma rede de redes, movimentos sociais contexto impunha ao campesinato o
e organizações da sociedade civil cons- desafio de incorporar novas formas de
tituídas desde as escalas local/territorial produção e resistência na terra como
até a esfera nacional com o objetivo de expressão da crítica ao avanço do mo-
polarizar forças sociais orientadas para delo tecnológico da Revolução Verde
a transformação das realidades agrária, [ver Campesinato].
agrícola e alimentar no Brasil, segundo As respostas a esse desafio con-
a perspectiva da agroecologia. vergiram para a emergência de um
amplo e descentralizado processo de
Surgimento da ANA: antecedentes experimentação social de práticas de
e contexto agricultura alternativa em estabeleci-
O surgimento, a disseminação e a mentos e comunidades rurais em todo o
afirmação pública da agroecologia no Brasil. Se, por um lado, o enraizamento
Brasil coincidiram com o período de local dessas experiências inovadoras
conquistas democráticas inaugurado na é um atributo intrínseco e necessário
década de 1980, após duas décadas de da construção da agroecologia, por
ditadura militar, quando o projeto da outro, encerra os riscos do isolamento
Revolução Verde foi imposto à socie- social e da invisibilidade pública. A
dade brasileira. A abertura democrática constituição da Rede Projeto Tecno-
possibilitou que os movimentos sociais logias Alternativas (Rede PTA), uma
do campo voltassem a se expressar na articulação de ONGs atuantes nas
cena pública. Setores ponderáveis dos regiões Sul, Sudeste e Nordeste, em
movimentos e lideranças que se man- estreita vinculação com organizações
tiveram ativas nos anos de chumbo, e movimentos locais do campo, criou,
sobretudo nos espaços de ação local no início da década de 1980, as condi-
das Comunidades Eclesiais de Base ções para evitar a fragmentação de um
(CEBs), convocam organizações da movimento emergente marcado pela
sociedade civil, notadamente as ONGs, diversidade de sua expressão política,
que também naquele momento se re- identitária e de suas práticas.
compunham ou se constituíam para Inspiradas em princípios da edu-
prestar assessoria técnica e política às cação popular e em ruptura com o
lutas camponesas em um novo contexto difusionismo tecnológico próprio da
de avanço do capitalismo agrário. Em Revolução Verde, a Rede PTA fomen-

131
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

tou um enfoque metodológico para a para a sensibilização de estudantes


A construção de conhecimentos sensível que, posteriormente, integraram-se
às estratégias de reprodução dos meios como profissionais ao movimento da
e modos de vida do campesinato. Em- agroecologia. No entanto, os avanços
bora essas estratégias sejam peculiares práticos, teóricos e políticos no cam-
aos contextos socioambientais, elas po acadêmico expressavam-se ainda
puderam ser contrastadas e analisadas sob um relativo grau de isolamento,
em conjunto a partir de processos de o que dificultava a visualização dessa
sistematização e intercâmbio que fun- tendência emergente e sua tradução
damentaram iniciativas voltadas para em força social capaz de influenciar as
a formação de agricultores(as) e técni- orientações das instituições científicas.
cos(as) engajados(as) nesse movimento Essa constatação motivou a realização,
de agricultura alternativa. em 1999, de um Encontro Nacional de
Ainda no final da década de 1980, Pesquisa em Agroecologia. Esse empe-
a agricultura alternativa ganha con- nho de articulação do campo acadêmico
sistência conceitual e metodológica da agroecologia foi retomado no Rio
quando a Rede PTA toma conheci- Grande do Sul nos primeiros anos da
mento e incorpora a agroecologia como década de 2000, no contexto de um
uma referência teórica para orientar a governo estadual sensível às demandas
descrição e a análise dos sistemas de sociais pela transformação do modelo
produção camponeses e suas relações de desenvolvimento rural. O ambiente
com mercados e com políticas públicas.1 de articulação criado nesse período com
A década de 1990 foi marcada pela a realização sistemática de seminários
multiplicação de experiências e pelo estaduais e nacionais proporcionou as
adensamento de redes de agroecologia condições para o amadurecimento de
em âmbito territorial, articulando as uma instituição destinada a fomentar
ONGs da Rede PTA com outras ONGs, e manter a coesão desse campo ainda
organizações camponesas e movimentos disperso em instituições de ensino,
sociais de atuação local. Em variadas pesquisa agrícola e extensão rural. Esse
situações, essas redes de abrangência processo resultou, em 2004, na criação
localizada incorporaram também pre- da Associação Brasileira de Agroecolo-
feituras municipais e instituições de en- gia (ABA-Agroecologia).
sino, pesquisa e extensão. Entre outros Também no final da década de
avanços, essas alianças formadoras de 1990, a questão da sustentabilidade
redes territorializadas de agroecologia socioambiental expressou-se vivamente
contribuíram para o estabelecimento nos debates sobre reforma agrária, que
de vínculos mais sistemáticos entre or- então polarizavam a agenda política
ganizações da sociedade civil e o campo nacional. Movimentos sociais agrários
científico-acadêmico. e socioambientalistas apontaram de
A série de Encontros Brasileiros forma convergente para a necessidade
de Agricultura Alternativa (EBAAs), de realização de um encontro nacional
ocorrida na década de 1980, foi de para aprofundamento das ref lexões
grande importância para a formula- relacionadas aos modelos de desenvol-
ção da crítica à Revolução Verde e vimento rural. Parcela importante des-

132
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

ses movimentos manifestava, já nesse Os fundamentos político-


momento, um ponto de vista crítico -metodológicos da ANA A
à Revolução Verde e passou assim a A ANA se constituiu e vem se
incorporar proposições e estratégias de desenvolvendo a partir de alguns fun-
ação coerentes com a agenda que então damentos que orientam o olhar sobre as
mobilizava o campo agroecológico. realidades agrária, agrícola e alimentar,
Foi no bojo dessas dinâmicas de em busca de convergências políticas em
aproximação e reconhecimento mútuo torno de um projeto alternativo assumi-
entre distintos sujeitos coletivos mo- do por parcelas crescentes da sociedade.
bilizados pela crítica ao agronegócio Esses fundamentos podem ser traduzi-
e pela defesa da agroecologia que se dos em quatro principais ideias-força
concretizou a proposta de constituição que cimentam a coesão política e as
de uma articulação nacional. Cabe- estratégias de ação da ANA.
ria a essa articulação valorizar e tirar
partido da diversidade das iniciativas Antagonismo com o agronegócio
descentralizadas e, ao mesmo tempo, “As experiências agroecológicas e o
favorecer a expressão unitária des- adensamento das forças sociais que as
se movimento emergente, portador sustentam tornam cada vez mais evi-
de múltiplas identidades e afiliações dente que o agronegócio constitui hoje
político-institucionais. Uma comis- o principal obstáculo para a efetivação
são constituída por representações de da agroecologia como um projeto para
ONGs, movimentos sociais agrários e a sociedade” (Articulação Nacional de
ambientalistas e acadêmicos concebeu Agroecologia, 2014, p. 10).
e convocou o I Encontro Nacional de O agronegócio é a expressão atual do
Agroecologia (I ENA), evento realizado modelo de desenvolvimento econô-
na cidade do Rio de Janeiro, em 2002. mico que perpetua há cinco séculos
A principal deliberação do I ENA a dominação das elites agrárias no
foi a criação da ANA, inicialmente meio rural brasileiro [...] É baseado
definida como “um espaço catalisador em um modelo técnico altamen-
de processos e intercâmbios de socia- te dependente de mecanização e
lização de experiências agroecológicas irrigação intensivas e do emprego
massivo de insumos industriais tais
e de convergência para discussão de
como agrotóxicos, sementes de em-
temáticas em nível nacional” (Articu-
presas (inclusive transgênicas) e
lação Nacional de Agroecologia, 2003). rações. Sua expansão no território
Desde sua criação, a ANA se propôs brasileiro tem sido favorecida pela
a afirmar e fomentar uma cultura de implantação de grandes obras de
rede aberta, fundada nos princípios infraestrutura, tais como rodovias,
da “horizontalidade, sinergia e flexi- hidrovias, barragens, projetos de
bilidade” (Articulação Nacional de mineração entre outras. Essas obras
Agroecologia, 2003), constituindo-se têm sido promovidas ou fortemente
como uma plataforma de agregação de apoiadas pelos poderes públicos e
atores diversificados e expressivos do resultam na expropriação de amplos
setores das populações do campo que
campo agroecológico em suas variadas
são penalizados com a perda de seus
formas de manifestação.

133
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

direitos sobre os territórios e seus re- do essa concepção, a ANA deve ser
A cursos. Contrariamente à imagem de orientada de baixo para cima, a partir
modernidade e de eficiência técnica das iniciativas locais de promoção da
e econômica propalada pela grande agroecologia nos diferentes biomas.
mídia, o agronegócio está associado
Ao se ancorarem em estratégias de
na realidade a uma criminosa ca-
resistência e de luta por emancipação
deia de impactos negativos que se
irradiam no conjunto da sociedade enraizadas em conhecimentos locais
brasileira. O que a experiência prá- e altamente ajustadas a contextos es-
tica de populações rurais demonstra pecíficos, as experiências expressam
e estudos confirmam é que o modelo as capacidades dos atores de construir
do agronegócio é o principal respon- arranjos sociotécnicos e coesões políti-
sável pela concentração da terra, cas com influência sobre as trajetórias
pela violência no campo, pelo êxodo de desenvolvimento local. O exer-
rural, pelo desemprego urbano e está cício e o aprimoramento de práticas
ainda associado à degradação sem de sistematização e intercâmbio de
precedentes do patrimônio ambien-
experiências por movimentos sociais
tal – os recursos da biodiversidade,
e redes vinculadas à ANA têm contri-
os solos e a água. Além de ser um
instrumento de desagregação das buído para a ruptura com abordagens
culturas dos povos tradicionais, esse generalizadoras que subestimam ou
modelo é também o responsável pela mesmo desconhecem as estratégias e
insegurança alimentar e nutricional propostas inscritas nas diversificadas
de famílias no campo e nas cidades formas com que as populações locais
e pela perda da soberania alimentar enfrentam seus problemas e constroem
do povo brasileiro. (Articulação Na- e defendem suas identidades.
cional de Agroecologia, 2006, p. 4-5) Esse modo de ação, ref lexão e
Os maiores beneficiários e principais
exercício coletivo da ANA vincula-se
indutores desse modelo [o agronegó- diretamente à essência da proposta
cio] são corporações transnacionais agroeco­lógica enquanto enfoque porta-
do grande capital agroindustrial e dor de conceitos e métodos para a leitu-
financeiro. Apesar de seus crescentes ra e a ação sobre a realidade. Portanto,
investimentos em marketing social desafia as organizações e redes a uma
e verde, essas corporações já não permanente revisão e aperfeiçoamento
conseguem ocultar suas responsa- de seus métodos de ação, de forma a
bilidades na produção de uma crise valorizar em suas estratégias de ação
de sustentabilidade planetária que as capacidades políticas e de inovação
atinge, inclusive, os países mais de-
que se materializam nas experiências
senvolvidos. (Articulação Nacional
de Agroecologia et al., 2011, p. 17)
práticas nos territórios em que atuam.
Esse fundamento foi assim sinteti-
zado por ocasião do II ENA:
Centralidade das experiências
Um número cada vez mais signi-
A ANA atribui às experiências
ficativo de trabalhadores e traba-
concretas e aos seus promotores um lhadoras e suas organizações em
papel central na construção políti- todo o país tem compreendido e
ca do campo agroecológico. Segun- incorporado o entendimento de

134
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

que a agroecologia só terá capa- No polo da produção, a agroecolo-


cidade política de transformação gia se expressa material e socialmente A
se for efetivamente desenvolvida em um amplo espectro de sujeitos cole-
através de práticas concretas que tivos do campo, das florestas, das águas
garantam o atendimento de suas
e das cidades, portadores de múltiplas
necessidades e do conjunto da so-
identidades socioculturais e territoriais.
ciedade. Ao mesmo tempo que são
experimentadas e disseminadas A agricultura familiar camponesa, os
localmente, as práticas inovadoras povos indígenas, os(as) quilombolas e
do campo agroecológico constituem uma miríade de povos e comunidades
já embriões do novo modelo que tradicionais formam um rico e diversi-
está em construção e que inspira a ficado segmento da sociedade brasileira,
formulação de um projeto coletivo portador de racionalidades próprias de
de âmbito nacional. (Articulação organização do trabalho, de gestão dos
Nacional de Agroecologia, 2006) bens naturais e de divisão da riqueza
social. Essas racionalidades se traduzem
Sujeitos coletivos da agroecologia em práticas autônomas de reprodução
As experiências de agroecologia social ancoradas em conhecimentos e
expressam padrões de organização so- modos de vida que em nada se coadu-
ciotécnica e política dos sistemas agro- nam com o utilitarismo economicista e
alimentares frontalmente contrastantes o individualismo competitivo próprios
com os fundamentos econômicos e da economia política do agronegócio.
morais do agronegócio. Esses padrões Não sem razão, em um país marcado
são moldados por racionalidades de pela histórica concentração fundiária,
organização do trabalho e da vida social as lutas pelo acesso aos bens naturais, a
que enfatizam práticas de cooperação e começar pela terra, e a defesa dos direi-
reciprocidade na construção, gestão e tos territoriais apresentam-se como uma
defesa de bens comuns [ver Bens Comuns das frentes de mobilização do campo
e C ooperação Agrícola]. Nesse sentido, agroecológico articulado pela ANA.
opõem-se à lógica da privatização e da Essa ideia dá sentido à afirmação de que
mercantilização própria do pensamento “[...] o direito à terra e os direitos à água,
neoliberal que fundamenta o regime à soberania alimentar e à saúde estão
agroalimentar corporativo. fortemente associados” (Articulação
A sustentação política da proposta Nacional de Agroecologia et al., 2011).
agroecológica supõe a construção de Os processos de auto-organização
alianças entre variados segmentos das mulheres na ANA têm contribuído
da sociedade. Essas alianças devem para a formulação da crítica feminis-
transcender a dicotomia campo-cida- ta ao agronegócio, postulando que o
de, que induz padrões de divisão social patriarcado se coloca como um dos
do trabalho funcionais à reprodução principais obstáculos à construção da
do capital, para estabelecer formas de agroecologia. Ao afirmarem o lema
intercâmbio cooperativo e solidário “sem feminismo não há agroecologia”,
entre os dois polos dos sistemas agro- elas explicitam que a construção da
alimentares: produtores(as) e consu- agroecologia prima por uma visão ética
midores(as). de justiça social e ambiental que pressu-

135
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

põe a divisão justa do trabalho domésti- cial, a ANA constituiu-se como ponto
A co e de cuidados e o compartilhamento de convergência de um leque amplo e
da gestão da produção. Além disso, o diversificado de sujeitos individuais e
projeto agroecológico é indissociável coletivos cujas ações incidem desde a
de uma vida sem violência, regida pelo escala local até o âmbito nacional. Esse
respeito e pela igualdade, o que impli- abrangente e heterogêneo arco de alian-
ca a garantia do direito das mulheres ças configura-se como um campo unifi-
à plena participação na vida social cado, cuja coesão vem sendo construída
e política (Articulação Nacional de e permanentemente renovada em torno
Agroecologia, 2014). A crescente par- de valores e princípios que dão signifi-
ticipação das juventudes como sujeito cado político às práticas identificadas à
político da construção da agroecologia agroecologia. O fomento das interações
fundamenta-se também na crítica ao em rede entre esses sujeitos sociais autô-
modelo hegemônico que tem imposto nomos portadores de experiências é um
o esvaziamento do campo e a negação princípio político-pedagógico constitu-
de direitos à realização de seus projetos tivo da ANA. São essas interações que
sociais e profissionais enquanto agricul- impulsionam o movimento emergente
tores e agricultoras. A agenda política no qual as práticas, a reflexão crítica e a
das juventudes se expressa na luta por ação política integram-se reciprocamen-
melhores condições para a sucessão ru- te, conformando um círculo virtuoso
ral, o que passa pelos direitos de acesso que se expande e se fortalece com a
à terra, pela educação do campo e por diversificação de suas temáticas mobi-
políticas públicas de apoio à produção lizadoras e com a progressiva agregação
e à comercialização. de novas organizações, movimentos e
A contribuição das mulheres e das sujeitos sociais.
juventudes ao entendimento mais amplo Nesse universo institucional e iden-
e profundo do significado da agroecolo- titário múltiplo articulado pela ANA,
gia enquanto projeto de sociedade “en- as organizações não governamentais
fatiza também a incorporação das lutas (ONGs) têm assumido papeis destacados
antirracista, antiLGBTIfóbica e demais como mediadoras de interações em rede.
formas de preconceito, discriminação e Como expressão organizada e autônoma
violência social” (Articulação Nacional da cidadania crítica e ativa frente ao
de Agroecologia, 2018). Nesse sentido, modelo de desenvolvimento agrário e
em uma conjuntura marcada pela des- agrícola, as ONGs integradas à ANA
constituição de direitos sociais e políticos contribuem para construir ambientes
duramente conquistados pela luta do de intercomunicação entre segmen-
povo, a ANA explicitou o vínculo indis- tos do movimento social portadores de
sociável entre agroecologia e democracia identidades e bandeiras próprias, entre
no lema do IV ENA – “Agroecologia e conhecimentos populares e acadêmicos e
Democracia: unindo campo e cidade”. entre redes locais e regionais. Foram elas
também as principais estimuladoras de
Ação em redes vínculos de cooperação, de aprendizado
Como uma mobilização política horizontal e de ação em rede com orga-
dinamizada a partir da experiência so- nizações e movimentos que lutam pela

136
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

democracia e pela sustentabilidade. Esse fazem parte conformam-se como a pro-


efeito catalizador resultou na criação do jeção em escalas geográficas agregadas A
processo de diálogos e convergências de redes territoriais de agroecologia.
entre os movimentos de agroecologia, Essa concepção converge com a própria
de soberania e segurança alimentar e concepção de agroecologia, entendida
nutricional, de economia solidária, de como um enfoque para territorialização
saúde coletiva, de justiça ambiental e o dos sistemas agroalimentares.
movimento feminista.
Ao mesmo tempo que essa concep- Formato organizativo
ção de ação em rede possibilita romper Para colocar em prática seus funda-
o isolamento social e a invisibilidade mentos político-metodológicos, a ANA
pública das experiências contra-hege- criou, no decorrer de sua trajetória, va-
mônicas que emergem em diferentes riados espaços organizativos ajustados
contextos socioambientais e políticos ao caráter de flexibilidade, de autono-
do país, ela permite confluir práticas mia e da não sobreposição de agendas
e saberes singulares na construção de entre as organizações e movimentos,
sínteses coletivas inspiradoras de um características que devem marcar uma
projeto de transformação das institui- cultura de ação em rede.
ções e das relações sociopolíticas que Os Encontros Nacionais de Agroe-
organizam os sistemas agroalimentares cologia (ENAs) são a expressão máxima
dominantes. Por meio dessa articulação da capacidade de convocação e de con-
em redes, as experiências transcendem vergência dos distintos segmentos socio-
os limites de um localismo de resistência políticos mobilizados pela ANA, desde
para também serem assumidas como os territórios até a escala nacional. Os
portadoras de uma agenda afirmativa ENAs são preparados de forma descen-
para a sociedade. tralizada pela ação de redes e movimentos
Ao mesmo tempo que articula dife- esta­duais e regionais, a partir da siste-
rentes organizações e sujeitos coletivos, matização de experiências e do debate
as redes da ANA estruturam-se em di- de temas mobilizadores que articulam as
ferentes escalas geográficas. Concebida experiências práticas locais com o debate
inicialmente como uma rede multies- político em âmbito nacional.
calar que reconhece e se fortalece com Participantes dos ENAs, em sua
experiências particulares enraizadas em maioria agricultores e agricultoras,
contextos locais, a ANA incorporou são portadores de ref lexões críticas
aos poucos a perspectiva territorial construídas no curso da preparação dos
para descrever e analisar os processos encontros. A síntese política dos deba-
de construção da agroecologia. Como tes nos ENAs está registrada nas cartas
espaços de disputa com o agronegócio políticas, que expressam convergências
sobre os rumos do desenvolvimento lo- tanto na leitura do contexto sociopolíti-
cal, os territórios configuram-se como a co quanto em proposições e estratégias
principal arena de construção técnica e para o avanço da agroecologia nos ter-
política da agroecologia. Partindo desse ritórios e nas políticas públicas.
entendimento, a ANA e as articulações O I ENA, realizado em 2002, no Rio
de âmbito estadual e regional que dela de Janeiro, possibilitou uma primeira apro-

137
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

ximação e reconhecimento mútuo do específico nessa temática: o Coletivo


A campo identificado àquele momento com Nacional de Agricultura Urbana.
a proposta agroecológica. Quatro anos Concorreram para esse reconhe-
depois, em Recife, o II ENA explicitou cimento ampliado da agroecologia a
o antagonismo político e ideológico da instituição de políticas públicas para o
agroeco­logia com o agronegócio, afir- desenvolvimento rural e para o abaste-
mando publicamente a impossibilidade da cimento alimentar que valorizaram os
coexistência dos dois modelos. Posterior- potenciais multifuncionais da agricultu-
mente, em 2011, a ANA empenhou-se na ra familiar, contribuindo para a constru-
construção do Encontro Nacional Diálo- ção de vínculos diretos entre a produção
gos e Convergências: Agroecologia, Saúde alimentar diversificada e o consumo
e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, de alimentos saudáveis. No bojo desse
Economia Solidária e Feminismo, reali- processo de institucionalização de po-
zado em Salvador. O processo que levou líticas coerentes com agroeco­logia em
ao encontro e seus debates possibilitaram vários ministérios e órgãos públicos, a
a ampliação do arco de alianças políticas ANA se empenhou na mobilização de
com outras redes e movimentos sociais forças sociais em defesa de um enfoque
por meio do exercício compartilhado da integrador das dimensões econômica,
análise sobre as disputas e conflitos terri- social, ambiental e cultural nas ações
toriais que expressam a incompatibilidade do Estado na regulação das dinâmicas
e o irreconciliável antagonismo entre o do desenvolvimento rural e agrícola.
modelo de organização social e econômica A Política Nacional de Agroeco­logia
fundado no capitalismo industrial e finan- e Produção Orgânica (Pnapo), insti-
ceiro e um projeto popular, democrático e tuída em 2012 em resposta direta às
sustentável para o Brasil. demandas apresentadas por mulheres
Com o III ENA, realizado em 2014, rurais na Marcha das Margaridas, re-
a ANA dá continuidade a essa cons- presentou a culminância dos processos
trução, buscando ampliar diálogos com de incidência política da ANA sobre as
a sociedade ao lançar uma pergunta orientações do Estado. O III ENA foi
orientadora da luta contra-hegemônica: a oportunidade para a ANA, a partir
“Por que interessa à sociedade apoiar a da realidade dos territórios, debater os
agroecologia?”. Lançada no III ENA, avanços e os limites das políticas pú-
essa pergunta é expressão de um mo- blicas instituídas pelo governo federal.
mento histórico em que a agroecologia Ao mesmo tempo que reconhece os
deixava de ser uma proposição essen- avanços conquistados, a carta política
cialmente de movimentos rurais para do encontro denuncia “veementemente
alcançar crescente reconhecimento a aliança entre o Estado brasileiro e as
social e político por segmentos mais am- forças que sustentam e se beneficiam
plos da sociedade. Uma das evidências do modelo social e ambientalmente cri-
dessa ampliação de escopo foi o debate minoso do agronegócio” (Articulação
sobre práticas de agricultura urbana Nacional de Agroecologia, 2014, p. 11).
sistematizadas em diferentes regiões do Realizado em 2018, após o golpe que
país, amadurecendo as condições para destituiu o governo federal democratica-
a criação de um espaço de articulação mente eleito, o IV ENA foi essencial para

138
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

reposicionar a ANA no novo cenário nos espaços temáticos e demais espaços


político, marcado pela desconstituição organizativos da ANA. A
de direitos sociais e políticas públicas e Como espaços autônomos consti­
pela consolidação das forças reacionárias tuídos por representantes de organizações
nos aparelhos do Estado. Ao explicitar o e movimentos de diferentes regiões do
vínculo direto entre agroecologia e demo- país, esses GTs e Coletivos configuram-se
cracia, o IV ENA enfatiza a necessidade como redes internas à ANA. Eles têm a
de fortalecimento e diversificação de vocação de aprofundar seus respectivos
espaços organizativos autônomos integra- campos temáticos e adensar processos
dos à dinâmica da ANA. Essa orientação de auto-organização a partir do inter-
estratégica reconhece e reforça o processo câmbio e reflexão crítica sobre os con-
de multiplicação e adensamento de redes dicionamentos político-institucionais,
de âmbito territorial e articulações esta- culturais, técnicos e econômicos para o
duais de agroecologia em curso nas várias desenvolvimento de experiências locais
regiões do Brasil. de agroecologia e a afirmação de seus
Fazendo contraponto ao marketing sujeitos coletivos. Alguns desses espaços
ideológico do agronegócio, o IV ENA organizativos exerceram influência im-
reafirmou a necessidade de seguir dando portante em arenas públicas específicas
respostas à pergunta do III ENA com a nas quais são elaboradas e monitoradas
produção de evidências concretas de que políticas públicas.3
à sociedade interessa apoiar a agroecolo- Para assegurar um processo sistemá-
gia. Sua carta política enfatiza que tico de atualização da leitura das conjun-
Somente com o compromisso de bus- turas e estabelecer campos consensuais de
car a unidade na diversidade seremos atuação estratégica, a ANA organiza-se
capazes de dar passos rumo à cons- em uma plenária nacional composta por
trução de um projeto democrático e representações de movimentos, redes e
popular para o Brasil. Temos a clareza organizações de todas as regiões ativas
da dimensão estratégica da aliança na sua construção. Isso significa que a
entre a comunicação popular e a dinâmica constitutiva da ANA é per-
educação do campo para fortalecer as manentemente ativada e atualizada pela
lutas contra-hegemônicas. (Articula-
ação cooperativa e consen­suada de atores
ção Nacional de Agroecologia, 2018)
coletivos empenhados em expressar uma
Temas mobilizadores dos debates na aliança coletiva em defesa das ideias
ANA são abordados de forma sistemática e proposições consolidadas nas cartas
por grupos de trabalho (GTs) e coletivos políticas dos ENAs.
temáticos. Na medida em que tratam de As diretrizes estratégicas definidas
temas mobilizadores, esses espaços de nos ENAs e nas plenárias são operacio-
interação temática têm vigência mais ou nalizadas e coordenadas em conjunto por
menos permanente em função de con- duas instâncias executivas:
junturas particulares e pautas políticas a) um núcleo executivo composto
específicas.2 Por meio de processos de por representações de diferentes
auto-organização, mulheres e juventudes regiões e sujeitos coletivos que
constituíram grupos de trabalho próprios tem por atribuição principal a
para organizar a sua expressão coletiva mediação política entre os es-

139
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA

paços organizativos regionais e entre entes políticos autônomos. Não se


A temáticos e a plenária da ANA. fundamenta, portanto, em formas organi-
Desse ponto de vista, configura- zativas hierarquizadas baseadas no princí-
-se como um espaço de perma- pio da representatividade. Sua vitalidade
nente atualização da reflexão enquanto ator político depende de uma
crítica das conjunturas a partir coesão interna e uma legitimidade externa
da ausculta às redes regionais e mantidas e desenvolvidas pelo exercício
temáticas visando definir priori- permanente de diálogos e convergências
dades e captar e elaborar propo- na construção de unidades políticas que
sições de ação comum; valorizam e tiram partido da necessária
b) uma secretaria executiva, vincu- diversidade de expressões políticas e insti-
lada ao núcleo executivo, assume tucionais do campo agroecológico. O vigor
a implementação prática das de- e a permanência dessa vocação da ANA
liberações da ANA. dependem da crescente adesão dos sujeitos
Esse formato organizativo está conce- que a constituem a uma cultura de ação em
bido para fomentar um movimento social redes abertas fundadas na horizontalidade
emergente a partir da interação positiva e na autonomia política.

Referências
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA. Carta aos Participantes do I ENA. Rio de
Janeiro, 2003. (Documento enviado pelo Núcleo Executivo da ANA – não publicado). Disponível em:
https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Carta-aos-participantes-do-I-ENA_Constru%-
C3%A7%C3%A3o-da-ANA.pdf. Acesso: 15 jan. 2021.
_______. Carta Política do II Encontro Nacional de Agroecologia. Rio de Janeiro, 2006. Disponível em:
https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2019/09/carta-politica-iiena-pdf.pdf. Acesso em: 15
jan. 2021.
_______. Carta Política do III Encontro Nacional de Agroecologia. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em:
https://agroecologia.eita.org.br/wp-content/uploads/2014/07/carta-politica-iii-ena.pdf. Acesso em: 15
jan. 2021.
_______. Carta Política do IV Encontro Nacional de Agroecologia. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em:
http://enagroecologia.org.br/files/2019/03/carta_politica_web.pdf. Acesso em: 15 jan. 2021.
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA et al. Carta Política do Encontro Nacional
Diálogos e Convergências; agroecologia, saúde e justiça ambiental, soberania alimentar, economia
solidária e feminismo. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: https://agroecologia.org.br/2013/01/24/
carta-politica-do-encontro-nacional-de-dialogos-e-convergencias-2/. Acesso em: 15 jan. 2021.

Notas
1
A publicação do livro Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa, de autoria de Miguel
Altieri, bem como a realização de um curso com o autor para técnicos da Rede PTA são marcos nessa
trajetória evolutiva. Coordenadas pela AS-PTA, ambas as iniciativas ocorreram em 1989.
2
Os espaços temáticos da ANA vigentes após o IV ENA são os GTs de “Biodiversidade” e de “ATER
– Assistência Técnica e Extensão Rural” e os Coletivos de “agricultura urbana” e de “comunicação
e cultura”.
3
Como exemplos de incidência dos GTs da ANA em espaços oficiais de debate sobre políticas públi-
cas destacam-se: a) o GT Biodiversidade, nos debates sobre o marco legal referente às sementes e
outras políticas incidentes no campo; b) o GT Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, nos
debates sobre o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e o Programa
Nacional de Alimentação Escola (Pnae); c) o GT Construção do Conhecimento Agroecológico
sobre a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater); d) o GT Mulheres, sobre
programas voltados às mulheres rurais e sobre o desenho de editais públicos de Ater.

140
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

A
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

Naidson Q uintela
A lex a ndr e P ir es

Criada no ano de 1999, a Arti- rios e movimentos sociais diversos –, a


culação Semiárido Brasileiro (ASA) ASA é uma rede que defende, propaga
é uma rede de organizações sociais e põe em prática, inclusive por meio
que tem como princípio mobilizador de políticas públicas, o Programa de
a convivência plena com o Semiárido Formação e Mobilização Social para a
brasileiro, região geográfica que ocupa Convivência com Semiárido, onde se
12% do território nacional, 1,03 milhão destacam o Programa Um Milhão de
de km 2 distribuídos em 1.262 municí- Cisternas (P1MC), o Programa Uma
pios, presente em todos os estados do Terra e Duas Águas (P1+2), o Progra-
Nordeste e no norte de Minas Gerais, ma Cisternas nas Escolas e o Programa
com uma população aproximada de 27 Sementes do Semiárido. A ASA surge
milhões de pessoas, 12% da população para criar e fortalecer o Programa de
nacional (vide Resolução 115, de 23 Formação e Mobilização Social para
de novembro de 2017, da Sudene). O a Convivência com o Semiárido, e é
Semiárido Brasileiro é considerado o com essa perspectiva que apresentamos
mais populoso quando comparado a o verbete Articulação no Semiárido
outras regiões semiáridas do planeta. Brasileiro.
Ao nascer, a ASA propõe o paradigma
da convivência com o Semiárido, por Histórico, estrutura organizativa e
meio do qual se busca estabelecer pos- conteúdo mobilizador
sibilidades e meios de conviver com a Em 1999, o Semiárido passava por
natureza e as condições ambientais com mais uma forte seca, e o Estado bra-
base no conhecimento e nas experiên- sileiro se mostrava ineficiente diante
cias exitosas das famílias agricultoras, da tragédia humana vivenciada: mor-
e denuncia, de forma contundente, o talidade infantil e de idosos, perda de
combate à seca, paradigma que objetiva lavouras, morte dos animais, desem-
a manutenção do status quo por meio de prego, fome, misérias, êxodo e doenças
políticas excludentes, assistencialistas decorrentes da seca. Nesse mesmo ano
e dominadoras. Formada por mais de 3 aconteceria a 3ª Conferência das Par-
mil organizações da sociedade civil de tes da Convenção Internacional para
distintas naturezas – sindicatos e federa- o Combate à Desertificação, sediada
ções rurais, associações de agricultores na cidade de Recife, fechada e sem
e agricultoras, cooperativas, ONGs, garantir a participação da sociedade
pastorais sociais, grupos de mulheres, civil; como alternativa para disputar o
grupos de juventude, grupos identitá- debate da conferência, as organizações

141
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

sociais organizaram um fórum paralelo, sempre foi marcada por fortes estiagens
A pelo qual a sociedade civil participou e lutas populares, e experiências que no
e fez ecoar sua voz, suas denúncias e seu dia a dia denunciavam as injustiças,
suas propostas. as formas de exploração e opressão, e
Como propostas concretas para pautavam vivências e organizações so-
enfrentar os muitos problemas decor- ciais mais justas e comunitárias. Entre
rentes das secas, entre eles o acesso à elas estão: Canudos, com a figura de
água potável, a sociedade civil afirmava Antônio Conselheiro; Caldeirão, com
que a mais rápida e melhor forma para o beato José Lourenço; Pau de Colher,
garantir água para todas as famílias com o beato Severino; Quilombo dos
do meio rural seria a implantação de Palmares e a constituição de outros
um milhão de cisternas de placas; daí quilombos e as revoltas indígenas. Lu-
surge, em 1999, o Programa de For- tas estas todas reprimidas pelo Estado
mação e Mobilização Social para a brasileiro com força e armas, inclusive
Convivência com o Semiárido: Um com o uso das Forças Armadas. A ASA
Milhão de Cisternas (P1MC). Junto é também resultado das lutas mais re-
com o programa, a sociedade civil lança centes pela redemocratização do país.
uma carta de princípios para orientar a Na esteira destas lutas sociais e
ação das organizações e as políticas de manifestações significativas se podem
convivência com o Semiárido, a Carta computar, com destaque, a ocupação da
de Princípios do Semiárido, e, por fim, Sudene em 1993; coordenado pela Con-
se cria uma rede de organizações da tag com o apoio de outras organizações,
sociedade civil para implementar as mobilizou mais de 400 trabalhadores
propostas ali apresentadas; assim surge a e trabalhadoras de todo os estados do
Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Nordeste. A ocupação foi motivada
chamada, naquele período, Articulação pela situação de miséria e fome pela
no Semiári­do Brasileiro. O surgimento qual passavam o povo do semiárido
da ASA é um marco importante no Se- com três anos consecutivos de seca e
miárido e no país, pois amplificava a luta pela negligência do governo federal, que
por direito à água a partir de propostas ignorou essa situação.
concretas para o enfrentamento dos A ação da ASA é resultado do tra-
efeitos das secas, ampliava as denúncias balho de base de organizações sociais e
de políticas de combate à seca que só comunidades locais que se dedicaram a
garantiam a concentração de terra, água desenvolver experiências, em uma dupla
e poder na mão de poucos, e constituía perspectiva: de um lado, organizar mais
um novo paradigma de desenvolvimen- a população injustiçada e explicitar
to para a região, a convivência com o para o Estado e a sociedade as políti-
Semiárido, que tem sua base técnico- cas errô­neas, as explorações dirigidas
-científica nos conhecimentos locais e à população e, de outro, identificar,
na sistematização destes. desenvolver e aperfeiçoar com as co-
Fundada em 1999, a ASA é resul- munidades experiências de resistência
tante dos processos históricos de lutas existentes no Semiárido, analisando a
na região por água, terra, trabalho e potencialidade destas de se constituir
alimentos. A história do semiárido em políticas.

142
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

Costuma-se creditar à natureza, mento de que tais problemas não são


especialmente à falta de chuvas, a fome consequências da natureza, são de ordem A
ainda existente, a expulsão de sua gente política e da visão de desenvolvimento
pela migração, as mortes e o não aces- que se baseia nos limites, e não nos co-
so a oportunidades por parte de sua nhecimentos, gerados localmente; por-
população. Coloca-se, assim, na conta tanto, ao mesmo tempo que questiona, a
da natureza os resultados das ações ASA propõe o paradigma da Convivên-
inócuas e de exploração do povo pelas cia com o Semiárido, através do qual se
elites. Desta forma, essa exploração se busca estabelecer possibilidades e meios
transforma em algo “naturalizado” e, até de conviver com o ambiente, aproveitar
mesmo, como algo do querer de Deus. as potencialidades e conhecimentos
Ao nascer, a ASA questiona para- locais que reconhecem e valorizam as
digmas em torno do Semiárido: diversas formas e estratégias adotadas
• o combate à seca, baseado no por agricultores e agricultoras familia-
assistencialismo, dominação, res, suas comunidades e organizações.
dependência e exclusão, voltado Conviver com a natureza é aquilo que
para o desenvolvimento indus- todos os povos fazem. Combater não
trial da região e de ações palia- gera resultados sustentáveis.
tivas que privilegiavam o poder A ASA explicita um conf lito de
político e econômico local; paradigmas: de um lado, um modelo que
• o modelo de participação e defi- defende a acumulação da água, da terra
nição das ações para o semiári- e das oportunidades e, por isso mesmo,
do, cujas decisões ficam restritas provocador de injustiças, opressão e de-
a gabinetes e aos interesses de pendência socioeconômica e política das
grupos políticos e econômicos, populações do semiárido; e, de outro, o
em detrimento da participação paradigma do compartilhar, da produção
do povo sobre seu destino e pro- de conhecimentos, da participação, de
jeto para a região; promoção da vida e da oportunidade
• modelo de desenvolvimento em para todos. Com isso, a ASA também
que as ações e financiamentos, destaca que conviver com o Semiárido
com recursos do Estado brasilei- não é conviver com as secas, porque
ro, privilegiavam obras na lógica seria muito pouco; a convivência com
do combate à seca, mantendo o o Semiárido busca partir da observação
domínio político e econômico das pessoas em diálogo com a natureza,
sobre a terra e gerando a con- com seus múltiplos biomas, com sua gente
centração da água; bonita, valorosa e combativa, com seu
• questiona o paradigma sobre a conhecimento, sua cultura, sua vida, seu
visão que a sociedade brasileira modo de produzir.
construiu dos povos do semiárido, Para a ASA, a convivência com o
como pessoas ignorantes e atrasa- Semiárido se torna mais efetiva se, para
das; do semiárido como um lugar além dos elementos já levantados, per-
da negação, da não possibilidade. mite às famílias agricultoras uma maior
O paradigma defendido pela ASA capacidade de estoque, com destaque
parte da compreensão e do reconheci- para o estoque de água para consumo

143
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

humano e para a produção de alimen- 1,2 milhão de unidades construídas que


A tos; estoque de alimentos para animais garantem água para beber, e, depois,
e pessoas, com destaque para o estoque ampliando com o Programa Uma Terra
de material genérico adaptado e conser- e Duas Águas (P1+2), que somando-se
vado localmente, junto à conservação da à ação dos estados, conta com mais de
Caatinga e suas múltiplas possibilidades 200 mil famílias com acesso a uma se-
de armazenamento de vida e de criar gunda estrutura de água para produção;
animais adequados à região. o Programa Cisternas nas Escolas e o
A ASA conecta pessoas organiza- Programa Sementes do Semiárido.
das em entidades que atuam em todo o O P1MC foi tido como uma iniciati-
Semiárido, defendendo os direitos dos va provocadora, ousada, sonhadora, que
povos e comunidades da região. As sugeria metodologias e meios concretos
entidades que integram a ASA estão or- de se implementar o armazenamento
ganizadas em fóruns e articulações nos da água para o consumo de 1 milhão
dez estados que compõem o Se­miárido de famílias/5 milhões de pessoas no
brasileiro (MG, BA, SE, AL, PE, PB, Semiárido. O Programa Um Milhão de
RN, CE, PI e MA) e, para ampliar seu Cisternas não era apenas uma intencio-
processo de formação e mobilização nalidade; propunha uma quantidade
social, a ASA também lança mão de determinada de cisternas por estados e
outros processos organizativos, como regiões, continha os custos para a ação,
as Comissões Municipais da ASA, que descrevia seu processo metodológico e
estão em cada município onde atuam descrevia claramente como deveriam
as organizações-membros da ASA, com ser construídas as tecnologias. Ou seja,
o papel de controle social das políticas uma política universal, sob a gestão da
públicas e de mobilização social. Entre sociedade civil, mas que, para ser efeti-
seus espaços prioritários está o Encon- vada, precisaria contar com a parceria
tro Nacional de Agricultores e Agricul- do Estado, em especial o governo federal,
toras Experimentadoras e o Encontro bem como governos estaduais, iniciativa
Nacional da ASA (EnconASA), que privada, agências internacionais e doa-
mobilizam processos com centenas de ções institucionais e pessoais.
experiências de agricultores e agricul- Com o P1MC, a ASA teve a opor-
toras, em uma perspectiva de troca de tunidade de trazer para a prática o que
saberes e defesa de posições políticas e antes as organizações externavam em
formulação de políticas e orientações seus discursos; executar e visibilizar
para sua atuação no Semiárido. uma política que garantia de forma
efetiva água para as famílias do Se-
Programas, metodologia e relação miárido permitiu à ASA trazer para
com o Estado o seio da sociedade o debate aberto
Materializando o paradigma da con- sobre o paradigma da convivência em
vivência, a ASA construiu o Programa contraponto ao combate à seca; a ASA
de Formação e Mobilização Social para teve a oportunidade de mostrar que
a Convivência com o Semiárido, ini- o protagonismo dos/as agricultores/
cialmente com o Programa Um Milhão as experimentadores/as na constru-
de Cisternas (P1MC), hoje com mais de ção de suas histórias se mostrava mais

144
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

eficiente que qualquer outra forma de são um equipamento público e atuar


pensar o desenvolvimento local. Para com elas exige anuência do governo A
esta disputa, a ASA entendeu que pre- municipal, para que se comprometa com
cisaria montar uma forte estratégia de a sustentabilidade do processo; exige re-
comunicação, inclusive para combater lacionamento direto com os professores
o forte processo de violência simbólica e professoras, funcionários que servem
que vivia o povo do Semiárido. na escola e com os próprios estudantes.
O processo de comunicação cons- Com todos os desafios enfrentados
truído pela ASA buscou romper com o hoje, com uma política de dotar as esco-
paradigma que concebia o Semiárido las do semiárido com água que garanta
como um lugar de pessoas ignorantes seu funcionamento, instalou-se mais
e um lugar inviável. Dar visibilidade às uma possibilidade para o avanço da
experiências concretas de convivência convivência. Destaque nesta experiên­
com o Semiárido, que se materializam cia é o processo de formar professores
seguindo os princípios da agroecologia, e alunos na perspectiva da educação
resgatando e valorizando as capaci- contextualizada para a convivência
dades de inovação dos agricultores com o semiárido. A escola sediada no
e agricultoras como sujeitos políti- semiári­do não pode ignorar esta reali-
cos ativos, e não apenas recebedores dade, dado que vive situada e datada
de conhecimentos. Fortalecendo a neste contexto e é para conviver com
perspectiva da construção coletiva do ele que deve preparar seus estudantes.
conhecimento, as formações e capaci- Aprofundando o escutar da natu-
tações não como práticas de técnicos reza e da riqueza de experiências das
para agricultores, mas na dimensão do comunidades, a ASA se abre para outra
intercâmbio de experiências. Assim, linha de ação, denominada de água
a ASA vai se constituindo como um para produção. Trata-se do programa
sujeito político na construção de um Uma Terra e Duas Águas (P1+2), com a
semiárido vivo e viável. implantação de tecnologias que captam
Assumindo esta perspectiva políti- e armazenam a água de chuva para a
ca e metodológica, a ASA decide abrir produção. A ASA busca, então, que este
o leque de suas ações de convivência, armazenamento seja também familiar,
ao constatar que apenas a água para de forma que cada família possa ter água
consumo das famílias não era suficiente. destinada a dinamizar experiências
A poucos passos das famílias, as escolas produtivas de pequenas irrigações, de
frequentadas por seus filhos não funcio- hortas, de pomares, de criatórios de
navam por falta de água. Assim, a ASA animais, experiências estas situadas
decide trabalhar com água nas escolas no campo da agroecologia. Forma-se,
e consegue sensibilizar seus parceiros assim, um conjunto forte de possibili-
para esta empreitada, surgindo novos dades de acesso à água no semiárido
desafios, aprendizagens e metodologias. e, com isso, de acesso a vida. Água de
O programa Cisternas nas Escolas consumo humano, água para as escolas
abre a necessidade de negociação com e água para a produção.
o município e o poder público local. As Nessa parte do caminho se identi-
escolas onde se constroem as cisternas ficou que os/as agricultores/as possuíam

145
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

e possuem tecnologias adequadas para mais oportunos para o plantio. Retira


A armazenar a água para a produção: cis- os agricultores das mãos das empresas
ternas calçadão, cisternas de enxurrada, de agrotóxicos e transgênicos.
barragens subterrâneas, barreiros-trin-
cheiras, barrinhas, tanques de pedra e Relação com o Estado, controle social
outras. A ASA localizou, no diálogo com e relação com outros semiáridos
as comunidades, essas tecnologias e, a A experiência da ASA é inovadora
partir da vivência com os agricultores, e saiu da lógica de execução de projetos
as sistematizou e as aperfeiçoou com os localizados para a construção de uma
agricultores e as propôs como políticas. política pública gestada em grande parte
O arco da convivência não se fecha pelas organizações da sociedade civil
com a água, nas suas várias dimensões. para todo o Semiárido; porém, construir
E é fundamental que seja ampliada. políticas significava se abrir para o dife-
Deste modo, a ASA se projeta em ca- rente, principalmente se relacionar com
minhos como o das sementes crioulas. o estranho mundo de funcionamento
Servindo-se de experiências de sucesso do Estado por meio dos governos e de
realizadas em vários pontos e comuni- suas estruturas, Estado este que não
dades do semiárido, consegue-se que foi organizado para se relacionar com
o governo brasileiro, por meio do Mi- a sociedade civil, carecendo de marco
nistério do Desenvolvimento Social e legal, o que requereu novos aprendizados,
empresas públicas como o Banco Na- conhecer e se adaptar ao funcionamento
cional de Desenvolvimento (BNDES) da máquina estatal, construir outras for-
e a Fundação Banco do Brasil (FBB), mas de gestão da coisa pública, disputar
abracem a perspectiva das sementes e construir processos de diálogo, nego-
crioulas como mais um componente da ciação e muitas vezes, enfrentamentos.
convivência. Sementes que garantem a Neste processo, uma certeza: “se quere-
autonomia dos agricultores e agriculto- mos mudar a relação Estado/sociedade,
ras, pois ao possuí-las armazenadas, no temos de sair do campo dos projetos para
âmbito da família ou da comunidade, o das políticas”. Em outras palavras, no
materializa-se a liberdade e a autonomia dizer de um agricultor da Bahia “para
frente aos programas de distribuição as- pobre tem projeto, para rico tem política.
sistencialistas e, por vezes, inadequadas, A convivência com o Semiárido precisa
de sementes realizadas pelos governos. disputar a política”. No entanto, neste
O Programa Sementes do Semiárido caminho, a metodologia de debater, pro-
é uma estratégia para ampliar a seguran- por e enfrentar o Estado se manifestava
ça e a autonomia das famílias agriculto- diante das seguintes situações:
ras sobre suas sementes. Uma estratégia • necessidade de apresentar
que fortalece os processos de organização propostas concretas e com
comunitária e o espírito de solidariedade, argumentos de análise mais
cria condições para que os agricultores consistentes, e não apenas in-
e agricultoras se encontrem com sua tencionalidades do que fazer;
história, seus antepassados, sua região, • relação mais sistemática com
sua cultura e amplie a disponibilidade a estrutura estatal institucio-
de sementes crioulas para os períodos nalizada, necessidade de atuar

146
ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA)

de forma articulada, e não de a água como elemento básico para a


forma isolada. segurança alimentar dos povos. A
Esse processo de diálogo com o Como afirma conhecido especialista
Estado não se deu de forma fácil; con- em semiárido, o Professor Haroldo Schus-
tudo, a ASA elegeu como prioritários ter, fundador do Instituto Regional da
os espaços dos conselhos de controle Pequena Agropecuária Apropriada (IR-
social e construção de políticas (em PAA), conviver é ouvir da natureza como
âmbito nacional, estadual e regional/ lidar com ela, o que se deve e pode plan-
municipal) como fundamentais para a tar, o que guardar de alimentação para
irradiação do conceito de convivência pessoas e animais, o que e como guardar
com o semiárido. No Consea Nacional, de água para consumo e produção, o que
no Condraf, no Conselho de Econo- criar, o que conservar e proteger.
mia Solidária, na Cnapo e variadas Projetar uma política universal
comissões em escala nacional; compor de acesso à água é uma inovação que
os Conseas esta­duais, os Conselhos trouxe vários aprendizados, tanto para
de Desenvolvimento, Conselhos da o Semiárido como para outras regiões
Criança e do Adolescente, Conselhos do pais, e hoje, os princípios desta ação
de Assistência Social, ascendendo, in- já estão presentes em outras regiões se-
clusive, às presidências de alguns deles miáridas do planeta, com destaque para
como forma fundamental para pautar o Programa Um Milhão de Cisternas
a convivência tanto no campo das para a região do Sahel, que congrega
formulações quanto no apontamento 14 países da África Subsaariana, e o
nos debates do orçamento público processo de construção de cisternas e
federal. E foi assim que se conseguiu troca de experiências entre a ASA e
inserir a convivência com o semiárido organizações sociais e de pesquisa da
no orçamento já em 2003, ampliando região do Chaco, que compreende parte
a ação em 2007, e até construir um da Argentina, da Bolívia e do Paraguai,
marco legal com a lei das cisternas em e do corredor seco da América Central,
2013. O Consea teve um papel deter- que engloba Guatemala, El Salvador,
minante nessa conquista, ao defender Honduras e Nicarágua.

Para saber mais


SANTOS, A. P. S.; COSTA, C. J. S.; LAVORATO, F. et al. (orgs). Representações do semiárido [Livro
eletrônico]. Campina Grande: Insa, 2017. Disponível em: https://portal.insa.gov.br/acervo-livros/1091-re-
presentacoes-do-semiarido. Acesso: 15 jan. 2021.
CONTI, I. L.; SCHROEDER, E. O. (org.). Convivência com o Semiárido brasileiro, autonomia e protago-
nismo social. Editora IABS: Brasília, 2013.
LIMA, J. R. T. (org.). Agroecologia e movimentos sociais. Edições Bagaço. Recife. 2011.
PONTES, E. T. M. Transições paradigmáticas: do combate à seca à convivência com o semiárido nordes-
tino, o caso do programa Um Milhão de Cisternas no município de Afogados da Ingazeira – PE. Editora
Universitária UFPE: Recife, 2010.

Site
ASA: http://asabrasil.org.br/acervo/publicacoes

147
B
BENS COMUNS1

Julia nna M aler ba

Os comuns se referem a práticas coletivo dos camponeses e das comuni-


coletivas e auto-organizadas de compar- dades sobre suas sementes; etc.
tilhamento equitativo e gestão democrá- Essa definição implica considerar
tica de recursos (materiais ou imateriais), que o caráter comum atribuído a um
serviços ou espaços. Essas práticas se determinado bem não está dado por
regem pela adoção de princípios de não características intrínsecas, próprias à
apropriação permanente e exclusiva de sua natureza. Isso significa dizer que
bens considerados essenciais à sobrevi- atmosfera, água, biodiversidade, ruas,
vência, à manutenção da coesão social e parques, bibliotecas, conhecimento,
à garantia de autonomia. São exemplos espectro eletromagnético etc. são reco-
a criação de sistemas de produção e nhecidos e reivindicados como bens de
compartilhamento de conhecimento, uso comum porque as sociedades assim
como o desenvolvimento colaborativo os têm constituído historicamente. Os
de softwares livres; os acordos que re- bens comuns, portanto, são resultados
gulam as práticas de manejo, conser- de decisões políticas tomadas por co-
vação e uso comum da biodiversidade letividades que se sentem vinculadas
por comunidades camponesas e povos àquele bem, que dele fazem uso e que
tradicionais e as normativas que as pro- têm interesse em sua conservação e am-
tegem; o desenvolvimento de sistemas pliação (Helfrich, 2008). Nesses termos,
de distribuição e gestão comunitária das o próprio processo de comunização − isto
águas; as cidades, como produção social é, a constituição de “sistemas sociais
e coletiva de espaços compartilhados e jurídicos para administração dos re-
e as lutas que buscam protegê-las dos cursos compartilhados de uma maneira
cercamentos e privatizações promovidos justa e sustentável” (Bollier apud Leroy,
pela urbanização neoliberal; a instituição 2016, p. 2) − é parte constitutiva dos
de regimes jurídicos que garantem o uso bens comuns, porque é por meio dele
BENS COMUNS

que esses bens são produzidos como tais os recursos coletivos para garantir a sua
e mantidos desmercantilizados. reprodução social. Embora historiadores
Sob essa perspectiva, alguns autores como Bloch (2001) e Thompson (1997)
(Laval; Dardot, 2015; Mattei, 2013) con- tenham demonstrado que o processo de
B sideram os comuns como um princípio consolidação do individualismo agrário
político que tem influenciado as agendas (em contraposição aos direitos e ao
e práticas políticas de um conjunto de uso comum da terra) não ocorreu de
lutas e movimentos críticos ao contexto forma linear, homogênea e progressiva,
de intensa privatização imposta pelo tendo havido bloqueios e retrocessos
neoliberalismo e de esgotamento das que buscavam neutralizar os resultados
formas representativas de participação dos cercamentos, os efeitos cumula-
política. Em suas análises, sustentam que tivos desse processo transformariam
as resistências a novas formas de cerca- definitivamente as relações sociais de
mento e privatizações têm revelado um produção (definindo o predomínio da
mundo de relações comunais até então forma assalariada) e estabeleceriam um
pouco valorizadas, mas também produ- processo crescente de monetarização
zido novas formas de cooperação que se das relações econômicas.
contrapõem à racionalidade capitalista Os cercamentos das terras comunais
e à lógica normativa (da competição, do na Europa Ocidental e o processo de
mercado, do individualismo, do con- colonização das Américas – episódios
sumo, das soluções privadas) imposta fundantes da modernidade capitalista –
pelo neoliberalismo [ver C ooperação viabilizaram, por meio da destruição de
Agrícola]. Esse regime de práticas, lutas e bens comuns, a acumulação primitiva a
instituições apontariam para um “porvir partir da qual o capitalismo se desenvol-
não capitalista” que visa sua superação veu (Mattei, 2013). A percepção de que
(Laval; Dardot, 2016). esse modelo de acumulação originária
Com efeito, bens comuns ou comuns se mantém como um processo contínuo
são termos usados contemporaneamen- tem feito com que a antiga noção de
te para nomear recursos de uso compar- commons se torne uma referência meta-
tilhado e as práticas que os produzem fórica para as ações e os discursos que
e protegem. Eles têm como referência visam resistir à dinâmica privatista con-
o processo histórico de erradicação dos temporânea.2 No entanto, seria um erro
direitos consuetudinários sobre os usos afirmar que o nomadismo intertemporal
de terras comuns (commons) na Ingla- (entre passado e presente) do conceito
terra entre os séculos XVII e XIX. Esse signifique a reivindicação pela crítica
processo se consolidou mediante o cer- anticapitalista de um retorno a um pas-
camento (enclousures) de áreas de aces- sado idílico comunal. Essa elaboração se
so comunal que representavam fontes relaciona a processos absolutamente con-
complementares de alimento, pastagem temporâneos de resistência às dinâmicas
e madeira para famílias camponesas. do capital e à sua tendência de expandir
Privada da terra e de seus meios de sub- as relações mercantis e a propriedade
sistência, uma enorme massa de campo- privada a todas as esferas da vida.
neses foi obrigada a vender sua força de Além disso, a etimologia da pa-
trabalho, não podendo mais contar com lavra comuns nos informa sua origem

150
BENS COMUNS

latina, derivada da palavra munus, que – se manteve à margem do sistema ou


significa “encargo, dever, ofício, tarefa”. foram incluídos de maneira funcional e
Originalmente, comum significou “ato subalternizada, ora dando suporte a uma
de repartir deveres em conjunto”, sendo economia escravocrata e agroexporta-
uma expressão correlata ao conceito de dora, ora viabilizando um processo de B
reciprocidade, pois em munus a ideia de industrialização centrado na produção
encargo é acompanhada do sentido de de metrópoles e na exploração de mão
dom. Quem participa de um munus rece- de obra de baixo custo.
be um dom pelo qual se sente obrigado a Além da violenta despossessão a que
retribuir (Lipietz, 2012). Essa dimensão foram submetidas as populações nativas
de socialização do trabalho e de prática pela colonização e as pessoas escravi-
coletiva presente na origem da palavra zadas e trazidas à força do continente
também tem possibilitado a construção africano para cá, todo o processo de ins-
de relações semânticas entre os antigos titucionalização da propriedade privada
e os novos comuns. significou a estruturação de um mercado
de terras excludente, em que a terra foi
Comuns e questão agrária no Brasil mantida cativa e um amplo campesinato,
A história do Brasil é rica em exem- formado por meeiros, posseiros, colonos,
plos que demonstram a inexistência de foreiros, passou a se caracterizar por um
qualquer identificação afetiva das elites acesso precário à terra.3
com as demais classes sociais. Suas práti- Significou também a hegemoniza-
cas políticas sempre se deram no sentido ção de formas de ocupação territorial al-
de garantir a máxima lucratividade, no tamente predatórias, marcadas pelo uso
mais curto intervalo de tempo e por meio intensivo da terra e dos recursos (ciclos
da apropriação privada de bens públi- econômicos marcados por monocultivos
cos e comuns. Suas escolhas estiveram – café, cana – e extrativismo intensivo de
marcadas pela permanente ausência de recursos – minérios, borracha, madeira
um projeto inclusivo e de valorização da etc.) e pela concentração desproporcio-
nossa diversidade social (Holston, 2013; nal da degradação ambiental decorrente.
Sousa, 2017). Esta dinâmica ainda marca o modelo
Isso fez com que o processo de econômico e de ocupação territorial,
­neoliberalização assumisse no país fei- com uma complexidade ainda maior,
ções particulares em relação à expe­ tendo em vista o caráter globalizado e
riência fordista-keynesiana dos países do financeirizado da economia.
centro. Aqui, a promessa de integração Na experiência dos países centrais,
ao modo de produção capitalista foi a disputa de hegemonia entre os capitais
sempre um projeto incompleto que não rentista e produtivo resultou em políticas
alcançou o conjunto da sociedade nem públicas que visaram minimizar a renda
em termos de inserção no mundo do da terra em favor dos capitais produtivos.
trabalho assalariado nem tampouco em No Brasil, onde o conflito entre esses
políticas de proteção e bem-estar social. capitais nunca foi forte, a total ausência
Um conjunto significativo de homens e de políticas que impusessem limites ao
mulheres pobres – em geral, de ascen­ rentismo contribuiu também para o al-
dência africana ou origem indígena tíssimo grau de concentração fundiária

151
BENS COMUNS

no campo e de acesso precário ao solo preensão de que vários elementos que


urbano para as camadas populares (Ma- compõem a biodiversidade (sementes,
galhães; Tonucci Filho, 2017). solos, água, floresta, biodiversidade) são
Todo esse processo de exclusão que bens comuns que devem ser mantidos
B conforma o capitalismo brasileiro se estru- por meio do trabalho familiar e coletivo
turou em meio a muita violência (material (Petersen, 2016). Há, de fato, dentro
e simbólica), mas produziu resistências, o de um agrossistema camponês, uma
que também significou a emergência de parcela da propriedade que pode estar
movimentos sociais e de sujeitos políticos, verticalizada pelo mercado (por exemplo,
além de forjar modos contra-hegemônicos a produção integrada com empresas de
e criativos de ocupação e uso da terra e leite, fumo, porco etc.), mas há sempre
dos recursos. Muitos desses modos estão outra destinada ao autoconsumo e às
marcados pelo compartilhamento da trocas comunitárias (que inclui o cultivo
terra, pelo uso sazonal de porções do terri- e troca de sementes crioulas, a partilha
tório, pelo manejo e conservação da biodi- da caça etc.), que justamente garante a
versidade, por acordos de uso coletivo dos reprodução social quando o mercado
recursos que, no campo, produziram uma não a possibilita ou a ameaça. Podería­
enorme diversidade fundiária, além de mos conceituar o caráter reprodutivo
representarem formas de apropriação dos dessas práticas – exercido, via de regra,
recursos e de ocupação territorial muito por mulheres – como “externalidade de
menos predatórias em relação à ocupação bens comuns”.
territorial hegemônica a que me referia. Essas “externalidades” podem ser
De fato, estudos antropológicos têm tanto funcionais ao capitalismo quanto
visibilizado a diversidade fundiária brasi- contra- hegemônicas, a depender do grau
leira e as distintas formas de apropriação de organização política desses territórios
dos recursos em terras tradicionalmente e de sua capacidade de questionar narra-
ocupadas e espaços de produção campo- tivas que não dão conta de interpretar a
nesa onde opera um mosaico de modali- vida social em toda a sua complexidade,
dades de apropriação que não se pautam como nos mostram essas práticas a que
pelas formas de propriedade formalizadas nos referimos.
no ordenamento jurídico vigente. Nesses A experiência histórica desses su-
sistemas, a representação da terra articu- jeitos nas últimas décadas, no Brasil,
la domínios de posse com usufruto co- tem sido a de disputar narrativas e de
munal (áreas de campos ou pastagem, de dar um sentido político às suas formas
instrumentos de trabalho, de produtos de de relacionamento com o espaço em
coleta, caça ou de atividades de interesse que vivem. Em um contexto em que se
social comum) organizado por relações acirram as ameaças de desterritoriali-
de reciprocidade e pelo estabelecimento zação, indígenas, quilombolas, ribei-
de regras e acordos comunitários (Al- rinhos, quebradeiras de coco babaçu,
meida, 2006). castanheiros, seringueiros, piaçabeiros,
Em espaços de produção camponesa pescadores artesanais, comunidades de
Brasil afora – inclusive áreas de agricul- fundo de pasto, faxinalenses se mobili-
tura familiar, que, pelas regras do Direito zam e passam a se organizar em torno de
positivo, são privadas –, há uma com- identidades coletivas e de autodefinição

152
BENS COMUNS

que se vinculam notadamente a práticas onde crescem as palmeiras, as mulheres


reguladas por normas coletivas. vinham sendo impedidas de acessar os
Em face ao Estado, exigem a ga- babaçuais, o que ameaça suas condições
rantia não apenas do direito à terra que de reprodução social. No processo de
ocupam, mas à proteção e ao reconheci- luta por direitos territoriais referidos a B
mento de suas territorialidades específi- identidades coletivas, elas conquistaram
cas. Por meio de pautas reivindicatórias, leis municipais e estaduais que garantem
saem da invisibilidade e enunciam um o livre acesso aos babaçuais, mesmo
“jeito de viver” organizado a partir da em áreas de propriedade particular. No
relação socioprodutiva e cultural que centro de sua reivindicação não está a
desenvolvem com sua base territorial, e propriedade, mas o livre acesso, o que
buscam redefinir sua relação com o Es- de algum modo subverte a lógica do
tado e com a sociedade (Almeida, 2011). individualismo possessivo.
A reivindicação do direito à terra a Um dos resultados desse processo
partir da afirmação de territorialidades foi a instituição pelo Estado brasileiro
específicas colocou para o Estado – e sua de novos regimes fundiários que, em
razão instrumental soberana – o desafio alguma medida (e ainda com muitos
de responder às exigências de pluralismo limites), reconhecem e visam proteger
(não só na esfera territorial, mas nos essas práticas.4 Um aspecto relevante
âmbitos étnico e social), frente a uma dos sistemas de uso comum da terra
tradição positivista, presente no ordena- e dos seus recursos é que, sob a ótica
mento jurídico e nas formas de exercício mercantil capitalista, eles impedem
do poder, que tendia a compreender que a terra nesses espaços adquira um
a destinação de terras circunscrita ao sentido pleno de mercadoria, não es-
direito à propriedade privada e, majori- tando totalmente disponível para serem
tariamente, individual. transacionadas no mercado de terras.
A categoria “território”, referida a O reconhecimento e a proteção dessa
um espaço de caráter coletivo que inclui dinâmica no plano institucional des-
a terra e outros recursos materiais e naturalizam a afirmação de que toda
imateriais que dão suporte a identidades propriedade só pode ser individual e
coletivas, remete a modalidades de posse afirma a existência de espaços territo-
que não podem ser apreendidas pelo riais que são coletivos e inalienáveis.
conceito de propriedade que figura no Também visibiliza o papel histórico
Código Civil [ver Território]. do campesinato no manejo e proteção
Um exemplo emblemático refere-se da biodiversidade, cujos benefícios são
à reivindicação das quebradeiras de co- experimentados muito além das fron-
co-babaçu (presentes na região Nordeste teiras territoriais e temporais desses
e Norte do Brasil) pelo livre acesso aos sujeitos [ver Campesinato e Comunidades
babaçuais de onde extraem recursos, Tradicionais].
como a castanha e a palha do coqueiro É, portanto, evidente a contribuição
de babaçu, para produzir óleo, artesanato das relações sociais camponesas à prote-
e alimento para uso na comunidade ção de bens comuns. Mas a manutenção
e comercialização. Com a progressi- desses bens como comuns depende de
va privatização (e grilagem) das áreas ações extraterritoriais e de alianças cons-

153
BENS COMUNS

truídas em espaços políticos que também bens comuns. Sua existência, anterior
ultrapassam as fronteiras territoriais e apesar do aparelho estatal, aponta
onde se maneja e se conserva a água, bio- que a política não está circunscrita ao
diversidade, fertilidade do solo etc., onde Estado, ainda que tenha importância,
B se reproduz o conhecimento associado ao em contextos de conflito e desigualdade
manejo e conservação desses recursos. de poder, o reconhecimento e a proteção
Eis a importância do processo político a essas normatividades. Face à captura
por meio do qual esse campesinato ob- da política pelo Estado, os processos
jetivou garantir condições de reprodução instituintes de comuns demonstram
dessas relações: isso foi feito por meio de que a política não está, e não deve estar,
uma operação política na qual comuni- limitada ao Estado.
dades antes atomizadas construíram uma Temos assistido, nos últimos anos, a
existência coletiva e desenvolveram uma uma reestruturação formal do mercado
capacidade associativa que as conecta a de terras no Brasil. Encontram-se em
uma rede de articulação mais ampla que xeque todas as conquistas a que nos
envolve outras organizações, movimen- referimos em relação ao reconhecimento
tos e pesquisadores. Dessa maneira, os de direitos territoriais a povos e comu-
direitos territoriais conquistados pelos nidades tradicionais e outras a elas rela-
povos tradicionais e comunidades cam- cionadas, tais como o rompimento com
ponesas – assim como um conjunto de a política assimilacionista em relação aos
políticas públicas que reconhecem e bus- povos indígenas, a imposição de limites
cam oferecer condições de reprodução ao ao direito de propriedade (pela institui-
campesinato – passam a ter um sentido ção de sua função social e ambiental) e
político que transcende seus interesses e instituição de instrumentos que buscam
necessidades. Nisso reside a práxis insti- democratizar a política e o planejamento
tuinte, que garante a produção dos bens urbano. 5 O objetivo tem sido tornar
comuns pelo e com o campesinato. Man- o mercado a única instituição visível,
tê-la em uma sociedade marcada pela dominante e reconhecida pelo Estado,
concentração fundiária e pela negação além de neutralizar todas as conquistas
do papel de sujeitos políticos às classes que resultaram em alguma alteração na
populares é ao mesmo tempo desafio e correlação de forças em favor das popu-
condição para garantia dos bens comuns lações historicamente vulnerabilizadas
que essa práxis institui. e em uma disputa real com o modelo
hegemônico de produção e de uso da
O Estado e os comuns terra e de seus recursos.
Um aspecto relevante do processo Com a criação do Estado moderno
de conquista de direitos territoriais por e a invenção da propriedade privada, há
povos e comunidades tradicionais ao uma captura da política pelo Estado e da
qual nos referimos na seção anterior diz sociedade como o espaço do mercado,
respeito à afirmação da existência e a das trocas contratuais entre indivíduos
eficácia de normatividades outras, de livres, na qual a política é esvaziada.
sistemas sociais e jurídicos para a admi- Os comuns, como prática política e
nistração de recursos compartilhados, democrática, e seu alargamento, nos
necessárias à produção e proteção de ajudam a trazer a política para a esfera

154
BENS COMUNS

do social. Sendo assim, se é certo que cem não fiquem totalmente expostos ao
o direito insurgente dessas práticas de mercado. É preciso que se institua antes
produção de comuns não necessita do um direito ao comum (Matei, 2013),
reconhecimento do Estado para existir que limite a capacidade do Estado de
e ter eficácia social, em uma sociedade destruí-lo ou neutralizá-lo. B
crescentemente atravessada por rela- Como refundar a política para além
ções de poder desiguais e pela captura do Estado e apesar do Estado, sem pres-
dos interesses públicos pelo capital, é cindir totalmente dele, disputando-o? É
preciso cada vez mais a proteção do essa ordem de desafios que as lutas por
Estado sobre os comuns para que os ter- um mundo mais comum e diverso nos
ritórios onde essas experiências aconte- convidam a enfrentar.

Referências
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créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da
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imóveis da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13465.
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155
BENS COMUNS

Notas
1
Dedico este texto à memória de Jean Pierre Leroy, que sempre compreendeu os comuns como prática
instituinte e dedicou sua vida à defesa e à produção de bens comuns.
2
Importante registrar que a transposição da antiga noção de commons a diferentes domínios e ob-
jetos não tem se limitado ao campo dos movimentos sociais críticos ao capitalismo. Essa operação
B tem atravessado também o debate acadêmico e de organizações governamentais e multilaterais.
As representações do que seriam os (bens) comuns na contemporaneidade são disputadas por
concepções anticapitalistas e sistêmicas. Um exemplo de elaboração teórica sobre os comuns que
resultou em prescrições políticas liberais é o conhecido artigo “A tragédia dos comuns”, do ecólogo
Garret Hardin, publicado em 1968 na revista Science. Nele, o autor assinala que, em um pasto de
livre acesso, os pastores tenderiam a maximizar seu uso colocando cada qual o maior número de
ovelhas possíveis até colapsá-lo ecologicamente. Dessa metáfora, infere-se que somente a definição
clara de direitos de propriedade seria capaz de garantir o uso sustentável dos recursos. Embora
as críticas ao artigo assinalem o equívoco de identificar uma situação de livre acesso como um
bem comum (que pressupõe a existência de regras de uso e acesso instituídas coletivamente), a
metáfora elaborada por Hardin (1968) guarda relação com posicionamentos privatistas defendidos
por agentes de um ambientalismo de livre mercado e por instituições como o Banco Mundial
(Bastos, 2011).
3
Diversos autores (Holston, 2013; Silva, 1996) têm demonstrado que o principal efeito da Lei de
Terras, de 1850, foi impedir o acesso de cidadãos e imigrantes pobres à propriedade de pequena
escala. Com o fim da escravidão se anunciando, as elites que elaboraram a lei trataram de garantir
– por meio da fixação de preços não acessíveis às terras públicas, além de requisições de medições,
registros e pagamentos de encargos – que os imigrantes, cidadãos pobres, livres e libertos, não
ascendessem à terra a fim de torná-los força de trabalho sem-terra para substituírem os escravos
nas lavouras. A grande maioria permaneceu destituída de terras, ao passo que se ampliou a con-
centração fundiária no país.
4
No Brasil, temos atualmente várias modalidades de regularização fundiária que preveem a destinação
coletiva de terras a povos e comunidades tradicionais. Segundo a Constituição, as terras indígenas são
mantidas como bens da União, mas sua posse e usufruto são garantidos aos povos que as ocupam. Já
em relação às terras quilombolas, a lei prevê a concessão de um título coletivo aos moradores por meio
de sua associação. Em ambas, não está prevista nenhuma forma de concessão individual ou familiar.
Além do que estabelece o texto constitucional em relação aos povos indígenas e às comunidades
quilombolas, temos formas de destinação coletiva de terras asseguradas por políticas ambientais (no
caso das unidades de conservação de uso sustentável, que reconhecem a importância da presença das
populações tradicionais para a conservação da biodiversidade e asseguram a sua permanência nessas
áreas: é o caso das Reservas Extrativistas/RESEX e Reservas de Desenvolvimentos Sustentável/RDS,
por exemplo) e de reforma agrária (que prevê a criação de Projetos de Assentamentos Diferenciados
em áreas onde há muita biodiversidade e presença de populações tradicionais). Nos assentamentos
diferenciados, assim como em terras tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades tradi-
cionais protegidas por políticas ambientais (como, por exemplo, as RESEX e as RDS), o processo
de regularização fundiária não prevê, a rigor, a entrega de títulos individuais. Isso é feito por meio
de um contrato de concessão de direito real de uso celebrado com as entidades representativas das
famílias. Todas essas terras, a rigor, não podem ser vendidas e não está previsto o seu parcelamento
em lotes familiares (como nos assentamentos convencionais), embora os limites de ocupação e uso
de cada família sejam reconhecidos e respeitados.
5
As leis que estão sendo formuladas no Congresso ou via decretos pelo Executivo têm o sentido
de neutralizar os regimes fundiários que protegem a propriedade ou a posse coletiva no campo e
os interesses de populações empobrecidas nas cidades. A reforma agrária está sendo substituída
por políticas de regularização fundiária que, sob argumento de regularizar a posse de pequenos
camponeses, está legitimando grilagem de terras públicas no campo e na cidade. O exemplo mais
emblemático é a Medida Provisória n. 759 (Brasil, 2016), convertida na Lei 13.465/17 (Brasil,
2017). Ela alterou os regimes jurídicos relacionados à regularização fundiária rural e urbana e
criou mecanismos que facilitam os critérios de titulação e a antecipação da emancipação dos
assentamentos. Também modificou as regras de alienação dos imóveis da União, estipulando
preços bem abaixo do mercado e ampliou para 2.500 hectares o limite da área de terra devoluta
passível de ser regularizada na Amazônia pelo Programa Terra Legal, facilitando a grilagem, já
que uma área desse tamanho não corresponde a uma ocupação de boa-fé, destinada à produção
e ao trabalho familiar.

156
BIOMA AMAZÔNICO

BIOMA AMAZÔNICO
B
S ilvio S imione da S ilva

A Amazônia, na atualidade, corres- só por águas. Depois, com tantos


ponde à maior reserva da biodiversidade sedimentos, a crosta terrestre tornou
do planeta. Ocupa cerca de 47% da emergir e, aos poucos, formou-se o
América do Sul e aproximadamente que é hoje a Amazônia.
57% do território brasileiro, se esten- Sua diversidade é caracterizada
dendo por nove países, e sendo habita- tanto pela fauna como pela flora, sendo
da, no plano internacional, por cerca resultante de processos seculares de
de 30 milhões de pessoas, com várias formação pedológica (solos), geológi-
cidades de grande e médio porte como: ca (rochas) e geomorfológica (relevo
Manaus, Belém, Porto Velho, Ji-Paraná, e hidrografia). Tudo isto submetido
Macapá, Santarém, Rio Branco, Boa a uma condição localizacional em
Vista e Tabatinga, no Brasil; Iquitos zona equatorial, em que as variações
e Pucalpa, no Peru; Leticia, na Co- climáticas estarão caraterizadas pela
lômbia; Caiena, na Guiana Francesa; diversificação de comportamentos dos
Georgetown, na Guiana; Paramaribo, regimes de chuvas (pluviométricos)
no Suriname, entre outras. anuais. Tal diversificação se distingue
A expressão desta grandeza foi assim por períodos de estiagens (secos) e
demonstrada por Malvezzi (2014, p. 8): períodos chuvosos intensos (úmidos),
‘Pulmão do Mundo’, ‘Planeta Água’, no geral, sob constantes temperaturas
‘Inferno Verde’ são alguns dos cha- elevadas.
vões mundialmente conhecidos a Sob essas condições formaram, en-
respeito da Amazônia. Está sempre tão, amplos e diversos domínios de bio-
em evidência em qualquer ponto da diversidades, dando face ao complexo
aldeia globalizada. Interessa a todos. ambiental amazônico. Isto, na evolução
Uma das últimas regiões do planeta dos tempos geológicos, foi o que possibi-
que ainda seduzem pela exuberância litou à região sua configuração natural
de uma natureza primitiva, hoje
tal qual hoje a conhecemos, por uma
absolutamente ameaçada por sua
devastação. A Amazônia guarda
grande e diversificada fitofisionomia
a maior diversidade biológica do (características dominantes da forma-
planeta – região megadiversa – e ção vegetal de um lugar). Configura-se,
escoa 20% de toda água doce da assim, nesse conjunto, muito do que
face da Terra. Seu início se deu há se caracteriza por bioma amazônico,
12 milhões de anos atrás, quando submetido na atualidade às ações hu-
os Andes se elevaram e fecharam manas movidas por forças econômicas
a saída das águas para o Pacífico. hegemônicas mundializadas que atuam
Formou-se um fantástico Pantanal, sobre o espaço local/regional, ora pre-
quase um mar de água doce, coberto servando-o, ora modificando-o.

157
BIOMA AMAZÔNICO

Toda esta realidade hoje se coloca considerando que esse não se carac-
como elemento de preocupação mundial, teriza por apenas uma fitofisionomia.
dado que a Amazônia se encontra entre Consideramos que as diferenças dos
as áreas de maior impacto no planeta ecossistemas que compõem um com-
B pelos danos causados pelo avanço do plexo regional podem conferir biomas
capital, nas suas incessantes buscas de próprios quando certas áreas estão sub-
obter e dominar fontes de recursos. Sen- metidas a condições geomorfológicas,
do assim, esta biodiversidade passa a ser pedológicas e climáticas específicas na
vista e colocada nos jogos de interesses complexa variabilidade que forma a
globais como ente basilar, a ser disputa- Amazônia.2 Mas então o que realmente
do territorialmente para a dominação vem a ser o bioma, a biodiversidade e o
capitalista, visando sua transformação domínio neste conjunto geográfico de
em mercadoria. Tais situações estão análise? Vejamos, conforme Coutinho
promovendo mudanças enormes, capazes (2006, p. 18) “o bioma é um tipo de
de terem efeitos planetários, exercendo ambiente bem mais uniforme em suas
influência no equilíbrio do conjunto de características gerais, em seus processos
vidas (no sentido integral) que aqui se ecológicos, enquanto o domínio é muito
desenvolvem, ou seja, como ameaça ao mais heterogêneo. Bioma e domínio não
grande bioma amazônico. são, pois, sinônimos”.
Mas diante da complexidade dessa Acrescenta o referido autor que os
vida natural, pensar na Amazônia como domínios morfoclimático e fitogeográfi-
um bioma único pode ser simplificador.1 co amazônico não estão constituídos de
Pois, se por um lado, tem-se a grande re- um tipo exclusivo de floresta, ou por um
gião, uma unidade dada pela rede hidro- único bioma, em toda sua extensão ter-
gráfica e a localização na zona tropical, ritorial. Existem, na Amazônia, diversas
por outro, a diversidade geomorfológica, tipologias de biomas, de florestas densas
com altitudes que variam do nível do de terras firmes, como também aquelas
mar até mais de 3 mil metros e a con- em áreas de matas fluviais e planícies ala-
sequente variação climática, produziu a gadiças; a “floresta de igapó, inundável,
grande variedade florística e faunística, um bioma de floresta pluvial tropical”
traduzindo em diversidade fitofisionô- (“hidrobioma”); áreas de formação de sa-
mica. Com isto facilmente identifica- vanas e “campos rupestres”, como os dos
mos floresta de várzeas (terras baixas), picos das serras, nas fronteiras do Brasil
matas de igapós (lagos rasos), floresta de com países vizinhos (“orobioma”) etc.
terra firmes (terras altas), vegetação de O domínio amazônico não é, portanto,
montanhas, formação de savanas entre um bioma único. “Ele é um mosaico de
outras. Assim sendo, certamente o mais biomas, em que se expressa por gamas de
correto seria tratarmos de biomas, sub- fitofisionomias, produtos destas varieda-
metidos a um amplo domínio biodiverso, des condicionais” (Coutinho, 2006, p. 6).
como sendo o que realmente retrata a Ademais, entende-se que, em sua di-
Amazônia em sua totalidade regional versidade, a floresta amazônica funciona
sul-americana (Coutinho, 2006). como um grande depósito de carbono,
Dizemos isso pois o “domínio” ama- contido em uma biomassa que em média
zônico pode comportar diversos biomas, chega à casa das 460 toneladas por hecta-

158
BIOMA AMAZÔNICO

re, que correspondem ao quantitativo de água [ver Á gua], em seu retorno para
carbono fixado nos territórios florestais. a atmosfera (Lyra, 2015); isto ajuda na
O desmatamento florestal e a queima da manutenção dos regimes pluviais na pró-
mata levam esses montantes de carbono pria região e na circulação das massas de
a serem liberados para a atmosfera em ar em toda a América do Sul. Tudo isto B
forma de CO2 (dióxido de carbono), sendo demonstra a importância do(s) bioma(s)
então produzidas mudanças drásticas no amazônico(s) no mundo.
processo de armazenamento natural de É importante considerar que há
carbono no solo amazônico e na atmos- grandes interdependências entre as for-
fera terrestre (Capobianco, 2002). mas de vidas (vegetal e animal), desde as
Ademais, a liberação mais inten- mais complexas até aquelas microscópi-
sa do CO2 para a atmosfera provoca cas, com os fatores abióticos (os solos, as
mudanças nos sistemas hidrológicos e águas, o relevo, o clima etc.). Isso torna
climatológicos na Amazônia. Também a Amazônia um mosaico de ambientes
após o desmatamento, a recomposição (ecossistemas) de grandes sensibilidades
da floresta com vegetação secundária às ações antrópicas que atuam mudando
sempre tem menor capacidade de enrai- suas fitofisionomias através de ações
zamento, diminuindo o potencial para como os desmatamentos, as queimadas,
a evapotranspiração.3 Isto se dá pois a os represamentos de rios, a expansão de
“Floresta Amazônica libera cerca de 7 lavouras comerciais entre outras.
trilhões de toneladas de água anual- Nessas ações impactantes, o des-
mente para a atmosfera pela evapotrans- matamento e a propagação de diversas
piração. Este processo tem grande [...] formas de ocupação e exploração dos
importância para o clima da Amazônia” recursos regionais têm produzido ex-
(Capobianco, 2002, p. 49), fornecendo o pressiva devastação florestal, levando à
vapor para formação de nuvens, que são extinção de grande parte de sua fauna
responsáveis pela maior parte da preci- (pássaros como araras, tucano-do-bico-
pitação pluviométrica regional, isto é, -preto, jacamins, gavião-real, papagaios;
regime de chuvas, com influência sobre animais terrestres como ariranhas, an-
o clima de toda a América do Sul. tas, lontras, onças; aquáticos como o
Ressalta-se ainda que se encontra na peixe-boi, pirarucu, botos etc.), sua flora
floresta Amazônica cerca de um quarto (castanheiras, pau-rosa, mogno, cumaru-
das espécies vegetais do planeta, sendo -de-cheiro etc.) e a um desequilíbrio nas
esta biodiversidade responsável por cerca condições morfoclimáticas deste conjun-
de 15% de toda a fotossíntese da Terra. to de vida natural. Assim, nas últimas
Tudo isto faz com que a região se conver- décadas, atividades econômicas como a
ta em uma grande reserva de carbono, agropecuária e o extrativismo madeireiro
oferecendo ao planeta uma importante impuseram ritmos de exploração que
ação ambiental que promove a limpeza promovem grandes desmatamentos e
da atmosfera, inclusive diminuindo os queimadas de áreas florestais.
gases de efeito estufa. Ademais, promove Cabe salientar que as queimadas
a extração de água do solo por via dos ainda são recursos usados na preparação
sistemas de enraizamento das árvores, da terra para as atividades agropecuárias,
contribuindo fortemente no ciclo da como uma forma de manejo tradicional

159
BIOMA AMAZÔNICO

no controle das pragas em pastagens e mo cada vez mais se tornou difícil de ser
para a limpeza de novas áreas que serão mantido, perante o ritmo da reprodução
transformadas em campos. São práticas que o capital impôs à região Amazônica
acessíveis a todos os produtores, porém, (Ab’Saber, 2003), abrindo maior espaço
B deveras perigosas, pois a propagação do para a expansão do agronegócio [ver
fogo, em períodos de estiagem, pode atin- Agronegócio].
gir inclusive a floresta em pé, levando a Ademais, aqui se entende que as
grandes danos e mudando totalmente a causas dessa expansão de atividades
fitofisionomia de um lugar. predatórias são os interesses econômicos
Assim, mudaram fortemente os pa- que se sobrepõem às condições de vida
drões de usos do passado que se pauta- regional. Isto significa que a Amazônia
vam por práticas menos agressivas (como cada vez mais entra no circuito do agro-
o extrativismo da borracha), para uma negócio, com produção de condições
total mudança do espaço produzido para o avanço das atividades pecuaristas
com formação de lavouras comerciais e agrícolas em escalas de produção e
e pastagens extensivas. Sobre isso, cabe circulação mundial.
entender que a atividade extrativista da Então, diante de uma natureza exu-
borracha, embora submetida à explora- berante como se apresenta, as indústrias
ção empresarial capitalista, fora menos mineradoras, garimpos, madeireiras
agressiva ao ambiente florestal de modo e até mesmo frigoríficos se desfazem
geral. Os seringueiros (trabalhadores na de seus resíduos (escórias) industriais,
extração da borracha) abriam trilhas na promovendo forte poluição sobre o solo
floresta ligando a localização das serin- e os cursos fluviais. A isto, soma-se o
gueiras (árvores produtoras da borracha); surgimento de grandes áreas de lavouras
eram as “estradas da seringa”. A extração vinculadas à expansão do agronegócio
da borracha (látex), por ser atividade que, como já mencionamos, destrói a
­diária, obrigava os trabalhadores a man- formação natural, promove a erosivi-
ter as árvores bem cuidadas para produzir dade da superfície; envenena o solo e
mais. Assim, a floresta se colocava para o ar com agrotóxico e, enfim, degrada
o seringueiro como seu espaço de vida o ambiente e a vida em geral. Se soma
e de trabalho. Cuidar bem desse espaço ainda o adensamento demográfico, que
era preservar suas condições vivenciais e tem promovido a ampliação de áreas ur-
garantir a continuidade para gerações fu- banas, o que produz maior degradação no
turas. Neste sentido, as formas extrativis- conjunto natural e articulado do grande
tas desenvolvidas na floresta colocavam domínio amazônico (Ab’Saber, 2003).
os trabalhadores em uma maior sincronia Dessa forma, como vimos, desde as
com os biomas aos quais se vinculavam últimas décadas do século XX, a expan-
no seu dia a dia produtivo. Por tudo são de atividades como o extrativismo
isso, pode-se dizer que o extrativismo madeireiro e a agropecuária têm se con-
da borracha produzia pouco impacto, solidado. Com isso, formas mais agressi-
embora feito sob forte exploração do vas ao ambiente local levam a grandes
trabalho humano [ver Empates]. Diante impactos, com o desenvolvimento de
do fracasso da economia da borracha ao sistemas produtivos mais adequados
longo do século passado, esse extrativis- economicamente, porém que dificultam

160
BIOMA AMAZÔNICO

a implantação de práticas sustentáveis ameaças provindas tanto da expansão


na região. Como consequência, em meio econômica como da desterritorialização
às ameaças ao(s) bioma(s) amazônico(s), [ver Território] da produção e dos modos
tem-se visto o acirramento das questões de vida tradicionais. Com isso, fica claro
agrárias, em que os conflitos pelo do- que os problemas que se formam no B
mínio fundiário se impõem devastando espaço das cidades também são partes
formas tradicionais de uso da terra fundamentais para entender as ameaças
(como o já mencionado extrativismo da ao ambiente natural amazônico, isto é,
borracha, o uso da terra pelos indígenas ao(s) bioma(s) amazônico(s).
na coleta extrativa, as lavouras de au- Em suma, para fazer frente a tudo
tossustentação familiar, as lavouras de isso é preciso avançar no conhecimento
praias nas vertentes dos rios etc.). Isso sobre a região, seu ambiente natural, sua
ao passo que as perspectivas econômi- dinâmica morfoclimática, sua popula-
cas que se apresentam nas crescentes ção humana e a lógica econômica que
cidades regionais (principalmente nas lhe é imposta. O desafio é: como crescer
capitais estaduais como Manaus, Belém, socioeconomicamente diante da neces-
Rio Branco, Porto Velho, Macapá, Boa sidade de preservação/conservação das
Vista e principais cidades como Ji-para- condições naturais amazônicas que,
ná, Cacoal, Santarém, Marabá etc.) des- mesmo sendo tênues, são necessárias
pertam a questão urbana. São processos aos equilíbrios da vida regional. Portan-
de urbanização em que a população se to, não se pode entender o(s) bioma(s)
concentra fortemente em uma cidade amazônico(s) sem considerar que no
(por exemplo: Rio Branco, capital do território em que se formou natural-
Acre, atualmente concentra em torno mente, novos atores (como a população
de 52% da população estadual) na qual humana e os interesses econômicos)
o desemprego, o déficit habitacional, estão se territorializando. Por fim, cabe
a agressão ao ambiente natural e às reforçar que as ameaças ao(s) bioma(s)
condições humanas de vida também se também estão materializadas nas forças
concentram. Isso promove a formação de espoliação das condições tradicionais
de áreas-problema, em amplas formas de vidas das gentes simples, filhos desta
de degradação que atingem o ambiente terra e que há muito tempo vivem nela,
natural, mas também a dignidade hu- sem ameaçar o equilíbrio da vida natu-
mana. Assim, o(s) bioma(s) amazôni- ral que sobre este solo, milenarmente,
co(s) se apresenta(m) cada vez mais sob se desenvolveu.

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Notas
1
Isso afirmamos tomando por base as considerações de que “da maneira como vem sendo usado
no Brasil, o conceito de bioma adquiriu erroneamente uma conotação florística. Na verdade, o
conceito de bioma é similar ao de formação vegetal, mas leva em conta a associação da vegetação
com a fauna e com os microrganismos. Assim, por um lado, o conceito de bioma é fisionômico e
funcional, isto é, levam-se em conta a aparência geral da vegetação e aspectos como os ritmos de
crescimento e reprodução; por outro, o conceito não é florístico, isto é, a afinidade taxonômica das
espécies que aparecem em várias unidades de um mesmo bioma é irrelevante” (Batalha, 2011, p. 2).
É destas associações que se produzem diferentes fitofisionomias, configurando em biomas diversos
que podem ser caracterizados.
2
Aqui entendemos, conforme Odum e Barrett (2007, p. 12), que “[...] o ecossistema é uma unidade
funcional básica, uma vez que inclui tanto organismos (comunidades bióticas) como o ambiente
abiótico, cada um deles influenciando as propriedades do outro, sendo ambos necessários para a
conservação da vida tal como existe na Terra”.
3
Evapotranspiração aqui é entendido como o processo combinado de evaporação e transpiração de
águas dos solos e das plantas que são devolvidas para a atmosfera, como perdas de umidade poten-
cializadas pela ação do calor e dos ventos.

BIOMA CAATINGA

D ilma Trovão
J onas D uarte da C osta

A Caatinga é o bioma que recobre a um complexo de vegetações que, em as-


maior parte do semiárido, corresponden- sociação com o clima e o solo, apresenta
do a 844.453 km2 (Santos et al., 2011) e a várias “faces” ou fisionomias e também
11% do território brasileiro. Trata-se de uma fauna peculiar. Nessa formação,

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B I O M A CAAT I N GA

encontra-se um intricado conjunto de curtos, normalmente ocorrentes em três


gradientes ambientais. Variações lati- meses consecutivos, variáveis dependen-
tudinais, longitudinais, altitudinais, de tes da localidade geográfica (Sampaio,
umidade, temperatura, precipitação, 1995; Prado, 2003; Santos et al., 2011).
explorações e ocupações humanas. Por- O período de ocorrência das chuvas B
tanto, não existe uma única Caatinga, normalmente se restringe a três meses
e sim o resultado de várias associações variáveis na extensão geográfica, é lo-
que consubstanciam múltiplas vegeta- calmente conhecido como inverno, e o
ções e seus organismos associados, com período sem chuvas, de verão, embora
características similares e distinguíveis essas designações possam não correspon-
quando comparadas entre si. der às estações homônimas do ano. Além
O termo Caatinga tem origem na disso a Caatinga é também caracterizada
identificação feita pelos indígenas na lín- por um sistema de chuvas extremamente
gua tupi, onde caa significa mato e tinga irregular de ano para ano, o que resulta
designa a cor esbranquiçada ou acin- em secas severas periódicas (Nimer,
zentada dos caules lenhosos da maioria 1972; Prado, 2003; Krol et al., 2001;
das plantas. A Caatinga está presente Chiang; Koutavas, 2004; Leal et al.,
em latitudes semelhantes às da floresta 2005). A região geográfica recoberta pela
Amazônica; no entanto, sua localização caatinga apresenta solos rasos, argilosos
geográfica a submete ao clima tropical e pedregosos (cristalino), com a rocha-
estacional semiárido (Coutinho, 2016). -mãe escassamente decomposta, com
A estacionalidade climática propiciou afloramentos de rochas maciças em sua
a essa vegetação uma dinâmica de fun- maioria, fato que contribui também para
cionamento submetida a essa condição. a escassez hídrica por impossibilidade de
Suas plantas apresentam adaptações armazenamento de água (Tricart, 1961;
anatômicas, morfológicas e fisiológicas Ab’Saber, 1974; Sampaio, 1995). As
que responderam evolutivamente a essas temperaturas elevadas, a alta incidência
variações presentes. Por conseguinte, a luminosa e a baixa profundidade do solo
fauna associada (indissociável) e a di- são corresponsáveis pelo déficit hídrico,
nâmica das relações ecológicas também uma vez que promovem altas taxa de
respondem a essas variações. evapotranspiração [ver Desertificação]
Na Caatinga, a disponibilidade de (Trovão et al., 2007).
água é o fator crucial, e este componente Os rios da Caatinga são intermi-
deriva da associação dos fatores ambien- tentes, ou seja, sua fluidez é temporária,
tais que corroboram para esta limitação. restrita na maioria dos casos aos períodos
Todas as formas de vida dependem da de chuvas. O lençol freático é alimenta-
água e a base de sustentação de todas as do pelas precipitações, e, em decorrência
cadeias tróficas no bioma depende da ca- dos desmatamentos constantes – que
pacidade que os organismos apresentam levaram à supressão da vegetação em
para lidar com a escassez hídrica. Nas 70% de sua área original (Leal et al.,
Caatingas nordestinas (existem outras 2005) –, a água não é atraída para a
caatingas, por exemplo, as caatingas superfície por suas raízes. Os resquícios
amazônicas), as precipitações variam de umidade nas margens dos rios e nas-
entre 240 e 1 mil mm, restritas a períodos centes, por um período maior que em

163
B I O M A CAAT I N GA

outras áreas, levou à retirada das matas animais, inclusive o homem, na época
ciliares e à substituição por agricultura da escassez hídrica mais severa. Espécies
de subsistência e forrageiras para reba- de madeiras nobres, como o pau-ferro
nhos. Tal fato contribuiu para a “morte” (Libidibia ferrea [Mart. ex Tul.] L. P.
B de nascentes e a seca temporária dos rios, Queiroz), de alta densidade, coexistem
que não conseguem segurar a umidade com inúmeras espécies de madeira de
por períodos mais prolongados. baixa densidade como o pinhão (Ja-
Quando comparada aos outros bio- tropha pohliana [Pohl] Müll.Arg) e a
mas brasileiros, a Caatinga se apresenta maniçoba (Manihot pseudoglaziovii Pax
como o de menor riqueza de táxons e & Hoffman).
com baixos índices de biodiversidade; A maioria das espécies vegetais
no entanto, quando se compara com lenhosas apresenta caule ramificado
outros biomas em condições de semiari- próximo ao solo, seja por injúria física,
dez, em todo mundo, este aparece como comum devido aos diversos predadores,
o mais rico e diverso (De Albuquerque seja por paradas de crescimento provo-
et al., 2012). cadas por inativação da gema apical em
períodos de indisponibilidade hídrica.
Aspecto geral da vegetação Essa talvez seja uma das características
Ao observar a Caatinga em período mais evidentes. Folhas de variados tipos
seco, o que se visualiza é algo semelhante e tamanhos, simples (marmeleiro, Croton
a um desenho hachurado, no qual rami- sp), composta (catingueira, Cenostigma
ficações indistinguíveis de sua origem pyramidale (Tul.) Gagnon & G.P. Lewis),
se assemelham a rabiscos em um papel. recomposta (angico, Anadenanthera
Uma profusão de galhos se entrecruza. macrocarpa [Benth.] Brenan), tenra,
Visíveis em alguns pontos, se observam coriácea (bom-nome, Monteverdia ri-
raros indivíduos de espécies sempre-ver- gida [Mart.] Biral.), aveludada, cerosa,
des, com diferentes aparências e forma- multiforme (C. pyramidale). Suas copas
tos, o que revela dissimilaridade de estra- apresentam tanto arquitetura simples
tégias em morfologia e fisiologia. Embora (feijão-bravo, Cynophalla flexuosa) como
existam lenhosas que se destacam por extremamente complexa (jurema, Mimo-
sua altura e imponência, de modo geral sa tenuiflora).
os indivíduos apresentam-se baixos, o A floração das espécies lenhosas é
que den ota investimentos cruzados em outra característica marcante nesse com-
múltiplas estratégias de crescimento. plexo de fisionomias. Há espécies que
As plantas herbáceas desaparecem e florescem ao final da estação chuvosa
a maioria das plantas lenhosas fica sem (C. pyramidale), outras após queda foliar
folhas durante o período seco (decíduas). total (traço), outras em plena estação
Nas lenhosas, em alguns casos é possível seca (mulungu, Erythrina velutina Willd.)
visualizar órgãos de reserva, a exemplo e ainda aquelas que florescem no início
dos que ocorrem na barriguda (Ceiba gla- da estação chuvosa (juazeiro, Ziziphus
ziovii [Kuntze] K. Schum), com seu caule joazeiro Mart.). Há ainda aquelas que,
abaulado, e do umbuzeiro (Spondias não tendo uma boa produção de frutos,
tuberosa Arruda), com seus xilopódios floresce em época distinta do habitual
subterrâneos que são explorados pelos para garantir uma maior produção de

164
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propágulos (Spondias tuberosa). As flores gicos e históricos de suas vidas nas caa-
podem ser nos ápices (J. pholiana) ou tingas brasileira podem ser encontradas
distribuídas ao longo das gemas laterais hoje no Museu do Homem Americano
(quixabeira, Bumelia sartorum Mart.) (FUMDHAM).1
de todo um ramo. Podem ser grandes e Povos nômades, os povos da Caatin- B
vistosas (mandacaru, Cereus jamacaru ga desenvolveram ao longo de sua histó-
DC) ou pequenas e quase indistinguíveis ria profunda identidade com a fauna e
(Z. joazeiro). flora catingueira, desenvolvendo sábias
Os frutos podem se apresentar de estratégias de vida e produção diante
diversas formas, mas a maioria é consti- das condições climáticas oferecidas e do
tuída por frutos secos e deiscentes de dis- Bioma estabelecido. Esses povos caatin-
persão eólica (pelo vento). As sementes gueiros originários eram predominante-
podem ser grandes, pequenas, dormen- mente da linhagem Tapuia, “o outro”, na
tes, quiescentes etc. De maneira geral, língua Tupi, ou o de língua travada. Se
há uma profusão de características que organizaram em várias nações, espalhan-
podem ser notadas. Mas, para além disso, do-se sobre os planaltos, as serras, em
o investigador tem que interpretá-las. suas formações rochosas onde a brisa e a
sombra das grandes pedras os abrigavam,
A Caatinga é ser humano e natureza protegendo-os do calor ou do frio, e lhes
Ao mesmo tempo que é o principal permitiam a caça e a estruturação de
bioma que cobre o território semiári- moradias mais seguras frente aos animais
do brasileiro, a Caatinga é história e mais perigosos da fauna caatingueira.
cultura. Sua formação física remonta Geralmente, esses povos organiza-
ao processo histórico de mudanças vam algum plantio de lavoura tempo-
climáticas que trouxe a essa parte do rária nos diversos rios temporários e
Brasil o clima semiárido. Nesses vales, riachos que cortam o território semiári-
antes úmidos, agora sua fauna e flora se do. Neles, encontravam solos e alguma
veem forçadas a se adaptar ao “novo” umidade para suas atividades.
clima. A própria origem da Caatinga Pacíficos, os povos tapuias se tor-
já é resultado de adaptação, resiliência, naram lutadores por sua terra e por seus
sabedoria e resistência. modos de vida quando sentiram a pre-
Já sob essa condição de bioma das sença europeia adentrando as vastas
terras semiáridas do Brasil, a Caatin- terras secas do Brasil. Houve dois sen-
ga abrigou seus primeiros humanos. tidos na invasão das terras semiáridas e
A simbiose entre humanos e natureza do território povoados pelos homens e
caatingueira se forja em formas de vida mulheres da Caatinga. Inicialmente do
nômades e sábias. litoral ao interior, com o gado sobrante
Os milhares de registros de inscri- dos canaviais litorâneos do Nordeste.
ções rupestres deixados pelos primeiros Depois, pelos rios São Francisco e Par-
habitantes da Caatinga estão marcados naíba, pelos bandeirantes paulistas, com
nas inúmeras serras, pedras e formas seu gado.
de moradia e produção espalhadas pelo Houve luta, houve resistência. As-
território semiárido. Uma bela síntese sim como a fauna e a flora resistentes à
desses povos e dos registros antropoló- secura do clima, os povos da Caatinga

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B I O M A CAAT I N GA

resistiram à invasão europeia e ban- torrões. De sua “terra seca, mas boa”
deirante. Aquele povo extremamente (Assaré, 1978). Hoje o caatingueiro é o
pacífico e dócil se transformou em um sinônimo de resiliência. Seja nas capitais
povo de luta e de estratégias de guerras do Sudeste, do Nordeste ou no interior
B e resistência surpreendentes. Cariris, dos sertões semiáridos do Brasil.
Caetés, Fulni-ô e muitas dessas nações A Caatinga foi e é espaço de luta
tapuias lutaram e resistiram em de- e resistência. Os povos da Caatinga,
fesa de suas terras, de suas matas, de historicamente, mantiveram em alta a
suas vidas (ver Puntoni, 2008). Foram capacidade de resistir, se adaptar e lutar
quase cem anos de batalhas e alguns por suas terras e suas vidas. Sob um
séculos para a ocupação e dominação regime socioeconômico perverso, semi-
definitivas das áreas de caatingas pelos feudal, inserido na lógica do capitalismo
europeus e bandeirantes. dependente de superexploração brasi-
A Caatinga foi também o abrigo leiro, o povo caatingueiro desenvolveu
de africanos que deixaram as senzalas e estratégias próprias de luta.
fugiram da escravização cruel nos cana- Uma dessas estratégias a destacar foi
viais e nas fazendas de gado e algodão a fuga. A fuga para outras paragens, mas
espalhadas nas terras semiáridas. Ali se também a fuga, dentro da Caatinga, para
formaram inúmeros quilombos protegi- outra forma de viver. Assim, ocorreram
dos por baraúnas, aroeiras, craibeiras e organizações de lutas e de vidas, como
alimentados por umbuzeiros, ameixeiras Canudos na Bahia, a mais famosa. Mas
e outras frutíferas dessa rica e vasta também Caldeirão e Pau de Colher, no
vegetação. Quilombolas e nativos se Ceará. Movimentos que amalgamavam a
misturaram primeiro na luta de resistên- fé religiosa, a resistência e a forma de luta
cia, miscigenando-se a posteriori com o físicas e a disciplina e dedicação milita-
invasor dominante. res, por assim dizer, quando acreditavam
O povo caatingueiro virou o serta- em seus líderes e em suas causas.
nejo (Ribeiro, 2014). Viveu séculos se Na mesma estratégia de “fuga” e
formando endogenamente atrás do gado, luta, o caatingueiro cria o movimento do
servindo ao fazendeiro, distante do Brasil Cangaço, espécie de guerrilha de revol-
que se modernizava. Se constitui, assim, tados e justiceiros que marchavam nos
um povo de cultura própria, de modos sertões secos do Brasil contra a ordem
próprios, de saberes ímpares, fortemente político-jurídica de fome e humilhação
expressivos da flora caatingueira e do imposta aos pobres do campo e de privi-
clima semiárido. Os povos da Caatinga légios e soberba aos poderosos. Enquanto
criaram suas artes, culturas, músicas e o Cangaço funcionou como fuga das
ritmos. Sua quase pureza de certa forma garras dos fazendeiros e coronelatos lo-
os tornou vulneráveis à colonização e cais, se transformou em luta e resistência
dominação de suas terras e cultura. contra o poder do Estado, opressor dessas
Sob a modernização do Brasil do gentes pobres e mantenedor do poder
Centro-Sul e o arcaísmo do Nordeste, e das injustiças das oligarquias locais.
esses povos da Caatinga foram impelidos Antônio Silvino, Lampião, Corisco e
ao regime socioeconômico de expulsão Maria Bonita estão sempre a povoar
de seu lugar, dos seus sertões, dos seus o imaginário dos povos caatingueiros

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B I O M A CAAT I N GA

como símbolo de luta, esperança e de em termos ambientais e em questões


sua cultura de resiliência. ecológicas, é que não sejam alteradas
Em tempos de escassez aguda, os as condições naturais, pois quaisquer
povos da Caatinga promoveram saques, alterações promovem desajustes nas
ocupações de terras e das feiras livres dinâmicas e processos ocorrentes nos B
para saciar a sede e a fome que se espa- ecossistemas presentes nos biomas.
lhavam. Não deixa de ser também uma Destacamos também que, devido
das estratégias de luta mais importantes, à convergência de fatores de estresses
visto suas necessidades imediatas, em ambientais, a Caatinga se tornou ainda
resposta ao abandono histórico a que as mais suscetível do que os outros biomas
elites do Brasil deixaram esses povos, e, a práticas impactantes, como o desmata-
especialmente com a crise dos anos 1980, mento, a caça predatória e a invasão de
quando o fim da cotonicultura local e espécies exóticas. No entanto, a Caatin-
seu consórcio direto, a bovinocultura ga apresenta alta resiliência. Mas há um
leiteira, provocaram a mais acentuada grande equívoco em achar que recuperar
emigração da Caatinga de nossa história. a Caatinga degradada passa apenas pelo
Em seguida, na década de 1990, se viu plantio de mudas de espécies nativas de
o desmantelamento de toda a estrutura forma indiscriminada. Primeiro, deve
institucional que dava suporte ao poder ser considerada a existência anterior
do Estado no lugar. das espécies a serem reintroduzidas em
Os povos caatingueiros obtiveram cada área, pois estas definem o tipo de
grandes conquistas em sua trajetória relações ocorrentes e necessárias. Além
de luta. No alvorecer do século XXI, disso, existe um arranjo natural a ser
formaram diversas organizações popu- copiado, pois as espécies encontram-se
lares, e a Caatinga iniciou um processo organizadas em comunidades, apre-
virtuoso de desenvolvimento. Desde os sentando configurações em termos de
anos 1990, se estruturam diversas orga- frequência, composição, diversidade etc.
nizações científicas, sociais e populares Deve ser observada a propensão da
em defesa da Caatinga, por sua preser- área que será trabalhada e respeitada
vação e recuperação. Escolas, Institutos a reserva ambiental preconizada pela
de Pesquisas, Centros Culturais, Museus, legislação. Algumas áreas da Caatinga
Universidades e ONGs estão empenha- não podem ser exploradas com fins
das nessa tarefa. agrícolas e pecuários. No entanto, sis-
temas de cultivo e pastejo em consórcio
Manejo e conservação com a vegetação natural são recomen-
A Caatinga apresenta uma confi- dados, principalmente quando esta
guração que levou muito tempo para parece ser a única forma de manejar a
estabelecer-se como a vegetação mais Caatinga de forma sustentável. O uso
bem adaptada às condições ambientais de espécies com metabolismos e outras
oferecidas. Há um equilíbrio nos siste- características adaptáveis às condições
mas ecológicos estabelecidos no bioma. presentes no Bioma garantiriam o su-
É preciso compreender que, quando se cesso na atividade e uma renda mínima
altera o ambiente em equilíbrio, alguns aos homens e mulheres da Caatinga.
comprometimentos irão ocorrer. O ideal, Um grande potencial ainda pouco

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B I O M A CAAT I N GA

explorado e que pode contribuir para adaptadas, como a algaroba (Prosopis


a conservação da Caatinga é o uso de juliflora [Sw] DC), justificaria o não
suas espécies com potencial farmacoló- desmatamento de novas áreas com
gico. Várias são as plantas e animais da cobertura nativa. Ou seja, observadas
B Caa­tinga usados no combate a afecções as exigências técnicas, ecológicas e
humanas e de rebanhos, algumas delas econômicas, há a possibilidade de uso
com comprovação científica, como o dos recursos desses biomas.
João-mole (Guapira hirsuta [Choisy] De certa forma, o fato de a Caatinga
Lundell), o angico (A. macrocarpa), a não ter sido vista como um bioma rico o
aroeira (Myracrodruon urundeuva Alle- protegeu de maior exploração. Quanto
mão), o teiú (Tupinambis teguixin L), o mais alterado o bioma, mais exaurido
tatu (Euphractus sexcinctus Linnaeus de suas funções ecológicas ele estará.
1758), a cabeça-de-nêgo (Apodanthera Portanto, devemos observar quais as
congestiflora Cogn) etc. A utilização formas de uso sustentável dos recursos
desses recursos levaria à necessidade de da Caatinga, pois estando a Caatinga
aumentar a área destinada a elas, a ga- consolidada, ela é forte, mas estando ela
rantia de sustentabilidade econômica e alterada, sua restauração será complexa
ambiental, devido ao manejo orientado e demorada, e nenhum outro modelo de
para a conservação. A exploração ma- exploração será estabelecido com tama-
deireira de áreas já desmatadas com es- nha eficiência ecológica sob as mesmas
pécies exóticas e de crescimento rápido condições no semiárido brasileiro.

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BIOMA CERRADO

A ltair Salles Bar bosa

O sistema biogeográfico do Cerrado Distrito Federal. Inclui a parte sul e leste


está situado nos planaltos centrais do de Mato Grosso, oeste da Bahia, oeste
Brasil, onde imperaram climas tropicais e norte de Minas Gerais, sul e leste do
de caráter subúmido, com duas estações Maranhão, grande parte do Piauí e pro-
– uma seca, outra chuvosa. Constitui o longa-se, em forma de corredor, até Ron-
grande domínio do Trópico Subúmido, dônia. Também ocorre, de forma disjunta,
coberto por uma paisagem que constitui em certas áreas do nordeste brasileiro e
um mosaico de tipos fisionômicos que em parte de São Paulo. Ecologicamente,
varia desde campos até áreas florestadas. relaciona-se às Savanas, e há quem afirme
O sistema do Cerrado, dos chapa- que o Cerrado seja uma configuração
dões centrais do Brasil, pela posição geo- regionalizada destas. Entretanto, este
gráfica, pelo caráter florístico, faunístico, ambiente possui uma história evolutiva
geomorfológico e pela história evolutiva, muito diferente das Savanas africanas e
constitui o ponto de equilíbrio dos varia- australianas. No Brasil, o Cerrado e os
dos ambientes brasileiros, uma vez que campos recebem denominações diferen-
se conecta, por intermédio de corredores tes, de acordo com a região: Gerais, em
hidrográficos, com esses e com outros Minas e Bahia; Tabuleiro, na Bahia e
ambientes continentais. outras áreas do Nordeste; e ainda Cam-
Os chapadões centrais do Brasil, pina, Costaneira e Carrasco, dependendo
cobertos pelo Sistema Biogeográfico do da região. Nenhuma dessas designações
Cerrado, constituem a cumeeira do Bra- populares reflete sua totalidade ecológica,
sil, pois distribuem significativa quanti- referindo-se apenas a uma modalidade
dade de água que alimenta as principais fisionômica, às vezes associada a uma
bacias hidrográficas do continente. ou outra configuração geomorfológica.
O Cerrado abrange os estados de Por essas razões, o paradigma puramente
Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul e botânico não tem sido suficiente para

169
BIOMA CERRADO

demonstrar a totalidade e a importância possibilidades alimentares durante todo


ecológica do Cerrado, já que destaca ou ciclo anual.
enfatiza apenas parcelas fragmentadas de Há um estrato gramíneo que sustenta
sua composição. Quando isso acontece, uma fauna de herbívoros durante boa par-
B o caráter da biodiversidade, elemento te do ano, enquanto não está seco. Antes
marcante da ecologia do Cerrado, não de aparecerem as flores, as queimadas
recebe a importância merecida, nem naturais, por um lapso de tempo, provêm
sequer pode ser compreendida em seus os animais com cálcio e sais minerais.
aspectos fundamentais. Logo aparecem as flores que, durante
A utilização do paradigma biogeográ- uma determinada época, substituem as
fico tem demonstrado ser um referencial gramíneas como alimento. O final das
de grande importância para que se possa floradas coincide com o início da estação
entender o Cerrado, em sua globalidade. chuvosa, que faz rebrotar os pastos secos e
Compreendendo os diversos matizes, tan- a maturação de várias espécies frutíferas.
to abertos e ombrófilos, como subsistemas Acompanhando os herbívoros e atrás
interatuantes e integrantes decisivos de também de recursos vegetais, animais
um sistema maior, o conceito biogeográ- com outros hábitos formam uma com-
fico tem ressaltado a importância que plexa cadeia. Em termos vegetais, este
o Cerrado exerce para o equilíbrio dos sistema é complexo e nunca pode ser
demais ambientes do continente, além de entendido como uma unidade, pois há o
demonstrar que a principal característica predomínio do Cerrado stricto sensu como
da sua biocenose é a interdependência dos paisagem vegetal, mas há também seus
componentes aos diversos ecossistemas. variados matizes, como campo e cerradão,
A região do Cerrado não pode ser além de formações florestadas, como ma-
entendida como uma unidade zoogeográ­ tas e matas ciliares, e ainda são comuns as
fica particularizada porque não apresen- veredas e ambientes alagadiços.
ta esta característica; tampouco pode ser As áreas florestadas são constituídas
considerada uma unidade fitogeográfica, pelas matas ciliares que ocorrem nas
por não se tratar de uma área unifor- cabeceiras dos pequenos córregos e rios,
me em termos de paisagem vegetal. O em suas margens, e também se espalham
mais correto é correlacionar os diversos em áreas mais extensas, acompanhando
fatores que compõem sua biocenose e as manchas de solo de boa fertilidade
defini-la como um sistema biogeográfico. natural. Por exemplo, as matas do rio
Um sistema que abrange áreas planálti- Claro e outras vertentes do Paranaíba
cas, o Planalto Central brasileiro, com e o outrora chamado “Mato Grosso de
altitude média de 650 metros, clima Goiás”. As veredas e ambientes alagadiços
tropical subúmido de duas estações, são mais abundantes: a partir do centro da
solos variados e um quadro florístico e área nuclear (sudoeste de Goiás), tomam
faunístico extremamente diversificado a direção norte e leste e sul e, à medida
e interdependente. A fauna variada do que se aproximam do Pantanal Matogros-
Cerrado, que transita noutros ambientes, sense, ficam mais evidente os ambientes
por exemplo, a Caatinga, tem sua maior alagadiços com contornos diferenciados.
concentração registrada no sistema bio- Nessa perspectiva, o sistema biogeo-
geográfico do Cerrado, em virtude das gráfico do Cerrado pode ser subdividido

170
BIOMA CERRADO

em subsistemas específicos, caracterizados com raízes extremamente complexas. Se


pela fisionomia e composição vegetal e tirarmos um tucum-rasteiro, que está no
animal, além de outros fatores, que apre- máximo 40 centímetros acima do nível do
sentam a seguinte organização: subsiste- solo, e se olharmos seu tronco, vamos en-
ma dos Campos, subsistema do Cerrado contrar milhares ou até milhões de raízes B
Stricto Sensu; subsistema do Cerradão; grudadas naquele tronco. Se tirarmos um
subsistema das Matas; subsistema das pedaço pequeno dessas raízes e levarmos
Matas Ciliares; subsistemas das Veredas ao microscópio, veremos centenas de
e Ambientes Alagadiços. radículas que saem delas. Uma pequena
Essa diversidade de ambientes é um plantinha com um sistema radicular ex-
fator muito importante para a diversifica- tremamente complexo, que retém a água
ção faunística, permitindo a ocorrência e alimenta os diversos ambientes do Cer-
de animais adaptados a ambientes secos rado, algo que não se consegue reproduzir
e também a ambientes úmidos. Da mesma em viveiro, porque não há tecnologia.
forma, propicia tanto a ocorrência de Outro aspecto que indica que o Cer-
formas adaptadas a áreas ensolaradas e rado já entrou em vias de extinção é que
abertas como favorece a ocorrência de as plantas do Cerrado são de crescimento
formas ombrófilas. Esses fatores atri- muito lento. Uma canela-de-ema atinge
buem ao sistema biogeográfico do Cer- a idade adulta com mil anos de idade. O
rado um caráter singular, distinguindo-o capim-barba-de-bode fica adulto com 600
pela diversidade de formas vegetais e anos. Um buriti atinge 30 metros de altura
animais: são apontadas para a avifauna com 500 anos.
935 espécies, distribuídas em diferentes Suas árvores já atingiram alto grau
habitats por todo o bioma. Quanto aos de especialização. Tanto que o processo
mamíferos, foram listadas 298 espécies, de quebra da dormência de determinadas
e 268 de répteis. sementes é extremamente sofisticado.
O Cerrado contém a maior biodiver- Uma semente de araticum, por exemplo,
sidade florística do planeta. São 12.365 só pode ter sua dormência quebrada no
plantas catalogadas. No entanto, a cada intestino delgado de um canídeo nativo
expedição que fazemos, cada vez que do Cerrado – um lobo-guará, uma raposa.
vamos a campo, pelo menos 50 novas Como esses animais estão em extin-
espécies são descobertas. Dessas 12.365 ção, fica cada vez mais difícil quebrar a
plantas conhecidas, somos capazes de dormência de um araticum, que é uma
multiplicar em viveiro apenas 180. Isso anonácea (família de plantas que inclui
é cerca de 1,5% do total, quase nada em também a graviola e a fruta-do-conde,
relação a esse universo. E só conseguimos entre outras).
fazer mudas de plantas arbóreas. Dos ambientes recentes do plane-
Para as demais, que são extremamen- ta terra, o Cerrado é o mais antigo. A
te importantes para o equilíbrio ecológico, história recente da terra começou há 70
para o sequestro de carbono e para a milhões de anos, quando mais de 99%
captação de água, não temos tecnologia da vida existente foi extinta. A partir
para fazer mudas. São exemplos o capim- de então, o planeta começou a se refa-
-barba-de-bode, a canela-de-ema, a arni- zer novamente. Os primeiros sinais de
ca, o tucum-rasteiro, esses dois últimos vida, principalmente de vegetação, que

171
BIOMA CERRADO

ressurgem na Terra se deram no que hoje fisionomia sociocultural e, embora ocor-


constitui o Cerrado. Portanto, vivemos resse o advento da agricultura incipiente,
aqui no local onde houve as formas de exercida nas manchas de solo de boa
ambiente mais antigas da história recente fertilidade natural existentes no Cerrado,
B do planeta, principalmente se levarmos a caça e a coleta, em particular a vegetal,
em consideração as formações vegetais. ainda constituíam fatores decisivos na
No mínimo, o Cerrado começou há 65 economia dessas sociedades.
milhões de anos e se concretizou há 40 A partir do século XVIII, o panora-
milhões de anos. ma regional começou a sofrer sensíveis
O Cerrado é um tipo de ambiente em modificações, com o incremento da co-
que vários elementos vivem intimamente lonização portuguesa que se embrenhava
interligados uns aos outros. A vegetação pelo interior do país em busca de ouro,
depende do solo, que é oligotrófico (com pedras preciosas, índios e escravos fu-
nível muito baixo de nutrientes); o solo gidos. Nesse contexto, e a partir dessa
depende de um tipo de clima especial, que data, surgiram os primeiros aglomerados
é o tropical subúmido com duas estações, urbanos e a exploração mais intensa dos
uma seca e outra chuvosa. Vários outros recursos minerais que começava a se
fatores, incluindo o fogo, influenciaram incrementar, já provocando os primeiros
na formação do bioma – o fogo é um ele- sinais de degradação. Findo o ciclo da
mento extremamente importante porque mineração, a região do Cerrado per-
é ele que quebra a dormência da maioria maneceu economicamente dedicada à
das plantas com sementes que existem criação extensiva de gado e à agricultura
no Cerrado. de subsistência.
Assim, é um ambiente que depende O isolamento que a região manteve
de vários elementos. Isso significa que já em relação às áreas mais populosas e
chegou a seu clímax evolutivo. Ou seja, economicamente dinâmicas do Brasil, até
uma vez degradado, não vai mais se recu- meados da década de 1960, fez com que
perar na plenitude de sua biodiversidade. este quadro permanecesse basicamente
Por isso é que falamos que o Cerrado é inalterado, fato que a implantação de Bra-
uma matriz ambiental que já se encontra sília alterou consideravelmente, desestru-
em vias de extinção. turando os sistemas sociais implantados
O Cerrado exerceu papel fundamen- e causando entropias de ordem biológica
tal na vida das populações pré-históricas e geológica.
que iniciaram o povoamento das áreas O potencial agrícola que o Cerrado
interioranas do continente sul-americano. demonstra, associado ao fato de ser uma
Na região do Cerrado, essas populações das últimas reservas da terra capaz de
desenvolveram importantes processos suportar, de modo imediato, a produção
culturais que moldaram estilos de socie- de grãos e a formação de pastagens, ligado
dades bem definidas, em que a econo- ao desenvolvimento das técnicas moder-
mia de caça e coleta imprimiu modelos nas de cultivo, tem atraído recentemente
de organização espacial e social com grandes investimentos e criado modifica-
características peculiares. Os processos ções significativas do ponto de vista da
culturais indígenas que se seguiram a este infraestrutura de suporte. O fato da não
modelo trouxeram pouca modificação à existência de uma política global para a

172
BIOMA CERRADO

agricultura tem provocado o êxodo rural tação de grãos. Hoje temos no máximo
e o crescimento desordenado dos núcleos entre 2% e 5% de área preservada no
urbanos. Todos esses fatores, em seu con- cerrado, pequenas manchas que ainda
junto, têm como consequências situações estão intactas, localizadas em algumas
nocivas ao meio ambiente natural e social, reservas indígenas e outras áreas no vale B
com perspectivas preocupantes. do Parnaíba (rio que divide os estados
Alguns dos subsistemas do Cerrado do Maranhão e do Piauí), onde será
já foram totalmente extintos, como é implantado agora o projeto do Matopiba.
o caso das campinas, dos chapadões, Isso levará praticamente à extinção do
cuja vegetação foi retirada para plan- pouco que ainda existe.

Para saber mais


AB’SABER, A. N. Os domínios morfoclimáticos da América do Sul. São Paulo: Instituto de Geografia
da USP, 1977.
BARBOSA, A. S. Cerrado: o laboratório ameaçado pela desterritorialização. São Leopoldo-RS, 2017.
IHU-On Line. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, Ed. 500, 13 mar. 2017, entrevista concedida
a João Vitor Santos. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6756-cerrado-o-laborato-
rio-antropologico-ameacado-pela-desterritorializacao. Acesso: 01 jan. 2019.
_______. O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água, Goiânia-GO.,
2014. Jornal Opção, Ed. 2048, 4 out. 2014. Entrevista concedida a Marcelo Gouveia. Disponível em:
https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/o-cerrado-esta-extinto-e-isso-leva-ao-fim-dos-rios-e-dos-
-reservatorios-de-agua-16970/
_______.Blog “Cerrado: do científico ao poético”, do professor Altair: Disponível em: http://altairsales-
barbosa.blogspot.com/ Acesso em: 18 mar. 2021
_______. Andarilhos da Claridade. Goiânia: Ed. da PUC-GO, 2002.

Cerrado, conflitos e resistências dos povos


Valéria Pereira Santos e Atamis Antonio Foschiera

Faz parte do Cerrado uma diversidade de povos, como os geraizeiros, ribeirinhos, vazanteiros,
retireiros, pescadores, sertanejos, camponeses, quilombolas, agricultores familiares e mais de 83
etnias de povos indígenas. Todos esses povos, que têm como base a agricultura de baixa intensidade
e o extrativismo sustentável, compõem um grandioso mosaico de vidas e saberes do Cerrado. Juntos,
detêm conhecimentos tradicionais seculares – saberes e fazeres – de convivência e preservação de
sua biodiversidade, que na história do Brasil sempre estiveram ameaçados.
Após séculos de ocupação desordenada do Cerrado, na década de 1940 passou a predominar
uma nova perspectiva de ocupação através de uma política de imigração dirigida, denominada
de ‘Marcha para o Oeste’, por intermédio das Colônias Agrícolas Nacionais (CAN). Essa política
teve como foco aliviar a crise causada pela decadência da cafeicultura e formar uma nova frente
agrícola comercial no país, visando o mercado interno e ocupando a mão de obra de brasileiros
pobres e aptos à agricultura. Como resultado prático dessa política, formou-se a Colônia Agrícola
Nacional de Goiás (Cang), que deu origem ao município de Ceres, e a Colônia Agrícola Nacional
de Dourados/MS (Cand) (Castilho, 2012; Menezes, 2011).
A partir da década de 1970, na perspectiva da produção voltada ao mercado externo, no
embalo da “Revolução Verde” e sob o regime militar, o Cerrado se tornou alvo dos grandes
grupos econômicos nacionais e internacionais, cujo objetivo é a exploração do subsolo, da rica
biodiversidade dos campos e chapadas e a implantação de monoculturas, formando o chamado
agrohidromineronegócio – termo que sintetiza as atividades agrícolas, hídricas e de mineração na
perspectiva de exploração econômica. A crescente exploração econômica do Cerrado tem acelerado
a devastação desse bioma.
O modelo de produção monocultor exige o uso intensivo da terra em grande escala, causando
derrubada do Cerrado natural; a utilização de uma grande quantidade de recursos externos ao
ambiente, como adubação química e agrotóxicos; e o consumo de grande quantidade de água. A
soma desses elementos tem sido apontada como geradora de danos ao meio ambiente e à saúde das

173
BIOMA CERRADO

populações. Ademais, em paralelo ao agronegócio, nas áreas do Cerrado, também foram instalados
diversos projetos de infraestrutura para a produção de energia elétrica, exploração de minérios e
escoamento da produção agropecuária. Os grandes projetos de infraestrutura – ferrovias, hidrovias,
rodovias – também impactam e expulsam famílias de suas comunidades.
B A expansão da fronteira do capital no Cerrado se deu com grandes incentivos do Estado por
meio de programas ditos de desenvolvimento, pensados para o capital, e pessoas de outras loca-
lidades, e não de inserção das pessoas do local. Entre eles, estava o Programa Nipo-Brasileiro de
Desenvolvimento Agrícola da Região dos Cerrados (Prodecer), acordo Brasil/Japão que durou de
1979 a 2001, e que teve como gestora a Japan Internacional Cooperation Agency (Jica), com finan-
ciamento de empreendimentos nas áreas de logística, aquisição de terras e implementos agrícolas
sofisticados. Os objetivos do Prodecer, nos discursos dos governos e do setor privado envolvidos,
eram: “estimular o aumento da produção de alimentos; contribuir para o desenvolvimento regional
do país; aumentar a oferta de alimentos no mundo; e desenvolver a região do Cerrado” (Comissão
Pastoral da Terra, 2018).
Outro programa de incentivos do governo brasileiro ao agronegócio foi o Matopiba, um nome
novo para velhas estratégias dos planos governamentais desenvolvimentistas que buscam explorar
riquezas naturais em novas ondas expansionistas do capital. O Plano de Desenvolvimento Agro-
pecuário do Matopiba (PDA Matopiba) foi criado através do Decreto n. 8.447, de 8 de maio de
2015, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Brasil, 2015), e corresponde ao
acrônimo dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, ocupando uma área de 73.173.485
hectares, envolvendo 337 municípios. A região do Matopiba é um dos últimos refúgios da biodiver-
sidade do Cerrado, onde estão mais preservadas suas características naturais (o PDA Matopiba foi
extinto oficialmente em 2016 com a reestruturação do ministério a que estava vinculado, porém,
seu ideário e práticas continuam em execução pela iniciativa privada).
A expansão do agrohidromineronegócio no Cerrado ocorre sem que muitas das comunidades
cerradeiras tenham a garantia do acesso à terra e ao território para viver. Essa expansão se dá com
constantes ameaças e perseguições de jagunços; da pressão pela especulação imobiliária e fundiária;
da ação do Estado brasileiro em retirar direitos (Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2018).
A bancada ruralista no Congresso Nacional tenta reiteradamente retirar direitos já adquiridos
pelos povos cerradeiros visando o controle da exploração dos recursos naturais pelo capital. Esse
choque de interesses entre as comunidades tradicionais e os investidores de capitais tem resultado
em uma série de conflitos (cf. Comissão Pastoral da Terra, 2018; 2019).
Diante da ameaça aos modos de vidas dos povos e da biodiversidade do Cerrado, surge, em
2016, como frente de resistência, a Campanha em Defesa do Cerrado. Uma iniciativa de mais de
50 organizações brasileiras que, no esforço coletivo de uma “campanha pé no chão”, busca dar
visibilidade e valorização à cultura das comunidades tradicionais cerradeiras e à biodiversidade do
Cerrado. Com o lema “Sem cerrado, sem água, sem vida”, a campanha objetiva chamar a atenção
da sociedade para a importância do Cerrado para o Brasil, alertando sobre os impactos do agrohi-
dromineronegócio na conservação desse valioso bioma, cuja conservação está intrinsecamente
relacionada à convivência com os povos originários e tradicionais.

Referências
BRASIL. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n.
8.447, de 6 de maio de 2015. Dispõe sobre o Plano de Desenvolvimento Agropecuário de Matopiba
e a criação de seu Comitê Gestor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2015/decreto/d8447.htm Acesso em: 18 mar. 2021.
CASTILHO, D. C. A Colônia Agrícola Nacional de Goiás (Cang) e a formação de Ceres-GO –
Brasil. Élisée, Rev. Geo. UEG, Goiânia, v.1, n.1, p.117-139, jan.-jun. 2012.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Revista Cerrados. 1. ed. Goiânia, 2019.
______. Os custos ambientais e humanos do negócio de terras, o caso Matopiba, Brasil. Jun. 2018.
Disponível em: https://fase.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Os-Custos-Ambientais-e-Huma-
nos-do-Nego%CC%81cio-de-Terras-.pdf. Acesso em: 15 mar. 2019.
MENEZES, A. P. Colônia Agrícola Nacional de Dourados – História, Memória: considerações
acerca da construção de uma memória oficial sobre a CAND na região da Grande Dourados.
Revista História em Reflexão, UFGD, Dourados, v. 5, n. 9, p. 1-16, jan.jun. 2011.
REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS. Imobiliárias agrícolas transnacionais e
a especulação com terras na região do MATOPIBA. São Paulo: Outras Expressões, 2018.

174
BIOMAS COSTEIROS

BIOMAS COSTEIROS
B
I gor da M ata O liveir a
É r ico D emar i e S ilva
Ticia no R odr igo A lmeida O liveir a

Os biomas costeiros brasileiros são morros feitos de conchas e ossos de ani-


importantes áreas no que se refere ao mais (terrestres e marinhos) que eram
povoamento, economia e biodiversidade. base de sua alimentação, constituindo
Neste verbete, abordamos os processos uma economia fortemente baseada nos
de povoamento desses biomas, sua im- recursos pesqueiros. Instalaram-se prin-
portância histórico-cultural na formação cipalmente nas restingas – típicas da
das identidades brasileiras e questiona- planície costeira – e ao redor de lagunas,
mos o futuro da biodiversidade e das assim como nas proximidades de man-
comunidades que habitam essa região. gues e de florestas de baixada.
Em seus mais de 8 mil km de exten- Essas populações realizavam rituais
são, o litoral brasileiro abriga uma grande funerários, confeccionavam instrumen-
diversidade de paisagens, assim como de tos e artefatos líticos, foram demografi-
povos e comunidades tradicionais. Des- camente numerosos em determinadas
de as longas e muito produtivas praias épocas e, provavelmente, praticavam
arenosas, marismas, lagoas e lagunas do horticultura, manejo de tubérculos co-
extremo sul, passando pelas restingas, mestíveis e de espécies madeireiras e
costões rochosos, baías e enseadas de frutíferas. Os sambaquieiros eram se-
Santa Catarina ao Rio de Janeiro, falésias dentários e possuíam uma estrutura
coloridas e tabuleiros costeiros que se sociocultural relativamente complexa.
prolongam pela costa do litoral norte do Todavia, seu desaparecimento ainda
Rio de Janeiro até o litoral do Nordeste é um mistério, apesar de alguns trabalhos
e, finalmente, pelos espessos manguezais indicarem diminuição demográfica de
entre o Delta do Parnaíba e o estuário seus assentamentos a partir de 3 mil anos
Amazônico – no extremo norte –, os atrás e mudanças culturais significativas
biomas costeiros compõem um complexo há 1.200 anos, provavelmente resultan-
mosaico de ecossistemas, cada qual apre- tes do contato com os povos indígenas
sentando características físicas, bióticas jê do sul e tupi-guarani. Seus vestígios
e socioeconômicas peculiares. desaparecem a partir de 900 anos atrás.
Sabe-se que os primeiros ocupantes A ocupação do litoral pelos tupis-
da costa brasileira foram os povos sam- -guaranis iniciou-se provavelmente no
baquieiros, há aproximadamente 7.500 início da Era Cristã. Das terras baixas
anos. Eles deixaram como vestígios os da Amazônia (rios Madeira, Tapajós e
sambaquis – de “tambá” (conchas) e Tocantins), onde tinham um passado
“ki” (amontoado), em tupi –, pequenos milenar, é provável que tenham seguido

175
BIOMAS COSTEIROS

várias vias distintas de ocupação: des- Os navegadores que aportaram na


cendo pela costa desde a foz do Ama- Bahia não queriam exatamente povoar
zonas até o litoral sul e também pelo a nova terra, mas sim procurar riquezas
interior do continente, seguindo os que pudessem ser comercializadas com
B cursos das principais bacias hidrográ- as metrópoles europeias. Não demorou
ficas e deslocando-se por terra firme. muito para notarem na floresta costeira
Os tupinambás estabeleceram-se entre um pau-de-tinta de cor carmim, parecida
a foz do Amazonas e Cananeia (SP) com outra espécie asiática, valiosíssima
e os guaranis, ao sul do Trópico de na Europa para o tingimento de teci-
Capricórnio. De forma eficiente, espa- dos, o que deflagrou o primeiro ciclo de
lharam-se pela costa: eram beligerantes, exploração econômica mercantilista na
ceramistas e praticavam, além da pesca então Terra de Vera Cruz. O pau-bra-
e da caça, a agricultura. Mesmo após o sil (Paubrasilia echinata) não somente
genocídio perpetrado pelos coloniza- emprestaria seu nome em definitivo à
dores, os tupis-guaranis remanescentes terra invadida pelos portugueses como
continuam com suas práticas agrícolas também desencadearia o processo de
e extrativistas milenares que, de várias colonização a partir do litoral, resultando
formas, também foram herdadas pelas no genocídio de seus habitantes originá-
populações tradicionais do litoral bra- rios, um dos maiores da história.
sileiro. Essa influência pode ser obser- Os primeiros povoados e vilas fo-
vada nos pequenos roçados, no manejo ram se estabelecendo em águas abri-
agrof lorestal de espécies frutíferas e gadas, onde as embarcações podiam
madeireiras úteis, assim como nas téc- aportar em segurança: na baía de Todos
nicas de pesca, mariscagem, construção os Santos; em Olinda; na baía de Gua-
de canoas e de moradias. nabara; na foz do rio Vaza Barris (São
Cristóvão-SE) e em Cananeia-SP. Esses
Colonização, genocídio e escravidão locais eram situados em estuários reple-
moderna: Bioma Costeiro e tos de manguezais, berçários da vida
mercantilismo marinha ricos em peixes, crustáceos e
Os tupinambás já tinham desco- moluscos que serviam à alimentação
berto aquelas terras há pelo menos mil humana. A madeira do mangue era
anos, e chamavam a Mata Atlântica de usada em construções diversas, currais
Caáeté (a floresta verdadeira). A floresta de pesca e para lenha. Da baleia-franca-
dava lugar, em torno das aldeias, aos -do-sul (Eubalaena australis), as “arma-
cultivos de algodão, aipim, amendoim, ções” − onde os caçadores se armavam
dentre outros, realizados em sistema com arpões e barcos a remo − extraíam
de “coivara”: pequenos talhões de mata o óleo que foi a base da argamassa que,
eram derrubados e os esbulhos eram juntamente ao cascalho das conchas de
então queimados de forma controlada moluscos abundantes nas praias, seria
para preparar a terra e tornar possível o utilizada na construção das primeiras
plantio. Depois de alguns anos de culti- edificações dos colonizadores. Essa es-
vo, as áreas eram abandonadas (pousio) e pécie de baleia, que criava seus filhotes
partia-se para outro talhão, repetindo-se durante o inverno e a primavera nas
o mesmo processo. enseadas e baías de águas rasas, desde

176
BIOMAS COSTEIROS

o Rio Grande do Sul à baía de Todos Atlântica e exaurindo a capacidade


os Santos, teve o mesmo destino do produtiva da terra. Milhões de ­pessoas
pau-brasil, praticamente desaparecendo foram sequestradas no continente africa-
após 200 anos de exploração intensa. no e escravizadas nos engenhos; milhares
Estima-se que tenham sido corta- morreram sem mesmo chegar à costa B
das mais de 2 milhões de árvores de brasileira. A resistência dos negros à
pau-brasil somente no primeiro século escravidão se manifestou de inúmeras
de extração; para a época, um esforço formas e resultou no que hoje são as
gigantesco que, necessariamente, de- comunidades e territórios quilombolas.
mandou o sangue de milhares de indí- A ilha de Alcântara, no Maranhão,
genas. A decadência do comércio dos assim como seus arredores, está entre os
paus-de-tinta coincidiu com o sucesso maiores territórios quilombolas do Brasil,
das plantações de cana-de-açúcar das memória das lutas que se seguiram após
colônias europeias no Caribe, disparan- a decadência dos engenhos e monocul-
do a corrida das nações mercantilistas turas locais. O gigantesco labirinto de
pela economia de plantation. Durante o manguezais e reentrâncias dessa região
século XVII e início do século XVIII, o seria um esconderijo perfeito para os
Brasil foi um dos maiores produtores de fugitivos do cativeiro.
açúcar do planeta, graças à destruição Populações indígenas que viviam
da Mata Atlântica dos tabuleiros cos- no litoral distinguiam-se em três grupos:
teiros e à exploração da mão de obra carijós, que viviam nas proximidades e
escravizada dos povos de matriz africa- ao sul da capitania de São Vicente; tu-
na. Os navios negreiros tinham mastros pinambás, na região do atual estado do
de madeira de guanandi (Calophyllum Rio de Janeiro e costa do Nordeste, entre
brasiliense), árvore valorosa da restinga o rio São Francisco e o Rio Grande do
que foi a primeira espécie brasileira a ser Norte; e os tupiniquins, no restante do
protegida em âmbito legal; daí a origem litoral. Além das variações tupinambás,
do termo “madeira de lei”. Como se tor- a exemplo dos potiguares, caetés e taba-
naria regra, sua exploração, assim como jaras, os temiminós, tamoios e guaranis
de qualquer outra espécie de madeira da ou carijós (Silva, 2001).
Mata Atlântica, nunca fora realmente Estes povos foram os primeiros
regulada ou fiscalizada. trabalhadores nos plantios de cana,
Na transição do século XVI para o e obviamente, nas primeiras fases de
XVII, os ingleses e holandeses invadiram devas­t ação da vegetação das regiões
e saquearam a capitania de Pernambuco, costeiras. Foram trabalhadores força-
então a mais rica da colônia; estes últi- dos, que derrubaram florestas, cons-
mos se instalariam por quase 30 anos truíram casas, produziram alimentos
nos canais estuarinos da vila de Recife, através da caça, pesca e agricultura,
sendo expulsos entre 1654 e 1661. Após proporcionando os arranjos necessários
a retomada pelos portugueses, a explo- deste processo de extra escravidão.
ração do riquíssimo solo de massapê Em 1609, foi proibida a escravidão
dos tabuleiros costeiros do Nordeste dos povos indígenas no Brasil. Mas a
continuaria de maneira sistemática, lei não foi respeitada em sua plenitude,
devastando amplos trechos de Mata dado o constante avanço das áreas de

177
BIOMAS COSTEIROS

cultivo de cana-de-açúcar e as entradas realizada a captura no verão, época em


no interior, em especial com os reba- que as lagoas reduziam seu volume.
nhos bovinos. Uma terceira categoria que merece
O processo de colonização resultou destaque no processo de povoamento da
B na perseguição, isolamento no interior e costa brasileira é a dos pescadores livres.
afastamento dos povos indígenas. No litoral sul da Bahia, nas vilas de Porto
Os povos indígenas deixaram o Seguro e de Abrolhos, agrupavam-se
maior legado das artes de pesca no lito- cerca de 3 mil pescadores livres, que
ral brasileiro. Técnicas e saberes foram costumavam capturar garoupa, comer-
difundidos e modificados com escravos cializada salgada para Salvador e Rio de
recém-chegados e pescadores europeus. Janeiro, no século XVII.
Podemos citar: fabricação de linhas de O crescimento populacional e a
pesca a partir de fibras naturais, como expansão territorial ao redor das prin-
o cânhamo e o sisal; defumação, torra cipais cidades portuárias implicavam
e produção de farinha de peixe; pesca a destruição da Mata Atlântica, Man-
de cerco com timbó; pesca de batida; guezais, Florestas de Restinga e de Ta-
redes do tipo puiça ou puçá. Devem-se buleiros. A poluição costeira gerada
destacar também as técnicas de pesca à pela destruição das florestas, recursos
noite, com o uso de madeira de pindoba, hídricos e falta de saneamento já se faria
que produz forte brasa, servindo como sentir em muitas cidades, desencadean-
atrator luminoso para os peixes. do epidemias de tifo, tuberculose, febre
Outra forte herança indígena na amarela, dentre outras.
região costeira do Brasil é a jangada. Um novo ciclo econômico, o do café,
Seu primeiro registro é do ano de 1500, utilizaria trabalho escravo até o final do
mas esta se evidencia no século XVII, Império, em 1888 (o Brasil foi o último
ainda sem menção ao uso de velas, cuja país a abolir a escravidão), continuaria
introdução se deu a partir da ocupação a interiorização da população e mante-
holandesa. Nestas embarcações, era ria a base da economia de plantation,
comum a pesca com jereré, uma rede concentrando ainda mais as terras e o
triangular de aproximadamente 40 cm, capital nas mãos dos donos dos meios de
feita de palha de palmeira trançada produção. Enquanto isso, distantes dos
(Cascudo, 1964). grandes centros, as vilas e os povoados
No século XVII, foi abundante o litorâneos mantinham suas comunidades
crescimento de vilas litorâneas, com o pesqueiras e seus respectivos modos de
intuito de fornecimento de pescados vidas tradicionais.
para as cidades maiores, a exemplo do
Recife. No litoral da Paraíba, eram co- Imperialismo: o Bioma Costeiro
muns os senhores de pescadores, donos como lugar de conflito
de escravos que realizavam esta única Até os dias atuais, o Bioma Costeiro
atividade econômica. Nas grandes la- tem grande importância na vida das
goas das margens do rio São Francisco populações tradicionais do litoral brasi-
e do litoral alagoano, eram comuns os leiro por prover o sustento de milhões de
grandes currais pesqueiros, uma forma famílias. Em contrapartida, esses territó-
de aprisionamento dos peixes, sendo rios são locais de conflito e vêm sendo

178
BIOMAS COSTEIROS

destruídos pelo grande capital. As dunas ria e de grande escala – e, ainda, com a
costeiras protegem as comunidades, vilas imposição de Unidades de Conservação
e povoados da erosão provocada pelo de Proteção Integral em territórios de
mar, papel também desempenhado pelos pesca tradicionalmente ocupados du-
manguezais e estuários, onde a descarga rante centenas de anos, o que exigiria B
de água doce dos rios impede o avanço a criação de Reservas Extrativistas, ou
do mar. Em alguns locais onde as bacias seja, Unidades de Conservação de Uso
hidrográficas ou dunas costeiras foram Sustentável. Os pescadores artesanais de
degradadas ou ocupadas indevidamente arrasto de camarão da ilha do Supera-
por grandes empreendimentos – tais gui-PR e arredores sofrem restrições para
como loteamentos, usinas hidrelétricas, poder pescar na boca do estuário do La-
mineração, usinas eólicas, hotéis de luxo gamar – um dos sete maiores do mundo –
e monoculturas do agronegócio –, os devido à criação de um Parque Nacional,
territórios de comunidades tradicionais sem consulta popular, em seus territórios,
têm sido destruídos pela ação do mar utilizados secularmente para a pesca.
(como em Atafona, na foz do rio Paraíba Outras atividades tradicionais, como
do Sul-RJ). pequenos roçados e o manejo de plantas
As restingas também fornecem pro- úteis da restinga – tais como a juçara e
teção contra a erosão causada pelo mar o guanandi –, também são conflitantes
e também são abrigos para espécies úteis com os propósitos da Unidade de Con-
às comunidades costeiras. No entanto, servação de Proteção Integral. Enquanto
nos últimos 40 anos, vêm sendo ocu- isso, o grande capital destrói os recursos
padas por monoculturas, loteamentos, dessas comunidades, aproveitando-se
condomínios fechados, grandes hotéis, das falhas na fiscalização ambiental. Na
resorts de luxo, usinas eólicas e comple- foz do rio Oiapoque, extremo norte do
xos industriais e portuários. litoral brasileiro, pescadores artesanais
Os manguezais ocupam estuários locais também enfrentam problemas
e águas abrigadas de baías e enseadas, semelhantes, entrando em conflito com
desde Santa Catarina até o Amapá. A pescadores de camarão-rosa da Guiana
grande biodiversidade e biomassa desses Francesa, pesca de grande escala vinda
ambientes os tornam fundamentais para do Pará e a fiscalização ambiental do
a manutenção da saúde dos ecossistemas Parque Nacional do Cabo Orange.
costeiros. As águas abrigadas, em con- A indústria do petróleo e gás pratica
trapartida, são cobiçadas pelo grande as atividades de transporte e refino em
capital para a construção de complexos regiões litorâneas, instalando-se princi-
industriais portuários – que são fonte de palmente no bioma Costeiro. Acidentes
poluição costeira, trazem danos à saú- envolvendo vazamentos são extrema-
de e graves impactos socioeconômicos mente impactantes para as comunidades
(como na baía de Sepetiba-RJ), além tradicionais e exigem longo tempo para
do deslocamento de pessoas de seus remediação e recuperação ambiental.
territórios tradicionais (como no porto Contudo, ao longo da história bra-
de Suape-PE). sileira, é necessário reconhecer que os
As comunidades costeiras também povos e comunidades tradicionais foram
sofrem com a pesca industrial – predató- capazes de empreender lutas específicas,

179
BIOMAS COSTEIROS

engajamentos históricos, produto de suir uma identidade própria, fundada


resistência de movimentos de massa. na defesa das populações tradicionais
Desde tempos passados, os processos que têm na pesca artesanal seu meio de
de dominação, opressão econômica e vida e trabalho, o MPP, em suas ações
B controle político são combatidos por e campanhas formativas de denúncia e
organizações sociais e populares que bus- reivindicação, aponta como adversários a
cam afirmação étnica, territorialidades política desenvolvimentista da qual resul-
e relações ecossistêmicas equilibradas. tam os grandes empreendimentos de in-
Na década de 1980, o Conselho Pas- fraestrutura promovidos pelo Estado e/ou
toral dos Pescadores (CPP), apoiado por iniciativa privada (hidrelétricas, portos,
membros da Conferência Nacional dos indústrias petroquímica e de exploração
Bispos do Brasil (CNBB), desenvolveu um de petróleo e gás etc., para citar apenas
importante trabalho de base para a articu- algumas), o agro e o hidro negócios e,
lação dos pescadores na região Nordeste, ainda, o turismo de massa e a especulação
que posteriormente se espalhou para imobiliária cuja regulação é considerada
outras regiões do país. O trabalho incluía insuficiente, haja vista a constatação de
a formação de lideranças que assumiram que os ônus e bônus destas iniciativas
a gestão das colônias de pescadores, antes são distribuídos desigualmente, sendo
designadas pela Marinha. Nesse contexto, as populações pesqueiras tradicionais as
pescadores artesanais se organizaram no mais prejudicadas (Brito, 2016).
Movimento Nacional dos Pescadores À sanha do imperialismo, suas em-
(Monape), fundado em 1988. Mais tarde, presas e investidores destroem o bioma
surgiram também a Articulação Nacional Costeiro e as comunidades que dele vi-
das Pescadoras (2006) e o Movimento dos vem, negligenciam as leis ambientais, os
Pequenos Pescadores e Pescadoras (MPP) Direitos Humanos e as convenções inter-
(2009). Em 2009, durante a Conferência nacionais, com a única e exclusiva finali-
Nacional dos Pescadores e Pescadoras dade de concentrar dinheiro e poder. Este
Artesanais, organizada pela Articulação é o contexto das populações tradicionais
Nacional das Pescadoras, foi formalizada que habitam os biomas Costeiros. Cada
a criação do Movimento dos Pescado- vez mais espremidas entre metrópoles,
res e Pescadoras do Brasil. O MPP vem ou perdendo seus territórios de vida para
manifestando publicamente seu descon- empreendimentos relacionados ao agrohi-
tentamento com as ações estabelecidas dronegócio, estas comunidades mantêm
no âmbito das políticas públicas para o sua cultura, suas formas de produção e
segmento pesqueiro. Inscrito no quadro apropriação, além de estratégias únicas de
dos novos movimentos sociais por pos- convivência e conservação deste bioma.

Referências
BRITO, C. I. Uma abordagem sócio-histórica do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do
Brasil (MPP). Campos dos Goytacazes, 2016. 157 p. Tese de doutorado. Centro De Ciências Do Homem
(CCH). Programa de Pós-graduação em Sociologia Política. Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro (UENF).
CASCUDO, L. C. Jangada – uma pesquisa etnográfica. Rio de Janeiro: Editora Letras e Artes, 1964.
SILVA, L. G. A faina, a festa, o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar. Campinas: Papirus
Editora, 2001.

180
B I O M A M ATA AT L Â N T I CA

Para saber mais


DEAN, W. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
DIEGUES, A. C. S. A pesca construindo sociedades: leituras em socioantropologia marítima e pesqueira.
São Paulo: NUPAUB/USP, 2004.
_______. Povos e mares: leituras em socioantropologia marítima. São Paulo: NUPAUB/USP, 1995. B
GALEANO, E. H. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2014, 392p.
GOMES, F. S. Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Claro
Enigma, 2015.

BIOMA MATA ATLÂNTICA

D iogo C abr al
A lex a ndro S olor za no
F er na nda Tubenchlak

Habitada por populações amerín- cidades do que de florestas, mangues


dias a partir de 8 mil anos atrás, a Mata e restingas. Sua rica biodiversidade,
Atlântica recebeu o desembarque dos grande parte dela endêmica (isto é,
primeiros colonizadores europeus no que só ocorre localmente), encontra-
final do século XV da Era Cristã. Movi- -se seriamente ameaçada. As últimas
das pela acumulação de riqueza e poder, pesquisas mostram que quase metade
as novas sociedades humanas que então das espécies avaliadas – que não equi-
se construíram – misturando genes, valem às espécies existentes – pode ser
culturas e tecnologias ameríndias, eu- considerada ameaçada de extinção,
ropeias e africanas – mostraram-se bem conforme as regras internacionais da
menos ambientalmente adaptativas do International Union for Conservation
que as sociedades nativas (Dean, 1996). of Nature (IUCN) (Silva et al., 2016).
Sobretudo no período pós-colonial, o
desf lorestamento e outras formas de Delimitação geográfica
alteração ambiental reduziram o bio- Onde fica e até onde se estende a
ma a pequenas manchas de vegetação Mata Atlântica? Não há uma resposta
nativa em meio a paisagens dominadas estritamente “natural” para essa questão.
por campos agropecuários, fábricas, De um modo geral, a Mata Atlântica,
cidades e estradas, entre outros ele- como sugere o nome, abrange as forma-
mentos antropogênicos. Concentrando, ções vegetais nativas ao longo da costa
atualmente, cerca de 70 % da população Atlântica, desde o litoral do Nordeste até
e 80 % do Produto Interno Bruto (PIB) o sul do país, incluindo áreas no norte
do país, a Mata Atlântica é muito mais da Argentina e do Paraguai. Contudo, a
uma região de agropecuária, fábricas e delimitação de uma área para a aplicação

181
B I O M A M ATA AT L Â N T I CA

de regras de uso da vegetação nativa, a Realizado pelo IBGE em parceria


construção jurídico-territorial da Mata com o Ministério do Meio Ambiente,
Atlântica – único bioma brasileiro que na escala 1:5.000.000, o primeiro ma-
dispõe de legislação própria (Lei da Mata peamento oficial dos biomas brasileiros
B Atlântica, Lei Federal n. 11.428/2006) foi publicado em 2004 (IBGE, 2004).
– nunca deixou de envolver acirradas Acatando o princípio da regionalização
disputas políticas (Brasil, 2006). em áreas contínuas, esse mapeamento
Definida como “patrimônio nacio- retrata uma Mata Atlântica um pou-
nal” na Constituição de 1988, a Mata co diferente daquela da Lei n. 11.428
Atlântica é objeto de legislação desde (Brasil, 2006), que inclui manchas des-
1990, quando um decreto presiden- contínuas, até o extremo oeste do Mato
cial proibiu o corte da vegetação nativa Grosso do Sul e o norte do Maranhão.
nas áreas então definidas pelo IBGE De fato, se considerarmos a composição
como Floresta Ombrófila Densa Atlân- de espécies vegetais, encontram-se “Ma-
tica, Floresta Ombrófila Mista, Floresta tas Atlânticas” incrustadas em outros
Ombrófila Aberta, Floresta Estacional biomas do país. Anos atrás, um grupo
Semidecidual, Floresta Estacional Deci- de pesquisadores do Museu Paraense
dual, manguezais, restingas, campos de Emílio Goeldi encontrou Mata Atlântica
altitude, brejos interioranos e encraves na Amazônia. Eram matas da Ilha de
florestais do Nordeste. Dois anos de- Ipomonga e outras ilhas dos arredores,
pois, teve início a tramitação do Projeto no município de Curuçá, no nordeste do
de Lei n. 3285, de autoria do deputado Pará (Expedição..., 2009).
federal Fabio Feldmann (Brasil, 1992). Conforme o atual entendimento do
Embora não seja possível descrever aqui Ministério do Meio Ambiente (MAM),
as intrincadas idas e vindas nesse pro- o Bioma Mata Atlântica abrange dife-
cesso (Steinberger; Rodrigues, 2010), é rentes fisionomias florestais: 1) Floresta
importante destacar que os debates no Ombrófila Densa, como o nome já diz,
parlamento giraram em torno, princi- abrange as florestas sempre-verdes sob
palmente, da delimitação geográfica influência das frentes úmidas do oceano
da Mata Atlântica. De um lado, parla- Atlântico; 2) Floresta Estacional Semi-
mentares ligados a interesses ruralistas decidual e Floresta Estacional Decidual,
defendiam uma delimitação estreita, que são conhecidas como as matas secas
que incluísse pouco mais que a Floresta ou florestas de transição, localizadas
Ombrófila Densa. Do outro lado, parla- no interior do bioma, sob inf luência
mentares associados a setores científicos de clima continental estacional. Essas
e ambientalistas pressionaram por uma f lorestas apresentam caducifólia, ou
delimitação abrangente, semelhante à do seja, perdem parte da folhagem durante
decreto n. 99.547 de 1990. Essa última a estação seca; 3) Florestas Ombrófi-
proposta foi aprovada em 2006, definin- las Mistas, que abrangem as Matas de
do a Mata Atlântica como uma extensa Araucária, distribuídas na porção sul do
área de 1,3 milhões de quilômetros qua- bioma sob influência de um clima sub-
drados, na qual a conversão de vegetação tropical, e em ambientes montanhosos
nativa precisaria ser autorizada por órgão na porção sudeste. O bioma abriga ainda
ambiental competente. alguns ecossistemas associados: campos

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B I O M A M ATA AT L Â N T I CA

de altitude; manguezais, restingas e ve- da caça de animais a principal fonte de


getação de brejo (Brasil, 2018). alimento das populações pré-agrícolas.
A caça provavelmente exerceu conside-
Biodiversidade rável pressão sobre a fauna, levando à
A Mata Atlântica é considerada extinção de algumas espécies, sobretudo B
megadiversa, um dos biomas com maior mega-herbívoros, como gliptodontes
diversidade biológica no planeta. Nele e preguiças gigantes. Uma segunda
encontramos cerca de 20 mil espécies hipótese evoca o papel das populações
de plantas, 850 espécies de aves, 370 nativas mais recentes. O emprego da
espécies de anfíbios e 270 espécies de técnica de corte-e-queima (agricultura
mamíferos. A taxa de endemismo chega de coivara) pode ter sido responsável
a 40% das espécies vegetais do bioma. por domesticar as paisagens, selecionan-
O local onde Pedro Álvares Cabral de- do cultivares e produzindo um mosaico
sembarcou em abril de 1500 e, de um de florestas secundárias. Essa técnica foi
modo geral, toda a região sul da Bahia, adotada por populações mais modernas,
apresenta um dos mais elevados níveis como caiçaras, quilombolas e outros
de diversidade de plantas lenhosas do pequenos agricultores, até o final do sé-
mundo. Em apenas um hectare (10 mil culo XX. Por fim, uma terceira hipótese
metros quadrados, o equivalente a um está relacionada à crescente demanda
campo de futebol) de floresta, em Serra energética dos assentamentos urbanos
Grande, município de Uruçuca, pesqui- – que surgiram na era do colonialismo
sadores encontraram nada menos do que português e ganharam decisivamente
2.530 indivíduos com 5 centímetros ou em escala no início do século XX – que
mais de diâmetro à altura do peito, dis- estimulou a produção de carvão vegetal
tribuídos por 458 espécies e 67 famílias nas regiões rurais ao redor das cidades.
(Thomas et al., 2008). A riqueza bioló- A abundância de biomassa florestal e os
gica dessa sub-região da Mata Atlântica baixos custos de produção encorajaram
deriva, provavelmente, de uma história grupos marginalizados, como ex-es-
climática relativamente estável. Assim cravos (forros ou fugitivos), a fabricar
como uma pequena região em Pernam- carvão nas baixas encostas das monta-
buco, o sul baiano parece ter sido menos nhas, atividade da qual há abundantes
afetado pelas oscilações de temperatura vestígios paisagísticos.
e precipitação que caracterizaram a
Mata Atlântica, nos últimos 10 mil anos Antropização depredadora
(Carnaval; Moritz, 2008). A transformação antrópica da Mata
Mas a biodiversidade da Mata Atlântica se acelerou decisivamente,
Atlântica também está relacionada às primeiro com a chegada dos europeus,
atividades humanas. Oliveira e Solórza- em 1500, e depois no final dos anos 1800,
no (2014) desenvolveram três hipóteses com o início do chamado Antropoceno
não mutuamente excludentes sobre o [ver A ntropoceno] – período geológico
papel da paleocupação humana na for- caracterizado pela dominância ecológica
mação da biodiversidade do bioma. Uma humana, que se iniciou com a industriali-
delas evoca a relativa escassez de biomas- zação europeia, no século XIX (Steffen­et
sa vegetal comestível, o que teria feito al., 2007). Depois de comerciar ­pau-brasil,

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B I O M A M ATA AT L Â N T I CA

os colonizadores portugueses estabelece- 2005). Nessa época, poucas regiões de


ram grandes plantações de cana-de-açú- terras razoavelmente planas e agricultá-
car, iniciando um processo contínuo de veis do bioma permaneciam florestadas,
transformação socioambiental (Dean, dentre as quais destacavam-se o Pontal
B 1996; Cabral, 2014). Sucessivos surtos do Paranapanema, em São Paulo, e o sul
econômicos agropecuários e extrativistas baiano. Nessa última região, posseiros
mataram, escravizaram ou desalojaram praticantes de pequena agricultura e
centenas de milhares de indígenas, en- caça – muitos deles descendentes de
quanto importavam milhões de africanos quilombolas – foram expulsos de suas
para controlar, converter e cultivar as terras por grandes companhias, como
florestas esvaziadas. Tecnologicamente Odebrecht e Firestone, entre as décadas
incapaz de aumentar a produtividade, de 1950 e 1970. Com base em coerção
a economia crescia apenas extensiva- física e jurídica, embora não raramente
mente, devastando cada vez mais terras em associação com moradores locais,
e trabalhadores (depois dos escravos, os essas companhias açambarcavam terras
proletários rurais). Começando ainda florestadas para plantações de cacau e
na era colonial, muitos intelectuais cri- borracha, além da extração de madeira
ticaram esse modelo de aproveitamento (DeVore, 2018). Num período de 52 anos
perdulário dos recursos naturais (Pádua, (1945-1997), mais de 2 milhões de hecta-
2004). res, ou 76% da riquíssima Mata Atlântica
O Antropoceno reforçou e poten- do sul da Bahia, foram devastados (Silva;
cializou esse padrão histórico. No Brasil, Mendonça, 2000).
como em outras regiões marginais da Avaliações sobre o conjunto do
economia-mundo, o Antropoceno foi bioma feitas no final da década passa-
inicialmente acionado pelas demandas da e começo da atual mostravam que
agropecuárias e extrativistas dos centros somente entre 11% e 16% do mosaico
industriais europeus e estadunidenses biogeográfico nativo permaneciam
(Cabral; Bustamante, 2016). O exem- conservados (Ribeiro et al., 2009; 2011).
plo mais acabado desse “Antropoceno Contudo, um estudo publicado este ano,
Periférico” é o aniquilamento da Mata utilizando tecnologia mais avançada de
Atlântica no Vale do Paraíba, entre sensoriamento remoto (imagens com
meados do século XIX e o início do XX, resolução de 5 metros), acusou 32 mi-
pela expansão da cafeicultura. A partir lhões de hectares de vegetação nativa,
dos anos 1930, o Antropoceno brasi- ou 28% do bioma (Rezende et al., 2018).
leiro começa a incorporar os efeitos da Seja como for, trata-se de uma paisagem
industrialização da economia nacional. de pequenos remanescentes dispersos,
A cidade e posteriormente o estado de muitas vezes dentro de propriedades
São Paulo estavam na linha de frente privadas. São manchas de poucas cen-
desse processo, pressionando a Mata tenas ou mesmo dezenas de hectares de
Atlântica com demandas ligadas, sobre- regeneração secundária inicial, geral-
tudo, à energia e materiais de construção mente interpostas por lavouras, pasta-
(Dean, 1996). Estima-se que restassem gens e plantações de árvores exóticas.
apenas 13,7% da Mata Atlântica paulista As maiores manchas remanescentes
no início dos anos 1960 (Victor et al., encontram-se em áreas montanhosas

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B I O M A M ATA AT L Â N T I CA

que, pouco aproveitáveis para a agricul- das florestas vem ocorrendo em várias
tura, começaram a ser apropriadas pelo partes do bioma (Fundação SOS Mata
Estado para fins de conservação, ainda Atlântica, 2017), geralmente após o
no início do século XX. abandono de terras ocasionado por êxo-
do rural, urbanização e industrialização, B
Conservação e restauração além do deslocamento de atividades
A principal estratégia adotada para agrícolas para outros biomas. Embora
conservação da biodiversidade na Mata a regeneração natural possa contribuir
Atlântica é a criação de áreas protegidas, significativamente para o cumprimento
incluindo os três primeiros Parques Na- das metas de restauração e conservação
cionais do Brasil: o de Itatiaia, em 1937, da biodiversidade (International Insti-
o de Iguaçu e o da Serra dos Órgãos, tute for Sustainability et al., 2014), ela
ambos em 1939. Atualmente, existem não dispensa a proatividade. Diversos
1.191 Unidades de Conservação (UCs) esforços vêm se articulando através do
no bioma, equivalente a cerca de 8,5% Pacto pela Restauração da Mata Atlân-
de sua extensão original (115.000 km²). tica, iniciativa envolvendo diversos
Dentre estas, estão UCs municipais, es- segmentos da sociedade (organizações
taduais e federais, com diferentes graus e associações diversas, governos, em-
de proteção (proteção integral e uso presas, instituições científicas, proprie-
sustentável), regidas de acordo com tários rurais e outros) com o objetivo
o Sistema Nacional de Unidades de comum de recuperar 15 milhões de
Conservação (SNUC) – Lei Federal n. hectares até o ano de 2050. Ela está em
9.985/2000 (Brasil, 2000). consonância com os compromissos glo-
No entanto, para garantir a efe- bais assumidos pelo Brasil no âmbito da
tividade da conservação, é necessário Convenção-Quadro das Nações Unidas
aumentar a conectividade entre os sobre Mudança do Clima, com os esfor-
remanescentes através do manejo inte- ços para adequação das propriedades ao
grado das UCs, e destas com suas áreas novo Código Florestal (Lei de Proteção à
circundantes. Apesar da Lei da Mata Vegetação Nativa, Lei n. 12.651/2012)
Atlântica proteger os pequenos frag- [ver C ódigo Florestal] e também com
mentos fora de UCs, estes estão imersos a Política Nacional de Recuperação da
em uma matriz de baixa permeabilida- Vegetação Nativa (Proveg) – Decreto
de, dominada por pecuária extensiva, n. 8.972/2017 (Brasil, 2017).
monocultivos e áreas urbanas. Mais de Conservação e restauração não
80% dos fragmentos têm menos de 50 precisam excluir a agricultura. Através
hectares e apresentam um alto grau de do manejo agroecológico, a agricul-
isolamento (Ribeiro et al., 2009). tura pode se transformar num vetor
Dado o estado de degradação e de regeneração do bioma. A inclu-
vulnerabilidade do bioma – e, con- são dos princípios agroecológicos nos
sequentemente, das populações resi- processos restaurativos, com destaque
dentes – frente às mudanças climáticas para o estabelecimento de Sistemas
[ver M udanças C limáticas], não basta Agrof lorestais (SAFs) [ver A groflo ­
conservar a Mata Atlântica. É preciso resta – S istemas agroflorestais], é uma
recuperá-la. A regeneração espontânea alternativa para conciliar agricultura

185
B I O M A M ATA AT L Â N T I CA

e restauração, motivando agricultores tentável [ver Desenvolvimento Sustentá­


e proprietários rurais a incorporar ár- vel], como é o caso dos assentamentos
vores nos sistemas produtivos e romper no Pontal do Paranapanema em parceria
com a suposta dicotomia entre produ- com o Instituto de Pesquisas Ecológicas
B ção e conservação. Nesse sentido, cabe (IPÊ) (Cullen et al., 2006); da expe­
destacar que práticas agroflorestais não riência da Associação de Agricultores
são totalmente novas no bioma: quin- Agroflorestais ‘União de gentes com
tais agroflorestais, plantios sombreados a natureza’ (Cooperafloresta), no Vale
pela mata e agricultura de coivara (iti- do Ribeira (Steenbock et al., 2013) e da
nerante, associada a práticas de pousio Rede de Agroecologia através do Progra-
e a utilização de fogo) fazem parte ma Rio Rural no Noroeste Fluminense
da herança indígena e são utilizados (Tubenchlak et al., 2018). Apesar de ain-
pelas comunidades tradicionais que da pontuais, esses exemplos demonstram
habitam o bioma, como quilombolas o potencial da transição agroecológica
e caiçaras. No entanto, atualmente, [ver Transição Agroecológica] no nível
as práticas de pousio e reaberturas de de paisagens e reforçam a importância
áreas são limitadas pelo tamanho redu- do desenvolvimento de políticas públicas
zido das propriedades e pela legislação para agroecologia [ver Políticas Públicas
ambiental, que diminui o tempo de para Agroecologia]. A integração entre
pousio, tornando-o insuficiente para políticas ambientais, políticas agrícolas
recuperação da fertilidade dos solos e regularização fundiária é fundamental
(May; Trovatto, 2008). para que a regeneração da Mata Atlânti-
Ao mesmo tempo, destacam-se ca não seja apenas um reflexo da redução
iniciativas agroflorestais que vêm con- da atividade agrícola e êxodo rural, mas
tribuindo para a recuperação da Mata parte de um processo de regeneração da
Atlântica e para o desenvolvimento sus- relação humanos-natureza.

Referências
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 3285/1992. Dispõe sobre a utilização e proteção da
vegetação nativa do bioma Mata Atlântica, e dá outras providências”. Disponível em: https://webcache.
googleusercontent.com/search?q=cache:YLUt4fAc6xQJ:https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao%3FidProposicao%3D19408+&cd=1&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 19
mar. 2021.
______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 11.428, de 22 de
dezembro de 2006. Dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica,
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187
B I O M A PA M PA

BIOMA PAMPA
B
Paulo B r ack

O Pampa é um dos biomas mais representam áreas predominantemente


desprotegidos do país, apesar de sua ele- formadas por campos nos estados do Rio
vada sociobiodiversidade, ainda pouco Grande do Sul, Santa Catarina e Para-
conhecida da maioria dos brasileiros. ná, nestes últimos dois estados limitados
Os campos nativos, vegetação original a áreas de altitudes mais elevadas.
característica deste bioma restrito à O clima do Pampa é temperado a
região sul do Rio Grande do Sul, no subtropical, com médias anuais que se
Brasil, abriga riqueza de flora, fauna e situam entre 15o C a 19o C, com chuvas
culturas humanas em situação de risco mais ou menos regularmente distribuí-
crescente pelo avanço do agronegócio. das, totalizando entre 1.200 mm e 1.350
O nome Pampa tem como origem mm ao longo de todo o ano. Os solos,
uma palavra de origem quéchua, lín- em geral, são férteis, mas muito variá-
gua dominante dos incas, mas falada veis, sendo tradicionalmente ocupados
até hoje por povos tradicionais dos pela pecuária em grandes extensões.
países andinos, e significa predomínio Os tipos de vegetação do bioma
de amplas áreas planas (planuras) em são muito diversos, constituídos, ge-
planícies, mas também em terrenos ralmente, por vegetação mais aberta,
mais ou menos ondulados, formados com predominância de campos nativos,
por coxilhas (denominação regional banhados, formações arbustivas, forma-
para pequenas e suaves elevações) ou ções arbustivo-arbóreas, com matas, em
mesmo englobando morros de diferentes geral, limitadas aos cursos d’água (ma-
origens geológicas. Este bioma abrange tas em galeria) ou em algumas encostas
todo o território do Uruguai, parte do de morros, podendo formar ainda tipos
nordeste e leste da Argentina e a meta- vegetacionais particulares, com predo-
de sul do Rio Grande do Sul, no Brasil. mínio de uma espécie, como no caso de
No Rio Grande do Sul, ocupa uma palmeiras, como os butiás, formando os
área de 176.496 km², que corresponde butiazais e com outras plantas, como
a 63% do território deste estado (IBGE, as matas de pau-ferro, os chircais e
2004) e 2,07% do Brasil (ver Figura 8, os espinilhais ou vegetação-parque de
adiante, p. 791). espinilho. Em resumo, as formações são
Devemos fazer uma certa distinção diversas, conforme a região e as condi-
entre Pampa e Campos Sulinos. O pri- ções de solo, clima, relevo, entre outras.
meiro refere-se a um bioma oficial, que Os campos sulinos do Rio Grande
representa cerca de 60% da superfície do Sul, que incluem o Pampa, possuem
do estado do Rio Grande do Sul. Os pelo menos 2.200 espécies de plantas
Campos Sulinos são mais abrangentes e (Boldrini, 2009), com dominância de

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ervas e arbustos, com notável diversi- índios para serem escravizados. Padres
dade de gramíneas (gramas e capins, e índios tiveram que se retirar para a
muitos destes forrageiros), que ultrapas- margem direita do rio Uruguai, entre-
sam 450 espécies, leguminosas (também tanto, deixando as criações de gado.
forrageiras) com mais de 150 espécies, Assim, o gado se espalhou e grande B
e muitas espécies de cactáceas, de inte- parte se tornou selvagem, resultando em
resse ornamental, e de outros grupos de milhares de bovinos e equinos dispersos
plantas que compõem elementos funda- pelo território rio-grandense e uruguaio.
mentais aos processos de manutenção Desde o início da colonização,
do equilíbrio ecológico dos ecossistemas principalmente ibérica, a pecuária
do Pampa (Pillar; Lange, 2015). extensiva sobre os campos nativos foi
Tradicionalmente, os campos eram a principal atividade econômica da
espaços de caça, principalmente para os região. Hoje, como remanescentes da
povos charrua (com predomínio a oeste diversidade social do Pampa, segundo
do rio Uruguai) e minuano (Garcia; Mazurana et al. (2016), existem ain-
Milder, 2012), sendo o manejo provavel- da povos indígenas, principalmente
mente realizado com uso de fogo, cuja guaranis, comunidades quilombolas,
prática limita o avanço de vegetação benzedeiras e benzedores, pecuaristas
arbórea. Segundo Ribeiro e Quadros familiares, pescadoras e pescadores ar-
(2015), os minuanos e os charruas foram tesanais, povo cigano, povo pomerano
aqueles que, por meio de seus hábitos e e povo de terreiro. Estes povos e co-
de seus artefatos, deram a maior contri- munidades tradicionais se distribuem
buição para a formação do tipo humano mais em áreas de relevo ondulado,
e social posteriormente identificado em regiões de pequenas propriedades.
como gaúcho. O uso de boleadeiras, Nas áreas mais planas, principalmente
dos laços de couro e o churrasco têm na Campanha gaúcha (sudoeste do
como base a cultura destes povos. O estado), as grandes propriedades e a
território que veio a se constituir no Rio facilidade de mecanização deram con-
Grande do Sul não despertou interesse dições para o avanço da orizicultura,
de espanhóis e portugueses até cerca da sojicultora, da eucaliptocultura,
de 1640. Praticamente naquela época, entre outras monoculturas.
apenas os jesuítas espanhóis haviam se Na Campanha (porção oeste e
estabelecido para a conversão de gru- sudoeste do RS), os solos apresentam-
pos indígenas, introduzindo atividades -se mais férteis, sendo transformados
baseadas nas criações de gado bovino e ou convertidos mais rapidamente em
equino que se espalharam naturalmente amplas áreas de plantios de grãos.
pela vasta região de campos a leste do Segundo Ilsi Boldrini (2009), a subs-
rio Uruguai e mais tarde passou a ser tituição dos campos por lavouras para
explorado para o comércio do couro. produção de grãos, a partir das décadas
Na parte noroeste do Pampa, e prin- de 1970 e 1980, ou para plantios de
cipalmente no que hoje pertence à eucalipto, a partir do início da década
Mata Atlântica, houve a instalação de de 2000, para a obtenção de celulose
reduções jesuíticas que foram atacadas está levando à descaracterização da
por bandeirantes paulistas à caça de paisagem desta grande unidade de

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paisagem natural, junto à perda da Ambiente /ICMbio). Cabe destacar que


cultura e dos modos de vida locais, as Metas da Biodiversidade 2020, da
em especial aos pecuaristas familia- ONU, preveem 17% de áreas protegidas
res e às comunidades tradicionais. A em todos os territórios.
B transformação sobre o bioma levada a Em contrapartida, cabe destacar
cabo pelo agronegócio, pela expansão que o bioma Pampa possui quase 1/3
da fronteira das monoculturas, em de seu território dentro das Áreas­Prio-
especial de soja e eucalipto, vem se ritárias para a Biodiversidade (Brasil,
acentuando com o êxodo rural. 2007), incluindo também uso susten-
Infelizmente, não existe um moni- tável e repartição de benefícios da
toramento com dados recentes sobre a biodiversidade.
evolução dos remanescentes de campos No tocante às populações tradi-
originais do Pampa, como já existe em cionais, em especial no que se refere à
outros biomas, como Mata Atlântica criação de gado bovino, ovino, caprino
e Amazônia. Ademais, o Pampa não e equino, Mazurana et al. (2016, p. 67)
apresenta proteção legal específica afirmam que
como no caso da Mata Atlântica ou da [...] ser pecuarista familiar está
Amazônia, pois não está ainda inserido além da atividade econômica de-
na Constituição Federal como Patrimô- senvolvida, tem que gostar, ob-
nio Nacional. A legislação ambiental servar, interagir e cuidar. Cuidar
não deixa muito clara a proteção à ve- da terra, dos animais e do lugar
getação que não seja a florestal, e neste onde se vive. É um modo de ser
caso os campos. Esta lacuna poderia ter e de viver próprio, orientado pe-
um enfrentamento importante a partir los ciclos naturais, das plantas e
dos animais. Através da pecuá-
da possível aprovação da Proposta de
ria, valoriza o campo nativo e não
Emenda Constitucional (PEC 05/2009),
agride o ambiente e as paisagens.
do senador Paulo Renato Paim, espe- [...] [destacando uma das falas dos
rando para ser votada no senado, e pecuaristas familiares]. A gente
que inclui na Constituição os biomas mantém o campo nativo com toda
Pampa, Caatinga e Cerrado, os quais a biodiversidade da região.
ainda estão de fora.
Os modos de vida tradicionais,
Estimativas quanto à perda de habi-
distantes do mercado de insumos e dos
tat dão conta de que em 2002 restavam
pacotes tecnológicos, tendo os quilom-
41,32% e em 2008 restavam apenas
bos um grande destaque, ganharam
cerca de 36% da vegetação nativa do
reconhecimento nos últimos anos pelas
bioma Pampa (Instituto Brasileiro de
políticas públicas para estes setores e
Meio Ambiente e dos Recursos Natu-
para os pequenos produtores pecuaris-
rais Renováveis, 2011). Cerca de 26%
tas, alguns destes em assentamentos de
dos campos naturais foram perdidos
Reforma Agrária. Isso contribui para o
ao longo de um período de 30 anos. A
autorreconhecimento, a afirmação local
perda é agravada pela proteção de ape-
e a maior autonomia, constituindo-se
nas 2,70% do bioma Pampa dentro de
patrimônios socioculturais de resistên-
áreas legalmente designadas Unidades
cia à dependência do agronegócio.
de Conservação (Ministério do Meio

190
B I O M A PA M PA

Entretanto, além da ameaça do Sudeste. Na região das Guaritas (Dis-


agronegócio, temos, cada vez mais, trito de Minas do Camaquã, Caçapava
a perda da soberania dos recursos da do Sul), nas cabeceiras deste rio, está
biodiversidade dos nossos biomas por previsto um megaempreendimento da
meio da biopirataria e de outras formas Votorantim Metais Holding e Iamgold B
de apropriação indébita estrangeira de Brasil para a extração de chumbo, co-
recursos importantes da flora nativa bre e zinco, metais pesados altamente
regional. Dezenas de plantas são leva- tóxicos. A poluição poderia afetar não
das para outros países, como plantas só a saúde humana e ambiental como
ornamentais (Carrion; Brack, 2012), também comprometer um dos locais
forrageiras, frutíferas e medicinais. No registrados no Mapa das Áreas Priori-
primeiro caso, temos as cactáceas, que tárias para a Biodiversidade, Portaria
são mais de uma centena nos campos n. 9 do Ministério do Meio Ambiente
nativos deste bioma, com mais de 40 (Brasil, 2007), inserido na categoria de
tipos de cactos ameaçados, mais da Extrema Importância.
metade deles já objeto de comércio No que se refere à proteção e uso
internacional, em coleções de plantas da biodiversidade, como contraponto,
nativas brasileiras levadas e comercia- por meio de espécies nativas, damos
lizadas em países do chamado Primeiro destaque à necessidade de incentivo
Mundo. Outros casos de biopirataria, à pecuária familiar, com incremento
por parte de transnacionais, estão de forrageiras nativas de leguminosas
relacionados a plantas ornamentais de e gramíneas (Boldrini et al., 2011), em
jardim, como petúnias e verbenas (ver- pastagens naturais que requerem mane-
vain) levadas para países do Hemisfério jos simples e baratos.
Norte. No que toca a plantas forragei- No sul do Brasil, nordeste da Ar-
ras, temos muitas delas levadas para os gentina e Uruguai, também ocorrem
Estados Unidos, África do Sul e Nova ecossistemas particulares de grande
Zelândia, destacando-se aqui o caso importância, associados às pastagens
da pensacola grass, ou grama-forqui- do Cone Sul da América do Sul. Pode-
lha, que foi desenvolvida pelos EUA, ríamos destacar muitas dezenas de es-
com base em uma planta dos Campos pécies de frutas nativas, como o araçá,
Sulinos. Com respeito às plantas medi- a pitanga, a goiabeira-serrana e o butiá.
cinais, também são vários casos, porém Os butiazais, adensamentos de cerca
podemos salientar a espinheira-santa, de meia dúzia de espécies de palmei-
ou cancorosa, comum em beira das ras butiá, também chamam a atenção
matinhas do Pampa, com substâncias pela beleza de sua formação vegetal na
utilizadas para tratamento de tumores paisagem, bem como pela importância
patenteadas por empresas japonesas. de seus frutos saborosos, e levemente
O avanço da mineração, em ex- ácidos, utilizados em um crescente
pansão no sul do Brasil, é outra grave número de produtos pela agricultura
ameaça ao bioma e a sua sociobiodi- familiar e comunidades tradicionais.
versidade. Atualmente, existe um mo- Existem iniciativas importantes de
vimento de resistência de populações uso desta fruta na chamada “Rota dos
da bacia do rio Camaquã, na Serra do Butiás”, que envolve pequenos pecua-

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B I O M A PA M PA

ristas, agricultores familiares, Empresa no livro Plantas do Futuro – Região Sul


Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Coradin; Siminski; Reis, 2011), como
(Embrapa), universidades, entre ou- contraponto à agricultura empresarial
tros setores da região sudeste do Rio e convencional que vem destruindo
B Grande do Sul. nossos biomas.
Infelizmente, a conversão dos bu- Nesse sentido, apresenta-se cada
tiazais, espinilhais e os próprios campos vez mais a necessidade de efetivação
nativos para agricultura, silvicultura e de medidas voltadas à manutenção
expansão urbana estão associados a mo- dos ecossistemas pampeanos, com
delos de uso da terra que concentram ampliação de pesquisas no campo da
propriedades na mão de poucos, fazendo restauração ambiental para os sistemas
girar um círculo vicioso de vendas de campestres, que podem ser compatibi-
insumos. Entre os insumos mais perversos lizados com a pecuária familiar (bovi-
estão os agrotóxicos [ver Agrotóxicos], em na, equina, ovina e caprina) com base
especial os herbicidas, como o glifosato (o em produtos, por exemplo, lácteos, lã,
mais vendido entre todos os agrotóxicos), couro, meliponicultura, turismo fami-
que prejudicam a vida dos agricultores, do liar e ecológico em pequena escala,
ambiente e das populações que ali vivem entre outros.
ou se alimentam de muitos produtos da A sociobiodiversidade do Pampa
agricultura ou da pecuária. tem sofrido com a ameaça a seus ter-
Há a necessidade de reconhecer ritórios e modos de vida pelos grandes
também os ecossistemas não florestais empreendimentos e pela agricultura e
como patrimônios da sociobiodiversida- silviculturas empresariais, que implicam
de. As políticas públicas devem prezar desrespeito a seus direitos. Povos indíge-
também esses ecossistemas, as espécies nas, comunidades quilombolas, pesca-
devem incluir a promoção do uso sus- doras e pescadores artesanais, povos de
tentável de seus produtos, incorporando matriz africana/povo de terreiro, povo
inclusive o seu valor econômico, para cigano, povo pomerano, benzedeiras
aumentar a sua conservação, com base e benzedores, pecuaristas familiares e
na agricultura familiar e nas economias assentados da reforma agrária, histori-
locais, fora da lógica dos insumos da camente invisibilizados, devem ter di-
dependência do agronegócio. Existe reito a uma vida digna e com felicidade,
um potencial importante de espécies integrados às paisagens e às diferentes
do Pampa e Mata Atlântica descrito culturas do bioma Pampa.

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193
B I O M A PA N TA N A L

BIOMA PANTANAL
B
Fr a n Paula de C astro
L eonel Wohlfar hurt

O Pantanal é parte do chamado Sis- setembro, e uma chuvosa e quente entre


tema Paraguai-Paraná de Zonas Úmidas, outubro e abril. A temperatura média
um complexo que abrange, além do Brasil, do ar nos meses de verão, de dezembro a
Argentina, Bolívia e Paraguai. As zonas fevereiro, é de 32 °C, e durante o inverno
úmidas fornecem serviços ecológicos o clima torna-se muito mais frio e seco,
fundamentais para a fauna, a flora e o na faixa de 21 °C. A média da precipita-
bem-estar de populações humanas. Cum- ção anual da planície alagável está entre
prem também papel vital no processo de 1.000 e 1.400 mm, com picos máximos
mitigação das mudanças climáticas, já que em janeiro e mínimos em julho. A pre-
muitos desses ambientes úmidos retiram cipitação varia durante o ano, causando
grandes quantidades de carbono do ar [ver um ciclo regular de seca e cheia, o que
Mudanças Climáticas], formando grandes torna o Pantanal um ecossistema único
reservatórios (Schlesinger, 2014). (Brasil, 1997).
É uma das maiores extensões úmi- A vegetação compreende aproxi-
das contínuas do planeta e, no Brasil, madamente 1.863 espécies de plantas
está localizado na Bacia Hidrográfica fanerógamas (plantas que se caracterizam
do Alto Paraguai, nos estados de Mato pela presença de flores, como órgãos de
Grosso e Mato Grosso do Sul, na região reprodução nitidamente visíveis e que
Centro-Oeste, cobrindo uma área de produzem sementes) que ocorrem no
aproximadamente 140 mil km² (Souza, Pantanal, e 3.400 que se distribuem na
2008; Signor; Fernandes; Penha, 2010). Bacia do Alto Paraguai, além de 250
O ambiente pantaneiro é relativa- espécies de plantas aquáticas. Essa com-
mente aberto e os grandes mamíferos e plexa cobertura vegetal e a produtividade
aves são mais fáceis de observar do que sazonal dão suporte ecológico para uma
na maioria dos biomas brasileiros. Isto fauna diversa e abundante do Pantanal:
gera a impressão de que é um ambiente 263 espécies de peixes, 41 de anfíbios, 113
simples, fácil de entender. No entanto, de répteis (177 para a Bacia), 463 de aves
a maior parte de nosso entendimento e 132 de mamíferos (Alho, 2008).
do Pantanal é fragmentada. Quando se Em particular, o Parque Nacio-
observa de perto, o sistema é muito mais nal do Pantanal Matogrossense abriga
complexo do que as generalizações apre- um número alto de animais da fauna
sentam (Magnusson, 2010). ­neotropical,1 de que fazem parte várias
espécies ameaça­das de extinção, como a
Descrição ecológica arara-azul, o cervo-do-pantanal e a onça-
O clima da região é caracterizado -pintada. Além disso, a região tem uma
por uma estação seca e fria entre maio e vegetação que fica em área de transição

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entre o Cerrado [ver Cerrado] e a floresta que vivem em região de morros denomi-
semidecidual,2 na qual há as estações de nada Morraria, e que ligam diretamente
chuva e estiagem, alterando de maneira sua identidade ao território que ocupam
muito acentuada a paisagem (Bottallo et há séculos), coletores de iscas, agricultores
al., 2014). familiares, assentados da reforma agrária, B
Por sua importância, o Pantanal entre outros.
foi declarado Patrimônio Nacional Uma das características desses povos
pela Constituição Brasileira de 1988, é o manejo ecológico do bioma por meio
além de abrigar sítios considerados de cultivos em quintais diversificados,
de relevante importância internacio- da integração da agricultura com cria-
nal pela Convenção Internacional de ção de pequenos animais, a proteção
Áreas Úmidas (Convenção Ramsar). das nascentes de águas, a realização de
Inclui ainda áreas reconhecidas como festas tradicionais homenageando rios,
Reservas da Biosfera, pela Unesco, sementes, florestas, a terra, os animais e
que classificou o bioma também como santos religiosos.
Patrimônio Natural da Humanidade A partilha do alimento entre comu-
(Schlesinger, 2014). nidades, o armazenamento, a produção
e as trocas de sementes crioulas, o uso
No Pantanal tem gente de ervas medicinais e o trabalho coletivo
O Pantanal é um território consti­ nos chamados Muxiruns são práticas
tuído originalmente por populações indí- realizadas por esses povos.3
genas há pelo menos 5 mil anos (bororos, Para Diegues (2000, p. 56), os povos
paiaguás, guatós, guaikurus e kayapós), pantaneiros detêm um conhecimento
etnias praticamente dizimadas durante o tradicional que lhes permite “interagir
período de colonização portuguesa e espa- com a biodiversidade e entendê-la não
nhola (Siqueira, 2002; Silva; Silva, 1995). como um recurso natural, mas como um
As guerras provocadas pelos não conjunto de seres vivos que tem um valor
índios, a escravidão e as doenças dizi- de uso e um valor simbólico, integrado em
maram praticamente todos esses povos, uma complexa cosmologia e no contexto
restando hoje alguns poucos índios bororo cultural”. Esse conhecimento faz com
e guatós vivendo no Pantanal Brasileiro. que as populações tradicionais pantanei-
Em meados do séc. XVIII chegaram os ras sejam as principais observadoras do
bandeirantes em busca de escravos para Pantanal, monitorando as mudanças vi-
as plantações do sudeste do Brasil e para venciadas no território ao longo dos anos.
a extração de ouro. Nesse mesmo século Segundo Rosetto e Tocantins
iniciou-se definitivamente o povoamento (2015, p 12),
do Pantanal pelos colonizadores luso-bra- A imagem que a população tem so-
sileiros (Signor; Fernandes; Penha, 2010). bre o Pantanal brasileiro, com raras
Assim, a população pantaneira tradi- exceções, é o estereótipo veiculado
cional se constituiu a partir dos diversos pela mídia que remete a um paraíso
processos de ocupação do território ao ecológico com exuberante fauna e
longo dos anos; são indígenas, quilombo- flora, áreas alagadas, fazendas de pe-
las, ribeirinhos, pescadores, comunidades cuária extensiva e povos tradicionais
tradicionais, morroquianos (agricultores imersos em uma temporalidade con-

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B I O M A PA N TA N A L

trária ao advento da modernidade. soja e milho, provocou devastamento e


Ademais, constata-se a existência de derrubada de grandes extensões de flo-
uma considerável produção científica restas, intensificando-se nos anos 1990
sobre os aspectos físicos e biológicos com a implantação da cana-de-açúcar
B do Pantanal, no entanto, são escassos
e teca (Tectona grandis, árvore exótica,
os trabalhos sobre os habitantes das
utilizada na indústria madeireira). Pos-
áreas rurais pantaneiras, sua cultura e
as rupturas pelas quais vêm passando teriormente, no ano 2000, os cultivos
o modo de vida tradicional. de soja e cana-de-açúcar se deslocaram
para a planície pantaneira, gerando não
Porém, são estratégias do sistema apenas impactos ambientais, mas sociais
capitalista a anulação social desses povos e culturais no território.
tradicionais, seguida da apropriação do Atualmente, monocultivos de soja,
território pelo avanço do agronegócio e milho, algodão, cana-de-açúcar, pro-
consequente expulsão de suas áreas, o dução de aves e suínos também estão
desmatamento e a degradação da biodi- presentes nas áreas de planalto nos mu-
versidade para dar lugar principalmente às nicípios pantaneiros. Segundo Alho
fazendas de pecuária e à manutenção do (2008), 17% do Pantanal e 63% do Pla-
trabalho escravo contemporâneo. nalto do seu entorno sofreram perdas e
modificações de habitats naturais devido
Modelo de Desenvolvimento à pecuária e agricultura não sustentáveis,
e seus impactos mineração [ver Mineração], contamina-
Quem chega em Cuiabá, capital do ção ambiental (incluindo contamina-
Mato Grosso, encontra placas de boas- ção por mercúrio, pesticidas e esgoto
-vindas à “capital do agronegócio e do urbano), turismo não sustentável, fogo,
Pantanal” – curiosa ênfase a uma suposta mudanças no fluxo das nascentes de rios,
harmonia na relação entre o modelo eco- erosão e ação de conservação deficiente,
nômico de exploração do território e a com ineficiente implementação da legis-
preservação do bioma. Entretanto, como lação ambiental.
outros biomas, o Pantanal se encontra Este modelo de desenvolvimento
ameaçado pelos impactos do modelo de econômico, adotado no Pantanal, poderá
desenvolvimento agrícola, estruturado em comprometer o ecossistema pantaneiro,
sistemas agropecuários com alta concen- provocando a perda de muitas espécies
tração de terras, uso exaustivo do solo e ainda desconhecidas (Fernandes; Signor;
exploração exaustiva dos recursos naturais. Penha, 2010). Outras consequências são
A pecuária é a base da economia o desmatamento, o assoreamento dos
local (com predominância da bovino- rios, a contaminação indiscriminada do
cultura de corte) desde o final do século ambiente por agrotóxicos, a alteração do
XVIII. Neste sentido, o espaço regional pulso natural das águas e a forte redução
foi sendo construído com base em enor- da quantidade de peixes.
mes latifúndios. O avanço voraz da fron- Para Luiz (2015, p. 149), “as águas
teira agrícola na região centro-oeste nos são tudo para o Pantanal. São elas que
anos 1970 e 1980, sobretudo no planalto ditam o ritmo de todas as formas de vida
da bacia hidrográfica Alto Paraguai, pantaneira”. E, à medida que há interfe-
para implantação de monocultivos de rências na dinâmica natural destes rios,

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B I O M A PA N TA N A L

pressupõem-se a desestabilização da O projeto proposto prevê 17 pontos


própria noção de Pantanal e dos modos de dragagem no trecho mais sensível na
de vida pantaneiros. Porém, a existência dinâmica do curso do Rio Paraguai, com
do Pantanal não depende apenas da grande potencial de afetar, rio abaixo, o
proteção das áreas de planície, e sim Pantanal do Mato Grosso do Sul. Com B
da preservação integral da Bacia do objetivo de navegar 11 meses por ano,
Alto Paraguai (Schlesinger, 2014). O mesmo sendo nos quatro meses de seca
estado de conservação das nascentes do impossível a navegação pelo rio.
Rio Paraguai e de seus afluentes, bem Com a possível alteração da geomor-
como da vegetação em seu entorno, fologia e do aprofundamento do calado do
assim como a qualidade das águas, são rio, a perda dos benefícios que a natureza
condições essenciais para a preservação nos oferece será agravada, visto que as
do Pantanal. águas descerão com maior rapidez, dimi-
Entretanto, os impactos do agrohi- nuindo sensivelmente a área de alagamen-
dronegócio estão atingindo patamares to e a fertilização natural dessas margens.
irreversíveis de destruição do bioma, em As organizações sociais e os movi-
decorrência da compactação do solo, po- mentos ambientais que atuam em defesa
tencializada pela pecuária; da redução das do Rio Paraguai têm se mobilizado para
áreas de vegetação nativa e sementes criou- denunciar os riscos que a hidrovia repre-
las; da extinção rápida de espécies da fauna senta para a integridade do Pantanal,
e flora; da intensificação dos processos e questionar os interesses do projeto.
erosivos e assoreamento de corpos d’água; Este beneficiará sobretudo os setores do
da diminuição na quantidade e qualidade agronegócio, que veem a hidrovia como
da água; da contaminação por agrotóxicos um canal estratégico para o escoamento
e sementes transgênicas. Grandes projetos, de commodities como soja, milho, fertili-
como a Hidrovia Paraguai-Paraná e os zantes, entre outros.
barramentos de água dos rios para implan- As hidrelétricas representam outra
tação das Usinas Hidrelétricas e Pequenas grande ameaça à manutenção do bioma,
Centrais Hidrelétricas, representam uma haja vista que mais de 70% do potencial
ameaça com efeitos conjuntos e sinérgicos de produção de energia já está em ope-
à conservação do Pantanal. ração na Bacia do Alto Paraguai. São 45
A Hidrovia Paraguai-Paraná surgiu barramentos, sendo 8 Usinas Hidrelé-
a partir do início da década de 1990, tricas (UHEs) e 37 Pequenas Centrais
por meio de um projeto do Banco Inte- Hidrelétricas (PCHs). A ideia é implantar
ramericano de Desenvolvimento (BID) mais 135 investimentos de produção de
com apoio dos cinco países da Bacia do energia na bacia (Calheiros, 2014).
Prata (Brasil, Uruguai, Bolívia, Paraguai A ocorrência dos 180 barramentos
e Argentina), para implantação de uma hidrelétricos previstos provocaria uma
hidrovia industrial internacional. Com drástica mudança do regime hídrico de
obras de engenharia para garantir nave- cada rio formador do Pantanal; seria
gação 24 h/dia, 12 meses ao ano, desde mudar o regime hídrico próprio do bio-
Cáceres (MT), rio Paraguai, até o rio ma. Também haveria alteração da va-
da Prata em Nueva Palmira (Uruguai) zão, do pulso de cheias e secas (pulso de
(Calheiros, 2014). inundação), impactando diretamente os

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ribeirinhos e pescadores que sobrevivem pantaneiras, demonstrando a importân-


da pesca no Pantanal. Isso porque, em cia da conservação do bioma de forma
qualquer barramento, grande ou pequeno, integral. Portanto, garantir um Pantanal
o peixe não consegue subir para desova inteiro, e não pela metade, se tornou uma
B e, abaixo, cada vez mais o assoreamento das principais reivindicações das comu-
alarga e tira a profundidade dos rios, não nidades tradicionais pantaneiras e de
permitindo a reprodução dos peixes e diversos movimentos sociais e ambientais,
inviabilizando a pesca artesanal. como o Fórum Mato-grossense de Meio
Ambiente e Desenvolvimento (Formad),
O Pantanal não tem limites a Rede de Povos Pantaneiros e o Comitê
Delimitar o Pantanal sempre foi uma Popular do Rio Paraguai (que desde 2000
das estratégias dos empresários, agrope- vem avançando em uma pauta propositiva
cuaristas e representantes do agronegócio de gestão do ecossistema Pantaneiro).
brasileiro para legitimar os processos de Visando a construção coletiva de
exploração e regulamentar o uso de áreas processos de resistência a agressões socio-
até então protegidas. ambientais sofridas no Pantanal, em 1996
De autoria de Blairo Maggi (PP-MT), foi criado o Fórum de Lutas das Entidades
o Projeto de Lei n. 750/2011 propõe a de Cáceres (Flec), com a participação de
criação da chamada “Lei do Pantanal” movimentos sociais, organizações não go-
(Brasil, 2011) para a instituição da Política vernamentais e comunidades tradicionais
de Gestão e Proteção do Bioma Pantanal pantaneiras dos municípios nas nascentes
e busca, em tese, criar mecanismos de do Rio Paraguai no Mato Grosso.
proteção ao meio ambiente e conservar Como resultado da atuação desses
a fauna e a flora do bioma. Entretanto, grupos sociais, foi instituído em 2001, pela
o PL não atende às reivindicações dos Assembleia Legislativa de Mato Grosso, o
povos pantaneiros, movimentos sociais e dia 14 de novembro como o dia do Rio Pa-
ambientais de que a lei proteja não apenas raguai. A data passou a ser comemorada
a planície, mas também as cabeceiras do pelo movimento social e ambiental com
Alto Rio Paraguai (planalto), onde estão a realização de um conjunto de ações:
as nascentes que formam o Pantanal. atos públicos, mutirões de limpezas das
Manoel de Barros, uma das grandes margens do Rio Paraguai, seminários,
referências da poesia nacional, era pan- audiências públicas e outras, que fazem
taneiro e desde 1980 já transcrevia em deste dia um marco da luta e resistência
versos e prosas a importância da conser- pela preservação e conservação do Panta-
vação do Pantanal e a impossibilidade nal e visibilidade dos seus povos.
de delimitação do bioma. “No Pantanal Nos últimos anos, tanto o Flec como
ninguém pode passar régua. Sobremuito o Comitê Popular do Rio Paraguai têm
quando chove. A régua é existidura de articulado organizações da sociedade civil
limite. E o Pantanal não tem limites” da Bolívia, do Paraguai e da Argentina,
(Barros, 2003). qualificando as articulações e denúncias
Um “Pantanal sem limites” é internacionais sobre os impactos viven-
uma contranarrativa que vem sendo ciados no Pantanal.
­c onstruída­ há cerca de duas décadas O bioma Pantanal não permite aná-
pelos povos e comunidades tradicionais lises isoladas, devido à complexidade das

198
B I O M A PA N TA N A L

relações ecológicas, sociais, culturais e conservação dos seus recursos naturais e


econômicas que o caracterizam. Os povos biodiversidade. Também são os interlocu-
pantaneiros compreendem-se como parte tores dos processos de denúncia e resistên-
dessa complexidade que forma o Pantanal cias às ações capitalistas predatórias que
e são fundamentais para a preservação e colocam em risco a existência do bioma. B

Referências
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Notas
1
Região biogeográfica de grande biodiversidade, que compreende a América Central, incluindo a parte
sul do México e da península da Baja Califórnia, o sul da Flórida, todas as ilhas do Caribe e a América
do Sul com ecossistemas tão diversos como a floresta amazônica, a floresta temperada valdiviana do
Chile, a floresta subpolar magalhânica da Patagônia, o cerrado, a mata atlântica, o pantanal, os pampas
e a caatinga.
2
Constitui uma vegetação pertencente ao bioma da Mata Atlântica, ocasionalmente também no Cer-
rado, sendo típica do Brasil Central e condicionada à dupla estacionalidade climática: uma estação
com chuvas intensas de verão, seguida por um período de estiagem.
3
Palavra de origem tupi-guarani, que significa trabalho em grupo, mutirão.

199
C
CAMPESINATO

A r ma ndo Bartr a Vergés

Quando chegou a modernidade, eles os camponeses têm uma flexibilidade e


já estavam aí. capacidade de adaptação ao entorno na-
Os camponeses constituem a an- tural e econômico que os torna diversos
cestral e duradoura sociabilidade agrária também na produção.
sobre a qual se formaram as mais diversas Com terras comunais, sob proprie-
civilizações e seus mais de 5 bilhões de dade, emprestadas, arrendadas ou em
integrantes conformam a classe mais parcerias, as unidades econômicas cam-
numerosa e globalizada da sociedade ponesas são, em sua maioria, familiares,
burguesa; um grupo humano diversifica- ainda que existam algumas em formas
do, mas presente em todo o mundo, cujas cooperadas; por seu tamanho, podem
organizações de massa, como a Via Cam- ser médias, pequenas ou muito peque-
pesina que tem 200 milhões de associados nas; por sua ocupação, há as agrícolas,
em 81 países, instigam o mais resiliente pecuárias, silvícolas, de pesca, coletoras,
dos movimentos sociais contemporâneos. agroindustriais, artesanais... Se bem
Como produtores, os pequenos e que, no geral, combinem várias destas
médios agricultores são responsáveis atividades, pelo destino de sua produção
pela produção de 70% dos alimentos algumas são mercantis, outras de auto-
do mundo através de uma complexa consumo, e quase sempre as duas coisas;
economia moral que, mesmo moneta- pela origem e destino do trabalho de que
rizada, se orienta pelos valores de uso. dispõem e do que empregam, sendo por
Uma economia tecnicamente eficiente, vocação produtores diretos e por con-
cujo manejo sustentável dos recursos ta própria, muitos também se ocupam
naturais originou o que hoje chamamos como diaristas, e, durante o período das
de agroecologia [ver Agroecologia]. colheitas, frequentemente contratam
Cultural e socialmente plurais, como mão de obra adicional ou trocam dias
variadas são suas histórias e geografias, de trabalho com familiares e vizinhos.
CA M P E S I N AT O

Perseguidos e saqueados por todos insustentável de produção e de consu-


os sistemas socioeconômicos hierárqui- mo, um sistema injusto de distribuição e
cos e classistas, as mulheres e os homens uma devastadora mudança climática; e
do campo têm conseguido perdurar porque, tanto em sua vertente indígena
graças à perpétua resistência, buscan- como em sua expressão mestiça, têm sido
do preservar, de forma organizada, ou destacados protagonistas do movimento
C construir a autogestão socioeconômica social latino-americano, assim como de
e, quando possível, as autonomias polí- várias das mudanças pós-neoliberais do
ticas de base territorial. Os camponeses Cone Sul do continente que se seguiram
são, por natureza, combativos e, por ao triunfo eleitoral de Hugo Chávez na
isso, são sobreviventes. Venezuela: revoluções de movimentos
Os camponeses são cultura, são sociais e, ao mesmo tempo, eleitorais,
classe, são movimento, são economia, com destacada presença de camponeses e
são resistência... Mas os camponeses são, indígenas, como as acontecidas no Brasil,
antes de tudo, um modo de vida; uma Bolívia e Equador.
fraterna forma de convivência em que
predominam as relações comunitárias. Um lugar no sistema
E, sendo a comunidade parte A contribuição dos pequenos agri-
consti­t utiva da condição camponesa, cultores para a alimentação é inquestio-
são igualmente camponeses aqueles nável, mas cabe perguntar por que, de-
que fazem parte dela e com ela se iden- pois de dois séculos e meio de uma ordem
tificam, ainda que não desempenhem capitalista industrial em que a produção
trabalhos agrícolas. tende a concentrar-se e centralizar-se,
Os camponeses não são indivíduos subsistem e ainda se expandem no mun-
ou famílias, mas socialidades comple- do rural as pequenas e médias economias
xas, e é por isso que quando se mobi- familiares; por que, em uma ordem em
lizam, em geral, o fazem em conjunto; que dominam a especialização e a pa-
se colocam em marcha como povos: dronização tecnológica, sobrevivem a
diferentes em sua composição, mas policultura e a diversidade de práticas
unidos em seus objetivos. produtivas camponesas; por que, em
E os camponeses são, também, apos- uma ordem sabidamente proletarizante,
ta de futuro, projeto, sonho, utopia... pesa tanto na agricultura o trabalho por
conta própria.
Cultivar e combater A explicação deve ser procurada no
As mulheres e homens da terra foram substrato material da agricultura, uma
os principais animadores de todas as natureza vertiginosamente diferente que
revoluções e movimentos de libertação apenas pode ser uniformizada até certo
nacional do século passado: México, ponto mediante intervenções tecnológi-
Rússia, China, Índia... E, durante o século cas, pois os fatores climáticos e os ciclos
XXI, ganharam novamente visibilidade, biológicos podem ser alterados e até
principalmente por dois motivos: porque certo ponto acelerados, mas em essência
suas importantes colheitas, que ainda são incompatíveis com a continuidade
poderiam aumentar, são a alternativa para e a crescente intensificação própria dos
a crise alimentar causada por um modo processos fabris.

202
CA M P E S I N AT O

E se a natureza é diversificada e sim, graças à concorrência de um setor


lenta, plurais e pacientes – como os sub-remunerado, os preços dos produtos
camponeses – terão de ser as formas do campo podem diminuir sem que por
de aproveitá-la. Em contrapartida, as este motivo sejam afetados os capitalis-
tentativas capitalistas de industrializar tas agrários que, ao usufruir dos nichos
por completo a agricultura enfrentam agroeco­lógicos mais propícios, têm cus-
severas dificuldades, além de ser intrin- tos menores e margens maiores. C
secamente destrutivas. O cafeicultor rico que cultiva o grão
Há boas razões ecológicas por trás aromático nas boas terras de sua pro-
da presença camponesa no capitalismo priedade e arrenda as de pior qualidade
tardio, mas também há motivações eco- para que nelas trabalhem os cafeicul-
nômicas que explicam sua reprodução, tores pobres, os quais além de fazerem
pois em uma ordem na qual os preços a colheita deverão assumir os riscos e
de cada classe de produtos podem ser esforços que lhes impõe sua desvantagem
unificados devido às condições unifor- produtiva para, ao final, venderem a esse
mes em que são fabricados, chama a mesmo cafeicultor rico um grão que ele
atenção uma atividade como a agrícola, beneficiará e comercializará junto ao
cujos rendimentos são inevitavelmente seu, constitui um modelo generalizável
desiguais no espaço e no tempo. e que ilustra bem a astuta estratégia que
E caso fosse capitalista a totalidade permite ao capitalismo tirar vantagem da
dos produtores rurais, o preço das co- precariedade camponesa e, ao mesmo
lheitas teria que ser remunerativo para tempo, da diversidade agroecológica.
todos e, portanto, tenderia a fixar-se E esclarece também o mistério da
com base nos que, pelos imutáveis fa- espoliação das energias do trabalho não
tores agroecológicos e de localização, pago de um camponês que, ao contrário
têm maiores custos. Preço máximo, do operário que se coloca sob o jugo da
e não médio, que daria ao resto dos exploração antes do processo produtivo,
agroempresários um sobrelucro colossal; quando vende sua força de trabalho, se
um lucro extra que chamamos de renda coloca sob o jugo da exploração depois
diferencial e que é pago pela sociedade do processo produtivo quando vende em
como consumidora, mas também incide desvantagem não sua força de trabalho,
sobre os capitalistas não agrários, pois mas o produto do seu trabalho.
se expressa nos salários que pagam e nas E, às vezes, o camponês vende am-
matérias-primas que compram. bas as coisas, embora em diferentes tem-
Em contrapartida, ter camponeses poradas, pois muitos pequenos produto-
trabalhando nas piores terras, nos lugares res trabalham também como diaristas
mais remotos e inóspitos e nos climas em tempo parcial; trabalhadores braçais
mais severos reduz a renda diferencial, que podem ser empregados de maneira
pois uma vez que trabalham para subsis- descontínua e sub-remunerados, porque,
tir e têm poucas opções, os agricultores em geral, dispõem de uma retaguarda
familiares continuarão produzindo e camponesa que os sustentou até que
vendendo ainda que os preços não sejam alcançassem a idade produtiva, que
vantajosos, e mesmo que durante algum continua a fornecer-lhes uma parte do
tempo não cubram todos os custos. As- sustento e que – essa é sua esperança – os

203
CA M P E S I N AT O

acolherá quando o peso dos anos já não quais sempre compram caro e sempre
lhes permita trabalhar. vendem barato.
No entanto, acabam sendo explo- Mas a sua inserção econômica é
rados com o sacrifício ocorrendo antes instável tanto quanto a oferta e procura
ou depois do processo produtivo; tanto por suas colheitas. E quando caem os
os operários como os camponeses termi- preços, os camponeses podem passar da
C nam cedendo sua mais-valia ao capital. exploração à exclusão, arrastados por um
Por isso, o capital, que assedia e destrói mercado não apenas turbulento, mas,
os pequenos agricultores, também os também, monopolista, especulativo e
preserva e, às vezes, os recria. dominado pelas transnacionais. Isto
afeta todos os pequenos produtores, mas
Classe, etnia, gênero especialmente os que foram induzidos ao
A energia social de que dão mos- monocultivo, abandonando as seculares
tras, no terceiro milênio, os movimentos e mais seguras estratégias de autossusten-
camponeses e indígenas, principal- to e diversificação.
mente na América Latina, se insere A estes males se somam a repressão
na grande onda antineoliberal desen- por razões sociais ou políticas, a violên-
cadeada no final do século XX, da que cia criminosa e as catástrofes naturais,
também fazem parte os trabalhadores provocando verdadeiras debandadas
assalariados, as classes médias e parte migratórias; êxodos em que sempre estão
da burguesia. presentes camponeses.
Cada um desses setores tem motivos Mas o capital que explora seu traba-
específicos para se rebelar. Assim como lho por meio dos salários ou por meio dos
também os têm aqueles que tenho cha- preços também lhes despoja, às vezes, de
mado de campesíndios, porque fundem as seus meios de vida: terras, águas, bos-
duas condições: a colonial e a classista, ques, biodiversidade, saberes e cultura...
motivos que, sendo de época e às vezes Patrimônios coletivos que os empresários
conjunturais, remetem, sem dúvida, ao e as corporações cobiçam hoje mais do
seu lugar estrutural no sistema. Uma que nunca, pois a grande crise civili-
ordem classista, racista e patriarcal que zatória que nos aflige se manifesta na
se mostra implacável com seus filhos escassez dos recursos necessários à repro-
operários, com seus afilhados campone- dução de seus capitais: terra fértil, água
ses e com as mulheres, tanto do campo doce, minerais, energias, espaços geoes-
como da cidade. tratégicos; mas, também, bons climas,
paisagens atrativas, saberes tradicionais
Explorados e despojados potencialmente lucrativos, cultura an-
Em sua condição de trabalhadores, cestral suscetível de comercialização...
os pequenos e médios produtores do Bens naturais e sociais cujo valor eco-
campo são expropriados de seu exceden- nômico é diretamente proporcional à
te mediante mecanismos de intercâmbio sua raridade e cuja apropriação privada
desigual que operam tanto no mercado alcança enormes rendas.
de trabalho como no de produtos, no de É por tais motivos que os povos
dinheiro e, às vezes, no de terras; acordos e, sobretudo, as comunidades agrárias
comerciais assimétricos e lesivos nos sofrem o assédio dos megaprojetos pre-

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CA M P E S I N AT O

dadores. De modo que, se no século de uma justificativa, um pretexto, en-


passado a principal luta camponesa era contrado na raça.
pela terra e por reformas agrárias que a “É preciso bater neles, porque de
restituíssem a quem nela trabalha, hoje outro jeito não trabalham”, dizia um
a luta é também pela defesa da terra que fazendeiro de Yucatán (estado do Méxi-
habitam, às vezes, ancestralmente; hoje, co) no início do século XX. É o mesmo
a luta é em defesa dos territórios. que afirmar que as “pessoas de cor”, C
tanto assalariadas como camponesas,
Etnicamente oprimidos têm que sofrer violência porque, caso
Os camponeses de continentes co- contrário, são negligentes, preguiçosas e
lonizados, como Ásia, África e América, indolentes no trabalho; porque carecem
somam à carga da exploração de classe de vontade empreendedora, da ambição
o lastro da opressão de “raça”; um con- e do afã de progresso que resultam pró-
ceito sem base científica, inventado por prios do “branco”. E essa fraqueza teria
colonizadores para justificar a domina- origem racial.
ção dos “brancos” sobre os “negros”, os A racialização das relações produ-
“vermelhos” e os “amarelos”. tivas no continente americano persiste
Nos países centrais e industriali- até os nossos dias, e os trabalhadores
zados, a exploração do trabalho assala- provenientes dos povos originários ou
riado não necessitava estabelecer outra afrodescendentes, sejam camponeses ou
diferença além da econômica entre assalariados, continuam sofrendo discri-
burguês e operário, mas nos âmbitos minação e desvalorização. Maus-tratos
periféricos e agrários, nos quais preva- por razões raciais, de vestimenta ou apa-
leciam comunidades autossuficientes rência que sofrem nos próprios países de
e dispersas, a disponibilidade de mão origem, onde se mantém o colonialismo
de obra para as fazendas de produção interno ou, mais ainda, quando migram
agrícola e pecuária, e para a mineração, para as metrópoles do norte.
requeria trabalho forçado. De uma forma ou de outra, os cam-
Trabalho compulsório que na Amé- poneses latino-americanos como um
rica colonial ganhou a forma de enco- todo sofrem as sequelas da opressão colo-
miendas, repartimientos, congregaciones nial e, mesmo que muitos sejam mestiços,
e outras modalidades de confinamento no final das contas são tratados como
populacional, que com o passar do tem- campesíndios... E como campesíndios têm
po e depois da Independência mudaram que lutar, pois separar as duas condições
para sistemas de trabalho coercitivos os enfraquece.
como a escravidão aberta ou a servidão
por dívidas. Camponeses e mulheres
Isso porque, se o trabalhador não O gênero não é natural, é uma cons-
ia por si mesmo oferecer sua mais-va- trução, e ao feminino se lhe atribuiu
lia, era preciso obrigá-lo e pela força historicamente a preservação do fogo,
mantê-lo em seu lugar. E esta violência do focare, do lar. Enclausuramento do-
extraeconômica que o capitalismo havia méstico que sob o capitalismo se acirra,
extinguido nas metrópoles, mas que era pois mesmo que algumas trabalhem com
indispensável nas colônias, necessitava salário, em seu conjunto as mulheres

205
CA M P E S I N AT O

são trabalhadoras não pagas responsá- doméstica, são tachadas de desleixadas,


veis pela alimentação, saúde, educação, ineficientes, não competitivas, pré-mo-
vestimenta, limpeza e, em geral, pelas dernas... Embora nos alimente e contri-
atividades chamadas “reprodutivas”, bua com boa parte de matérias-primas
para diferenciá-las das “produtivas” que utilizadas pela indústria, o trabalho das
supostamente geram lucrativas merca- famílias camponesas é subestimado e
C dorias e não simples cuidados. invisibilizado... assim como se subestima
A nítida separação capitalista entre e invisibiliza o trabalho rotineiro das
“produtivo” e “reprodutivo” se estende mulheres que faz girar o tear do mundo.
também aos camponeses, cujos trabalhos Polifônica, diversificada, orientada
comumente são distinguidos entre de ao bem-estar e dirigida por uma ética do
autoconsumo e comerciais, sendo os pri- cuidado, a complexa e ritmada vida eco-
meiros voltados para dentro e de respon- nômica camponesa é mais semelhante
sabilidade das mulheres, e os segundos, ao entrevero de inumeráveis afazeres
voltados para fora e coisa de homens. próprios dos lares que ao forçado e
Porém, na economia doméstica monótono desempenho das fábricas e
camponesa, a cisão existente entre pro- dos agronegócios.
dução e consumo, assim como a divisão Nas comunidades rurais há polariza-
de trabalho por gêneros, é menos explíci- ção classista, sexismo, conflitos religio-
ta que no mundo urbano industrial, pois sos, confrontações políticas, violência...
na atividade agrícola todos os membros Mesmo assim, mais do que se assemelhar
da família trabalham e as mulheres par- à desanimada, invariável, gananciosa e
ticipam das atividades chamadas “produ- fria ordem capitalista, o espaço campo-
tivas”, não apenas nos quintais ou hortas nês se conforma como o cálido, cativante
domésticas, mas também nos lotes, nas e barulhento mundo das mulheres, dos
pastagens, nas plantações... velhos e das crianças... Um mundo po-
Na realidade, e vista como uma voado por deuses, que incluem os vivos
totalidade, a economia camponesa é mas também os mortos, e compartilhado
mais “reprodutiva” que “produtiva”, no por pessoas, galinhas e porcos, pastos e
sentido capitalista do termo, pois seu hortas, montanhas e rios...
propósito é o bem-estar e não a acumu- Em uma ordem sem alma, que mar-
lação. Com característica mais familiar ginaliza e desqualifica tudo aquilo que
do que empresarial e movida por uma não resulta lucrativo, que fratura o entor-
ética do cuidado e não pela ganância no natural-social e que produz morte, os
de lucro; aos olhos do sistema, a ati- camponeses, gestores e preservadores da
vidade econômica camponesa é uma vida, são as outras mulheres do mundo.
anomalia. Mesmo quando está inserida Primazia rural de uma postura as-
no mercado, e, portanto, passível de ser sociada com o feminino, que se torna
valorizável, aparece como um desvio, mais evidente nos momentos críticos em
uma perversão... que os desastres climáticos ou mercantis
Orientadas para a reprodução da arruínam a produção comercial empur-
vida e não para a produção voltada para rando os homens para a diáspora. Então,
o lucro, a milpa, a chacra, o conuco e, em quando eles se desesperam, sucumbindo
geral todas as modalidades da agricultura à impotência, ou vão para longe à pro-

206
CA M P E S I N AT O

cura de emprego, as boas mulheres da Os camponeses não são simplesmen-


terra, que mantêm, faça chuva ou faça te indivíduos, não são apenas famílias,
sol, uma produção de autoconsumo que são, acima de tudo, comunidades. Co-
é ao mesmo tempo satisfação e rede de letividades territoriais e coesas que, de
proteção, mostram-se como sempre têm modo geral, contemplam bens comuns,
sido e seguem sendo: as que dão luz e produção familiar, sociabilidade solidá-
amortalham, as preservadoras do fogo ria, algum tipo de governo tradicional C
e a memória, as cuidadoras do lar, o e um poderoso mundo simbólico... di-
rosto verdadeiro da agricultura, a raiz mensões estreitamente articuladas que
profunda da vida camponesa. se sustentam em sistemas mais ou menos
híbridos de usos e costumes.
Comunidade obstinada Preservar comunidades das quais
Individualista e competitivo, o capi- depende sua existência material e es-
talismo corrói a vida coletiva. Talvez por piritual é a principal tarefa dos campo-
esse motivo, seu questionamento está as- neses. E quando as lutas das mulheres
sociado com a reivindicação da comuni- e dos homens da terra triunfam, o que
dade em suas diferentes formas. Esta é a se revigora, em primeiro lugar, são as
comunidade ancestral, meio descoberta próprias comunidades. Porque a boa
e meio inventada pelo etno-historiador vida em comunidade é a mais profunda
Lewis Morgan; a comunidade ideal, e compartilhada das utopias rurais.
que alguns (socialistas) utópicos como Dizem que os trabalhadores lutam
Robert Owen e Charles Fourier quiseram e são revolucionários porque não têm
construir à margem (do sistema); a livre nada a perder além de suas correntes.
e igualitária comunidade com a qual Os camponeses, em contrapartida, lutam
sonham os marxistas... Mas, tirando as e são revolucionários porque têm algo
comunidades do passado, as marginais e a perder; porque não querem ser des-
as do futuro, irrompe em plena moderni- possuídos do que ainda lhes resta, suas
dade a comunidade realmente existente; comunidades: os pequenos e afe­tuosos
a perseguida, ferida e saqueada e, às ve- mundos que souberam preservar do
zes, degradada, porém sempre resistente, capitalismo e que quiseram disseminar
comunidade camponesa. para o mundo inteiro.

Para saber mais


BARTRA, A. El capital en su labirinto: de la renta de la tierra a la renta de la vida. Ciudad de México:
Unam, 2006.
______. Os novos camponeses: leituras a partir do México profundo. São Paulo: Cultura Acadêmica;
Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Rural, 2011.

207
CA P I TA L I S M O V E R D E

CAPITALISMO VERDE

C amila M or eno
L ar issa A mbrosa no Packer
C
O termo capitalismo verde é uma mento econômico com desenvolvimento
crítica cunhada por movimentos so- social e proteção ambiental e climática,
ciais e parte da sociedade civil global a fim de implementar o já conhecido
à proposta de países da Europa, dos princípio do desenvolvimento sustentável.
Estados Unidos e de empresas transna- A proposta, conhecida como o New
cionais em torno da chamada ‘econo- Deal verde global é concebida essen-
mia verde’. Ao nomear esta dita ‘nova cialmente por economistas de tradição
economia’ como mais uma etapa do neokeynesiana,1 ao propor a intervenção
processo de acumulação capitalista, o do Estado e mecanismos de regulação
termo capitalismo verde evidencia as para se criar novos mercados verdes. Em
tentativas de mercantilização e finan- linhas gerais, a economia verde apre-
ceirização da natureza e da vida como sentada pela ONU centra-se na antiga
falsa solução para as crises ambiental fórmula economicista diante do proble-
e climática. O conceito se popularizou ma da escassez de recursos e excesso de
no processo de construção da Cúpula resíduos produzidos pelo modo de pro-
dos Povos, paralela à Conferência das dução e consumo: inovação tecnológica,
Nações Unidas sobre Desenvolvimento valorização econômica de bens até então
Sustentável, a Rio+20, realizada de 13 a fora das relações de mercado, aplicação
22 de junho de 2012, na cidade do Rio de direitos de propriedade sobre bens
de Janeiro, quando foi utilizado como comuns [ver Bens Comuns] e criação de
grande símbolo político para rechaçar novos mercados.
os novos ativos e mercados verdes que Partindo-se do pressuposto de que
estavam no centro da proposta durante é possível se manter um crescimento
a Conferência. econômico por meio dos atuais padrões
de produção e consumo, a chamada
Para uma crítica à Economia Verde economia verde propõe:
Embora o termo ‘economia verde’ 1) inovação tecnológica, de forma
apareça na literatura, especialmente na a dissociar o crescimento eco-
economia ecológica, desde meados dos nômico do consumo de energia
anos 1970, a atual proposta em torno do e materiais e da produção ex-
termo foi trazida a partir de 2009 pelo cedente de resíduos, por meio
Programa das Nações Unidades para o de uma nova geração de tec-
Meio Ambiente (Penuma), e populariza- nologias transgênicas (como de
da com a realização da Rio+20, em 2012. resistência ao stress hídrico) e
Para seus proponentes, trata-se de uma de novas tecnologias [ver Novas
nova economia capaz de manter o cresci- Biotecnologias];

208
CA P I TA L I S M O V E R D E

2) regulação de direitos de proprie- França, Alemanha, Itália, Japão, Rússia,


dade intelectual sobre os pro- Reino Unido e Estados Unidos –, mais
cessos e produtos gerados com os líderes das cinco principais economias
a aplicação industrial das novas emergentes – África do Sul, Brasil, Chi-
tecnologias desenvolvidas, prin- na, Índia e México), denominado Teeb
cipalmente em favor das corpo- (expressão em inglês, The economic of
rações da biotecnologia;2 ecossistms and biodiversity – A economia C
3) valorização econômica dos bens dos ecossistemas e da biodiversidade),
comuns e inserção em novos a fim de quantificar monetariamente
mercados verdes, como o mer­ o valor atual ou potencial dos ‘serviços
cado de carbono e de biodiver- dos ecossistemas’ e visibilizar os custos
sidade. Essa terceira proposta econômicos de longo prazo, permitindo a
parte de um antigo diagnóstico comparação entre o custo a se pagar para
da economia tradicional de que manter a conservação ambiental e o cus-
a escassez dos recursos ambien- to de se manter o crescimento e realizar
tais decorre de uma falha de mer- o dano, chamado custo de oportunidade.
cado dos bens comuns devido à
falta de disposição dos usuários Nova etapa de apropriação e
em pagar para a conservação expropriação
de um bem que não pertence A regulamentação da propriedade
a ninguém. Essa falha de mer- privada como direito de excluir todos os
cado, segundo essa corrente, outros – não proprietários – do acesso
deve ser superada com a valori- sobre as coisas do mundo que ganham
zação monetária e aplicação de valor econômico, por serem meios de
direi­tos inerentes à propriedade produção, é parte da construção de
sobre bens até então comuns, qualquer mercado no modo de produção
de modo a permitir que um só capitalista. O direito de apropriação
sujeito de direito se aproprie e sobre a força do trabalho humana se
disponha de um bem ambiental, deu sob a forma da escravidão, formas
permitindo sua introdução nas de servidão 4 e,atualmente, também
dinâmicas comerciais, como por meio do salário, como forma de
qualquer outra mercadoria. extração da mais-valia sobre o valor
Deste modo, a economia verde bus- do trabalho social. No Brasil, o solo,
ca valorar o meio ambiente com base na como meio de produção da vida, se
valorização monetária, de modo a cha- torna propriedade em 1850, com a Lei
mar a atenção dos tomadores de decisão de Terras, cujo acesso passa a se dar
sobre o alto custo econômico produzido mediante compra do título de domínio
pelas externalidades ambientais negati- e registro da matrícula.
vas das cadeias de produção global.3 Para A propriedade sobre as sementes é
tanto, desenvolve metodologias matemá- instituída internacionalmente em 1968,
ticas e modelagens, como o estudo en- com os direitos de proteção a cultivar
comendado em 2007 pelo G8+5 (Grupo autorizados pela União para Proteção das
dos Oito + Cinco, que reunia os chefes Obtenções Vegetais (Upov), mediante a
de governo dos países do G8 – Canadá, outorga de um título especial de proteção

209
CA P I TA L I S M O V E R D E

ou de uma patente (art. 2.1). Já a proprie- a água limpa, a floresta nativa (Cota de
dade sobre construções genéticas de seres Reserva Ambiental – CRA), a poliniza-
vivos, com os direitos de patentes sobre ção de insetos, dentre outros.
os produtos e processos da biotecnologia, Tais funções ecossistêmicas ou qua-
passa a ser permitida com a criação da Or- lidades ambientais transformadas em
ganização Mundial de Comércio (OMC) mercadoria passam a ser renomeadas
C e a aprovação do Acordo sobre Aspectos como ‘serviços ambientais’. O chamado
dos Direitos de Propriedade Intelectual pagamento por serviços ambientais (PES
Relacionados ao Comércio (Trips), em – payment for enviromental services,5 na
1994, de assinatura compulsória a todos sigla em inglês), torna possível a subor-
os países-membro da OMC. dinação dos bens comuns ambientais
A solução econômica apresentada – indivisíveis, inapropriáveis e indispo-
para a escassez – inovação tecnológica, níveis – à apropriação de apenas um só
imputação de valor econômico sobre titular, chamado de fornecedor-recebedor,
bens comuns e aplicação de direitos de novo sujeito de direito capaz de alienar
propriedade – mostra-se, entretanto, e fazer circular tais funções ambientais
sua própria causa. A propriedade gera, como qualquer outra mercadoria, a quem
necessariamente, escassez para os não tenha disponibilidade de comprar, o
proprietários. A aplicação do direito denominado ‘usuário-pagador’. Como a
de propriedade sobre as sementes pelas integridade ambiental é um bem intangí-
corporações excluiu todos os outros do vel, insuscetível de apropriação física, são
acesso aos meios de produção da agri- emitidos títulos representativos de bens
cultura e dos alimentos, transformando ambientais que passam a incorporar um
agricultores, melhoradores históricos da valor econômico autônomo (1 tonelada
agrobiodiversidade, em consumidores. de CO2 eq.ev ou 1 hectare de vegetação
Passados cerca de 60 anos da dita Revo- nativa), para que então possam circular
lução Verde [ver Revolução Verde] e 20 no mercado como ‘ativos ambientais’.
anos da introdução das ‘biotecnologias’, A introdução destes chamados ‘ser-
a Organização das Nações Unidas para viços ambientais’ em mercados se deu, no
a Alimentação e a Agricultura – FAO âmbito internacional, com a aprovação
(2017) continua a anunciar: a fome no em 2005 do Protocolo de Kyoto na Con-
mundo voltou a crescer e afetou 815 venção-Quadro da ONU sobre Mudanças
milhões de pessoas em 2016, o que repre- Climáticas. O Protocolo, embora tenha
senta 11% da população mundial. fixado meta global obrigatória de redu-
Assim como a terra e as sementes, ção das emissões de GEE (gases efeito
transformadas em objetos apropriáveis estufa) para os países industrializados, ao
e, portanto, mercadoria, a proposta em mesmo tempo, autorizou o cumprimento
torno deste ‘capitalismo verde’ traz, com de parte desta meta de redução por meio
novas roupagens, a extensão dos direitos da compra de permissões ou créditos de
de apropriação de funções ecossistêmicas carbono equivalente evitado (CO2 eq.ev.)6
que até então não assumiam um valor daqueles que reduziram suas emissões
econômico autônomo, como o ar puro além de sua meta, ou dos países que não
(sequestro e estoque de gases efeitos es- possuíam metas obrigatórias, como os
tufa mensurados em toneladas de CO2), países megadiversos do Sul Global.

210
CA P I TA L I S M O V E R D E

Nos termos de Kyoto, o capitalismo custo de impor limites à atividade pro-


verde propõe uma gestão ambiental a dutiva (custo de oportunidade compen-
partir da estruturação de mercados de sa). Assim, realizar o dano ambiental e
direitos ambientais transacionáveis, compensá-lo através da compra de ativos
induzidos e regulamentados por acordos ambientais é mais econômico do que
internacionais e leis nacionais. Estes cessar ou limitar a atividade produtiva.
mercados possuem natureza cap and Nestes termos, os mercados de ‘serviços C
trade (limites e comércio), em que, si- ambientais’ só se mantêm se o lastro
multaneamente, fixam metas máximas dos ativos ou títulos de compensação
de emissões de GEE (gases efeito estufa), ambientais estiverem em áreas de baixo
como o atual Acordo de Paris, ou limi- valor da terra, de modo a formar um pre-
tes mínimos de preservação ambiental, ço menor do que o custo necessário para
como as Metas de Aichi na Convenção manter a vegetação em pé no local. Nesta
sobre Diversidade Biológica (CDB) ou a etapa inicial de formação dos mercados
própria Reserva Legal, para se gerar uma verdes, o estoque de serviços ambientais
demanda por serviços ambientais (cap), de maior procura é formado por áreas
ao mesmo tempo que se autoriza o seu que possam emitir CRAs e créditos de
cumprimento por meio de mecanismos carbono mais baratos, como em territó-
de mercado, por meio da aquisição de rios indígenas, unidades de conservação
‘ativos ambientais’ que gerem direitos e assentamentos de reforma agrária, que
de compensação no mercado de carbo- estejam fora da pressão especulativa do
no (créditos de carbono representativos avanço da indústria extrativista. Tais
de GEE evitados) e de biodiversidade áreas fornecedoras de serviços ambientais
(cotas representativas de outros serviços passam a assumir a responsabilidade am-
ambientais). No Brasil, o tratamento biental, civil e penal em nome do usuário
da integridade ambiental como ‘servi- comprador desses serviços.
ços ambientais’ passíveis de formar um Esta é a lógica por trás da já men-
mercado de direitos ambientais transa- cionada Cota de Reserva Ambiental, a
cionáveis foi autorizado pelo Código Flo- CRA, título que confere direitos ineren-
restal [ver Código Florestal], por meio da tes ao de propriedade sobre um hectare
previsão do mecanismo econômico dos de floresta nativa em qualquer estágio
‘pagamentos por serviços ambientais’, de regeneração sobre o excedente de
art. 41, I e §§4 e 5 da Lei n. 12.451/12, reserva legal de um imóvel rural ou ainda
da Cota de Reserva Ambiental (CRA), sobre a reserva legal de imóveis de até
art. 44 a 50, e da conceitualização dos quatro módulos rurais ou terras indíge-
‘créditos de carbono’, art. 3, inciso XX- nas e de comunidades tradicionais. A
VII (Brasil, 2012). CRA é necessariamente negociada em
Por meio dessa fórmula, os principais bolsas de valores e balcão organizado,
poluidores e degradadores ambientais para compensar a reserva legal de outro
podem manter suas taxas de crescimento imóvel que tenha desmatado, desde que
e transferir sua responsabilidade para os estejam no mesmo bioma (e não mais na
territórios biodiversos, onde o custo dos mesma microbacia), e que guarde identi-
ativos ambientais representativos dos dade ecológica. Entretanto, a cota pode
‘serviços ambientais’ é menor do que o ser adquirida como “ativo ambiental”

211
CA P I TA L I S M O V E R D E

por atores do mercado financeiro que em risco pudessem aterrissar gerou um


queiram aterrissar capital sobre áreas capitalismo verde que autoriza, a um
fornecedoras de serviços ambientais, só tempo, o crescimento da economia
especulando com o valor da terra e dos marrom e a continuidade da economia
serviços. O fornecedor da cota recebe financeirizada, ao encontrar novos las-
um pagamento por serviço ambiental por tros verdes, ainda não penetrados pelas
C manter a reserva legal, art. 41, I, alínea relações capitalistas.
“g” (Brasil, 2012) e assumir a responsabi- Esta engenharia econômica e legal
lidade ambiental para o usuário-pagador, gera a transição dos bens ambientais de
cujo custo de oportunidade para legalizar um regime de natureza constitucional
sua propriedade é menor por meio da público como direito humano e bem
aquisição do direito de desmatar, frente comum dos povos, art. 225 da Consti-
ao custo de perder a área cultivada com tuição Federal (Brasil, 1988) – portanto
o reflorestamento ou regeneração. É por bens fora do comércio – para um regime
esta razão que muitos especialistas criti- privado, em que se permite sua apropria-
cam a CRA, por configurar instrumento ção e transação negocial, possibilitando
indutor de desmatamento ao generalizar uma nova acumulação das relações ca-
o mecanismo de compensação. pitalistas em despossessão das presentes
A possibilidade de emitir títulos re- e futuras gerações. Apesar das Ações
presentativos de bens ambientais, como declaratórias de inconstitucionalidade
o ar puro ou redução de emissões de GEE contra diversos dispositivos do código
(créditos de carbono) ou o hectare de florestal (ADI 4901; 4902; 4903; 4937),
floresta nativa (CRA), coloca a preser- o STF declarou, em grave retrocesso
vação ambiental sob as leis da oferta e da socioambiental, os artigos referentes a
procura. Quanto maior a taxa de emissões este capitalismo verde constitucionais.
de GEE ou de desmatamento, menor a Da forma como proposta, pelos
quantidade do bem ambiental que o título mesmos atores corporativos e visando
representa, ou seja, menor a quantidade a manutenção do modo de produção e
de ar puro e de florestas, portanto, maior o consumo, o capitalismo verde funciona
valor do título verde. Quanto mais avança como fórmula para se manter a subor-
a ‘economia marrom’ com a queima de dinação tecnológica entre o Norte e Sul
combustíveis fósseis e maior a expansão Global, assim como possibilitar a entrada
da fronteira agrícola, menor a oferta de dos territórios biodiversos dos povos do
‘serviços ambientais’, portanto, maior o campo e das florestas como lastro do ca-
valor dos ‘ativos verdes’, e maior o lucro pital financeiro internacional, permitindo
do capitalismo verde. uma nova bolha verde especulativa. Estes
É o chamado ganha-ganha (win-win, territórios passariam a ‘prestar serviços
em inglês); a fórmula é estritamente eco- ambientais’ a um baixíssimo valor, em
nômica, e nada tem a ver com proteção expropriação da soberania, agricultura e
ambiental. Diante da crise financeira, dos modos de vida destes povos.
principalmente com os títulos podres Atenta ao efeito perverso de inclu-
das hipotecas nos Estados Unidos em são das florestas nativas no mercado
2008 (subprimes), a busca por lastro real financeiro para compensar as emissões
para que os trilhões de dólares virtuais dos países do Norte Global, historica-

212
CA P I TA L I S M O V E R D E

mente poluidores, a comunidade inter- mercados e direitos de compensação das


nacional, com forte pressão do Brasil, metas voluntárias assumidas.
acabou por vetar a possibilidade de Diante da escassez ou superconcen-
compensação dos créditos de carbo- tração dos recursos naturais, a única al-
no f lorestais (REDD+)7 no Acordo ternativa econômica e ecológica possível
de Paris, no âmbito da Convenção do é a imposição de limites ao crescimento
Clima. Deste modo, os recursos finan- econômico e uma progressiva alteração C
ceiros recebidos por um país para apoiar do modo de produção e consumo, de
ações de redução do desmatamento modo a recolocar no centro das decisões
e da degradação florestal não podem políticas a dignidade da vida, mantendo
gerar direitos de compensação e títulos o existencial fora das formas da proprie-
de crédito de carbono negociáveis em dade privada e do comércio.

Referências
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 12.651, de 25
de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção de vegetação nativa, altera as Leis n. 6.938, de 31 de agosto de
1981, e 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis n. 4.771,
de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória n. 2.166-67, de 24 de
agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12651.htm#:~:text=Esta%20Lei%20estabelece%20normas%20gerais,n%C2%BA%20
571%2C%20de%202012. Acesso em: 22 mar. 2021.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Art. 255. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E A AGRICULTURA (FAO).
Relatório Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo. 2017. Disponível em: http://www.fao.
org/state-of-food-security-nutrition/es/
SANTOS, M.; GLASS, V. (org.) Atlas do agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam
o que comemos. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2018.

Para saber mais


BENSAÏD, D. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo: Boitempo,
2017.
CASALINO, V. O direito e a mercadoria: para uma crítica marxista da teoria de Pachukanis. São Paulo:
Dobra Editorial, 2011.
FATHEUER, T.; FUHR, L.; UNMÜBIG, B. Crítica à economia verde. Rio de Janeiro: Fundação Hein-
rich Böll, 2016.
MORENO, C.; CHASSÉ, D. S.; FUHR, L. A métrica do carbono: Abstrações globais e epistemicídio
ecológico. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2016.
PACKER, L. A. Pagamentos por serviços ambientais e flexibilização do Código Florestal para um capi-
talismo verde. Curitiba. Terra de Direitos. 19 ago. de 2011, 21 p. Disponível em: https://terradedireitos.
org.br/uploads/arquivos/Analise-PSA-CODIGO-Florestal-e-TEEB-_Terra-de-direitos.pdf. Acesso em:
22 mar. 2021.

Notas
1
São chamadas de keynesianas o conjunto de teorias e medidas propostas pelo economista britânico John
Maynard Keynes (1883-1946) e seus seguidores, que defendiam a necessidade de uma forte intervenção
econômica do Estado na economia, com o objetivo principal manter o livre-mercado capitalista, de um
lado, e a garantia do pleno emprego, de outro. De modo geral, medidas de intervenção econômica do
Estado diante de crises são usualmente utilizadas, como diante da crise de 1929 e mesmo a crise das
hipotecas de 2008 nos EUA, em que o governo Obama salvou o setor bancário e financeiro.
2
ChemChina-Syngenta, Bayer-Monsanto e Dow-Dupont dominam mais de 60% do mercado de
sementes e agrotóxicos, tendo a Bayer-Monsanto sozinha um terço do mercado de sementes e um
quarto do de agrotóxicos (Santos; Glass [org.], 2018, p. 20).

213
CICLAGEM DE NUTRIENTES

3
Externalidades ambientais são os efeitos não previstos da produção de bens e serviços sobre a socie-
dade, que podem ser positivos ou negativos. As externalidades de uma determinada atividade estão
na diferença entre o custo-benefício privado e o custo-benefício social gerado, ou seja, determinada
atividade produtiva pode gerar poluição e desmatamento – externalidade negativa –, ao passo que
também pode gerar empregabilidade na região – externalidade positiva. A proposta da chamada
‘economia verde’ seria introduzir as externalidades ambientais – positivas e negativas – no custo
das cadeias de produção de valor.
4
A servidão é caracterizada pela Convenção suplementar sobre a abolição da escravidão do Tráfico de
C Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, adotada em Genebra, a 7 de setembro de
1956, como o estado ou condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um
acordo, a viver e trabalhar em uma terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa,
contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição, seja
por dívida contraída ou por sua condição de mulher, criança, ou em razão de etnia e raça (art. 1). Já
a escravidão é o estado ou a condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou parte dos
poderes atribuídos ao direito de propriedade (art. 7, §1º).
5
Classificação trazida pela primeira vez no The Millennium Ecosystem Assessment (MA), estudo lan-
çado em 2005, encomendado pela ONU em 2001 a fim de avaliar as consequências das mudanças
ecossistêmicas e dar as bases científicas para aumentar a conservação e o uso sustentável do meio
ambiente e seus ‘serviços ambientais’.
6
Crédito de carbono é caracterizado como um título representativo de uma tonelada de carbono
equivalente evitado. O termo equivalente é utilizado a fim de unificar, na métrica do carbono (CO2),
uma representação de valor, tal qual uma moeda. O CO2 equivalente é o resultado da multiplicação
das toneladas de GEE pelo seu potencial de aquecimento global. Sendo o potencial do CO2 estipulado
em um, os demais GEEs geram o número de créditos equivalentes a seu potencial de aquecimento,
como o gás metano que é 21 vezes maior que o CO2, portanto, uma tonelada de metano reduzido
equivale a 21 créditos de carbono. Potencial de aquecimento dos demais GEE: N2O – Óxido nitroso
= 310; HFCs – Hidrofluorcarbonetos = 140 ~ 11.700; PFCs – Perfluorcarbonetos = 6.500 ~ 9.200;
SF6 – Hexafluoreto de enxofre = 23.900.
7
Redução do Desmatamento por Desmatamento e Degradação (REDD+). Foi introduzido na COP
11, em Montreal, como mecanismo que deveria autorizar a geração de créditos de carbono oriundos
da manutenção e aumento do estoque florestal, assim como da diminuição do fluxo de carbono por
meio da adoção de técnicas e tecnologias que, teoricamente, emitem menos GEE, como por exemplo
o plantio direto que, ao não revolver o solo, diminuiria as emissões do setor agrícola, sendo passíveis
de geração de créditos de carbono.

CICLAGEM DE NUTRIENTES

C ar los A r mênio K hatounia n

Nutrientes minerais de plantas provêm da água e C, do gás carbônico


Todos os seres vivos são compostos do ar. Nos 5% restantes, há um elenco
majoritariamente de três elementos de outros elementos químicos, coleti-
químicos: carbono (C), oxigênio (O) vamente chamados de nutrientes mi-
e hidrogênio (H). Nas plantas, esses nerais. Dentre os nutrientes minerais,
três elementos constituem ao redor de três são necessários em maiores quan-
95% da matéria seca, sendo que H e O tidades, o nitrogênio (N), o fósforo (P),

214
CICLAGEM DE NUTRIENTES

o potássio (K), sendo designados como plantas que evoluíram em diferentes


macronutrientes minerais primários, ambientes, como o trigo em solos calcá-
seguidos pelo cálcio (Ca), pelo magnésio rios sob clima semiárido temperado e o
(Mg) e pelo enxofre (S), chamados de arroz em solos ácidos do trópico úmido,
macronutrientes secundários. As plan- desenvolveram adaptações diferentes.
tas precisam ainda, em quantidades sen- Como con­sequência, pedem condições
sivelmente menores, de boro (B), cloro distintas para expressar plenamente seu C
(Cl), cobre (Cu), ferro (Fe), manganês potencial produtivo.
(Mn), molibdênio (Mo), cobalto (Co),
níquel (Ni) e zinco (Zn), que são ditos Particularidades da dinâmica
micronutrientes. O silício (Si) é também de P, K e N no sistema solo-planta
muito frequente, sendo considerado
essencial para algumas plantas. Fósforo
Para crescer e completar seu ciclo Os nutrientes minerais apresentam
satisfatoriamente, as plantas precisam comportamentos químicos muito distin-
estar supridas de todo o conjunto. Como tos. Por sua importância, consideraremos
as plantas são fixas no solo, todos esses aqui os três macronutrientes principais.
nutrientes precisam estar disponíveis Como regra, o P no solo não cul-
no local em que se desenvolvem suas tivado é derivado essencialmente da
estruturas de absorção, particularmen- rocha matriz, fonte original para a ab-
te as raízes. Para serem absorvidos, os sorção pelas plantas e incorporação em
nutrientes precisam estar dissolvidos na sua biomassa. Quando essa biomassa é
solução do solo que permeia os espaços decomposta, o P é liberado na solução
capilares. Dessa solução, passam às raízes do solo, na forma de ânions fosfato.
e sobem até os sítios onde participam da Nessa forma, ele reage prontamente
fisiologia da planta. com cátions, particularmente com alu-
Solos de diferentes regiões contêm mínio e ferro nos solos tropicais. Os
diferentes quantidades de nutrientes fosfatos formados, de alumínio e ferro,
minerais, e podem apresentar também são praticamente insolúveis, de modo
elementos tóxicos, como o alumínio (Al) que o fósforo se torna indisponível para
livre. Como as plantas são fixadas pelas a maior parte das culturas agrícolas.
raízes ao solo, elas tiveram de desenvol- Esse processo é chamado de fixação do
ver, ao longo de sua evolução, mecanis- fósforo. Para não ser fixado, o P liberado
mos de adaptação às proporções em que precisa ser prontamente reabsorvido por
os nutrientes minerais aí se apresentam, uma planta em crescimento, o que requer
e também estratégias de convivência raízes em atividade.
com elementos tóxicos. Quando o fósforo é aplicado como
Por essa razão, embora necessitem fertilizante mineral, ele sofre o mesmo
dos mesmos nutrientes minerais, as processo de fixação, de modo que seu
espécies vegetais diferem nas propor- aproveitamento pela cultura normal-
ções dos elementos de que necessitam. mente é de apenas 5 a 10%. O P fixado
Diferem também na capacidade de pode ser recolocado em circulação por
extração dos nutrientes do solo e na culturas que evolutivamente desenvol-
tolerância a elementos tóxicos. Por isso, veram a capacidade de extraí-lo desses

215
CICLAGEM DE NUTRIENTES

fosfatos insolúveis, como a mandioca, ou pela irrigação, e descer a camadas


o feijão guandu, as mucunas e a fava mais profundas do solo com a água de
mineira. percolação. Esse arraste com a água de
A exportação de P pelas colheitas percolação é chamado de lixiviação. Se
normalmente é da ordem de algumas o K for lixiviado para uma profundidade
dezenas de kg por hectare. Como as além do alcance das raízes, ele estará
C concentrações de P na solução do solo perdido para efeito da nutrição mineral
são baixas, as perdas por lixiviação são da planta.
pouco importantes na escala de tempo Em climas úmidos, a lixiviação
agrícola. A via mais importante de per- usual­m ente conduz à perda de uma
da de P é a erosão do solo, no qual o P fração importante do K. Quanto mais
está associado ao material particulado, profundo e mais denso o sistema radi-
de modo que o controle da erosão é a cular, menor é essa perda.
principal medida para evitar perdas de P. A exportação de K no produto co-
lhido normalmente varia entre várias
Potássio dezenas e algumas centenas de kg por
Como para o P, a fonte original do hectare, dependendo do tipo e da quanti-
K é a rocha matriz do solo. Liberado da dade de produto colhido. Como o K tem
matriz, o potássio se apresenta predomi- muita afinidade por água, a exportação
nantemente como cátion K+, que forma é sensivelmente menor em produtos
sais muito solúveis, ao contrário do P. secos, como grãos, do que em produtos
Depois do sódio (Na), o K é o metal que úmidos como cana-de-açúcar, banana
forma os sais mais solúveis em água, e por ou mandioca.
isso está presente em todos os líquidos
das plantas. Nitrogênio
No solo, os minerais de argila e o Ao contrário do P e do K, o N nos
húmus formam uma esponja química sistemas naturais não provém da rocha
com cargas negativas, que é capaz de matriz do solo, mas do ar, do qual sua for-
reter na sua superfície íons de carga po- ma gasosa N2 representa cerca de 80%.
sitiva, como o K+. Em química do solo, Sua incorporação ao solo pode se dar por
essa retenção superficial é chamada de meio de descargas elétricas e, sobretudo,
adsorção, e os íons adsorvidos podem por meio da atividade de organismos
ser posteriormente absorvidos pelas capazes de converter sua forma gasosa
raízes das plantas. A capacidade de N2 em formas orgânicas. Essa conversão
troca de cátions (CTC) é uma medida é dita “fixação biológica” de nitrogê-
de poder do solo em reter nutrientes nio (FBN). Observe que aqui o termo
com cargas positivas. “fixação” tem significado diferente de
Como o K tem muita afinidade por quando é utilizado para o fósforo. Dentre
água, uma chuva intensa é capaz de re- os vários sistemas de fixação biológica
tirar K das folhas e levá-lo ao solo, onde de N, a associação de leguminosas com
ele será adsorvido pelo complexo argi- bactérias, ditas rizóbios, é o de maior
la-húmus. Se a quantidade de água for expressão na agricultura.
muito elevada, e a CTC reduzida, parte Depois da água, o N costuma ser
desse K pode ser carreada pela chuva, o fator que mais rápida e visivelmente

216
CICLAGEM DE NUTRIENTES

promove o desenvolvimento das plantas. Esse processo, adaptado à indústria por


Juntamente ao C, H e O, o N é parte Carl Bosch, é o mesmo hoje utilizado
integrante das proteínas, que formam as para a produção da ureia ofertada no
enzimas, ferramentas que medeiam todo mercado de fertilizantes. Com o tempo,
o metabolismo do mundo vivo, inclusive a utilização continuada dos adubos ni-
a fotossíntese. Uma vez incorporado à trogenados sintéticos trouxe problemas
biomassa das leguminosas, o N vai parti- não antevistos, de modo que hoje os C
cipar do desenvolvimento da planta. No nitrogenados sintéticos são evitados na
final do ciclo, parte dele será direcionado agricultura de base ecológica e proibidos
para as sementes, e parte ficará nos restos na produção orgânica. Mas esse assunto
vegetais que serão trabalhados pelos de- foge ao foco do presente verbete [ver
compositores [ver Teia Alimentar]. Agricultura Orgânica].
Em ambiente bem arejado, o N nos Voltando à dinâmica do N, tanto a
restos vegetais é convertido em nitrato ureia como outros adubos nitrogenados
(NO3-), um ânion com extrema afinidade sintéticos são convertidos em nitrato se
pela água, de modo que, como o K+, está o ambiente for bem arejado, da mesma
sujeito a lixiviação. Contudo, por ter forma que o N em restos vegetais, de
carga negativa, o nitrato não é retido modo que as perdas por lixiviação são
no complexo de troca no solo, de modo igualmente importantes.
que as perdas são muito elevadas, salvo Além da lixiviação, o N pode ser
se houver um sistema radicular denso o perdido do sistema por outras vias.
bastante para absorvê-lo antes que seja Quando os tecidos vegetais contendo
lixiviado. Como os terrenos submetidos N ou o próprio nitrato são submetidos
ao uso agrícola passam por longos pe­ a condições quimicamente redutoras,
ríodos sem nenhuma vegetação, as per- como é o caso de ambientes cobertos por
das de nitrato por lixiviação costumam água e com matéria orgânica abundante,
ser muito importantes. o N é convertido em outras formas quí-
Em função dessa dinâmica química, micas, especialmente em amônia (NH3)
repor os estoques de N no solo foi exi- ou nitrogênio gasoso (N2). Assim, em
gência natural para recuperar o potencial situações como lavouras de arroz irrigado
de produção dos terrenos agricultados ou lagoas de armazenamento de efluen-
ao longo da história da agricultura. Para tes de criações de suínos, o N contido
essa recuperação, a principal estratégia no material é perdido para a atmosfera
foi o pousio ou “descanso”, que exigia por volatilização.
deixar o terreno fora de cultivo por vários Outra forma de perda é por meio
anos. Com a invenção dos adubos nitro- da urina dos animais. Em sistemas com
genados sintéticos, os longos períodos de população elevada de grandes animais,
pousio puderam ser dispensados, passan- como bovídeos, essa pode ser a maior
do-se a ocupar o terreno ano após ano fonte de perdas de N. Os animais con-
com culturas agrícolas. Essa foi a razão centram o N digerido em sua urina, e,
de o prêmio Nobel de Química de 1918 ao urinar, o depositam em uma área
ter sido atribuído a Fritz Jacobus Haber, pequena, normalmente uma mancha
alemão de origem judia que desenvolveu circular com menos de um metro de
o processo químico de fixação de N. diâmetro. No centro da mancha, a

217
CICLAGEM DE NUTRIENTES

concentração de N pode exceder qui- exportação no produto colhido ou pelas


nhentos kg por hectare, aplicada de perdas, especialmente por lixiviação. Por
uma vez, o que resulta em lixiviação, essa razão, a inserção de leguminosas
porque o pasto não é capaz de absorver na rotação/consorciação de culturas é
tal quantidade de N imediatamente. essencial nos sistemas de base ecológica.
Em situação de seca, a perda de N A essa altura, o leitor provavelmente
C tende a ser ainda mais expressiva. A alta percebeu que a dinâmica química do N
concentração de N na forma de ureia, é complexa, e que seu manejo adequado
somada ao K e ao Na presentes na urina, requer estudo e planejamento bem maior
criam um ambiente altamente salino, de do que o dos outros nutrientes. Não há
modo que o pasto chega a queimar no dicas. Esse verbete é apenas um estímulo
centro da mancha. Do centro para as à elaboração de um plano de manejo
bordas da mancha, a concentração sali- adequado ao seu sistema de produção,
na vai se reduzindo; o pasto não chega começando pelo mais simples e indo até
a morrer, é fertilizado pelo N e irrigado o nível de complexidade exigido.
pela água da urina, formando-se um Comparando-se os movimentos de
halo verde azulado ao redor do centro N, P e K nos ecossistemas, fica evidente
queimado. No centro queimado, a ureia que, na escala de tempo agrícola, apenas
vai sendo convertida em NO3-, que aí se o N apresenta entradas regulares, que
acumula. Com o retorno da chuva, os justificam falar em “ciclagem”. Para P, K
sais de K e de Na e o NO3- são dissolvidos e todos os outros nutrientes, na escala de
e descem no perfil do solo com a água tempo agrícola, o que de fato se observa
de percolação. é um movimento no sentido da terra
O resultado líquido desse processo é para o mar. Esse movimento é um fluxo
uma perda de N do sistema cada vez que de perdas, que precisam ser de alguma
uma rês urina. Essa é a principal forma maneira compensadas pela ação humana
de perda desse nutriente em pastagens, nos sistemas de agricultura permanente.
e leva a um empobrecimento contínuo. Nos tópicos que seguem, tratamos de
Os agricultores não veem essa perda, e compreender melhor esses movimentos
a maioria dos agrônomos não sabe dela, para reduzir as perdas, e assim reduzir a
mas o empobrecimento da pastagem é necessidade de reposição.
claramente percebido.
Essa contínua perda de N cria con- Ciclagem de nutrientes minerais em
dições favoráveis ao estabelecimento de sistemas naturais e agrícolas
plantas capazes de realizar FBN, parti- Os nutrientes minerais estão em
cularmente de leguminosas, que fazem movimento constante e complexo, e
a reposição no solo retirando o N do ar. exigem que o agricultor os conheça bem
Nos sistemas de pastoreio rotacionado para bem manejá-los. Esses movimentos
convencionais, a reposição é feita com a se devem às características químicas de
aplicação de ureia cada vez que o gado cada nutriente, aos fatores da nature-
é retirado de um piquete. za, como o clima e a fauna, e também
Em terrenos ocupados com a produ- à interferência humana [ver N utrição
ção de lavouras, as subtrações de N são Vegetal]. Por facilidade de exposição,
quantitativamente elevadas, seja pela dividimos esses movimentos em três

218
CICLAGEM DE NUTRIENTES

categorias designadas como ciclagens vertical. Essa é a ciclagem “natural” de


natural, automática e intencional. nutrientes minerais.
Ainda que o termo ciclagem possa
ser inadequado do ponto de vista do Ciclagem automática
fenômeno natural, ele é adequado para de nutrientes minerais
chamar a atenção do leitor para a neces- Nos ambientes manejados por hu-
sidade de reaproveitar todos os materiais manos ocorrem os mesmos processos C
local e regionalmente disponíveis para de fotossíntese, absorção de nutrientes
direcioná-los no sentido de otimizar a minerais, produção e decomposição da
produção vegetal. biomassa. Contudo, na operação do siste-
ma de produção agrícola acaba havendo
Ciclagem natural de nutrientes minerais na horizontal um intenso deslocamento da
Em cada ponto da superfície do biomassa produzida, ao largo do terreno,
planeta, a vegetação natural ali presente e parte dessa biomassa é exportada como
está plenamente adaptada às condições produto agrícola.
de crescimento nesse local, posto que Além disso, os terrenos agricultados
qualquer espécie pobremente adaptada costumam permanecer sem ou com
é eliminada por outra de melhor adap- pouca vegetação na entressafra, de modo
tação. Cada planta germina, cresce, se que nutrientes podem ser perdidos por
reproduz, e para isso faz fotossíntese erosão e por lixiviação. Por essas razões,
para gerar biomassa, captando CO2 a ciclagem nos terrenos agrícolas apre-
do ar, e água e nutrientes minerais do senta muito mais perdas, de modo que
solo. Morta, a planta é decomposta, o a reposição de nutrientes se torna uma
CO2 volta ao ar e os nutrientes minerais necessidade, inclusive na agricultura
voltam ao solo, de onde serão absorvi- de base ecológica. Nessa situação, a
dos novamente por outra planta em grande questão é como minimizar as
crescimento. Esse processo ocorre con- perdas, para minimizar a necessidade
tinuamente nos ecossistemas naturais de reposição.
e é parte essencial do funcionamento Nos sistemas onde são criados ani-
da natureza. mais, a biomassa e os nutrientes minerais
Ao produzir biomassa por meio da são deslocados das áreas onde cresce sua
fotossíntese, a partir de água e CO2, a alimentação para os espaços onde eles
planta absorve e incorpora os nutrientes depositam seus dejetos, concentrando-se
minerais, que passam a fazer parte de si. aí. Uma parte do terreno é fertilizada
A biomassa produzida é fonte de alimen- às custas do empobrecimento de outra
to para herbívoros e decompositores, e, parte. Retiros, mangueirões, pocilgas e
quando decomposta, libera os nutrientes galinheiros são espaços de concentração
minerais simultaneamente à liberação de de nutrientes minerais. Esses nutrientes
CO2 e água. Os nutrientes sobem do solo não têm utilidade na produção enquanto
à planta, e descem depois da planta ao permanecerem nesse espaço, porque a
solo. Assim, nos ecossistemas naturais, a presença constante das criações impe-
ciclagem de nutrientes minerais está acopla- de o desenvolvimento de plantas. Por
da à ciclagem de biomassa e os nutrientes essa razão, a forma como o esterco será
se movimentam predominantemente na coletado e transportado para as áreas

219
CICLAGEM DE NUTRIENTES

de produção vegetal merece especial a ciclagem intencional potencialize a


atenção do agricultor. utilização dos nutrientes presentes no
Nos sistemas de produção animal sistema, pré-existentes ou introduzidos,
intensiva, para alimentar as aves ou e que otimize seu aproveitamento para
porcos num barracão de 1 mil a 2 mil a produção biológica e econômica do
m2 durante um ano são necessários duas sistema [ver Agrofloresta].
C a quatro centenas de hectares de soja e A coleta de resíduos da produção
de milho. Isso significa que a biomassa vegetal e animal para aplicar em hortas
colhida nessas centenas de hectares terá e plantações é parte dessa ciclagem in-
de passar por um funil muito estreito, de tencional. Mas há um grande potencial
modo que quaisquer perdas nesse funil para melhorar o aproveitamento dos
são muito relevantes. nutrientes no sistema. A realização desse
Uma das formas de deslocamento potencial exige, como ponto de partida,
de nutrientes minerais mais usuais nos que o agricultor identifique a oportu-
sistemas agrícolas, e que frequentemente nidade, para então ajustar o manejo e/
passa despercebida, é sua concentração ou a estruturação do sistema de modo a
nas imediações da casa do agricultor. captar os benefícios.
O agricultor traz lenha para seu fogão, O aproveitamento dos estercos mui-
depois joga as cinzas em algum lugar to frequentemente é baixo, devido à
por ali. Traz milho para os animais, que dificuldade de coletá-lo. Para melhorar
são tratados e eliminam seus dejetos esse aproveitamento, é preciso que as
por ali. Traz frutas, hortaliças, palhas, instalações sejam projetadas prevendo a
cujos resíduos acabam ficando por ali. utilização dos estercos e o manejo tome
Com isso, ao longo do tempo, o entorno em consideração o padrão de eliminação
da habitação vai se enriquecendo em da urina e das fezes. A situação mais
nutrientes e biomassa. difícil para a coleta de estercos ocorre
Essa movimentação que ocorre em quando os animais são criados comple-
função da operação da propriedade, tamente soltos. E a mais fácil quando são
usual­mente sem que o agricultor per- criados totalmente fechados. Em con-
ceba, é chamada de ciclagem automáti- trapartida, as criações completamente
ca. Ela se dá, sobretudo, na horizontal, soltas requerem muito menos trabalho
empobrecendo os espaços de produção e alimentação, posto que os animais
vegetal e enriquecendo os espaços onde procuram por si mesmos atender suas ne-
se concentram animais e as cercanias cessidades, enquanto a criação fechada
da casa. depende totalmente do cuidado humano.
Contudo, há também situações
Ciclagem intencional intermediárias. Acostumar as aves a
de nutrientes minerais dormir dentro de um galinheiro pos-
Quando o agricultor aplica esterco, sibilita a coleta do esterco produzido
restos vegetais, cinzas etc. no ambiente durante a noite. Um plantel de 20 a 30
de crescimento de plantas ele está inten- galinhas, número usual na produção
cionalmente direcionando a movimenta- para consumo doméstico dos agriculto-
ção de nutrientes aos pontos do sistema res, pode gerar esterco suficiente para
que são de seu interesse. O ideal é que uma horta de 50 a 200 m2, eficiente para

220
CICLAGEM DE NUTRIENTES

abastecer uma família de verduras ao são prontamente disponibilizados. O


longo do ano. De maneira análoga, o re- principal composto nitrogenado na urina
colhimento do gado de maior ou menor é a ureia, de modo que a urina diluída
porte à noite possibilita aproveitar com apresenta efeitos sobre as plantas seme-
relativa facilidade o esterco produzido lhantes aos da ureia de origem industrial.
até a manhã seguinte. Pura, a urina é muito salina e pode matar
as plantas. C
Características e cuidados Os excrementos de porcos seguem
com os estercos o mesmo padrão dos de bovinos, sendo
Como ponto de partida, é preciso as fezes de ação mais lenta que a urina.
conceituar o que o termo “esterco” Contudo, como a alimentação dos por-
significa. Quando se coleta esterco de cos é composta majoritariamente por
gado ou de cavalo num pasto, man- tecidos vegetais ricos em amidos e pro-
gueirão ou retiro, o material consiste teínas, principalmente grãos, suas fezes
essencialmente em fezes com diferentes se decompõem muito mais rapidamente
quantidades de umidade e estágios de que as de herbívoros, cujo principal com-
decomposição. As fezes são a fração não ponente são as fibras de celulose. Como
digerida do alimento, rica em celulose, no caso dos bovinos, o melhor aprovei-
e impregnada de pequenas quantidades tamento dos nutrientes nos excrementos
de nutrientes minerais (N, P, K, Ca, Mg de porcos é obtido com piso impermeável
etc.) que o processo de digestão não foi e com cama alta de material celulósico
capaz de extrair. (serragem de madeira, maravalha, palhas
Quando os animais são mantidos picadas etc.). Com o constante fuçar dos
presos, sobre pisos impermeáveis, e com porcos, a urina e as fezes acabam mistu-
cama, o termo esterco é utilizado para radas com o material de cama.
designar a mistura que inclui, além das Com o tempo, esse material vai
fezes, o material da cama e a urina. Nesse se umedecendo, de modo que precisa
caso, sua composição e dinâmica quími- ser removido antes de se transformar
ca e biológica são diferentes. Em primeiro em uma pasta que suje os animais. O
lugar, há o material da cama, tal como a material retirado é uma mistura pronta
maravalha, cascas de amendoim, casca para o desenvolvimento das bactérias
de arroz, palhas etc. Em segundo lugar, termofílicas, de modo que, acumulado
há a urina, uma solução para a qual o em pilha, se aquece imediatamente. Esse
corpo do animal direciona os resíduos aquecimento é muito benéfico do ponto
do seu metabolismo, particularmente de vista sanitário, porque elimina os
os produtos finais da digestão de subs- propágulos de organismos patogênicos
tâncias nitrogenadas e os excedentes de comuns aos suínos e humanos. A elimi-
sais solúveis em água, especialmente o nação é tanto mais eficiente quanto mais
K da forragem e o Na do sal de cozinha. vezes a pilha é revolvida.
Ao contrário dos nutrientes nas fezes, O tempo para a substituição da
que apenas são disponibilizados para as cama varia com a relação entre a capa-
plantas ao cabo de semanas ou meses, cidade de absorção de umidade do mate-
à medida que elas são decompostas por rial utilizado e a quantidade de umidade
microrganismos, os nutrientes na urina excretada pelos animais nas fezes e na

221
CICLAGEM DE NUTRIENTES

urina. Como referência, uma camada de Para o bom aproveitamento do N dos


20 cm de pó de serra em uma baia de 3 excrementos de galinha, é preciso de-
x 3 m2 é o suficiente para uma leitegada sidratar rapidamente o material, o que
desmamada por um a dois meses. pode ser conseguido com uma cama
Do ponto de vista da alimentação, seca. Quando o esterco de aves é arma-
porcos e galinhas são alimentados com zenado úmido e puro para curtir, a maior
C os mesmos tipos de produtos, o que faria parte do N se perde como amônia, de
pensar em estercos com características modo que o produto curtido é boa fonte
semelhantes. Contudo, há duas parti- de P e de K, mas não de N. As perdas de
cularidades no sistema digestório das N são menores no esterco seco.
galinhas que tornam seu esterco dife- Por ser mais concentrado, o esterco
rente: a moela e o ácido úrico. Nas aves, de aves puro deve ser utilizado com mais
a fragmentação dos alimentos ocorre na cuidado, para não prejudicar as plantas.
moela, uma diferenciação do estômago, Em hortas, não convém ir além de um
com músculos potentes, que reduz o a dois litros de material seco por metro
material ingerido a uma pasta muito mais quadrado de canteiro. Comparativamen-
fina do que os dentes dos porcos conse- te, o esterco de aves apresenta menores
guem fazer. As aves e os répteis passaram preocupações para a saúde humana do
por um ambiente muito seco durante que o de suínos.
seu passado evolutivo, que induziu um Uma questão que sempre se apre-
sistema de eliminação dos resíduos ni- senta nessa temática é a do aproveita-
trogenados num composto insolúvel em mento dos excrementos humanos como
água, o ácido úrico. Assim, enquanto os material fertilizante. Efetivamente, esse
mamíferos precisam de muita água para material tem sido utilizado há milhares
eliminar a ureia, as aves não gastam de anos nos sistemas agrícolas centrados
água na eliminação do ácido úrico. Em no arroz no Oriente, enquanto no Oci-
uma placa de excrementos de galinha, as dente permanece como um tabu.
fezes são a placa maior, mais escura, e o Do ponto de vista de sua composi-
ácido úrico é a parte clara, em forma de ção e de riscos sanitários, os excrementos
vírgula, em cima da placa. Essa vírgula humanos são muito parecidos com os ex-
clara é o equivalente à urina dos suínos crementos de suínos, valendo as mesmas
e bovinos. considerações. A compostagem das fezes
A fragmentação mais fina e a pre- humanas sanitiza o material, tornando-o
sença do ácido úrico tornam os excre- seguro como material fertilizante. A
mentos de galinhas mais ricos em N e urina humana é de coleta muito mais
de decomposição muito mais rápida do fácil do que a de qualquer outro animal,
que as fezes de suínos e bovinos. Por isso, e pode ser utilizada como fonte de N para
se houver umidade, os excrementos de quaisquer culturas. O cuidado é apenas
galinhas são rapidamente atacados por diluí-la em água, para evitar a salinidade,
bactérias que desdobram o ácido úrico sendo a diluição de 1:10 bem tolerada
em água, gás carbônico, e amônia (gás pela maioria das culturas.
amoníaco). O odor forte, pungente e No Oriente, os excrementos huma-
tóxico dos barracões de frango é devido nos tradicionalmente são aplicados di-
justamente à volatilização da amônia. retamente nas culturas, particularmente

222
CICLAGEM DE NUTRIENTES

nos tabuleiros de arroz, sem composta- sobre toda a massa da pilha. O material
gem. Disso resulta uma contaminação resultante desse processo é chamado de
ambiental generalizada por organismos composto, apresenta elevado potencial
presentes nas fezes humanas. Para con- fertilizante, reestruturador e recoloni-
tornar esse inconveniente, os povos zador do solo.
orientais, particularmente os chine- Quando a pilha é composta por ma-
ses, tomam a água fervida, na forma de teriais predominantemente celulósicos e C
chá, e as hortaliças sofrem algum tipo com baixo teor de N, como as palhas de
de tratamento térmico antes de serem cereais, folhas senescidas de árvores e
consumidas [ver Saneamento Ecológico]. resíduos de serraria, o aquecimento não
ocorre. Falta alimento para as bactérias
Decomposição de biomassa e termofílicas. Nesse caso, a decomposição
compostagem envolverá outros organismos, ocorrerá a
Na operação de sistema de produção frio, e muito mais tempo será necessário
agrícola, sempre há movimentações im- para se chegar ao material fertilizante,
portante de biomassa na horizontal, e par- semelhante ao composto. Uma variedade
te dessa biomassa pode acabar empilhada muito maior de organismos trabalhará
em determinados pontos do sistema. Esse sobre o material, de maneira similar à
material sofrerá a ação de organismos de que ocorreria na serapilheira de uma
tamanho variado, resultando num pro- floresta. Nesse caso, a eliminação de pro-
duto escuro, friável, de cheiro agradável, págulos de patógenos é menos eficiente,
com elevado potencial fertilizante. porque não há tratamento térmico.
Quando o material empilhado é A dinâmica do N, do P e do K segue
rico em substâncias de fácil ataque por padrões diferentes nas pilhas, indepen-
microrganismos, como carboidratos dentemente de a decomposição ocorrer a
simples e compostos nitrogenados, e a frio ou a quente. O N sempre é perdido,
pilha é arejada, ocorre um rápido aque- seja na forma de amônia volatilizada ou
cimento até pouco acima de 60o C. Esse nitrato lixiviado. Pode-se tentar reduzir
aquecimento seleciona bactérias ter- as perdas, mas estancá-las totalmente
mofílicas, que se tornam os principais é impossível. O P se mantém no mate-
agentes decompositores. O aquecimento rial, sendo as perdas de muito pequena
da pilha não é uniforme; ocorre em uma monta. A situação com o K é função da
calota abaixo da superfície da pilha. Na quantidade de água que percola através
superfície, falta água, e no centro, falta da pilha. Como o K é muito solúvel, a
arejamento. Ao cabo de poucas sema- água de percolação o carreia para o solo
nas, a calota esfria, porque o material aí abaixo da pilha, concentrando-o aí.
presente atacável pelas bactérias termo- O resultado conjunto desses proces-
fílicas se esgotou. Se a pilha for revolvi- sos é uma mudança na proporção entre
da, volta a se aquecer, em função de o os nutrientes N, P e K. Em comparação
material da parte externa e do centro com o material colocado na pilha, o com-
da pilha, redistribuídos, realimentarem posto pronto é proporcionalmente mais
a calota. Assim, quanto mais frequente o rico em P e mais pobre em N e K. Para
revolvimento, mais rápida é a decompo- o K, o empobrecimento é tanto maior
sição e mais efetivo o tratamento térmico quanto mais água tiver percolado a pilha.

223
CICLAGEM DE NUTRIENTES

Disso resulta que a aplicação continuada Por essas razões, as cinzas são um
de composto faz aumentar os teores de recurso valioso, cuja utilização merece
P no solo, mas não os de N ou de K. O uma atenção especial no sistema de
mesmo fenômeno de aumento dos teores produção.
de P ocorre com qualquer outra forma
de aplicação de biomassa, embora num Ciclagem de nutrientes, consumo
C ritmo mais lento. doméstico e segurança alimentar
Um espaço privilegiado para a pro-
Cinzas dução vegetal, mas pouco aproveitado,
Da biomassa seca das plantas, como é o entorno da casa de moradia, a que
referência, 95% são compostos por C, H aludimos na ciclagem automática. Além
e O, sendo os 5% restantes construídos de biomassa e nutrientes minerais, há
de nutrientes minerais. Do ponto de aí maior disponibilidade de trabalho e
vista químico, queimar significa reagir de água. Biomassa, nutrientes minerais,
com oxigênio, de modo que os elementos trabalho e água tornam esse entorno a
presentes na biomassa são convertidos área de maior potencial de produção na
em óxidos. Os óxidos que são gasosos maior parte dos sistemas agrícolas [ver
volatilizam, como é o caso do gás carbô- Permacultura].
nico (CO2), da água (H2O) e do óxido Mas esse espaço costuma ser pou-
de enxofre (SO2). Os óxidos que são co aproveitado, devido a uma falha na
sólidos permanecem no local da queima, percepção desse potencial, e devido à
e são coletivamente chamados de cinzas, presença de criações soltas. Os agricul-
sendo os principais o de cálcio (CaO), tores percebem que as galinhas e porcos
o de magnésio (MgO), o de potássio criados fechados não produzem bem como
(K2O) e a sílica (SiO2). As proporções os criados soltos, e por isso relutam em
entre esses óxidos dependem do tipo de fechá-los. Mas as criações soltas impedem
biomassa queimada. o pleno aproveitamento do potencial de
A sílica é um material inerte que, na produção do entorno da casa.
forma líquida, forma o vidro. Na palha da Uma alternativa para conciliar o
cana de açúcar, 70% das cinzas é sílica, aproveitamento do potencial de pro-
de modo que se formam pedras de vidro dução com as criações soltas é cercar
nos fornos das usinas. Ao contrário da uma área nas proximidades da casa, e
sílica, os óxidos de cálcio, de magnésio e cultivá-la intensivamente. Para fertilizar
de potássio são muito reativos. Quando esse cercado são conscientemente dire-
umedecidos, formam os respectivos hi- cionados todo os resíduos trazidos para as
dróxidos, de reação fortemente alcalina. proximidades da habitação, convertendo
Por isso, quando são aplicados no solo, essa parte da ciclagem automática em
não apenas aportam nutrientes como uma ciclagem intencional. A proximi-
corrigem a acidez. Quando aplicados dade da habitação permite transformar
sobre plantas, desfavorecem o ataque de em produção vegetal qualquer pequeno
fungos, que, de maneira geral, preferem período de tempo disponível. Uma pe-
meios ácidos. Além disso, o K é o elemen- quena parte do cercado, a critério do
to de maior efeito protetor, contribuindo agricultor, pode receber hortaliças que
sobremaneira para a sanidade vegetal. necessitem de irrigação.

224
CICLAGEM DE NUTRIENTES

Um cercado com 1 mil a 2 mil m2, melhor maneira possível. Por exemplo,
com 20 a 100 m2 irrigados, assim locali- envidando esforços para evitar as perdas
zado e manejado, pode abastecer a maior de potássio sob as pilhas de biomassa,
parte da alimentação de uma família de manejando as criações de modo a oti-
três a cinco pessoas ao longo do ano. mizar o aproveitamento de esterco e
Na parte sem irrigação pode-se cultivar disciplinando o destino dos resíduos do
produtos como mandioca, milho verde, material trazido para a residência para C
pipoca, amendoim, abóboras, feijões, fertilizar o cercado.
batata-doce, quiabo, gengibre, pimentas O conhecimento potencializa a utili-
etc. Na pequena fração irrigada podem zação dos nutrientes, mesmo quando eles
ser produzidos, de acordo com a estação estão em quantidades limitadas. Isso não
do ano e a região, couve, repolho, alface, quer dizer, no entanto, que é indesejada
cenoura, vagem, cheiro-verde, cebola de a incorporação de material fertilizante,
cabeça etc. O entorno dessa área e a cer- químico ou orgânico, de fora do sistema.
ca em si são um espaço privilegiado para Um solo pobre em fósforo, como é usual
plantas como o guandu e trepadeiras, no Brasil, pode produzir bem mandioca,
como a orelha de padre (Dolichos lablab), arroz e guandu, por exemplo. Mas se ele
as favas, o maracujá, o chuchu etc. Na for fertilizado com esse nutriente poderá
experiência pessoal do responsável por produzir bem uma maior variedade de
esse verbete, uma hora de trabalho por culturas. De forma análoga, a aplicação
dia pode ser o suficiente para conduzir de calcário para neutralizar o alumínio
um cercado desse tipo, dependendo livre pode ampliar o leque de espécies
das dimensões e da complexidade das cultiváveis no sistema.
plantas cultivadas e do conhecimento e Nas últimas duas décadas, houve
habilidade das pessoas envolvidas. notável expansão do uso de pós de rocha,
além dos tradicionais calcário e fosfatos
Uma visão de conjunto naturais. Os pós de rocha, aplicados ade-
À luz dos variados aspectos trazidos à quadamente, podem promover a remine-
tona nesse verbete, compreende-se como ralização dos solos, engrossando o caudal
e porque a organização da propriedade e de nutrientes em circulação no sistema.
o manejo das lavouras e criações afetam Também a adubação dita “química” pode
o aproveitamento dos nutrientes minerais contribuir nesse mesmo sentido.
disponíveis no sistema de produção. No entanto, o ponto central desse
Na agricultura de base ecológica, verbete é chamar a atenção do leitor para
uma parte significativa do sucesso está os processos envolvidos, de modo que,
no conhecimento pelo agricultor de qualquer que seja o tamanho do estoque
como cada nutriente se comporta, de de nutrientes no sistema, o agricultor
forma que as quantidades presentes de tenha elementos para gerenciá-lo com a
cada nutriente possam ser utilizadas da maior eficiência possível.

Para saber mais


Com o objetivo de permitir ao leitor um voo mais alto e ao mesmo tempo um mergulho mais profundo
no assunto, comentamos a seguir três obras, sem a pretensão de esgotar o assunto.
JENKINS, J. The humanure handbook. White River Junction, VT, Chelsea Green Publishing, 1999. 301p

225
CICLO DA ÁGUA

É um texto prático e bem-humorado de um autodidata em compostagem, que desde o final da década


de 1970 vem compostando os excrementos de sua própria família e utilizando o composto para produzir
alimentos.
KHATOUNIAN, C. A. A reconstrução ecológica da agricultura. Botucatu: Editora Agroecológica/
Instituto Agronômico do Paraná, 2001. 345p
Texto de base sobre a agricultura de base ecológica, que tem servido como âncora para a estruturação e
manejo de sistemas de produção orientados para esse paradigma. Baseado em experiência em primeira
mão do autor.
C NOVAIS, R. F. et al. (ed.) Fertilidade do solo. Viçosa (MG): Sociedade Brasileira de Ciência do Solo,
2007. 1017p.
Livro organizado pela Sociedade Brasileira de Ciência do Solo, cobre um amplo espectro de aspectos
da química de solo, dinâmica de nutrientes e nutrição mineral de plantas.

CICLO DA ÁGUA

A ltair Sales Bar bosa

Para entendermos as diversas ques- locais da Terra pode desaparecer? Toda


tões ligadas à diminuição drástica da água hoje existente no Planeta também
vazão da maior parte dos rios do Brasil, pode desaparecer?
bem como a diminuição dos reservató- Para respondermos a tais indaga-
rios e o desaparecimento de centenas ções, é necessário entendermos, como
de cursos d’águas do Planalto Central já falamos, o que ocorre acima das
brasileiro, torna-se necessário compreen- nossas cabeças e o que ocorre abaixo
dermos a dinâmica do planeta Terra que dos nossos pés. É bom também que se
se encontra acima das nossas cabeças, e diga que esses fenômenos estão inti-
a dinâmica que se encontra abaixo dos mamente interligados.
nossos pés. Acima de nossas cabeças existe a
Não podemos ignorar que a Terra é atmosfera com diversas camadas; cada
um planeta dinâmico e se encontra sem- uma delas possui composições e dimen-
pre em mutação, ou seja, as forças que sões diferenciadas. A penúltima camada
atualmente nele atuam são as mesmas é a exosfera, que se situa acima dos 500
que sempre atuaram desde os primórdios. km sobre nossas cabeças e constitui o
É importante também trabalharmos espaço sideral. Envolvendo a exosfera,
com uma afirmação e uma indagação. encontra-se um escudo protetor da Ter-
A quantidade de água que hoje existe ra, que se denomina magnetosfera. Esse
na Terra é a mesma que sempre existiu, escudo protege o planeta Terra dos ventos
pelo menos no parâmetro de tempo de solares. Sabe-se que o sol irradia em todas
600 milhões de anos para cá. A indaga- as direções um vento de alta velocidade,
ção poderia seguir o seguinte caminho: que varia de 300 a 900 km por segundo.
a água que existe ou existiu em alguns Se parte significativa da magnetosfera se

226
CICLO DA ÁGUA

romper e esses ventos em sua totalidade último período glacial, situado entre 18
atingirem o nosso planeta, tudo que existe e 13 mil anos antes do presente, essas
será varrido de sua superfície, incluindo correntes modificaram quase que total-
a água, que vai se evaporar, além de inú- mente a face do planeta, transformando
meras outras consequências. A existência lugares úmidos e temperados em deser-
da magnetosfera depende do equilíbrio tos e áreas desérticas em áreas úmidas.
magnético da Terra, que orienta, por São vários os fenômenos que alte- C
exemplo, o movimento de rotação do pla- ram a circulação aérea da troposfera,
neta. Este equilíbrio já foi minimamente mas citaremos apenas alguns a título de
afetado pelo menos por duas vezes duran- exemplificação: o primeiro é a modifi-
te a história evolutiva da Terra, e causou cação da circulação das correntes ma-
transtornos imensuráveis. ­Atualmente, rinhas, que de forma direta influenciam
existem autores que afirmam que, em as correntes atmosféricas. As correntes
virtude de obras monumentais na su- marinhas podem modificar seu curso
perfície da Terra, o seu equilíbrio, como e temperaturas mediante causas natu-
também o movimento de rotação, estão rais: glaciação; aquecimento das águas
sendo alterados. Segundo esses mesmos oceânicas, fenômeno conhecido como
autores, fatos já estão afetando de forma El Niño, ou resfriamento dessas águas,
crescente a magnetosfera. Portanto, uma fenômeno conhecido como La Niña.
das questões pode ser assim respondida: Segundo dados da Nasa, desde quando
a água superficial da Terra, incluindo se começou a mensuração de El Niño,
os oceanos, pode sim desaparecer se a 2015 foi o ano em que o fenômeno se
magnetosfera se romper. mostrou mais intenso, provocando chu-
Entretanto, enquanto isso não vas torrenciais nas áreas subtropicais e
ocorre, trataremos de fenômenos me- estiagem prolongadas em alguns locais
nores, como por exemplo a primeira situados nas faixas tropicais.
camada da atmosfera terrestre, deno- Sabe-se hoje que correntes mari-
minada troposfera. nhas profundas e frias que se deslocam
A troposfera é a primeira camada a 4 km de profundidade, oriundas da
da atmosfera que se situa dos nossos Groenlândia, circulam também pelos
pés até uma altura média de 10 km. oceanos de forma lenta e aleatória, al-
Atualmente, essa camada é composta terando a temperatura da água oceânica
em média por 76% de nitrogênio, 21% por onde passam.
de oxigênio, 1% de argônio e o resto por Ainda acima dos nossos pés, acon-
outros componentes, como: dióxido de tece um conjunto de ações antrópicas
carbono, vapor d’água etc. A temperatu- capaz de modificar drasticamente o
ra e a composição da troposfera variam clima local e regional. Os exemplos
de latitude para latitude e de altitude mais clássicos são os desmatamentos e a
para altitude, conferindo a cada lugar crescente urbanização; esta exige a pa-
uma característica especial. vimentação de grandes áreas, impedindo
As correntes aéreas que trazem a transpiração dos solos, a infiltração da
umidade, seca, calor e frio para os conti- água, formando ilhas de calor e zonas de
nentes circulam na troposfera e variam baixa pressão atmosférica, que podem
ciclicamente. Por exemplo, durante o provocar transtornos imprevisíveis.

227
CICLO DA ÁGUA

Mesmo em época recente, várias de toda a água se encontra nos rios, nos
áreas foram afetadas por períodos de lagos e nos lençóis subterrâneos.
longa estiagem e obrigaram as popu- Uma outra questão importante a ser
lações a migrarem para outros locais, considerada é que as correntes fluviais
deixando cidades inteiras abandonadas; constituem sistemas dinâmicos que se
o exemplo mais clássico é dos Maias, no ajustam de forma contínua às mudan-
C sul do México e Guatemala. ças naturais e às mudanças provocadas
Abaixo dos nossos pés está toda uma pelo homem. Mudanças climáticas
complexa estrutura composta pelas pla- certamente afetam a quantidade de
cas tectônicas e pelas camadas internas água disponível. Porém, em contrapar-
da Terra, a começar pelo manto até o tida, a pavimentação das áreas urbanas
núcleo. O manto da Terra, que se situa aumenta o efêmero escoamento de
abaixo da crosta, local caracterizado superfície. E a retirada da vegetação
pelas placas tectônicas, é constituído de nativa diminui drasticamente o nível
matéria fluida. No manto se encontram dos lençóis subterrâneos, responsáveis
as plumas e as superplumas, que formam pela perenização dos rios.
as correntes de convecção; quando essas Outro elemento importante a ser
correntes quentes ou frias se aproximam considerado é o que se denomina ciclo
da crosta, alteram a temperatura das hidrológico. Independentemente de sua
águas oceânicas para quente ou fria, fonte, o vapor d’água sobe para atmos-
que por sua vez influenciam as correntes fera onde ocorrem processos complexos
marinhas, mudando sua orientação e de formação de nuvens e condensação.
composição, e assim por diante. Grande parte da precipitação mundial,
Bem, uma das questões foi respon- 80%, cai diretamente nos oceanos e
dida: a água que atualmente existe na 20% das precipitações restantes caem
Terra poderá um dia desaparecer do sobre a terra, uma grande quantidade
Planeta. Entretanto, com relação às voltando para o oceano pelo escoa-
questões ligadas à diminuição da vazão mento. Todavia, uma pequena parcela
ou desaparecimento de cursos d’água de dessas precipitações fica armazenada
um local, como isso é possível? em lagos, pântanos, geleiras, ou penetra
Num primeiro instante, torna-se sob a superfície formando sistemas de
necessário que sejam ressaltados alguns água subterrânea. Todo esse sistema é
elementos da hidrosfera. interligado, mesmo a água liberada pelas
A hidrosfera é constituída por vários plantas por meio da transpiração entra
elementos: vapor de água, água subter- na atmosfera, e todas as águas conti-
rânea, água congelada nas geleiras, água nentais acabam voltando para o oceano,
dos oceanos e aquela pequena, mas im- iniciando um novo ciclo hidrológico.
portante quantidade de água confinada A água subterrânea é um reserva-
nos canais da terra, denominada águas tório de suprimento mundial de água
correntes. Se 97,2% da água existente no doce. Como todas as águas, num ciclo
planeta Terra está nos oceanos, 2,15% hidrológico, a fonte definitiva da água
está sobre as massas continentais, mas subterrânea provém dos oceanos, mas
congelada em geleiras, especialmente sua fonte imediata é a precipitação que
na Antártida e Groenlândia, e 0,83% se infiltra nos solos e penetra nos vazios

228
CICLO DA ÁGUA

desses solos, sedimentos ou rochas. O Esta é uma forma do desaparecimen-


lençol subterrâneo desempenha papel to de cursos d’água, através da interven-
fundamental para a vida dos rios. Mas, ção humana. Outro exemplo clássico de
para compreender a sua formação, al- intervenção humana desastrosa se refere
guns elementos são importantes. à transposição dos rios Amur-Darya e
Parte da precipitação que cai so- Syr Darya pela antiga União Soviética,
bre a terra evapora e parte entra nas para irrigar plantações de algodão. Os C
correntes e volta para o oceano pelo dois rios citados eram os alimentadores
es­coamento superficial. O restante pe- da bacia endorreica do Mar de Aral.
netra no solo. À medida que a água se Consequência: o mar praticamente se-
aprofunda, uma parte adere ao material cou, deixando um solo com alto índice
no qual se move e interrompe a descida. de salinidade, em que somente uma
A parte que penetra e se acumula pro- espécie vegetal ali se desenvolve, além
cura preencher os espaços dos poros dis- da poeira salgada provocar doenças, in-
poníveis. Dessa maneira, são definidas cluindo o câncer em mais de 30 milhões
duas zonas, de acordo com o conteúdo de pessoas, sem falar nas plantações de
dos espaços ocupados nos poros, pelo ar algodão que não vingaram. O mesmo fe-
ou pela água: a zona de aeração e a zona nômeno está acontecendo no Brasil, com
de saturação. A superfície que separa as a transposição do Rio São Francisco.
duas é o lençol freático. Uma vez satu- Um outro fator que faz com que
rado o lençol freático, de acordo com a vários cursos d’água desapareçam ou
porosidade das rochas, a água penetra tenham sua vazão extremamente di-
nelas, formando o lençol artesiano ou minuída refere-se à retirada sem prece-
aquífero. A perenização dos rios de- dentes da cobertura vegetal natural do
pende normalmente das águas dos dois Centro-Oeste brasileiro. Essa vegetação
lençóis. Entretanto, há locais em que é responsável pela absorção das águas
os rios não são alimentados por aquífe- das chuvas, pois as deposita nas bacias de
ros e somente recebem água do lençol sedimentação intracratônica (ver mais
freático. Neste caso, o desmatamento adiante o que é Cráton). Desse modo
pode eliminar o lençol freático, que são formados os aquíferos, responsáveis
também pode desaparecer em função pela alimentação, vida e perenização
de uma estiagem prolongada. Quando de todas as águas que vertem para a
os dois fenômenos acontecem de forma bacia hidrográfica amazônica (margem
simultânea, a vida do lençol é curta e direita), para a bacia hidrográfica do São
o rio pode secar imediatamente. Isso Francisco, para a bacia hidrográfica do
acontece, por exemplo, com os rios do Paraná e para outras bacias hidrográficas
semiárido brasileiro e com a maior parte menores independentes, como a bacia do
dos rios afluentes da margem direita do Parnaíba, Jequitinhonha e Doce.
São Francisco, que só são alimentados As águas desses aquíferos, durante
pelos lençóis freáticos. Alguns proces- milhões de anos, foram armazenadas
sos de desmatamento nesses locais já nas rochas porosas dos arenitos Urucuia,
impedem a formação de novos lençóis Botucatu, Bauru, Poti, Aquidauana etc.,
e os rios que ali existiam deixaram de que formam as bacias geológicas do Par-
existir para sempre. naíba/Maranhão e do Paraná.

229
C Ó D I G O F L O R E S TA L

Um Cráton é uma grande superfície calha até atingir a margem direita, até a
onde ocorrem, em diferentes profundida- altura baixa de seus afluentes.
des, rochas graníticas bastante antigas, Entre esses dois Crátons estão as
de idade Pré-Cambriana. Os minerais diversas bacias sedimentares de idades
que o compõem estão bem fundidos, diferentes. A maior extensão abrange as
impedindo a porosidade dessas rochas. bacias geológicas do Parnaíba/Maranhão
C Portanto, as águas que correm sobre e Paraná.
um Cráton são águas do lençol freático. Seu núcleo principal está coberto por
Como já dissemos, o desmatamento Cerrado [ver Cerrado], que é a vegetação
nestas áreas ou uma forte estiagem são que em função de seu sistema radicular
fatores que exterminam esses lençóis, absorve a água da chuva e a armazena nas
impedindo o acúmulo de água para ali- rochas porosas dos aquíferos. A partir de
mentar o fluxo corrente. No Brasil, há 1970, um novo modelo de organização
duas formações cratônicas significativas. territorial foi implantado no centro do
O Cráton do São Francisco, que abrange Brasil, fato que contribuiu para que o
quase a totalidade da sua margem direita Cerrado entrasse num processo global de
e pequena porção da margem esquerda, entropia e fosse gradativamente perdendo
e o Cráton do Amazonas, que abrange seus elementos essenciais, fauna, flora,
sua margem esquerda, mergulhando pela cultura e inclusive suas reservas de água.

Para saber mais


BARBOSA, A. S. O piar da Juriti Pepena. Goiânia: Ed. PUC-GO, 2014.
______. O livro da Terra. Goiânia: Ed. América, 2019.
SUGUIO, K. A evolução geológica da Terra e a fragilidade da vida. São Paulo: Edgar Blucher, 2003.
WICANDER, R. et al. Fundamentos de Geologia. São Paulo: Cengag Learning, 2009.

CÓDIGO FLORESTAL

L uiz H enr ique G omes de M our a

Por que é importante compreender territoriais e de classe que ocorrem em


o Código Florestal? Muito mais do que nosso país, principalmente ao longo do
uma lei, o Código Florestal (daqui século XX e XXI.
em diante escrito como CF) é parte Neste verbete, buscaremos trabalhar
importante da expressão ambiental da na perspectiva da totalidade, fugindo da
luta de classes e da questão agrária e falsa dicotomia criada pela grande mídia
ambiental no Brasil. Entendermos seu de que essa é uma disputa entre ambien-
histórico, seus pontos centrais e as talistas e agronegócio. O centro das dis-
disputas recentes que o perpassam con- putas em torno do CF está, na realidade,
tribui para o trabalho sobre as disputas situado na função social da terra e na

230
C Ó D I G O F L O R E S TA L

soberania popular sobre os bens comuns níveis dramáticos com os ciclos da cana-
de nosso país [ver Bens Comuns]. Nesse -de-açúcar e da mineração.
sentido, abordaremos um breve histórico Frente à voracidade capitalista, a
da Constituição dos marcos basilares resistência dos povos indígenas manti-
do CF, seguido da contextualização nha a expansão da destruição em ritmo
das mudanças ocorridas nos últimos 20 descompassado, que ora avançava em
anos. Por fim, trabalharemos os impactos fronteiras agrícolas e minerais, ora con- C
dessas mudanças e sua conexão com as solidava territórios de exploração ou
novas formas de acumulação capitalista mesmo recuava territorialmente. Nesta
dos bens comuns. dinâmica secular, alguns poucos, mas
importantes lampejos de racionalidade
A história do Código surgiram, buscando a conservação de
Florestal brasileiro árvores. Essa racionalidade não tinha
Quando invadiram as terras e como preocupação a questão ambiental
águas que compõem o que conhece- ou cuidados com o Brasil especificamen-
mos hoje como Brasil, os portugueses te, mas sim com a sustentação dos planos
e espanhóis se depararam com uma de exploração portugueses, preservando
grande diversidade de povos e manejos espécies florestais para uso marítimo e
dos diferentes biomas que aqui existem. ferroviário, principalmente.
As distintas relações do metabolismo É nesse contexto que a Coroa por-
socioecológico [ver Ruptura do Metabo ­ tuguesa editou diversas Cartas Régias,
lismo S ocioecológico] pré-colombiano principalmente no final do século XVIII,
constituíram territórios sociobiodiver- orientando a conservação de florestas ou
sos. Portanto, não devemos considerar mesmo proibindo o corte de determina-
que existia uma natureza “selvagem”, das espécies com fins importantes para a
“intocada” em nosso país (Diegues, Coroa – é daí que surge o termo “madeira
2008). Ao contrário, cada quilômetro de lei”. Havia também reservas florestais
quadrado de nossos biomas possui al- de propriedade exclusiva da Coroa e al-
gum nível de interação com coletivos gumas iniciativas de planejamento foram
humanos originários e é justamente tomadas depois da chegada da família
essa coevolução ser humano-nature- real em 1808, como por exemplo a cria-
za que produziu os bens comuns que ção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro
conhecemos. – novamente, com fins econômicos, para
A dinâmica implementada pelos in- a compreensão da ecologia de potenciais
vasores, entretanto, estava pautada pela produtos oriundos da flora nacional e
lógica de acumulação capitalista. Esses aclimatação de espécies exóticas, como
inúmeros territórios foram interpretados variedades de chás.
como fonte de lucro para a metrópole Mas será somente às vésperas da
europeia, e, sempre que possível, foram “independência” do Brasil que aparecerá
explorados intensamente. A destruição a essência de uma conservação planejada
ocorreu em todos os biomas, mas foi na das florestas em propriedades privadas.
Mata Atlântica onde encontrou-se a Um dos responsáveis é José Bonifácio de
escala maior (Dean, 2013), que se inicia Andrada e Silva, um brasileiro que es-
com a extração do pau-brasil e alcança tudou em Portugal e tornou-se cientista

231
C Ó D I G O F L O R E S TA L

renomado nas áreas de biologia, geologia os Códigos da Mineração, das Águas, da


e geografia. Ele retornou ao Brasil em Pesca e Florestal são criados, bem como
1819, encontrando o país em uma dramá- os primeiros Parques Nacionais. E nela
tica situação de exploração pela Coroa se organiza de forma inequívoca a ideia
portuguesa, baseada na destruição das das f lorestas como bem de interesse
florestas, no latifúndio e na escravidão. comum, sendo que o Estado poderia
C Figura decisiva no processo de in- inclusive definir áreas de preservação ou
dependência, ele buscou, entre 1821 e de formação de florestas de exploração
1822, aprovar medidas que articulavam mesmo em propriedades privadas.
a questão agrária e florestal, baseando-se A estruturação dos instrumentos es-
fundamentalmente na regularização das tatais para aplicação do primeiro Código
sesmarias produtivas e redistribuição Florestal teve a fragilidade dos períodos
das improdutivas por meio de venda ou anteriores e a exploração das áreas flo-
para colonização de indígenas, negros restais continuou em ritmo acelerado.
e mestiços, em uma espécie de reforma Somente na década de 1950 o debate
agrária. Nas mesmas propostas, colocou articulado entre reforma agrária e con-
a necessidade de que todas essas proprie- servação do solo, das águas e das matas
dades mantivessem um sexto da área possibilitará o retorno da importância do
com bosques preservados. Ou seja, desde tema (Moura, 2010).
a gênese da propriedade privada da terra Na ebulição do período pré-golpe
(que só iria ocorrer com a Lei de Terras empresarial-militar, a sociedade brasi-
de 1850), está colocado que o interesse leira estava consideravelmente amadu-
público é superior ao interesse privado. recida e importantes avanços estavam
Esse movimento lento do Estado ocorrendo sobre a questão ambiental em
(colonial e depois imperial) em frear todo o mundo. O latifúndio estava com-
a devastação acelerada da floresta en- pletamente vinculado a uma perspectiva
contra grande resistência por parte dos de atraso, sendo que as culturas de café e
latifundiários e empresários da época, cana, além do gado, encontravam-se em
embora consolide uma perspectiva de decadência. As terras eram sinônimo de
legislação sobre a questão florestal. No poder, mas o sistema produtivo não ge-
romper do século XX, com o início da rava alimentos nem empregos decentes,
República, os princípios liberais pene- ao mesmo tempo que degradava cada
tram fortemente na sociedade brasileira vez mais o solo e aumentava o desmata-
e ao longo de quase 40 anos vai des- mento. A reforma agrária surgia como
montar não apenas a frágil base legal, possibilidade de desenvolvimento do
mas, fundamentalmente, a já precária país, mas também como perspectiva de
materialidade dessa proteção florestal práticas menos agressivas de produção,
(jurídica e de fiscalização). com conservação do solo e das águas
Durante a era Vargas, no âmbito (Stedile, 2005).
das reformas modernizadoras da Cons- Além destes fatores, os grandes
tituição de 1934, ressurgirá a perspectiva avanços do mundo socialista impunham
de Estado com papel central na questão aos países capitalistas a necessidade de
florestal, impondo aos interesses priva- implementar medidas que abrandassem
dos os interesses públicos.1 Nessa década a voracidade do lucro, formando uma

232
C Ó D I G O F L O R E S TA L

perspectiva de social-democracia, na Além das APPs, há também a Reser-


qual o Estado deveria criar alguns freios va Legal (RL), que seria uma porcenta-
aos capitalistas (Streeck, 2018). Nas gem da área que varia entre 20% e 80%,
Américas, a Revolução Cubana, a força a depender do bioma, onde é proibido o
das organizações populares – como as corte raso, ou seja, o desmate total. Essa
Ligas Camponesas – e o amadurecimento deve ser uma porção da propriedade
do mundo acadêmico aumentavam essa privada na qual a utilização deve ser C
pressão, que inicialmente foi tratada com realizada em sistemas que conservem as
contornos democráticos. características florestais, promovendo
É nesse ambiente que se formam os práticas como o manejo florestal ma-
elementos para a constituição do Código deireiro e não madeireiro, agroflorestas,
Florestal de 1965 (Brasil, 1965). Embora coleta de sementes e frutos, utilização de
publicado já durante o período ditato- plantas medicinais, dentre outros.
rial, sua elaboração foi coordenada por
Osny Duarte Pereira, um importante Destruição do Código Florestal e o
magistrado e jornalista que tinha uma agronegócio do século XXI
visão nacional-desenvolvimentista. Osny, Ao longo de quatro décadas, o Códi-
acompanhado de diversos especialistas, go Florestal passou por inúmeras altera-
buscou articular o que havia de mais mo- ções, normalmente voltadas para o aper-
derno na legislação ambiental do mundo feiçoamento de sua dimensão ambiental
com a tentativa de superação da atrasada e sua atualização às mudanças ocorridas
agricultura brasileira e os interesses priva- na legislação agrária. Sua aplicação tam-
dos que historicamente tanta devastação bém teve crescente importância, com
fizeram no território nacional. destaque para o período após a Eco-92,
A redação possuía caráter produtivo, o que, juntamente à consolidação do
no sentido de manter porções florestais Sistema Nacional de Unidades de Con-
que poderiam ser utilizadas no futuro, servação e diversas políticas públicas,
mas também caráter conservacionista, estruturou enfim uma nova dinâmica
atualizado pelas descobertas científicas do papel do Estado sobre a questão am-
que já ocorriam nas décadas anteriores biental na história brasileira.
ao lançamento do novo código. Essa realidade, embora com mui-
O núcleo do Código Florestal está tas fragilidades, se defrontou com as
no entendimento de que as formações práticas arcaicas do latifúndio, num
florestais nativas são bens de interesse primeiro momento, e, posteriormente,
comum a todos os habitantes do país (ar- com a forma mais contemporânea de
tigo 2º), interesse que está acima de um organização capitalista da agricultura,
possível poder absoluto da propriedade o agronegócio. Buscando consolidar
privada. É nesse sentido que se definem territórios grilados ou ilegalmente des-
as áreas de preservação permanente matados ou mesmo manter a dinâmica
(APPs) como aquelas que devem ser de expansão da fronteira agrícola, os
mantidas em sua composição original, grandes proprietários de terra descum-
protegendo os corpos hídricos – como priram sistematicamente o Código Flo-
nascentes, beiras de rios – e as regiões restal e por vários anos buscaram alterar
com topografia mais propícia a erosões. suas regras em benefício próprio.

233
C Ó D I G O F L O R E S TA L

As condições políticas, econômicas lidade nacional. Nesse sentido, derrotar


e ideológicas favoráveis à investida deci- o Código Florestal tornou-se prioridade,
siva contra o Código Florestal ocorreram pois era o passo decisivo para consolidar
na transição da primeira para a segunda um novo período, onde os avanços legais
década do século XXI por uma conjun- ligados ao campo seriam destruídos. O
ção de fatores. O primeiro fator foi que a Código Florestal, pela sua amplitude
C representação parlamentar do agronegó- temática, extrapolava o debate agrário e
cio alcançou índices históricos (Castilho, mobilizou, historicamente, setores médios
2012), chegando a compor mais da me­ urbanos. Derrotá-lo seria mais difícil –
tade de toda a Câmara dos Deputados no e, portanto, mais importante – do que
mandato 2010-2014. Como o Governo vários marcos legais, como agrotóxicos,
Federal aprofundou sua dependência financiamento e renegociação de dívidas,
do Congresso, no que se chama “gover- demarcação de territórios indígenas e
nabilidade”, o poder da banca ruralista quilombolas e a função social da terra.
se elevou não apenas quantitativa, mas Por último, o fator territorial, que está
também qualitativamente. ligado à expansão da fronteira agrícola.
Os fatores ideológicos estão ligados à Não estamos falando de coisa secundária.
construção da hegemonia do agronegócio O total de Reserva Legal (RL) e Área de
na sociedade brasileira, por meio de uma Proteção Permanente (APP), segundo o
sólida ofensiva midiática e intelectual, que Código Florestal vigente até 2012, era de
buscou arrebatar corações e mentes da so- 326 milhões de hectares. O detalhe por
ciedade em geral e de parte da intelectua­ região está expresso na Tabela 1.
Tabela 1 – Situação da APP e RL por bioma

Biomas APP (Mha1) Reserva Legal (Mha1)


Exigida Déficit Déficit (%) Exigida Déficit Déficit (%)
Amazônia 31 09 29 146 25 17
Caatinga 16 07 44 15 01 07
Cerrado 25 09 36 47 06 13
Mata Atlântica 22 16 73 22 09 41
Pampas 04 02 50 03 01 33
Pantanal 02 0,2 10 03 0,02 01
Total 100 43 43% 236 42 18%
Fonte: Adaptada de Sparovek et al., 2011.
1
Milhões de hectares

O interesse do agronegócio é, pri- mais é do que regularizar seus crimes.


meiro, consolidar juridicamente a ocu- Portanto, a flexibilização da RL e APP
pação ilegal que foi feita historicamente foi a pauta central. Um segundo interesse
em áreas de APP e RL, ou cerca de 85 é criar as condições para avançar sobre
milhões de hectares. Por isso a Confede- parcela dos demais 241 milhões de hec-
ração Nacional da Agricultura sempre tares que estão, segundo a Tabela 1, em
fala em “segurança jurídica”, que nada algum estágio de conservação.

234
C Ó D I G O F L O R E S TA L

Portanto, estamos tratando funda- sa, Greenpeace, Instituto Socioambien-


mentalmente de renda da terra, que o tal, WWF e diversas outras organizações
agronegócio busca se apropriar a partir ambientalistas (Moura, 2014).
desses novos territórios conquistados ou Essas organizações conseguiram en-
legalizados. Estamos discutindo também contrar consensos importantes, como a
a guerra de movimento, à medida que as manutenção das exigências para os gran-
peças do agronegócio avançaram algu- des proprietários, o estabelecimento de C
mas casas no xadrez da luta de classes, uma política nacional de desmatamento
demonstrando força para o conjunto zero, políticas públicas para o desenvol-
da sociedade e impondo suas pautas vimento de agroflorestas em áreas de
(Moura, 2014). RL e de manejo florestal comunitário
madeireiro e não madeireiro. Organiza-
O papel da luta popular ram também uma inédita pluralidade de
e a nova síntese táticas de lutas, passando por marchas,
Curiosamente, apesar de toda a organização de comitês municipais, se-
importância agrária do Código Florestal minários e articulação por meio de redes
que já tratamos nesse verbete, na histó- sociais (Moura, 2014).
ria, sua defesa foi uma pauta principal- Embora o novo Código Florestal
mente de movimentos ambientalistas (Brasil, 2021) tenha sido aprovado por
de caráter urbano. O autoritarismo dos expressivas votações tanto na Câmara
órgãos ambientais estaduais, que ope- quanto no Senado, o simbolismo na
ram de forma violenta e preconceituosa sociedade foi de derrota para o povo e
contra o campesinato, gerou um certo para os bens comuns. Isso se expressou
distanciamento dessa classe social de na grande mobilização pelo “Veta, Dil-
sua defesa, tendo, inclusive, setores que ma” e no sentimento geral de que foi um
se somassem ao agronegócio na defesa ataque ao meio ambiente. Essa vitória
da modificação da lei. ideológica, que confirma a denúncia dos
Porém, a dinâmica do enfrenta- interesses por trás dessa alteração, deve-
mento recente sobre o Código Florestal, -se, em grande parte, a essa mobilização
compreendido não como pauta específi- de frente ampla.
ca, mas como parte decisiva do projeto O debate produzido a partir do en-
de hegemonia do agronegócio, permitiu frentamento potencializou inúmeras
uma reconfiguração das forças políticas iniciativas de agroflorestas, mutirões
que se articularam para defendê-lo. Di- de plantio de árvores, recuperação de
versas iniciativas foram ensaiadas, tendo APPs. As organizações camponesas
como resultado final de maior expressão passaram por um importante processo
o Comitê Brasil em Defesa das Florestas de politização da questão ambiental,
e do Desenvolvimento Sustentável, no incorporando-a em sua leitura da rea-
qual se articularam organizações como lidade, em suas lutas e no cotidiano de
a Via Campesina Brasil, Fetraf, Confe- seus territórios.
deração Nacional das Associações dos Em contrapartida, o Novo Código
Servidores do Incra (CNASI), CUT, Florestal também possibilitou a forma-
Comissão Brasileira de Justiça e Paz, ção das bases nacionais do capitalismo
OAB, Associação Brasileira de Impren- verde. É a primeira vez que o orde-

235
C Ó D I G O F L O R E S TA L

namento jurídico brasileiro tem uma zando por fim as áreas desmatadas. Após
lei nacional que induz diretamente o a aprovação do Código Florestal, o país
cumprimento da legislação ambiental passou a conviver com índices crescentes
por meio de mecanismos de mercado de desmatamento nos biomas Amazônico,
(Packer, 2015). Em seu artigo 41, a lei Pantanal, Cerrado e Mata Atlântica.
institui os marcos do Pagamento de Algumas das consequências desse
C Serviços Ambientais (PSA), retirando avanço das forças destrutivas do capi-
do controle do Estado os mecanismos tal são: crise hídrica, desmatamento
de comando e controle e integra estes e queimadas, poluição atmosférica,
a um mercado global de emissões de redução da biodiversidade e perda das
gases efeito estufa e similares [ver Ca­ camadas superficiais do solo. O outro
pitalismo Verde]. lado da moeda, a financeirização da
A ousadia, porém, foi maior, e os natureza conservada, também avança
legisladores introduziram um mecanismo em sua regulamentação e em políticas
completamente novo. A Cota de Reserva estaduais.
Ambiental (CRA), instituída no artigo A resposta popular vem do cuidado
44, transforma a natureza em título dos bens comuns por meio das práticas
transacionável em bolsas de mercado- agroecológicas. O legado da função so-
rias. Ou seja, a obrigação de respeitar a cioambiental, do qual o Código Florestal
reserva legal por parte do latifúndio pode contribuiu, está presente como elemento
se transformar em uma possibilidade de da atual questão agrária brasileira [ver
ganhos para o capital financeiro. Questão Agrária Brasileira]. A agroeco-
As medidas anunciadas de recomposi- logia e suas diversas formas de manejo do
ção das áreas desmatadas anteriormente ao meio ambiente apresentam uma possibi-
estabelecido na nova lei tampouco foram lidade real de um projeto para o campo
efetivas. Ao contrário, os prazos legais brasileiro que esteja baseado em novas
foram sucessivamente postergados, legali- relações ser humano-natureza.

Referências
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 4.771, de 15 de
setembro de 1965. Institui o novo Código Florestal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l4771.htm. Acesso em: 22 mar. 2021.
______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 12.651, de 25 de
maio de 2021. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis n. 6.938, de 31 de agosto de
1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis n. 4.771,
de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória n. 2.166-67, de 24 de
agosto de 2001; e dá outras previdências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2012/Lei/L12651.htm#art83. Acesso em: 22 mar. 2021.
CASTILHO, A. L. Partido da terra. São Paulo: Contexto, 2012.
DEAN, W. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2013.
DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec/Nupaub-USP, 2008.
MOURA, L. H. G. Legislação ambiental aplicada às áreas de assentamentos da reforma agrária: o
caso do licenciamento ambiental. In: IV Simpósio sobre reforma agrária e assentamentos rurais, 2010,
Araraquara. Anais do IV Simpósio sobre Reforma Agrária e Assentamentos Rurais, 2010.
______. Código Florestal: elementos sobre a expressão ambiental da luta de classes no Brasil. Campo-Ter-
ritório: revista de geografia agrária. Edição especial do XXI ENGA-2012, p. 1-25, jun. 2014.
PACKER, L. Novo Código Florestal & pagamentos por serviços ambientais: regime proprietário sobre os
bens comuns. Curitiba: Juruá, 2015.

236
COMPLEXOS DE ESTUDO

SPAROVEK, G. et al. A revisão do Código Florestal brasileiro. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, v.
89, p. 111-135, 2011.
STEDILE, J. P. (org) A questão agrária no Brasil. v. 3. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
STREECK, W. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018.

Nota
1
É importante aqui não incorrer em maniqueísmos. O interesse público hegemônico era o fortaleci-
mento da emergente burguesia industrial frente às frações mais atrasadas da burguesia agrária e aos
cafeicultores, que demandavam terras recém-desmatadas para implantar seu sistema produtivo. Era C
importante para os industriais o uso minimamente planejado das áreas florestais, principalmente
para a construção de ferrovias e para o abastecimento das fornalhas das fábricas.

COMPLEXOS DE ESTUDO

Valter de Jesus L eite


M ar lene L ucia S iebert Sapelli

Para o entendimento do que sejam gogia ao que foi produzido no processo de


complexos de estudo, estão aqui apre- constituição da proposta do Movimento,
sentados elementos históricos, tanto da desde os anos 1980.
trajetória da construção da proposta de Os complexos de estudo têm sua
educação do Movimento dos Trabalha- origem no leste europeu; compõem
dores Rurais Sem Terra (MST) como da parte da pedagogia socialista soviética,
origem na pedagogia socialista soviética. formulada após a Revolução Russa de
Também estão explicitados as concep- 1917 pela Comissão Estatal Científica
ções, as categorias-síntese e os proces- do Comissariado Nacional da Educação
sos que orientam (e podem orientar) a (Narkompros). Em 1918, o Narkompros,
implementação da referida proposta em diante do desafio de reconstruir o sistema
diferentes contextos e escolas do campo. educacional da Rússia para formação das
A referência da abordagem é uma re- crianças, jovens e adultos em consonância
criação particular que foi feita da noção aos princípios e valores da edificação da
de complexo por uma prática específica, sociedade comunista, publicou a “De-
vinculada ao MST, em escolas do Paraná. liberação do Comitê Central sobre a
Para a leitura do verbete é preciso Escola Única do Trabalho” e a “Declara-
considerar que, apesar de ter as mesmas ção sobre os princípios fundamentais da
bases, a proposta de educação presente Escola Única do Trabalho” (Krupskaya,
nas escolas vinculadas ao MST não é 2017, p. 285-308), as quais embasaram,
homogênea em todo território brasileiro, inicialmente, a constituição das escolas
e que há uma incorporação, em alguns experimentais-demonstrativas, entre elas,
estados, dos elementos da referida peda- as escolas-comunas (Freitas, 2009). Entre

237
COMPLEXOS DE ESTUDOS

os anos de 1918 e 1925 objetivou-se, com central ou ideia” (p. 313). A essência do
estas escolas, fundamentar a elaboração sistema de complexos, não consiste na
dos programas de ensino a serem genera- interdisciplinaridade por si só, “[...], mas
lizados para o sistema escolar na república na ligação dos fenômenos que de fato
dos sovietes. encontram-se na vida, e no estudo destes
No interior das escolas-comunas, os fenômenos em sua complexidade, em suas
C complexos foram construídos como uma interações, no estudo da correlação entre
forma de organizar o currículo escolar/ fenômenos” (p. 313).
plano de estudo de modo que propiciasse O complexo não diz respeito a um
aos estudantes, desde a menor idade, a método de ensino, e sim a uma concepção
apropriação das questões da atualidade, pedagógica (Freitas, 2009), uma unidade
na perspectiva materialista histórica da didática socialista fundamentada no
dialética,1 ou seja, a apreensão da reali- trabalho e sua centralidade na consti-
dade, buscando explicitar suas contra- tuição do ser humano [ver Pedagogia do
dições, compreendendo-as a partir das Trabalho] e enquanto objeto científico a
relações entre o singular, o particular e ser estudado em sua gradativa comple-
o universal, portanto, a partir das suas xidade, desde as relações locais, nacio-
múltiplas determinações. Também que nais e internacionais em interface com
promovesse a exercitação de processos de a experiência da humanidade em seu
auto-organização, tendo o trabalho como desenvolvimento histórico (Programas
categoria de sustentação e como método Oficiais, 1935, p. 32-37).
geral (Pistrak, 2009). Por isso, o complexo organiza o
Inspirado pela teoria marxista, o processo de estudo da natureza e da
sistema por complexos foi desenvolvi- sociedade na mediação e conexão com
do tendo por base o trabalho humano o trabalho. Estas três dimensões são
enquanto um pressuposto ontológico e articuladas no esquema da Comissão
ético-político no processo de socializa- Estatal Científica em três colunas que
ção humana. Em decorrência, concebe organizam o programa de estudo,2 sendo
o trabalho como princípio educativo, na na coluna da esquerda a natureza, na
perspectiva da educação politécnica [ver central, o trabalho e na direita, a socie-
Educação Politécnica], contrapondo-se à dade, “as quais, em conjunto, devem
perspectiva utilitarista de assimilação do refletir a ‘complexidade’ daquela parte
trabalho aos espaços escolares, restrito à da realidade escolhida para estudo – sua
apreensão de técnicas. dialética e sua atualidade, vale dizer,
O complexo baseia-se em “[...] um suas contradições e lutas – seu desenvol-
método científico específico, isto é, um vimento enquanto natureza e enquanto
método que exige o estudo das coisas e sociedade” (Freitas, 2009, p. 36-37).
fenômenos não de forma isolada, mas Em sua essência, o complexo objeti-
em suas inter-relações, nas ligações de va, além de proporcionar condições para
uns com os outros, na sua totalidade, compreender e analisar em perspectiva
complexidade” (Krupskaya, 2017, p. 310). histórica as relações sociais com suas
É “[...] a complexidade particular de um contradições, “[...] atuar para mudar o
fenômeno tomado da realidade e que existente em uma direção determinada,
reúne ao seu redor determinado tema fundamentada pela análise” (Pistrak,

238
COMPLEXOS DE ESTUDOS

2009, p. 122, grifos do autor). O autor Os Complexos de Estudo e a


também entende que, além de conhecer Pedagogia do Movimento
a atualidade, é preciso dominá-la, na A partir de 2011, foi realizado um
perspectiva de transformá-la; eis a im- movimento de estudo de novas obras
prescindibilidade das categorias pedagó- da pedagogia socialista e isso serviu de
gicas da auto-organização e do trabalho suporte para incorporar os complexos
socialmente necessário articuladas pelo de Estudo à proposta, o que permitiu C
trabalho ao estudo da atualidade como construir, considerando a materialidade
a “[...] melhor forma de introduzir as atual, uma nova articulação das cate-
crianças na vida laboral, ligar-se com a gorias centrais do projeto educativo.3
classe construtora, e não apenas enten- A maioria dos elementos já existentes
dê-la, mas viver sua ideologia, aprender foram potencializados e outros incorpo-
a lutar, aprender a construir” (Shulgin, rados. A nova organização da propos-
2013, p. 41, grifos do autor). ta político pedagógica, a partir desse
Tendo por base esses pressupostos, o processo, pode ser vista no esboço (ver
MST, nos seus 35 anos de existência, com Figura 9, adiante, p. 791).
o intuito de aproximar a escola de sua No esboço, uma das partes mostra as
estratégia política, forjou uma proposta bases comuns a todo e qualquer complexo
que incorporou diferentes elementos na que for construído nas diferentes escolas
busca da transformação do seu conteúdo (lado esquerdo do quadro) e a outra, os
e da sua forma. A pedagogia socialista elementos que compõem cada complexo,
russa esteve presente desde o início desse representadas em forma circular. A arti-
processo de formulação da Pedagogia do culação e movimentação dos elementos
Movimento, especialmente com Pistrak que integram a parte comum e a parte
(1981), mas a falta de traduções das obras diversificada da proposta por meio do pla-
do conjunto dos autores russos limitou a nejamento e desenvolvimento do traba-
compreensão da totalidade da proposta lho educativo proporciona a exercitação
naquele momento. teórico-prática dos complexos de estudo
Mais recentemente, o acesso a ou- para atingir os objetivos formativos e de
tras obras de autores do período propor- ensino; por isso, cada elemento da propos-
cionou ao MST avançar na elaboração ta assume centralidade na materialização
pedagógica vinculada aos desafios for- do complexo de estudo. A mera conexão
mativos da luta pela Reforma Agrária dos conteúdos à realidade (porções da
Popular, entre eles, o de massificar mo- realidade) limita-se ao que Pistrak (1981)
dos de trabalho e de vida humana que denominou de “complexos sentados”
possibilitem a reconstrução ecológica ou estéreis, por restringir o processo de
da agricultura e da vida em sociedade, estudo a metodologias livrescas.
combinado ao desafio da formação gera- O complexo de estudo requer a incor-
cional de lutadores e construtores de uma poração desde a concepção materialista
sociedade sem exploração humana, com histórica dialética de sociedade, educação
condições de entender e atuar sobre as e desenvolvimento humano até o exercí-
contradições de seu tempo (Movimento cio e a mudança na forma de planejar,
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, avaliar e desenvolver o trabalho educativo
2013; Caldart, 2015). concatenado aos processos de trabalho

239
COMPLEXOS DE ESTUDOS

real dos estudantes e de auto-organização das bases das ciências, da filosofia e da


interna e externamente à escola, materia- arte, ora pelo trabalho social articulado
lizando os complexos de estudo geradores à auto-organização dos estudantes, no
de ação (Pistrak, 1981). qual proporciona o vínculo da escola de
Uma das bases refere-se ao entendi- modo efetivo com a prática social na luta
mento do MST como o grande educador, pela terra e na produção da vida, por meio
C pois ele é o articulador dos sujeitos num dos processos organizativos, políticos,
processo de luta que educa. A escola do econômicos e culturais.
movimento se insere nesse contexto. Ao Outra base é a organização política
adotar o MST como referência principal, da escola, que diz respeito à gestão demo-
a proposta toma como base inicial os prin- crática plena, que direciona a urgência
cípios filosóficos,3 e pedagógicos,4 forjados de alterar a lógica de poder na escola por
na luta (Movimento dos Trabalhadores meio da horizontalização das relações en-
Rurais Sem Terra, 2005). tre os diferentes sujeitos, compreendendo
Sintonizados aos princípios indica- a escola como um conjunto de relações
dos, a adoção da concepção de educação (Shulgin, 2013).
como processo de formação humana A proposta é implementada a partir
omni­lateral indica que o processo edu- de diferentes tempos educativos, que desde
cativo deve contribuir para desenvolver sua origem no trabalho educativo do MST
as diferentes dimensões humanas: afeti- são organizados compreendendo que a
va, intelectual, política, ética, corporal, escola é espaço intencional de formação
estética, social e organizativa, dentre humana (Movimento dos Trabalhado-
outras. Nesse sentido, “ajudar a formar res Rurais Sem Terra, 2009), por isso,
seres humanos mais plenos e que sejam a importância de diversificar os tempos
capazes e queiram assumir-se como lu- da escola, movimentando as diferentes
tadores, continuando as lutas sociais de dimensões do ser humano para potencia-
que são herdeiros, e construtores de novas lizar a apropriação de conhecimentos e
relações sociais” (Movimento dos Traba- habilidades diversas por meio de oficinas,
lhadores Rurais Sem Terra, 2013, p. 9). pelo trabalho produtivo coletivo, a organi-
As matrizes pedagógicas – trabalho, zação individual e coletiva, a vivência da
cultura, organização coletiva, história mística, o gosto pela literatura e pela arte
e luta social – são categorias-síntese da (Movimento dos Trabalhadores Rurais
proposta educacional do MST e são uma Sem Terra, 2009).
das bases para a organização do trabalho A concepção de avaliação que dá sus-
pedagógico, portanto, orientam também tentação à proposta é processual e diag-
a definição dos objetivos formativos. nóstica; indica a necessidade de acompa-
Ter o trabalho como método geral é nhar sistematicamente a apropriação das
compreendê-lo como atividade huma- bases das ciências, da filosofia e da arte e o
na, como constituidor do ser humano, desenvolvimento das diversas dimensões
como princípio educativo, e exige que humanas, direcionadas pelos objetivos
se estabeleça a conexão entre a teoria e formativos de cada faixa etária que con-
a prática, ora pela dimensão do trabalho templam as dimensões cognitiva, ética,
compreendido como prática social ampla política, corporal, artística, organizativa,
(cultura universal) como objeto de estudo de posicionamento, valores, atitudes e o

240
COMPLEXOS DE ESTUDOS

jeito de ser (Movimento dos Trabalha- requisitos para crescer e desenvolver-se e


dores Rurais Sem Terra, 2013). Trata-se que em nosso caso tem a ver com as gran-
de um processo de análise individual e des contradições da nossa sociedade” (p.
coletiva, que subentende a necessidade 56). Para desvelar as contradições sociais
de crítica e autocrítica. e sua historicidade durante o processo
A partir da proposta dos ciclos de de estudo, faz-se necessário “pesquisar
formação humana nas escolas itinerantes para compreender e compreender para C
do Paraná, que continha esses diversos transformar a si e ao meio” (Movimento
elementos como centrais, foram incorpo- dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
rados os complexos de estudo que não são 2013, p. 23).
a transposição didática da proposta sovié­ Nesse sentido, há a necessidade de
tica, mas sim a incorporação de novos se construir o inventário da realidade que
elementos na proposta do Movimento, possibilita realizar um levantamento, por
que permitem conceber sistematicamen- meio de pesquisa etnográfica do meio
te uma articulação metodológica entre social, natural, econômico e cultural das
conhecimento, atualidade, auto-organi- comunidades nas quais estão inseridos
zação e trabalho socialmente necessário. os estudantes da escola, de modo que os
Cada complexo de estudo, na pro- coletivos escolares conheçam sistematica-
posta do MST, é uma unidade curri- mente o contexto de inserção da escola
cular multifacetada (Movimento dos em suas relações sociais e ecológicas em
Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2013), interface com as determinações locais e
que tem por base os elementos ante- globais (Caldart, 2017). Esse processo é
riormente explicitados; é processo que, necessário para apreender a ligação entre
ao orientar a organização do trabalho a escola e a vida e a estruturação dos
pedagógico, coloca em relação os objeti- Complexos com a definição das porções
vos de ensino: a porção da realidade; as da realidade que movimentará o estudo
bases das ciências, da filosofia e da arte; e o trabalho social.
o trabalho socialmente necessário; as A realização do inventário se dá em
fontes educativas a partir do uso de mé- duas fases. A primeira, organizada a partir
todos em tempos específicos, bem como dos objetivos específicos de cada escola,
da auto-organização dos estudantes e corresponde ao levantamento de informa-
de diferentes formas de agrupamentos ções que podem ser organizadas em blocos
e reagrupamentos dos estudantes. (podem ser referentes a, por exemplo:
A definição de cada complexo é de- recursos naturais, pessoas/famílias, produ-
cisão de cada coletivo, mas deve partir ção, formas de trabalho e sua organização,
dos elementos que se apresentam nos lutas sociais e formas de organização po-
inventários da realidade, construídos em lítica das famílias, escola, ocupações das
cada comunidade; portanto, tem como crianças e jovens fora da escola, dentre
centralidade um dos seus elementos: a outros), a partir de instrumentos, como:
porção da realidade que movimenta as análise de documentos e acervo de fotos já
unidades curriculares. Freitas (2003) indi- existentes, entrevistas, rodas de conversa,
ca que a escola deve formar na atualidade, filmagens, registro fotográfico, observação
entendendo-a como “tudo aquilo que na e outros. Na segunda fase, ocorre a orga-
vida da sociedade do nosso tempo tem nização e sistematização das informações

241
COMPLEXOS DE ESTUDOS

coletadas, o que possibilitará a construção ção é o materialismo histórico dialético,


de sínteses provisórias. Também podem propõe a superação da fragmentação do
ser organizados álbuns de fotografias, conhecimento, mas preserva a especi-
acervos de vídeos e de objetos. Tanto na ficidade de cada área, pois organiza o
primeira como na segunda fase é impor- processo com vistas à compreensão da
tante envolver todos os sujeitos ligados, realidade na relação do singular, parti-
C de alguma forma, ao processo educativo cular e universal.
(Caldart, 2017). A partir da definição da porção da
No processo de construção do inven- ­realidade e das bases das ciências, da
tário, a questão da agroecologia [ver Agro­ filosofia e da arte, são construídos os
ecologia] pode ser potencializada por meio objetivos de ensino que expressam um
da pesquisa de campo, identificando ele- conjunto de valores, capacidades, atitu-
mentos que contribuam para compreen­ des, conceitos, procedimentos a serem
der o processo histórico de transformação desenvolvidos e aprendidos. Isso exige
do território no qual a escola está inserida, também a definição de métodos e tempos
bem como a construção de um mapa específicos, bem como a busca de diver-
da biodiversidade dos agroecossistemas, sificadas fontes educativas presentes no
explicitando os sistemas de produção, o meio, a serem identificadas pelo inven-
trabalho e o uso de tecnologias presentes tário da realidade. A definição desses
nestes (Caldart, 2017). processos pode promover atividades que
Para compreender a atualidade, cada exijam diferentes formas de agrupamentos
complexo traz as bases das ciências, da e reagrupamentos dos estudantes, ou seja,
filosofia e da arte, portanto, elementos não há limite na série, no ciclo, há múlti-
de diferentes disciplinas, mas não obri- plas possibilidades de interação entre eles.
gatoriamente de todas que compõem o O processo de construção do inven-
currículo de cada escola (Movimento dos tário da realidade explicita uma catego-
Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2013), ria importante: o trabalho socialmente
que podem estar articuladas em diferentes necessário (TSN) (categoria incluída à
complexos. Os conceitos que compõem as proposta com a incorporação dos com-
disciplinas na conexão com as porções da plexos), que compreende um impacto
realidade chamam para dentro da escola a social, de intervenção na melhoria da
vida que pulsa na sociedade. Pela prática, qualidade de vida nas suas diferentes
se materializa a interdisciplinaridade, pela esferas. Pode potencializar a relação
ligação dos conhecimentos e aspectos com a comunidade, em particular com
formativos de cada disciplina com pontos outras organizações de trabalhadores
de ancoragem no meio social e natural, (sindicatos, agroindústria, a cooperati-
“criando relações entre a teoria e a prática va, a assistência técnica, o coletivo de
circundante. Não se trata de uma reflexão mulheres e de juventude, entre outros)
sobre uma prática, mas da inserção da e exige a mudança da forma escolar,
escola na prática social” (Movimento tradicionalmente fechada em si mesma.
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Também contribui para que se exerci-
2013, p. 10). te a auto-organização dos estudantes
A base da proposta ainda é discipli- (articulada a vivências que os levem a
nar, porém, como o método de sustenta- praticar a coletividade, a iniciativa, a

242
COMPLEXOS DE ESTUDOS

autonomia, a capacidade de planejar, Assim, com tais mudanças e vin-


trabalhar, bem como de liderar e ser culando-se à agroecologia, as escolas
liderado, habilidades necessárias na luta se transformam processualmente, em
pela transformação social) e propicia termos dos tempos, forma e conteúdo,
aprendizagem de conceitos, desenvol- contribuindo para o desvelamento da
vimento de capacidades, construção de atualidade; o diálogo de diferentes saberes
atitudes e valores necessários à forma- e apropriação do conhecimento historica- C
ção para o trabalho, do mais simples ao mente construído; a criação de espaços
mais complexo. para exercitar relações horizontalizadas
É principalmente a partir desse as- de estudo e trabalho, questionando, in-
pecto que se potencializa a possibilidade clusive, as relações de gênero e as distintas
de a escola incorporar, como orientadora formas de violência aos seres humanos; a
do trabalho pedagógico, também a agroe- participação nas lutas sociais; a inserção
cologia, que representa, na luta originária de novos conteúdos e a potencialização
da Educação do Campo [ver Educação do da relação com a comunidade.
Campo], a mudança na forma de produção Sustentar a organização do trabalho
nas relações e na definição da propriedade pedagógico no inventário da realidade,
da terra sua vinculação. Na articulação portanto, nos elementos da materialida-
com trabalhos socialmente necessários, de, que tem implícitas as relações para a
a escola pode colocar em interação es- produção da vida, inclusive, às vezes, na
tudantes, educadores e comunidade na perspectiva da agroecologia e empreender
perspectiva da agroecologia. Podem ser esforços para compreendê-la dialetica-
exemplos: a proteção das fontes; a cria- mente, exige potencializar processos de
ção de hortas, de agroflorestas; o uso do estudo e de organização para a formação
solo e a produção de alimentos de forma de sujeitos capazes de levar a proposta de
adequada, sem o uso de agrotóxicos; a produção agroecológica para a vida das
classificação do lixo e o aproveitamento comunidades, podendo ou não trans-
dos resíduos orgânicos, a reutilização da formar as relações de produção neste
água, bem como o encaminhamento dos contexto. Entendemos que essa é uma
materiais recicláveis; dentre outros. das muitas contribuições da proposta dos
A partir disso, haverá uma mudança complexos de estudo. Há, portanto, uma
na definição e abordagem dos próprios relação íntima entre a formação agroeco-
conteúdos escolares, fortalecendo, por lógica e a referida proposta.
exemplo, o estudo da história da agri- São caminhos e possibilidades de
cultura; o entendimento do agroecos- avançar e enfrentar o desafio formativo
sistema; da função social da agricultura da escola com nova forma e conteúdo da
no âmbito da produção de alimentos classe trabalhadora do campo e da cidade,
saudáveis; a problematização das rela- de contribuir na luta pela massificação de
ções sociais nos processos de produção, bases científicas às novas gerações para
incluindo as questões da divisão social subsidiar o processo de produção social
do trabalho a partir do gênero; o ques- alicerçado em novas relações sociais e que
tionamento sobre a propriedade privada objetivam a reconstrução e transição para
da terra em detrimento da sua função formas ecológicas e economicamente sus-
social, dentre outros. tentáveis de produzir alimentos e a vida.

243
COMPLEXOS DE ESTUDOS

Referências
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Popular. In: CALDART, R. S.; STEDILE, M. E.; DAROS, D. (org.). Caminhos para a transformação da
Escola 2: Agricultura Camponesa, educação politécnica e escolas do campo. Reflexões desde práticas
da Licenciatura em Educação do Campo. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
______. (org). Caminhos para a transformação da Escola 4: Trabalho, agroecologia e estudo nas escolas
do campo. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
FREITAS, L. C. Ciclos, seriação e avaliação. Confronto de lógicas. São Paulo: Moderna, 2003.
C ______. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito. In: PISTRAK, M. M. (org.) A Es-
cola-Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
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dez. 2007.
KRUPSKAYA, N. K. A construção da pedagogia socialista: escritos selecionados. São Paulo: Expressão
Popular, 2017.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Dossiê MST Escola. Documentos
e estudos 1990-2001. Veranópolis: Iterra, 2005.
______. Pedagogia que se constrói na itinerância: orientações aos educadores. Coleção de Cadernos da
Escola Itinerante. SEED: Curitiba, Ano II, n. 4, Curitiba, PR, nov. 2009.
______. Plano de Estudos. Cascavel: Unioeste, 2013.
PISTRAK, M. Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1981.
______. A Escola Comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
PROGRAMAS OFICIAIS. A educação na República dos Soviets. Trad. de Violeta Sandra. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1935.
SHULGIN, V. Rumo ao politecnismo. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
TONET, I. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013.

Para saber mais


CALDART, R. S. et al. Inventário da Realidade: guia metodológico para uso nas escolas do campo. In:
CALDART, R. S. (org.). Caminhos para a transformação da Escola 4: Trabalho, agroecologia e estudo
nas escolas do campo. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
KRUPSKAYA, N. K. Carta metodológica. Primeira carta: sobre o ensino por complexos. In: A construção
da pedagogia socialista: escritos selecionados. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
SAPELLI, M. L. S.; FREITAS, L. C.; CALDART, R. S. (org.). Caminhos para a transformação da escola
3: organização do trabalho pedagógico nas escolas do campo. Ensaios sobre Complexos de Estudo. São
Paulo: Expressão Popular, 2015.
SAPELLI, M. L. S.; LEITE, V. de J.; BAHNIUK, C. Ensaios da Escola do Trabalho na luta pela terra: 15
anos da Escola itinerante no Paraná. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

Notas
1
Para compreender de forma mais aprofundada os elementos dessa perspectiva, podemos consultar a obra
Método científico – uma abordagem ontológica, de Ivo Tonet, publicada em 2013, pelo Instituto Lukács,
especialmente da página 65 a 126; também o artigo do professor Luiz Carlos de Freitas, intitulado
“Materialismo histórico-dialético: pontos e contrapostos”, publicado nos Cadernos do Iterra (2007).
2
Ver exemplo da matriz com as colunas em Krupskaya (2017, p. 340) ou Programas Oficiais (1935).
3
Destacamos elementos principalmente da reconstrução da experiência dos complexos nas Escolas
Itinerantes e algumas escolas de assentamento do Paraná.
4
São princípios filosóficos: educação para a transformação social; educação para o trabalho e
­cooperação; educação voltada para as várias dimensões do ser humano; educação para/com valores
humanistas e socialistas; educação como processo permanente de formação/transformação humana
(Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2005).
5
São princípios pedagógicos: relação entre teoria e prática; combinação entre processos de ensino e de
capacitação; a realidade como base da produção do conhecimento; conteúdos formativos socialmente
úteis; educação para o trabalho e pelo trabalho; vínculo orgânico entre processos educativos e polí-
ticos; vínculo orgânico entre processos educativos e econômicos; vínculo orgânico entre educação
e cultura; gestão democrática; auto-organização dos estudantes; criação de coletivos pedagógicos
e formação permanente dos(as) educadores(as); atitude e habilidades de pesquisa (Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2005).

244
COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

S ilvio I soppo Porto


C átia G r isa
C
Conceito e delimitação da análise ser uma alavanca para atingir objetivos
Compra pública refere-se ao pro- mais amplos do governo, como estimular
cesso por meio do qual o governo ou a inovação nos mercados de suprimentos,
organizações do setor público buscam usar recursos públicos para apoiar obje-
adquirir serviços, bens e equipamentos tivos ambientais ou sociais e apoiar os
necessários ao seu funcionamento, em mercados internos”. Como argumentam
conformidade com as leis e normas em Morgan e Sonnino (2010), o “prato pú-
vigor (Squeff, 2014; Uyarra; Flanagan, blico” expressa as opções que os gestores
2010). Nesta perspectiva, Thai (2001) públicos e a sociedade fazem em termos
relata que o primeiro regramento de de alimentação e desenvolvimento.
compras públicas foi encontrado na Síria
no período entre 2400 e 2800 a.C. Ainda Contexto internacional
segundo o autor, nos Estados Unidos, os das compras públicas
governos municipais foram precursores Em âmbito internacional, o arranjo
na temática, antes mesmo dos governos institucional dirigido às compras públi-
estaduais ou federal. Somente no início cas de alimentos tende a ser bastante
de 1800 os governos estaduais começa- distinto entre os países, sendo que em
ram a criar órgãos ou departamentos muitos casos o Estado recebe ajuda inter-
responsáveis pelas compras, sendo raras nacional (em especial nos países do Sul
as compras centralizadas. Oklahoma Global), tanto por órgãos multilaterais
foi o primeiro estado a criar, em 1810, como de organizações não governamen-
um órgão centralizado para a realização tais (ONGs). Essas compras podem ser
de compras para todas as agências e dirigidas a públicos distintos, tais como
departamentos do Estado (Thai, 2001). crianças, mulheres e população idosa.
No caso brasileiro, Assis (2015) relata a Além das ações de ajuda humanitária
existência do primeiro regramento para a – em geral, coordenadas pelo Programa
realização de compras públicas em 1828. Mundial de Alimentos (PMA), Agência
Longe de querer dar conta de todas vinculada às Nações Unidas –, as práti-
as problemáticas relacionadas com as cas de compras públicas de alimentos
compras públicas (compras de produtos tendem a ser estabelecidas a partir de
em geral, mecanismos de aquisição etc.), princípios neoliberais. Neste sentido, não
neste verbete discutimos principalmente é considerado um dever do Estado, sendo
a aquisição de alimentos e o papel desse comuns as ações promovidas por ONGs
processo no desenvolvimento. Concor- ou executadas por organizações privadas.
damos com McCrudden (2004, p. 257), Em contrapartida, a partir do final
para quem “as compras públicas podem dos anos 1990 e início dos anos 2000,

245
COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

os países do norte vêm experimentando for Corporate Justice, 2007). Além de


ações de promoção ao desenvolvimento promover o componente ambiental
sustentável, cunhando assim “novos” nas compras públicas, os Estados Uni-
conceitos, como “compras sustentáveis” dos estabeleceram mecanismos para
e “compras públicas verdes” (Soldi, 2018; incorporar nesse mercado empresas
Brammer; Walker, 2011; McCrudden, pertencentes a mulheres e minorias,
C 2004). Em 2002, os países membros da em especial indígenas (McCrudden,
União Europeia assumiram o compro- 2004). Nessa mesma linha, a África do
misso de implementar diretrizes relati- Sul e Canadá adotaram medidas para
vas à promoção das compras públicas promover igualdade de oportunidades
sustentáveis de bens e serviços. Segundo para populações específicas. O Estado
Steurer et al. (2007), cerca de 14 países sul-africano passou a estabelecer, entre
dos 27 Estados-membros da UE haviam o final da década de 1990 e início de
avançado nessa direção, tendo elabora- 2000, uma política afirmativa visando
do planos de ação ou projetos visando incluir a população negra na economia
promover as compras sustentáveis. Isso do país, por meio do estímulo à forma-
ocorreu de forma mais intensa no Reino ção de pequenas empresas, incentivos
Unido, Holanda e Dinamarca, e pos- fiscais, recursos para investimentos e
teriormente houve avanços em vários compras de bens e serviços dessas em-
países, tais como França, Itália, Bélgica presas pertencentes aos negros, rever-
e Alemanha (Brammer; Walker, 2011). tendo em parte o privilégio econômico
Na Itália, legislações de 1999 passaram histórico dos brancos em relação à
a estabelecer a oferta de alimentos orgâ- população negra (Department of Trade
nicos nas cantinas escolares em diálogo and Industry, 2003).
com as tradições e culturas locais, sendo
que, em 2006, 658 cantinas escolares Contexto nacional das compras
ofereciam alimentação totalmente orgâ- públicas de alimentos
nica (Morgan; Sonnino, 2008). Na Es-
lovênia, desde 2012 há regramentos que Entendimento sobre mercado
determinam a aquisição de, no mínimo, institucional e breve histórico sobre as
10% de alimentos orgânicos e as compras compras públicas de alimentos1
nacionais devem seguir o princípio dos Em 2003, o governo brasileiro ino-
circuitos curtos (Soldi, 2018). vou em suas políticas públicas ao criar
Em outras regiões do mundo tam- o Programa de Aquisição de Alimentos
bém foram adotadas medidas seme- (PAA). Por meio dele, o Estado com-
lhantes. Em 2001, o Japão adotou pro- prou alimentos da agricultura familiar
cedimentos legais obrigando os órgãos e distribuiu para equipamentos públicos
governamentais a promover “compras de alimentação e nutrição, e doou para
verdes”. O Canadá implementou o escri- organizações socioassistenciais. A partir
tório de operações governamentais eco- dos aprendizados e resultados positivos
lógicas e passou a estabelecer metas de para a promoção da agricultura familiar
“compras verdes”, inclusão de minorias e da segurança alimentar e nutricional,
étnicas e treinamento de pessoal para em 2009 o governo federal mudou o
atuar nessa área (European Coalition Programa Nacional de Alimentação

246
COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

Escolar (Pnae), estabelecendo que, no organizações, em que o Estado assume


mínimo, 30% dos recursos do Fundo papel central na estruturação das regras
Nacional de Desenvolvimento da Edu- e na realização de compras públicas
cação (FNDE) destinados à alimenta- (Grisa, 2010).
ção escolar devem ser empregados na No entanto, as compras públicas
aquisição de alimentos da agricultura também não são algo novo. No caso
familiar. Conf luente neste sentido e de produtos agroalimentares, há pelo C
viabilizado por meio do PAA, em 2015, menos um século as compras públicas de
o governo institucionalizou o Decreto n. produtos agropecuários são recorrentes
8.473 (Brasil, 2015), que estabelece no no Brasil, ainda que com diversas confi-
âmbito da administração pública federal gurações e objetivos. Na crise econômica
o percentual mínimo de 30% destina- do café, no início do século XX, já se ob-
do à aquisição de gêneros alimentícios servava a atuação de governos estaduais
de agricultura familiar. Estas ações, e, logo em seguida, do governo federal via
somadas a iniciativas emergentes nos compras públicas. A queda dos preços
governos estaduais, colocaram o tema internacionais do café, a valorização
dos mercados institucionais na agenda cambial e a superprodução do café em
governamental, pública e acadêmica. 1906 desencadearam a Primeira Política
Os mercados institucionais tornaram-se de Valorização do Café (Convênio de
uma das principais inovações políticas do Taubaté) que, dentre outras medidas,
período recente. visava elevar o preço do produto e asse-
Contudo, em termos conceituais, gurar a proteção de renda para o setor
mercados institucionais não dizem res- cafeicultor por meio da retirada de parte
peito a algo novo. Seguindo perspectivas da produção do mercado via compras
institucionalistas, pode-se afirmar que efetuadas pelos governos estaduais e a
todos os mercados estão imersos em respectiva formação de estoques. Para
regras, normas e estruturas de governan- auxiliar o setor, estas medidas foram
ça, ou seja, todos os mercados são per­ repetidas em outros momentos e adota-
meados por instituições (Niederle, 2011; das de modo permanente pelo governo
Fligstein; Dauter, 2007; Nee; Ingram, federal a partir de 1924 (Coelho, 2001).
1998). A especificidade da definição de Em 1929, os estoques públicos atingiram
mercado institucional no contexto das o montante de 20 milhões de sacas pro-
políticas brasileiras refere-se ao papel do vocados pelas grandes safras de 1927 e
Estado na construção de mercados, par- 1928, e pela quebra da bolsa de valores
ticularmente na realização de compras de Nova York. Diante deste contexto,
governamentais para serem utilizadas iniciou-se a destruição física do produto
em ações públicas de abastecimento ou (incluída a queima dos estoques), que se
outros fins (Maluf, 1999; Maciel, 2008). estendeu de 1931 a 1944.
Neste contexto, mercado institucional Dando sequência à política de
refere-se a uma configuração específica aquisições públicas, formação de esto-
de mercado em que as redes de troca as- ques e regulação de preços alimentares,
sumem uma estrutura particular, previa- na década de 1940 o governo federal
mente definida por normas e convenções expandiu essas ações para o setor de
negociadas por um conjunto de atores e grãos e outros produtos, com a criação

247
COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

da Comissão de Financiamento da Saps comprava gêneros de primeira


Produção (CFP). A partir de 1965, no necessidade diretamente dos produtores
bojo das políticas de modernização da e os revendia aos trabalhadores a qua-
agricultura, foram adotadas medidas se preço de custo, com um acréscimo
para reformulação e regulamentação da máximo de 10%, que se destinava a
Política de Garantia de Preços Mínimos cobrir a administração das despesas e
C (PGPM). A partir de então, a PGPM do transporte dos produtos” (Fogagnoli,
passou a operar por meio de “dois bra- 2011, p. 14);2 c) auxílio alimentar, que
ços” (Coelho, 2001): os Empréstimos do consistia em fornecimento de alimentos
Governo Federal (EGF) e as Aquisições a trabalhadores desempregados. “O au-
do Governo Federal (AGF). Como um xílio era enviado às casas das famílias
crédito de comercialização, o EGF era necessitadas em caminhões térmicos
oferecido sem opção de venda (SOV) do Saps, ou alugados pela instituição”
e com opção de venda (COV) da pro- (Fogagnoli, 2011, p. 19).
dução para o governo federal (trans- Similarmente aos restaurantes po-
formada em uma AGF) caso os preços pulares do Saps, também podemos citar
dos produtos no mercado, até o final do a compra de alimentos para a oferta em
contrato, não fossem compensadores. restaurantes universitários e na própria
Neste sentido, educação básica. Os restaurantes uni-
O governo interviria toda vez que o versitários emergiram na Universidade
preço de mercado se situasse abaixo do Brasil, localizada no Rio de Janeiro,
do preço mínimo, comprando o ex- na década de 1950, sendo disseminados
cedente. Por outro lado, caso o preço na década de 1970 em virtude da cons-
de mercado estivesse em níveis muito trução de campi universitários em locais
elevados, definido por um critério de afastados do centro das cidades, do au-
preço de intervenção – o Preço de Li- mento do tempo de deslocamento entre
beração de Estoque preestabelecido –, as casas dos estudantes e a universidade,
haveria desmobilização dos estoques.
e do incremento de discentes de outros
(Delgado; Conceição, 2005, p. 27)
locais que não a sede da universidade
Ilustrando outro segmento de com- (portanto, longe de seus familiares)
pra pública de alimentos, citamos as (Haddad, 2013).
ações do Serviço de Alimentação da Ainda para ilustrar outros casos de
Previdência Social (Saps), estabelecido compras públicas, mencionamos três pro-
em 1940 (Fogagnoli, 2011). Como par- gramas nacionais: a) criado em 1977 e
te de uma estratégia de melhoria das mediado pela Companhia Brasileira de
condições de vida dos trabalhadores, o Alimentação (Cobal), o Programa de
Saps contemplava as seguintes ações: Racionalização da Produção de Alimentos
a) restaurantes populares que ofereciam Básicos (Procab) articulava a compra de
refeições a “preços módicos”, visando produtos dos pequenos agricultores e ar-
melhorar a qualidade da alimentação ticulava a destinação destes para as ações
da população (marcada por carências do II Programa Nacional de Alimentação
nutricionais) e promover a educação e Nutrição (Pronan) na região do Nordeste
alimentar dos trabalhadores; b) postos (Bragatto, 2010); b) criado em 1979 como
de subsistência, por meio dos quais “o uma das ações do II Pronan, o Programa

248
COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

de Alimentos Básicos em Áreas de Baixa cupações relativas ao atendimento da


Renda (Proab) viabilizava a compra de diversidade socioeconômica e cultural
alimentos de áreas rurais do Nordeste destas categorias sociais; b) de compras
(principalmente pequenos agricultores) e públicas de um único produto e de
destinava à comercialização subsidiada ao apoio a cadeias produtivas, estimula-se
pequeno varejo localizado na periferia das a diversificação dentro das unidades de
grandes cidades nordestinas (Petry, 1993);3 produção, por meio da comercialização C
c) implementado em 1993 como emergen- de um conjunto variado de produtos; c)
cial e incorporado no Programa Comuni- de aquisições que poderiam envolver
dade Solidária em 1995, o Programa de grandes distâncias e amplos mercados
Distribuição Emergencial de Alimentos (ainda que com repercussões no espa-
(Prodea) articulava a oferta de alimentos ço local por meio da interferência na
presentes nos estoques públicos com a regulação dos preços), promove-se os
distribuição de cestas básicas à população circuitos curtos de comercialização e
em situação de vulnerabilidade social. a aproximação entre produção e con-
Ainda que os exemplos citados re- sumo; d) de aquisições de produtos de
presentem diferentes institucionalidades “qualquer lugar”, sem preocupações com
de compras públicas, o PAA e o PNAE articulações entre o local de produção
apresentam “novidades” em relação a e o lugar de consumo, valoriza-se os
eles. Em diversos casos mencionados, tra- produtos do “lugar”, relacionados com
tava-se de compras públicas de um único a cultura produtiva e alimentar regio-
produto, visando a sua regulação de nal; e) de aquisições que não tinham
preço e atendendo a pressões de grupos preocupações com sistemas produtivos
de interesse, notadamente situados no e modelos tecnológicos passa-se a esti-
âmbito da produção e comercialização; mular a agroecologia; e, f) de aquisições
em outras situações, o objetivo principal com foco exclusivo no produtor ou no
consistia em promover o acesso à alimen- consumidor, passa-se a promover as
tação aos consumidores (trabalhadores, reconexões entre produção e consumo
universitários, escolares ou à população e relações virtuosas de fortalecimento
em situação de vulnerabilidade), sem da segurança alimentar e nutricional no
preocupações com a origem dos ali- contexto do território.
mentos e suas repercussões no âmbito Deste modo, ainda que as compras
da produção. públicas não sejam “novidades” no pe-
Diferindo e qualificando as com- ríodo recente brasileiro, as mudanças
pras públicas, o PAA e o PNAE pro- provocadas pelos “novos mercados insti-
vocam mudanças nessa trajetória: a) tucionais” são demarcadoras de mudan-
de aquisições públicas de “qualquer” ças expressivas na trajetória destes. Para
produtor rural brasileiro ou empresa, além das compras públicas atenderem ao
passa-se a beneficiar a agricultura fami- cumprimento de missões governamen-
liar, os assentados da reforma agrária, tais ou necessidades técnicas, passa-se
os povos indígenas, as comunidades a articular o potencial econômico dessa
quilombolas e os demais Povos e Comu- demanda com outros objetivos sociais,
nidades Tradicionais (PCTs) [ver Povos ambientais e culturais associados ao
e C omunidades Tradicionais], com preo- processo de desenvolvimento.

249
COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

Algumas considerações sobre PAA e derais da agricultura familiar, em detri-


PNAE no período recente (2011-2017) mento de outras modalidades do PAA
Ao longo de sua trajetória, o PAA (compra com doação simultânea, forma-
sofreu uma série de ajustes, em especial ção de estoques e compra direta), o que
a partir da modalidade da compra insti- repercutiu na própria sustentação políti-
tucional, regulamentada em 2012, com ca e financeira desse programa. Em 2017,
C a finalidade de atender as demandas foram aplicados no programa apenas 21%
regulares de consumo de alimentos, do volume dos recursos financeiros (R$
por parte da União, dos estados, do 124,7 milhões) executados em 2012 (ano
Distrito Federal e dos municípios. O de maior execução do PAA) (R$ 586,6
que justificou a criação dessa moda- milhões de reais), atendendo a 18,7 mil
lidade foi a expectativa de abertura famílias agricultoras (enquanto em 2012
de novos espaços para a agricultura foram 119,9 mil) (Companhia Nacional
familiar comercializar sua produção de Abastecimento, 2018; 2013).
por meio do mercado institucional, com Ademais, é importante considerar
vistas a abastecer parte da demanda que as repercussões produzidas pela
da rede de restaurantes universitários compra institucional podem não ser
e hospitalares, assim como as compras as mesmas que o PNAE e demais mo-
realizadas pelos órgãos das Forças Ar- dalidades do PAA. De modo geral, as
madas. Essa iniciativa buscava ainda compras institucionais (por envolverem
estimular os estados e municípios a grandes volumes e produtos menos
adotar o mesmo procedimento a partir diversificados) tendem a incorporar
do uso das dotações orçamentárias organizações da agricultura familiar
próprias destinadas à compra de ali- com maior acesso ao mercado formal
mentos (Porto, 2014). Por orientação de alimentos, contemplando principal-
do Ministério do Desenvolvimento mente médias e grandes cooperativas
Social (MDS), a Companhia Nacional (Porto, 2014). Neste contexto:
de Abastecimento (Conab) também O processo de construção social do
passou a utilizar essa modalidade para mercado, que foi um dos grandes
aquisição dos alimentos destinados à avanços do Programa, tende a per-
composição das cestas de alimentos der relevância. A tônica do mercado
que vão para acampados, indígenas e local, o processo de fortalecimento
quilombolas nos anos de 2013 e 2014. do tecido social, a promoção das
Em 2015, como já comentado, houve relações sociais entre as organiza-
uma determinação para que todos os ções que fornecem os alimentos e as
que os consomem estão perdendo o
órgãos federais, a exemplo do PNAE,
foco e deixando de ser a prioridade.
passassem a adquirir pelo menos 30%
(Porto, 2014, p. 115-116)
das compras de gêneros alimentícios
oriundas da agricultura de base fami-
liar a partir do uso da modalidade de Perspectivas das compras
compra institucional. públicas de alimentos
Desde então, o PNAE e a compra Dialogando com crescente lite-
institucional tornaram-se os principais ratura internacional sobre compras
instrumentos de compras públicas fe- públicas sustentáveis, que reivindica

250
COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

a integração de elementos sociais e para as organizações sociais, vinculadas


ambientais nas compras governamen- à agricultura familiar e camponesa, se
tais (Soldi, 2018; Brammer; Walker, desafiarem a ampliar as alternativas
2011), entendemos que os instrumen- na perspectiva da construção social de
tos de compras públicas de alimentos mercados e mudanças nos padrões de
brasileiros (PAA, PNAE, modalidade produção e consumo em âmbito ter-
compra institucional e outros possíveis ritorial. Essas alternativas prescindem C
mercados) deveriam ser utilizados como de criatividade e fortalecimento de
ferramentas para a promoção do desen- mecanismos de reciprocidade entre os
volvimento rural, em bases sustentáveis, diferentes atores que atuam no urbano
sobretudo promotora da agroecologia, e rural, com a perspectiva de contri-
da diversidade da agricultura familiar buir para o estabelecimento de uma
e do consumo de uma alimentação sau- nova ordem alimentar. Cita-se, como
dável. Nesse sentido, se faz necessário exemplo, a articulação com pequenos
ampliar os recursos, em especial para supermercados, restaurantes, chefs de
os pequenos municípios, pois nestes cozinha, relação direta com consumido-
espaços rurais há maior dificuldade para res (feiras, cestas de alimentos e outras)
estabelecer dinâmicas de articulação e demais alternativas que valorizam a
entre produção e consumo. origem social dos alimentos, a descon-
Por fim, em que pese a relevância centração econômica, a valorização da
das compras governamentais, é impor- biodiversidade e promoção da comida
tante destacar o quanto é estratégico de verdade de cada território.

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COMPRAS PÚBLICAS DE ALIMENTOS

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Notas
1
Partes deste texto já foram discutidas em Grisa; Porto (2015).
2
Conforme Fogagnoli, (2011, p. 14), “segundo o argumento do governo, os Postos beneficiariam tanto
os trabalhadores, enquanto consumidores, quanto aos produtores e fornecedores dos gêneros, que
teriam seu mercado garantido e suas atividades desenvolvidas. Desse modo, argumentavam, os Postos

252
CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO

de Subsistência seriam uma obra completa por beneficiar tanto os trabalhadores quanto a economia
nacional”.
3
Os preços finais ao consumidor foram elaborados considerando margem de 7% para a Cobal (custos
de logística e distribuição) e 11% para varejista sobre o preço de aquisição dos bens dos pequenos
agricultores (Petry, 1993).

CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO

E ugênio A. F er r ar i
Nívia R egina S ilva
M árcio G omes da S ilva

Ao tratar do tema conhecimento periência social, por meio da relação do


agroecológico, situamos a concepção trabalho, que o ser humano transforma
de agroecologia na materialidade dos a realidade e, “atuando sobre a natureza
diferentes tempos/espaços em que se externa e modificando-a, ao mesmo
constrói o conhecimento, bem como tempo modifica sua própria natureza”
a diversidade de sujeitos sociais e co- (Marx, 2013, p. 211). Nesse sentido, o
letivos envolvidos nessa construção. trabalho [ver Trabalho] é um elemento
Destacamos a importância da intera- fundante da formação humana, ou seja,
ção entre diferentes sujeitos (técnicos/ do ser social.
as, agricultores/as, pesquisadores/as, No que se refere à agricultura, histo-
estudantes) na produção, divulgação e ricamente o ser humano desenvolveu, a
uso do conhecimento produzido nessa partir da interação com a natureza, um
interação. Traçamos alguns princípios repertório de conhecimentos ecológicos
que ajudam a orientar as diferentes sobre os processos produtivos que con-
práticas estabelecidas em diferentes figuravam estratégias de usos múltiplos
tempos/espaços de construção do co- dos recursos naturais. Nesse contexto,
nhecimento agroecológico (ensino, o trabalho era marcado por técnicas de
pesquisa, extensão e processos educa- manejo das paisagens que garantiam a
tivos desenvolvidos por movimentos reprodução da unidade produtiva. Essa
populares). lógica permanece na agricultura cam-
Muitas vezes, pensamos o conhe- ponesa, na forma como se estabelece
cimento como algo dado e produzido a relação ser humano-natureza nesse
previamente, distante de nós, como algo tipo de agricultura e, em certa medida,
externo que possui uma superioridade garante a reprodução socioeconômica e
inquestionável. Mas o processo de cons- sociocultural das famílias.
trução do conhecimento se dá na ação Entretanto, esse modo de apro-
transformadora da realidade. É na ex- priação do ecossistema presente na

253
CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO

agricultura tradicional ou camponesa quanto ciência, prática e movimento


se modifica, principalmente a partir (Wezell et al., 2009). Como ciência,
da revolução industrial e científica. À a agroecologia se configura em um
medida que o capitalismo se efetiva e paradigma multidisciplinar, que tem
“integra” a agricultura no processo de seus fundamentos científicos desenvol-
reprodução do capital, se modificam vidos a partir dos estudos vinculados
C também essas relações de produção (ser à ecologia, botânica e outras áreas, a
humano-natureza) e, consequentemente, partir de agriculturas tradicionais e
as formas de produção de conhecimento. camponesas. Foi por meio do diálo-
Um conhecimento que era produzido e go entre cientistas e camponeses, na
compartilhado pela cultura, pela relação diversidade expressa nesses modos de
íntima com os ciclos ecológicos se artifi- vida e de técnicas utilizadas na agri-
cializa, se torna mercadoria. cultura tradicional, que se elaboraram
É a partir da expansão da agricultu- os fundamentos científicos da agroeco-
ra capitalista, marcada historicamente logia (Altieri, 2012).
pela modernização da agricultura, que Como prática, a agroecologia res-
se constitui a forma hegemônica de se significa práticas tradicionais de mane-
fazer agricultura. A produção de conhe- jo dos agroecossistemas. Essas práticas
cimento nesse contexto é marcada pela reúnem características em seu interior
artificialização, pela padronização, pelo que são fundamentais na produção
uso de insumos químicos, mecanização, do conhecimento. A interação ser
por monoculturas, em contraponto à humano-natureza, estabelecida nessas
agricultura camponesa. Essa agricultura formas de agricultura em diferentes
tem arraigado na cultura e nos modos de biomas, é um princípio ecológico e
vida um repertório específico de conhe- educativo importante e nos serve como
cimento acerca do funcionamento dos referência de produção de conheci-
agroecossistemas [ver Agroecossistemas]. mento. Também orienta a elaboração
É a partir dessa contradição que se de técnicas e tecnologias adaptadas às
constitui a agroecologia como ciência, especificidades locais.
prática e movimento. A partir dessa Cabe realçar o papel das mulheres
concepção se estruturam diferentes camponesas, portadoras legítimas de
tempos/espaços de produção de co- conhecimentos agroecológicos que
nhecimento. Seja na estruturação de lhes permitem captar o potencial dos
processos de intervenção social, seja na agroecossis­t emas com os quais con-
conformação de pesquisas científicas, o vivem há gerações. Destaca-se um
pressuposto é que esse conhecimento significativo conhecimento sobre os
seja compartilhado e, ao mesmo tempo, recursos genéticos e fitogenéticos,
desenvolva processos sociais capazes de assegurando por meio de sua atividade
promover sistemas agroecológicos. produtiva as bases para a segurança e
soberania alimentar [ver S oberania e
Concepção de agroecologia e S egurança A limentar].
conhecimento agroecológico Como movimento, a agroecologia
Podemos compreender a dimensão está associada à luta pela construção
epistemológica da agroecologia en- de um projeto de campo no qual a so-

254
CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO

cialização da propriedade da terra (e a Nessa perspectiva, alguns compo-


reforma agrária popular), a diversidade nentes são apresentados como princí-
cultural dos povos do campo, as dife- pios, como uma forma de orientação
rentes formas de trabalho camponês, a teórico-prática de produção do co-
luta das mulheres e a construção social nhecimento a partir do enfoque da
de mercados se colocam como pautas agroecologia. Podemos destacar duas
e temas nos processos de construção principais: a interação entre diferentes C
de conhecimento. Essa dimensão de- sujeitos (técnicos/as, agricultores/as,
monstra que a agroecologia é parte pesquisadores/as, estudantes) e a divul-
integrante da ação política, e das lutas gação, acesso e uso do conhecimento
contra os processos de opressão do produzido a partir dessa interação.
capital e do agronegócio. Para tanto, pressupõe-se uma forma
de produção científica que deva ser
Processo de produção e participativa, e permita, a partir da
disseminação do conhecimento práxis agroecológica, compreender que
agroecológico existem outros critérios de validação,
A partir dessa concepção de outras formas de pensar, de organizar
agroeco­logia, é possível adentrarmos e sistematizar o conhecimento (Arroyo,
na materialidade dos processos sociais 2014). Para que isso ocorra, é necessária
na qual o conhecimento agroecoló- uma mudança nas relações sociais de
gico é produzido. O termo “constru- produção científica.
ção e disseminação do conhecimento Nesse sentido, os sujeitos da pes-
agroeco­l ógico” vem sendo utilizado quisa devem ser compreendidos como
para se referir a um conjunto de práti- pesquisadores/as experimentadores/
cas desenvolvidas por organizações da as, como sujeitos de conhecimento. O
sociedade civil, movimentos populares, conhecimento produzido nessa relação
universidades e institutos de pesquisa deve ser acessível, de forma que con-
e extensão rural, junto à agricultores/ tribua para mudanças profundas nos
as. Para a Associação Brasileira de sistemas produtivos e na ampliação das
Agroecologia (ABA-Agroecologia), o práticas agroecológicas.
termo é utilizado: Para a Associação Brasileira de
[...] para referir-se a processos de Agroecologia (ABA), a definição a
produção e disseminação coletiva respeito da construção e disseminação
de novos conhecimentos sobre a do conhecimento agroecológico “[...] se
gestão dos agroecossistemas que faz mediante a revalorização dos saberes
buscam, tanto quanto possível, locais sobre o uso e manejo dos recursos
mobilizar a efetiva participação naturais e sua integração como os sabe-
de profissionais de distintos ramos res de origem acadêmica” (Associação
do saber científico acadêmico e de Brasileira de Agroecologia, 2007, p. 9).
agricultores/as, além de promover
Nessa definição, destaca-se a “si-
uma maior integração entre as ações
nergia entre cultura e ciência” (As-
de ensino, pesquisa, assistência téc-
nica e extensão rural. (Associação sociação Brasileira de Agroecologia,
Brasileira de Agroecologia, 2007) 2007, p. 9), a relação entre uma forma
de conhecimento ancorada na cultura

255
CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO

camponesa, mobilizada para o manejo sim de construir juntos as soluções


dos agroecossistemas e a relação desse aos desafios socioecológicos que se
conhecimento na elaboração de funda- apresentam.
mentos científicos. Pressupõe-se, nessa Partindo do pressuposto de que as
definição, que a partir de metodolo- experiências concretas dos sujeitos do
gias participativas é possível favorecer campo sobre manejo, os processos or-
C a “criação de canais horizontais de ganizativos, a construção de mercados,
diálogo entre os conhecimentos dos/ dentre outros são fontes de saberes,
as agricultores/as e dos/as técnicos/as” podemos estabelecer alguns aspectos
(Associação Brasileira de Agroecologia, orientadores de construção e disse-
2007, p. 9). minação do conhecimento agroeco­
Portanto, na produção do conhe- lógico. São eles: i) organização das
cimento agroecológico, destacam-se intervenções sociais a partir da reali-
alguns princípios, tais como: i) o diálo- dade vivida pelos sujeitos do campo; ii)
go de saberes, ou seja, a relação entre reconhecimento das iniciativas locais
diferentes formas de conhecimento; ii) e das formas sócio-organizativas, de
os princípios ecológicos da agricultura, trabalho coletivo, como forma a oti-
do qual se tem o entendimento das in- mizar o uso dos recursos locais; iii) a
terações do ecossistema que dão suporte compreensão de que a interação entre
para a elaboração de práticas susten- os/as agricultores/as, que também são
táveis; iii) os métodos participativos portadores de conhecimento, pro-
como ferramenta, como instrumento duz um conhecimento novo, que em
que permite o diálogo entre técnicos/ ­diálogo com o conhecimento científico
as e agricultores/as; e entre agriculto- pode contribuir para a superação das
res/as. Esses princípios orientarão as problemáticas locais.
diferentes práticas estabelecidas em No âmbito do ensino (escolar e não
diferentes tempos/espaços de constru- escolar), temos processos relacionados
ção do conhecimento agroecológico a formações estruturadas de cursos
[ver Educação Popular em Agroecologia; superiores, cursos técnicos, escolas do
Metodologias Emancipatórias]. campo, centros de formação e cursos
Também no âmbito da chamada não formais, além da agroecologia como
“extensão rural”, após uma elaboração prática e como ciência tomando forma
crítica do processo de difusão de tecno- de currículo, de complexos de estudos,
logias implementadas pela Revolução de temas geradores. Nesse sentido, algu-
Verde [ver Revolução Verde], o enfoque mas contribuições são importantes para
agroecológico resultou em um enten- pensarmos a construção e disseminação
dimento de que o conhecimento local do conhecimento agroecológico no
é fundamental na construção e disse- ambiente acadêmico/escolar.
minação do conhecimento agroeco­ Compreendemos que a educa-
lógico, ou seja, a realidade vivida pelos ção em agroecologia [ver Educação em
camponeses e camponesas deve mediar Agroecologia] pode ter como referência
o processo educativo. Portanto, não se importante a Educação do Campo,
trata de difundir conhecimentos para seja pelas experiências das escolas do
alguém que se supõe não detê-los, mas campo, seja por processos formativos

256
CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO

no âmbito dos movimentos populares, lógica, estes processos se articulam e se


uma vez que: entrecruzam, são indissociáveis. Assim
No plano da práxis pedagógica, a como são indissociáveis a teoria e a
Educação do Campo projeta o futuro prática, também é a agroecologia como
quando recupera o vínculo essencial ciência, prática e movimento.
entre a formação humana e a produ- No âmbito dos movimentos po-
ção material da existência, quando pulares, podemos dizer que há um co- C
concebe a intencionalidade educa- nhecimento agroecológico produzido
tiva na direção de novos padrões de não só nas dinâmicas organizativas dos
relações sociais pelos vínculos com movimentos de camponeses e de popu-
novas formas de produção. (Caldart,
lações tradicionais, mas também no que
2012, p. 263).
se denomina como “movimento agroe-
Há princípios pedagógicos que cológico” no Brasil. Um movimento que
podem orientar a construção do co- tem uma identidade coletiva que se con-
nhecimento agroecológico: i) a inter- trapõe a sujeitos políticos que constroem
disciplinaridade como fundamento um modelo de desenvolvimento baseado
epistemológico básico que materializa no agronegócio. Esse movimento tem
a complexidade; ii) a valorização do contribuído para organizar e conscien-
trabalho pedagógico partilhado/coleti- tizar a sociedade a partir de sua própria
vo; iii) a formação científica e teórica experiência, articulando um projeto de
articulada à prática e ao trabalho social- vida e de sociedade no qual a agroecolo-
mente necessário; iv) a pesquisa como gia ocupa um lugar de destaque.
constituinte do processo educativo. O conhecimento gerado no seio
A compreensão do trabalho como deste movimento tem sido construído
princípio educativo (compreensão do a partir de uma práxis política inova-
processo de produção da existência em dora assentada na realização de leituras
geral e em particular dos camponeses) compartilhadas sobre os conf litos e
pode orientar a elaboração de conteúdos projetos em disputa no campo brasileiro.
curriculares (de escolas e universidades) Essas leituras são feitas a partir da sis-
e de processos formativos no âmbito dos tematização participativa de experiên­
movimentos populares. Dessa forma, as cias que evidenciam a contribuição da
bases científicas da agroecologia, bem agroecologia no importante papel que
como os processos sócio-organizativos a agricultura familiar camponesa e
dos camponeses, podem ser apreendidas populações tradicionais cumprem para
em um vínculo direto com a realidade o conjunto da sociedade.
agrária na qual estão inseridos. Os pro- Produz-se um entendimento coleti-
cessos de trabalho no campo são pilares vo a partir da realização de encontros,
essenciais do projeto educativo voltado caravanas agroecológicas e culturais,
para a construção e disseminação do jornadas de agroecologia, feiras de tro-
conhecimento agroecológico. cas de sementes, realizadas nos âmbitos
Apesar de termos abordado a pes- local, regional e nacional, dentre outras
quisa, a “extensão” e o ensino como atividades. Dessa forma, se produz conhe-
tempos/espaços distintos, é preciso des- cimentos relacionados tanto à prática da
tacar que, em uma abordagem agroeco­ agroecologia (de manejo, comercialização

257
CONHECIMENTO AGROECOLÓGICO

etc.) quanto a aspectos metodológicos e territórios, da mesma forma que pode


de ação política (ação política de enfren- garantir autonomia, qualidade de vida,
tamento e diálogo com a sociedade). renda e segurança alimentar.
O movimento agroecológico con- Em síntese, o conhecimento
segue, a partir de sua ação, ampliar a agroeco­lógico não está dado, ele está em
esfera pública de debate sobre os rumos permanente construção. E se constrói
C do desenvolvimento do campo para o a partir da relação dos seres humanos
Brasil e demonstrar para a sociedade a com a natureza, por meio de práticas
importância de apoiar a agroecologia. de manejo e de processos de trabalho
Por meio desse movimento, a sociedade vinculados à agricultura camponesa
toma conhecimento sobre os conflitos em articulação com os conhecimentos
socioambientais e as propostas de su- socialmente produzidos.
peração desses conflitos. São diferentes É a partir dessa referência que se
temas mobilizados e debatidos junto ao constituem os princípios epistemológi-
conjunto da sociedade. cos da agroecologia, que são compar-
A agroecologia como bandeira de tilhados por uma relação de produção
luta de diferentes movimentos popu- científica que considera os diferentes
lares revela que a superação do desen- tipos de saberes presentes no campo e,
volvimento capitalista do campo requer ao mesmo, tempo questiona a produção
transformações em diferentes âmbitos. científica dominante.
Transformações que, para alcançar No âmbito da extensão rural, o
escala e abrangência, necessitam de po- conhecimento agroecológico se produz
líticas públicas. E uma dimensão impor- por meio de um processo dialógico, no
tante no crescimento da agroecologia qual se estabelecem relações horizon-
no Brasil foi justamente a necessidade tais entre os diferentes sujeitos e formas
de construir e implementar políticas de conhecimento.
públicas de promoção da agroecologia. No âmbito do ensino, a construção
A partir de muita pressão e incidência do conhecimento em agroecologia tem
dos movimentos populares do campo, referências na Educação do Campo, nos
especialmente das mulheres agriculto- dispositivos pedagógicos que vinculem
ras, foram formuladas e implementadas os processos vividos pelos camponeses/
políticas públicas que contribuíram para as às bases científicas da agroecologia.
o fortalecimento da agricultura familiar Para a efetiva ampliação da agroeco-
e dos povos e comunidades tradicionais. logia e superação do modelo de agricul-
Houve, neste processo de incidên- tura capitalista, que tem sua expressão
cia, a construção e disseminação de no agronegócio, a construção e dissemi-
conhecimentos sobre a realidade vivida nação do conhecimento em agroecologia
por camponeses/as, o que permitiu se dá no âmbito dos movimentos popula-
a elaboração de programas e ações res. Esses movimentos são fundamentais
voltadas às necessidades concretas das para incidência em políticas públicas
populações, adaptadas aos contextos voltadas para as populações do campo e
socioculturais e ecológicos locais, exe- para o diálogo com o conjunto da socie-
cutadas por organizações da sociedade dade sobre o entendimento do porquê
civil. Isso gerou um grande impacto nos devemos apoiar a agroecologia.

258
CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

Referências
ARROYO, M. G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Vozes, 2014.
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lógico. Brasília-DF: ABA, 2007.
ALTIERI, M. Agroecologia: as bases científicas para uma agricultura sustentável. São Paulo/Rio de Janeiro:
Expressão Popular/ASPTA 2012.
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Rio de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular, 2012.
MARX, K. O capital: Crítica da Economia Política: livro I. 31a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, C
2013, p. 211- 231.
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Agronomy for Sustainable Development. v. 9, n. 4, p. 503-515, 2009.

Para saber mais


PETERSEN, P. e DIAS, A. (org.) Construção do conhecimento agroecológico: novos papéis, novas identida-
des. Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia. Articulação Nacional de Agroecologia, jun. 2007.
REVISTA AGRICULTURAS: Experiências em Agroecologia. Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, 2013. Cons-
trução Social dos Mercados. Disponível em: http://aspta.org.br/revista/v10-n2-construcao-social-dos-
-mercados/. Acesso em: 22 mar. 2021.
Outros materiais de apoio (inclusive vídeos) podem ser encontrados nos seguintes sites: ASPTA. Dis-
ponível em: http://aspta.org.br/revista-agriculturas/; Acesso em: 22 mar. 2021.
Agroecologia. Disponível em: http://www.agroecologia.org.br/; Acesso em: 22 mar. 2021.
Associação Brasileira de Agroecologia. Disponível em: http://aba-agroecologia.org.br/wordpress/proje-
to-neas/varal-de-saberes/. Acesso em: 22 mar. 2021.

CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

Paulo A ndr é Nieder le


Julia n P er ez-C assar ino

Sem mercados não há agroecologia! compreensão. Segue a isso a discussão dos


Esta frase pode soar como uma heresia. principais referenciais teóricos para uma
De fato, ela é exatamente isso, pois con- análise não economicista dos mercados.
traria as doutrinas estabelecidas tanto Por fim, apresentamos algumas pistas para
por alguns economistas quanto por certos uma agenda de pesquisa sobre mercados
movimentos sociais. O objetivo deste ver- e agroecologia.
bete é precisamente argumentar por que A agroecologia já se tornou muito
os mercados e, mais especificamente, os mais do que uma ciência, uma prática
processos de construção social dos mer- e um movimento social. Nos termos de
cados, são tão essenciais para a agroeco- Karl Polanyi (1980), como um dos prin-
logia. Para tanto, primeiro apresentamos cipais teóricos da formação dos mercados
a compreensão de agroecologia que nos modernos, poderíamos dizer que a agroe-
orienta nesta reflexão. Em seguida, discu- cologia se tornou expressão de um amplo
timos o papel dos mercados em face desta “contramovimento” social ao modo como

259
CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

o capitalismo produziu um processo de apesar de simplória, responde por um dos


“desenraizamento” da economia em rela- grandes pilares de sustentação do que
ção ao conjunto de instituições, valores e hoje denominamos de neoliberalismo, a
crenças que organizam as sociedades. Em ideia de que a suposta livre concorrência
outras palavras, a agroecologia se tornou pode ser a base de sustentação da eco-
uma espécie de paradigma ou referencial nomia global, sendo uma das principais
C alternativo àquele que foi imposto pelos justificativas para a redução do papel
atores dominantes no moderno sistema do Estado, deixando que as “forças do
agroalimentar, tais como as corporações mercado” regulem a economia.
transnacionais, os fundos de investi- Porém, nada mais distante da defini-
mentos e as redes de supermercados [ver ção desses mercados do que a ideia de um
Impérios Alimentares]. mecanismo abstrato e impessoal regido
Neste sentido, a agroecologia não é por uma lógica “racional”. Mercados são
apenas uma alternativa de produção agrí- espaços sociais concretos, erigidos pelas
cola, e tampouco se restringe a um ou ou- mãos visíveis de sujeitos sociais reais,
tro movimento social. Ela apresenta uma portadores de interesses, mas também
alternativa societária de transição para o de valores, crenças e ideais. E isso não
conjunto do sistema agroalimentar. E é é válido apenas para os mercados ditos
por isso que sem mercados não há agroe- “alternativos”. Todos os mercados são
cologia. Essa transição civilizatória para espaços sociais que operam com lógicas
novos modelos de produção e consumo muito distintas do que imagina a econo-
passa necessariamente pela construção mia neoclássica. Isto significa que não
de novos espaços de troca; mercados nos apenas as feiras livres, mas também as
quais as relações econômicas não são negociações nas bolsas de valores estão
baseadas prioritariamente no interesse imersas em relações pessoais, morais e
utilitário dos agentes envolvidos. Essa políticas, ou seja, o mercado não é aquele
ampla transição depende da construção ente autônomo, sem face; ele é permeado
de redes alimentares cívicas, nas quais por pessoas e influenciado pelas relações
os valores associados à defesa dos bens e interesses que entre elas se estabelecem.
comuns se sobrepõem à lógica da merca- O que se altera de um caso para o outro
doria [ver Bens Comuns]. são os atores e os sentidos predominantes
A visão construída pelos economis- nas ações econômicas.
tas neoclássicos é de que os mercados Os mercados são muito importantes
são o resultado do cálculo racional rea­ para serem deixados apenas aos eco-
lizado pelo agente econômico. Nesta nomistas, sobretudo para aqueles que
perspectiva, as relações de mercado não não enxergam ali nada além de curvas
sofreriam influências de cunho cultural de oferta e demanda. Foi por isso que,
e social. Possíveis desvios da lógica ra- a partir dos anos 1980, estes espaços
cional, como o oportunismo e a má-fé, sociais também se tornaram objeto de
seriam resolvidos pela recorrência das crescente interesse de sociólogos e antro-
transações, ou seja, a partir do momento pólogos. Ancorados nos estudos clássicos
em que alguém se sente prejudicado ou de autores como Karl Marx, Max Weber,
insatisfeito, passaria a negociar com ou- Karl Polanyi, Georg Simmel, Thorstein
tro vendedor ou comprador. Esta lógica, Veblen, Werner Sombart, Joseph Schum-

260
CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

peter, dentre outros, os cientistas sociais produção de normas de qualidade (Ma-


romperam o muro que até então separava zon, 2016; Magalhães, 2009).
os mercados das demais esferas sociais. Na esteira das discussões sobre mer-
Os fenômenos econômicos se tornaram cados como construções políticas, tam-
fatos sociais nas mãos de autores como bém ganhou força a análise das interações
Mark Granovetter, Neil Fligstein, Michel entre mercados, Estado e Movimentos
Callon, Viviana Zelizer, Richard Swe- Sociais (Fligstein, Block, Evans). Aqui, C
dberg, Philippe Steiner, Luc Boltanski, por um lado, se destacam as pesquisas
Laurent Thévenot, Jens Beckert, Fred acerca da transformação do papel do
Block, Ronald Burt, Peter Evans, dentre Estado que, para além da regulação da
outros (Smelser; Swedberg, 2005). atividade econômica, passou a atuar mais
Estes autores desenvolveram diferen- diretamente na construção de novos mer-
tes abordagens para a análise dos merca- cados, com destaque para os programas
dos. Alguns se apoiaram na metáfora das de compras governamentais (Perez-Cas-
“redes” para tratar, sobretudo, das múlti- sarino et al., 2016; Grisa et al., 2011).
plas conexões entre diferentes tipos de Em contrapartida, esta agenda também
atores sociais (Granovetter, Callon, Burt). incorporou uma preocupação com a
Essas análises demonstraram o papel dos ação política dos movimentos sociais
laços sociais na articulação de “pontes” organizados na construção de mercados,
que, por exemplo, facilitam a aproximação às vezes de maneira articulada com a
de produtores e consumidores. Em grande ação estatal. Os exemplos são inúmeros:
medida, foi a partir dessa discussão que os mercados da reforma agrária criados
emergiu a literatura contemporânea sobre pelas organizações do Movimento Sem
redes alimentares alternativas e circuitos Terra; os circuitos de comércio justo e
curtos de comercialização (Wilkinson, economia solidária impulsionados por
2008; Goodman; Dupuis; Goodman, associações e cooperativas; os novos
2012; Gazolla; Schneider, 2017). modelos de distribuição amparados por
Outros autores privilegiaram um movimentos de consumidores, dentre
olhar para as dinâmicas conflitivas nos tantos outros (Wilkinson, 2008; Portilho,
mercados. A metáfora dos “campos so- 2009; Perez-Cassarino, 2012).
ciais” teve um papel relevante neste sen- Outra porta de entrada para a com-
tido. A partir dela foram arquitetadas preensão dos mercados como construções
análises sobre as disputas políticas entre sociais esteve associada a um olhar mais
atores “incumbentes” e “desafiantes” pelo detido para a diversidade de valores que
controle da produção das instituições (re- orientam a ação econômica (Boltanski,
gras, normas, valores, padrões, classifica- Thévenot, Zelizer). Estes estudos procu-
ções etc.) que definem como as transações raram desvelar que o comportamento dos
econômicas devem ocorrer e, portanto, atores não se pauta apenas pelo interesse
que estabelecem hierarquias na divisão utilitário, mas por um complexo conjunto
dos recursos econômicos (Fligstein, Be- de convenções que é distinto de uma
ckert). Com relação ao sistema agroali- realidade social para outra. Com isso, por
mentar, esta leitura esteve presente, por um lado, se demonstrou que não existe
exemplo, em estudos sobre as estratégias uma única lógica ou racionalidade mer-
das empresas e as disputas envolvendo a cantil. No máximo, poder-se-ia falar em

261
CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

“racionalidades situadas”. Por outro lado, O mesmo pode ser dito em relação aos
também se tornou claro que os agentes “mercados institucionais” relacionados
econômicos incorporam diferentes va- aos programas governamentais. Não
lores e lógicas dependendo do contexto obstante, ainda existem inúmeras trilhas
em que estão imersos. Isto implica, por praticamente inexploradas. A primeira
exemplo, que o comportamento de um delas diz respeito à configuração de novos
C agricultor se altera quando interage com esquemas de comercialização direta me-
uma agroindústria ou diretamente com diados por novos sistemas de informação.
um consumidor. Como a mediação da ação econômica por
Para não nos estendermos demasia- dispositivos eletrônicos afeta as relações
damente, um último conjunto de pes- entre produtores e consumidores no que
quisas que poderíamos referir abarca os diz respeito à construção de valores so-
estudos sobre a capacidade performativa ciais? Como relações de solidariedade,
dos dispositivos institucionais e socio- empatia e reciprocidade características
técnicos na construção dos mercados das formas presenciais de venda direta
(Callon, Thévenot). Neste caso, o foco se configuram quando estes dispositivos
volta-se para o modo como padrões, re- entram em ação?
gras, classificações e tecnologias criam Uma segunda trilha a explorar diz
trajetórias de inovação que potencializam respeito ao alargamento dos circuitos
e, ao mesmo tempo, limitam as trocas locais para redes alimentares mais ex-
econômicas. Com relação ao sistema tensas. Também neste caso, uma questão
agroalimentar, um objeto particularmente central é como fazer com que um alimen-
relevante nestes estudos foram os sistemas to agroeco­lógico, portador de inúmeros
de certificação, incluindo os estudos sobre valores e significados, carregue consigo
o papel que estes dispositivos possuem na estas “qualidades” ao longo de toda sua
estruturação do mercado de alimentos trajetória social do agricultor até o con-
orgânicos (Niederle; Radomsky, 2017). sumidor. De certo modo, disto depende
Como essas pesquisas sobre cons- a possibilidade de reconhecimento da
trução social de mercados podem servir sociedade de todas as contribuições da
aos debates sobre agroecologia? Que agroecologia ao meio ambiente, à saú-
passos podem ser dados na direção de de, à cultura etc. Em alguma medida,
uma agenda de pesquisas que identifique espera-se que as marcas e os selos de
quais mercados podem potencializar os certificação deem conta de expressar
valores de democracia alimentar e justiça estes valores. Mas eles nunca conseguem
socioambiental que definem a agroecolo- apreender todos os valores do alimento.
gia como alternativa de transição para o Que outros mecanismos podem contri-
sistema agroalimentar? buir neste sentido?
Nos últimos anos, avanços impor- Um desafio que tem sido enfrentado
tantes foram realizados na perspecti- nos últimos anos, mas que ainda requer
va de identificar as especificidades dos pesquisas mais aprofundadas, diz respei-
mercados locais e circuitos curtos de to à articulação entre diferentes redes,
abastecimento. As contribuições das incluindo os chamados “mercados con-
feiras livres para a promoção da agroeco- vencionais”. Nem os agricultores, muito
logia estão amplamente documentadas. menos os consumidores, limitam suas

262
CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

relações a um único tipo de mercado. ponto de vista, as diferentes teorias e


Ambos circulam entre diferentes “ordens leituras aqui apresentadas sobre o enraiza-
alimentares” (Niederle; Wesz Jr., 2018). mento social dos mercados se traduzem na
A questão é como eles gerem práticas construção de mercados que promovam
e discursos contraditórios, muitas vezes espaços de sociabilidade e troca entre
antagônicos. Saem da feira orgânica para agricultores e consumidores, espaços
almoçar no McDonalds e, aparentemen- esses que convivam e se sobreponham às C
te, está tudo bem. Mas e se não estiver? relações mercantis (Marques; Conterato;
E se isto implica em uma incapacidade Schneider, 2016).
de organizar as dietas alimentares com Ao mesmo tempo, a autonomia dos/
profundas consequências não apenas as agricultores/as na gestão dos merca-
fisiológicas, mas também cognitivas? dos cumpre um papel fundamental no
Esta é uma área nebulosa de pesquisas seu enraizamento social, o que pode ser
que aproxima a socioantropologia dos entendido, por exemplo, como sua capa-
mercados da psicologia social. cidade de definir os locais e formatos de
Associada a esta discussão, coloca-se comercialização dos produtos, participar
na pauta a própria questão da transição na formação de preços dos produtos e
agroecológica do sistema agroalimentar. gerar processos de organização social e
Duas posições têm caracterizado este comunitária a partir dos mercados. Em
debate. De um lado estão pesquisadores contrapartida, a mobilização e organi-
que identificam sinais de esgotamento do zação dos/as trabalhadores/as urbanos,
regime alimentar dominante e, a partir sobretudo por meio de grupos de consumo
disso, as brechas para uma transição ra- e compras coletivas, estruturaram redes
dical na direção de sistemas sustentáveis sociais em torno das relações de mercado.
de produção e consumo (Ploeg, 2008). Apenas como referência de como se
De outro, pesquisadores mais céticos materializam essas relações em variadas
sobre tal nível de ruptura. Estes preferem formas de mercados, podemos falar das
apontar para a coexistência de diferentes feiras agroecológicas em seus mais diver-
mundos ou ordens alimentares, cada sos formatos, de pequenos a grandes mu-
qual operando a partir de relações mais nicípios, centralizadas, descentralizadas,
ou menos específicas, mas com inúmeros em escolas, igrejas, praças públicas, feiras
pontos de hibridização. Nesta perspec- ambulantes (em ônibus ou caminhões) e
tiva, a agroecologia seria a expressão de com os mais diversos processos de orga-
uma “ordem cívica” emergente (Nieder- nização social em seu entorno. Apesar de
le; Wesz Jr., 2018). poderem ser tomadas como um “símbolo”
E o que viria a ser essa nova “ordem das formas alternativas de mercados, as
cívica”? Trata-se de olhar para a agroeco- feiras estão longe de representar a gama
logia, como já dissemos, como estratégia de possibilidades que se desenvolvem
para repensar e redesenhar os sistemas no âmbito da agroecologia atualmente.
alimentares como um todo, em que os Entregas de cestas; grupos de compras
mercados cumprem um papel funda- coletivas; vendas de casa em casa; em bei-
mental. Nesse sentido, podemos inclusive ras de estrada; centros de comercialização
falar de uma perspectiva agroecológica de (lojas) de organizações camponesas e da
construção social dos mercados. Desse agricultura familiar ou de consumidore(a)

263
CONSTRUÇÃO SOCIAL DE MERCADOS

s; circuitos de circulação de alimentos estratégias híbridas, em que se articulam


agroecológicos; vendas nas unidades de formas inovadoras de mercados com o
produção; turismo rural; eventos comu- acesso a mercados, digamos, “conven-
nitários e regionais; os mercados institu- cionais”. Porém, torna-se inevitável as
cionais, as cooperativas de consumo, a tensões que se estabelecem entre os di-
aliança com os pequenos varejos locais ferentes formatos de comercialização, tal
C (armazéns, padarias, pequenos mercados como na formação de preços, na diver-
etc.) são exemplos das possibilidades de sificação ou especialização da produção,
construção social de mercados. na construção ou não de marcas próprias,
O contraponto desse perfil de mer- nas exigências sanitárias e fiscais, nos
cados com o que conhecemos como volumes comercializados em cada espaço,
mercados de alimentos dentro do siste- na influência das organizações na gestão
ma alimentar hegemônico é evidente, dos processos, na valorização de diferen-
inclusive quando se trata de alimentos tes processos de certificação e controle,
orgânicos. Cada vez mais, grandes con- entre outros.
glomerados transnacionais de alimentos Neste sentido, o domínio do sentido
adquirem e incorporam empresas e redes político, econômico e cultural da perspec-
locais de produção e comercialização tiva da construção social dos mercados
de alimentos orgânicos. O diálogo e a torna-se uma ferramenta fundamental
convivência entre a agroecologia e os para a definição destas estratégias e das
espaços de comercialização controlados tomadas de decisão. Compreender e bus-
pelas grandes redes varejistas, lojas espe- car desconstruir e reconstruir as relações
cializadas, restaurantes e outros, é tema de poder que permeiam os espaços de
de grande tensão social e política no compra e venda de alimentos torna-se
âmbito das organizações camponesas e missão estratégica para aquelas organi-
da agricultura familiar. zações de agricultore/as e consumidore/
Muitas experiências têm mostrado as que se propõem a fazer da agroecologia
que, de uma forma geral, as organizações um espaço de reordenamento da ordem
do campo da agroecologia optam por alimentar vigente.
Referências
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264
CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

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por meio do mercado institucional: a experiência brasileira. In: BEZERRA, I.; PEREZ-CASSARINO,
J. (org.). Soberania Alimentar (SOBAL) e Segurança Alimentar Nutricional (SAN) na América Latina e
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PORTILHO, F. Novos atores no mercado: movimentos sociais econômicos e consumidores politizados.
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WILKINSON, J. Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS,
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Para saber mais


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NIERDELE, P. A.; ALMEIDA, L.; VEZZANI, F. M. (org). Agroecologia: práticas, mercados e políticas
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MAGNANTI, N. J. Abastecimento agroecológico de consumidores articulado com soberania e segurança
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CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

Naidison de Q uintela Baptista


A lex a ndr e P ir es
A ntonio G omes Bar bosa

O semiárido brasileiro, também índices pluviométricos, chuvas irregu-


conhecido como sertão, é uma região lares e dispersas e com ciclos de longos
que corresponde a aproximadamente períodos de grande estiagem, as políticas
12% do território do Brasil, com 1,03 públicas para a região foram sempre
milhão de km², área onde se encontram desastrosas e inadequadas, baseadas no
1.262 municípios e uma população de combate à seca.
mais de 27 milhões de pessoas. Com As políticas de combate à seca sem-
uma característica climática de baixos pre se voltaram aos efeitos, e nunca às

265
CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

causas do fenômeno. Nunca buscaram semiárido são também imensas, desde a


construir a autonomia da população, diversidade natural até o sábio e teimoso
com base na pequena agropecuária processo de resistência de seu povo, que
apropriada, captação e distribuição de- continua vivo apesar de todas as tenta-
mocrática da água e assistência técnica tivas para aniquilá-lo.
adequada a um processo de semiaridez. Costuma-se pôr a culpa na natureza,
C Ao contrário, sempre se centraram em especialmente na falta de chuvas, para
ações assistencialistas que mal matavam justificar a fome e a mortalidade infantil
a fome da população, mas a mantinha ainda existentes em pleno século XXI, a
submissa aos seus escusos propósitos expulsão de sua gente pela migração, as
políticos de manutenção do poder. mortes e o não acesso de sua população
Historicamente, seu povo foi mar- às oportunidades. Coloca-se, assim, a
ginalizado e discriminado, às vezes de débito da natureza os resultados das
modo violento, outras, de forma mais ações iníquas e de exploração do povo
sutil, cotidianamente desqualificado pelas elites, famílias tradicionais que se
como ignorante e preguiçoso, entre ou- alternam nos poderes constituídos locais.
tros adjetivos, mesmo quando se sabe que Dessa forma, essa exploração se transfor-
as condições de pobreza e miséria foram ma em algo “naturalizado”, quando até a
resultado das políticas equivocadas dos crença dos povos é usada nas narrativas
governos e do Estado brasileiro. dos poderosos para justificar a situação
Há algumas décadas, essa região, de descaso e inoperância dos governos,
que junto do agreste e o litoral é parte tamanha é a falta de crença nos gover-
do Nordeste brasileiro, vem mudando nos, políticos e Estado brasileiro.
sua fisionomia graças à perspectiva da Em 1999, enquanto a Organização
“convivência com o Semiárido”. Nessa das Nações Unidas (ONU) realizava a
perspectiva, as potencialidades e saberes Conferência das Partes para o Combate
locais são reconhecidas e valorizadas, e à Desertificação e as Secas (COP3)
se busca estar atento ao movimento da em Recife, surgia a Articulação no Se­
natureza, dos animais e do próprio povo, miárido Brasileiro (ASA) [ver Articula­
que ao longo de séculos de experiência ção do Semiárido Brasileiro]. Fruto de um
e aprendizado desenvolveu tecnologias processo de articulação e mobilização
sociais e estratégias inteligentes para para construção de um Fórum Paralelo,
“escapar” do sofrimento, já que estava, modo alternativo, no qual a sociedade
por parte dos poderes públicos, “largado civil participou, a ASA fez ecoar as
à própria sorte”. Essa é uma região onde vozes dos povos do semiárido denun-
a concentração da terra, da água, da ciando o descaso dos governos ao longo
educação e das oportunidades por um de d­ écadas, agravado pelo período de
pequeno grupo de pessoas e famílias ain- seca que naquele momento mais uma vez
da é muito forte. Entretanto, o acúmulo castigava, além de apresentar propostas
de vivências e lições apreendidas pelo concretas para o contexto do semiárido.
povo sertanejo com esse ambiente, às A ASA nasceu de um processo de
vezes viçoso e outras vezes hostil, deixa questionamento do paradigma do com-
provado que, ao contrário do que se bate à seca, que objetiva políticas assis-
repete anos a fio, as potencialidades do tencialistas dominadoras e excludentes,

266
CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

e propõe o paradigma da convivência com onde e como deveriam ser construídas, e


o semiárido, através do qual se busca esta- com que tecnologias. Portanto, projetava
belecer possibilidades e meios de convi- uma política universal, sob gestão direta
ver com as condições, os conhecimentos da sociedade civil, mas em parceria com
e recursos locais. Nessa perspectiva, o os governos. Além disso, teve no Con-
importante seria criar condições de ar- selho Nacional de Segurança Alimentar
mazenar para conviver: armazenar água e Nutricional (Consea, extinto pelo go- C
para consumo humano, armazenar água verno Bolsonaro) o principal espaço de
para produção de alimentos, armazenar concertação, como modo mais adequado
alimentos para os animais e as pessoas, para a convivência com o semiárido.
armazenar sementes locais, conservar a A participação das organizações da
vegetação da Caatinga e suas múltiplas sociedade civil nos espaços de controle
possibilidades de criação e recriação de social e construção de políticas públicas
vida, associados à criação de animais (em esfera nacional, estadual, regional
adequados à região. e municipal) foi fundamental para a
Esse paradigma tornou claro e visível irradiação do conceito de convivência
que na sociedade brasileira, e nordestina com o semiárido. Compor os Conseas
em especial, há um conflito. De um lado, estaduais (assim como Conselhos de
um modelo que defende a acumulação da Desenvolvimento, Conselhos da Criança
água, da terra e das oportunidades por e do Adolescente e Conselhos de As-
meio de grandes projetos inconclusos, sistência Social) foi fundamental para
sem controle social e caríssimos e, por pautar a convivência tanto no campo
isso mesmo, provocador das injustiças, das formulações quanto no apontamento
opressão e dependência socioeconômica dos debates do orçamento público, prin-
e política das populações do semiárido, cipalmente no âmbito federal. Também o
muito divulgado pela mídia nos tempos foi a constituição do Consea Nacional, o
de maior rigor climático. De outro, o Conselho Nacional de Desenvolvimento
paradigma do compartilhar, da produção Rural Sustentável (Condraf), o Conse-
de conhecimentos, da participação, de lho de Economia Solidária, a Comissão
promoção da vida e das oportunidades Nacional de Agroecologia e Produção
para todos. Orgânica (CNAPO) e diversas comis-
Materializando o paradigma da con- sões em escala nacional. E foi assim que
vivência, a ASA lançou o Programa 1 se conseguiu inserir, mesmo que somente
Milhão de Cisternas (P1MC) para o Se- como política de governo em vez de
miárido, iniciativa provocadora, ousada política de Estado, a convivência com o
e sonhadora, que sugeria metodologias e semiárido no orçamento.
meios concretos de se realizar o armaze- Nos caminhos de reafirmação e
namento da água para o consumo de 1 construção da convivência com o se-
milhão de famílias, cerca de 5 milhões de miárido construiu-se, nos últimos 20
pessoas no semiárido. O projeto 1 Milhão anos, um movimento de oposição ao
de Cisternas não era apenas uma inten- paradigma do combate à seca, que di-
cionalidade; propôs uma quantidade zimou milhões de pessoas no semiárido
determinada de cisternas, com os custos, e concentrou oportunidades, rique-
o processo metodológico e a indicação de za e vida nas mãos de alguns. Não se

267
CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

quer meramente a convivência com a servidores públicos, deveriam participar


seca; isso seria muito pouco. Busca-se do processo de formação para assegurar
a convivência com o semiárido, com a sustentabilidade do programa. Um
suas possibilidades, com seus múltiplos importante passo foi transformar essas
biomas, com sua gente bonita, valorosa experiências locais em políticas públicas
e combativa, com seu conhecimento, sua possíveis de serem replicadas.
C cultura, sua vida, seu modo próprio e, por O programa abriu novas possibilida-
vezes, comunal de produzir. des por meio dos diálogos com os gestores
Como afirma o conhecido especia- municipais da educação para a formação
lista em semiárido, o professor Haroldo de professores, professoras e estudantes
Schuster, fundador do Instituto Regional na perspectiva da educação contextua-
da Pequena Agropecuária Apropriada lizada. A escola sediada no semiárido e
(IRPAA), organização-membro da ASA, nas demais regiões e biomas brasileiros
“conviver com o semiárido é ouvir da não pode ignorar a realidade em que
natureza como lidar com ela, o que se está inserida, deve procurar conviver
deve e pode plantar, o que guardar de com esse ambiente e preparar os pais,
alimentação para pessoas e animais, o professores e estudantes para estarem
que e como guardar água para consumo juntos nessa construção.
e produção, o que criar, o que conservar O Programa Uma Terra e Duas
e proteger”.1 Nessa perspectiva política Águas (P1+2) tem oportunizado o de-
e metodológica, a ASA decide abrir o senvolvimento de uma série de iniciativas
leque de suas ações de convivência com o que fortalecem e valorizam os conheci-
semiárido e resolve, em tempos distintos, mentos e práticas dos agricultores e agri-
trabalhar tecnologias para captação e cultoras sobre o uso correto e sustentável
armazenamento de água para a produ- dos solos, da biodiversidade e a gestão da
ção de alimentos, cisternas nas escolas água para a produção de alimentos de
associadas à educação contextuali­zada base agroecológica em hortas, pomares e
e dar maior atenção às práticas de ar- criatórios de animais, utilizando sistemas
mazenamento, gestão e conservação das simplificados de irrigação.
sementes crioulas, produzidas, reproduzi- Os agricultores e agricultoras envol-
das e trocadas pelos próprios agricultores vidos desenvolveram uma diversidade
e agricultoras. de tecnologias adequadas para captar
O Programa Cisternas nas Escolas e armazenar a água para a produção de
constrói, assim, uma perspectiva de alimentos: cisternas calçadão, cisternas
garantir a instalação de cisternas nas de enxurrada, barragens subterrâneas,
escolas rurais como condição para o “barraginhas”, tanques de pedra, entre
funcionamento do processo educacio- outras (Articulação do Semiárido Bra-
nal. No entanto, se desafia às novas sileiro). Por meio de suas organizações,
aprendizagens e metodologias. Essa a ASA localizou, sistematizou e aperfei-
iniciativa exigiu das organizações a çoou essas iniciativas das comunidades
capacidade de negociação com o poder de geração endógena de tecnologia, num
público municipal, uma vez que pro- processo partilhado, que reconhece os
fessores e professoras e demais traba- agricultores e agricultoras como sujeitos
lhadores/as das escolas, na condição de de seu caminho, que sempre construí-

268
CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

ram e constroem conhecimento, e é a bito familiar ou comunitário, eles se li-


partir destes conhecimentos que se deve bertam das distribuições assistencialistas
operar a transformação do semiárido. e por vezes de sementes inadequadas à
É necessário valorizar o que seu povo realidade local, realizadas pelos governos
produziu no caminhar da resistência de e que ainda atuam como instrumento
séculos, aperfeiçoar essas descobertas e de “colonização” e dominação eleitoral.
fazer com que elas sejam massificadas Sementes que geram autonomia porque C
e se transformem em políticas públicas retiram os agricultores das mãos das
estruturantes, a serem levadas adiante empresas de transgenia e detentoras das
pelo Estado brasileiro nos seus diversos sementes comerciais; resgatam processos
níveis, e que sejam acessíveis à toda comunitários ricos; criam condições para
população, sobretudo à população em- que o agricultor e a agricultora se encon-
pobrecida. O semiárido não necessita trem com sua história, seus antepassados,
importar tecnologias, mas sim diálogos sua região, sua cultura de forma alegre,
de conhecimentos. viva e sertaneja.
Na perspectiva da convivência, a Reconhecendo o papel fundamen-
metodologia de formação mais ade- tal das sementes para a autonomia e
quada não é aquela em que os técnicos segurança alimentar, para além das tec-
consideram os agricultores como não nologias, é essencial incorporar debates
produtores de conhecimento e querem e reflexões mais políticas das andanças
“injetar” neles seus conhecimentos. nas comunidades. As sementes abriram
A melhor metodologia de formação é espaço para debates como a autonomia
aquela do intercâmbio de experiências, das comunidades em relação ao Estado
no qual agricultores visitam agricultores, na decisão do que plantar, época e tipos
trocam informações, animam-se e se de sementes; a dependência da distribui-
convencem mutuamente, olham como ção das sementes; a exploração política
as tecnologias são possíveis e decidem eleitoral das comunidades; a autonomia
brigar para que elas se transformem em em relação às empresas que dominam o
políticas públicas. Em outras palavras, campo das sementes etc.
o conhecimento popular e o controle No contexto de acúmulo de
social são as bases da convivência com experiên­cia para mudanças globais nessa
o clima semiárido. região do Brasil, destaca-se a comunica-
O arco da convivência não se fecha ção, que teve e tem um papel fundamen-
com a água, nas suas várias dimensões; tal, e cujo principal desafio talvez seja
por isso, é necessário entender a convi- a desconstrução da visão do semiárido
vência como um conjunto de práticas, como um lugar ermo, sem vida, despro-
conceitos e processos que materializam vido de recursos; de um povo ignorante
sua complexidade. Reconhecendo essa e sem coragem, de pessoas famintas e
dimensão, a ASA construiu, a partir das dependentes. O princípio de valorizar
experiências dos próprios agricultores e seus saberes, suas práticas, suas inova-
agricultoras, o Programa Semente do ções, de tirar da invisibilidade a coragem
Semiárido. Sementes que garantem a au- de mulheres e homens que lutam por
tonomia dos agricultores e agricultoras, décadas para sobreviver, e constroem a
pois ao possuí-las armazenadas, no âm- resistência em simplicidade e inspirados

269
CONVIVÊNCIA COM O SEMIÁRIDO

na força da caatinga, verde quando é agricultoras na construção de sua história;


possível e cinza para escapar e sobrevier. suas capacidades de inovação a partir de
Tornar visível a beleza de sua diversidade seus saberes e necessidades; a perspectiva
cultural e mostrar que suas armas para a da construção coletiva do conhecimento
liberdade estão escondidas pela opressão e as formações e capacitações a partir da
do ainda vigente coronelismo secular. interação de saberes entre agricultores na
C Foram fundamentais para o resgate dimensão do intercâmbio de experiên­cias;
da autoestima e da reafirmação do povo o resgate e aperfeiçoamento de experiên­
do semiárido como sujeito do seu destino cias realizadas nas comunidades na vivên-
as diversas estratégias de sistematização cia da convivência.
das experiências, como os boletins de No entanto, os impeditivos para o
experiências O Candeeiro, os vídeos, avanço da convivência com o semiárido
as cartilhas, os encontros comunitá- permanecem ativos, como a concentra-
rios, os intercâmbios entre agriculto- ção da terra, impeditivo este fundamen-
res, os Encontros Nacionais da ASA tal para se ter mais produção e mais água
­(EnconASA), os Encontros de Agricul- sob a gestão dos agricultores e agriculto-
tores e Agricultoras Experimentadoras e ras familiares. Há agricultores que não
a oportunidade de fala e outras formas de podem ter acesso às tecnologias porque
expressão em todos esses espaços. não detêm a terra para viver e trabalhar.
Instituições públicas de pesquisa e Há de se pensar em outros tipos comple-
de ensino como a Embrapa Semiárido, o mentares de serviços de abastecimento
Instituto Nacional do Semiárido (INSA) de água, para as pequenas cidades e os
e diversas universidades e institutos fede- arraiais; há de se pôr um “freio” na ir-
rais, da região ou de fora dela, por meio rigação predatória, que mata boa parte
de seus pesquisadores e dos núcleos de dos rios perenes do semiárido; há de frear
agroecologia têm contribuído de forma a predação da vegetação da Caatinga e
significativa para a produção de conhe- do Cerrado [ver Bioma Cerrado]; há de se
cimento sobre o semiárido. Diversos es- implementar mais sistemática e corajo-
tudos acadêmicos têm mostrado que o samente uma educação contextualizada
paradigma da convivência com o semiá- para toda região semiárida.
rido é libertador e promotor da autonomia Muitos e muitos ainda são os desa-
dos sujeitos políticos desse território. A fios, e o Estado mantém vivos, ao lado da
convivência, em contraponto ao combate proposta de convivência e concorrendo
à seca, construiu novas narrativas, entre com ela, muitos elementos da proposta
as quais o protagonismo dos agricultores e de combate à seca ou coisas piores.

Para saber mais


ARTICULAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA). Cartilha: caminhos para a convivência
com o semiárido. Disponível em: https://asabrasil.org.br/acervo/publicacoes?artigo_id=278. Acesso
em: 22 mar. 2021.
CONTI, I. L. & SCHROEDER, E. O. (org.) Convivência com o Semiárido Brasileiro, autonomia e prota-
gonismo social. Brasília: IABS, 2013.
LIMA, J. R. T. de (org.). Agroecologia e movimentos sociais. Recife: Bagaço, 2011.
PONTES, E. T. M. Transições paradigmáticas: do combate à seca à convivência com o semiárido
nordestino, o caso do programa 1 Milhão de Cisternas no município de Afogados da Ingazeira – PE.
Recife: Ed. Universitária UFPE, 2010.

270
COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

SANTOS, A. P. et al. Representações do semiárido [Livro eletrônico], 2017. Disponível em: https://portal.
insa.gov.br/acervo-livros/1091-representacoes-do-semiarido. Acesso em: 22 mar. 2021.
Sites:
ASA BRASIL. Disponível em: http://asabrasil.org.br/acervo/publicacoes . Acesso em: 22 mar. 2021.
INSA. Disponível em: https://portal.insa.gov.br/. Acesso em: 22 mar. 2021.
Embrapa/cpatsa. Disponível em: http://www.cpatsa.embrapa.br:8080/index.php?op=principal. Acesso
em: 22 mar. 2021.

Nota C
1
Fala do professor Haroldo Schuster no painel “Experiências Institucionais de convivência com o
semiárido na prática”, durante o evento de celebração dos 25 anos do Instituto Regional da Pequena
Agropecuária Apropriada (IRPAA). 16 de abril de 2015, Juazeiro (BA).

COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

P edro Iva n C hr istoffoli

O verbete discute o processo de dependeria também, para se desenvol-


cooperação agrícola em sua relação com ver, de uma evolução na forma em que
a construção da agroecologia. Ele se re- se dão as relações de produção agrícola
laciona com discussões já desenvolvidas na agricultura, superando as relações
em outras obras e particularmente com individuais e de exploração sobre os
o verbete Cooperação Agrícola no Di- trabalhadores, pela gradual emergência
cionário de Educação do Campo (Chris- e estabelecimento de relações de coo-
toffoli, 2012, p. 159). Aqui, o enfoque peração entre os mesmos.
da discussão da cooperação agrícola
se volta particularmente à sua relação O processo da cooperação
com a construção da agroecologia. no capitalismo
Parte-se de uma pergunta fundamental Segundo Marx, na produção das
que remete para a discussão proposta: condições de vida, o ser humano entra
Qual a relação entre a Cooperação Agrí- necessariamente em relação com a natu-
cola e a Agroecologia? Em que medida a reza e com outros seres humanos, ou seja,
primeira é relevante para a construção de somos seres sociais, forjados em condições
um outro modo de produção, em bases históricas concretas. Essas relações coope­
agroecológicas? Essas questões são con- radas de produção visam a melhoria da
sideradas centrais para entender parte condição de vida humana, no sentido de
dos limites no avanço atual quanto à obter maiores e melhores resultados (mais
massificação da agroecologia. A questão produção em determinada área, mais
posta estaria, portanto, no fato de que a resultados na caça, pesca ou coleta de
emergência de uma forma de produção alimentos, ou na fabricação de produtos
sustentável, baseada na agroecologia, etc.). A cooperação diz respeito “à forma

271
COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

de trabalho em que muitos trabalham contrário, eles são constrangidos a tra-


planejadamente lado a lado, no mesmo balhar coletivamente, sob pena de não
processo de produção ou em processos de conseguirem alcançar sua reprodução
produção diferentes, mas conexos” (Marx, social, visto terem perdido o acesso aos
1988, p. 246). meios de produção básicos que assegura-
A ação visando a sobrevivência riam sua manutenção como produtores
C humana, historicamente, pressupôs que independentes de mercadorias e/ou de
se desenvolvesse concomitantemente suas condições de vida. Logo, essa forma
a cooperação. Ou seja, o processo de constrangida de cooperação não é o que
­cooperação é um fenômeno histórico, se entende como uma forma emancipa-
que vem se ampliando à medida em dora, de libertação do ser humano dos
que as sociedades evoluem. Entretanto, grilhões que o oprimem. O processo de
também a história humana marca a cooperação como forma portadora de
existência de relações de exploração do sementes de libertação da espécie humana
homem pelo homem (inicialmente com do reino da necessidade pressupõe a livre
o escravismo, depois com o feudalismo e consciente autodeterminação individual
e finalmente com o capitalismo). O e coletiva, em um processo de igualdade
capitalismo aprofunda e desenvolve real entre as pessoas, contrapondo-se
tanto a forma de trabalho explorado à igualdade formal que se verifica nas
como, em contradição, formas de tra- sociedades capitalistas.
balho cooperado, ampliando-os à escala Outro aspecto contraditório dessa
mundial. O processo de cooperação se relação é de se constituir uma ideologia
amplia ainda mais com a globalização, dominante que coloca o individualismo
ou internacionalização da produção como centro de tudo. Apesar da produção
capitalista. Cada vez mais os processos se dar em escala global, e de, cada vez
produtivos se conformam em cadeias mais, a produção das condições de vida
produtivas globais. Na fase atual do pressupor a cooperação em larga escala,
capitalismo, a cooperação atinge graus emerge na sociedade uma subideologia
impressionantes, seja na fabricação de individualista, a qual dificulta sobrema-
produtos, seja na prestação de servi- neira a organização de coletivos livres au-
ços, ao ponto de que a produção atual é togestionários. Para muitos trabalhadores,
crescentemente globalizada, sendo uma libertar-se do jugo capitalista equivale a
parte dos processos de produção feitos assumir a condição de produtor simples de
num país, por exemplo, e o restante feito mercadorias, supostamente livre da domi-
em diversos outros, em uma cooperação nação de patrões (mas também ausente de
à escala planetária, e que exige um grau mecanismos coletivos de autodetermina-
de coordenação bastante complexo. ção). Como consequência dessa ideologia,
Sendo uma das características do a antítese de ser explorado e subordinado
capitalismo, a ampliação do trabalho pelo capitalismo não seria a autogestão
cooperado se dá, porém, de forma subor- social, a gestão autônoma pelo coletivo de
dinada, heterogerida. Ou seja, o processo trabalhadores, e sim a organização produ-
de trabalho não se dá de forma autoges- tiva de pequena escala, a busca por uma
tionada, como expressão da livre vontade, certa ilusão da autonomia individual (ou
do livre arbítrio dos trabalhadores. Ao individual-familiar, no caso da agricultu-

272
COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

ra), pela recriação de formas produtivas da resultou na implantação de um modelo


pequena produção, característica de uma tecnológico e produtivo altamente pre-
curta fase inicial do capitalismo concor- datório. Ao mesmo tempo que elevou
rencial, hoje historicamente superado. a produção a níveis bastante consi-
Ainda que legítimas e, particularmente deráveis, trouxe consigo a destruição
no caso do campesinato, historicamente das matas, dos rios, a contaminação
justificáveis, tais formatos organizativos por agrotóxicos e por consequência a C
trazem consigo desvantagens estruturais ocorrência de epidemias de doenças
à competição em mercados capitalistas. provocadas pelos pesticidas. A agro-
Essas formas podem ser ilusórias, ecologia surge como resposta a esse
porque, a não ser que o regime social modelo, e desde os anos 1980 busca
capitalista seja superado, o processo de constituir um campo alternativo e de
competição dos mercados, as crises de oposição ao modelo dominante. As
superprodução, os mecanismos econô- tecnologias agroecológicas apontam
micos e extraeconômicos de dominação um novo modelo produtivo, baseado
capitalista se farão sentir, destruindo as na interação homem-natureza, na busca
iniciativas de pequena escala e de pouca de recomposição dos agroecossiste-
capacidade produtiva e financeira. Isso mas [v er A g r o ec oss i s t em as] , na sua
explica também a pouca duração dos recomplexificação, na reconstrução
empreendimentos econômicos de peque- da fertilidade, na promoção da saúde
no porte, cuja ampla maioria se desfaz ambiental. Busca-se também uma maior
em poucos anos. Entretanto, a partir da interação com a ciência, não aquela
experiência de exploração vivenciada sequestrada pelo capital, mas a que se
pelos trabalhadores sob o capitalismo, propõe a com­preender e potencializar
muitos decidem romper com o modelo as relações entre seres vivos e o meio
dominante e buscam alternativas so- social e biofísico.
cietárias para sua superação. No campo Um dos limites na expansão dos
econômico, muitas vezes se adota a coo- sistemas agroecológicos diz respeito às
peração autogestionária como caminho escalas, à capacidade de se produzir um
para esse enfrentamento. Entretanto, volume de alimentos, fibras e energia de
formas coletivas avançadas tampouco têm forma a dar conta da sociabilidade, das
mostrado apelo para que amplas massas relações de produção da vida ­atual, ainda
camponesas se somem, impossibilitando que com as devidas críticas e possíveis
assim uma escala ampliada e mais sólida correções a serem adotadas no atual mo-
de enfrentamento aos mercados e aos delo consumista e produtivista. Há ainda
mecanismos de exclusão capitalista. Há problemas de produtividade física e custos
mesmo questionamentos quanto a sua dos agroecossistemas agroecológicos. Po-
viabilidade política, devido à forte tradi- rém, também há o fato que os mercados
ção familiar do campesinato. não levam em conta as externalidades
representadas pelos modelos produtivos
Agroecologia, produção em disputa. A contaminação, as doenças
em escala e cooperação e a destruição do futuro não entram na
O desenvolvimento da produção conta dos custos e lucros do agronegócio.
capitalista na agricultura do Brasil A força política do agronegócio subverte

273
COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

a lógica sensata: consegue subsídios e A constituição de grupos, associa-


isenções fiscais, ao passo que a agroeco- ções e cooperativas agroecológicos deve
logia amarga com os custos de mostrar ser estimulada e apoiada a partir o Esta-
que produz alimentos não contaminados do, sob pena de se demorar a superar os
(arcando com os custos da certificação), gargalos atuais de acesso aos mercados
isso sem acesso a crédito e a apoios na (ou melhor, às famílias, comunidades
C geração de tecnologias para superação de e empresas que usufruem dos produtos
seus atuais gargalos produtivos. agroecológicos). Há também o desafio
Há ainda um incipiente avanço de desenvolvimento e acesso à meca-
organizativo de formas de cooperação nização agrícola adaptada à produção
que deem conta de constituir estruturas agroecológica e camponesa, para dar
e estratégias de logística, agroindustriali- conta do aumento de carga de trabalho
zação e distribuição da produção agroe- necessária para a condução de sistemas
cológica em uma escala que assegurem, agroecológicos. Produzir agroecologi-
de um lado, a necessária capacidade camente implica aumento do tempo
de enfrentamento aos desafios econô- e da carga de trabalho por parte dos
micos e, de outro, a necessária consi- agricultores. Isso deriva em parte de um
deração pela opção individual-familiar insuficiente desenvolvimento das forças
dos arranjos produtivos agroecológicos produtivas do trabalho agroecológico
dominantes. Ou, na outra ponta, via [ver Tecnologias Sociais] e, em parte, do
organização de grupos de consumidores, incipiente desenvolvimento da coope­
de feiras livres, de programas de compras ração, que possibilitaria o acesso de
diretas entre agricultores-consumidores, máquinas e equipamentos adaptados
da criação de aparelhos e mecanismos à produção agroecológica em diversos
organizativos também nas cidades. graus de escala (desde a pequena produ-
Esse fato tem a ver com alguns ele- ção camponesa cooperada até sistemas
mentos para os quais uma necessária evo- complexos de larga escala).
lução de nossa compreensão e formulação Outro elemento fundamental para
acerca da cooperação agrícola parece um avanço em larga escala da produ-
ser uma resposta. De um lado, temos a ção agroecológica diz respeito à forma
questão do desenvolvimento de iniciativas de organização de base das organiza-
associativas de produção agroecológica ções de cooperação. A partir da análise
que assegurem escala financeira e contí- de uma das experiências que mais
nua inovação tecnológica, na perspectiva avançou no Brasil em termos de mas-
da tecnologia social, o que pressupõe sificação agroecológica, identifica-se
o avanço da intercooperação entre as a necessidade de organização de base
formas cooperadas de base. De outro, a via grupos de produtores, por linha de
organização de arranjos socioprodutivos produção (Martins, 2017). A nucleação
que contemplem formas mistas de orga- de base e a adoção de políticas orga-
nização, respeitando a voluntariedade da nizativas que respeitem e aglutinem os
base camponesa, ao passo que permitam agricultores a partir da materialidade
enfrentar os desafios da competição com produtiva são fundamentais para o
o setor capitalista, com os necessários avanço concreto no estabelecimento
ganhos tecnológicos a várias escalas. de formas de cooperação. Mais ain-

274
COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

da, articular as ações políticas a essa tercooperação, para enfrentamento aos


organização produtiva de base tem conglomerados capitalistas do setor.
demonstrado um potencial imenso no Para isso é fundamental avançarmos a
avanço da agroecologia em sua verten- partir do conceito de Marx, fundamen-
te politizadora, emancipadora. tal para a compreensão das sociedades,
na perspectiva materialista, que é o de
Como enfrentar a competição Forças Produtivas (na forma coopera- C
emergente nos mercados orgânicos- tivada, acrescentaríamos).
-agroecológicos? A produção da vida aparece ime-
Uma dinâmica presente em so- diatamente como uma relação dú-
ciedades capitalistas é a disputa inter- plice, por um lado como relação
capitalista que se apresenta de forma natural, por outro como relação
crescente também no segmento de social, social no sentido que por ela
produtos agroecológicos. Há que se se entende a cooperação de vários
preparar para o ponto em que o próprio indivíduos, independentemen-
capital, responsável maior pela destrui- te das condições, o modo e o fim
da cooperação. Disso se depreen­
ção ambiental e pela exploração dos
de que um determinado modo de
trabalhadores, visualize nos mercados
produção ou estádio industrial
de alimentos orgânicos uma fonte signi- vai sempre acompanhado de um
ficativa de lucros. Isso já vem ocorrendo determinado modo de cooperação,
embrionariamente, constituindo-se ne- ou estádio social, e este modo de
gócios capitalistas (como a WholeFoods ­cooperação é ele mesmo uma ‘força
nos EUA, ou a Mundo Verde e Mãe produtiva’. (Marx, 2007, p. 34)
Terra, no Brasil), que se apropriam do O caráter duplo da produção mate-
esforço de produção agroeco­lógica, em rial, como relação (técnico-natural) en-
grande parte camponesa, para auferir tre o homem e a natureza e, em contra-
lucros extraordinários com o sobre- partida, como relação (histórico-social)
preço praticado na comercialização de entre os homens, na formulação de Marx
produtos orgânicos. É inevitável que o é o ponto de partida para uma leitura
mercado de orgânicos se constitua como complexa e necessária da realidade so-
um segmento organizado tipicamente cial. A questão é se podemos construir
em moldes capitalistas, trazendo como uma força produtiva agroecológica em
consequências o aumento da exploração moldes cooperativos.
do trabalho camponês, a exclusão social
e a concentração e centralização de ‘Força produtiva’ não é senão a capa-
cidade de trabalhar real dos homens
capitais no setor.
vivos: a capacidade de produzir por
O enfrentamento dessa tendên- meio do seu trabalho e com a utiliza-
cia, no longo prazo, pode se dar pela ção de determinados meios materiais
criação de arranjos produtivos ope- de produção e em uma forma de
rários-camponeses e de produtores/ cooperação determinada por eles,
consumidores, de tipo intercooperati- os meios materiais para a satisfação
vo, que induzam a ganhos sistêmicos das necessidades sociais da vida, o
de eficiência técnica e econômica, ao que quer dizer em condições capita-
passo que fomentem mecanismos de in- listas, a capacidade de produzir ‘mer-

275
COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

cadorias’. Tudo o que aumenta esse outros elementos complementares e


efeito útil da capacidade humana de focados na interação com a temática
trabalhar (e portanto, em condições da agroecologia. O primeiro elemento
capitalistas, inevitavelmente tam- diz respeito à cooperação como relação
bém o lucro dos seus exploradores)
social de produção necessária para o
é uma nova ‘força produtiva’ social.
fortalecimento da agroecologia, como
(Korsch, 1938, p. 1)
C parte de um novo modo de produção
Fazem parte das forças produtivas e de agricultura. O segundo elemento
materiais de uma sociedade em um de- diz respeito à busca de compreender
terminado momento histórico as forças a materialidade das relações sociais
da natureza, a técnica, a ciência, e a presentes atualmente nos ensaios de
própria organização social e as forças produção agroecológica e em porque
criadas nela por cooperação e divisão in- eles não estão conseguindo propiciar
dustrial do trabalho, as quais são desde o saltos produtivos suficientes para amea­
princípio energias sociais (Korsch, 1938). çar o domínio da agricultura biocida,
A cooperação se relaciona, no esquema desenvolvida pelo agronegócio.
marxista de desenvolvimento, com as A produção agroecológica atual-
relações sociais de produção. mente se embasa principalmente em
O enfrentamento das corporações relações sociais de produção não capi-
capitalistas na organização da agroe- talistas, ancoradas na produção familiar
cologia (como complexos agroindus- camponesa. Entretanto, uma parcela sig-
triais de produção orgânica), portanto, nificativa dessa produção já é acaparada
deve ser buscado também em arranjos por atravessadores de tipo capitalista,
cooperativos complexos baseados na que visam absorver parte da mais-valia
intercooperação entre os diversos atores gerada e da elevada demanda qualificada
sociais do campo agroecológico: campo- (pessoas de renda média-alta e alta como
neses, trabalhadores rurais, consumido- principais consumidores) ou de merca-
res (operários e trabalhadores urbanos) dos de exportação. Um mercado nicho
articulados em redes que apontem num de produtos orgânicos que representa
certo sentido para a formação de com- um segmento crescente do mercado
plexos intercooperativos que se reforcem capitalista vem se constituindo. Isso faz
mutuamente. Outra opção derivaria da com que um número significativo de
busca de nichos de atuação localizados, em­preendimentos alternativos, surgidos
que possibilitem ocupação marginal dos com o início do movimento de contes-
futuros mercados de produtos orgânicos, tação ao agronegócio, venham sendo
mais como forma de resistência. incorporados por empresas capitalistas.
Um dos desafios da produção
Fundamentos da cooperação agroeco­lógica camponesa está na gera-
agrícola na agroecologia ção de excedentes produtivos e econômi-
O desenvolvimento da coopera- cos, de forma a possibilitar algum grau de
ção parte de uma série de princípios acumulação de capital nessas unidades.
e pressupostos, alguns dos quais já se Atualmente, esse tem sido um dos limites
encontram descritos em Christoffo- ao seu desenvolvimento, particularmente
li (2012). Busca-se aqui avançar em em regiões periféricas aos grandes mer-

276
COOPERAÇÃO AGRÍCOLA

cados (geralmente situados nas capitais trocas de serviços, da geração de


e nos grandes aglomerados urbanos). A novos processos (dias de campo,
baixa produtividade do trabalho cam- intercâmbios tecnológicos, cer-
ponês na agroecologia deriva de vários tificação participativa etc.) até o
fatores: a) um incipiente desenvolvimen- estabelecimento de processos e
to dos mercados de produtos orgânicos, arranjos complexos de trabalho
incapaz de absorver a produção atual; coletivo, como é o caso de gru- C
b) o não desenvolvimento de agroin- pos de mulheres, ­cooperativas
dústrias de transformação da produção de trabalho e CPAs. Cabe res-
atualmente gerada, consequentemente saltar a importância da organi-
desestimulando aumentos adicionais zação com base nas linhas de
de produção/produtividade; c) o insufi- produção, levando sempre em
ciente desenvolvimento de equipamen- conta a materialidade concreta
tos e máquinas voltados à agricultura em que se organiza o processo
camponesa, que possibilitem reduzir o produtivo de base.
tempo e a penosidade do trabalho na c) Na cooperação em vista do
agroecologia; d) o ainda insuficiente de- estabelecimento de condições
senvolvimento das tecnologias sociais de materiais para aumento da pro-
produção agroecológica, o que resulta na dutividade do trabalho agroe-
baixa produtividade de alguns cultivos e cológico (compartilhamento de
criações agroecológicos; e) o baixo grau máquinas e ferramentas agrí-
de desenvolvimento da cooperação, que colas que automatizem tarefas
permitiria atuar sobre os diversos ele- repetitivas e penosas, economi-
mentos da cadeia anteriormente citados. zando trabalho e assegurando a
Considera-se fundamental o avanço saúde dos trabalhadores).
na cooperação, sob o risco desta ser d) No estabelecimento de inicia-
capturada pelo próprio capital em sua ex- tivas de intercooperação que
pansão constante em busca da ampliação assegurem a combinação de pro-
do lucro. A cooperação para o avanço cessos descentralizados, com
da agroecologia se daria, portanto, em iniciativas autogestionárias de
diferentes frentes: intercooperação avançada, pos-
a) No estabelecimento de relações sibilitando ganhos de escala e de
de cooperação em nível de ge- competitividade, inicialmente
ração de conhecimento agroe- frente aos conglomerados com-
cológico – a esse respeito temos petidores (capitalistas) e poste-
pistas claras no Movimento riormente para a organização de
Campesino a Campesino (Sosa redes e cadeias de suprimento
et al., 2013), em Paulo Freire dos centros urbanos com produ-
(1983), dentre outros. tos agroecológicos para a massa
b) Na realização de processos asso- da população.
ciativos e cooperativos de traba- e) No limite, no estabelecimento
lho, com a retomada desde for- de conglomerados cooperativos
mas mais simples de cooperação articulados a fundos financeiros
como é o caso dos mutirões, das comuns que possibilitem o en-

277
COSMOVISÕES

frentamento, nesse segmento, do apontem para patamares superiores de


grande capital especulativo e de articulação dos processos relativamente
setores do capitalismo industrial isolados que vêm sendo historicamente
ou comercial, atualmente os construídos até o presente. A necessidade
grandes acaparadores do valor de repensar os vários níveis de articulação
excedente gerado no segmento da produção agroecológica e de sua inser-
C de orgânicos. ção nos mercados ou na reorganização
dos processos de distribuição e consumo
Conclusão traz desafios de monta que só podem ser
O desafio da massificação da agroe- vencidos com a atuação em várias frentes.
cologia nos remete diretamente à necessi- A retomada do estímulo à cooperação
dade de avançar na construção de formas em todos os níveis é fundamental para
de cooperação agrícola e urbanas que alcançarmos esse salto.

Referências
CHRISTOFFOLI, P. I. Cooperação Agrícola. In: CALDART, R. S. et al. Dicionário da Educação do
Campo. São Paulo/Rio de Janeiro: Expressão Popular/EPSJV. 2012. Disponível em: http://www.epsjv.
fiocruz.br/sites/default/files/l191.pdf. Acesso em: 22 mar 2021.
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? São Paulo: Paz e Terra, 7. ed. 1983.
KORSCH, K. O conceito de forças produtivas materiais. [1938]. Disponível em: https://www.marxists.
org/portugues/korsch/ano/mes/conceito.htm. Acesso em: 21 out. 2018.
MARTINS, A. F. G. A produção ecológica de arroz nos assentamentos da região metropolitana de Porto
Alegre: territórios de resistência ativa e emancipação. Porto Alegre, 2017. Tese (Doutorado). Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul.
MARX, K. O capital. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
______. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
SOSA, B. et al. Revolução Agroecológica: o Movimento de Camponês a Camponês da Anap em Cuba.
2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

Para saber mais


CHAYANOV, A. A teoria das cooperativas camponesas. Porto Alegre: EDUFRGS, 2018.

COSMOVISÕES

C ar los Bar r ientos

O termo “cosmovisão” é uma adap- várias de suas obras, em particular em


tação da expressão Weltanschauung, seu livro Introdução às ciências da cultura,
no idioma alemão, composta por duas publicado em 1914.
palavras: Welt, “mundo”, e anschauen, Dilthey defendia que a experiência
“observar”. O termo foi cunhado pelo vital se formava com base no conjunto
filósofo alemão Wilhelm Dilthey em de princípios da sociedade e da cultura

278
COSMOVISÕES

no qual se havia formado uma pessoa. tilhados por boa parte dos membros de
As relações, sensações e emoções pro- um grupo social (Barabas, 2015).
duzidas pela experiência específica no
mundo, em meio a um ambiente deter- Características das cosmovisões
minado, contribuiriam para conformar É importante ter presente que as
uma cosmovisão particular. Todos os cosmovisões não são imutáveis ou eter-
produtos culturais ou artísticos seriam, nas; surgem em um contexto histórico, C
por sua vez, expressões da cosmovisão social e específico e se modificam através
em que são criados. Contudo, o fato de do tempo nas diferentes conjunturas
que esse termo tenha sido cunhado no sociopolíticas. Por isso, podemos fa-
século XX não nega que as cosmovisões lar de cosmovisões, no plural, e nelas
existam há milhares de anos e se forjem podem existir contradições internas e
ao longo da história. Por isso, para além incon­g ruências lógicas, por não serem
da formação do termo, devemos enten- primevas, eternas ou heranças históricas
der a cosmovisão como o conjunto de estáticas.
opiniões e crenças que conformam a O fato de resultarem de processos
imagem ou conceito geral do mundo históricos e conjunturas sociopolíticas
que prevalece em um povo ou em uma significa que se modificam e se nutrem
sociedade, a partir do qual interpreta de diversas experiências coletivas ou se
sua própria natureza e tudo o que existe. adaptam às condições em que se desen-
A cosmovisão define noções co- volvem, mantendo um núcleo central e
muns que se aplicam a todos os campos adicionando, adaptando ou eliminando
da vida, desde a política, a economia aqueles componentes que possibilitam
ou a ciência, até a religião, a moral ou a uma melhor compreensão do mundo e do
filosofia. A cosmovisão não é uma teoria tempo histórico às pessoas que integram
particular sobre o funcionamento de al- os povos ou sociedades.
guma entidade particular, mas uma série Cada cosmovisão provê à pessoa
de princípios comuns que inspirariam humana um ponto de partida, uma base
teorias ou modelos em todos os níveis: sobre a qual constrói o sentido de sua
uma ideia da estrutura do mundo que existência; possibilita também a repro-
funda o marco para as demais ideias dução cultural, a adaptação criativa, a
(Fernández González, 2010). transmissão de conhecimentos e o apoio
A cosmovisão é, portanto, a ima- às formas de organização social.
gem geral do universo e da existência Neste sentido, não se deve descon-
construída por cada cultura e que per- siderar que cada povo e sociedade tem
mite explicar a realidade e estabelecer uma forma particular de conceber a vida,
conceitos comuns que se plasmam na de relacionar-se com seus semelhantes e
espiritualidade, nos valores, e em todo com o meio que o rodeia.
campo da vida social. Um elemento Contudo, não se pode perder de vista
central da cosmovisão é que se consti- que as cosmovisões também são fruto da
tui de representações coletivas sobre o dinâmica de classes que prevalece em
universo, as entidades sobrenaturais, os uma sociedade (Sánchez Cortéz, 2001);
seres vivos e não vivos, a territorialidade, desta forma, é possível observar que certos
a organização social etc. que são compar- componentes da cosmovisão vão desapa-

279
COSMOVISÕES

recendo ou deixando de ter relevância nos dar a entender que a única concepção
casos de interesse das classes dominantes, “correta”, “apolítica”, “natural” etc. é a
mas, ao mesmo tempo, no caso de povos sua. Porém, quando são outros os funda-
que foram subjugados ou dominados mentos ideológicos com os quais se quer
também é possível encontrar outras cos- dirigir a educação, as leis, a história etc.,
movisões subordinadas ou invisibilizadas, acusam a estes projetos e a quem os ela-
C em uma mesma sociedade ou país. boram de “ideologizados”. No entanto,
Embora haja uma série de pontos este ocultamento também é ideológico,
em comum entre cosmovisão e ideologia, porque busca manter e reproduzir o siste-
esta última é o sistema de ideias ou repre- ma de ideias e de representações sociais
sentações sociais, bem como de atitudes das classes dominantes. Por essa razão,
e comportamentos sociais fundamentais, Marx defendeu que, em uma sociedade,
conformados histórica e socialmente, as ideias da classe dominante são as
que permite organizar o conhecimento, ideias dominantes.
as crenças e opiniões com os quais as Em síntese, a cosmovisão se constrói
classes sociais ou setores das classes a partir da relação dos seres humanos
sociais explicam e reproduzem seus inte- com a natureza, o mundo, o cosmos e,
resses e sua visão da ordem social e que, neste marco, a relação dos seres humanos
em síntese, diz respeito à manutenção entre si, enquanto a ideologia se constrói
ou transformação das condições e dinâ- no marco de um sistema econômico
micas sociais existentes. A ideologia se e expressa e reproduz a visão, as con-
expressa, entre outros aspectos, no relato cepções e interesses das classes sociais.
histórico, na interpretação religiosa, no Ambas são criações humanas e podem
Direito e na consciência que as classes ser utilizadas em função de determinados
sociais têm de si mesmas, e é difundida interesses de classe.
através da educação, da doutrina reli- Esta relação pode ser exemplifi-
giosa, dos meios de comunicação, das cada com o uso e desenvolvimento da
redes sociais e todas aquelas práticas que medicina: a medicina ocidental parte
possibilitam a reprodução de conteúdos. da síntese de determinados compos-
A ideologia, ao desenvolver-se his- tos químicos utilizados nos processos
toricamente e constituir-se a partir das biológicos para combater os efeitos das
condições da vida material no marco de doenças. A acupuntura, desenvolvida na
um sistema econômico que predomina Ásia Oriental, parte da concepção de
em dado momento e que, por sua vez, equilíbrio das energias presentes no ser
expressa os interesses de determinadas humano e busca combater as doenças,
classes, atua sobre o desenvolvimento recuperando o equilíbrio de tais ener-
da sociedade, reproduzindo, protegendo gias. As duas partem de cosmovisões
ou questionando a ordem legal e as ins- diferentes, mas, no mundo capitalista
tituições de uma sociedade. e no interesse das classes dominantes,
Precisamente pelo papel que de- no lugar de promover o conhecimento
sempenha na garantia da dominação, e utilização de plantas medicinais ou o
as classes dominantes ocultam a carga uso da acupuntura, se desenvolveu a in-
ideológica que têm a educação, as leis, dústria farmacêutica, que fatura bilhões
a história etc. Com isso, pretendem de dólares por ano.

280
COSMOVISÕES

Cosmovisão dominante o homem está destinado a dominar a na-


Quando se fala de “cosmovisão”, tureza, tal como está expresso em diversas
geralmente se faz referência à cosmovisão passagens do livro do Gênesis. No capítulo
dos povos originários ou indígenas; toda- 1, versículo 26, pode-se ler: “Deus disse:
via, se esquece que em nossas sociedades ‘Façamos o ser humano à nossa imagem
existe uma cosmovisão dominante que e segundo nossa semelhança, para que
favorece determinadas classes sociais domine sobre os peixes do mar, as aves C
e que geralmente se denomina “visão do céu, os animais domésticos, todos os
ocidental”, mas que, quando tratada em animais selvagens e todos os animais que
termos genéricos, perde-se de vista qual se movem pelo chão”.
é o seu caráter de classe; portanto, uma Do judaico-cristianismo provém
especificação se impõe como necessária. também certo nível de intolerância: no
Ao falar de cosmovisão dominante, livro do Êxodo (capítulo 20, versículos 3
nos referimos a uma cosmovisão que e 5) se afirma: “Não terás outros deuses
foi sendo forjada ao longo dos séculos além de mim.”. “Não te prostrarás diante
e que se nutre de diferentes origens. dos ídolos, nem lhes prestarás culto, pois
Entre seus fundamentos, há a visão eu sou o Senhor teu Deus, um Deus
greco-romana, que toma a concepção ciumento”. É esta visão que, ao longo
de separação e de contraposição entre dos últimos 2 mil anos, levou a rechaçar
o mundo sensível e as ideias, tal como tudo que não seja a visão cristã católica
expressara Platão. Da mesma forma, este ou evangélica. Finalmente, o conceito de
e outros filósofos gregos estabeleceram bem e de mal provém destas concepções
uma separação entre o corpo, onde se e, portanto, de moralidade que predomi-
alojam os desejos e as impurezas do ser na em nossas sociedades.
humano, e a alma imortal, que constitui Da mesma forma, esta cosmovisão
a verdadeira essência do ser, como se dominante se nutre do liberalismo, que
expressa no mito do cavalo alado. A impulsionou a divisão formal de poderes,
partir dessas definições, na cosmovisão embora na prática as burguesias contro-
dominante, se estabelece uma separação lem o poder real; igualmente o individua­
e uma contraposição entre o espiritual e lismo é impulsionado e exaltado desde
o material. Dos gregos também se herdou uma visão liberal, em detrimento do co-
o pensamento de que o ser humano é o letivo ou comunitário, junto ao “sagrado”
centro do universo; basta recordar a con- direito de propriedade, além da distorção
cepção de universo de Aristóteles, em do conceito de liberdade que se equipara
que a Terra ocupa o centro. Os romanos com a liberdade para comercializar.
não apenas herdaram as ideias gregas, A cosmovisão dominante se baseia
mas também legislaram sobre a proprie- no positivismo, que não admite outros
dade privada, seu alcance e limitações. conhecimentos como válidos cientifi-
Estas definições são tão importantes que, camente, mas apenas aqueles que pro-
na atualidade, vários cursos de Direito cedem da experiência; o fato é a única
têm o direito romano como um dos con- realidade científica, e a experiência e a
teúdos básicos. indução, os métodos exclusivos da ciên-
A cosmovisão dominante se nutre do cia. De acordo com essa visão, somente
mundo judaico-cristão, que considera que se entende a realidade com base na

281
COSMOVISÕES

razão e nas provas, dados, experimentos Cosmovisões dos povos


etc. que comprovam o conhecimento de originários e identidade
tal realidade. Face à cosmovisão dominante, se
Da mesma forma, um componente ergue uma cosmovisão que tem sido
fundamental na cosmovisão dominante negada, relegada e menosprezada; é
é o patriarcado, que se define como um a cosmovisão dos povos indígenas ou
C sistema de poder no qual o homem possui originários que explica o mundo, a
um poder superior e um privilégio econô- realidade e o entorno a partir da com-
mico (Eiseinstein, 1980), que oprime as preensão de que há uma relação perma-
mulheres através de instituições sociais, nente entre as coletividades humanas,
políticas e econômicas e, para isso, os o entorno em que vivem e o cosmos; e
postos-chave de poder (político, econô- concede um simbolismo e uma rituali-
mico, religioso e militar) se encontram, dade a cada aspecto dessa relação, que
exclusiva ou principalmente, em mãos se expressa no tempo e na concepção do
masculinas, e a sociedade se conforma espaço, cujo exemplo é o Tahuantinsuyo
a partir da visão dos homens e da subor- entre os incas.
dinação das mulheres. Assim, nesta cosmovisão, o ser hu-
Finalmente, também se pode men- mano não é o centro do universo, apenas
cionar o racismo como parte do núcleo um componente a mais de um equilíbrio
fundamental da cosmovisão dominante. que deve existir com a Mãe Natureza e o
Para justificar os níveis de opressão e Universo, que são parte do mesmo todo
exploração sobre os diferentes povos que ao qual pertencemos como seres huma-
têm sido dominados pelas potências co- nos; a terra não é somente um meio de
loniais, se criou o mito da suposta “supe- produção, senão a Mãe que dá a vida e
rioridade” europeia frente às sociedades pela qual se deve retribuir. Contudo, é
originárias da América, África ou Ásia. preciso situar alguns elementos históri-
Essa justificativa e construção social na cos que explicam a importância destas
qual supostamente existem populações cosmovisões, em particular de nosso
“superiores” prevalece até nossos dias. continente, denominado pelo povo Puna
Esta cosmovisão, funcional às clas- do Panamá como Abya Yala.
ses dominantes e ao capitalismo, gerou Nossa América, ou Abya Yala, é
um modelo de relacionamento entre os um continente que foi colonizado na
seres humanos e a natureza. A partir daí época em que estava se constituindo o
se considera “desenvolvimento” tudo o modo de produção capitalista na Euro-
que permite desenvolver uma forma de pa, a que Marx chamou de período da
vida com elevado consumo de energia, acumulação primitiva. Foi, de alguma
desigualdades, dilapidação de recursos, maneira, a primeira experiência colo-
sem pensar nas futuras gerações. Tudo, nial da época burguesa.
incluindo os seres humanos, pode ser Ao chegarem, os invasores, que
apropriado para venda ou compra, se- posteriormente colonizaram nosso con-
gundo convenha à satisfação individual tinente, encontraram sociedades indí-
daqueles que têm os recursos para com- genas que haviam alcançado diferentes
prar. Essa cosmovisão é a que nos coloca modalidades de desenvolvimento. Desde
à beira do desastre ambiental. povos nômades de caçadores e coletores

282
COSMOVISÕES

até sociedades com um desenvolvimento originárias, como aconteceu no Caribe.


intensivo da agricultura, nas quais havia Em outros casos, a prática dominante foi
florescido um mundo humano que se isolar os povos originários, como aconte-
caracterizou por haver alcançado suas ceu com as reservas indígenas nos atuais
próprias formas de organização social Estados Unidos e Canadá, as reservas ou
e conquistas extraordinárias na ciência demarcações na Colômbia, no Brasil, no
e na arte. Chile e em outros países. Nos territórios C
Em todo nosso continente, convi- onde existiam concentrações de popula-
viam diversos povos que, em seu processo ções originárias, como os astecas, maias,
formativo, haviam desenvolvido suas incas, aproveitaram parte da configura-
próprias cosmovisões, mas com elemen- ção preexistente, mas em uma espécie de
tos comuns: a ideia de que o ser humano segregação colonial: nas cidades viviam
é parte de um grande equilíbrio com a os invasores ou seus descendentes e, no
natureza; que a vida é uma totalidade campo, os povos indígenas.
que integra as diferentes expressões do Esta separação dos territórios per-
universo; que tudo o que é animado mitiu que se mantivesse, nos lugares
e inanimado, visível ou invisível, está onde viviam as populações dos povos
carregado, em maior ou menor grau, originários, uma base material própria
com o que geralmente é definido como que possibilitava reproduzir o tipo e a
um tipo de essência ou energia sagrada, forma de produção, os sistemas agrícolas
razão pela qual não apenas plantas, ani- ancestrais, as relações sociais caracte-
mais e pessoas têm vida, mas também a rísticas etc., o que permite explicar a
Mãe Terra, os rios e lagos, o vento etc. sobrevivência e a reprodução da cos-
E é através da espiritualidade, entendida movisão dos povos originários na nova
como tudo aquilo que transcende o ser sociedade colonial.
humano, expressa no ritual, que se es- Ao mesmo tempo, explica também
tabelece essa comunhão e comunicação porque a organização econômico-so-
com o todo vivo e com o cosmos. cial dos povos originários não pode se
A outra característica desta etapa desenvolver, limitada pela realidade
histórica de Abya Yala foi a interrupção colonial imposta violentamente. Em
violenta dos processos de constituição outras palavras, foi como plantar uma
das nacionalidades ou Estados nacionais árvore em um vaso: começa a crescer,
que estavam em gestação nestas socieda- mas chega um ponto em que não pode
des, impondo-se a estes povos o Estado se desenvolver mais.
colonial espanhol, português, inglês ou O outro elemento que permite ex-
francês sobre estes povos. plicar a sobrevivência dessa cosmovisão
Para justificar essas ações, utilizaram é a resistência dos povos originários.
a religião cristã, imposta a sangue e fogo, Resistência e rejeição que iam desde
e o mito da suposta superioridade euro- o sincretismo religioso até as rebeliões
peia contra a suposta inferioridade dos armadas locais, passando por todas as
povos originários e afrodescendentes, o formas de resistência cultural que o sen-
que gerou práticas racistas, excludentes tido de identidade étnica leva a criar no
e discriminatórias que levaram a casos ser humano oprimido, em semelhantes
de extermínio completo das populações circunstâncias.

283
COSMOVISÕES

Desta forma, parte da resistência ação complementar, outro ato


consistiu em manter, reproduzir e ade- recíproco.
quar cosmovisões próprias nas quais, em A partir desta cosmovisão, cada
que pese a diversidade dos povos exis- povo forjou e adequou uma identidade
tentes em Abya Yala, também é possível que está constituída por uma memória
identificar alguns princípios comuns: histórica preservada e transmitida na
C • princípio de inter-relação: este forma de tradições orais, escritas ou di-
princípio nos mostra que tudo versas manifestações de arte; formas de
está vinculado com tudo, o que organização social baseadas em modos
nos leva a afirmar que o mais característicos de distribuição de papéis
importante são as relações, os ou funções entre seus membros; sistemas
vínculos que se estabelecem. produtivos nos quais se inter-relacionam
• princípio de complementarie- diferentes produtos e tipos de produção
dade: segundo este princípio, com algum alimento central que se con-
nenhum ser, nenhuma ação, sidera sagrado, como o milho, a batata,
existe por si mesmo, isolado no a mandioca etc.; estruturas políticas
mundo, mas está articulado a di- nas quais estabelecem suas próprias ca-
versas relações com outros seres tegorias de “autoridade”, quem são seus
e outras ações. A complemen- integrantes, como são indicados, como
tariedade pode ser a união dos são avaliados e em que âmbito atuam; as
contrários e se relaciona com a normas sociais que possibilitam a con-
dualidade que é expressão de vivência em comunidade e que utilizam
pares com qualidades diferentes, tanto para organizar o cotidiano como
mas complementares; tudo tem para resolver as diferenças ou conflitos,
sua frente e verso, por exemplo, que em diferentes experiências têm mais
o dia tem a noite, a claridade se peso que a legislação nacional e, final-
complementa com a escuridão, mente, suas representações culturais
fêmea e macho são complemen- próprias, que se expressam em manifes-
tares, céu e terra também. A tações como o idioma, os alimentos, as
dualidade complementar está artes, o vestuário, a espiritualidade etc.
presente em tudo. Um exemplo de como se configura-
• princípio de reciprocidade: para ram estas cosmovisões pode ser encon-
que tudo exista e se mova com trado na ideia da existência de um lugar
normalidade é preciso retribuir, fértil, de abundância e agradável, como
dar e devolver à terra, ao céu, a Yvy Marãe’ỹ ou Terra Sem Mal, do
aos irmãos animais e plantas, Povo Mapuche, que se assemelha à Paxil
às montanhas e aos rios. A re- K’ayal’a, do Povo Maya K’iche’, contida no
ciprocidade deve ser praticada Popol Wuj, o livro que contém a mitologia
em todos os níveis da vida, nos e a história do Povo K’iche’, transcrito
afetos, na economia e no tra- entre 1554-1558 em símbolos latinos.
balho, até no âmbito religioso, Da mesma forma, há os conceitos de
uma vez que mesmo o divino suma qamaña, escrito no idioma Aymara,
está sujeito a este princípio. que se traduz como Viver Bem, ou suamk
A cada ato corresponde uma kawsay, escrito em Kichwa, que também

284
COSMOVISÕES

significa Bem Viver, embora a tradução cesso de complementação. O


que mais se aproxime seja Vida em Ple- respeito a tudo o que existe gera
nitude, Vida Plena. Este conceito, no a relação harmônica;
idioma Mapuche, é conhecido como kyne • Suma Aruskipaña: falar bem.
mogen, e em idioma maya k’iche’ se de- Antes de falar, é preciso sentir
nomina raxalaj k’aslemalil, que também e pensar bem. Significa falar
se pode traduzir como Plenitude de Vida. para construir, para encorajar, C
O conceito de Bem Viver ou Viver para contribuir;
Bem é uma aplicação de uma série de • Suma Ist’aña: saber escutar. Não
princípios. De acordo com o povo Ayma- apenas escutar com os ouvidos;
ra, estes princípios são: é perceber com todo nosso ser.
• Suma Manq’aña: saber comer, Se tudo vive, também tudo fala;
saber alimentar-se, que não é o • Suma Samkasiña: saber sonhar.
mesmo que encher o estômago, Tudo começa a partir do sonho.
mas obter alimentos sãos e in- Através do sonho, percebemos e
dispensáveis, tanto para os seres projetamos a vida;
humanos como para os animais, • Suma Sarnaqaña: saber cami-
as plantas, a Mãe Terra e demais nhar. Estar consciente de que
seres viventes; nunca se caminha sozinho, ca-
• Suma Umaña: saber beber, que minhamos com a Mãe Terra,
se inicia com dar de beber à Pa- com o vento, com os antepassa-
chamama, complementar-se, en- dos e com outros seres;
trar no coração, tirar do coração • Suma Churaña, Suma Katukaña:
e emergir do coração; Saber dar, saber receber. Reco-
• Suma Thukhuña: saber dançar, nhecer que a vida é uma con-
entrar em relacionamento e co- junção de muitos seres e muitas
nexão cósmica; forças. Recebemos e damos; a
• Suma Ikiña: saber dormir, para interação destas duas forças gera
recuperar as energias; vida. Dar é reconhecer; agrade-
• Suma Irnakaña: saber trabalhar, cer é saber receber.
pois o trabalho não é sofrimen- No marco desta cosmovisão, em 23
to, é alegria que deve ser reali- de abril de 2008, no Fórum Permanente
zada com paixão; para as Questões Indígenas das Nações
• Suma Lupiña: meditar em silên- Unidas, o Presidente [da Bolívia] Evo
cio, porque equilibra e harmo- Morales propôs os “Dez Mandamentos
niza; conectar-se com o entorno para Salvar o Planeta, a Humanidade
e com o próprio silêncio, como e a Vida”:
con­sequência desta interação, se 1. acabar com o sistema capitalista;
alcança a tranquilidade e a calma; 2. renunciar à guerra;
• Suma Amuyaña: saber pensar; é 3. um mundo sem imperialismo e
a reflexão a partir não apenas do sem colonialismo;
racional, mas também do sentir; 4. a água é vida;
• Suma Munaña, Munayasiña: 5. energias limpas e amistosas com
saber amar e ser amado, é o pro- a natureza;

285
COSMOVISÕES

6. respeito à Mãe Terra; A importância da cosmovisão dos


7. serviços básicos como direito povos originários consiste em suas con-
humano; sequências políticas. Em primeiro lugar,
8. consumir o necessário, priorizar a identidade como povos, que se nutre da
o que produzimos e consumimos cosmovisão, é um direito que reafirma a
localmente; dignidade coletiva.
C 9. promover a diversidade de cul- Segundo, na medida que oprimam,
turas e economias; menosprezem, tornem folclórico ou
10. Viver Bem; excluam a cosmovisão dos povos ori-
Os elementos antes descritos são o ginários, os Estados Nacionais serão
núcleo da identidade de cada povo, que monoculturais, excludentes e racistas
tem as suas raízes na cosmovisão. Esta que oprimem setores mais ou menos
identidade adquire especial importância numerosos da população que costuma
em situações de dominação e opressão, ser ao mesmo tempo explorada, o que
uma vez que a identidade de cada povo possibilita a síntese entre as lutas clas-
se constitui em trincheira de resistência, sistas e as lutas pelo direito de existir e
porque permite a um povo manter sua se desenvolver como povos com uma
dignidade, quer dizer, reafirmar o que são cosmovisão e identidade particular.
como povo. E esta reafirmação respalda a Terceiro, os elementos que são coinci-
luta e a resistência popular, permite que dentes, convergentes e complementares
a identidade se transmita de geração a com o projeto de transformação social
geração e, diante de determinadas con- contribuem para a definição de um novo
dições históricas, é fonte de convicções modelo de sociedade e inclusive um novo
e energias para lutar. modelo civilizatório.

Referências
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A. L.; ESPINOSA, A. G. (coord.). Cosmovisión mesoamericana: Reflexiones, polémicas y etnografías.
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Para saber mais


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nosotros%20pertenecemos%20a%20la%20tierra.pdf. Acesso em: 6 jan. 2021.

286
C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

CULTURA E AGROECOLOGIA

Jade P ercassi
Julia na B onassa
C
S ylvia ne G uilher me

Introdução contrar diversas leituras com visões e


O ponto de partida em relação aos perspectivas distintas. Durante vários
conceitos de cultura e agroecologia séculos, o conceito foi se transformando
trabalhados neste verbete se baseia na e correspondendo a interesses espe-
ideia central de que é preciso caminhar cíficos. Como ocorre com todos os
para a consolidação de uma cultura conceitos, o de cultura não é neutro,
agroecológica. Isso implica necessaria- assim como não o são seus processos
mente compreender a cultura para além de conformação.
da arte, e a agroecologia para além da A abordagem de cultura utilizada
produção de alimentos. Este enfoque aqui não busca engessar as diversas
se refere à forma de organizar a vida no dimensões e relações que as práticas
seu sentido mais amplo. A construção culturais comportam; porém, é uma
da cultura agroecológica sugere uma compreensão com posição política as-
abordagem da forma de produção e sumida, que parte do ponto de vista da
reprodução da existência humana que classe trabalhadora, com ênfase nos fe-
se desenvolve em territórios de forma nômenos culturais que se desenvolvem
coletiva, partindo inclusive de uma no campo brasileiro, considerando suas
perspectiva de projeto para o campo dinâmicas, práticas e conformações.
considerando sua intrínseca relação Este posicionamento se faz neces-
com a cidade. sário, pois os conceitos, assim como as
Para se aproximar do que seria este práticas culturais, estão sendo disputa-
processo de organização da vida, nes- dos cotidianamente. Tal disputa se dá
te texto serão desenvolvidas algumas entre dois projetos antagônicos para
ref lexões como: o que é cultura; as o campo brasileiro: o do agronegócio
disputas ideológicas e organizativas que e o da agroecologia [ver Agronegócio;
estão postas neste campo; a indústria A groecologia]. Tendo cada um deles
cultural como estrutura de dominação seus desdobramentos em diversas esfe-
do sistema capitalista e seu papel na le- ras: a econômica, tecnológica, social,
gitimação do agronegócio como projeto produtiva etc. Mas é, sobretudo, na
capitalista para o campo; e algumas prá- esfera cultural que esta disputa pode
ticas emancipatórias em que a cultura ou não legitimar um dos dois projetos.
agroecológica se desenvolve. Vale ressaltar que nesta batalha, por
O conceito de cultura é em si mes- compreender a cultura como campo de
mo complexo. Sobre ele é possível en- ação eficaz, o agronegócio está em franca

287
C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

vantagem, como será apresentado mais e o cuidado com a terra, preparar as


adiante neste texto. condições para fazer brotar, florescer e
Um passo fundamental para que se frutificar. Agricultar, então, significava
avance na compreensão dessa disputa ocupar a terra, trabalhar na terra, viver
é conhecer as diferentes apreensões da na terra. Relacionar-se com a terra pode
cultura e sua relação com a concepção ser considerado um dos mais antigos
C de sociedade. Tal exercício se faz ne- atos culturais e essa relação também
cessário para questionar, radicalmente, nos permite compreender a história da
a própria compreensão hegemônica humanidade (Chauí, 2001).
de cultura que é apresentada desde a Nos estudos antropológicos, am-
escola, na universidade, nos meios de plia-se o conceito para além da ação
comunicação, redes sociais e demais em si: a cultura compreende as práticas
espaços em que se debate e se vivencia de um conjunto de pessoas, as relações
o tema. Por ser elitista e elitizada, ela es- sociais estabelecidas para execução de
trutura uma forma de pensar e agir que tais práticas e os valores e represen-
torna os sujeitos que lutam por uma vida tações simbólicas compartilhadas por
digna reféns de uma concepção estéril. essas mesmas pessoas. Segundo a leitura
Na concepção hegemônica de cul- marxista, determinadas relações sociais
tura, as mediações e relações não são de produção (portanto, de relações
ressaltadas ou, então, são naturalizadas. entre pessoas para modificar a nature-
Desconstruir as bases que estruturam za, a fim de satisfazer as necessidades
o conceito hegemônico de cultura e humanas) são a base sobre a qual serão
dar uma dinâmica orgânica e de vida estabelecidos determinados valores,
para o processo cultural significa to- pensamentos e representações simbó-
mar parte neste enfrentamento. E para licas. As ex­periências de um grupo se
tanto, compreender a origem da palavra enraízam com a de seus antecessores por
cultura como ocupação da terra e o meio de mediações simbólicas, como as
desenvolvimento da vida nela favore- canções, as danças, histórias. Os cantos
ce a ideia de que o desenvolvimento de trabalho, por exemplo, surgem da
da cultura agroecológica (Leff, 2001), vida coletiva e estabelecem relações
como sistema amplo de organização da com a história, com a memória.
vida, é uma posição contra-hegemônica A cultura e sua relação com a terra,
no campo cultural. com a posse e o trabalho na terra, esti-
veram ligadas historicamente a proces-
A origem da palavra cultura e seu sos econômicos e políticos, permeados
desenvolvimento pela luta de classes. A cultura tem sido
A origem mais antiga da palavra um amplo campo de disputa de signi-
encontra-se no verbo do latim colere, ficados e de modos de vida. Cultura,
que significa cultivar, cuidar. Dele, economia e política não se separam ao
derivam a puericultura – cultivo e cui- longo da história. Num determinado
dado das crianças, forma original de período histórico, durante o século
pensar a educação; culto – à dimensão XVIII, a cultura passou a significar
sagrada da vida, à ancestralidade e às um conjunto de práticas (arte, ciência,
divindades; e a agricultura, o cultivo técnicas, filosofia, ofícios) que permite

288
C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

avaliar e hierarquizar determinado humanos desenvolvem sua humanidade


povo, país ou regime como mais ou através da cultura, que por sua vez cons-
menos evoluído, segundo os parâmetros titui os mesmos seres humanos em uma
das classes dominantes. relação dialética, de práxis social.
Foram os parâmetros das classes Para Marildo Menegat, a cultura
dominantes ao longo de três séculos está no campo da práxis social, no qual
que estabeleceram a separação inten- o trabalho intelectual e a prática não se C
cional entre a alta cultura, ou cultura desvinculam. Segundo ele:
erudita, que compreende as produções Falar em cultura significa pensar
artísticas supostamente mais complexas a partir desse universo da práxis
e os saberes científicos desenvolvidos na social, a cultura faz parte da repro-
esfera dos espaços acadêmicos, de um dução da vida humana em socieda-
lado, e de outro lado a cultura popular, de. Isso significa que todo ato de
que é considerada, por essa perspectiva cultura, mesmo que seja isolado,
hegemônica, de menor valor, por reunir está relacionado com o todo da vida
saberes populares não sistematizados so- social. (Menegat, 2016, p. 16)
bre a natureza e manifestações artísticas Essa práxis social em que a cultura
que correspondem a formas de relações se desenvolve também é disputada pela
sociais de produção não capitalistas. visão hegemônica do sistema capitalis-
Em contraposição a essa concepção ta, e resulta em muitos conflitos. Por
burguesa, há a cultura popular como isso, faz-se necessário desmontar os
um campo de práticas, saberes popu- pilares que a sustentam. Dado que estes
lares, trocas, processos organizativos, pilares levam a um processo de aliena-
conhecimentos e desenvolvimento de ção, eliminar a divisão social do traba-
técnicas culturais e artísticas de alta lho e a propriedade privada, portanto,
complexidade e diversidade, que não são tarefas vitais para se projetar uma
podem ser medidas com os parâmetros cultura para a emancipação humana.
hegemônicos. Não por acaso, a hege- Conceber a cultura dessa forma
monia cultural tenta continuamente seria o caminho para uma reconcilia-
eliminar ou absorver a cultura popular, ção dos seres humanos entre si e com a
com o intuito de transformá-la em mer- natureza nas suas mais diversas esferas.
cadoria. O desenvolvimento orgânico Essa reconciliação pode ser desenvol-
das manifestações da cultura popular é vida ao passo em que se consolida a
perigoso para a manutenção dos valores compreensão e a prática de uma cultura
hegemônicos capitalistas. agroecológica como pilar do desenvolvi-
Cultura é a produção e reprodução mento da vida no campo, em contrapo-
da existência humana em determinado sição ao modo de produção capitalista.
contexto histórico. É prática social, e jus- Pois, se se compreende a cultura como
tamente em suas relações e mediações é campo em que se assentam as bases e as
que se desenvolve o processo organizativo práticas da reconstrução de uma práxis
da vida: o que e como se planta, come, social emancipatória, a agroecologia
estuda, aprende; como se cuida das crian- figura como elemento fundamental para
ças e idosos; como se faz arte, crenças, a reconstrução ecológica da agricultura
hábitos, a forma de fazer política. Os seres e da cultura como um todo.

289
C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

A partir desta perspectiva, a Refor- uma finalidade prática imediata – foi


ma Agrária Popular [ver Reforma Agrá­ apropriada, no decorrer dos tempos,
ria Popular] é o programa que propõe e transformada em mercadoria. O di-
esta fusão entre cultura e agroecologia, reito à educação estética dos sentidos
na qual seres humanos, natureza, ali- como experiência coletiva da huma-
mentos, educação dos sentidos, arte, nidade é muitas vezes sonegado, pelos
C relações humanas, sociais, econômicas fenômenos que alguns pesquisadores
e políticas se relacionam de maneira denominaram indústria cultural, uma
orgânica. estrutura sofisticada e articulada de
dominação que relaciona as esferas
A indústria cultural como da cultura, da política e da economia
estrutura de dominação desde meados do século XX.
Ao contrário do parâmetro de cul- O conceito de indústria cultural
tura como dimensão da práxis social, o foi cunhado pelos professores Theodor
pensamento predominante no senso co- Adorno e Max Horkheimer, atuantes na
mum, como fruto da ideologia burguesa, Universidade de Frankfurt (Alemanha).
define a cultura como uma espécie de Para os autores, a Indústria Cultural
acúmulo que se pode mensurar: teriam era uma dinâmica característica do
“mais cultura” ou seriam “mais cultas” momento histórico gerado pelo apareci-
as pessoas de classes sociais abastadas. mento da grande empresa capitalista na
Por este viés, a cultura torna-se um fator Inglaterra. O início da fase imperialista
de distinção, um elemento de reconhe- do capitalismo, com uma nova organi-
cimento social (Bourdieu, 2007). zação do capital bancário, configurando
Saber tocar um instrumento musi- o capital financeiro, a concentração e
cal, interpretar ou cantar, ter o hábito centralização de capital chamado por
de ler livros, conhecer amplo repertório diferentes correntes marxistas de “ca-
de filmes do cinema nacional e interna- pitalismo monopolista”.
cional são, antes de mais nada, direitos O principal aspecto da indústria
fundamentais inerentes a todas e todos cultural está na articulação merca-
os seres humanos. Entretanto, no mun- dológica entre cultura, arte e diverti-
do capitalista esses direitos muitas vezes mento, tendo em vista a perpetuação
são negados e tornam-se privilégios. As da dominação do sistema produtivo
classes mais abastadas investem seus sobre o trabalhador, também em seu
recursos na formação diferenciada de tempo livre. “A diversão é o prolonga-
seus filhos, enquanto à maioria da classe mento do trabalho sobre o capitalismo
trabalhadora é negado o acesso aos bens tardio” (Adorno; Horkheimer, 1985, p.
culturais e os meios para que se tornem 128). Conforme afirmam os autores do
produtores na esfera das linguagens verbete Indústria Cultural e Educação
artísticas, por exemplo. do Dicionário da Educação do Campo:
Na dinâmica atual de extrema Em outros termos, trata-se do feti-
mercantilização da vida, a arte, que chismo da mercadoria encobrindo
é resultado da produção humana da os fundamentos da extração de
experiência sensível – capaz de pro- mais-valia sob o capitalismo mono-
duzir bens simbólicos que não têm polista. Ao consolidar a diversão em

290
C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

mercadoria, a Indústria Cultural as- Agroecologia, cultura e arte:


senta os termos de dominação social práticas emancipatórias
do capitalismo no século XX. [...] A arte surge como expressão do
Seguindo os argumentos de Adorno desenvolvimento da sociabilidade.
e Horkheimer, podemos afirmar
Quando os seres humanos iniciaram
que a IC é uma redução imediata
o processo de humanização, que os
e absoluta da superestrutura ideo­
lógica aos fundamentos da base distinguiu dos animais, também teve C
econômica pelos termos do valor início o desenvolvimento da arte. A
de troca. (Bastos et al., 2012, p. 413) arte é parte do processo de experiência
dos seres humanos como seres criadores
No campo das providências, o pri-
e produtores de vida nas suas diversas
meiro passo é reconhecer a indústria
dimensões. A criação dos instrumentos
cultural (e suas formas de operação)
de trabalho e da arte se deu em con-
como um problema a ser pensado e com-
junto no desenvolvimento humano.
batido. A formação em sentido eman-
Porém, com o advento da sociedade
cipatório pressupõe um processo de
dividida em classes, com a divisão social
acumulação estética, a partir do legado
do trabalho entre trabalho manual e
artístico que formalizou as contradições
trabalho intelectual, foram conferidos
do processo histórico. Esse processo
sentidos distintos para a arte e para o
cumulativo gera novos parâmetros de
trabalho. Compreender essa separação
fruição e de consciência dos dilemas
é fundamental para que se compreen-
da experiência brasileira, periférica,
da o papel da arte como dimensão da
colonizada, contraditória. A educação
cultura, entendida como práxis social.
para a percepção das estruturas formais
Segundo Menegat, se o resultado
tem a potencialidade de se contrapor
do trabalho atua na esfera da resolução
à influência da ideologia produzida e
imediata ou em curto prazo do existir:
propagada pela indústria cultural. A
educação deve, portanto, proporcionar A arte nos coloca um problema em
meios críticos de percepção da media- relação ao mundo, sempre nos co-
loca um ‘podemos ser’. Num mundo
ção que a indústria cultural estabelece
de crise civilizatória, como o nosso,
entre os indivíduos e o mundo, entre a arte e a cultura só têm sentido se
vida e realidade. Porém, a educação é forem uma arte e uma cultura que
restrita, e não pode mudar de fato as tenham esta clareza. Ser contra a
relações sociais que produzem as dife- barbárie é ter consciência de que o
rentes formas de exploração e opressão. que está em jogo é salvar a huma-
Nesse aspecto, os espaços educativos nidade, na qual estamos incluídos.
devem ir além da condição de oferta (Menegat, 2016, p. 33)
de acesso aos bens culturais, posição Em uma perspectiva emancipatória
que gira em falso sobre o eixo da lógica para os povos do campo, a cultura tem
capitalista do consumo, e transformá- o papel de contrapor-se à divisão entre
-los em espaços de produção cultural, trabalho e arte.
de socialização dos meios de produção Nessa interpretação, portanto, é no
artística e de com­preensão crítica da universo do trabalho coletivo que se
realidade. assentam os modos de conceber desde a

291
C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

astronomia, passando pela apreensão do pão não deixar faltar/A turma da


funcionamento dos ecossistemas, da natu- força verde/Estão saindo pro mar/
reza e das formas de cultivar a terra, até as [...] Eles vêm de voadeira/E prendem
aprimoradas técnicas alquímicas de pre- nosso pescado/Depois vão com a
família/Almoçar lá no mercado/
paro do alimento de cada culinária. São
Depois comem com cerveja/O peixe
ainda dessas relações de trabalho que os
que foi pescado/[...] Nem mesmo o
C saberes sobre as ervas e os remédios natu- meu fandango/Eu posso mais tocar/
rais perpassam a medicina tradicional [ver Pra viola de fandango/Caxeta não
Medicina Tradicional], que se configuram retirar. (Domingues; Costa, 2017)
a espiritualidade e a religiosidade de um
Esta chimarrita do Fandango do
grupo, e de onde, inclusive, são extraídas
litoral paranaense, chamada Moda da
as matérias-primas para a arte no sentido
força verde (Domingues; Costa, 2017),
amplo: a dança, a música, a literatura, as
composta pelos mestres Aorélio Do-
artes visuais, o teatro etc.
mingues e Ivo Costa, e que compõe o
Contudo, processos coletivos de
álbum Amanhece (2017), conta, canta e
resistência anunciam a necessidade de
tamanqueia o cotidiano de resistência
nutrir formas e modos populares de
dos pescadores contra algumas das
organização da vida que considerem o
formas de opressão e violência sobre a
equilíbrio harmônico entre ser humano
secular cultura caiçara. Nesta canção
e natureza. Nessa direção, a agroecolo-
do Fandango Caiçara, as relações indis-
gia vem se construindo como inadiável
sociáveis de produção e reprodução da
e imprescindível para defender as me-
vida aparecem com evidência. Natureza
mórias, cultivar as sabedorias e garantir,
e ser humano, trabalho e arte, como
assim, o futuro da humanidade (Toledo;
dimensões elaboradas e desenvolvidas
Barrera-Bassols, 2015).
organicamente no cotidiano destes pes-
Na agroecologia, em seus pres-
cadores, agricultores, artistas e devotos
supostos e práticas, a valorização e
do Divino Espírito Santo. O teor políti-
recriação dos conhecimentos e técnicas
co da canção está para além dos versos
acumuladas pelos povos originários
de denúncia, mas fundamentalmente no
e comunidades tradicionais nas suas
fato de resistirem pescando, plantando,
correntes ancestrais – na agricultura, na
tocando, cantando, rezando de forma
culinária, na saúde, na educação e/ou
combinada e integrada.
na arte – é apresentada como vital para
Dentre vários exemplos, outro é
a garantia da sobrevivência humana.
o das Quebradeiras de Coco Baba-
Esta vitalidade existe por projetar
çu. Ocupando um território entre a
na produção e na reprodução da vida
caatinga e o cerrado, nos estados do
um diálogo e equilíbrio, justo e necessá-
Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins,
rio, das relações com os bens naturais e
muitas mulheres camponesas fazem
os bens culturais, considerando, ainda,
do extrativismo do babaçu – uma das
o contexto das disputas econômicas,
principais palmeiras do Brasil – fonte
conf litos políticos e lutas sociais do
de vida. Protagonizando a organiza-
seu tempo.
ção social das comunidades às quais
Coitado do pescador/Que precisa pertencem, elas coletam os cocos e,
de pescar/Atrás da nota de cem/Pro

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C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

enquanto os quebram, entoam cantigas Dessa forma, é organizada a feira de


e versos a partir do ritmo das batidas produtos agroecológicos in natura, benefi-
dos paus nos facões. Da casca do coco ciados e de artesanato; a culinária da terra,
fazem carvão, colares, adornos e obras com pratos típicos regionais; a partilha de
de arte. Da castanha preparam o azei- mudas e sementes crioulas; os intercâmbios
te, a farinha e o sabão, de comer e de e oficinas de práticas agroecológicas; os
banhar. Da palha das folhas do babaçu remédios, ervas, chás e curas milenares C
são produzidas as coberturas e paredes tradicionais; os seminários e debates sobre
das casas, cestarias e chapéus. E ao cair saúde popular, relações de gênero, educa-
da noite, transitando entre o sagrado e ção do campo, cultura popular, contra o
o profano, celebram suas santas e suas uso de agrotóxicos etc.; e, ainda, as apre-
danças, evocando a força feminina das sentações das mais diversas linguagens,
palmeiras e da natureza, que para estas nas quais artistas e grupos populares se
mulheres está confirmada nos contor- encontram, contam e cantam a vida na
nos de cada teta do coco de babaçu. terra, nas águas e nas florestas. Tudo regis-
Ave Palmeira, que sofre desgra- trado e divulgado em uma intensa vivência
ça/Malditos derrubam, queimam de comunicação popular.
e devastam/ Bendito é teu fruto A arte na agroecologia é assim: o
que serve de alimento/E no leito cotidiano vivo, em movimento estético
da morte ainda nos dá sustento/ de transformação recíproca entre seres
Santa mãe palmeira/Mãe de leite humanos e natureza. A terra onde pousa a
verdadeiro/Em sua hora derradeira/ semente e nasce a flor e o fruto, nas mãos
Rogai por nós quebradeiras. (Silva, humanas se torna pigmento mineral para
2016, p. 13)
desenhos, pinturas, esculturas e bandei-
Há, ainda, espaços de convergência ras. Os movimentos e ritmos da natureza
de várias dessas produções e memórias e do trabalho se dobram, revolvem e
bioculturais. Um deles é a Feira Nacio- viram danças nos corpos individuais e
nal da Reforma Agrária, que vem sendo coletivos, nos terreiros ou nas marchas.
realizada pelo MST na capital de São A palavra e o nome de cada coisa que
Paulo desde 2015. As feiras propõem um dia não tinha nome se combina em
dias intensos de atividades artísticas, versos, vira história, causo, cria mundo
alimentares e formativas acerca da imaginado e organização popular. Os
Agroecologia, alinhavando cada uma sons dos bichos, das águas, dos ventos,
das dimensões que a compõem na cons- dos trabalhos, das gentes, se propagam
trução de uma cultura emancipadora, pelo ar em músicas e canções fazendo das
que aproxima campo e cidade por meio peles, madeiras ou crinas instrumentos de
do alimento. encantaria e rebeldia.

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Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.
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C U LT U R A E A G R O E C O L O G I A

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de coco babaçu: reflexões e aprendizados. Brasília: ISPN, 2016.
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C dorias tradicionais. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

Para saber mais


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294
D
DESERTIFICAÇÃO

A ldr in M artin P er ez-M ar in


L uis F elipe Ulloa F or ero

No âmbito da Convenção das Na- das propriedades físicas, quími-


ções Unidas de Combate à Desertifi- cas e biológicas ou econômicas do
cação e Mitigação dos Efeitos da Seca solo; e c) a destruição da vegetação
(United Nations Convention to Combat por períodos prolongados. (Brasil,
2006, p. 8)
Desertification – UNCCD), a desertifi-
cação é entendida “como degradação Por sua vez, as zonas áridas, semiá-
da terra nas zonas áridas, semiáridas e ridas e subúmidas secas são entendidas
subúmidas secas, resultantes de vários como “todas, com exceção das polares
fatores, incluindo as variações climá- e subpolares, nas quais a razão entre
ticas e as atividades humanas” (Brasil, a precipitação anual e a evapotrans-
2006, p. 7). piração potencial está compreendida
Por degradação da terra, a UNC- entre 0,05 e 0,65”. Ou seja, regiões que
CD entende se caracterizam por apresentar uma
[...] a redução ou perda da produti- baixa precipitação anual (i.e., pouca
vidade biológica ou econômica e da chuva) e alta evapotranspiração (i.e.,
complexidade das terras agrícolas perda de água do solo por evapora-
de sequeiro, das terras agrícolas ção e perda de água das plantas por
irrigadas, das pastagens naturais, transpiração – evapotranspiração). No
das pastagens semeadas, das flores- sertão, popularmente se diz que chove
tas e das matas nativas devido aos de baixo para cima, pois a precipitação
sistemas de utilização da terra ou a média anual é de 800 mm, enquanto
um processo ou combinação de pro- a evapotranspiração é em média de
cessos, incluindo os que resultam
2.500 milímetros, prevalecendo déficit
da atividade do homem e das suas
formas de ocupação do território,
hídrico ao longo de todo o ano. O ba-
tais como: a) a erosão do solo cau- lanço negativo entre a precipitação e a
sada pelo vento e ou pela água; b) evapotranspiração resulta num período
a deterioração das condições físicas curto para o crescimento dos cultivos.
DE SERT I F ICAÇÃO

O conceito de desertificação da Estima-se que 42% da população


UNCCD é vago quando diz ser “resul- mundial viva nestas áreas e que 22% da
tante de vários fatores”. Em tese, segundo produção mundial de alimentos tenha
a UNCCD, a desertificação pode ter origens nestes ambientes (Food and
múltiplas causas e pode gerar múltiplas Agriculture Organization, 2007; Dobie,
consequências interligadas por mecanis- 2011), acumulando experiências de vida
mos que se retroalimentam. Isto implica vinculadas a processos de desertificação
que a definição de desertificação pode e mudanças climáticas (Perez-Marin et al.,
ser interpretada como tendo uma abran- 2017). Segundo a Food and Agriculture
D gência muito ampla, envolvendo fatores Organization (FAO) (2007), cerca de
estruturais como: desigualdades sociais, 69,5% das terras secas encontram-se
pobreza, decisões políticas, concentração afetadas pela desertificação, a uma taxa
de terra, renda, biodiversidade, água [ver anual de degradação de 0,13%.
Água], meios de produção e alta densidade É importante não confundir deser-
demográfica; ou bem mais restrita, como a tificação com deserto. São paisagens
degradação das terras utilizadas pela ação semelhantes, porém com processos e
humana, como a mineração [ver Minera­ resultados distintos. A desertificação
ção], por exemplo, que degrada de forma é um processo cumulativo de degrada-
significativa a terra. Devido a isso, quase ção da terra, plausível de ser revertido,
todas as afirmativas sobre desertificação que ocorre durante lapsos de tempo
têm uma forte dose de subjetividade, com relativamente grandes (dez anos ou
sua consequente baixa confiabilidade. mais) e que resulta essencialmente da
Pedagogicamente, percebe-se que ação humana, pois raramente ocorre
esta definição delimita o conceito de de forma espontânea. Ou seja, a ação
desertificação a dois aspectos: a) as zonas humana tem um papel decisivo, seja
climáticas onde ela pode ocorrer; e b) a na instalação, seja no avanço, seja na
degradação da terra, os fatores e causas reversibilidade do fenômeno da deserti-
das quais resulta, focadas nas atividades ficação, que também raramente ocorre
humanas e variações climáticas. de forma espontânea. O deserto, por
sua vez, é um ecossistema natural, que
Sobre as zonas climáticas se forma sem a interferência humana.
onde pode ocorrer Dentre os principais processos naturais
Em outras palavras, a definição li- de formação de um deserto, podemos
mita a desertificação às terras secas, destacar a pouquíssima precipitação
situadas entre os 20° e 45° de latitude, (entre 200 a 400 mm) e a elevadíssi-
que, com diversos graus de aridez, repre- ma evapotranspiração (2.500 a 3.000
sentam cerca de 47,2% da área continen- mm). Consequentemente, são quentes,
tal do planeta, correspondendo a dois áridos e muito suscetíveis a processos
terços da superfície total de 150 países de desertificação (degradação da terra)
e se encontram entre as regiões mais resultantes das ações humanas. O maior
excluídas pela maioria dos programas deserto de nosso planeta é o Saara,
de desenvolvimento (United Nations localizado ao norte da África.
Environment Programme, 1997; Pimm, Na América, as terras secas ocor-
2001) (ver Figura 10, adiante, p. 792). rem na forma de manchas de diferentes

296
DESERTIFICAÇÃO

tamanhos, do sul do Canadá ao sul da Nessa perspectiva, a região semiá-


Argentina. Particularmente na Améri- rida do Brasil, devido à sua extensão,
ca Latina e Caribe, as regiões com ca- é considerada uma das maiores áreas
racterísticas de aridez estão localizadas do mundo suscetíveis ao processo de
no Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, desertificação e mudanças climáticas.
Venezuela, Colômbia e no corredor Esta região estende-se por uma área igual
seco centro-americano. Todas estas a 1.127.953 km2, compreendendo 1.262
áreas cobrem 313 milhões de hectares, municípios. Abriga uma população que
compreendendo 80% das áreas tropicais gira em torno de 28 milhões de habitan-
e subtropicais. tes, dos quais 17,3 milhões residem em D
No Brasil, esta definição restringe áreas urbanas (IBGE, 2018; Instituto
a desertificação a uma parte da região Nacional do Semiárido, 2018). Destes
Nordeste e do norte de Minas Gerais. (17,3 milhões), uma parcela significativa
Áreas com índice de aridez superior a vivencia uma dinâmica rural, uma vez
0,65 (isto é, zonas de clima úmido) não que 90% dos municípios do Semiárido
se enquadram nesta definição. Isto quer são classificados como pequenos, por
dizer que nas outras regiões do Brasil apresentarem menos de 50 mil habitan-
pode haver processos de degradação da tes. A região apresenta 1,8 milhões de
terra semelhantes aos desta parte do estabelecimentos rurais, sendo 1 milhão
Nordeste e de Minas Gerais, mas no com menos de 5 hectares, mas que res-
âmbito da UNCCD eles não podem ser pondem por 31% do valor da produção
denominados de desertificação porque dessa região (Perez-Marin et al., 2012;
não se enquadram no âmbito da Con- Medeiros et al., 2012; Instituto Nacional
venção. Por exemplo, não se pode usar do Semiárido, 2018). O PIB per capita
o termo desertificação para caracterizar (de R$ 6.520,00) é 67% menor que a
um problema sério de arenização que há média nacional. O analfabetismo oscila
no Rio Grande do Sul, popularmente entre 36 e 46% em aproximadamente
conhecido por lá como “Deserto do 46% dos municípios, e cerca de 60%
Alegrete”, ou para indicar os proble- dos municípios apresentam um baixo
mas de desmatamento e degradação IDH (0,5 a 0,59) (Instituto Nacional do
do solo na região Amazônica, porque Semiárido, 2018).
estes locais não estão no contexto da
situação climática de aridez, semiaridez Sobre a degradação da terra e os
ou subúmida seca. fatores e causas das quais resulta
Desta forma, no Brasil, as áreas Segundo o Ministério do Meio Am-
suscetíveis à desertificação compreen- biente (Brasil, 2004), as áreas onde os
dem 1.340.863 km 2 , incluindo 1.488 processos estão mais avançados são os
municípios localizados em dez estados da denominados Núcleos de Desertificação
região semiárida do Nordeste brasileiro, no Semiárido Brasileiro (SAB): Seridó,
municípios no norte de Minas Gerais e (Rio Grande do Norte/Paraíba), Cariris
do Espírito Santo, onde o grau de conhe- Velhos (Paraíba), Inhamuns (Ceará),
cimento destes processos degradativos e Gilbués (Piauí), Sertão Central (Per-
sua extensão é ainda deficitário e neces- nambuco), Sertão do São Francisco
sita de constantes atualizações. (Bahia). Estes núcleos se constituem

297
DE SERT I F ICAÇÃO

na fiel expressão da inadequação ou integridade do meio ambiente e à renta-


ausência de práticas adequadas, quando bilidade do agricultor.
da interação entre as ações produtivas e Segundo Sampaio et al. (2003), um
os recursos naturais disponíveis em um aspecto muito preocupante da erosão é
ambiente de equilíbrio ecologicamente que mesmo perdas de grande magni-
frágil (Vasconcelos Sobrinho, 1971; tude de solo são pouco observáveis em
Almeida, 2010; Sales, 2003). curto prazo. Perdas laminares de 100
Em geral, as áreas em processo de toneladas por hectare durante o ano
desertificação caracterizam-se por gran- equivalem a menos de um centímetro
D des manchas desnudas, presença ou não de profundidade do solo, e podem passar
de cobertura vegetal rasteira e sinais cla- despercebidas. Apenas o acúmulo das
ros de erosão do solo, sendo esta última perdas por vários anos de cultivo tem o
um dos principais fatores da degradação. efeito marcante de reduzir visivelmente
A erosão é um processo através do qual a profundidade do solo.
as partículas do solo são deslocadas e No sistema de agricultura itineran-
removidas para outros locais pela ação te ou migratória,1 esses anos são diluídos
da água ou do vento, e que quase sem- em vários ciclos de cultivo, cada ciclo de
pre começa com o desmatamento e a dez a 20 anos ocupando todo o período
substituição da vegetação nativa por de vida de um agricultor. Ao longo
outra cultivada de ciclo e porte diferen- da vida de cada geração, as perdas de
te. Associado a isto, o cultivo contínuo, solo (ver Figura 11, adiante, p. 793)
com a retirada dos produtos, ano após são pouco sentidas, mas os 200 a 300
ano, e sem reposição dos nutrientes, anos de práticas agrícolas inadequadas
leva à perda da fertilidade do solo. Nas já deixaram sua marca irreversível em
áreas irrigadas, o uso de água com teores muitos locais (Sampaio et al., 2003). O
elevados de sais ou mau manejo de irri- grande desafio é confrontar essa degra-
gação e a ausência de drenagem geram dação dos solos de forma participativa,
a salinização. transgeracional e efetiva.
Nestas condições, o solo erodido Com a redução da capacidade pro-
perde sua fertilidade e sua capacidade dutiva, ocorre uma deterioração das
produtiva. A superfície da área de onde condições sociais das famílias que ocu-
o solo foi levado, arrastado pelo vento e a pavam aquele solo ou aquela terra, agora
chuva, resseca-se e impermeabiliza-se. A desertificados.
cobertura vegetal que brotava dele perde Quando isso ocorre, as famílias fo-
a pujança e degrada-se, logo a atmosfera gem, migrando para grandes centros
desidrata-se e se aquece, dificultando urbanos. Como refugiadas ambientais,
as precipitações. As reservas de água se estabelecem em áreas periféricas ge-
das profundidades do solo minguam, as ralmente inadequadas para ocupação.
fontes estancam-se e os rios tornam-se Segundo o Atlas Mundial da Desertifi-
intermitentes. Isso tem provocado, ao cação (World Atlas of Desertification),
longo dos anos, redução da área agri- de 2018, até 2050, cerca de 700 milhões
cultável, baixo rendimento das culturas de pessoas serão deslocadas devido a
e assoreamento de rios e reservatórios, problemas relacionados com a deserti-
com graves prejuízos à produtividade, à ficação. Esse número poderá atingir 10

298
DESERTIFICAÇÃO

bilhões de pessoas até o final do século fava, sorgo, mandioca etc.) e as sequelas
(Cherlet et al., 2018). econômicas e sociais na população afeta-
Nessas áreas, por sua vez, dadas as da. Estes efeitos, que perduram além do
intensas chuvas, ocorrem deslizamentos período da seca, podem ser enquadrados
ou deslaves de terras, expulsando as como parte do processo de desertificação
famílias e obrigando-as a viver na rua, e as mudanças climáticas seriam um agra-
sem moradia digna. Quando isso ocor- vante do processo (Sampaio et al., 2003).
re, dizemos que há uma decomposição Eles dependem, primordialmente, da
social nas áreas afetadas; este é o nível intensidade da seca, ou seja, da duração
mais elevado de degradação da terra, dos períodos de suspensão de chuvas, da D
tornando-se assim a desertificação um redução no volume total e da sua distri-
problema ambiental, social, econômico, buição no tempo.
cultural e político. Também vale destacar que fatores
Atualmente, especula-se que a de- estruturais como a concentração de ter-
sertificação se agrava com as mudanças ra, renda, biodiversidade, água e meios de
climáticas e vice-versa. Ao aumentar os produção e alta densidade demográfica
episódios extremos de secas em fre­quência contribuem de forma significativa para
e gravidade devido às mudanças climá- o agravamento da desertificação.
ticas, a degradação das terras nas zonas As consequências desses processos
áridas, semiáridas e subúmidas secas, tende de desertificação se apresentam em âm-
a aumentar ou formar um “vínculo de re- bitos local, regional, nacional e global,
troalimentação” com a perda da vegetação visto que resulta no empobrecimento
provocada pela desertificação (United da população local e declínio da qua-
Nations Convention to Combat Deserti- lidade ambiental nesses ambientes, em
fication, 2015). Um aumento de 3 ºC ou processos migratórios intrarregionais,
mais, na temperatura média, deixaria perda de biodiversidade, perda de ter-
ainda mais secos os locais que hoje têm ritório [ver Território] produtivo do país
maior deficit hídrico. Nessas condições, e na elevação do risco social em uma
a produção agrícola de subsistência em extensa área e, finalmente, nos aspectos
grandes áreas das zonas áridas e semiá- negativos referentes ao clima do planeta,
ridas pode se tornar inviável, colocando com a elevação da temperatura, interfe-
a própria sobrevivência do ser humano rências em processos biogeoquímicos,
em risco. Em contrapartida, o aumento particularmente, na ciclagem da água e
da temperatura, aliado à tendência de do carbono. Dessa forma, o processo de
aumento de chuvas torrenciais, tende a desertificação deve ser encarado como
aumentar a degradação do solo, afetando um problema pan-geoespacial, articulado
as atividades agrícolas (Painel Brasileiro às demais áreas em desertificação do
de Mudanças Climáticas, 2014). Algumas planeta. Com o advento das mudanças
consequências das secas podem permane- climáticas em movimento, espera-se que
cer, como a eliminação de determinadas estes processos se intensifiquem.
espécies (por exemplo, baraúna-do-sertão, O monitoramento dessas áreas
aroeira-do-sertão, umburana-de-cheiro e também deve receber especial atenção,
quixabeira), o abandono de culturas mais por parte dos órgãos de governo, vi-
sensíveis (por exemplo, milho, feijão, sando a identificação, experimentação

299
DE SERT I F ICAÇÃO

e pactuação de indicadores que per- alimentos e sementes) e uma maior cir-


mitam o monitoramento participativo culação de nutrientes [ver Circulação de
so­cioambiental. N utrientes] dentro do agroecossistema,
Vale destacar que, ao redor do [ver Agroecossistema] estratégias estas
mundo, muitas famílias agricultoras interligadas com uma forte articulação
experimentadoras em transição agroeco- social, organização e momentos sinér-
lógica [ver Transição Agroecológica] vêm gicos de comunicação entre os diversos
respondendo às condições climáticas sujeitos com interesses em jogo nas
cambiantes, demonstrando inovação e comunidades ou territórios (Perez-Ma-
D resiliência frente às mudanças climá- rin et al., 2017). Desse modo, os co-
ticas e à desertificação. É o que se vê, nhecimentos gerados nesses contextos
por exemplo, na agricultura familiar poderiam ser aproveitados como parte
agroecológica no semiárido brasileiro, das práticas das sociedades modernas e,
que vem promovendo processos de assim, contribuir para a sustentabilida-
intensificação da produção baseados de dos sistemas de produção.
na valorização dos recursos locais, no A integração de políticas públicas
emprego de tecnologias e práticas de ambientais, territoriais, patrimoniais e
manejo que diversificam os sistemas urbanísticas também é fundamental para
produtivos com atividades que se com- que as ações possam se dar de forma con-
plementam e permitem a formação de catenada, em vez da dispersão de esforços
estoques de riquezas (água, forragem, verificada em diversas áreas.

Referências
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300
DESERTO VERDE

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Para saber mais D


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Fundação Joaquim Nabuco; Instituto Desert, 2001. 56 p. (Cartilha).
VASCONCELOS SOBRINHO, J. Desertificação no Nordeste do Brasil. Recife, Editora Universitária,
2002. 127p.

Nota
1
Sistema de produção de subsistência em que, após um período de cultivo contínuo (5-20 anos), a
terra é abandonada ou deixada em repouso por outros cinco a 20 anos, para depois ser reutilizada
novamente com cultivos alimentícios.

DESERTO VERDE

J oão Dagoberto dos Sa ntos

A visão metafórica, simbólica e O termo passa a ser utilizado em


de certa forma conceitual atrelada ao 2002, a partir dos debates sobre os im-
termo “deserto verde” advém da per- pactos da monocultura da cana-de-açú-
cepção popular e científica de exten- car (Saccharum officinarum). A partir de
sas áreas ocupadas por monocultivos 2008, a noção de deserto verde passa a ser
agrícolas/florestais que, apesar de se- associada aos monocultivos de eucalipto
rem constituídos por espécies vegetais (Eucalyptus spp. Eucalipto: do grego, eu
(vivas), representam uma homogenei- + καλύπτω = “verdadeira cobertura”, é
zação das paisagens do ponto de vista a designação vulgar das várias espécies
visual, ambiental, social, cultural e vegetais do gênero Eucalyptus, perten-
mesmo recreativo. cente à família das mirtáceas, que com-

301
DESERTO VER DE

preende outros 130 gêneros). A partir de (em média sete anos para eucalipto,
2009, é possível encontrar referências ao 15 anos ou mais para Pinus spp. etc.),
termo deserto verde em estudos relacio- lembrando que há espécies que podem
nados a praticamente todos os sistemas sobreviver por centenas de anos, e que
agrícolas com base em monocultivos seu cultivo pode requerer intensa imo-
extensivos, principalmente soja (Glycine bilização de solos dada a lógica atual da
max), algodão (Gossypium spp.), milho gestão dos arranjos produtivos envol-
(Zea mays), café (Coffea spp.), palmáceas vendo árvores e o setor florestal a que
(ex. dendê, Elaeis guineensis) e seringuei- estão atreladas.
D ra (Hevea brasiliensis). Mas foi em 2011 Complexos florestais têm gerado in-
(com base na realização de uma meta-a- tensas discussões há várias décadas e em
nálise – Técnica de revisão sistemática todo mundo. São diversos os exemplos
da literatura, com inclusão de artigos e onde grandes empresas de celulose e de
referências especificados) que o termo base florestal se instalaram, prometendo
se consolidou, atribuído diretamente aos trazer desenvolvimento e gerar empre-
monocultivos de árvores, principalmente gos, mas causando muitas vezes mais
o Eucalipto spp., a partir de uma releitura pobreza, poluição e êxodo rural. África
e do reconhecimento da publicação Im- do Sul, Quênia, Suazilândia, Argentina,
pacto ambiental do eucalipto, de Walter de Chile, Uruguai, Venezuela, China, Indo-
Paula Lima (1996). Nesse livro, o autor nésia, Índia, Laos, Malásia, Tailândia,
atribui e correlaciona os impactos causa- Vietnã e Brasil: para todos esses países,
dos pela silvicultura (cultivo de espécies gigantes na produção de celulose, o setor
arbóreas), principalmente do eucalipto, trouxe, junto a suas promessas, prejuízos
enumerando interações, mudanças ou aos recursos naturais e desestruturação
modificações no meio ambiente provo- das comunidades locais.
cada por atividades humanas que podem Estima-se que, no mundo, existam
ter conotação positiva ou negativa para 200 milhões de hectares de plantações
o meio ambiente físico e o ambiente florestais. Destes, cerca de 25 milhões
social. Passados mais de 20 anos desde de hectares são plantações de rápido
a publicação desse livro, fica evidente crescimento, que correspondem a cerca
como o tema demorou para ser tratado de 1% da área florestal mundial e for-
pela sociedade como um todo, apesar necem cerca de 40% das necessidades
das evidências empíricas dos impactos de madeira a nível mundial. O país com
causados pelos monocultivos. maior área de plantações de eucalipto
Neste verbete, será dado foco aos é o Brasil.
impactos relacionados aos monocultivos O Brasil tem aproximadamente
florestais, entendendo que parte das 9,85 milhões de hectares de florestas
considerações apresentadas cabe igual- plantadas, sendo 75,2% de eucalipto e
mente para outras culturas agrícolas e 20,6% de pinus, mostra o levantamen-
sistemas produtivos associados. Cabe, to Produção da Extração Vegetal e da
contudo, ressalvar que no caso dos Silvicultura (Pevs) 2017, divulgado pelo
monocultivos de árvores, as implicações Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
podem ser mais graves e intensas, em tística (IBGE). A concentração dessas
função do tempo de cultivo das árvores áreas está nas regiões Sul e Sudeste, que

302
DESERTO VER DE

respondem, respectivamente, por 36,1% A ONU projeta para 2050 uma popu-
e 25,4% do valor da produção total. O lação mundial de 9,3 bilhões de pessoas,
líder é o estado do Paraná, com R$ 3,7 com mais de 10 bilhões em 2100. Para
bilhões de valor de produção, seguido atender a esse contingente crescente,
por Minas Gerais, com R$ 3,3 bilhões, mantendo-se os padrões atuais de con-
e Santa Catarina, com R$ 1,8 bilhão. sumo, serão necessários cerca de 250 mi-
Do total de áreas plantadas, 41,9% do lhões de hectares adicionais de florestas
eucalipto estão na região Sudeste e 87,7% plantadas no mundo. A expectativa do
do pinus ficam na região Sul (Nitahara, setor é que a utilização das tecnologias
2018). Esses plantios são destinados a mais avançadas de produção permita D
diversos usos (Tabela 1). Desse total, aproveitar, no futuro, 100% das “florestas
34% pertence às empresas do segmento plantadas”, possibilitando novos usos,
de celulose e papel; em segundo lugar, como a lignina, o etanol de segunda ge-
com 29%, encontram-se proprietários ração, uma nova geração de bioplásticos,
independentes e pequenos e médios nanofibras e óleos. Assim, as árvores serão
produtores do programa de fomento também provedoras de matéria-prima
florestal, que investem em plantios flo- para outros segmentos produtivos e in-
restais para comercialização da madeira dústrias, entre eles, a automobilística, a
in natura. Na terceira posição, está o farmacêutica, a química, a cosmética, a
segmento de siderurgia a carvão vegetal, aeronáutica, a têxtil e a alimentícia.
que representa 14% da área plantada. A se confirmar essa previsão, a ten-
dência é que as áreas de deserto verde
Tabela 1 – Área plantada por Segmento cresçam também no Brasil e, com ela,
Industrial no Brasil em Milhões de os impactos relacionados. Esses impactos
Hectares
podem ser avaliados em diversas dimen-
Porcentagem da Segmento Industrial sões, sendo que, de maneira geral, todas
área plantada estão interligadas.
35% Celulose e papel Impactos sociais, econômicos e am-
13% Siderurgia a carvão bientais dos plantios de eucalipto (usado
vegetal aqui como modelo de reflexão) são re-
9% Investidores financeiros latados em vasta bibliografia, como as
6% Painéis de madeira compilações realizadas pela Organização
4% Produtos sólidos
das Nações Unidas para a Alimentação
de madeira e a Agricultura (Food and Agriculture
3% Outros
Organization, 2002; Poore; Fries, 1985).
Entre os impactos abordados na literatura
30% Produtores independentes
estão: expropriação de terras, destruição
Fonte: Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), 2018. de ecossistemas, expulsão de populações,
Área com algum tipo de certificação socioambien-
tal – 5,8 milhões de hectares (Indústria Brasileira
desmatamento, êxodo rural, poluição,
de Árvores, 2018) empobrecimento do solo, perda de bio-
Receita bruta do setor – R$ 73,8 bilhões (2018) diversidade, enfraquecimento cultural,
(Indústria Brasileira de Árvores, 2018) perda de meios de subsistência, escassez
Saldo da balança comercial – 10 % balança do de água etc. Tais impactos são apontados
Agronegócio em 2018 (Indústria Brasileira de
Árvores, 2018)
como motivos de conflitos em vários

303
DESERTO VER DE

países (Fanzeres, 2005; Aylwin; Yáñez; em 2014, os riscos potenciais da bio-


Sánchez, 2012; Carrere; Lohmann, 1995; tecnologia aplicada a culturas agrícolas
Leys; Vanclay, 2010a; 2010b; Overbeek; somam-se aos dos desertos verdes, com
2010a; 2010b). destaque para potenciais efeitos negati-
vos relacionados às questões hídricas,
Impactos do “deserto verde” à fauna apícola e aos polinizadores de
Do ponto de vista ecológico, figuram forma geral, assim como ao aumento do
as dimensões de redução da biodiversi­ uso de herbicidas. Ou seja, são afetados
dade de forma drástica dentro dos siste- os serviços ecossistêmicos, ocasionan-
D mas produtivos, por meio da supressão do perda de resiliência em âmbito de
total ou parcial da vegetação nativa, paisagem e de forma mais intensa que
inibição da regeneração natural pelo os atuais impactos. As consequências
uso de herbicidas, alteração da macro e deletérias do atual modelo de produção
da microbiota aérea e de solo, desapare- florestal no Brasil têm demonstrado si-
cimento da maior parte das espécies da nais alarmantes desse modelo de produ-
fauna nativa, alteração de microclimas, ção, principalmente com o uso cada dia
perda de resiliência, invasão de ecos- mais intenso de agrotóxicos, em função
sistemas, compactação de solos, alta da perda de estabilidade ecológica dos
demanda por nutrientes e desertificação. sistemas produtivos. Esses efeitos nega-
Do ponto de vista hidrológico, os de- tivos ao ambiente podem ser agravados
sertos verdes de eucalipto, que podem pelo uso inadequado de novas tecnolo-
ser comparados a outros monocultivos gias, principalmente da transgenia. Os
de árvores (com diferentes impactos transgênicos vigoram em muitas espécies
dependendo da velocidade de cresci- de plantas alimentares, como milho, soja
mento e ciclo silvicultural – tempo de e algodão, assim como na produção de
corte), respondem por consumo exces- vacinas e, mais recentemente, o seu uso
sivo de água, gerando um desbalanço no eucalipto. O objetivo da modificação
no deflúvio −água azul e verde, que se genética no caso do eucalipto é basica-
refere ao consumo de água e a água que mente aumentar a velocidade de cresci-
fica disponível na bacia hidrográfica – mento, com o encurtamento do ciclo da
(Falkenmark; Folk, 2002), alteração e cultura de 7 para 5/4,5 anos, ou ainda a
comprometimento e capacidade dinâ- introdução de resistência a herbicidas e
mica física dos solos, contaminação da ação inseticida. Vários aspectos dessa
água e da biota com uso de agrotóxicos tecnologia vêm sendo questionados,
e produtos químicos. indicando a necessidade de maiores es-
Do ponto de vista da paisagem, a ex- tudos prévios à sua utilização em escala
pansão das monoculturas de árvores comercial, principalmente porque é o
promove perda de conectividade (im- primeiro do mundo, podendo ser um
pedimento do deslocamento biológico bom ou mau exemplo. O eucalipto é
e fluxo gênico) entre áreas naturais e considerado grande consumidor de água,
pode ainda propagar pragas e doenças quando plantado em megaescala, como
advindas dos monocultivos. ocorre em várias regiões do Brasil, de-
Sobre o eucalipto transgênico: com o vendo o transgênico proposto aumentar
seu advento, liberado comercialmente este impacto. Especialistas em hidrologia

304
DESERTO VER DE

florestal apontam que o maior consumo para o aumento da produção de celulose


de água no eucalipto em questão é justa- não são de interesse.
mente nos primeiros dois a três anos, ha- Boa parte das plantações de eu-
vendo um declínio na demanda por água calipto no Brasil, principalmente para
após essa fase. A previsão, comprovada celulose, é realizada por propagação
experimentalmente no sudeste do Brasil, vegetativa (plantio de mudas), porém,
é de que vai ser encurtada sua vida útil isso não elimina o direito daqueles que
para o período mais crítico de consumo plantam eucalipto por sementes terem
de água (será ampliado o período de alto suas plantações não contaminadas. Por
consumo de água). Enfatiza-se que, no exemplo, existe variedade de eucalipto D
processo de liberação comercial do euca- voltada para energia e madeira (E. ca-
lipto transgênico avaliado pela Comissão maldulensis), ou para mel e madeira (E.
Nacional de Biossegurança (CTNBio), urophylla), plantadas por agricultores
a questão do consumo de água não foi familiares.
considerada como aspecto essencial na A abelha é a grande produtora de
avaliação de impactos ambientais. Com mel a partir do néctar das flores do eu-
o alerta recente das Nações Unidas sobre calipto, rendendo aos apicultores, no
a crise iminente da água, e com o debate geral agricultores familiares, renda básica
intenso sobre mudanças climáticas, essa para cerca de 350 mil produtores no
questão deveria configurar como tema Brasil, em boa parte, orgânicos. A lei
básico e principal na discussão do euca- que dispõe sobre a regulamentação da
lipto transgênico. produção de orgânicos não aceita trans-
Outra questão ambiental muito im- gênicos, devendo ser esse um entrave
portante ligada aos impactos do eucalipto aos pequenos produtores, assim como
transgênico diz respeito à sua polinização aos consumidores. Parte significativa da
e interações com a fauna principalmente produção nacional de mel é exportada,
de insetos, que é efetuada pela abelha podendo trazer problemas no comércio
europeia africanizada (Apis mellifera) e internacional pela contaminação por
por outras espécies de abelhas nativas. pólen e néctar GM.
Os hábitos da abelha já foram muito Não há dúvidas sobre os riscos de
estudados cientificamente e atestou-se contaminação pelo pólen do eucalip-
que a espécie voa à longa distância, ou to transgênico, mesmo sendo alegado
até alguns quilômetros, podendo levar o pelas empresas proponentes que estas
pólen transgenes da espécie modificada irão utilizar comercialmente a varieda-
para outras não transgênicas. Já existe de em dois a 3% de suas áreas, já que
regulamentação da CTNBio que esti- isso representa uma área significativa
pula distância mínima de 1 mil a 3 mil no total. Essa contaminação pode sim
metros entre plantações de eucalipto e comprometer os usos múltiplos de outras
apiários para evitar a contaminação por espécies de eucalipto, que cruzam entre
pólen transgênico, mas que é ignorada si facilmente na natureza, com certeza
na prática. Existem outras espécies de gerando impactos negativos na fauna de
eucalipto para outros fins (madeira, ener- polinizadores (abelhas).
gia, carvão, óleo essencial e mel) cuja Não menos importante, a organi-
contaminação por transgenes voltados zação internacional (FSC) que emite

305
DESERTO VER DE

certificação ambiental, econômica e Por se tratar basicamente de um modelo


social das plantações de eucalipto no exportador, cujos impostos já estão todos
Brasil ratificou em sua assembleia geral, desonerados pela lei Kandir, de 1996, as
ao final de 2014, reconfirmando em 2017 monoculturas de eucalipto contribuem
a decisão de não admitir eucalipto trans- muito pouco para os cofres públicos
gênico nas áreas por ela certificadas. dos municípios e dos estados, levando
Isso demonstra que a decisão de aprovar em conta que a produção de celulose
comercialmente, neste momento, o euca- necessita de milhares de hectares que se
lipto transgênico proposto, com todas as espalham em diversos municípios, mas os
D questões e dúvidas apontadas, continua, impostos e a movimentação tributária só
no mínimo, uma temeridade. se dão no município onde a fábrica se
Não se trata de ser contra a pesqui- encontra. Na esteira dessa desigualdade
sa; muito ao contrário, o setor florestal e fiscal, percebem-se ainda impactos nos
a sociedade é que não podem ficar reféns empregos: redução de empregos, au-
de pesquisas inconclusivas; o que se mento da violência em áreas periféricas,
pede não é a interrupção das pesquisas, migrações temporárias e subempregos.
até que não haja mais dúvidas. Árvores O termo deserto provém tanto do
são perenes, vão estar aqui florescendo efeito de desertificação, [ver Desertifica­
e frutificando no longo prazo. ção] erosão dos solos e maior demanda
Impactos sociais: os impactos am- por água, quanto do vazio em biodiver-
bientais decorrentes dos desertos verdes sidade e em populações humanas que
estão associados a impactos sociais e passa a caracterizar as regiões de cultivo.
econômicos desse modelo produtivo e de Esse vazio humano desses desertos é
ocupação do espaço. Destacam-se nesse resultado de conflitos com populações
campo os conflitos pelo uso da água para tradicionais, agricultores familiares e
consumo humano, animal e da sociedade unidades de conservação. Esse processo
de maneira geral (comprometimento de de esvaziamento do campo, que também
abastecimento, acesso e qualidade da é um processo de aumento na concen-
água). A saúde do trabalhador também tração de terras, pode ocorrer pela ocu-
pode ser afetada pela contaminação pação de áreas devolutas e públicas (o
das águas superficiais e subterrâneas, que ocorreu de forma significativa nos
pela contaminação direta e indireta por últimos 30 anos), tendo como uma de
agrotóxicos utilizados nessas plantações, suas consequências a inflação do custo
ocasionando contaminações agudas e de oportunidade da terra.
doenças crônicas em comunidades em Os mecanismos históricos de im-
áreas de entorno. Eliminação do empre- posição e construção dos modelos de
go no campo e desagregação de comuni- produção e de ocupação dos solos e zonas
dades rurais também pode ocorrer como rurais, principalmente nas últimas cinco
consequência desse modelo. décadas, têm trazido de certa maneira
Nas áreas onde se realizam os plan- alguma forma de progresso ao Brasil,
tios e onde a matéria-prima é efetivamen- mas também profundos impactos sociais
te processada e industrializada, pode-se e ambientais.
observar um fenômeno de desigualdades Cada dia mais, a percepção da so-
nas questões tributárias e de impostos. ciedade sobre os impactos negativos dos

306
DESERTO VER DE

monocultivos e dos desertos verdes tem diversos aspectos relacionados aos impac-
aumentado, gerando uma gama muito tos dos “desertos verdes” nas mais dife-
intensa de pesquisas e em muitos casos rentes escalas e amplitudes da sociedade
embates e conflitos, muitas vezes violentos. moderna, para que as tomadas de decisão
Ao mesmo tempo, nunca esse modelo de sejam feitas de forma mais democrática.
produção (monocultivos) cresceu tanto, O atual cenário político brasileiro e
criando um ambiente de intensos debates mesmo internacional, que acaba impul-
sobre os “paradigmas” da sociedade moder- sionando a diversidade de impactos de
na e da capacidade de suporte do planeta. diversas naturezas, amplitude e intensi-
A apropriação capitalista dos meios dade, traz uma visão bastante pessimista D
de produção na agricultura, o que de sobre a real participação da sociedade
maneira geral tem reduzido a partici- nas tomadas de decisão em contraponto
pação da sociedade de forma geral na às crescentes demandas relacionadas ao
tomada de decisão sobre o modelo de aumento populacional.
desenvolvimento no campo, assim como A transgenia e muitas das chamadas
as tecnologias associadas a esses mode- biotecnologias utilizadas na produção
los, apontam para um cenário de crises agrícola mundial e brasileira, da forma
intensas e conflitos profundos, mesmo como são gestadas na atualidade, podem
levando em conta a intensa urbanização representar um grave fator na ampliação
das sociedades. dos impactos negativos dos desertos
É preciso ampliar o debate nos meios verdes e, assim, na eclosão de conflitos
acadêmicos, técnicos e políticos, sobre os socioterritoriais e ambientais.

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DE T ER M I NAÇ ÃO S O C I A L DA SAÚ DE

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lcp87.htm. Acesso em: 24 mar. 2021.
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DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE

A namar ia Testa Tambellini


A ry C arvalho de M ir a nda

Os modelos de explicação da saúde e esta ruptura ao conceber o ser humano


da doença sempre estiveram relacionados como uma unidade organizada, sua saúde
às diferentes formas de organização das como equilíbrio dos fluidos do organismo
sociedades humanas, e seus conceitos vão humano e a doença como desorganização
depender de cada momento histórico. As- desse estado, a partir de sua relação com
sim, para os povos da Antiguidade, as epi- a natureza. Na Idade Média europeia,
demias eram castigo divino e as práticas de a influência do cristianismo manteve a
cura, muito ligadas aos indivíduos, portan- concepção da doença como resultado do
to dependentes das diferentes tendências pecado, estando a cura relacionada à fé,
religiosas que predominavam no período. conferindo, por isso, atribuições de cura
A filosofia grega rompe com tais paradig- aos religiosos. Com o fim da Idade Média, o
mas ao colocar as relações do homem com Renascimento Cultural possibilitou maior
a natureza no centro da compreensão dos compreensão da constituição do corpo
fenômenos relacionados à saúde e à doen­ humano, estudado pelo conhecimento
ça. Hipócrates (460-337 a.C.) expressa proporcionado pela ciência nascente, e as

308
DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE

doenças passaram a ser atribuídas a causas num tópico político para o Estado, [ver
naturais (Scliar, 2007). Estado] dada a preocupação com os efeitos
A partir do século XVI, e principal- dessas desigualdades e sua relação com
mente em fins do século XVIII e início o trabalho, embora as questões da saúde
do século XIX, a expansão mercantilista não fossem ainda muito significativas nas
consolida o desenvolvimento da indústria reivindicações dos movimentos sociais.
capitalista, em que a exploração da força Já no início do século XX, a partir das
de trabalho se constitui como elemen- concepções de Taylor (1995) e Ford (1926),
to central na acumulação de riquezas, o capitalismo inaugura a organização
a partir de um avanço considerável das científica do trabalho, que vai orientar D
ciências biológicas, das tecnologias e do toda a lógica da produção em massa do
conhecimento médico deles advindo. Já sistema. Os interesses do capital cada vez
no nascer do século XVIII, era publicado mais se projetam na estrutura do Estado,
o livro de Bernardino Ramazzini intitulado responsável pelas formulações das políticas
As doenças dos trabalhadores (2000), cuja públicas, incluindo a de saúde. Após a Se-
obra reunia suas observações e conclusões gunda Guerra Mundial, acreditava-se ser
sobre doenças específicas de trabalhadores possível à medicina (dado o já conquistado
ligadas aos seus próprios trabalhos, uma desenvolvimento científico e tecnológico
indicação primitiva, porém precisa, da tese a ela relacionado e, por meio de maior
sobre a influência socioeconômica na pro- acesso ao sistema de atenção à saúde, assim
dução das doenças. Nesse contexto, como como ao sistema de seguro saúde) resolver
destaca Foucault (2008, p. 80), “[...] o con- os problemas de saúde das populações
trole da sociedade sobre os indivíduos não relacionados às desigualdades sociais. O
se opera simplesmente pela consciência projeto mais ambicioso e promissor nesse
ou pela ideologia, mas começa no corpo, campo aconteceu na Grã-Bretanha, com
com o corpo”. A saúde torna-se, então, a criação do Sistema Nacional de Saúde
uma questão social, passando a figurar do Reino Unido, em 1948. Entretanto,
nas inquietações dos movimentos sociais nos 30 anos que se seguiram à Segunda
emergentes, assim como transforma-se em Guerra Mundial, os problemas relativos às
objeto das políticas públicas dos Estados. desigualdades sociais na saúde não foram
Os estudos de Diderichsen et al. solucionados. Ao contrário, houve aumen-
(2012) apontam que, por volta de 1850, to dos diferenciais dessas desigualdades, ou
vários estudos já evidenciavam os efeitos seja, não houve soluções adequadas diante
das condições de vida sobre a saúde dos das medidas propostas e estudos científicos
pobres na Dinamarca. Inicia-se então, demonstravam, ainda, influências negati-
neste país, um longo processo político, vas e não controladas das condições sociais
econômico, social e sanitário para fazer na saúde. Tais estudos descortinaram o
frente às desigualdades na saúde e, em papel de alguns indicadores nesse quadro
1891-1892, é aprovada a primeira legisla- (como renda, condições de moradia, tra-
ção de Bem-Estar, muito antes da própria balho e padrões culturais) como fatores
criação do Estado de Bem-Estar Social na fundamentais para a saúde humana.
Europa. Tanto na Dinamarca como em ou- Ainda assim, as políticas públicas
tros países europeus, as consequências das continuaram nucleadas na lógica as-
desigualdades na saúde já se consti­tuíam sistencialista, agora destacando a ex-

309
DE T ER M I NAÇ ÃO S O C I A L DA SAÚ DE

pansão dos cuidados primários à saúde como suscetíveis ao controle individual;


e dos seguros previdenciários, como 4) materialista (determinista), que explica
também a tentativa de enfrentamento as diferenças de classe na saúde como
aos acidentes de trabalho. resultado estruturalmente determinado
Neste contexto, na Europa nos anos pelas diferenças na maneira com que os
de 1970, pesquisas mais aprofundadas membros dessas classes sociais levam sua
e controladas do ponto de vista epide- vida e são compreendidas como uma das
miológico sobre as consequências das instâncias da relação geral entre o padrão
iniquidades sociais e saúde são realizadas. de vida e a saúde.
D Tais interesses se concretizam no trabalho Os autores do Black Report conside-
intitulado The Black Report 1980, Inequa- raram a explicação materialista como a
lities and Health (Department of Health mais importante dentre as consideradas,
and Social Security, 1980) [em tradução principalmente porque as diferenças se
livre, O relatório Black 1980, Iniquidades haviam mantido, apesar da melhoria da
e saúde], elaborado por um Grupo de saúde da população como um todo. En-
Trabalho do Sistema de Saúde do Reino tretanto, Blane (1985) destaca que essas
Unido, no qual são evidenciadas signifi- diferenças sociais na saúde, mantidas no
cativas desigualdades sociais nas taxas de tempo, podem ser consideradas como
mortalidade desde 1930, neste país. Essas uma das instâncias da relação geral entre
evidências foram de tal impacto que a o padrão de vida e a saúde. Acrescenta
então primeira-ministra inglesa Marga- que contempo­raneamente as diferenças
reth Thatcher procurou ocultar o estudo, nos níveis de saúde entre países pobres e
conforme denunciado pela Socialist Health ricos e as melhorias históricas nos níveis da
Association da Inglaterra. saúde das diferentes populações também
Segundo Blane (1985), o Black Report seriam outras instâncias dessa relação.
identificou quatro tipos de explicações pos- Advoga, por fim, que “[...] o conceito de
síveis para as diferenças de classes sociais classe social [...] se refere à combinação
relativas à saúde: 1) artefato de medida de alguns diferentes tipos de vantagens
(não causal), quando os dados sobre as ou privações, sendo que a soma e intera-
questões investigadas ou os indicadores ção desses fatores necessita ser estudada”
são precários ou não correspondem à (Blane, 1985, p. 440).
realidade; 2) seleção natural ou social Com o acesso ao relatório, os estudos
(causal), que se refere mais propriamente de Rose e Marmot (1981) comprovaram
às possibilidades de mobilidades sociais que, a partir dos anos 1940, o aumento
darem conta das diferenças para todos significativo da desigualdade social na
os grupos populacionais, o que não se mortalidade por doenças cardíacas coro-
verifica na realidade, apesar de explicar narianas era explicado pelas diferenças
casos individuais; 3) diferenças cultu- na mortalidade específica entre traba-
rais e de comportamento (causal), que só lhadores e trabalhadoras qualificados
produzem efeitos sobre a saúde de certos e não qualificados, demonstrando a
agrupamentos populacionais e indivíduos relação da saúde com o padrão de vida
isolados, efeitos esses que são limitados no e gênero dos trabalhadores.
tempo e espaço e funcionam somente para Outros países europeus como Suécia,
aqueles fatores considerados por muitos Dinamarca, Itália e Espanha passaram

310
DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE

a realizar pesquisas contínuas que cons- que, em vários países do continente,


tataram aumentos de desigualdade na governos ditatoriais se estabeleciam
mortalidade e, em seguida, iniciaram es- em paralelo aos ventos socialistas que
tudos que relacionavam esses aumentos a sopravam de Cuba por toda parte, ferti-
condições sociais tais como: desemprego, lizando a reflexão crítica pela constru-
baixos salários, más condições de mora- ção de uma outra sociedade, mais justa
dias, grau de desenvolvimento econômico e democrática, o que alcançou também
e, em contrapartida, avaliaram os efeitos o campo da medicina preventiva e da
negativos dos diferenciais sociais da doença saúde pública. Esta reflexão, principal-
e óbito para a economia e para o processo mente no Brasil, México e Equador, D
de desenvolvimento local. Essas evidências proporcionou abordagens não a partir
fazem com que o Banco Mundial lance, da base empírica dos estudos científicos,
em 1993, um documento denominado mas de formulações teórico-epistemoló-
Investing in Health [Investindo na saúde] gicas que passaram a orientar a própria
e crie um grupo de investigação chamado pesquisa científica para a compreensão
Global Health Equity Initiative [Iniciativa de das relações sociais e suas expressões na
equidade global em saúde] para verificar saúde das populações. Estas iniciativas
a situação desses diferenciais sociais na foram os embriões das concepções que
saúde no mundo (Diderichsen et al., 2012; incorporam a Determinação Social da
Galafassi, 2005). Saúde, cujo elemento embrionário pode
Em contrapartida, na América Latina ser encontrado nos trabalhos pioneiros
e, particularmente no Brasil, em 1946, os de Asa Cristina Laurell (1976), sobre as
estudos de Josué de Castro publicados no relações de desenvolvimento socioeco­
livro intitulado Geografia da Fome (1986) nômico e saúde; de Anamaria Testa
sobre as desigualdades sociais e o estado Tambellini [Arouca] (1975; 1978a;
nutricional das populações mais carentes 1978b), que articulam as categorias pro-
levantavam a discussão das condições so- dução/trabalho/ambiente e saúde, tendo
ciais como componente fundamental para em vista o desenvolvimento econômico;
a compreensão da condição humana e, e de Jaime Breilh (1979), que coloca a
consequentemente, das condições de saú- discussão da saúde a partir da produção/
de. Esta abordagem foi reforçada, nos anos reprodução social no interior da abor-
1960, pelos estudos de Samuel Barnsley dagem epidemiológica. Cabe destacar
Pessoa, publicados sob o título de Ensaios que esses três autores elaboraram suas
médico-sociais (1960), que tinha como foco abordagens tendo como referencial
a questão da saúde das populações rurais a analítico o materialismo histórico e
partir de uma abordagem conceitual que dialético e levando em conta o momen-
estabelecia relações entre a estrutura agrá- to do capitalismo na América Latina.
ria e as endemias rurais e entre latifúndio e É importante destacar que, nes-
doenças, ao mesmo tempo que propunha te mesmo período, no Brasil, através
a adesão a um projeto de transformação do chamado Movimento da Reforma
da sociedade brasileira (Hochman, 2015). Sanitária, no escopo da luta contra a
A partir dos anos 1970, outro pro- ditadura civil/militar implantada em
cesso se desenvolvia também na Amé- 1964, iniciou-se também a elaboração
rica Latina e Caribe, num contexto em da proposta de um sistema de saúde que

311
DE T ER M I NAÇ ÃO S O C I A L DA SAÚ DE

superasse as perversidades do sistema de vida (acesso a alimentos, lazer, etc.),


de saúde construído a partir dos anos alcançando as redes comunitárias e de
1930, restritivo à cidadania, calcado apoio, que expressam o nível de coesão
da previdência social, centrado em ati- social e, finalmente, no último nível
vidades assistencialistas hospitalares e estão situados os chamados macrode-
com forte componente privatista. Essa terminantes, que incluem as condições
luta culminou na conquista do Sistema econômicas, culturais e ambientais da
Único de Saúde (SUS), de concepção sociedade (Comissão Nacional sobre
universal, descentralizado e com partici- Determinantes Sociais da Saúde, 2008).
D pação social, inscrito na Constituição de Como destaca Roberto Passos No-
1988, mas que, apesar de seus preceitos gueira, este relatório, apesar de apresen-
civilizatórios, não foi plenamente reali- tar uma faceta progressista por enunciar
zado e tem sofrido importantes ataques a necessidade de enfrentamento das desi-
das forças mercantilizadoras da saúde. gualdades em saúde, tem forte influência
Em março de 2005, quando eram positivista, na medida em que interpreta
evidentes os impactos referentes ao au- o que é social na saúde mediante o efeito
mento das desigualdades sociais conse- de fatores causais, conforme o modelo
quente à chamada reestruturação pro- das ciências naturais e da epidemiologia
dutiva sustentada pelo neoliberalismo, tradicional. Diz o autor: “[...] faz tábula
foi criada a Comissão de Determinantes rasa do fato de que a saúde pública é um
Sociais da Saúde pela Organização Mun- campo de políticas que deve ter em conta
dial da Saúde pela OMS (Commission a contribuição não só da epidemiologia
on Social Determinants of Health) (Buss; e das ciências médicas, mas também da
Pellegrini, 2007). O relatório dessa co- sociologia, da antropologia e da filosofia”
missão explicita que seus objetivos são o (Nogueira, 2009, p. 398). Em seguida,
de promover, em âmbito internacional, enfatiza que essa ótica dos determinantes
uma tomada de consciência sobre a im- sociais da saúde foi também criticada
portância dos determinantes sociais na por autores vinculados à Associação
situação de saúde de indivíduos e popu- Latino-Americana de Medicina So-
lações e sobre a necessidade do combate cial (Oliva; Escudero; Carmona, 2008),
às iniquidades em saúde. Um ano depois, quando enunciam que os determinantes
em março de 2006, por decreto presiden- sociais são desprovidos de historicidade e
cial, foi criada, no Brasil, a Comissão reduzidos a fatores causais. Desse modo,
Nacional Sobre Determinantes Sociais a cosmovisão positivista separa o sujeito
da Saúde e, em 2008, é publicado seu do mundo que o cerca e converte as
relatório. Tal como expresso no relatório relações sociais que o rodeiam em meras
da OMS, este relatório foi baseado no externalidades, criando uma falsa rela-
modelo de Dahlgren e Whitehead e os ção de conexões externas de variáveis
Determinantes Sociais da Saúde são dis- (Breilh, 2013).
postos em diferentes camadas, segundo Várias outras publicações de autores
o nível de abrangência. Consideram-se latino-americanos, entre as quais Tam-
os determinantes individuais (idade, bellini Arouca; Schütz (2009), Einbens-
sexo e fatores hereditários), passando chutz; Tamez; Gonzalez (2011) e Borde;
pelos fatores comportamentais e estilo Martinez-Alvarez; Porto (2015), também

312
DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE

elaboraram críticas ao modelo dos de- ção, habitação, educação, renda, meio
terminantes por meio do ponto de vista ambiente, trabalho, transporte, em-
científico, epistemológico e filosófico, prego, lazer, liberdade, acesso e posse
apontando a dificuldade de sua aplicação da terra, acesso aos serviços de saúde e
concreta pelo Estado ou pelos diferentes demais componentes da vida humana.
trabalhadores da saúde em suas ativida- São condições que se potencializam em
des, quaisquer que sejam. um processo que, encerrado em con-
Portanto, a abordagem dos deter- tradições nas quais vicejam interesses e
minantes apresenta todos os fatores necessidades opostas entre o conjunto
constitutivos da determinação social da dos trabalhadores e os detentores das D
saúde com uma aparente autonomia, riquezas produzidas por esses mesmos
sem história e sem desenvolvimento. trabalhadores, lhe confere um caráter
É a partir dessa perspectiva crítica que histórico e dialético em sua determina-
destacamos a necessidade da compreen- ção social. Esta compreensão, ademais
são das relações sociais e a saúde/doença de se constituir como um referencial
humana de uma maneira que supere metodológico de análise, deve ser o vetor
a abordagem dos determinantes sociais orientador das políticas públicas de saúde
da saúde. Será, então, a concepção da que definem suas práticas, incluindo a
determinação social da saúde/doença que assistência e o sistema que as organiza.
nos permitirá um melhor entendimento Por fim, cabe destacar a importância
de tais relações, na medida em que exige desta compreensão para a agroecologia.
uma abordagem integral, não cartesiana, Sustentada em três concepções, como
portanto, que considere as relações so- assevera Paulo Petersen, a agroecologia
ciais da saúde/doença, constituídas nas tem como elementos de sua sustentação
sociedades, de forma articulada em seus uma teoria crítica com radical ques-
componentes políticos, econômicos, so- tionamento ao modelo da agricultura
cioecológicos, culturais, biológicos e psí- industrial (que gera enormes impactos
quicos, porém histórica e dialeticamente socioambientais como graves conse­
determinados. Ou seja, trata-se de pen- quências à saúde humana), que fornece
sar de forma inclusiva a determinação conceitos e métodos para o desenvol-
do processo saúde e doença, em todos vimento de agrossistemas sustentáveis;
os seus componentes. E, se tratamos das [ver Agroecossistemas] como prática, em
diferentes dimensões da vida na sua rela- coerência com seus conceitos e métodos,
ção com a saúde humana, temos também e como movimento social, que articula
que considerar a expressão individual de um conjunto de atores em defesa da
cada um de nós, geneticamente consti- justiça social, da saúde ambiental e de
tuída e socialmente transformada, como uma economia solidária e ecológica
um elemento a mais que faz diferenciar (Petersen, 2012). Nesse universo, a com-
os seres e suas capacidades de reação às preensão da questão da saúde/doença
exposições e cargas socioambientais a das populações envolvidas exige uma
que estamos submetidos. abordagem que permita escrutinar todos
Com esse referencial de análise, os seus componentes articulados, cujos
a saúde/doença deve ser vista como preceitos de análise são fundamentados
resultante das condições de alimenta- na determinação social da saúde.

313
DE T ER M I NAÇ ÃO S O C I A L DA SAÚ DE

Referências
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314
DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO

DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO

L eonar do N ogueir a A lves


Iur i A ssunção
Thaís Paz

Um novo projeto de sociedade pres- contribuições do pensamento social. No D


supõe repensarmos as relações sociais Brasil, as formulações foram majorita-
entre homens e mulheres e seu inter- riamente influenciadas pelas pesquisas
câmbio com a natureza. A crítica à estadunidenses e francesas que expres-
atual sociabilidade exige-nos um com- sam perspectivas que vão desde uma
promisso com a construção de projetos análise marxista até o chamado campo
contra-hegemônicos na educação en- de estudos pós-estruturalistas.
quanto dimensão da formação humana Para além das intervenções no âm-
e na maneira como produzimos a nossa bito da produção do conhecimento, esta
vida material. A educação popular e a temática tem sido objeto de lutas e ações
agroecologia estão intimamente relacio- políticas que têm exigido a eliminação
nadas às formas de resistência que na do preconceito contra gays, lésbicas,
atualidade materializam alternativas à bissexuais, travestis e transexuais, haja
crise civilizatória que vivemos. vista o crescimento da violência e dos
Enfrentar esse contexto adverso assassinatos de LGBTs no país.
implica conhecer a realidade e edificar Nesse verbete, nosso objetivo é
ações que contribuam na transforma- dialogar principalmente com as con-
ção social. No campo e na cidade, na tribuições no âmbito dos estudos fe-
economia e na cultura, na subjetividade ministas na perspectiva do método de
e nas estruturas sociais, gênero e se­ análise da realidade materialista histó-
xualidade também conformam o modo rica e dialética. Ou seja, nosso esforço
como homens e mulheres se identificam é compreender a diversidade sexual e
e constroem suas histórias de vida. Ou de gênero levando em consideração a
seja, é fundamental visibilizar e analisar interação entre dinâmica da produção
como gênero e sexualidade se fazem e reprodução da vida social, articulando
presentes em todos os espaços, entre as determinações materiais, culturais e
estes, nas práticas educativas e agroeco­ simbólicas num esforço sistemático de
lógicas. Dito isso, é fundamental desve- apreender estas categorias.
lar, em suas múltiplas dimensões, como
as relações de gênero e sexualidade Relações patriarcais de gênero
atravessam o cotidiano e o conjunto e heterossexismo: conceitos
das práticas sociais. preliminares
A discussão teórica e política no Convencionou-se, no âmbito da
âmbito dos estudos sobre gênero e diver- teoria social, definir sexualidade como
sidade sexual é atravessada por diversas uma experiência histórica, política e

315
DI V ER SI DA DE SE X UA L E DE G Ê N ERO

cultural de homens e mulheres voltadas desempenhado por homens e mulheres


à vivência da afetividade e do desejo, nestas atividades. Por conseguinte,
e o “gênero” como uma construção o desenvolvimento histórico da divi-
social do modo como os seres humanos são sexual do trabalho não evidencia
exercem os padrões de masculinidade e harmonia e complementaridade. Ao
feminilidade, lhes conferindo o status de contrário, a literatura feminista tem
“homem” e “mulher”. denunciado o caráter opressor que essa
As categorias de análise, ao serem forma de organização das atividades
expressões da realidade, não devem ser assumiu. Tabet (2014) explica essa con-
D compreendidas isoladamente. Gênero dição ao reconhecer que há uma situa-
e sexualidade só podem ser analisa- ção de “subequipamento” das mulheres,
dos mediante os processos históricos noutros termos, um acesso inferior aos
que tornaram possível a experiên- instrumentos de trabalho em virtude da
cia social, que estamos nos referindo apropriação masculina destes.
como “relações patriarcais de gênero” Com estas considerações, pode-
e “heterossexismo”. O debate sobre as mos caracterizar a segunda questão de
relações patriarcais de gênero requer ordem: a propriedade privada. Engels
recuperar o significado de outra media- (2010) foi precursor ao destacar o sig-
ção fundamental: o patriarcado, o qual nificado da propriedade dos instru-
também contribuirá na compreensão mentos de trabalho. Antes mesmo de
do heterossexismo. colocarmos em questão a apropriação
A nossa premissa analítica está do excedente produzido, a posse dos
assentada nas indicações de Marx e instrumentos de trabalho nos indica
Engels (2007) que destacam a primazia uma permanente tensão no processo de
das relações sociais de produção estabe- desenvolvimento histórico-econômico
lecidas por homens e mulheres visando da humanidade. Essa tendência geral
a sua própria constituição e desenvolvi- pode ser observada, conforme Tabet
mento. A interação dos seres humanos (2014), até mesmo em sociedades em
entre si e com a natureza é mediada que mulheres desenvolviam atividades
pelo trabalho e, posteriormente, por um semelhantes aos homens. Para a autora,
conjunto de objetivações mais comple- embora o trabalho se realizasse com
xas, como a práxis social. O exercício funções idênticas ou muito parecidas,
de autoprodução da humanidade coloca homens e mulheres possuíam instru-
imediatamente duas questões de ordem mentos diferentes.
fundamentais, nas quais se fazem pre- Divisão sexual do trabalho e pro-
sentes arranjos de gênero. Vejamos. priedade privada são os fundamentos das
A primeira diz respeito às formas relações patriarcais que incidem sobre as
de cooperação que vão expressar, desde categorias gênero e sexualidade. O modo
já, a chamada divisão sexual do traba- de ser homem e mulher nas sociedades
lho. Para manterem-se vivos, os seres que se desenvolvem a partir destas duas
humanos buscam melhores condições dimensões tendem a expressar relações
de moradia, alimentação e procriação de dominação/exploração dos homens
que, por sua vez, apresenta ao longo sobre as mulheres. Exigem a construção
da história certa diferenciação do papel de uma masculinidade compatível com

316
DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO

o exercício do poder e com uma feminili- Em suma, gênero e sexualidade


dade nos limites da sujeição. Do ponto de são categorias atravessadas pelo con-
vista da formação cultural e simbólica, texto de desenvolvimento de relações
as bases estão dadas para assegurar aos patriarcais. Neste sentido, nos referen-
homens espaços que se desenvolvem ciamos em Saffioti (2004) ao destacar
com parca participação das mulheres a existência de uma “ordem patriarcal
como, por exemplo, no desenvolvimento de gênero”, ou seja, relações sociais
da política, do direito, ciência, filosofia estabelecidas entre homens e mulheres
etc. Em contrapartida, naturaliza lugares sob determinações patriarcais e, no
e atividades (im)postos às mulheres no caso atual, capitalistas e racistas, que D
âmbito privado como o cuidado da casa enovelam a realidade social em sua
e dos filhos. Neste sentido, Guillaumin totalidade concreta.
(2014) evidencia que há um processo
de apropriação coletiva e privada das Diversidade sexual e de gênero
mulheres por meio de uma relação de Diversidade sexual e de gênero
sexagem, ou seja, em uma interação refere-se ao conjunto de identidades
entre servidão/escravidão e sexismo, que não se enquadram no padrão tra-
surgem formas singulares de apropriação dicional que determina a vivência da
do trabalho, dos produtos do trabalho e sexualidade e do gênero. Essa diver-
do corpo das mulheres. gência é resultado da imposição de um
Nessa direção, se coloca também a modelo de sexualidade que considera
imposição de um regime de sexualida- a heterossexualidade enquanto única
de que responda aos interesses da ma- forma socialmente aceita de expressão
nutenção das relações de dominação/ da afetividade e do desejo sexual, ba­
exploração caracterizadas. A heteros- seando-se na moral sexual que entende
sexualidade, enquanto prática afetiva/ o sexo biológico como determinante
sexual entre pessoas do sexo oposto, da identidade de gênero e que defende
vai adquirindo, econômica, política a existência de único tipo de família.
e simbolicamente, o status de natural A imposição da heterossexualidade
e legítima. As práticas sexuais não para todo o gênero humano foi determi-
heterossexuais que sempre existiram nada por um conjunto de fatores, dentre
passam a ser taxadas como perversão os quais destaca-se o modo de produção
ao serem encaradas como crime, peca- capitalista; afinal, o processo sócio-his-
do e doença. A hegemonia de relações tórico que resultou na emergência da
patriarcais está circunscrita ao regime propriedade privada consolidou a fa-
de heterossexualidade obrigatória; mília como a conhecemos atualmente,
assim sendo, a lógica de manutenção isto é, a família patriarcal, monogâmica
da divisão sexual do trabalho e da e heterossexista. Esse processo, marcado
propriedade privada exige que homens pela divisão sexual do trabalho e das
e mulheres estabeleçam relações hete- relações sociais, conformou as relações
rossexuais e monogâmicas (embora aos patriarcais de gênero.
homens seja permitido acesso ao corpo Na sociedade ocidental, essa cons-
de outras mulheres sem prejuízos de trução foi balizada pela tradição reli-
erosão do heterossexismo). giosa judaico-cristã e sua moral sexual,

317
DI V ER SI DA DE SE X UA L E DE G Ê N ERO

expressa na intrínseca relação estabe- resultante não apenas de mecanismos


lecida entre Estado e religião. Ela foi coercitivos, mas também de processos
responsável por reescrever preceitos fincados na consciência humana. De
religiosos em forma de legislação, per- acordo com a autora, o pensamento
meando as definições políticas e jurí- heterossexual impõe o mesmo compor-
dicas do Estado por crenças presentes tamento sexual de forma compulsória.
em textos bíblicos – a exemplo dos Assim, ao tratar da lesbianidade, Rich
preceitos contidos no livro Levítico do (2010) nota que o cinto de castidade e
Antigo Testamento, que considera a o casamento heterossexual, bem como
D homossexualidade um pecado passível o apagamento da existência lésbica, são
de pena de morte formas de se construir a compulsorie-
Observa-se também que a negação dade heterossexual, pelo uso da força e
à diversidade sexual e de gênero foi pelo controle da consciência.
influenciada por discursos médicos e O conjunto de pessoas que se re-
saberes científicos. Durante o século conhecem na bandeira de luta pela
XIX, por meio do discurso da perversão diversidade vivenciam o gênero e a
sexual, a medicina passou a ser um dos sexualidade de distintas maneiras. Esse
mecanismos para propagar preconceitos grande grupo é formado por lésbicas,
contra essa população, sendo respon- gays, bissexuais, travestis, transexuais,
sável por considerar como doença a transgêneros e pessoas intersexuais,
homossexualidade e a transexualidade, que, agrupadas na sigla LGBT, se or-
sujeitando LGBTs a supostos “tratamen- ganizam em movimentos sociais para
tos” através de eletrochoques e clínicas construir suas próprias narrativas, de-
de reabilitação. fendendo o direito de amar livremente
Esse processo resultou, segundo e o direito de viver o gênero com o qual
Foucault (2014), em uma caça às se- se identificam.
xualidades periféricas, que articulou a No Brasil, os primeiros grupos
proibição legal – e a consequente puni- organizados de LGBTs em luta pela
ção – com os discursos clínicos acerca diversidade sexual e de gênero datam
das práticas e desejos sexuais fora do dos fins da década de 1970 e início
padrão heterossexista. Tal relação dos anos 1980, com a criação do grupo
traduziu, no seio do modo de produção Somos, em 1978, e do Grupo de Ação
capitalista, as distintas identidades se- Lésbica-Feminista (Galf), em 1981, que
xuais e de gênero como perversoras ou cumpriam o papel de defender as iden-
desviantes. Conforme Daniel Borrillo tidades sexuais diversas, mas também
(2010), as sexualidades periféricas ob- de denunciar os abusos, a censura e a
cecavam as mentes coloniais, ao mes- repressão da ditadura civil-militar.
mo tempo que a medicina pressupunha Nos dias atuais, o movimento
que a perversão sexual era própria das LGBT se organiza em torno da defesa
classes populares, divergindo de uma da vida, da cidadania e dos direitos
suposta moral sexual burguesa. dessa população, visando superar as
Adrienne Rich (2010) destaca que dificuldades do acesso de LGBTs a
o controle da sexualidade e a proibição direitos sociais como educação, tra-
da diversidade sexual e de gênero é balho e saúde, notadamente quando

318
DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO

se referem a travestis e transexuais. padrões de gênero e sexualidade repro-


Portanto, o movimento LGBT, além duzem o patriarcado e o heterossexis-
de defender a diversidade sexual e de mo. Se a divisão sexual do trabalho e
gênero, atua com o objetivo de esta- a propriedade privada, elementos que
belecer e aprofundar mecanismos de constituem as relações sociais de produ-
combate à LGBTfobia. ção no capitalismo, estão na base dessas
formas de exploração e dominação, os
Considerações finais desafios no campo da transformação se
O estudo das relações patriarcais tornam ainda mais complexos.
de gênero e sexualidade não deve ser Uma formação verdadeiramente D
parte de uma agenda restrita às mu- humana, como se propõe o movimento
lheres ou pessoas LGBTs. Por se tratar agroecológico no Brasil, precisa articu-
de um tema de envergadura histórica, lar conhecimento dos processos sociais,
atrelado aos modos de produzir e repro- respeito às diversidades e ações trans-
duzir a vida material, é necessário dar formadoras. Quando os/as LGBTs Sem
visibilidade a estes temas na economia, Terra do MST gritam “o capitalismo
na educação, na cultura e na política. destrói, o patriarcado faz a guerra: o
Qualquer perspectiva que esteja sangue LGBT também é sangue Sem
radicalmente vinculada à tentativa de Terra”, estão posicionando no horizonte
construção de uma nova ordem social da transformação a unidade entre as
precisa questionar de que maneira os lutas dos segmentos oprimidos.

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319
E
ECOLOGIA

L eonar do B off

A ecologia, em seu sentido filológi- teórico fundamental da física quân-


co, significa uma reflexão (logos-logia) tica: tudo está relacionado com tudo
sobre a casa (oikos), sobre o habitat e, em todos os momentos e em todas as
em uma ampliação mais globalizante, circunstâncias. Tudo é relação, e nada
sobre a Casa Comum, que é a Terra. O existe fora da relação.
termo foi cunhado por um discípulo de Haeckel teve o mérito de ter per-
Darwin, o zoólogo alemão Ernst Haeckel cebido que a ciência não pode se ater à
(1834-1919). Nesse texto, abordamos a análise dos seus objetos de conhecimento
ecologia do ponto de vista da teologia tomados em si mesmos, sem relacioná-las
da libertação. à realidade na qual estão inseridos. Ele
se deu conta de que, para existirem,
O que é propriamente a ecologia uma rede de relações liga e religa to-
Haeckel a define assim: “É o estudo dos eles. Para entendê-las, precisamos
da interdependência e da interação entre compreender as suas relações. Daí que,
os organismos vivos (animais e plantas) para H
­ aeckel, a ecologia é a ciência das
com o seu meio ambiente (inorgânico)” relações: de cada ser com o seu habitat e
(citado por Boff, 1993, p. 17). com os demais seres em presença.
Com essa compreensão, o próprio A Ecologia é, pois, a ciência das
Haeckel possivelmente não deu conta da relações de todos os seres entre si, desde
revolução intelectual que introduziu. Até as galáxias mais distantes até a formiga
ele, cada ciência se ocupava de um objeto que anda em cima de minha mesa. Estão
específico, sem ser relacionado a outros: relacionados entre si por aquilo que os
quem estuda as pedras, quem as plantas, suporta: a energia gravitacional, além de
quem os animais, quem o ser humano etc. serem formados pelos mesmos elementos
É a base da ciência moderna atomizada e que amadureceram no interior das gran-
dividida em suas especialidades. des estrelas vermelhas, durante alguns
Haeckel introduziu um elemento bilhões de anos, após a incomensurável
novo que mais tarde veio a ser o núcleo explosão, o Big Bang.
ECOLOGIA

Tal pan-relacionalidade forma o sem as relações indissociáveis com os


meio ambiente, expressão cunhada em fenômenos físico-químicos que ocorrem
1800 por Jakob von Uexküll (1864- no planeta.
-1944). Tal concepção fez com que a Em razão dessa compreensão ho-
ciência não se restringisse aos labora- lística, Vernadsky (2019) sugere uma
tórios, mas se inserisse organicamente ecologia global, quer dizer: uma ecologia
na natureza, na qual tudo convive com do globo terrestre como um todo e com
tudo, constituindo a vasta comunidade o conjunto de suas relações cósmicas.
de vida. Nessa perspectiva, a ecologia Assim, fez da Terra com todos os seus
não pode ser definida em si mesma, ecossistemas um objeto de estudo e de
fora de suas implicações com outros análise, como o fez posteriormente Ja-
E saberes. Ela não é um saber de objetos mes Lovelock (2020) com sua teoria da
de conhecimento, mas de relações entre Terra como Gaia, superorganismo vivo.
os objetos. Ela se apresenta como um Essa ideia somente ganhou força
saber de saberes entre si relacionados. nos últimos tempos, quando fenômenos
É a ecologização dos saberes. globais como o aquecimento, a escassez
Dessa rede de conexões surgiu o de água potável, a erosão da biodiversi-
conceito de holismo (holos, em grego, dade e a desertificação de vastas regiões
significa totalidade). Essa expressão foi do planeta, a frequência de tufões e
introduzida pelo general sul-africano tsunamis obrigaram a considerar a
Jan Christian Smuts para superar a Terra em sua globalidade. Ela nos fez
visão reducionista e parcializada da entender nosso destino comum, pois
natureza em favor do conhecimento todos estamos dentro da mesma nova
das teias de relações que ligam todos arca de Noé, que é o planeta Terra,
com todos. regulado pela biosfera.
Curiosamente, ela estabelece uma
A vida: parte essencial solidariedade objetiva dos seres huma-
do planeta Terra nos com todos os demais seres vivos que
Um nome, porém, cabe ser citado, precisam igualmente da biosfera (água,
pois não é quase referido pela literatura ar puro, alimentos, fibras e outros) para
ecológica: o do geoquímico russo Vladi- poder viver e sobreviver.
mir Vernadsky (1863-1945). Na ocasião, A ecologia ficou por quase um sé-
já circulava o conceito de biosfera, in- culo como um subcapítulo da biologia.
troduzido pelo austríaco Edward Suess Essa situação mudou quando, em 1972,
(1831-1914). Mas quem lhe deu centra- a ONU solicitou ao Massachusetts Ins-
lidade e o tornou uma palavra-chave titute of Technology (MIT) de Harvard,
da ecologia foi Vernadsky, com seu sob a orientação de A. Meadows, um
livro publicado em 1926 com o simples estudo sistemático da saúde da Terra.
título Biosfera. Os resultados assustaram os cientis-
O autor russo mostrou que a vida é tas: a Terra estava doente e sem imuni-
parte essencial do planeta Terra, um com- dade para manter sua vitalidade. O diag-
ponente que transforma as irradiações nóstico foi certeiro: a doença da Terra se
cósmicas em energia terrestre ativa. deve ao tipo de desenvolvimento depre-
A vida não pode ser compreendida dador e consumista de nossas sociedades.

322
ECOLOGIA

O diagnóstico, também conhecido como Nós nos ateremos a quatro ten-


Relatório do Clube de Roma (que reunia dências básicas, pois elas pretendem
cientistas, chefes de Estado, empresários contemplar uma ecologia integral na
e outros sábios), fez com que a ecologia linha da encíclica do Papa Francisco,
deixasse a universidade, caísse na rua e Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Co-
entrasse diretamente para o campo da mum (2015) e da Carta da Terra (2000),
política mundial. Trata-se de garantir a da Unesco, de cuja redação participei.
sustentabilidade da Casa Comum, sem a
qual nem a vida, nem a espécie humana, a) A ecologia ambiental:
nem a Terra como superorganismo vivo a qualidade de vida
terão futuro. Para que vigore a qualidade de vida,
Como se depreende, a ecologia se importa que o ar seja puro, as águas E
tornou tema central de todas as polí- não contaminadas, os solos não enve-
ticas sociais, da saúde, da atmosfera e nenados e o ambiente geral cuidado
de qualquer um dos empreendimentos; com carinho e respeito. Somente assim
analisa-se em que medida afetam o meio garantiremos o que chamamos de uma
ambiente, o poluem ou o preservam, boa qualidade de vida, ou como os an-
garantindo a vitalidade e a habitabi- dinos dizem, alcancemos “o bem-viver e
lidade de cada ecossistema e da Terra conviver” que é a harmonia com todas
como um todo. as coisas, primeiramente na família,
Antes de abordarmos as várias ten- com a natureza, com as águas, com as
dências atuais da reflexão ecológica, montanhas e com uma economia não
precisamos abordar dois temas funda- de acumulação, mas de subsistência.
mentais, sem os quais a compreensão e O Papa Francisco denuncia em
as práticas ecológicas se tornam inefica- Laudato Si: sobre o cuidado da Casa
zes, pois serão sempre mais do mesmo. Comum (2015): “Nunca maltratamos e
“O pensamento que criou a crise [dizia ferimos a nossa Casa Comum como nos
Einstein] não pode ser o mesmo que últimos dois séculos” (n. 53). Por isso,
nos vai tirar dela”. Temos que buscar devemos “fazer uma radical conversão
uma nova cosmologia que redefina a ecológica” (Francisco, 2015, n. 5) para
relação para com a natureza e a Terra. evitarmos um caminho sem retorno.
Ou mudamos ou vamos ao encontro de O consumo deve ser solidário e sub-
um armagedom ecológico. meter-se à moderação compartilhada.
Como propôs o primeiro-ministro da
Os caminhos da ecologia integral China Xi Jinping em seu discurso no
A partir desta reflexão-raiz e também Congresso do Partido Comunista em
mais diretamente com a preocupação 2017: “a China deve formar uma so-
política e social com a questão ecológica ciedade moderadamente abastecida”
surgiram os vários estudos e tendências: (Jinping, 2017).
ecologia como preservação das espécies
ameaçadas, ecologia vegetal, ecologia b) A ecologia político-social: a
animal, ecologia das populações, ecolo- sustentabilidade
gia ambiental, ecologia social, ecologia Cada sociedade organiza a sua for-
profunda (deep ecology) e outras. ma de acessar os bens e serviços natu-

323
ECOLOGIA

rais, como distribuí-los e como cuidar devemos ouvir tanto o grito da Terra
para que possam se reproduzir e não como o grito dos pobres” (Francisco,
se exaurirem. O objetivo é alcançar 2015, n. 53 e 49).
a sustentabilidade, quer dizer, permitir A outra injustiça é a ecológica,
que, com o capital natural existente, se dilapidando ecossistemas inteiros a
possa atender às necessidades humanas ponto de a Terra mostrar sinais de
da presente geração e das futuras e, ao estresse. Ela precisa de um ano e meio
mesmo tempo, permitir que a natureza para repor o que nós lhe tiramos du-
possa repousar, se regenerar e repor o rante um ano.
que tiramos dela. Um planeta limitado não suporta
A conquista do mundo e a coloni- um projeto de crescimento ilimitado.
E zação de toda a Ameríndia se fizeram Por essa razão, a Terra perdeu seu equi-
com extrema violência. Ademais, a Terra líbrio, que se mostra pelo aquecimento
nem sempre foi vista na história como a global, pelo desarranjo climático e ou-
grande mãe que tudo nos dá, mas apenas tros eventos extremos. Diz-se hoje que
como uma coisa inerte, uma espécie de no último século inauguramos uma
baú de bens e serviços à disposição do ser nova era geológica: o Antropoceno [ver
humano no seu projeto de crescimento A ntropoceno], isto é, o ser humano é
ilimitado. meteoro rasante capaz de dizimar a
Pela tecnociência, esse projeto foi Terra. Ele, com seu comportamento
aprofundado, o que trouxe grandes bene- consumista e dilapidador, emerge como
fícios à vida humana, desde o antibiótico o grande perigo para o futuro da vida e
até as viagens ao espaço sideral. Mas, do planeta vivo, a Terra. Na linguagem
simultaneamente, criou uma máquina do grande biólogo Edward O. Wilson,
de morte com armas químicas, biológicas “ele se fez o satã da Terra [...] transfor-
e nucleares, capazes de destruir toda a mou o paraíso terrenal num matadouro”
vida na Terra. (2002, p. 121).
Gestou duas injustiças: uma social, O Papa Francisco vai na mesma
fazendo com que menos de 20% da hu- linha, afirmando:
manidade opulenta disponham de 80% As previsões catastróficas já não se
de todos os bens naturais e os demais, podem olhar com desprezo e ironia.
os 80% da população empobrecida e Para as próximas gerações pode-
injustiçada, dispusessem de apenas 20% ríamos deixar demasiadas ruínas:
desses bens. Adverte o Papa Francisco desertos e lixo. O ritmo do consumo,
em seu texto sobre o cuidado da Casa desperdício e alteração do ambiente
Comum: “Já se passaram os limites superou de tal maneira as possibili-
máximos de exploração do planeta, dades do planeta, que o estilo atual
de vida, por ser insustentável, só pode
sem termos resolvido o problema da
desembocar em catástrofes. (Francis-
pobreza” (Francisco, 2015, n. 27). In-
co, 2015, n. 161)
cisivamente, constata: “Estas situações
provocam os gemidos da irmã Terra, Esta é a razão pela qual o Papa Fran-
que se unem aos gemidos dos abando- cisco insiste repetidamente que uma eco-
nados do mundo, com um lamento que logia integral deve incorporar a questão
reclama de nós outro rumo. Por isso, da justiça social para atender a todos

324
ECOLOGIA

os gritos da natureza e da multidão de autêntico “se ao mesmo tempo não


pobres do mundo inteiro. houver, no coração, ternura, compaixão
e preocupação com os seres humanos”
c) A ecologia mental: novas (Francisco, 2015, n. 91).
mentes e corações Se não sofremos com a Mãe Terra,
Esse ramo da ecologia se ocupa com como vamos cuidá-la como cuidamos de
a mente humana e com aquilo que se nossa mãe? Da razão cordial nascem ati-
passa dentro dela. Geralmente, todas tudes de respeito, de compaixão para com
as coisas começam por alguma ideia ou a natureza que sofre e de amor para com
um sonho que habita nossa mente. Hoje todos os seres. A isso chamamos de biofilia:
temos que mudar a nossa mente. amor a tudo o que vive. É a mesma atitude
A Carta da Terra adverte: “Como de São Francisco, patrono da ecologia, que E
nunca antes na história, nosso destino chamava todos os seres com o doce nome
comum nos conclama a buscar um novo de irmãs e irmãos. Sem a sensibilidade do
começo. Isso requer uma mudança na coração, continuaremos depredando a
mente e no coração” (2000, p. 3). Terra viva e os bens naturais, colocando
Mudar a mente significa não con- em risco o futuro da vida e de nossa civi-
siderar mais a Terra como algo morto, lização. Sem o coração, a razão enlouquece.
mas como Gaia, um superorganismo Pensemos na Schoah, no Gulag, nas duas
vivo que se autorregula e que articula Guerras Mundiais, na destruição do Iraque
o físico, o químico e o ecológico para com monumentos de uma das mais antigas
sempre manter a vida no planeta. Ela é culturas e nas degolações, Estado Islâmico,
viva e nossa Casa Comum. de todos os que não se convertiam ao seu
Mudar o coração significa resgatar o de muçulmanismo.
a inteligência cordial ou sensível. Temos
que enriquecer a inteligência racional e d) A ecologia integral-espiritual:
analítica que predomina em nossa cul- somos parte do universo
tura e com a qual organizamos o mundo. Esta corrente da ecologia, chamada
Mas ela tem de ser completada com a também de “ecologia profunda”, nos faz
inteligência cordial. Nesta está a sede da entender nosso pertencimento a este pla-
sensibilidade, do amor, da compaixão, da neta Terra e também a todo o universo.
ética e da espiritualidade. Somos feitos dos mesmos elementos físi-
É ela que nos faz sentir – enfati- co-químicos que há milhões de anos se
za o Papa Francisco em sua encíclica forjaram no coração das grandes estrelas
ecológica – “como nosso o sofrimento vermelhas. Quando elas explodiram, jo-
do mundo” (Francisco, 2015, n. 49). E garam esses elementos por todo o espaço,
continua: “Quero lembrar que Deus dando origem às galáxias, às estrelas, ao
nos uniu tão estreitamente ao mundo Sol, à nossa Terra e a cada um de nós.
que nos rodeia, que a desertificação A Terra é parte do imenso universo
do solo é como uma doença para cada que já existe há 13,7 bilhões de anos;
um e podemos lamentar a extinção possui 4,45 bilhões de anos e dista 28 mil
de uma espécie como uma mutilação” anos-luz do centro da nossa via láctea,
(Francisco, 2015, n. 89). Nosso impulso na parte interior de um braço da espiral
de união com a natureza não pode ser de Orion (Boff, 2015).

325
ECOLOGIA

É um minúsculo ponto azul-branco, evidências de que o universo sabia que um


perdido entre os bilhões e bilhões de ga- dia, lá na frente, iríamos surgir” (1979, p.
láxias, estrelas e planetas. Mas é aqui que 250, apud Boff, 2019, p. 125).
vivemos, daqui pensamos e contemplamos Terra e humanidade formam uma
a grandeur do universo em sua deslumbran- grande e complexa unidade. É o que nos
te harmonia. testemunham os astronautas que pude-
O grande físico e cosmólogo inglês ram ver a Terra da Lua ou de suas naves
Stephen Hawking afirmou, em Uma breve espaciais. Todos eles confirmam: daqui
história do tempo (1992), que se uma das de cima não há separação entre Terra e
quatro energias fundamentais, a gravita- humanidade; formam uma única entidade
cional, que atrai todos os seres, fosse forte (Boff, 2006). Por isso, podemos afirmar:
E demais, haveria explosões sobre explosões o ser humano é a porção da Terra que
e não se formariam os seres existentes. Da sente, pensa, ama e venera. Lembramos
mesma forma, se fosse fraca demais, não que homem vem de húmus, terra fértil e
haveria densidade suficiente para formar boa; Adão, em hebraico, vem de adamah,
as estrelas, não existiria a Terra nem nós terra arável.
estaríamos aqui escrevendo sobre tudo isso. Essa visão de totalidade nos torna
As quatro misteriosas energias, a gra- humildes e ao mesmo tempo orgulhosos
vitacional, a eletromagnética, a nuclear por nos sentirmos parte do universo, aquele
fraca e a nuclear forte, que atuam sempre ser pelo qual o próprio universo se sente,
articuladas, seriam, segundo o grande se pensa e venera a Fonte Originária de
cosmólogo Brian Swimme, a forma como todos os Seres. Então emerge em nós o sen-
atua o espírito ordenador e inteligente do uni- timento de reverência face àquela Energia
verso. Completa o físico britânico Freeman poderosa e amorosa, Deus, que tudo criou
Dyson: “Quanto mais examino o universo e nos colocou neste pequeno e belo Planeta
e os detalhes de sua arquitetura, mais acho Terra, nossa única Casa Comum.
Referências
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ciplinas.usp.br/pluginfile.php/4463897/mod_book/chapter/20806/Biodiversidade_2012/CartadaTerra.pdf
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Paradigmas para um outro mundo possível. São Paulo: Abong, 2019. pp. 123-128.
_______. Ecologia – Mundialização – Espiritualidade. São Paulo: Ática, 1993.
_______. Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres: dignidade e direitos da Mãe Terra. Edição revista e
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_______. Ética e Sustentabilidade. In: MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Caderno de Debate
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Coordenação da Agenda 21, 2006.
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HAWKING, S. Uma breve história do tempo. Lisboa: Gradiva, 1992.
JINPING, X. Discurso do primeiro-ministro no XIX Congresso do Partido Comunista Chinês. In: Ope-
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Acesso em: 24 mar. 2021.
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326
ECOLOGIA

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Para saber mais


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_______. Saber cuidar. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
_______. Ética e ecoespiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. Proteger a Terra-cuidar a vida. Como evitar o fim do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2010. E

Ecologia dos agroecossistemas


Gabriel Bianconi Fernandes
Um ecossistema pode ser considerado um ambiente natural onde interagem plantas, animais,
água, solo, nutrientes e luz solar. Um ecossistema natural tem por característica a tendência ao
equilíbrio dinâmico entre os elementos que o compõem, equilíbrio no sentido da relação entre as
populações que ele sustenta e os recursos localmente disponíveis. Uma área de floresta, de mangue
ou uma lagoa são exemplos de ecossistemas naturais. No outro extremo, temos a cidade, um ambiente
extremamente artificializado. A Ecologia é a ciência que estuda as relações entre esses diferentes
componentes bióticos e abióticos dos ecossistemas. É o estudo dos organismos na sua casa, ou, nas
palavras de Eugene Odum (1975), um dos principais autores sobre o tema: “a Ecologia define-se
usualmente como o estudo das relações dos organismos ou grupos de organismos com o seu ambiente,
ou a ciência das inter-relações que ligam os organismos vivos ao seu ambiente” (2001, p. 4).
Para plantar e criar animais, o ser humano modifica seu ambiente. Chamamos de Agroecos-
sistema [ver Agroecossistema] um ecossistema natural usado para fins agrícolas. Quanto mais o
ecossistema for alterado, mais longe ele ficará de seu estado natural. Esse é o caso, por exemplo, das
monoculturas, o padrão tecnológico disseminado pela Revolução Verde [ver Revolução Verde].
Lembrando que a natureza tende ao equilíbrio dinâmico, uma área natural biodiversa convertida
em lavoura ou pastagem voltará em algum tempo a seu estado original. Esse processo é conhecido
como sucessão ecológica natural e é aplicado nos sistemas agroflorestais [ver Sistemas Agroflo ­
restais] e também na Permacultura [ver Permacultura]. Para manter a sucessão ecológica nos seus
estágios iniciais – que é o ambiente onde as culturas agrícolas se desenvolvem – e para compensar
esses desequilíbrios causados no ambiente–, emprega-se energia na forma de produtos químicos
(como herbicidas e adubos solúveis) e de trabalho, seja com tratores, máquinas, animais ou com
os próprios braços. O uso repetido desses insumos, sobretudo dos agrotóxicos, [ver Agrotóxicos]
torna o ambiente ainda mais artificial, e aquilo que um dia foi habitado por muitas espécies de
plantas e animais e tinha o solo bem estruturado e com cheiro agradável, passa a ter uma única
espécie de planta, poucos animais e solos duros [ver Solos].
As populações de insetos, fungos, bactérias e demais seres vivos que habitam essa área intera-
gem entre si formando uma teia alimentar [ver Teia Alimentar]. Nas áreas mais simplificadas pelas
monoculturas e uso intensivo de insumos químicos, algumas espécies são prejudicadas pela falta de
recursos para sua sobrevivência, e outras são beneficiadas e se multiplicam de forma desequilibrada,
tornando-se pragas. Essas populações que se sobressaem vão se alimentar do recurso disponível
na área, que é a própria lavoura. Por não avaliar que a ocorrência de uma dada praga é resultado
de um desequilíbrio mais amplo nas interações ecológicas [ver Interações Ecológicas] daquele
ambiente, a agricultura convencional recomenda a aplicação de agrotóxicos para combater aquele
organismo em desequilíbrio que está causando dano. Mas esse tipo de intervenção não ataca as
origens do problema. As raízes da planta encontram uma terra dura e quente, e não conseguem
crescer direito, deixando a planta fraca e suscetível a doenças e pragas. Uma planta nessas condi-
ções que recebe adubação química fica ainda mais suscetível a insetos-praga, é o que nos explica

327
E C O N O M I A F E M I N I S TA

a teoria da trofobiose [ver Trofobiose]. Tem-se então um agroecossistema desequilibrado onde


será muito difícil produzir.
Como será então um agroecossistema mais equilibrado? Este deve ser o objetivo dos agricultores
que pretendem usar suas terras e mantê-las produtivas por muito tempo: modificar o ambiente
natural de forma que seja possível produzir sem que este perca muito de suas características.
Se o agroecossistema for um ambiente modificado, porém mais próximo à dinâmica e à estrutura
do ambiente natural do que do artificial, o agricultor conseguirá maior estabilidade de produção e
maior capacidade de reagir a condições adversas como seca, calor e outros (resiliência). Com isso,
ele precisará usar cada vez menos produtos de fora de sua propriedade. Adubos químicos poderão
ser substituídos, agrotóxicos abandonados e as sementes transgênicas serão totalmente desneces-
sárias. A sustentabilidade de um sistema tem a ver com sua capacidade de se auto-organizar e de
se autorreproduzir. É isso o que a agroecologia faz ao incorporar princípios da ecologia no estudo
e no manejo dos agroecossistemas.

E Para saber mais


ALTIERI, M. Agroecologia: bases científicas para uma agricultura ecológica. Expressão Popular/
AS-PTA, 2013.
FUKUOKA, M. Agricultura Natural: teoria e prática da filosofia verde. São Paulo: Nobel, 1995.
GLIESSMAN, S. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre:
Editora da Universidade UFRGS, 2001.
KHATOUNIAN, C. A. A reconstrução ecológica da agricultura. Botucatu: Agroecológica, 2001.
PRIMAVESI, A. M. O manejo ecológico dos solos: a agricultura em regiões tropicais. São Paulo:
Nobel, 2006.

ECONOMIA FEMINISTA

M ir ia n N obr e

A economia feminista propõe uma Internacional de Economia Feminista,


visão ampliada do trabalho, que inclua e que publica desde 1994 a Revista Feminist
tire da invisibilidade o trabalho domésti- Economics, com maior presença no mun-
co e de cuidado, hoje majoritariamente do acadêmico de língua inglesa.
realizado pelas mulheres. No Brasil, a Rede Economia e Femi-
As críticas às economias dominantes nismo (REF), criada em 2001, aprofundou
(clássica e neoclássica) se manifestaram a leitura de textos teóricos de língua espa-
concomitantemente às grandes mobili- nhola e a desdobrou em análises e propos-
zações feministas (ondas) de meados do tas para o mercado de trabalho, economia
século XIX e XX. Espaços de discussão solidária e agroecologia, em diálogo com a
entre as mulheres economistas e femi- Marcha Mundial das Mulheres (MMM).
nistas em encontros acadêmicos nos Es-
tados Unidos, publicações pioneiras como Ampliando o conceito de trabalho
Waring (1990), conformaram acúmulos Muitas agricultoras dizem que pre-
para a formação, em 1992, da Associação ferem carpir um canteiro ao serviço de

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E C O N O M I A F E M I N I S TA

casa. Em atividades de formação, muitas Esta imensa quantidade de trabalho


vezes elas dizem que “quando você car- realizado pelas mulheres produz valores
pe uma leira, está com a cabeça naquilo, de uso, mas não é externa ao processo
e ao final do dia pode ver o resultado de acumulação capitalista. A reprodução
do seu esforço. Enquanto que o serviço da força de trabalho não é garantida
de casa você faz várias coisas ao mesmo apenas pelo salário ou pelo preço dos
tempo, ao final do dia está cansada produtos agrícolas vendidos no merca-
e nem consegue dizer o que fez”. Elas do. A produção para o autoconsumo e
sabem que as atividades realizadas na o trabalho doméstico realizados pelas
roça contribuem para a produção, da mulheres estão na base da economia e
qual uma parte pode ser vendida. são uma variável de ajuste no conflito
O trabalho das mulheres na roça entre capital e trabalho pela distribuição E
é trabalho, [ver Trabalho] não ajuda. E da riqueza produzida.
a economia feminista vai mais além. Os trabalhadores assalariados de
O serviço da casa não é serviço, é tra- setores do agronegócio considerados
balho. Trabalho produz mercadorias dinâmicos são boias-frias, ou seja, têm
(bens e serviços com valor de troca), que trazer sua comida de casa. A em-
mas também produz as pessoas como presa transfere para a família o custo
trabalhadoras. da refeição que permite ao trabalhador
Nas famílias e nas comunidades, recuperar suas forças. O Estado neolibe-
em sua maioria, as mulheres realizam ral, quando corta orçamento na saúde
atividades que proveem as pessoas de ou na educação, considera que haverá
alimentação, saúde, bem-estar, afeto, pessoas, em geral mulheres, que possam
segurança emocional. Elas despendem ser acompanhantes no hospital, ou que
energia – esfregam roupa, levantam col- se revezem para acompanhar as crianças
chão, utilizam de coordenação motora no transporte escolar.
fina, põem a linha na agulha, picam Isto acontece porque o capitalismo,
tempero; e mantêm-se alertas às neces- o patriarcado e o racismo se sustentam
sidades das pessoas à sua volta, muitas mutuamente. Nessa sociedade, o traba-
vezes antes mesmo que sejam expressas. lho doméstico e de cuidados realizado
Por isso, algumas economistas feministas pelas mulheres é considerado como
dizem que o cuidado é mais que trabalho, expressão do que é ser mulher (isto é,
pois envolve um estado de disponibilida- da identidade de gênero feminina). A
de permanente. mulher cuida da criança doente porque
Em 2012, as mulheres rurais dedi- é boa mãe, faz uma comida gostosa sem
cavam a esse trabalho quase o triplo de gastar muito porque é boa esposa. Todo
horas que os homens urbanos e rurais este trabalho reduzido à manifestação de
(Organización de las Naciones Unidas amor aos seus e identidade, faz com que
para la Agricultura y la Alimentación, fiquem ocultos os vínculos da produção
2017). Em 2017, as mulheres trabalha- para o mercado e a produção do viver.
ram em média 20,9 horas por semana Assim, as empresas e o Estado podem
em afazeres domésticos e no cuidado de transferir custos de produção e manejar
pessoas, quase o dobro das 10,8 horas taxas de desemprego e utilização da força
dedicadas pelos homens (IBGE, 2018). de trabalho sem maiores reações.

329
E C O N O M I A F E M I N I S TA

Crítica à economia clássica e denominado homo economicus, realizaria


neoclássica “escolhas racionais” na competição por
Um dos principais economistas recursos escassos de forma eficiente, o que
clássicos, David Ricardo (1772-1823), terminaria por organizar o mercado por
desenvolveu a ideia de que o trabalho hu- meio de uma mão invisível. As economis-
mano cria riqueza em sistemas socioeco­ tas feministas consideram que este homo
nômicos que produzem as condições de economicus mais parece um fungo, que
sua reprodução. Posteriormente, Karl já nasce pronto, adulto, sem necessidade
Marx (1818-1883), ao realizar a crítica da de cuidados, e que seu comportamento
Economia Política, analisou que apenas padrão se assemelharia ao de um homem
parte da riqueza produzida pelo trabalha- branco heterossexual no auge de sua po-
E dor lhe é retribuída na forma de salário, tência e nativo do Norte geopolítico. Elas
com valor equivalente ao necessário à questionam os pressupostos da economia
sua reprodução e de seus descendentes, neoclássica: as explicações que reduzem
segundo padrões definidos em uma so- complexas inter-relações a modelos ma-
ciedade marcada por desigualdades e temáticos, e a ideia de que a família se
conflitos. O excedente é apropriado na caracteriza pela cooperação e altruísmo
forma de mais-valia, que assegura a acu- complementares aos interesses egoístas
mulação capitalista. No entanto, Marx no mercado (Strassmann, 2002).
não considerou o trabalho realizado no
espaço doméstico, basicamente pelas Economia de gênero
mulheres, para a reprodução da força de O feminismo, como ciência e prática
trabalho. O cálculo da força de trabalho política, tem uma vertente liberal centra-
considerava apenas os itens adquiridos da na igualdade formal e na remoção das
no mercado. barreiras para a inclusão das mulheres
A ocultação do trabalho doméstico na ordem estabelecida. Essa vertente
e de cuidados despolitizou as ten- considera que a desigualdade de gênero
sões que têm lugar fora do mercado. é uma construção ideológica que impacta
Ao naturalizar a divisão sexual do a estrutura econômica, mas não que seja
trabalho, consideraram como único parte de sua própria constituição. A desi-
conflito social o que tem lugar nos gualdade de gênero acarretaria, portanto,
marcos da reprodução capitalista. Por um mau funcionamento do mercado e
isso que a conceituação do trabalho um uso pouco eficiente dos recursos e do
e da economia feita pelos pensadores
capital humano.
clássicos – criticada pela economia
Esta visão se expressa em políticas
feminista – estabelece uma identifi-
cação simbólica trabalho-emprego. das instituições multilaterais (por exem-
(Carrasco, 2018, p. 39) plo, Banco Mundial, União Europeia)
restritas ao empoderamento individual
Já a economia neoclássica deixa de das mulheres para ampliar seu acesso a
lado a centralidade do trabalho e passa ativos (meios de produção, como terra,
a considerar o indivíduo e seu compor- animais e equipamentos; capital de giro,
tamento no mercado. O funcionamento como dinheiro e joias). Segundo a Food
econômico se daria pela somatória de ati- and Agriculture Organization (FAO),
tudes individuais. Este indivíduo padrão, se as mulheres tivessem o mesmo acesso

330
E C O N O M I A F E M I N I S TA

que os homens a recursos produtivos, riqueza e desconsidera a imensa dívida


elas poderiam incrementar entre 20 e econômica para com as mulheres.
30% as áreas cultivadas, e entre 2,5 e 4%
a renda proveniente da agricultura, nos Economia feminista da ruptura
países considerados em desenvolvimento A economia feminista é uma ruptura
(Organización de las Naciones Unidas teórica e uma proposta política quando
para la Agricultura y la Alimentación, considera que o que move a economia
2011). A Convenção sobre a eliminação de não deveria ser a acumulação e o lucro,
todas as formas de discriminação contra a mas sim assegurar as condições para que
mulher (CEDAW) tem como referência o as pessoas tenham uma vida plena, em
modelo ocidental de propriedade privada relações harmônicas entre elas e delas
individual, e as políticas de regularização com a natureza. A sustentabilidade da vida E
fundiária rural ou urbana, apoiadas pelo como motor da economia implica outras
Banco Mundial, ao fim visam o acesso ao formas de produção e consumo.
crédito e suas garantias (Talahite, 2017). O princípio é entender como as ne-
O princípio é remover barreiras para que cessidades humanas básicas são respon-
as mulheres se integrem à economia de didas e, assim, revelar que a parte visível
mercado e à agricultura industrial. da economia – aquela contabilizada no
Outro aspecto são as políticas de Produto Interno Bruto (PIB) – é uma
conciliação entre trabalho doméstico e pequena parte, e se sustenta nos bens e
de cuidados e trabalho remunerado. Por serviços da natureza, naqueles produzi-
exemplo, com incentivos ao trabalho dos para o autoconsumo, e no cuidado,
em domicílio e jornadas parciais. Como realizados em maior grau no âmbito das
trabalham menos horas de forma remu- famílias e das comunidades.
nerada, as mulheres terminam por ter A imagem de um iceberg é utili-
menores rendimentos. Além disso, elas zada para demonstrar que a economia
tendem a se retirar do mercado de tra- dominante só enxerga o que circula no
balho em algumas fases da vida, quando mercado, e invisibiliza a enorme quan-
os filhos são pequenos, quando idosos tidade de trabalho que sustenta a vida.
necessitam de atenção permanente, O Grupo de Trabalho de Mulheres da
de modo a não contribuir de forma Articulação Nacional de Agroecologia
regular para a previdência. Estes fatos [ver A rticulação Nacional de Agroeco ­
resultam em uma pobreza específica logia] adaptou essa imagem do iceberg
das mulheres. Este modelo não altera a em uma árvore, onde o solo representa
dinâmica de presença/ausência femini- os sistemas naturais, onde se assentam
na no mercado e em casa, e a presença as raízes que descrevem os trabalhos não
exclusiva dos homens no mercado. As visíveis realizados pelas mulheres.
tensões dele decorrentes, como a so- A interdependência é outra ideia cha-
brecarga até o limite do adoecimento, ve. Nós, seres humanos, somos intrinse-
são tratadas pelas mulheres de forma camente vulneráveis. Todas e todos ne-
isolada em suas famílias. As empresas, cessitamos de cuidados em alguma etapa
quando provém serviços, muitas vezes de nossas vidas – quando somos crianças,
o fazem com isenções de impostos. O quando estamos doentes, ou quando,
Estado atua concentrando ainda mais a no avançar da idade, diminuem nossas

331
E C O N O M I A F E M I N I S TA

capacidades motoras ou inte­lectuais. na educação, saúde, a privatização da


Precisamos do apoio de quem prepare água, o aumento do preço do gás, que
a comida, mantenha a casa e as roupas provocam aumento do tempo e energia
limpas, trate de nossa saúde. Também mobilizados pelas mulheres, inclusive
somos intrinsecamente seres relacionais. energia emocional para minimizar os
Precisamos de segurança emocional e efeitos destes ataques.
afeto para desenvolver nossa autocon- Não se trata mais unicamente de
fiança e nossas habilidades de interação um conflito “capital x trabalho”, mas de
com outras pessoas e seres. A fim de nos um conflito “capital x vida”. Os processos,
tornarmos seres humanos autônomos, nós ritmos e lógicas da acumulação capitalis-
sempre necessitamos de cuidado. ta são irreconciliáveis com os tempos e
E A sociedade capitalista, patriarcal e lógicas da vida. Os tempos de descanso
racista se baseia na distribuição desigual dos e reposição das forças, como o horário
cuidados. Em geral, as mulheres cuidam de almoço, são reduzidos. Imigrantes
mais do que os homens. As mulheres indocumentados conformam uma força
negras, indígenas e migrantes cuidam de trabalho sujeita a condições análogas à
mais ainda. Esta imposição é velada pela escravidão. A adição hormonal é utilizada
naturalização das habilidades desenvol- para evitar a menstruação – apresentada
vidas pelas mulheres ao longo de sua como um desconforto inútil – e a meno-
socialização como mulheres, para esta- pausa, considerada uma perda de vigor.
rem atentas ao cuidado do outro e pela Trata-se da dificuldade de reproduzir a
ideologia da maternidade como destino. vida em condições dignas, ou simples-
A cadeia internacional de cuidados, por mente que seja vida, e não um exercício
exemplo, mobiliza as mulheres filipinas, de sobrevivência.
consideradas alegres e confiáveis, cujas O horizonte político de superação
remessas em dólares a seus familiares tor- deste conflito implica, portanto, uma
nam-se divisas utilizadas para pagamentos “subversão feminista da economia”, ou
de dívida e royalties (MacGroven, 2012). seja, “atuar contra o sistema econômico
A maternidade é colada à identidade fe- hoje em dia hegemônico, que se impõe
minina; é comum se ouvir dizer que “uma globalmente mediante a violência e a
mulher só é completa quando é mãe”. As sedução” (Pérez Orozco, 2017, p. 30). As
exigências da maternagem mudam con- propostas e práticas de subversão se dão
forme o período histórico e a classe social. em esfera macro, como a desfinanceiri-
Enquanto o manejo da oferta de trabalho zação da economia [ver Financeirização
dos homens é feito pelo sistema industrial da Economia] e mudança de indicadores;
prisional, para as mulheres é feito por em esfera média, com medidas contra
meio do discurso sobre a necessidade da discriminações no mercado de trabalho
presença materna. e reforma fiscal; e na esfera micro, como
A sobrecarga das mulheres, a exaus- a erosão da divisão sexual do trabalho
tão das que cuidam, as práticas de servi- no cotidiano (Pérez Orozco, 2017, p. 30).
dão e o abandono de muitas pessoas em
situação de dependência dão mostras de Confluência de análises críticas
uma crise dos cuidados. As políticas de A economia feminista se desen-
austeridade, austericidas, implicam cortes volve em diálogo com outras vertentes

332
E C O N O M I A F E M I N I S TA

críticas da economia, como a ecológica A economia capitalista coloca o


e a solidária. mercado como o princípio central de
A vida humana tem duas dependên- integração econômica entre produção,
cias materiais incontornáveis: a natureza distribuição e satisfação das necessida-
e seus limites, e a vulnerabilidade da vida des. No entanto, como descreve Karl
humana. Somos natureza e obtemos da Polanyi (2000), a economia é plural, e
natureza o que necessitamos para estar na vida concreta as lógicas de mercado
vivos. A natureza é cíclica: cada resíduo convivem com lógicas de autossuficiência,
de um processo se transforma em ma- reciprocidade e redistribuição, operadas
téria-prima de outro processo, em um nos espaços domésticos, comunitários e
determinado tempo para sua regeneração. pelas instituições estatais.
A sociedade capitalista ignora a existência A economia solidária [ver Economia E
de limites físicos do planeta e oculta e S olidária] organiza iniciativas cidadãs,
desvaloriza os tempos necessários para a ao mesmo tempo políticas e socioeconô-
reprodução social cotidiana. Este processo micas, pois reivindicam o espaço público
biocida se mantém com base nos mitos e combinam diferentes princípios de
de que a produção pode se desvincular integração econômica. Desta forma, reco-
da vida e que terra e trabalho podem ser nhecem os princípios de autossuficiência
substituídos por capital. e reciprocidade que tendem a ser invisibi-
A economia feminista e a econo- lizados e naturalizados como atribuições
mia ecológica têm como centro a vida femininas. Reconhecem nas experiências
humana e a natureza, e para reorga- locais as possibilidades de respostas às ne-
nizar a economia traçam uma agenda cessidades básicas, ao mesmo tempo que
que inclui: criam um espaço de intermediação entre
A redução da extração e da pres- Estado, mercado e família, indo além da
são sobre os ciclos naturais por dicotomia público/privado (Hillenkamp;
meio de um processo que seja Guérin; Verschuur, 2016). O potencial do
debatido, decidido, antes que os diálogo entre economia feminista e soli-
recursos cheguem a níveis míni- dária se expande, considerando que boa
mos, e que sejam redistribuídos parte dos empreendimentos de economia
com critérios de igualdade. solidária são formados por mulheres, ain-
A reorganização da produção da que elas tendam a reduzir sua presença
e do mercado de trabalho, des- quando estes são institucionalizados. Para
mantelando setores que não que o diálogo prospere, algumas condi-
são socialmente necessários, e ções são requeridas: a decisão política
apoiando os trabalhadores destes de superar a divisão sexual do trabalho e
setores, em uma transição a outro hierarquias de poder com base no gênero
modelo produtivo. na autogestão; a de considerar o trabalho
A valorização do cuidado e supe- de cuidados como corresponsabilidade
ração da divisão sexual do traba- de todos os trabalhadores envolvidos; e
lho. Igualdade e distribuição da campo de iniciativas e experimentações.
riqueza, que passa por debater O diálogo da economia feminista
a função social da propriedade com outras vertentes da economia crí-
(Herrero, 2020). tica, como a economia ecológica e a so­

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E C O N O M I A F E M I N I S TA

cioeconomia interpela a agroecologia [ver Como ciência, ainda permanecem desa-


Agroeco­logia]. Estão postos, na prática, fios, sobretudo no debate sobre economia
temas como o reconhecimento da produ- camponesa. Alguns autores consideram
ção para o autoconsumo, doação e troca, que as decisões na família camponesa
os conhecimentos das mulheres sobre ma- em busca do equilíbrio entre trabalho e
nejo da biodiversidade, os usos do tempo, consumo podem ser marcadas por impo-
e o corpo como território (Sempreviva sições de ordem patriarcal e permeadas
Organização Feminista, 2018). Como por conflitos de gênero e geração (Van
movimento, a consigna “Sem feminismo der Ploeg, 2013). Indo mais além, a crítica
não há agroecologia” incorpora o reco- proveniente das mulheres como sujeito
nhecimento do trabalho de cuidado e coletivo aponta outras formas de organi-
E a erosão da divisão sexual do trabalho. zar a vida com maior justiça e liberdade.

Referências
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Para saber mais


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Publicado canal SOF Sempreviva Organização Feminista, 2020. Disponível em <https://www.youtube.
com/watch?v=MkUbORBmqk4&t=3s>. Acesso: 9 jul. 2020.
MULHERES E O MUNDO DO TRABALHO. vídeo (24,55 minutos). Publicado no canal PACS, 2012.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5kNmdIjGs_c> Acesso: 9 jul. 2020.
SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA (SOF). Para entender a economia feminista. E colocar a
lógica da vida em primeiro lugar. Disponível em: <http://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/08/
cartilhaEconomiaFeminista-web.pdf> Acesso: 9 jul. 2020. São Paulo: SOF, 2014.

334
ECONOMIA SOLIDÁRIA

ECONOMIA SOLIDÁRIA

H enr ique N ovaes

A economia solidária é o conjunto dimensões: a) experiências concretas E


das formas de produção e comercia- de cooperativismo e associativismo no
lização baseadas no cooperativismo e meio rural e urbano; experiências de
associativismo de trabalhadores. Eric comercialização, assistência técnica,
Hobsbawm (1996), no livro A era dos bancos populares, extensão univer-
extremos, caracterizou o breve sécu- sitária e educação popular, com suas
lo XX, que vai de 1914-1989, como o positividades, contradições e limites;
século dos extremos. Tudo leva a crer b) sua vinculação com as “políticas pú-
que entramos na era da barbárie, ou o blicas” implementadas principalmente
que ele chama de “era do desmorona- pelo Partido dos Trabalhadores; c) as
mento”. O capitalismo não tem mais lutas da economia solidária contra o
absolutamente nada a oferecer para a Estado capitalista para a criação daquilo
humanidade, ainda que possa demorar que Karl Marx chamou de condições
centenas de anos para ser completamen- gerais de produção e reprodução em
te superado. Prova disso é o crescimento bases associadas; d) uma teoria parti-
do analfabetismo e do analfabetismo cular da compreensão da realidade das
funcional, o colapso ambiental, o cres- cooperativas e associações e do cami-
cimento do desemprego e subemprego nho de “transformação para uma outra
em escala planetária, a intensificação da economia”, principalmente do militante
exploração dos trabalhadores, a destrui- e teórico Paul Singer.
ção dos direitos do trabalho e a longa
contrarreforma do Estado. Podemos Mundo do Trabalho
acrescentar também os processos de Associado Rural
favelização e condominização, o roubo Vêm de muito longe as lutas no
de terras, assassinato de posseiros, in- meio rural tendo em vista a produ-
dígenas, quilombolas, sem-terra, como ção coletiva na terra e a tentativa de
fenômenos da era da barbárie. construção de outras formas de socia-
A era da barbárie abriu um novo bilidade. Poderíamos destacar aqui o
ciclo de lutas pelos trabalhadores em to- Quilombo dos Palmares e Belo Monte-
das as partes do globo terrestre. No Bra- -Canudos, “a comuna mística” (Macedo
sil, a economia solidária faz parte dessas e Maestri, 2004), e nos anos 1950-1960,
lutas travadas pela classe trabalhadora as Ligas Camponesas. Em um de seus
mais pauperizada. Ela possui várias primeiros escritos sobre economia soli-

335
ECONOMIA SOLIDÁRIA

dária – depois de resgatar as experiên- Paul Singer (2002) também destaca


cias de socialismo utópico na Europa as empresas recuperadas pelos trabalha-
– Paul Singer (2002) destaca, na era dores (ERT) como algo paradigmático
da barbárie, o trabalho coletivo nas no meio urbano. No contexto de desin-
experiências do Movimento Sem Terra dustrialização, valorização do câmbio
nos anos 1990 como algo paradigmático e abertura comercial do país, houve a
para a economia solidária. multiplicação de empresas que faliram.
Afora seus elogios ao MST, poste- Inicialmente, os trabalhadores lutam
riormente Paul Singer caracterizou a pela manutenção dos postos de traba-
economia solidária no meio rural como lho, mas daí surgem bandeiras trazidas
formas de produção e comercialização, pelos trabalhadores mais politizados que
E institucionalizadas ou não, baseadas na colocam em questão a construção da
cooperação e no cooperativismo [ver autogestão no microcosmo fabril e até
­C ooperação A grícol a] que giram em mesmo da economia mundial (Ruggeri,
torno da agricultura familiar.1 2018; Novaes, 2018). Com a falência de
muitas pequenas e médias empresas,
Mundo do trabalho associado as empresas recuperadas representam
urbano a possibilidade do controle das fábri-
Desde o final dos anos 1970, houve cas pelos trabalhadores associados. No
na América Latina uma “explosão” de Brasil, somam cerca de 68 experiências
lutas para colocar fim às ditaduras na (Henriques, 2018). Ainda que nume-
região e lutas por demandas clássicas ricamente insignificantes, do ponto de
por terra, habitação, saneamento, cre- vista qualitativo as ERT cumpriram e
ches, direito ao emprego e trabalho, cumprem um papel primordial do ponto
além da resistência das populações de vista do exercício da autogestão.
atingidas por barragens e por grandes No meio urbano, a imensa maioria
obras de infraestrutura. das experiências de economia solidária
As cooperativas e associações ur- estão nos setores têxtil (confecção e
banas surgem como iniciativas da classe vestuário), de produção de alimentos,
trabalhadora mais pauperizada num con- fabricação de móveis e produtos da ma-
texto de altíssimo desemprego, subem­ deira e artesanato (Gaiger, 2016; Wirth,
prego e de reformas neoliberais. 2013). É preciso salientar a predominân-
Estas experiências baseiam-se nos cia de mulheres trabalhadoras. Nestes
seguintes fundamentos: a) construção ramos, temos algumas poucas associa-
de assembleias democráticas e exercício ções avançadas em termos políticos e
de decisões coletivas pelos trabalhado- econômicos, e a grande maioria seguindo
res, onde todos têm direito a voz e a aos “trancos e barrancos”, na luta diária
voto; b) propriedade coletiva dos peque- pela sobrevivência econômica. Outras
nos meios de produção; c) construção tantas em processo de degeneração no
de novas formas de remuneração que mercado concorrencial capitalista da
em alguma medida se diferenciam da pequena produção.
forma salarial; e d) novas formas de re- Wirth (2013) destaca que, apesar
partição do excedente, quando existem do “fracasso” relativo em termos econô-
(Cruz, 2006). micos, estas cooperativas e associações

336
ECONOMIA SOLIDÁRIA

têm cumprido um papel fundamental no que inclusive gerou a primeira experiên-


fortalecimento político de mulheres que cia de Banco do Povo (Banco Palmas),
antes tinham medo de seus maridos, é a Comunidade Palmeiras da cidade de
que tinham pouca autonomia familiar Fortaleza (Ceará). No entanto, é preciso
e econômica. Nas cooperativas e asso- ressaltar que são pouquíssimas as expe-
ciações, as mulheres encontram a força riências de formação de cooperativas e
da luta coletiva. Passam a dialogar mais, associações de trabalho na construção
passam a socializar seus dramas cotidia- civil (Ewbank, 2007).
nos e assim encontram respostas coleti-
vas para seus problemas. Esta ressalva As associações e cooperativas
se faz necessária, pois muitas análises de coleta e triagem de materiais
economicistas tendem a observar a recicláveis E
pequena renda obtida por estas coope- Uma das consequências mais nefas-
rativas e associações, desconsiderando tas da crise estrutural do capital foi o au-
as vitórias políticas destas vitórias que mento alarmante de pobres e miseráveis
ultrapassam a organização de coopera- no globo terrestre. Com o aumento da
tivas individualmente e avançam rumo pobreza e da miséria, somado a uma das
à formação de associações de coopera- características do modo de produção e
tivas, muitas delas com peso decisivo destruição capitalista, isto é, a produção
nas lutas sociais contemporâneas.2 Mas, intrinsecamente destrutiva do ser huma-
ao mesmo tempo e contraditoriamen- no e da natureza, tivemos o surgimento
te, não podemos deixar de observar a de inúmeras associações e cooperativas
permanência de muitos dos traços do de catadores de materiais recicláveis
trabalho degradante nas cooperativas (Wirth, 2013; Fraga, 2012).
e associações populares, que, de resto, A academia brasileira vê com muita
fazem parte da tendência geral de pre- desconfiança a possibilidade de constru-
carização do trabalho na atual fase do ção do trabalho associado neste “setor”
capitalismo financeirizado. da economia. Tendem a ressaltar as
No que se refere à construção ci- condições desumanas do trabalho nos
vil, a dissertação de mestrado de José lixões, as péssimas condições de tra-
Baravelli (2005) relata a influência do balho nas cooperativas e associações:
cooperativismo uruguaio na habita- galpões quentes, sujos e fétidos, o ritmo
ção social de São Paulo no período da de trabalho intenso etc. Uma outra par-
“transição democrática” (anos 1980). cela dos pesquisadores-extensionistas
Ele parte da reflexão das cooperativas prefere estabelecer relações estreitas
da Federación Uruguaya das Coope- com os catadores, sem fechar os olhos
rativas de Vivienda por Ayuda Mutua para essa questão social. É aqui que
(Fucvam) e chega até a Associação de surgem inúmeras ações de incubadoras
Moradia Unidos de Vila Nova Cachoei- de cooperativas, com graus variados de
rinha (São Paulo). Assim como a asso- radicalidade crítica e prática, atuando
ciação da Vila Nova, surgiram inúmeras junto aos catadores. Marx possivelmente
associações Brasil afora que vão desde chamaria os catadores de lumpempro-
a prática do mutirão até a formação de letariado – lumpen em alemão significa
uma associação de bairro. Uma delas, trapo, farrapo.

337
ECONOMIA SOLIDÁRIA

Dentre as positividades do traba- pública” de limpeza urbana pelos cata-


lho associado neste “setor”, podemos dores. No entanto, as experiências prá-
destacar as tentativas de organiza- ticas de relação das cooperativas com
ção do trabalho sob novas relações o Estado ainda são muito limitadas. O
sociais: a construção de assembleias neoliberalismo pode ser compreendido
democráticas e formação de comissões como o avanço do controle do Estado
para gerir o cotidiano, as tentativas de por parte das corporações. De fato, es-
construção da igualdade substantiva tamos diante do Estado mínimo para os
entre homens e mulheres na produção trabalhadores e o Estado máximo para
e administração, o papel dos pesquisa- o capital financeiro. Neste contexto,
dores-extensionistas na relação estabe- sobrou pouco espaço para as políticas
E lecida com o Movimento Nacional de voltadas às cooperativas e associações.
Catadores, os projetos de educação po- As políticas públicas criadas, em geral,
pular nas associações de catadores, in- por prefeituras e governos ligados ao
clusive com a formação de bibliotecas e Partido dos Trabalhadores foram muito
alfabetização de muitos trabalhadores tímidas em relação às inúmeras neces-
que foram deixados à própria sorte. sidades de crédito, assistência técnica,
Nesta esteira, algumas universidades escolarização, habitação etc. dos traba-
estão tentando reprojetar as máquinas, lhadores cooperados. No plano federal,
além de ajudar a criar novas formas vimos que a luta dos catadores levou
de organização do trabalho, menos ao surgimento de inúmeras “políticas
alienantes. Por incrível que pareça, públicas”. Basta lembrar que metade
também é preciso destacar que para dos recursos da Secretaria Nacional de
muitos destes trabalhadores que vivem Economia Solidária (Senaes – MTE) no
à beira da miséria, o cooperativismo ano de 2012 foi destinada aos catadores.
e associativismo na coleta e triagem O melhor exemplo do impacto do golpe
de materiais recicláveis representa um de 2016 foi a substituição de Paul Sin-
ganho em relação à situação vivenciada ger por Natalino Oldakoski, indicado
antes da entrada nas cooperativas e pelo ilegítimo Michel Temer. Nos anos
associações. Nos relatos dos traba- 1990 e 2000, foram ensaiadas algumas
lhadores, as cooperativas são vistas políticas como o Plano Nacional de
como algo melhor se comparadas com Qualificação (PNQ), fundos do Banco
a situação de desemprego por longo Nacional de Desenvolvimento Econô-
período de tempo, mendicância, vul- mico e Social (BNDES) para as em-
nerabilidade social, rigidez da jornada presas recuperadas, criação dos centros
de trabalho etc. (Wirth, 2013). de formação em economia solidária,
apoio às associações de catadores etc.
As políticas públicas Uma espécie de pedra protossocialista
de economia solidária num imenso colar de políticas públicas
Para Lopes e Rizek (2005), é pos- pró-capital. Na nossa interpretação,
sível haver o controle da “política pú- ações muito aquém do necessário para
blica” habitacional pelos movimentos a criação das condições gerais de pro-
sociais. Para Wirth (2013), também é dução e reprodução decente do mundo
possível haver o controle da “política do trabalho associado.

338
ECONOMIA SOLIDÁRIA

Negatividade do cooperativismo e tecnocratas são prescindíveis. No mi-


na era da barbárie crocosmo autogestionário, temos a hege-
Dentre as negatividades das coopera- monia das assembleias democráticas, os
tivas e associações, poderíamos destacar as conselhos são eleitos pelos trabalhadores,
condições inadequadas para a realização há rodízio e revogabilidade dos cargos,
de um trabalho não alienante, o ritmo de todas estas medidas antiburocratização.
trabalho intenso, as oscilações do mercado São criadas novas formas de remunera-
e a concorrência que afeta as cooperativas, ção em alguma medida distintas do sis-
o papel dos atravessadores na cadeia pro- tema salarial e da meritocracia, bases do
dutiva, a ausência de uma renda mínima modo de produção capitalista. Da mesma
para estes deserdados em sua própria terra, forma, são criados fundos que – quando
deserdados que são empurrados para a existem – adquirem outro sentido para E
miséria pela crise estrutural do socio- os associados. Singer (1998) também
metabolismo do capital (Gaiger, 2003). tem razão ao elogiar as conquistas das
Poderíamos destacar também os limites cooperativas de trabalhadores no modo
das políticas públicas de Economia Soli- de produção capitalista. No entanto,
dária, em geral muito modestas frente às sua teoria da transição rumo a uma “ou-
inúmeras necessidades dos trabalhadores tra economia” nos parece limitada. De
associados. É preciso lembrar que estas acordo com Aníbal Quijano (2002) – no
lutas também são assimiladas pelas grandes texto Sistemas alternativos de produção?
corporações. Para registrar, a Coca-Cola –, um dos limites da economia solidá-
estampa nas suas garrafas que “apoia as ria é que autogestão e pequena escala
cooperativas e associações de catadores”. podem ser sinônimo de insignificante,
Aqui, é preciso destacar que o capital e seu politicamente independente pode ser
novo dicionário leva as pessoas a acreditar sinônimo de sem poder, baixo custo
que “empreendedorismo social” e econo- pode ser sinônimo de subfinanciado
mia solidária são uma coisa só, criando num mundo controlado por corporações
armadilhas teóricas e ideológicas.3 transnacionais com os seus tentáculos
Recentemente, surgiu no Brasil um em todas as esferas da produção e repro-
debate entre a incineração do “lixo”, dução da vida.
estratégia típica da pequena burguesia. Um dos limites dos adeptos da eco-
Basta lembrar que a coleta do lixo é a nomia solidária é justamente não ter
principal “consumidora” dos recursos uma teoria adequada da transição para
dos municípios brasileiros. A coleta do outro modo de produção que guie suas
lixo já matou muitos prefeitos no Brasil, ações. Eles acreditam que é possível
enriqueceu muitos tecnocratas corruptos reformar gradualmente as instituições,
e muitos empresários que vivem do lixo. convivendo com as grandes corporações
transnacionais, sem a necessidade de
A teoria da “transformação social” uma revolução política.
para os defensores da economia Temos nos debruçado na teoria da
solidária: de cooperativas isoladas a transição de István Mészáros. Para ele,
uma “outra economia” a construção de uma economia comu-
Paul Singer (1998) tem razão ao nal será fruto de uma revolução polí-
nos mostrar que os patrões, os gestores tica internacional, puxada pela classe

339
ECONOMIA SOLIDÁRIA

trabalhadora unida de todas as partes trabalho e dar outro sentido


do mundo. Será uma revolução que se ao trabalho, tendo tempo para
inicia como revolução política, mas que decidir os rumos do bairro, da
vai precisar de centenas de anos para cidade, do país etc. e para a
realizar uma “revolução econômica, eleição de representantes com
ambiental e de gênero”, que imprima cargos revogáveis. Enfim, terão
um novo sentido ao trabalho e à vida. tempo e poder para controlar
Mészáros (2002) destaca alguns pilares as decisões fundamentais da
da economia comunal: sociedade. Da mesma forma,
a) desmercantilização ou produção terão tempo e informações para
de valores de uso. Para ele, a auto- decidir a composição e destina-
E gestão avança na medida em que ção dos fundos públicos;
os trabalhadores conquistam c) educação para além do capital: A
graus crescentes de controle economia comunal necessita da
da produção, tendo em vista educação para além do capital,
a satisfação das necessidades isto é, um novo conteúdo e uma
humanas, isto é, a produção de nova forma ao sistema escolar
valores de uso sem a concomi- tendo em vista a formação dos
tante produção de valores de construtores da sociedade para
troca. A produção de valores de além do capital. Sua base será
uso necessariamente questiona a escola unitária, pois esta não
um dos pilares do capitalismo: diferencia os saberes e o papel
a produção destrutiva que está das classes sociais. A história
acabando com a possibilidade será ensinada na perspectiva do
de vida na terra, voltada para a materialismo histórico e todos
acumulação de capital; deverão compreender teórica
b) autogestão no macrocrosmo so- e praticamente os princípios
cial: a autogestão no sentido científicos do trabalho;
amplo significa a superação do d) universalização do trabalho eman-
Estado capitalista, isto é, a su- cipado: todos deverão trabalhar.
pressão da burocracia estatal e E o trabalho será organizado
das formas de dominação típicas através da igualdade substanti-
da democracia burguesa. Neste va, isto é, de cada um segundo
caso, a luta pelo fenecimento do as suas possibilidades, a cada um
Estado capitalista é a luta pela segundo as suas necessidades.
criação das condições gerais de No trabalho, o desenvolvimen-
produção e reprodução da eco- to do ser humano se dará em
nomia comunal, e não mais das sua integralidade. No que se
condições gerais de produção e refere ao trabalho reprodutivo, a
reprodução do capital. Para a igualdade substantiva traz con-
reprodução da vida social não sigo o princípio da superação do
alienada, os trabalhadores ne- patriarcalismo, isto é, a mulher
cessariamente deverão reduzir cuidando da casa e dos filhos e
drasticamente a sua jornada de o homem “provedor”;

340
ECONOMIA SOLIDÁRIA

e) a propriedade real dos meios de parado, ou seja, um novo tipo


produção pelos trabalhadores: de personificação do capital, o
para a autogestão avançar na so- próprio trabalho continuará a
ciedade, necessariamente os tra- reproduzir o poder do capital
balhadores deverão questionar a contra si mesmo, mantendo-o
propriedade privada dos meios materialmente e, dessa forma,
de produção. Nas palavras de estendendo a dominação da ri-
Marx, teremos a “expropriação queza alienada sobre a sociedade
dos expropriadores”. A reconci- O desafio é, portanto, retomar o
liação entre os trabalhadores e controle da produção e reprodução
os meios sociais de produção e da vida tendo em vista a produção
reprodução material da vida so- de valores de uso. As cooperativas e E
cial se dará em distintas formas associações cumprem um papel fun-
de economia comunal (Mészá- damental na demonstração prática de
ros, 2002). Para ele, enquanto que outro mundo é possível, ainda que
as funções controladoras vitais seja um papel muito pequeno frente ao
do sociometabolismo não fo- enorme poder das corporações trans-
rem efetivamente ocupadas e nacionais. É urgente, então, retirar o
exercidas de modo autônomo controle das corporações e do Estado e
pelos produtores associados, e avançar rumo ao controle da produção
não mais deixadas à autori­dade e reprodução da vida pelos trabalhado-
de um pessoal de controle se- res livremente associados.

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Notas
1
Para o debate do cooperativismo e da cooperação no meio rural, as cooperativas do MST e as
experiências de cooperação da agricultura familiar, ver especialmente Christoffoli (2018).
E 2
Ver, por exemplo, a articulação do semiárido (ASA) e a Rede Xique-Xique, que além de outras coisas,
são importantes na promoção da agroecologia no Nordeste.
3
No novo dicionário do capital, trabalhadores se tornam colaboradores, agrotóxicos se tornam
defensivos agrícolas, latifúndio se torna agronegócio, imperialismo vira globalização e assim por
diante.

EDUCAÇÃO AMBIENTAL

R odr igo de A. C. L amosa

A Educação Ambiental (EA) se Centraremos os esforços em apresentar


constituiu, no decorrer das últimas dé- as polêmicas que diferenciam as verten-
cadas, como um campo social formado tes que formam a Educação Ambiental
por agentes advindos dos movimentos frente aos desafios postos à luta de classes
ambientalistas, das universidades, mas no século XXI.
também das escolas de Educação Bási- A compreensão de que a EA se
ca, assim como de movimentos sociais, constituiu em um campo social consi-
empresas e organizações privadas sem dera que esta é formada por um espaço
fins lucrativos. Não se objetiva aqui ex- caracterizado pela atuação de agentes
por todo o histórico de formação desse sociais portadores de perspectivas teó-
campo ou descrever os inúmeros eventos ricas e posicionamentos políticos que
e toda uma trajetória de institucionali- disputam e estabelecem entre si relações
zação por meio de legislações, decretos de poder, conflitos e consensos. Segundo
e políticas públicas que muitos autores já Bourdieu (2001, 2004), um campo social
trataram em outros trabalhos (Carvalho, é um espaço relativamente autônomo,
2004; Loureiro, 2007, 2012; Lima, 2009). formado por um ordenamento próprio,

342
E D U CA Ç Ã O A M B I E N TA L

responsável pela produção e reprodução ção como prática social historicamente


de bens culturais. definida que se constitui e se define na
De acordo com Lima e Layrargues disputa entre distintas concepções de
(2014, p. 25), observando a Educa- mundo que atravessam a sociedade. De
ção Ambiental a partir da noção de acordo com Tozoni-Reis, o princípio
campo social, pode-se dizer que esta é educativo nada tem a ver com uma dada
formada por um conjunto heterogêneo “ideologia da harmonia”, nem com o
de agentes e instituições sociais que fetiche da ciência, ele se realiza nas “efe-
compartilham um núcleo de valores em tivas necessidades histórico-concretas
comum, embora se diferenciem “em suas da sociedade, expressas pela atividade
concepções sobre a questão ambiental essencial, o trabalho – compreendido
e nas propostas políticas, pedagógicas em sua amplitude filosófica –, tomado E
e epistemológicas que defendem para como síntese da produção individual
abordar os problemas ambientais”. Es- e coletiva” (Tozoni-Reis, 2004, p. 145).
tes agentes disputam a hegemonia do Portanto, a Educação Ambiental está
campo e sua direção frente às questões longe de ser uma agenda de consenso
relativas à compreensão do mundo, de toda a humanidade ou que possa
buscando, como identificou Gramsci ser reduzida em dualidades como “ho-
(2001), a tarefa de incorporar suas con- mem x natureza”, reproduzindo uma
cepções de mundo não apenas aos cír- imagem genérica deste homem. A Edu-
culos científicos, mas ao senso comum. cação Ambiental se constitui, tal como
Em Carvalho (2004), Tozoni-Reis a educação, como prática social que se
(2004) e Trein (2012), dialogamos com define historicamente nos conflitos que
uma importante interrogação acerca do caracterizam social e politicamente uma
papel da educação e, particularmente, da determinada época.
Educação Ambiental frente à falha so- No Brasil, segundo Trein (2012,
ciometabólica produzida pela ordem ca- p. 303), só tardiamente a Educação
pitalista e seu modo de produção da vida. Ambiental se incorporou ao campo
Carvalho (2004) problematiza as razões educativo. Sua origem está associada
que levaram a adjetivar a educação de ao campo ambiental e ao âmbito dos
“ambiental”. Toda educação já não seria movimentos sociais, sendo a articulação
ambiental? A adjetivação, de acordo com com o campo educacional ocorrido de
a autora, tornou-se necessária em função forma gradual. De acordo com a autora,
dessa dimensão ter permanecido diluída “nos parece que ao afirmar o ambiental,
e invisível em correntes pedagógicas o campo da EA assume uma perspectiva
dominantes que se apoiaram em uma limitada. É como se a EA olhasse a edu-
concepção generalista e essencialista cação de outro campo”. A consequência
do “homem” que historicamente apagou disso para a Educação Ambiental foi
dimensões que a Educação Ambiental se que esta, não raramente, adquiriu um
propõe a resgatar. caráter prescritivo e comportamental
A Educação Ambiental, de acordo que define o que e como as escolas e
com Tozoni-Reis (2004), se situa e se professores devem trabalhar.
define no próprio debate do campo da No decorrer da formação históri-
educação. A autora compreende a educa- ca da Educação Ambiental no Brasil,

343
E D U CA Ç Ã O A M B I E N TA L

segundo diversos autores (Loureiro, das disputas no interior do campo da


2007, 2012; Lima; Layrargues, 2014), Educação Ambiental.
é possível verificar, em um primeiro A macrotendência conservacionis-
momento, uma clara associação entre ta, de acordo com Lima e Layrargues
esta e o pensamento conservacionista (2014, p. 393), se define, sobretudo, “por
que problematizaremos a seguir, a partir meio das correntes conservacionista, na-
de práticas que se restringiam às pro- turalista, da alfabetização ecológica e do
postas de sensibilização e conservação. movimento Sharing Nature; atualizou-se
A inserção institucional da Educação desde a virada do século, ampliando-se
Ambiental se deu, ainda neste senti- sob outras expressões que vinculam a
do, por meio das agências estatais am- Educação Ambiental à “pauta verde”.
E bientais, ainda no contexto da ditadura Historicamente, está associado ao eco-
empresarial-militar, muito antes da sua turismo, trilhas ecológicas, observação e
interlocução com o sistema educacio- a espaços como as unidades de conserva-
nal, incluindo seus dispositivos legais. ção. A vertente conservacionista perdeu
Estes mesmos autores afirmam que, no a hegemonia no campo da Educação
momento seguinte, sobretudo a partir Ambiental a partir da emergência e mul-
dos anos 1990, a Educação Ambiental tiplicação de agentes, individuais e cole-
se caracterizava por um espectro bem tivos, que passam a disputar a direção e
mais amplo de correntes de pensamento: as políticas públicas, incluindo já neste
humanista, conservacionista, sistêmica, momento aquelas em interlocução com o
problematizadora, naturalista, científi- campo educacional, num movimento de
ca, moral, zerista, biorregionalista, da aprofundamento teórico. De acordo com
sustentabilidade, crítica, ecossocialis- Lima e Layrargues (2014, p. 28), duas
mo, etnográfica, feminista, entre outras novas tendências passam a organizar
definições. os educadores ambientais insatisfeitos
No Brasil, alguns trabalhos já com a hegemonia conservacionista: a
­realizaram o exercício de mapeamento vertente crítica, contraponto à vertente
das correntes que formam o campo da conservacionista; e a vertente pragmá-
Educação Ambiental. De acordo com tica, “derivação da vertente conserva-
Sorrentino (1995), nos anos 1990 havia a cionista, nutrindo-se inicialmente da
existência de quatro vertentes: conserva- problemática do lixo urbano-industrial
cionista; ao ar livre; relacionadas à gestão nas cidades, como um dos temas cada vez
ambiental; e à economia ecológica. Lima mais utilizados nas práticas pedagógicas”.
e Layrargues (2014), em um trabalho A Educação Ambiental pragmática
mais recente, identificaram a existência é definida por Lima e Layrargues (2014)
de três correntes: conservacionista; prag- como uma renovação da tendência con-
mática; e crítica. Embora estas definições servacionista diante do novo contexto
contenham problemas, pois pelo próprio social. Ambas partem do mesmo refe-
esquematismo do método classificatório rencial comportamentalista e indivi-
perdem aspectos significativos nas dispu­ dualista, sendo a tendência pragmática
tas no interior do campo, o exercício uma versão em sintonia com os novos
proposto pelos autores revela elementos arranjos provocados pelos movimentos
que são relevantes para a compreensão de recomposição liderados pela burgue-

344
E D U CA Ç Ã O A M B I E N TA L

sia e realizados como resposta à crise Neste novo arranjo político, a


estrutural (Mészáros, 2009), quando burguesia passou a dirigir uma ampla
os sinais da transformação das forças contrarreforma do Estado [ver Estado],
produtivas em forças de destruição caracterizada por meio das privatiza-
tornaram-se aparentes e seus fenôme- ções do patrimônio público, retirada e
nos (crise econômica, crise ambiental, transformação de direitos em serviços
crise ética etc.) já não podiam mais ser prestados por organizações privadas sem
escamoteados. É neste contexto que são fins lucrativos. Na educação, verifica-se,
difundidos inúmeros projetos e ações de acordo com Santos (2012), uma priva-
baseados em respostas superficiais, tização de tipo novo em que os agentes
individualistas e comportamentais por privados, encarnados pela bandeira da
organizações (empresas, institutos, própria corporação ou por uma orga- E
fundações, ONGs). Estas iniciativas não nização social que a representa, passam
atingem as razões estruturais da crise e a definir o processo educativo, desde a
ainda difundem os valores dominantes elaboração das políticas educacionais até
que exaltam as boas práticas empresa- o trabalho escolar propriamente dito.
riais que agregam valor a mercadorias A entrada e difusão de ações, pro-
e à imagem das corporações. jetos e programas empresariais, tendo a
A emergência da tendência pragmá- Educação Ambiental pragmática como
tica no campo da Educação Ambiental referência, tiveram as organizações pri-
ocorreu no Brasil na década de 1980, no vadas sem fins lucrativos como portado-
contexto de redemocratização em que a ras. No Brasil, de acordo com pesquisa
classe dominante redefiniu suas estraté- realizada nos anos 1980 (Fontes, 2010),
gias e formas de atuação e organização, existiam, então, 1.041 “Organizações
assim como dirigiu uma intensa con- Não Governamentais”, em 24 unidades
trarreforma na administração pública da federação e 213 cidades. De acordo
das agências da sociedade política. De com Fontes (2010, p. 268), “o terreno
acordo com Martins e Neves (2005), a da associatividade civil supostamente
burguesia passou a ser portadora de uma ocupado pelas ONGs, tendo como por-
nova pedagogia da hegemonia, o que se ta-voz a Associação Brasileira de Orga-
refletiu em uma intensa articulação no nizações Não Governamentais (Abong),
interior da sociedade civil, dimensão se modificara completamente na década
em que as classes sociais se organizam de 1990”. Em pesquisa do Instituto Bra-
em aparelhos privados de hegemonia sileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
(associações, partidos, jornais, clubes com o Instituto de Pesquisa Econômica
etc.). Esse rearranjo realizado no interior Aplicada (Ipea) (órgão público vincula-
da classe dominante produziu no Brasil, do à Presidência da República), a Abong
segundo Casimiro (2019), uma “nova e o Grupo de Instituições e Fundações
direita” que, sem abandonar os “tradi- Empresariais (Gife), realizada em 2013)
cionais” métodos baseados na coerção, verificou-se um crescimento vertiginoso
intensifica a realização de um numeroso das Fundações Privadas e Associações
conjunto de estratégias de cooptação Sem Fins Lucrativos (Fasfil), constituído
tendo em vista a conquista da hegemonia em boa medida pela criação de asso-
[ver Pedagogia do Capital]. ciações empresariais. De acordo com

345
E D U CA Ç Ã O A M B I E N TA L

o Ipea, entre 1996 e 2002, o número radical é tomar as coisas pela raiz. Mas,
de Fasfil cresceu de 105 mil para quase para o homem, a raiz é o próprio homem.
276 mil entidades. Em 2018, relatório do Neste sentido, Trein (2012), reto-
Ipea identificou o espantoso número de mando os elementos fundantes do ma-
820 mil organizações privadas sem fins terialismo histórico e dialético, resgata
lucrativos existentes no país. que a marca distintiva entre os seres
Estas organizações atuam em di- humanos e os demais seres vivos se dá
ferentes áreas de interesse, incluindo pelo trabalho. O trabalho, enquanto
a educação. A Associação Brasileira atividade ontológica, é distintivo, pois
do Agronegócio (Abag), por exemplo, é por meio da atividade intencional que
realiza desde 2001, em diferentes redes os homens realizam suas necessidades
E públicas de ensino, o Programa Educa- materiais e espirituais, modificam a na-
cional Agronegócio na Escola, por meio tureza, as relações sociais e a si mesmos.
do qual realiza uma Educação Ambiental É neste sentido que nos interrogamos
pragmática interessada na valorização sobre as relações entre as mudanças
do setor (Lamosa, 2016). Neste sentido, produzidas no mundo do trabalho e
diversos autores (Lamosa, 2016; Kaplan, as alterações provocadas no ambiente,
2017; Loureiro, 2012; Trein, 2012) vêm diante de um modo de exploração que
questionando qual o sentido deste tipo sacrifica e interrompe vidas.
de programa, quais concepções estão A crise desencadeada nos anos 1970
sendo difundidas entre docentes e dis- revelou os limites da organização fordista
centes e em que medida esta Educação num primeiro momento e, em última
Ambiental pragmática difundida nas instância, do próprio capitalismo em
escolas relega aos sujeitos das comuni- resolver a falha sociometabólica (Foster,
dades escolares o papel de intelectuais 2005) que caracteriza a relação entre as
subalternos do capital. demandas do capital e a capacidade de
Em contraposição às perspecti- suporte da natureza. Esta crise expôs, de
vas conservacionistas e pragmáticas, a um lado, a unidade entre os diversos as-
Educação Ambiental Crítica emergiu pectos fenomênicos desta crise (ambien-
questionando seus pressupostos indi- tal, econômica, ética etc.) e, de outro, a
vidualistas, comportamentalistas e es- impossibilidade de superar somente um
sencialistas. Esta corrente da Educação destes fenômenos separadamente dos
Ambiental se caracteriza por uma mul- demais (Altvater, 2010).
tiplicidade de tradições teóricas que Nestes marcos, trabalho e educação
se afirmaram na esquerda mundial: são inseparáveis [ver Pedagogia do Tra­
marxistas, anarquistas, popular, emanci- balho]. As mudanças radicais no mundo
patória, transformadora, socioambiental do trabalho e nas relações de produção
etc. A partir dos trabalhos de Trein da vida social exigem mudanças também
(2012) e Tozoni-Reis (2004), retomamos radicais na concepção de mundo que
a questão: Educação Ambiental crítica, definem as ideologias, o fazer científico
mas crítica do quê? Antes que se possa e todas as demais dimensões da vida.
imaginar definir uma régua de radicali- Neste sentido, é fundamental a educação
dade, é necessário retomar a definição de como prática social portadora de um
“radical” como proposto por Marx: ser potencial transformador.

346
E D U CA Ç Ã O A M B I E N TA L

A Educação Ambiental Crítica, do Campo, ou nas escolas situadas nas


mesmo considerando a enorme hetero- periferias urbanas, vem se constituindo
geneidade entre as diferentes matrizes em uma frente de resistência, inclusive
teóricas expressas no interior desta ver- ao avanço do agronegócio, como em
tente, se caracteriza pelo questionamen- Matão, na região de Ribeirão Preto, ou
to ao aprofundamento da exploração no sul da Bahia, onde trabalhadores da
capitalista. Em especial, as matrizes que educação vêm enfrentando o avanço de
se referenciam no pensamento marxista projetos de organizações do agronegócio
têm buscado realizar uma crítica aos junto às redes públicas de ensino. Esta re-
fundamentos da sociedade de classes e da sistência tem sido realizada tomando por
acumulação do capital, com­preendendo princípio a luta em defesa da autonomia
que esta precisa ser realizada consideran- do trabalho docente, a necessidade de E
do as categorias fundantes deste modo formação continuada deste trabalhador
de produção da vida: classe social, explo- e organização de processos formativos
ração, totalidade, Estado, conflito, entre produzidos em parcerias das escolas
outras. Nesta perspectiva, o exercício com movimentos sociais e universida-
dos processos educativos é fundamental des. A Educação Ambiental defendida
e não pode se restringir à compreensão por essa vertente repousa sua ação-
dos aspectos fenomênicos, nem reduzir -ref lexão sobre a crítica à Economia
o todo às partes. Política burguesa e na tarefa de elaborar
Um universo bem extenso de práti- os elementos de uma nova pedagogia
cas escolares realizadas em escolas pú- produtora de uma nova hegemonia: a
blicas brasileiras, associadas à Educação hegemonia da classe trabalhadora.

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EDUCAÇÃO BÁSICA E AGROECOLOGIA

A nakeila de Bar ros Stauffer


D ionar a S oar es R ibeiro
E lisia ni Vitór ia Tiepolo
M ar ia C r istina Vargas

Este verbete se propõe a contribuir pedagógico, a partir da concepção he-


com a construção da conceituação e com gemônica de educação. Centramo-nos
a reflexão sobre as exigências formativas na Educação Básica pelo fato desta se
da agroecologia na educação de crian- constituir, a partir da Constituição Fe-
ças, adolescentes, jovens e adultos nas deral (Brasil, 1988) e da Lei de Diretrizes
diferentes etapas da Educação Básica. e Bases da Educação Nacional, LDB n.
Tomamos como referência as escolas 9394/96 (Brasil, 1996), como um dever
do campo; no entanto, entendemos ser do Estado e direito da pessoa. É impor-
importante extrapolá-las, por conside- tante destacar que, na década de 1980,
rarmos a agroecologia um conhecimento a luta pela Educação Básica possuía uma
essencial na formação dos estudantes em dimensão progressista e, considerando-se
diferentes territórios. a desigualdade educacional brasileira,
Iniciamos nossa discussão buscando procurava-se articular as diferentes eta-
compreender e questionar a forma pela pas da escolarização, a fim de garantir
qual as escolas organizam seu trabalho o que é essencial na formação humana:

348
EDUCAÇÃO BÁSICA E AGROECOLOGIA

Educação Infantil, Ensino Fundamental contemporâneo que, sobretudo nas áreas


e Ensino Médio. Expressava, também, o rurais, corresponde a uma formação que
desafio de trazer a base formativa tanto se subsume à lógica do agronegócio.
para a continuidade dos estudos como Nesse processo de intensificação da
para a inserção no mundo do trabalho. mercantilização da educação, o em-
Porém, apesar da existência da le- presariado avança também no controle
gislação, muitas pessoas ainda não têm dos processos educativos e escolares,
acesso garantido à escola pública, sobre- ancorados na lógica gerencial, voltados
tudo, nas etapas da Educação Infantil aos resultados e às metas. A concepção
e do Ensino Médio. Na modalidade da de formação humana se reduz e são ins-
Educação do Campo, independente- tituídos no cotidiano escolar processos
mente da etapa da Educação Básica, o que reforçam a lógica gerencialista, tais E
descaso educacional é ainda mais grave, como: a instauração de objetivos de
visto que além do acesso limitado, há aprendizagem pré-definidos que deverão
falta de condições para a permanência e se refletir no encarceramento do currícu-
a conclusão dos estudos por conta da au- lo – materializado em bases e parâmetros
sência e da precarização dos transportes, curriculares nacionais configurados
da falta de professores e de funcionários, por supostos experts em educação – e a
do fechamento de escolas, dentre outros constituição de uma avaliação de larga
fatores. Uma das consequências disso é escala. Não menos importante é a utiliza-
que, dos 7,2% de analfabetos do país, ção da tecnologia como um fetiche para
aproximadamente 20% encontram-se em resolver os chamados problemas educa-
áreas rurais (IBGE, 2017). Esses fatores cionais, mas que serve para monitorar o
se articulam ainda com a perspectiva de alinhamento desses processos que visam
uma educação que impede o sujeito de instaurar nos corações e mentes tanto de
se reconhecer enquanto classe trabalha- educadores como de educandos a crença
dora, em sua especificidade camponesa, e o exercício da meritocracia e da respon-
bem como a uma lógica educacional que sabilização (Freitas, 2016). Dessa forma,
visa padronizar a cultura dos educandos vão se instaurando as condições para a
com a do agronegócio. constituição da hegemonia da privati-
A ofensiva em transformar as esco- zação por dentro das escolas públicas.
las públicas em espaços de disseminação No entanto, a escola é um espaço
de conteúdos de acordo com a neces- também de contradições e, a depen-
sidade do capital não acontece só no der das relações estabelecidas, pode se
campo. Por ser uma construção social, tornar um espaço fundamental para o
a escola é uma instituição vinculada a desenvolvimento do ser humano em
seu tempo histórico, constituindo-se suas diferentes dimensões. Assim, ela
como um espaço para apropriação dos pode ultrapassar a concepção de que se
valores e conteúdos necessários para a resume a um tempo restrito de certificar
perpetuação das relações sociais vigen- conhecimentos, constituindo-se como
tes, voltada para a formação de força um lugar de estudos e aprendizados a
de trabalho. A escola tem se tornado, partir da problematização das relações
portanto, um lugar central para a sociali- que se estabelecem dentro e fora dela.
zação das relações sociais do capitalismo Nesse sentido, não é possível entender-

349
EDUCAÇÃO BÁSICA E AGROECOLOGIA

mos a escola isolada das contradições trabalhadoras do campo sua reprodução


do momento histórico em que se insere. social de forma digna, permitindo a re-
A partir de uma concepção crítica, constituição da relação entre ser humano
compreendemos a escola como um dos e a outra parte da natureza (tendo em vis-
espaços/processos que incidem na forma- ta que o ser humano é também natureza),
ção do ser humano, apreendida e situada de forma não exploradora (Vieira, 2018).
de acordo com o projeto político, com as Trazer a agroecologia para o âmbi-
contradições do sistema vigente e com to do debate da educação nos ajuda a
as reações da classe trabalhadora. Ne- conceber e transformar a realidade de
cessitam-se considerar as práticas sociais exploração do ser humano e da outra
que estão além da vida escolar cotidiana parte da natureza em direção à superação
E como elementos fundamentais na forma- do capitalismo para uma sociedade justa
ção humana. Trata-se de compreender a e solidária, calcada no coletivo, ou seja,
educação em sua dimensão omnilateral uma sociedade que não seja hegemoniza-
(Frigotto, 2012), que desenvolva o ser da pelo capital, mas, sim, pelo trabalho.
humano em suas diversas dimensões. A agroecologia na Educação Básica
Assim, o debate acerca da implemen- vem se configurando de distintas formas:
tação da agroecologia e seus múltiplos como uma disciplina a mais a compor o
conhecimentos na Educação Básica é currículo escolar ou como conteúdo em
uma possibilidade necessária na forma- diferentes disciplinas; como eixo transver-
ção dos educandos justamente porque a sal a várias disciplinas, sobretudo àquelas
agroecologia não se constitui como uma ligadas às ciências da natureza; como um
ciência isolada da vida, da prática social, tema gerador à luz da abordagem de Paulo
mas reafirma o ser humano como ser Freire (2005); como porção da realidade
constitutivo da natureza. nos complexos de estudo [ver Complexos
Nesse contexto de lutas e contradi- de Estudo], entre outros. Tais compreen-
ções, a agroecologia [ver Agroecologia] sões demonstram as experiências concre-
se institui de forma mais radical como tas em que os educadores e educandos
estratégia de enfrentamento ao sistema tentam materializar a agroecologia no
capitalista, às suas formas de depredação currículo da Educação Básica.
da natureza, de expropriação da classe Destacamos a potencialidade da
trabalhadora de seus conhecimentos agroecologia na perspectiva de associar
construídos historicamente. Contribui, o trabalho como princípio educativo, a
também, para a luta pela soberania ali- ciência e a cultura na direção de superar
mentar e energética, a defesa e a recupe- sua inserção de forma pontual e deslocada
ração de territórios atingidos pela forma do projeto político pedagógico das escolas
de expropriação do capitalismo, a luta de Educação Básica. A perspectiva do
pelas reformas agrária e urbana (Guhur; trabalho é importante porque através dele
Toná, 2012); e se constitui como anúncio o ser humano produz a sua existência, ou
de um novo modelo de desenvolvimento seja, atua sobre o real, modificando a na-
para o campo ao mostrar a urgência de tureza e modificando a si mesmo (Lukács,
se instituir uma forma de agricultura 1978); a ciência, por ser um conjunto de
que possibilite a produção de alimentos conhecimentos produzidos socialmente
saudáveis, propicie aos trabalhadores e que busca dar respostas aos problemas da

350
EDUCAÇÃO BÁSICA E AGROECOLOGIA

sociedade; e a cultura como um conjunto Tal perspectiva pode contribuir para


de valores éticos e estéticos que delineiam o desvelamento da alienação do traba-
as condutas sociais. lhador, pois tem a potência de explicitar
O trabalho é compreendido como como o capital destitui a classe trabalha-
um princípio educativo que aprimora dora do controle do processo de produção
a vida dos indivíduos e de suas comu- de seu próprio trabalho e, consequente-
nidades (Shulgin, 2013). Leite e Sapelli mente, a desapropria dos conhecimentos
(2014), embasados em Shulgin (2013), científico-tecnológicos que permeiam sua
destacam o desafio de trazer o trabalho atividade produtiva. Assim, ao inserir a
socialmente necessário – e aqui estamos agroecologia no currículo escolar, bus-
abordando o desafio de uma produ- camos desenvolver, intencionalmente,
ção agroecológica – para o interior da a ligação entre ciência e trabalho, com­ E
Educação Básica, pois se faz necessário preendendo o trabalho como princípio
que a escola articule trabalho manual educativo que possibilita que trabalha-
ao trabalho intelectual, explicitando dores e trabalhadoras do campo trans-
a necessidade de intervenção na vida formem a realidade em que estão imersos
e a vivência do trabalho socialmente (Caldart, 2017). Além disso, essa inserção
necessário de forma orgânica: tensiona a fragmentação entre teoria
[...] avançar na formação da consciên­ e prática, entre os saberes tradicionais
cia agroecológica exige acessar a dos povos originários e camponeses que
complexidade dos conhecimentos lutam por fazer frente à tecnificação do
das diferentes ciências que integram campo – imposta pela lógica de acumu-
a unidade de análise e de campo lação capitalista (Guhur; Toná, 2012) – e
do conhecimento da agroeco­logia, o conhecimento escolar. Ou seja, exige
a ecologia, a biologia, a química, a constituir o currículo a partir da práxis
agronomia, a antropologia, a histó- camponesa e dos povos tradicionais, uma
ria, a sociologia, entre outras (Cal-
síntese entre ação política, socialização da
dart, 2016; Arl, 2015). Portanto, é
ciência e da técnica, construção e reflexão
por este viés que é de interesse dos
trabalhadores do campo, por meio da crítica sobre as experiências.
Escola do Trabalho em construção, Na proposta coletiva de organizar
incorporar a agricultura como ‘[...] a agroecologia na Educação Básica
o ponto de partida para a educação e na construção de uma organização
politécnica [...] um complexo tecno- curricular que a contemple, sistemati-
lógico, necessariamente conectado a zadas no livro Agroecologia na Educação
outros complexos, a outras indústrias, Básica, questões propositivas de conteúdo
no sentido das práticas, dos conheci- e metodologia (Ribeiro et al., 2017),
mentos tecnológicos e científicos de realizaram-se ensaios sobre algumas
base’ (Iejc, 2015, p. 53) que podem
dimensões importantes – o que de-
ser exercitados a partir da escola na
monstra que a inserção da agroecologia
relação com seu meio social, por meio
do trabalho socialmente necessário e no currículo da Educação Básica é um
igualmente possibilitando a análise e processo em construção. Uma dessas
a compreensão das contradições no dimensões se refere ao fato de instigar
seio das relações sociais capitalistas. a análise crítica da realidade e, dessa
(Leite; Sapelli, 2014, p. 7) forma, propiciar a concretização de um

351
EDUCAÇÃO BÁSICA E AGROECOLOGIA

novo projeto de campo, diferente do processo em construção permanente,


proposto pelo capitalismo verde e seus construído por diversos sujeitos sociais
programas de educação ambiental tão (comunidades, educadores, educandos,
caros ao capitalismo. agentes públicos da educação e institui-
Outra dimensão diz respeito ao ções diversas), só se faz nas contradições
fato de que a agroecologia se torna um cotidianas encontradas em seu fazer.
fenômeno da prática social dos campo- Um dos aspectos que merece aten-
neses e de sua luta por uma nova forma ção é que precisamos inserir a agroeco-
de se fazer agricultura, estabelecendo logia na educação levando em considera-
conexões entre as experiências, saberes, ção as distintas fases do desenvolvimento
formas de produzir e de se organizar das dos educandos. Tendo Vygotsky (2007a)
E comunidades – forjadas em assenta- como fundamento para a compreensão
mentos, acampamentos, comunidades do desenvolvimento humano, a criança,
tradicionais e, até mesmo, iniciativas na Educação Infantil, apresenta grande
no meio urbano. Esses conhecimentos curiosidade e a ludicidade faz parte de
partem da vida social das comunidades, sua forma de descobrir e vivenciar o
das pautas políticas dos movimentos so- mundo. Assim, favorecer experiências
ciais, das lutas pelo acesso e permanên- em que a criança brinque, jogue, drama-
cia na terra, da preservação da cultura tize são relevantes para que ela explore,
quilombola e indígena, das denúncias observe, reflita, construa hipóteses sobre
e campanhas contra os agrotóxicos e suas vivências, sobre o território em
pelo direito à alimentação saudável. que habita a fim de compreender-se
Partem, também, de conhecimentos como um ser humano que é parte cons-
históricos acerca da agricultura natural titutiva da natureza. A alfabetização
que estão na memória dos camponeses, (com­preendida aqui não como um ano
dos indígenas e quilombolas mais velhos escolar, mas como um tempo específico
e dos conhecimentos científicos e suas para a compreensão do mundo escrito)
tecnologias que estão sendo construídos começa a se constituir quando ela inicia
para melhorar a produção a partir dos o processo de significar a escrita e, no
princípios agroecológicos. Todo esse fluxo de seu desenvolvimento, percebe
processo demonstra uma forte relação que pode desenhar mais que coisas, ou
entre os conhecimentos específicos seja, desenhar a própria fala através de
(técnicos), os propósitos de ensiná-los e palavras (Vygotsky, 2007b). Contudo,
o contexto produtivo em que esses co- a alfabetização – como a constituição
nhecimentos podem vir a ser aplicados. de processos de aquisição da leitura,
Nesse sentido, a organização curri- da escrita, da aritmética e das ciências
cular deve expressar a complexidade das naturais e sociais – exige o exercício
escolas do campo, desafiando-as a reali- de funções psicológicas complexas que
zar o constante exercício de criatividade ainda não estão completamente desen-
e de articulação entre teoria e prática, volvidas, mas que, através das media-
entre os saberes populares e os conhe- ções da cultura, contribuem para esse
cimentos científicos. A agroecologia na desenvolvimento. Na interface com a
educação transborda de perspectivas e agroecologia, esse ciclo que se inicia na
desafios na medida em que, sendo um Educação Infantil tem como objetivo le-

352
EDUCAÇÃO BÁSICA E AGROECOLOGIA

var a criança a “compreender as relações crítica da agroecologia como um projeto


ecológicas; despertar a reflexão sobre para o campo (Ribeiro et al., 2017). O
hábitos alimentares, identificar os tipos objetivo principal é que os estudantes
de trabalho na agricultura existentes no possam analisar as relações ecológicas
núcleo familiar e comunitário, conhecer [ver Interações Ecológicas] e históricas
e desenvolver práticas agroecológicas de entre a sociedade e a natureza, os siste-
produção” (Ribeiro et al., 2017, p. 38). mas agrários de sua região e do Brasil.
Esse processo tem continuidade nos No Ensino Médio, assim como na
anos iniciais do Ensino Fundamental, Educação de Jovens e Adultos, o objetivo
com as primeiras observações dos espa- se direciona ao estabelecimento de relações
ços vividos durante a Educação Infantil, ativas e interpretativas na elaboração de
e deve ser aprofundado, problematizado novos conhecimentos sobre a origem e E
e sistematizado a partir das diferentes as bases ecológicas da agricultura e das
áreas do conhecimento, analisando-se revoluções agrícolas, aprofundando os
as relações ecológicas e históricas en- conhecimentos sobre os agroecossistemas
tre a sociedade e a natureza: sistemas e a agrobiodiversidade, analisando-se as
agrários da região e do Brasil [ver S is­ relações ecológicas e históricas entre a
temas Agrários], a soberania alimentar sociedade e a natureza (Ribeiro et al., 2017).
[ver S oberania A limentar e S egurança Ao final da Educação Básica, espera-se que
A limentar e N utricional] , as práticas os estudantes tenham se apropriado dos
agroecológicas e os ciclos ecológicos são fundamentos (dos princípios, finalidades
questões fortes a serem estudadas nesse e das leis) que organizam a base agrícola
momento (Ribeiro et al., 2017). agroecológica e seus nexos e relações com a
Nos anos finais do Ensino Funda- produção agrícola em geral (Caldart, 2019).
mental, os estudantes já apresentam Como a discussão e a implementação
uma maior capacidade de abstração, da agroecologia na Educação Básica é
estabelecendo relações entre conhe- bastante recente, são muitos os apren-
cimentos mais gerais e a vida em sua dizados a serem construídos, visto que a
comunidade, realizando análises para estrutura da Educação Básica dominante
além do contexto imediato em que – carga horária, visão fragmentada dos
vivem. Do ponto de vista curricular, conhecimentos, pouca inserção da vida
vários conceitos podem ser inseridos, escolar nas comunidades, entre outros
estabelecendo o diálogo com os conhe- aspectos – torna ainda mais desafiador o
cimentos trazidos das práticas sociais exercício da compreensão do conceito da
dos educandos, tais como: agroecos- agroecologia, exigindo um papel militante
sistemas [ver A groecossistemas]; bio- e atuante. Outra questão importante é
diversidade/agrobiodiversidade; bases que o trabalho de agroecologia não tem
ecológicas da agroecologia do ponto êxito sem o envolvimento das distintas
de vista científico; análise do territó- áreas do conhecimento existentes na
rio em que vivem e sua inter-relação escola, além da inter-relação com o saber
com a realidade regional, nacional e popular. Ainda, é preciso destacar a visão
internacional; história da agricultura reducionista pela qual a agroecologia é
[ver Agricultura] e a concepção contra- colocada, muitas vezes, não intencio-
-hegemônica de agricultura; concepção nando uma análise de totalidade acerca

353
EDUCAÇÃO BÁSICA E AGROECOLOGIA

dos processos produtivos e sociais, sendo ocupadas pelos “conhecimentos cien-


conduzida como mais uma técnica de tíficos que compõem a agroecologia
produção de alimentos. Em contrapartida, em sua dimensão de ciência vinculada
são inegáveis as contradições entre as organicamente à produção, construído e
atividades teóricas e práticas realizadas reconstruído pelas práticas de luta e re-
no ambiente escolar e as práticas agrope- sistência produtiva da agricultura campo-
cuárias realizadas pelos familiares e pela nesa, milenar e mundial” (Caldart, 2019,
comunidade − o que tem servido como p. 1). Esses elementos implicam uma
um bom elemento para pedagogizar e re- relação direta entre os conhecimentos
fletir criticamente sobre a própria realida- dos educandos e a sua prática social e
de vivida pelos educandos e educadores. envolvem em boa medida suas famílias
E Na medida em que a agroecologia não é em questionamentos sobre o porquê se
uma forma predominante de produção produz de uma forma e não de outra.
e organização da sociabilidade dos edu- Propicia-se, assim, um processo educa-
candos e educadores, a escola, ao inserir tivo que contribui para a formação da
esse conhecimento em sua prática peda- consciência crítica, que, segundo Paulo
gógica, acaba por confrontar as lógicas de Freire, leva as pessoas a ultrapassarem
produção existentes, hegemonicamente as aparências, procurando questionar,
dominadas pelo agronegócio. investigar e agir conscientemente sobre
Sendo assim, a agroecologia, como a realidade (Freire, 1992).
componente fundamental na materia- A agroecologia se insere, então, no
lização da Pedagogia do Movimento, terreno da Educação Básica justamente
propicia a reconexão da escola com a porque se coloca enquanto um fenômeno
vida, permitindo a relação entre estudo da prática social dos camponeses, que a
e trabalho com maior densidade forma- veem como uma outra possibilidade para
tiva (Caldart, 2019). Nesse caminho, o produzir e organizar sua vida no campo.
conhecimento agroecológico impulsiona Essa outra lógica, ainda sob as relações
uma relação com o meio, a comunidade, sociais capitalistas, busca, não sem limi-
as famílias, o território, com as tensões tes, questionar e criar uma nova forma
e contradições sociais historicamen- de se produzir a existência humana e sua
te construídas. As escolas são, assim, relação equilibrada com a natureza.

Referências
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República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 9.394 de 20 de
dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso: 5 fev. 2019.
CALDART, R. S. Trabalho, agroecologia e educação politécnica nas escolas do campo. In: CALDART,
R. S. (org.). Caminhos para a transformação da escola: trabalho, agroecologia e estudos nas escolas do
campo. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 115-160.
_______. Extrato de registros do processo de construção para exposição na Reunião Região Sul. Mimeo, 2019.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 42. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
_______. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1992.
FREITAS, L. C. de. Três teses sobre as reformas empresariais da educação: perdendo a ingenuidade.
In: Cadernos Cedes. Campinas, v. 36, n. 99, p. 137-153, mai.-ago., 2016.

354
EDUCAÇÃO DO CAMPO E AGROECOLOGIA

FRIGOTTO, G. Educação omnilateral. In: CALDART, R. S. et al. (org.). Dicionário da Educação do


Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular,
2012, p. 265-272.
GUHUR, D. M. P.; TONÁ, N. Agroecologia. In: CALDART, R. S. et al. (org.). Dicionário de Educação
do Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular,
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IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Brasília, DF: IBGE, 2017.
LEITE, V. J.; SAPELLI, M. L. Possibilidades de trabalho pedagógico com práticas introdutórias à agro-
ecologia. In: Formação em Agroecologia dos jovens no Ensino Médio das Escolas Itinerantes do Paraná: do
saber popular ao conhecimento científico para o cuidado com a terra e com a vida. Financiado a partir
da CHAMADA MCTI/MDA-INCRA/CNPq n. 19/2014 – FORTALECIMENTO DA JUVENTUDE
RURAL, s/d.
LUKÁCS, G. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. Temas de Ciências Humanas.
Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978.
RIBEIRO, D. et al. Agroecologia na Educação Básica: questões propositivas de conteúdo e metodologia.
São Paulo: Expressão Popular, 2017. E
SHULGIN, V. N. Rumo ao politecnismo. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
VIEIRA, T. C. L. V. A relação educação e agroecologia: um estudo sobre experiências em escolas do
MST no Paraná. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual do Centro-Oeste. Guarapuava, 2018.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2007a.
_______. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007b.

Para saber mais


PRIMAVESI, A. A Convenção dos Ventos: Agroecologia em contos. São Paulo: Expressão Popular, 2016.
VARGAS, M. C. e SILVA, N. R. (org.). De onde vem nossa comida? Caderno de Educação em Agroeco-
logia. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
A HISTÓRIA DE JOÃO DAS ALFACES. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N4p-
qg--jHXM. Este é um filme de animação que foi adaptado do livro de Adriana de Aquino e Maria
Cristina P. Neves, intitulado “A história de Seu João das Alfaces: Uma introdução à agricultura orgâ-
nica”. Conta a história de um agricultor que, buscando exterminar as pragas de sua plantação, passa a
usar agrotóxicos e adoece. Com orientação técnica, aprende a realizar uma plantação mais saudável.
Direção: Cacinho, MG, 2007.
O VENENO ESTÁ NA MESA 1. Direção: Silvio Tendler. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=8RVAgD44AGg, 2011. Acesso em: 25 mar. 2021.
AGRICULTURA TAMANHO FAMÍLIA: UMA ALTERNATIVA AO AGRONEGÓCIO. Direção:
Silvio Tendler. 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m9hzzcgVVpM&list=PLu-
CYHAVIbSBktTj__VCI6sp9358Qi7K3s. Acesso em: 1 fev. 2021.

EDUCAÇÃO DO CAMPO E AGROECOLOGIA

R oseli Salete C aldart

Educação do Campo é o nome que, ricamente negado ou atendido de modo


na atualidade, identifica e reúne diferentes precário, quase sempre descolado de suas
lutas feitas pelo povo que vive e trabalha no necessidades humanas e combinado com a
campo para garantir seu acesso à educação negação de outros direitos que a evolução
pública. Acesso que lhe tem sido histo- da humanidade instituiu como universais.

355
EDUCAÇÃO DO CAMPO E AGROECOLOGIA

Pode ser entendida como prática dinâmica inclui espaços de articulação


social, como conceito e concepção. dos sujeitos do trabalho do campo entre
Como prática social, assim chamada, a si e com outros setores da sociedade.
Educação do Campo tem data de início Tem organizado práticas educativas de
e localização geográfica: nasceu no realização em comum que, por sua vez,
Brasil e completou 20 anos em 2018. O fortalecem a unidade política e organiza-
batismo foi feito pelos sujeitos coletivos tiva, ampliam os sujeitos da construção,
que, em determinado momento e con- para além do campo, e reafirmam as
texto histórico, decidiram associar lutas finalidades e o sentido social da exis-
e práticas em uma mobilização nacional tência da Educação do Campo, em cada
pela construção de políticas públicas realidade que a exige.
E capazes de efetivar este direito que é O movimento prático e a reflexão
de todos. Direito humano ao acesso a teórica produzem uma determinada
diferentes formas de educação e direito concepção de Educação do Campo.
social de participar da condução dos Concepção que não é óbvia nem dada.
processos educativos. É construída e disputada nas relações
Como conceito, a Educação do sociais em que sua vida prática acontece.
Campo é construção do percurso, auto- Trata-se de um modo de lutar, de pensar
definição construída pelos seus próprios e de fazer a educação que se enraíza no
sujeitos e expressão do movimento prá- trabalho do campo e em seus sujeitos,
tico que define suas finalidades e sua suas lutas, sua cultura, seu modo de
dinâmica. Reflete a análise de quem produzir e respeitar a vida. Se funda-
participa desse movimento sobre as con- menta na compreensão das determina-
tradições sociais que vinculam a origem ções sociais das ações que seus sujeitos
da Educação do Campo a uma história protagonizam e em uma concepção de
que vem de mais longe e a uma realidade educação com finalidades emancipató-
que não se resolve somente no campo. rias (Caldart, 2019).
Os sujeitos coletivos da Educação O desenvolvimento do conceito,
do Campo foram identificados logo no como sistematização teórica mais ampla
início desse percurso: são as diferentes da concepção de Educação do Campo,
formas de organização dos trabalha- se torna chave metodológica de com­
dores e das trabalhadoras do campo; preensão e análise das práticas e das
organizações camponesas, quilombolas, lutas que a produziram e de outras, feitas
indígenas, sem-terra; de comunidades em diferentes realidades por outros su-
ribeirinhas, de assentamentos; de agri- jeitos, com este nome ou não, mas com
cultores familiares, assalariados rurais; finalidades sociais comuns. A visão em
são comunidades que trabalham na perspectiva insere a Educação do Campo
terra. Classe trabalhadora do campo. na história da educação brasileira, assim
A Educação do Campo é uma forma como é expressão e parte da história das
associativa de lutas coletivas cujo foco é lutas e da resistência camponesa que se
a educação, mas que não se aparta de faz em qualquer lugar do mundo.
outras lutas pela vida que a precedem ou No processo coletivo de sistematiza-
completam: terra, trabalho, cultura; ali- ção teórica dessa concepção, produzimos
mento, saúde, participação política. Sua o Dicionário da Educação do Campo, pu-

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EDUCAÇÃO DO CAMPO E AGROECOLOGIA

blicado em 2012 (Caldart et al., 2012). Os que é também cultivo do modo de ser de
verbetes que o compõem tratam de um quem o pratica.
conjunto amplo de aspectos históricos, A agroecologia nasceu junto ao
características e práticas de Educação avanço do capital sobre a agricultura;
do Campo e entrelaçam conceitos que como crítica à forma de desenvolvimento
compõem seus fundamentos e podem tecnológico que subordina a produção
servir como ferramenta de análise da agrícola à lógica do negócio, do lucro
realidade e como caminho de estudo. imediato, que justifica a depredação da
A forma de produção desse Dicio- natureza e a artificialização insana dos
nário buscou mostrar as conexões prin- processos produtivos. Uma lógica que
cipais entre as esferas campo, política degenera a agricultura, mas é necessária
pública, educação e direitos humanos, à reprodução do capital por meio dela. E
definidoras da vida prática da Educação Em sua base, a agroecologia reúne
do Campo e de uma concepção que práticas e “modos de ser agri-culturais”
permite pensá-la como guia de estudo (Tardin; Guhur, 2017, p. 45), conhe-
para além de si mesma, continuando sua cimentos científicos diversos, relações
construção (cf. Caldart, 2019). sociais, lutas políticas e práticas educa-
Essa sistematização teórica coletiva tivas. Tem raiz indígena e camponesa.
é nossa referência para prosseguir na Junta ciência e memórias ancestrais
atualização da síntese conceitual sobre de cultivo da terra e de relação do ser
Educação do Campo, sempre buscan- humano com a natureza, para pensar
do apreender a espiral de seu desen- outro paradigma de avanço das forças
volvimento histórico. E para pensar o produtivas da agricultura. Ela é feita por
vínculo entre Educação do Campo e agricultores e cientistas e tem interessado
agroecologia, objeto central da obra em a todos que prezam o acesso a alimentos
que este texto se insere. A agroecologia vivos e se ocupam de cultivar o futuro.
compõe nossa concepção de Educação Nos elementos que conecta, a
do Campo. agroeco­logia reafirma a agricultura como
A agroecologia pode ser definida trabalho-cultura que visa à produção
como um processo vivo de sistematização de alimentos sadios, em uma forma de
científico-cultural da transformação his- manejo dos sistemas produtivos que
tórica da agricultura desde seus próprios interage com a natureza, construindo
fundamentos, ou seja, desde sua base agroecossistemas que respeitam os ciclos
camponesa. Transformação que cada de desenvolvimento da vida, em sua
vez mais se define no confronto à forma necessária diversidade. Na síntese de
dominante de produção que muda as Tardin e Guhur (2017, p. 44), a agroeco­
finalidades sociais da agricultura e pode logia é “uma contribuição camponesa à
chegar a matar a essência do que ela é, emancipação humana e à restauração
pondo em perigo o futuro da humanida- revolucionária da relação metabólica
de. Agricultura [ver Agricultura] é culti- sociedade-natureza”, rompida pelo modo
vo da terra para a produção de alimentos de produção capitalista.
que são portadores de vida e a preservam. No período mais recente, movi-
Vida humana e vida da natureza da qual mentos populares e organizações de
o ser humano é parte. Cultivo da terra trabalhadores camponeses, indígenas e

357
EDUCAÇÃO DO CAMPO E AGROECOLOGIA

quilombolas têm assumido o desafio de subvertem a lógica convencional da


participar dos processos de reconstrução formação de técnicos e de agricultores.
ecológica e social da agricultura desde os E há processos promissores de inserção
parâmetros da agroecologia. Isso tem for- da agroecologia nas escolas de Educação
talecido as lutas camponesas pela terra Básica do Campo, restaurando a “relação
e alargado a concepção de agroecologia, metabólica” da educação com processos
pela conexão que se estabelece entre a produtivos vivos; relação que foi rompida
dimensão ecológica da produção, a ques- pelo modo capitalista de pensar a educa-
tão da função social da terra e a reforma ção e a escola.
agrária; reapropriação coletiva dos bens A agroecologia [ver Agroecologia] é
naturais e processos de transformação mais antiga que a Educação do Campo.
E da sociedade. São fenômenos de natureza distinta,
É essa conexão que tem recoloca- cada um com seu percurso e suas fi-
do na agenda da atualidade o debate nalidades. Entretanto, ambos foram
sobre a função social dos camponeses, produzidos por uma mesma realidade
reafirmando-os como responsáveis pelo social e em um mesmo tempo histórico.
desenvolvimento da forma de produção Têm raiz comum no trabalho camponês,
de alimentos que garante a soberania ali- em sua rica diversidade de sujeitos e de
mentar dos povos e a saúde das pessoas. culturas, construindo os mesmos territó-
Pauta junto o trabalho associativo entre rios. Tendem, portanto, a se desenvolver
famílias e comunidades camponesas. E, em coevolução.
em particular, redefine o papel das mu- Na história viva, porém, o encontro
lheres e da juventude nos processos de entre agroecologia e Educação do Cam-
trabalho que visam restaurar a interação po não é algo dado porque há circunstân-
entre ser humano e natureza. cias sociais que contrariam essa tendên-
No Brasil, muitas das organizações cia. Há na sociedade uma forte disputa
que estão construindo a agroecologia de projetos de campo que também são
são também as que constroem a Edu- projetos de sociedade e contradição entre
cação do Campo. O desafio de dar uma visões de mundo e modos de vida.
dimensão social (não apenas local) às Os donos dos negócios da agricul-
práticas agroecológicas mostra a seus tura têm feito um trabalho ideológico
sujeitos a exigência da ampliação dos ostensivo para que todos acreditem –
processos formativos. É preciso preparar inclusive as famílias camponesas e os
todas as gerações de trabalhadores para sujeitos coletivos da Educação do Cam-
a construção de uma agricultura que po – que a “evolução” da agricultura
retorna a sua raiz camponesa sem retro- camponesa depende de sua inserção na
ceder no seu desenvolvimento histórico. lógica do negócio. Quando dizem “o agro
Agroeco­logia “chama educação”. Precisa é tudo” ou “somos todos agro” tentam
dela para seu avanço e por isso integra as que se creia que “tudo é agronegócio”.
lutas da Educação do Campo. E que as tecnologias próprias da forma
Já são muitas as iniciativas educati- industrial capitalista, seja a dos venenos
vas problematizadoras das relações entre e transgênicos ou já a dos orgânicos,
camponês – técnico – cientista, ensaian- produzidos na mesma lógica industrial,
do formas de educação profissional que são toda agricultura.

358
EDUCAÇÃO DO CAMPO E AGROECOLOGIA

De fato, na base de toda a produção para uma agricultura sustentável. Na


está “a terra cultivada”, que é o sentido Educação do Campo, tem sido desafio
da palavra “agro”. Mas “agro” não é a construção política e formativa em
agronegócio. É “agri-cultura”. E agri- comum, respeitando-se a forma de lutar
cultor é quem domina a arte e a ciência e de pensar a educação dos seus dife-
do cultivo da terra e da relação com a rentes sujeitos. Tanto na natureza como
natureza, e não do negócio com ela ou na sociedade, a diversidade explicita
seus frutos. A agricultura inclui relações contradições (nem sempre antagônicas)
de comércio e distribuição de produtos; e traz tensões na vida prática, em um
mas quando seus processos produtivos movimento de superação necessário às
se subordinam à lógica capitalista de finalidades tanto da agroecologia como
extração da mais-valia, que implica da Educação do Campo. E
exploração máxima do trabalho e da A agroecologia não é criação de um
natureza, essa produção deixa de ser, em povo, de um país ou de uma forma de
sua essência, agricultura para se tornar organização camponesa. Ela já se cons-
apenas negócio. É essa contradição que a titui como patrimônio das comunidades
ideologia do agronegócio tenta mascarar. camponesas do mundo e da comunidade
Entretanto, a relação entre Edu- de cientistas que com elas interagem. Da
cação do Campo e agroecologia tem mesma forma que a Educação do Campo
sido construída pela intencionalidade se fortalece pela ampliação cada vez
política e formativa dos seus sujeitos maior dos sujeitos que dela participam.
coletivos. Essa relação incide no de- A internacionalização da Educação do
senvolvimento histórico de ambas e Campo é um desafio projetivo reforçado
fortalece princípios comuns. pelo seu encontro com a agroecologia.
Educação do Campo e agroecologia Outro princípio reafirmado pela
não supõem padronização de práticas ou inserção da Educação do Campo em pro-
de métodos porque é de sua concepção cessos de territorialização da agroecolo-
interagir com cada realidade particular gia é o da ligação orgânica entre processos
em que acontecem. Entretanto, ambas educativos e processos de produção material
se regem por alguns princípios bási- da vida; entre educação, trabalho, cul-
cos, válidos para todos os processos. tura e produção. Essa conexão integra a
Do contrário, não seria possível tratar tradição pedagógica emancipatória em
de concepção e não se chegaria a uma que a Educação do Campo se insere.
ciência da agroecologia e a uma teoria Entretanto, esse vínculo potencializa
da Educação do Campo. a relação entre ser humano e natureza,
Um dos princípios reafirmados por base de qualquer forma de trabalho, mas
essa relação é o da diversidade, dos sujei- que tem sido pouco considerada nas
tos que as constituem e das suas formas pedagogias do trabalho e é central na
de luta, de trabalho, de cultura, com concepção de formação humana que a
todas as dimensões que isso abarca. Pelo agroecologia traz em si.
caminho da agroecologia fica ainda mais Por sua vez, a agroecologia se realiza
fácil compreender a importância desse como práxis quando é apropriada pelos
princípio: na natureza, a diversidade camponeses, em formas “agri-culturais”
de espécies é sinal evolutivo e condição marcadas pela diversidade étnica, cultu-

359
EDUCAÇÃO DO CAMPO E AGROECOLOGIA

ral, política, e isso implica educar todas que fortalece os sujeitos coletivos em
as gerações na direção da desalienação, suas práticas, sem a tutela pedagógi-
do trabalho e da natureza. Desalienação ca e política do Estado. Processos de
que quer dizer reapropriação cultural produção agroecológica, assim como
coletiva do modo de fazer agricultura de processos educativos dos trabalhadores
que são os sujeitos criadores, mas do qual camponeses e das escolas do campo, de-
têm sido expropriados. Esse processo vem ser geridos coletivamente pelos seus
não se resolve pela educação. Precisa próprios sujeitos. As lutas por recursos
do trabalho transformado, em conexão do fundo público a que têm direito como
com uma intencionalidade política e membros da sociedade continuarão
educativa na mesma direção. sendo feitas enquanto se estiver sob
E A relação entre educação e produ- relações sociais de desigualdade.
ção traz entranhada uma concepção Agroecologia e Educação do Campo
de conhecimento, elemento central se desenvolvem entre nós ainda no inte-
no desenvolvimento dessa intenciona- rior de relações sociais de produção capi-
lidade. Pensada desde os desafios da talista e são, portanto, por elas contradi-
forma agroecológica de produção, essa toriamente determinadas. Seu encontro
relação alarga a visão de conhecimen- pode evitar desvios pressionados por
to, inserindo-o no âmbito da cultura, esse ambiente social. A territorialização
que multiplica suas formas. Ao mesmo da agroecologia vinculada a lutas e prá-
tempo, aumenta as exigências da for- ticas da Educação do Campo fortalece
ma científica do conhecimento e abre a ligação com quem as produz. Para a
imensas possibilidades de apropriação agroecologia, essa raiz impede que seja
e produção das diferentes ciências, tomada como um corpo autônomo de co-
em especial das ciências da natureza, nhecimentos de propriedade privada de
muitas vezes distantes de processos de grupos ou de instituições de pesquisa (ou
formação emancipatória. já de empresas), desvio que restabelece a
O desafio de religação entre educa- cisão entre quem faz e quem concebe o
ção, produção, ciência, cultura e forma- trabalho, princípio essencial à produção
ção política envolve diferentes formas de capitalista, em todos os setores. Essa
educação e precisa do envolvimento das cisão facilita um uso parcial da ciência
escolas, especialmente quando se pensa da agroecologia, com o objetivo de adiar
na formação de crianças e jovens inseri- a explosão das contradições do modelo
dos nos territórios camponeses. Trata-se de agricultura do capital, o que retarda
de reconstruir a função social das escolas os processos de reterritorialização da
do campo (da terra, das águas, das flo- agricultura camponesa. Esses processos,
restas...), tradicionalmente vista como por sua vez, são vitais ao fortalecimento
preparação dos estudantes para sair dos sujeitos que garantem a existência
do campo ou dos processos produtivos da Educação do Campo. Além de evi-
relacionados à agricultura camponesa. tar tendências ao refúgio em ideários
A relação entre Educação do Cam- pedagógicos descolados das lutas ou que
po e agroecologia reafirma como prin- seus sujeitos se afundem na lógica das
cípio comum também uma forma de políticas públicas do sistema que precisa
construção e gestão das políticas públicas ajudar a transformar.

360
EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

Agroecologia e Educação do Cam- a lógica mercantilista mesquinha que


po são nomes femininos de processos o tempo social presente ainda lhes
que entrelaçados se fortalecem. E ger- impõe. Eles são como a nossa “nobre
minam futuro. Muitos coletivos têm amiga toupeira” (Marx, 2008) que
assumido essa construção como luta de sabe trabalhar pacientemente sob a
vida inteira, para que as novas gerações terra, em um movimento que a torna
tenham mais possibilidades de superar mais viva.

Referências
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Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017, p. 44-99.

EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

R omier da Paix ão S ousa


C ar los R enilton Fr eitas C ruz
Páulea Z aquini
Da nielle C er r i

O objetivo deste texto é trazer uma seu uso mais consolidado – processos
ref lexão sobre o termo educação em formais de educação.
agroecologia, assim como apresentar Iniciamos reafirmando nossa con-
elementos de sua gênese histórica e cepção de agroecologia [ver Agroeco ­
suas principais características, visando logia] , visando clarificar sua relação
sua melhor compreensão e aplicação. com a educação. A agroecologia possui
Apesar de partilharmos da concepção bases epistemológicas ancoradas no
de educação em agroecologia que se pensamento complexo e transdiscipli-
realiza em diversos espaços, muito além nar (Ruiz-Rosado, 2006) pautando-se
da escola, e podendo designar proces- nos conceitos e princípios ecológicos,
sos amplos e continuados de educação sociais e econômicos associados às prá-
relacionados à construção do conheci- ticas históricas e culturais dos agricul-
mento ­agroecológico, daremos relevo ao tores familiares camponeses, em uma

361
EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

perspectiva da memória biocultural base em diversas áreas do conheci-


(Toledo; Barrera-Bassols, 2015). mento, que se propõe a estudar pro-
A educação em agroecologia ar- cessos de desenvolvimento sob uma
ticula a natureza (ecossistema-agroe- perspectiva ecológica e sociocultural
cossistema-paisagem), o trabalho e a e, a partir de uma abordagem sistêmi-
cultura, visando uma formação humana ca – adotando o agroecossistema [ver
crítica-emancipatória-ecológica em A groecossistemas] e os sistemas agro-
contraposição à pedagogia do capital alimentares como unidades de análise.
[ver Pedagogia do Capital]. Prima pelos Evidencia-se uma perspectiva multidi-
princípios da proteção da vida, da pro- mensional e multiescalar, destacando-
moção da saúde, da proteção ambiental, -se as ênfases ecológico-agronômica,
E da solidariedade entre os povos, do socioeconômica, política, cultural e
respeito e valorização das diversidades alimentar (ABA–Agroecologia, 2019;
– étnica, biológica, cultural, de gênero Sevilla Guzmán; Woodgate, 2013;
e geracional –, de respeito aos tempos González de Molina, 2011).
e processos ecológicos e de valorização Sendo assim, a agroecologia se
do cuidado com o outro. Pressupõe constitui como uma possibilidade de
um diálogo entre o saber popular e o construção de relações sociais, econô-
conhecimento científico, havendo ne- micas, culturais e ambientais menos
cessidade de partir sempre da realidade degradantes, devendo estar presente
como princípio pedagógico, visando seu nas discussões da produção alimentar,
conhecimento para sua transformação. da promoção e prevenção da saúde,
Fundamenta-se nos pressupostos impulsionando a construção de novos
da Educação Popular, da Educação sistemas econômicos que considerem
do Campo [ver E ducação do C ampo], que condições dignas e emancipatórias
da Pedagogia do Movimento e demais de trabalho e renda sejam primordiais
matrizes educacionais emancipatórias e na proteção e recuperação do meio
transformadoras da sociedade. Porém, a ambiente e de seus recursos, incluindo
aproximação com essas matrizes integra os do solo, das águas e do ar.
a construção histórica da agroecologia A partir destas premissas, as prá-
na sua relação com a educação, mas ticas de educação em agroecologia no
isso não é algo dado por completo, ou Brasil se estabelecem, de maneira mais
que sempre esteve ou está presente. efetiva, na década de 1970, em con-
Há tensões epistemológicas entre essas traponto ao modelo de modernização
matrizes e na relação com as bases da agricultura. Nasce das críticas aos
epistemológicas de constituição da métodos lineares e unidirecionais de
agroecologia. Essas tensões não serão produção e difusão de conhecimentos,
tratadas nesse texto, mas é importante especialmente no âmbito das ciências
ressaltar que há um processo em curso agrárias.
de aproximação dialética entre essas Foi a partir da valorização de am-
matrizes e a agroecologia. bientes de organização sociopolítica
Compreendemos, ainda, a agroe- criados, principalmente pelas Comuni-
cologia como um enfoque científico, dades Eclesiais de Bases (CEB), que o
teórico, prático e metodológico, com movimento social do campo incorporou

362
EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

os preceitos da educação popular, e, mação de profissionais para atender a


ao discutir a realidade local dos cam- uma demanda de produção orgânica
poneses e seus modos de produção, crescente no país e no mundo, criadas
deu os primeiros passos na construção a partir da indução do Estado, com um
do enfoque agroecológico, propondo forte conteúdo tecnológico.
alternativas ao modelo hegemônico de No entanto, todas essas articulações
produção agroindustrial. Esse processo e ações desenvolvidas pelo movimento
exigiu uma nova pedagogia, que privi- agroecológico no Brasil e vinculadas ao
legiasse o diálogo e a valorização dos desenvolvimento das resistências polí-
conhecimentos acumulados historica- ticas, acadêmicas e científicas, junto às
mente pelos camponeses e camponesas organizações dos agricultores familiares
na relação direta com a natureza. camponeses, até final dos anos de 1990, E
Do mesmo modo, nas universida- tinham pouca ou nenhuma institucio-
des e outras instituições de formação, nalidade no âmbito das Instituições de
pesquisa e extensão rural, diversos pes- Ensino Superior e de Instituições de
quisadores, professores e técnicos, junto Educação Profissional e Tecnológica.
aos estudantes, passam a questionar os Foi a partir da criação do Programa Na-
conhecimentos ensinados no ambiente cional de Educação na Reforma Agrária
escolar, baseados nos pacotes da Revo- (Pronera), em 1998 (Brasil, 2020) que se
lução Verde [ver Revolução Verde]. As- iniciou a implementação dos primeiros
sim, a partir dos anos de 1980, surgem cursos formais em agroecologia, ainda
os Encontros Brasileiros de Agricultura como projetos, mas que logo se institu-
Alternativa (EBAs), que proporciona- cionalizam por dentro do aparelho do
ram debates sobre a então chamada Estado, fortemente influenciados pelos
agricultura alternativa, os problemas movimentos sociais do campo, em aten-
experimentados pela modernização da ção às suas reivindicações de educação
agricultura, entre outros temas de rele- no espaço rural (Sousa, 2017).
vância naquele período (Aguiar, 2010). Considerando a longa trajetória dos
Diante deste cenário histórico, cursos de Agronomia e das Ciências
emergem, quase que paralelamente, Agrárias no país, a educação formal
diferentes iniciativas de educação em em agroecologia é muito recente, porém
agroecologia: aquelas articuladas pelo já possui territorialização nacional. A
movimento estudantil e grupos de partir de 2002, foram criados dezenas
engenheiros agrônomos, criando uma de cursos de Ensino Médio profissiona-
resistência acadêmica-científica; as lizante em agroecologia, além de cursos
do movimento por uma Educação do de graduação e pós-graduação reconhe-
Campo, com protagonismo dos movi- cidos pelo Ministério da Educação (Bra-
mentos sociais do campo; iniciativas sil, 2002). Apesar dos primeiros cursos
criadas nos Centros de Formação por formais em agroecologia nascerem,
Alternância (Ceffas); ações de diversas em grande parte, com uma abordagem
organizações não governamentais que muito semelhante aos currículos das
estabeleceram processos formativos Ciências Agrárias – em especial, aos
diversos, com o intuito da promoção cursos de Técnico em Agropecuária e
da agroecologia; e iniciativas de for- de Agronomia –, a educação em agro-

363
EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

ecologia é mais ampla, abrangendo as no país e são compartilhadas através dos


áreas de ciências humanas, biológicas, Seminários Nacionais de Construção
da saúde e engenharias. do Conhecimento Agroecológico [ver
A institucionalização da educação Conhecimento Agroecológico] realizados
em agroecologia deu-se de diferentes durante os Congressos Brasileiros de
maneiras, como: disciplinas em diversos Agroecologia (CBA) em Belo Horizon-
cursos, grupos de estudantes, núcleos te, 2005, Guarapari, 2007 e Curitiba,
de estudos em agroecologia, projetos de 2009, e mais recentemente nos Semi-
pesquisa e extensão, cursos formais em nários Nacionais sobre Educação em
diferentes níveis e modalidades; cursos Agroecologia (SNEA), Olinda, 2013 e
formais com outras nomenclaturas, entre Seropédica, 2016.
E outros arranjos. Diante da necessidade de se pen-
Este movimento diverso e plural de sar formas de aprimorar os espaços de
criação de cursos e outros espaços de formações que envolvem a educação
formação profissional em agroecologia em agroecologia, a partir do I SNEA,
não vem ocorrendo de maneira linear realizado em 2013 (Seminários Nacionais
no cotidiano de escolas e demais ins- sobre Educação em Agroecologia, 2013),
tituições de ensino. Ele é fruto de um estabeleceram-se quatro princípios funda-
longo processo de aprendizagem entre mentais para a educação em agroecologia,
camponeses, técnicos, pesquisadores e que entendemos como fundamentais para
demais sujeitos sociais envolvidos. Há a compreensão do termo.
tensões nas compreensões dos proces- O primeiro é o princípio da vida em
sos formativos. Pelo menos três linhas que a perspectiva biocentrista deve ser
podem ser identificadas: espaços de levada em consideração. Ou seja, o res-
formação profissional articulados com peito à vida em sua plenitude, de modo
os movimentos sociais do campo; outro que se valorizem processos educativos
que atende ao nicho de mercado dos que considerem o conjunto dos seres
orgânicos, crescente no país; e cursos vivos e fortaleçam os ciclos vitais.
formais oriundos da expansão da rede O segundo, o princípio da diver­
federal de ensino profissional e tecnoló- sidade, contrapondo-se às visões
gica – grande parte desses cursos foram homogeneizadoras e padronizadoras
criados em função da ampliação do nú- existentes na educação dominante,
mero de unidades de ensino vinculadas estabelece as bases para a valorização
à Rede Profissional e Tecnológica no de uma diversidade humana, reconhe-
país, especialmente nas antigas Escolas cendo os saberes dos povos e comu-
Agrotécnicas (Sousa, 2015). nidades tradicionais e a importância
Nesse contexto, a partir de 2005, de visibilizar as práticas ancestrais e
a Associação Brasileira de Agroeco- as diferentes cosmologias das diversas
logia (ABA-Agroecologia) promoveu etnias existentes no país, combaten-
uma série de espaços para a reflexão e do o racismo e o preconceito étnico.
disseminação do termo Educação em Também se relaciona com o pensar de
Agroecologia. Estas reflexões e proble- uma diversidade ecológica, de sistemas
matizações partem das diferentes expe- biodiversos, adequados às realidades
riências desenvolvidas e sistematizadas locais e territoriais.

364
EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

O terceiro princípio, o da comple- povos tradicionais, com os povos do


xidade, afasta-se da simplificação da campo, das águas, das cidades e da
realidade, da compartimentalização e f loresta, com a produção agrícola e
fragmentação dos processos educativos. com o trabalho humano?
Esse princípio indica que a educação em É importante destacar que, na
agroecologia deve primar pelo plura- perspectiva da emancipação, a edu-
lismo metodológico e epistemológico e cação em agroecologia como um todo
privilegiar ações que construam a trans- organicamente interligado e interde-
disciplinaridade e articulem diferentes pendente deve ser desenvolvida em
conhecimentos científicos, associados uma perspectiva de totalidade e de
aos saberes locais. formação omnilateral. A formação
A educação em agroecologia se omnilateral propicia ultrapassar a alie- E
propõe a problematizar a realidade nação – tanto da alienação de um ser
para transformá-la. Assim, o quarto humano por outro ser humano como
princípio é o da transformação, visando a alienação do ser humano em relação
práticas educativas emancipatórias, de à natureza. Assim, transgride-se esse
construção de autonomia socioecoló- processo de alienação ao possibilitar
gica, ações de autogestão e auto-orga- uma concepção de educação mais
nização dos sujeitos sociais envolvidos. ampla e profunda, que considera o de-
É importante também a superação do senvolvimento completo, multilateral,
machismo e das relações de gênero de todos os sentidos e faculdades hu-
desiguais. A educação em agroecologia manas, e das forças produtivas para a
pressupõe a visibilidade e a valorização satisfação das necessidades de homens
do papel das mulheres na construção do e mulheres (Manacorda, 2010).
conhecimento agroeco­lógico. Considerando as possibilidades da
As experiências mostraram que educação em agroecologia em ambien-
essas conquistas só foram possíveis tes formais de educação, para além dos
nos processos em que a produção cursos universitários e técnicos, elas
agroecológica foi articulada com estão, ou deveriam estar, presentes nos
a superação da divisão sexual do projetos políticos-pedagógicos de esco-
trabalho, a promoção do acesso à las de Educação Básica [ver E ducação
informação e com estratégias de Básica e Agroecologia] – ou seja, desde
garantia da autonomia econômica a Educação Infantil até o Ensino Médio.
e política das mulheres. (Cardoso;
Ao trazer a agroecologia para as
Rodrigues, 2009, p. 15)
instituições formais de educação pre-
Mas como essas proposições e cisamos estar atentos ao que destaca
princípios podem, de fato, ser inseri- Caldart:
das nos projetos políticos-pedagógicos [...] a escola não pode desenvolver
e nas práticas educativas considerando sua tarefa educativa apartada da
a necessidade que temos da constru- vida, suas questões e contradições,
ção de uma nova consciência social? seu movimento. Mas esta ligação
Como fomentarmos possibilidades de entre escola e vida (trabalho, luta,
construção, de forma democrática, de cultura, organização social, his-
novas relações com a terra, com os tória) precisa de uma formulação

365
EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

séria, para que os momentos de A sociedade é parte do aspecto am-


estudo não se reduzam a conversas biental, mas se insiste em separar isso
sobre aspectos ou problemas da nos cursos universitários. Esse co-
realidade, mas possam garantir efe- nhecimento fragmentado, comparti-
tiva apropriação de conhecimentos mentado, analista, especializado é o
necessários à construção de novas grande mal. Se não for alterado para
relações sociais e de relações equi- um ensino sintetizador, integrador,
libradas entre o ser humano e a holístico, generalista, não vai haver
natureza. (2017, p. 164) solução em curto prazo. (Primavesi,
2017, p. 193)
Embora a educação em agroecologia
exceda as fronteiras da escola, pensar Ao discutir a educação em
processos educativos a partir dela exige agroeco­logia, precisamos fazê-lo dentro
E uma nova forma de estruturá-las, no seu de uma perspectiva emancipatória do
sentido amplo. Os espaços formativos campesinato, dos povos tradicionais,
precisam ser ressignificados, reestru- dos povos das águas, das cidades e da
turados e adequados a currículos com floresta. Lembrando Paulo Freire, “se
práticas transformadoras da realidade, a educação sozinha não transforma a
com ênfase no território e no trabalho. O sociedade, sem ela tampouco a socie-
currículo deve ser direcionado a proble- dade muda” (Freire, 2000, p. 31). Nesse
matizar a realidade local como ponto de sentido, compreendemos que a educa-
partida, mas sem se restringir a ela, pois ção em agroecologia se propõe a ser
sendo uma educação com intencionali- uma ferramenta que possa questionar,
dade, necessita ampliar a capacidade de subverter e contribuir com o rompi-
pensar e refletir sobre diferentes escalas mento da estrutura sociometabólica
de atuação. É necessária, portanto, a empreendida pelo desenvolvimento do
superação de um tipo de estudo e de modo de produção capitalista.
conhecimento da realidade que esteja O arcabouço teórico e prático da
desconexo de proposições mais orgâni- agroecologia nos permite refletir sobre
cas de intervenções e de pesquisas que como a educação precisa promover o
sejam capazes de modificar e questionar diálogo entre instituições formadoras
o metabolismo socioecológico pautado distintas – família, escola, movimentos
pelo capital, que depreda a natureza, sociais, dentre outras – de modo a en-
superexplora a força de trabalho e anta- trelaçar saberes e práticas em uma ação
goniza o campo e a cidade. pedagógica contextualizada, cujo pano
Outro elemento importante é a de fundo são os agroecossistemas, os
inserção da abordagem sistêmica nos sistemas agroalimentares e os processos
ambientes de formação, incorporando sociais e econômicos que os forjaram,
uma visão mais totalizante da relação assim como as demandas por sua trans-
entre sociedade e natureza, negando a formação e seguindo os ensinamentos de
perspectiva reducionista de ensino com- Ana Maria Primavesi, que nos direciona
partimentalizado, que evidencia produ- a pensar que é preciso muita observação
tos-mercadorias e o campo apenas como e visão integrada nos processos de ensi-
espaço de produção agropecuária. Sobre nar, criar, recriar, produzir e aprender
isso, Primavesi nos chama a atenção: (Primavesi, 2017).

366
EDUCAÇÃO EM AGROECOLOGIA

Referências
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EDUCAÇÃO POLITÉCNICA E AGROECOLOGIA

EDUCAÇÃO POLITÉCNICA E AGROECOLOGIA

R oseli Salete C aldart


Gaudêncio Fr igotto

O objetivo deste verbete é organizar leis internas de funcionamento do modo


uma chave conceitual para pensar a de produção capitalista, feitos na parce-
relação entre Educação Politécnica e ria política e intelectual com Friedrich
E agroecologia a partir de algumas sínteses Engels (1820-1895). Foram estudos de
teóricas tomadas como referência, e ten- vida inteira, com o objetivo central de
do o vínculo entre trabalho e educação armar teoricamente a classe trabalhado-
como eixo organizador. São destacados ra para suas lutas contra a exploração e
no texto os elementos essenciais do para a sua missão histórica de instaurar
raciocínio teórico que constitui o con- novas e mais avançadas relações sociais
ceito de Educação Politécnica e se busca de produção.
identificar, desde essa chave de análise, o Marx não entendia a Educação Po-
núcleo central das formulações teóricas litécnica no sentido literal da expressão
da agroecologia de modo a indicar os que começava a ser usada pela burgue-
termos da constituição teórica e prática sia de sua época, como aprendizado
de sua relação. de “variadas técnicas” ou mesmo de
É nosso pressuposto a compreensão “múltiplos ofícios”, visando uma maior
de que a essência do trabalho, comum a “versatilidade” do trabalhador. Entendia,
todas as formas sociais da vida humana no entanto, que essas novas exigências
(Marx, 2013, p. 261), é o “processo entre desvelavam contradições a potencializar
o homem e a natureza, processo este em nas lutas e nos processos formativos.
que o homem, por sua própria ação, me- No diálogo crítico com essas formu-
deia, regula e controla seu metabolismo lações, ele passou a defender o direito dos
com a natureza” (Marx, 2013, p. 255), trabalhadores a uma Educação Politécni-
princípio formativo do ser humano. Parte ca, entendida como educação tecnológica,
dessa compreensão passa pela crítica à no sentido principal de apropriação dos
forma histórica que o trabalho assume no sistemas de conhecimento, particular-
modo de produção capitalista, baseada mente da ciência, que estão ao mesmo
em relações de compra e exploração da tempo entranhados nas atividades pro-
força de trabalho, separação de braços e dutivas e delas desprendidos. A “ciência
mentes e quebra da interação metabólica da tecnologia” expressa, e por isso permite
entre o ser humano e a natureza de que compreender, os diferentes componentes
este é parte. dos processos produtivos e suas conexões.
As primeiras formulações sobre Edu- Ela é obra dos trabalhadores, mas é deles
cação Politécnica foram feitas por Karl dominantemente expropriada pela lógica
Marx (1818-1883), como parte dos seus cristalizada da divisão capitalista do tra-
estudos científicos sobre a lógica ou as balho (cf. Marx, 2013, cap. 13).1

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Depois de Marx, foram os peda- Vincular o desenvolvimento da


gogos do período inicial da revolução ciência à solução de problemas da pro-
soviética de 1917 que, a partir das suas dução, convertendo-a em uma força
indicações gerais e da análise das cir- produtiva direta, possibilitou tornar
cunstâncias históricas sobre as quais cada processo de trabalho analisável,
atuavam, erigiram um sistema educa- isto é, passível de decomposição em
cional que tinha a politecnia como um seus componentes constitutivos e em
de seus pilares centrais (cf. Krupskaya, conhecimentos que podem ser estu-
2017; Shulgin, 2013; Pistrak, 2015). dados e apropriados fora do trabalho e
Suas formulações pedagógicas torna- como força separada e independente da
ram-se referência para a construção produção (cf. Marx, 2013). De um lado,
prática de uma escola do trabalho poli- isso permitiu conectar o conhecimento E
técnica, fundamentada em uma teoria produzido na realização de uma deter-
materialista, histórica e dialética de minada atividade produtiva (antes de
formação humana, de educação. apropriação direta e exclusiva de seus
Na análise construída por Marx e produtores) a conhecimentos universais
Engels, a finalidade principal da Educa- de todas as esferas de criação humana,
ção Politécnica é devolver ao trabalhador resultando em mudanças tecnológicas
a formação que lhe é roubada pela lógica nos processos de trabalho, rápidas e
das relações sociais capitalistas. Sua cada vez mais complexas. De outro,
expropriação formativa é dupla: como permitiu que essas mudanças pudessem
alienação no interior dos processos de voltar à massa dos trabalhadores na
trabalho e como estreitamento formativo forma de operações simplificadas, pouco
instituído pelas políticas de educação exigentes de conhecimentos científicos
dos trabalhadores subordinadas aos in- e, menos ainda, de uma visão de totali-
teresses do capital. Essa lógica é própria dade da produção.
do trabalho assalariado, mas acaba se No sistema capitalista, o avanço
estendendo a outras formas de trabalho, qualitativo do trabalho não implica qua-
quando subordinadas às mesmas relações lificação tecnológica correspondente dos
de produção. Chega também ao trabalho trabalhadores. Essa contradição permite o
camponês de nossos dias. trabalho em escala e aumenta a produção.
Nos processos de trabalho tipica- Ao mesmo tempo, tira a força política do
mente capitalistas, o motor do desen- trabalhador e degenera o sentido huma-
volvimento das forças produtivas, ex- nizador de seu trabalho. O desemprego,
presso no movimento histórico que vai que integra a lógica de acumulação do
da invenção das primeiras máquinas da capital, é exacerbado pelas inovações
indústria fabril até o uso hoje da “inteli- tecnológicas. Mas sendo o trabalho assa-
gência artificial” da chamada “indústria lariado o fundamento do capital, quando
4.0”,2 é ao mesmo tempo o mecanismo as possibilidades de emprego diminuem
que separa o trabalhador do conheci- descontroladamente (como hoje), a gera-
mento vivo sobre o trabalho. Esse motor ção da mais-valia é afetada. Acontecem
é uma forma de conexão entre ciência e então as chamadas “crises”, que são uma
produção que não existia nos modos de forma do capital recompor o movimento
produção anteriores. de sua autorreprodução: são necessárias

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novas oportunidades de assalariamento e processo de alienação. Essa lógica chega


se busca inserir outras formas de trabalho, também à produção da ciência e da tec-
e o conhecimento nelas produzido, no nologia, que de bens comuns a serviço
circuito de valorização do capital. Sem da humanidade passam elas próprias à
conhecimentos laborais prévios não há condição de mercadorias. Sua subordina-
inovações tecnológicas (cf. Harvey, 2018). ção à lógica do negócio, combinada com
A disputa dos empresários pelo con- o desligamento de seus produtores dos
trole da formação dos trabalhadores, processos vivos nos quais incidem, leva
dentro e fora dos processos de trabalho a uma degeneração de suas finalidades
(incluída a educação escolar), tem sido e, portanto, de seus resultados.
um dos mecanismos para enfrentar as Na proposição marxiana, a Educa-
E contradições dessa lógica, sem resol- ção Politécnica se define pelo contrapon-
vê-las. Primeiro, nem todos os traba- to à lógica e às finalidades formativas do
lhadores podem ser desqualificados e capital, potencializando as contradições
descartáveis o tempo todo; é preciso do seu sistema de produção. No seu ho-
que continuem existindo trabalhadores rizonte está o trabalho social (o trabalho
interessados no assalariamento. Segun- que se faz para e com os outros) e a
do alguns poucos trabalhadores devem devolução do comando da produção aos
ser formados como cientistas ou como trabalhadores, livremente associados.
especialistas com a visão de conjunto Sua forma e seus conteúdos específicos
necessária à criação de inovações tecno- serão desenhados pela análise de cada
lógicas. Terceiro, é necessário garantir o contexto histórico, em um movimento
controle ideológico ostensivo das esferas de reapropriação politécnica do trabalho,
da educação e da cultura, para que a de complexidade progressiva.
exploração e o modo de vida que lhe Na formação dos trabalhadores,
corresponde sigam naturalizados. os conteúdos estruturantes desse mo-
A forma de ligação entre ciência e vimento podem ser pensados em três
produção inaugurada pelo capitalismo níveis, que na prática devem acontecer
trouxe avanços históricos indiscutíveis. interligados. Em um primeiro nível está
Ela é a base da noção de politecnia em o domínio tecnológico pelo trabalhador
Marx. Mas, no sistema do capital, essa do seu ofício ou da atividade produtiva
ligação fica presa a uma “contradição que realiza mais regularmente. Quan-
absoluta” (Marx, 2013, p. 557): as mu- to mais ele entende do que faz, tanto
danças tecnológicas rearranjam a produ- mais controle e força política sobre seu
ção, mas não podem alterar em essência trabalho passa a ter. Isso é mais do que
a velha e degenerada divisão capitalista domínio de habilidades técnicas, como
do trabalho, fundada no antagonismo vimos; supõe um conhecimento básico
entre as classes próprio desse sistema. Ao dos componentes do trabalho e das co-
contrário, as inovações tecnológicas são nexões, naturais e sociais, que movem
cada vez mais condicionadas ao objetivo a ação produtiva. O segundo nível se
de aumentar a produtividade do trabalho refere à apropriação de conhecimentos
a qualquer custo (humano e ambiental) sobre diferentes processos produtivos,
e de retirar o controle dos trabalhado- incluindo finalidades e aspectos organi-
res sobre seu trabalho, radicalizando o zacionais, de modo a garantir uma visão

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em perspectiva, que ajuda na realização isto é, cuja matriz tecnológica entranha


do trabalho e na tomada de decisões conhecimento universal. Essa inserção
sobre o conjunto da produção. A expe- é processual e mesmo um trabalho sim-
riência de inserção em diferentes tipos de ples pode ter uma abordagem politécni-
trabalho contribui nessa apropriação. E ca, ou seja, que vá além de habilidades
no terceiro nível de complexidade está e conteúdos técnicos (cf. Krupskaya,
o estudo dos princípios, das finalidades 2017). Mas em qualquer idade ou etapa,
e leis que movem a produção em geral, sem inserção real no trabalho não há
exatamente o que o esforço da ciência Educação Politécnica porque as cone-
desentranha das expressões particulares xões (que incluem as contradições) não
de trabalho. Esse estudo será facilitado se são apreendidas.
for parte de uma educação geral, desde a A agroecologia teve origem na crí- E
infância, que permita entender as forças tica à matriz tecnológica da produção
motrizes da sociedade e da natureza. E capitalista tal como ela se realiza na agri-
se a relação dialética entre os três níveis cultura. Na sua base está outra contradi-
for intencionalizada no conjunto dos ção fundamental do modo de produção
processos formativos. capitalista, que se refere à relação ser
Essa mesma perspectiva formativa humano, social, e natureza, já indicada
pode compor o projeto educativo das por Marx e Engels (Foster, 2005), e hoje
novas gerações e chegar à escola. Já em compreendida com mais profundidade
Marx, a Educação Politécnica foi indi- pela força de seus efeitos perversos.
cada como uma das dimensões funda- As ciências naturais que serviram de
mentais da educação geral básica, desde suporte à base tecnológica revolucionária
as crianças pequenas. No entanto, na do capitalismo, desde seu fundamento
educação de crianças e jovens, a ordem filosófico mecanicista, tomaram a na-
e a ênfase dos níveis se invertem, embora tureza “como um objeto morto (em vez
a progressão da complexidade seja ainda de fecundo e vivo) aberto à dominação
mais necessária. Isto porque o objetivo e manipulação humana” (Harvey, 2018,
primeiro não é a educação profissional e p. 120). A natureza foi “dissecada” em
sim a formação geral, alargada, multilate- busca de mecanismos para exercer o con-
ral e orientada pelo princípio educativo trole absoluto sobre ela, tal como sobre o
do trabalho. A progressividade do estudo trabalho. A quebra do metabolismo entre
será então adequada às características de ser humano e natureza tornou-se fetiche:
cada idade e às circunstâncias sociais da o ser humano como senhor da natureza
inserção dos estudantes em processos e não como parte de uma ordem na qual
vivos, diversificados e cada vez mais ele incide, mas não determina.
complexos de trabalho, observando-se a Foi essa visão mecânica e fetichista
necessária e tensa relação entre conhe- que serviu de base para a revolução capi-
cimento empírico e teórico. talista da agricultura, introduzindo nela
É nesse vínculo que o estudo sis- as mesmas bases tecnológicas e relações
temático das diferentes matérias cien- de trabalho criadas para a indústria
tíficas assume um novo sentido, que fabril. A nova forma foi chamada de
se amplia quando trata de atividades “agricultura moderna” ou “agricultura
produtivas de natureza politécnica, industrial”, base produtiva do que hoje

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conhecemos como “agronegócio” [ver Por isso, o capital não pode destruir
Agronegócio]. A agricultura camponesa a agricultura camponesa que, desde ou-
foi tratada pela visão hegemônica de tra lógica de produção e outra visão de
­ciência como atraso. As monoculturas natureza, tem garantido essas finalida-
são um dos resultados visíveis da aplica- des, ao longo da história da humanidade;
ção do modelo de indústria do capita- precisa dela para manter o equilíbrio do
lismo na agricultura. Elas contrariam a sistema. Mas a voracidade do capital
ordem da natureza cujo princípio básico sobre a agricultura e o conjunto dos bens
é a biodiversidade, mas na lógica do ca- da natureza têm gerado um descontrole
pital, se aumentam a produção, ou a pro- que explicita com mais força as contra-
dutividade em si, mesmo acabando com dições. Isso acelera a construção teóri-
E a fecundidade do solo, qual o problema? co-científica da matriz tecnológica que
É só inventar um componente sintético tem a produção camponesa como base
que reponha na terra o que lhe é tirado. e projeta outra lógica às transformações
Depois inventar outro insumo artificial da agricultura.
(remédios) para corrigir no corpo huma- Como ciência, a agroecologia ar-
no os problemas que alimentos produzi- ticula os avanços da ciência em geral
dos dessa forma geram nele. E assim se que esclarecem os problemas gerados
sucedem as inovações tecnológicas que pelo modelo capitalista, com o esforço
expressam e alimentam uma lógica de de sistematização científica do conhe-
produção e de consumo cada vez mais cimento, milenar e diverso, produzido
insana e historicamente insustentável, pelas comunidades camponesas em todo
mas que se mostrou eficiente para a mundo. Sua finalidade é fundamentar os
reprodução do capital. processos de reconstrução ecológica e
Os limites dessa lógica começaram a social da agricultura (cf. Tardin; Guhur,
ser analisados cientificamente ainda no 2017; Gliessman, 2000).
século XIX (Foster, 2005). Esses estudos, A sistematização, que tem suporte em
entretanto, foram sendo usados para re- pesquisas de diferentes áreas do conheci-
solver os problemas da lógica, sem alterá- mento, torna agora analisável e, portanto,
-la. Por isso, até hoje, são conhecimentos comparável a outros processos produtivos,
divulgados mais amplamente apenas nas na agricultura e em outras indústrias, os
doses que as contradições pressionam e componentes (naturais e sociais) cons-
a estabilidade do sistema permite – vide titutivos da produção camponesa. Mas
a questão dos agrotóxicos [ver Agrotó ­ não na lógica da decomposição e do tra-
xicos]. Mas a força das contradições é tamento mecânico, e sim da apreensão
maior do que supõe a “vã filosofia” do das conexões e interações que recompõe
capital. A forma capitalista de agricul- a agricultura em um todo orgânico, que
tura conseguiu dominar os negócios do vai além da produção e religa, nos mesmos
agro, porém nunca chegou a dar conta sujeitos, conhecimento científico e ação
das finalidades essenciais da agricultura: produtiva. Isso permite o avanço tecnoló-
produzir alimentos capazes de sustentar a gico dessa forma de agricultura e a torna
energia vital do ser humano, respeitando objeto de formação intencional (crítica)
as formas de autorrenovação das forças dos camponeses e das novas gerações do
naturais e sociais de produção. conjunto dos trabalhadores. Os princípios

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EDUCAÇÃO POLITÉCNICA E AGROECOLOGIA

da nova matriz produtiva na agricultura com a complexidade das forças naturais.


fundamentam, por sua vez, transforma- Por sua vez, essa forma de produzir, já sis-
ções em outras indústrias e dimensões da tematizada em princípios e procedimen-
práxis humana. tos de manejo dos agroecossistemas, se
Note-se o movimento contraditório: realiza em relações de trabalho e formas
a sistematização científica da base tecno- organizativas que dão suporte material
lógica da indústria fabril capitalista leva para que os trabalhadores, em comuni-
ao entendimento teórico do seu modelo dade, reassumam o controle sobre seu
de agricultura e suas contradições; ela trabalho e aprofundem sua interação
permite, dialeticamente, fazer a crítica com a natureza.
e pensar as tendências de sua superação. A matriz produtiva agroecológi-
A agroecologia tem em sua base o co- ca, que se institui como modo de vida, E
nhecimento produzido pelos produtores firma uma visão de natureza, de ser
da agricultura tradicional camponesa, humano, de relações sociais, bem como
aquela que não foi subsumida às rela- um método de conhecimento científico
ções capitalistas plenas; sistematização dos fenômenos naturais e sociais, de
que tem a forma determinada pelas base materialista e dialética, que projeta
condições históricas do encontro de uma nova forma de produção da própria
cientistas e camponeses. Nessa base há ciência. E a constituição histórica da
outra concepção de natureza, que põe agroecologia é ao mesmo tempo expres-
novas questões e exigências à ciência, são e fundamento de lutas sociais que a
gerando uma matriz tecnológica que não inserem como dimensão necessária da
é a da agricultura camponesa tradicional superação da ordem do capital.
“pura” e não é a da agricultura industrial Agroecossistema [ver Agroecossis­
capitalista. É a superação de ambas, com temas] é a unidade básica (universal) da
recriações tecnológicas desde os funda- agroecologia em torno da qual se tem
mentos da primeira e das contradições objetivado esse conhecimento e o método
da segunda. É esse mesmo espiral que de análise do modo de fazer agricultura
permite ao capital se apropriar desta (produzir agroecossistemas). Por isso, esse
nova base científica e tecnológica e usar conceito, e os componentes materiais (na-
aspectos dela para retardar a explosão turais e sociais) que ele interliga, tem sido
das contradições de seu modelo de agri- chave de estudo da agroecologia, desde
cultura (vide a produção de insumos diferentes intencionalidades formativas
orgânicos pelas empresas do agro). (cf. Monnerat; Santos, 2017).
No núcleo central da agroecologia, Os sujeitos da base material fundan-
em sua dimensão de ciência que se vin- te da agroecologia são os camponeses.
cula organicamente à produção, está o Porém, enquanto estivermos sob as forças
conhecimento das conexões entre os de alienação do sistema do capital, os
componentes e as forças que produzem e fundamentos científicos de sua lógica de
transformam a vida na natureza e consti- produção (o núcleo central da agroeco­
tuem o trabalho humano. Conhecimento logia) não serão de seu pleno domínio
que sustenta e pode ser apropriado em sem uma intencionalidade formativa
um modo de produção (o industriar hu- nessa direção. Nessa intencionalidade, é
mano sobre ecossistemas) que interage essencial que a análise das conexões seja

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EDUCAÇÃO POLITÉCNICA E AGROECOLOGIA

feita com ou pelos próprios produtores, a dedicadas à agroecologia. Por sua vez, o
partir do que sua forma de manejo da ter- núcleo central da agroecologia emerge
ra desvela. Isso vai permitir a apropriação como conteúdo necessário dos processos
do conhecimento sobre o trabalho no ato específicos de formação para o trabalho
mesmo de produzi-lo e no vínculo orgâ- na agricultura e da formação politécnica
nico com estudos teóricos sistemáticos, dos trabalhadores em geral, na conexão
em condições que as lutas das comunida- entre os níveis de reapropriação politéc-
des camponesas buscam ampliar: novas nica do trabalho antes referidos.
relações sociais de produção da ciência, Na formação dos camponeses, essa
novas relações educativas na produção relação alarga a visão de finalidades e
(Michelotti et al., 2018). conteúdos dos processos de educação em
E A relação entre Educação Politécni- agroecologia: o controle dos processos de
ca e agroecologia se constitui no quadro trabalho, relativo sob as relações sociais
dos desafios formativos tratados ao lon- capitalistas, não prescinde do conheci-
go desse texto. Ela não é uma questão mento geral da produção e da economia
dada e não é usual que componham as política que rege os destinos dos sistemas
mesmas formulações teóricas. Pensar agroalimentares em que se inserem.
essa relação é um dos desafios do nosso Na outra ponta, trata-se de uma
tempo, visando incidir na luta de classes chave de compreensão que ajuda a re-
que acontece na esfera da produção e finar a intencionalidade dos estudos
da formação pelo e para o trabalho. Há sobre agroecologia que começam a se
germes dessa relação nos vínculos entre expandir nas escolas de Educação Bá-
educação e processos de resistência cam- sica. Desdobrar o núcleo central da
ponesa ao capital (Caldart, 2017), que, agroecologia e fazer a ligação com o
desenvolvidos e socializados, ajudam no plano de estudos das ciências (naturais
(re)encontro emancipatório entre traba- e sociais) das escolas é um dos momentos
lho e educação, no seio mesmo das forças dessa intencionalidade, que por sua vez
que hoje lhe são antagônicas. compõe uma tarefa educativa grandiosa,
A chave teórica da politecnia, cons- do nosso tempo e de longo prazo: tornar
truída para pensar a formação dos tra- simples a compreensão da complexidade
balhadores em geral, pode organizar a da produção da vida e ajudar no reen-
intencionalidade educativa de setores contro entre ser humano, trabalho e
específicos que lutam por maior auto- natureza, desde a infância. Muitos dos
nomia em relação ao capital, como é verbetes deste dicionário poderão ser
o caso das comunidades camponesas lidos e discutidos nessa perspectiva.

Referências
CALDART, R. S. et al. (org.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: EPSJV/
Expressão Popular, 2012.
CALDART, R. S. Trabalho, agroecologia e educação politécnica nas escolas do campo. In: CALDART,
R. S. (org.) Caminhos para transformação da escola n. 4. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 115-160.
FOSTER, J. B. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. 2. ed. Porto Alegre:
Universidade-Editora da UFRGS, 2000.
HARVEY, D. A loucura da razão econômica. Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.

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EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

KRUPSKAYA, N. K. A construção da pedagogia socialista. Escritos selecionados. São Paulo: Expressão


Popular, 2017.
MARX, K. O capital. Crítica da Economia Política. Livro I: o processo de produção do capital. São
Paulo: Boitempo, 2013.
MICHELOTTI, F. et al. Agroecologia, campesinato e disputas de terra e território. In: SILVA, A. L. et
al. (org.). Educação do Campo, Agroecologia e Questão Agrária: a experiência do curso de residência agrária
na construção do IALA Amazônico. 1 ed. Marabá: Iguana Editorial, 2018, v. 1.
MONNERAT, P. F.; SANTOS, A. L. Educação e agrofloresta: conexão com a vida. In: CALDART,
R. S. (org.) Caminhos para transformação da escola n. 4. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 19-36.
PISTRAK, M. M. Ensaios sobre a escola politécnica. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
SHULGIN, V. Rumo ao politecnismo. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
TARDIN, J. M.; GUHUR, D. M. P. Agroecologia: uma contribuição camponesa à emancipação humana
e à restauração revolucionária da relação metabólica sociedade-natureza. In: MOLINA, M. C. et al. (org)
Análise de práticas contra-hegemônicas na formação dos profissionais de ciências agrárias (v. II). Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2017, p. 44-99.
E
Para saber mais
FRIGOTTO, G., CIAVATTA, M.; CALDART, R. S. (org.) Karl Marx; Friedrich Engels. História, na-
tureza, trabalho e educação. São Paulo: Expressão Popular, 2020 (especialmente Parte III, “Trabalho e
Educação” e Parte IV, “Natureza e Questão Agrária”).
JUNIOR, A. L. et al. (org) Educação do campo, agroecologia e questão agrária. Marabá: Editorial Iguana,
2018, p. 79-105.
PISTRAK, M. M. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

Notas
1
Tenhamos presente o sentido alargado da tecnologia em Marx (2013, p. 446, nota 89): “A tecnologia
desvela a atitude ativa do homem em relação à natureza, o processo imediato de produção de sua
vida e, com isso, também de suas condições sociais de vida e das concepções espirituais que delas
decorrem[...]”. Indica uma “tecnologia natural”, que se refere à “formação dos órgãos das plantas e
dos animais como instrumentos de produção da vida”; e à “tecnologia humana”, isto é, “a formação
dos órgãos produtivos do homem social [...]”.
2
Há uma matéria didática sobre a chamada quarta revolução industrial, a do uso das tecnologias
da inteligência artificial na substituição da mão de obra humana na Revista Poli da EPSJV. Ver:

EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

J osé M ar ia Tar din


R onaldo Tr avassos

A educação popular em agroeco- política diante dos antigos e persistentes


logia se insere no contexto de reação problemas da questão agrária, somados
ao avanço vertiginoso do agronegócio aos novos desafios da atual conjuntura,
e de sua ideologia nas últimas décadas. notadamente o problema ambiental e o
Ela busca uma perspectiva crítica, com acirramento da luta de classes. É possí-
bases teóricas e práticas para a atuação vel identificar um conjunto de propostas

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EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

e de práticas agroecológicas presentes diferença, para buscar um novo sentido


nos movimentos sociais do campo, de educar. Pensar a educação popular
considerando a agroecologia como um no sentido de trilhar novos caminhos
caminho importante na geração de necessariamente nos obriga a repensar
um projeto de sociedade e de atuação a própria educação. Nesse sentido, qual-
político-pedagógica. quer tentativa de buscar uma definição
A relação movimento social e edu- do conceito de educação popular corre
cação existe a partir das ações práticas o risco de tornar sua prática nociva à
de movimentos e grupos sociais. Isso construção de novos saberes oriundos
ocorre no interior do próprio movi- das classes populares.
mento social, dado o caráter educativo A educação popular expressa uma
E de suas ações, e na sua interação com visão de mundo, de forma de vida, de
instituições educacionais. A relação opção política e necessariamente uma
entre educação popular e movimentos postura crítica diante das injustiças, da
sociais possibilita discutir propostas discriminação e da desigualdade social.
diferenciadas na luta política das classes E na educação não há neutralidade, é
populares para se articularem em redes preciso optar. É necessário que o traba-
contra-hegemônicas ao capital, hoje lhador social deixe claro em que lado se
cada vez mais globalizado (Sader, 2009 posiciona, conforme afirma Freire:
apud Zitkoski, 2017). Por isso, o trabalhador social não
No presente texto, tecemos algu- pode ser um homem neutro frente
mas ponderações acerca da educação ao mundo, um homem neutro fren-
popular e do saber popular, uma vez que te à desumanização ou humaniza-
foi a partir dos processos populares de ção, frente à permanência do que
apreensão e socialização comunitária de já não representa os caminhos ou
saberes que se estabeleceu uma síntese à permanência desses caminhos. O
teórico-epistemológica-metodológica trabalhador social, como homem,
tem que fazer sua opção. Ou adere à
que está na origem da agroecologia como
mudança no sentido da verdadeira
ciência. Ilustramos com dois processos
humanização do homem, de seu ser
de educação popular em agroecologia, o mais, ou fica a favor da permanência.
Diálogo de saberes no encontro de culturas (Freire, 1997, p. 26)
e o método campesino a campesino, e
concluímos com uma reflexão acerca do As pessoas se educam entre si, criam
vínculo necessário entre a agroecologia formas para fazer com que o saber, as
e a educação popular.1 ideias, as crenças se tornem um bem
comunitário, pertencente a todos, como
Ponderações acerca da tudo que é construído pelo trabalho e du-
educação popular rante a vida da comunidade. A educação
Partimos do fato de que a educação popular emerge ciente da exigência da
popular não aparece como uma forma ruptura da forma e do conteúdo escolar
única e paralela às práticas pedagógicas da educação, por considerar que na práti-
já existentes, tampouco um sistema ca educativa outros saberes são possíveis.
alternativo de ensino, mas sim um do- São saberes da formação humana, de
mínio de ideias e práticas regidas pela sua raiz, ou seja, da própria origem de

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EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

seu ser social. Esse processo sistemático comunidades ou populações faz com que
e contínuo de construção de saberes na ele se torne um saber de todos, e esse é
práxis popular libertária leva mais e mais o primeiro sentido da educação popular.
à emancipação do ser social. O ponto de partida do processo pedagó-
No saber coletivo, ensinar e apren- gico é o saber coletivo construído pela
der tornam-se imprescindíveis para que comunidade. Isso significa ter como base
os sujeitos sociais – homens e mulheres as experiências das pessoas, dos grupos
de qualquer grupo ou natureza – sobre- sociais e das organizações populares na
vivam no presente e através do tempo. luta por melhores condições de vida, sem
Portanto, assim como a convivência, as discriminação de gênero e etnia.
situações de trabalho são criadas como A educação popular se estabelece
formas de circulação do saber. pelo diálogo no qual as falas dos partici- E
A produção do saber popular nasce pantes possibilitam a revelação de expe-
de maneira diferente do saber acadêmi- riências individuais e grupais, permitem
co, usualmente considerado como verda- a compreensão da vida na comunidade.
deiro. O que há é um saber construído É um lugar em que a palavra do outro só
coletivamente pelas classes populares, é sentida quando há escuta. Aqui todos
um saber de todos, que ao ser organizado têm a liberdade de falar o que pensam,
e dominado por especialistas se tornou de opinar sobre o tema gerador.
sábio e erudito; o saber legítimo que Na relação dialógica nasce o tema
reflete a vida da comunidade e que se gerador com os conteúdos designados
estabelece como popular. pelos participantes, que serão problema-
Logo, o processo ensino-aprendiza- tizados de acordo com as necessidades
gem se dá por meio da experiência e da do grupo. Naturalmente, outros temas
convivência com o outro, pela constru- surgem por meio das discussões, que por
ção compartilhada do conhecimento. sua vez estão relacionadas à realidade
Assim se originam saberes diversos, mais próxima da vida da comunidade.
capazes de comportar as necessidades, Ouvindo o outro, podemos refazer nossas
anseios e desejos de indivíduos e grupos ideias e ampliar a construção coletiva do
cuja percepção de mundo é a das classes saber popular.
populares. Em contrapartida, em uma Portanto, admitir outro saber significa
sociedade fragmentada com divisões disposição para estabelecer um diálogo –
desiguais de poder e de trabalho, o saber pressuposto da educação popular. Dado
circula como domínio do especialista. O que o diálogo demanda buscar seus ele-
profissional detentor de conhecimento mentos constitutivos, as dimensões ação-
especializado, localizado nas institui- -reflexão-ação se destacam de tal forma
ções educativas públicas e privadas, é o solidária e em uma interação tão radical
responsável pelo trabalho educativo nas a ponto de desvelar que: “Não há palavra
diversas áreas do conhecimento. verdadeira que não seja práxis. Daí que
Em um sentido de ensinar e apren- dizer a palavra verdadeira seja transformar
der ainda muito distante do que temos o mundo” (Freire, 2005, p. 89).
hoje, as formas de ensinamento dos O saber popular é como uma radical
saberes não sistematizados diferem do ruptura coletiva do silenciamento histó-
ensino escolar. O saber que circula nas rico, diante da opressão e da exploração

377
EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

de classe, como ação-reflexão-ação com Engels, 2008), uma vez que a emancipa-
que os sujeitos sociais transformam o ção humana [ver Emancipação Humana]
mundo, dado que: “Existir, humanamen- somente pode se estabelecer contínua
te, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. e expansivamente com a supressão da
O mundo pronunciado, por sua vez, se propriedade privada dos meios de pro-
volta problematizado aos sujeitos pronun- dução fundamentais e do poder político
ciantes, a exigir deles novo pronunciar” da burguesia.
(Freire, 2005, p. 90). A agroecologia [ver Agroecologia]
A contextualização do tema gerador corresponde à práxis multidimensional;
e dos conteúdos deve levar em conta os portanto, abarca o ser humano em sua
sujeitos sociais em sua existência real, práxis total, daí que, em síntese, sua
E localizados espacialmente em determi- concepção é expressa como prática
nado território e circunstanciados em social, luta e ciência. Nessa perspectiva,
conexões com a sociedade e a nature- apresentamos aqui dois processos de
za. Em se tratando de seres humanos, educação popular em agroecologia: o
independentemente das suas vontades Diálogo de saberes no encontro de culturas
eles sofrem variadas consequências das e o método campesino a campesino [ver
determinações da ordem social burguesa Metodologias Emancipatórias].
dominante, o capitalismo, que em geral
se expressam na opressão de classe e na O diálogo de saberes
exploração do trabalho (Marx, 2008), no encontro de culturas
em múltiplas formas de violências: de Na perspectiva humanista eman-
gênero, de etnias, geracional, de negação cipatória e revolucionária, largamente
da humanidade do humano, de depreda- fundamentada por Paulo Freire, em
ção da natureza, entre outras. 1968, no livro Pedagogia do oprimido
Vale destacar as manifestações da (Freire, 2005), e retomada e direcionada
alienação que alcançam o conjunto da por Freire, em 1969, no livro Extensão
sociedade, tanto em âmbito material ou comunicação? (Freire, 1997), como
quanto nas relações sociais de produ- profissionais das ciências agrárias se-
ção no capitalismo, assim como, nas guimos nos orientando pela atualidade
formas sociais da consciência, desuma- por cursos técnicos e de graduação em
nas e desumanizantes, que se tornam agroecologia, na perspectiva do que
blo­queadoras, desvirtuadoras do devir denominamos diálogo de saberes no
emancipatório como possibilidade hu- encontro de culturas, organizados pelo
mana, naquilo que Paulo Freire (2005) Movimento dos Trabalhadores Rurais
trata como a vocação de ser-mais. Sem Terra (MST) e pela Coordenadoria
Daí que a educação popular herda Latino-Americana de Organizações do
a assertiva de que aos oprimidos e ex- Campo (Cloc)/Via Campesina (Toná,
plorados e às oprimidas e exploradas 2007; Guhur, 2010; Guhur et al., 2016;
compete a efetivação histórica da sua Rezende, 2018).
libertação como processo de emanci- A educação escolar profissional em
pação humana, no qual tal libertação ciências agrárias, desde sua origem e
implica também libertar os opressores desenvolvimento histórico, esteve hege-
e exploradores, humanizá-los (Marx; monicamente submetida aos interesses

378
EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

e necessidades da burguesia capitalista, transformado pela práxis campônia


para especialmente proporcionar orien- (Tardin; Guhur, 2017).
tação técnica à adoção dos pacotes Como já afirmado anteriormente,
tecnológicos de origem industrial e do inserindo-se nesses espaços sociais sob
crédito bancário – a assistência técnica, a perspectiva da educação popular em
também nominada de insistência técni- agroecologia, o diálogo de saberes no
ca (Tardin; Guhur, 2017) – e, ao mesmo encontro de culturas implica necessa-
tempo, solapar os sistemas sociais de riamente ação coletiva dialógica-pro-
agri-culturas campônias, constituindo, blematizadora, na qual o “diálogo” já
nas palavras de Freire, a invasão cultu- se instaura no processo organizado da
ral (Freire, 2005). investigação do “universo temático do
A iniciativa do MST, em 2003, povo ou o conjunto dos seus temas ge- E
de pioneiramente constituir as pri- radores” (Freire, 2005, p. 101).
meiras escolas e cursos técnicos em Desse ponto de partida, são sis-
agroecologia no país desencadeou uma tematizados os conteúdos da investi-
ruptura radical na formação profissio- gação da história de vida dos sujeitos
nal, significando a derrubada da cerca gestores e a estrutura e funcionamento
do monopólio do conhecimento em dos agroecossistemas, destacando as
ciências agrárias. Em suas escolas de “falas e práticas significativas”, as quais
agroecologia no Paraná, se assumiu um podem expressar “potencialidades, li-
currículo que superasse a visão e a prá- mites, perdas e contradições” (Tardin;
tica da invasão cultural do/a técnico/a Guhur, 2012, p. 6), situando, então, o
tecnicista a serviço da reprodução do conjunto dos temas geradores presentes
capital para a formação do/a militante em cada realidade.
técnico/a pedagogo/a-educador/a da Enquanto, para Freire, são as con-
agroecologia (Tardin; Guhur, 2017), ca- tradições postas localmente, identifi-
paz de tomar os agroecossistemas, junto cadas como situações-limite, que cons-
das camponesas e camponeses, como tituem os temas geradores, uma vez
objetos de estudos e análises críticas e que “se apresentam aos homens como
forjar a síntese cultural (Freire, 2005), se fossem determinantes históricas,
correspondendo, assim, aos interesses e esmagadoras, em face das quais não
necessidades de classe do campesinato lhes cabe alternativa senão adaptar-se”
e aos objetivos estratégicos do MST. (Freire, 2005), no diálogo de saberes no
No lugar da assistência técnica – encontro de culturas os temas gerado-
insistência técnica –, a convivência res incluem àquelas, mas também as
social de sujeitos comprometidos com potencialidades, os limites e as perdas
sua libertação, orientados pela perspec- identificadas nos agroecossistemas,
tiva da radical emancipação humana e procurando abarcar ampla e conti-
cônscios do seu pertencimento cósmico. nuamente as objetivações materiais e
Em se tratando de agroecologia, imateriais da práxis campônia.
o universo imediato da ação é o agro- A análise do agroecossistema de-
ecossistema [ver A groecossistema] – manda ainda amplo referencial teóri-
ambiente agri-culturalmente trans- co-filosófico-político-ecológico, com o
formado –, portanto, espaço natural qual se pode aferir qualitativamente sua

379
EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

sustentabilidade temporal (Monteiro, mento social popular do campo (Tardin;


2012; Guhur; Toná, 2012). Guhur, 2017).
O desdobramento objetivo que se-
gue é o planejamento e a realização da O método campesino a campesino
ação pedagógica, em que os diferentes Em direção idêntica, mas original,
temas geradores são tomados no proces- um coletivo de camponeses da loca-
so coletivo dialógico-problematizador, lidade de San Martín Jilotepeque, no
oportunizando assumir criticamente Departamento de Chimaltenango, na
para si as contradições, os limites e as Guatemala, se organizou nos anos de
perdas como desafios epistemológicos 1970 num processo social que tomou
(Freire, 2005), tendo em vista superá-los, para si sua realidade imediata e se propôs
E bem como as potencialidades humanas a transformá-la, inovando tecnologica-
individuais e coletivas, sociais e ecoló- mente sua produção agropecuária em
gicas e os meios e processos à sua expo- bases ecológicas, e que ficou conhecido
nenciação – realidade conscientizada. como o método campesino a campesino –
A resultante nesse processo cole- CaC (Giménez, 2008).
tivo de “síntese cultural” é a definição A iniciativa endógena da coletivida-
do plano de ação de transformação da de camponesa de San Martín Jilotepe-
­realidade, a práxis, que no movimen- que, campesino a campesino, logo atraiu
to da sua realização retroalimenta o a aproximação de técnicos e fundações
processo de investigação e a continui- e, nesse diálogo de saberes, se constituiu
dade dinâmica do diálogo de saberes “uma pedagogia camponesa, uma apren-
no encontro de culturas. Chamamos de dizagem que transforma” (Giménez,
síntese cultural na medida em que já 2008, p. 147):
não há prevalência desta ou daquela Na pedagogia camponesa, os pe-
posição particular, mas das proposições quenos agricultores não fazem uma
coletivamente acordadas no diálogo diferenciação técnica entre inves-
problematizador, e que dadas as varia- tigação, experimentação, formação
ções de cada contexto e as múltiplas e extensão. Tampouco separam as
dimensões que correspondem à agroe- práticas de ensinar e aprender. To-
cologia, as ações contemplarão em cada das estas atividades se desenvolvem
local temas geradores de ordem socio- inter-relacionadas, em relação entre
‘aprendizes que ensinam’ e ‘professo-
cultural, política, tecnológica produtiva,
res que aprendem’ de uma maneira
agroindustrial, ambiental, comercial,
fluida, espontânea, sem hierarquias.
entre outros. (Giménez, 2008, p. 147).2
A escala da experiência do diálogo
de saberes no encontro de culturas tem Nos anos de 1980, o método CaC é
se restringido ao exercício pedagógico expandido para o México e para Hon-
de diferentes turmas de educandas e duras, e nos anos de 1990 é disseminado
educandos de cursos técnicos, de gra- em vários outros países da América
duação e de pós-graduação em agroe- Central. No Caribe, foi assumido progra-
cologia, portanto, não alcançando até o maticamente em Cuba a partir de 1994,
presente a esfera da ação programática pela Associação Nacional dos Pequenos
de instâncias orgânicas de algum movi- Agricultores (Anap), constituindo-se na

380
EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

sua estrutura orgânica como Movimento locais de forma, conteúdo e metodologia


Agroecológico, mobilizando atualmente e vêm, com êxito, impulsionando proces-
mais de 150 mil famílias camponesas em sos sociais educativos de agroecologia.
processos de transição agroecológica.
A centralidade pedagógica-educativa Agroecologia e educação popular
corresponde à camponesa e ao camponês, No processo histórico das agri-cul-
que no seu agroecossistema desenvolvem turas objetivadas por povos originários,
soluções técnicas ou de outra natureza e tradicionais, camponeses, pescadores,
em ação protagonista se colocam soli- dentre outros, é que se materializa o que
dariamente à disposição para ensinar a nos anos de 1980 o meio acadêmico-
outras camponesas e camponeses, daí o -científico passou a investigar e sistema-
nome camponês a camponês (CaC). tizar como agroecologia. Do diálogo de E
No transcorrer da sua expansão, saberes entre determinados profissionais,
emergiu um sujeito mediador – o/a acadêmicos e cientistas, e a longa empiria
facilitador/a –, em geral com forma- dos povos do campo, das águas e das flo-
ção técnica, com a função de apoiar a restas na transformação agri-cultural dos
organização das atividades práticas de ecossistemas em seus processos populares
campo e a divulgação e organização de apreensão e socialização comunitária
dos eventos coletivos que se dão nos de saberes se estabeleceu uma síntese
agroecossis­temas, em cursos e reuniões teórico-epistemológica-metodológica
ou em assembleias de organizações so- que está na origem da agroecologia como
ciais camponesas, quando, em relação ciência. Com a consolidação acadêmica
CaC, camponesas e camponeses socia- da ciência da agroecologia, sua sociali-
lizam seus conhecimentos. zação como conteúdo da formação téc-
O protagonismo campônio se dá nico-profissional e da escolarização em
tanto no âmbito interno dos agroecossis- geral potencializou sua repercussão no
temas quanto no dos experimentadores conjunto da sociedade.
e promotores, à medida que os mesmos Nesse encontro dialógico proble-
sujeitos desenvolvem técnicas localmen- matizador de saberes emergidos e emer-
te adequadas – agricultoras e agricultores gentes das práxis populares dos povos
experimentadores –, e as comunicam a do campo, das águas e das florestas e
quem lhes visitam – agricultoras e agri- dos profissionais acadêmicos e técnicos
cultores promotores –, ou nas atividades de diversas áreas do conhecimento,
externas na localidade onde residem verificamos uma dinâmica de retroali-
ou outras, e em eventos para os quais mentação que vem potencializando e
são convidados e mobilizados progra- exponenciando velozmente a agroeco-
maticamente pelos movimentos sociais logia no campo, por meio de múltiplos
populares dos quais são integrantes. processos populares de educação – dos
No Brasil, várias organizações não quais indicamos de maneira ilustrativa
governamentais (ONGs) e movimentos anteriormente apenas dois –, por todos
sociais populares do campo, com base os biomas brasileiros, mas também em
nas experiências centro-americana e muitas cidades, pela agricultura urbana,
caribenha do movimento campesino a a educação ambiental, alimentar, nutri-
campesino, promoveram adequações cional e de saúde da população.

381
EDUCAÇÃO POPULAR EM AGROECOLOGIA

O dinamismo da educação popular cultura, pintura, tecelagem, entre outras.


em agroecologia, que se dá dispersa Na luta política, concretiza-se em ações
em todo o território do país, também diretas contra o agronegócio e ante o Es-
se expressa em múltiplas articulações tado, reivindicando as políticas públicas
regionais, estaduais e nacionais, com estruturantes e necessárias à efetivação e
continuada e crescente reverberação à generalização da agroecologia no país.
política, congregando ampla diversidade A educação popular em agroecologia
de processos prático-educativos. Tais se constitui pelos saberes oriundos das
processos incidem diretamente sobre os práticas dos trabalhadores e trabalha-
sistemas produtivos orientados à produ- doras para manter uma forma de vida
ção diversificada de alimentos vegetais humanamente viável, com a preserva-
E e animais, plantas condimentares, fito- ção de técnicas ancestrais, articuladas
terápicas, ornamentais, florestais; em aos conhecimentos científicos e novos
uma efervescência criadora e recriadora saberes construídos pelas experiências
de tecnologias, insumos, instrumentos atuais que orientam formas originais de
e ferramentas, e em processos de traba- sociabilidade em relações sustentáveis na
lho em bases de cooperação simples e e com a natureza.
complexa, que se estruturam em mútua A magnitude e a complexidade da
ajuda, associativismo, cooperativismo e agroecologia somente podem ser assu-
em sistemas agroindustriais e de certifi- midas em um processo educativo que
cação e comercialização. oriente a transformação radical das
Esse mesmo processo de educação mundividências campônias e, nesses
popular em agroecologia simultanea- termos, reverberar na sociedade em ge-
mente se efetiva em múltiplas dimensões ral, superando os limites da assistência
da coletividade humana, mobilizando e técnica – insistência técnica (Tardin;
socializando saberes gastronômicos e a Guhur, 2017), nos marcos das rupturas
ampla manifestação das artes – música, do conteúdo e forma assumidos na edu-
literatura, dança, teatro, artesanato, es- cação popular.

Referências
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MARX, K. Contribuição à crítica da Economia Política. Tradução e Introdução: FERNANDES, F. São
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MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
MONTEIRO, D. Agroecossistemas. In: CALDART, R. S. et al. (org.). Dicionário da Educação do
Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/ Expressão Popular,
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382
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PALUDO, C. Educação popular. In: CALDART, R. S. et al. (org.). Dicionário da Educação do Campo. Rio
de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/ Expressão Popular, 2012, p. 282-287.
REZENDE, S. A. Diálogo de saberes no encontro de culturas: o desafio da construção do conhecimento
em agroecologia na Educação do Campo. Curitiba, 2018. Dissertação (Mestrado em Educação). Uni-
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TARDIN, J. M.; GUHUR, D. M. P. Agroecologia: uma contribuição camponesa à emancipação humana
e à restauração revolucionária da relação metabólica sociedade-natureza. In: MOLINA, M. C. et al. (org.).
Análise de práticas contra-hegemônicas na formação de profissionais de ciências agrárias: reflexões sobre o
Programa Residência Agrária. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2017. p. 44-99. (volume 1).
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Santos de Agroecologia, 2012. (CD-ROM).
TONÁ, N. A pesquisa nos cursos de agroecologia e nas escolas e centros de formação dos movimentos
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II Seminário Nacional. O MST e a pesquisa: pesquisa e educação científica nas escolas e cursos formais
do MST. Guararema: Escola Nacional Florestan Fernandes, 14-17 mar. 2007. (mimeo.)
ZITKOSKI, J. J. Educação popular e movimentos sociais na América Latina: o desafio da participação E
cidadã. Educação, Santa Maria, v. 42, n. 1, p. 73-84, jan./abr. 2017.

Para saber mais


Experiência das mulheres yanomami de Maturacá, oeste da terra indígena yanomami, estado do Amapá,
sistematizado no livro Përɨsɨ — o fungo que as mulheres yanomami usam na cestaria:
Disponível em: https://medium.com/@socioambiental/n%C3%B3s-yanomami-apresentamos-uma-gran-
de-descoberta-para-os-cientistas-1f0514eea123. Acesso em: 25 mar. 2021.
Vídeo Paulo Freire: MST e a Busca da Autonomia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=7rx2mw9iF5s&list=PLB7C8634DE4D72D26. Acesso em: 1 fev. 2021.

Notas
1
Para uma discussão acerca da gênese, trajetória e atualidade da educação popular de maneira geral,
ver Paludo (2012).
2
Tradução livre (original em espanhol).

EMANCIPAÇÃO HUMANA

Gaudêncio Fr igotto

O objetivo central deste verbe- para Marx significava a superação da


te sobre emancipação humana não pré-história da humanidade, marcada
se prende na busca de uma definição pela exploração de seres humanos por
abstrata sobre o conceito, mas na com­ outros seres humanos, e a instauração
preensão de que se trata de um processo das relações sociais onde o livre desen-
histórico em construção de superação volvimento solidário e cooperativo de
de todas as formas de alienação, ex- cada um signifique o desenvolvimento
ploração e dominação de classe ou de todos. Trata-se, pois, de entender a
grupos sobre outros. Um processo que emancipação humana inscrita em uma

383
E M A N C I PA Ç Ã O H U M A N A

concepção de ser humano em que não ber, ter um teto e vestir conquistadas
haja dominantes e dominados ou seres pelo trabalho, mas, também, a negação
superiores e inferiores. dos seus direitos universais da educação,
Há um fecundo debate sobre a con- saúde, cultura, lazer e desenvolvimento
cepção de emancipação humana na dos sentidos e qualidades humanas.
obra de Marx e de Engels, efetivado por Dentro desta compreensão, trata-
vários autores. O leitor poderá tanto remos sucintamente das concepções
ir diretamente aos textos originais de de ser humano, ciência/conhecimento
Marx e Engels quanto a autores que, a e da práxis que orientam o processo
partir de suas obras ou de outras pers- de emancipação humana. Em seguida,
pectivas, trataram do tema da eman- também de forma indicativa, aponta-
E cipação. Obras como as de Adorno, remos as formas de alienação1 que as
Educação e emancipação (1995), de relações sociais capitalistas produzem,
Paulo Freire, Pedagogia do oprimido assimiladas desde a infância, e que difi-
(2005) e Pedagogia da autonomia (2010) cultam a organização e as lutas coletivas
e de Ivo Tonet, Educação, cidadania e dos trabalhadores do campo e da cidade
emancipação (2005), são contribuições nos processos de emancipação religiosa,
fundamentais para entender os proces- política e econômica, cultural, social e
sos educativos, na sociedade e na escola, estética.Por fim, em forma de síntese,
que concorrem para a emancipação sublinhar que a emancipação humana
humana e não para sua alienação. entendida como processo histórico tem
Neste verbete, nos fundamenta- como desafio fundamental a superação
mos na concepção de Marx e Engels da propriedade privada, pois nela reside
de emancipação humana por ser esta, a fonte de todas as formas de alienação
a nosso ver, a que assume um sentido e de manipulação política.
político, social e ético que implica, ao Desde o momento em que seres
mesmo tempo, a conquista da emanci- humanos justificaram a apropriação
pação religiosa e política circunscritas da produção excedente, não imedia-
na legalidade capitalista da liberdade, tamente necessária à manutenção dos
propriedade e igualdade formal; a crí- que viviam em comunidade, e a terra, a
tica pela raiz das relações sociais de água, os frutos eram bens coletivos, de-
produção da existência sob o capitalis- fine-se um grupo ou classe que domina
mo; e a ação prática de organização da os demais seres humanos em proveito
classe trabalhadora para a abolição da próprio. Para justificar essa apropriação
propriedade privada e, em consequên- por um grupo ou classe social, um dos
cia, das classes sociais. mecanismos é afirmar como natural
Dentro desta perspectiva, o pro- determinada concepção a-histórica e
cesso de emancipação humana se fun- do ser humano.
damenta em uma concepção de ser hu- Assim, nas formações sociais pré-
mano, de ciência ou conhecimento e de -capitalistas, partia-se do pressuposto
ação prática ou práxis transformadora que os escravos eram seres naturalmen-
das relações de classe que obstaculizam te inferiores. Na modernidade, na tran-
ou limitam não apenas a satisfação de sição para o capitalismo, o escravizado
suas necessidades vitais do comer, be- não era tratado como ser humano, mas

384
E M A N C I PA Ç Ã O H U M A N A

como meio de produção, um animal que cita ao longo de sua obra, com ênfase
falava. O fim da escravidão, no plano nos Manuscritos Econômicos-filosóficos
jurídico formal, foi ao mesmo tempo fru- de 1844 (Marx, 2001), no qual desen-
to de lutas pela emancipação política e volve o sentido do ser humano como ser
uma necessidade para instaurar o modo eminentemente histórico-social, tendo
de produção capitalista, pois este, para o trabalho concreto, socialmente útil
funcionar, precisa de que a maior parte e como valor de uso, a sua categoria
dos seres humanos seja duplamente fundante e fundamental.
“livre”: não tenha acesso aos meios e Um ano depois (1845), no livro A
instrumentos de produção e que não sagrada família, escrito em parceria com
seja propriedade privada de um dono e Engels, Marx destaca:
que disponha unicamente de sua ener- Se o homem é formado pelas cir- E
gia física e psíquica como mercadoria a cunstâncias, será necessário formar
ser negociada por um salário.2 as circunstâncias humanamente. Se
A concepção de ser humano que o homem é social por natureza, de-
busca legitimar a desigualdade social senvolverá sua verdadeira natureza
e os processos de exploração e de alie- no seio da sociedade e somente ali,
nação sob o capitalismo parte do pres- razão pela qual devemos medir o po-
suposto de uma natureza humana fixa der de sua natureza não através do
poder do indivíduo concreto, mas
e imutável. E este pressuposto é de que
sim através do poder da sociedade.
todo o ser humano busca o que lhe dá
(Marx, 2003, p. 150)
prazer e o que lhe é útil. Cada indivíduo
é movido pelo interesse próprio. Um Neste mesmo texto e página, Marx
egoísmo positivo que move cada um sublinha que os crimes também não po-
a competir e buscar o melhor para si. dem ser julgados fora das relações sociais
É sobre este suposto que Adam S ­ mith que conduzem os seres humanos a come-
compara o mercado à providência di- tê-los. “[...] os crimes não deverão ser cas-
vina. Uma mão invisível que ordenaria tigados no indivíduo, mas [deve-se] sim
as escolhas racionais individuais con- destruir as raízes antissociais do crime e
duzindo ao equilíbrio. Esta concepção dar a todos a margem social necessária
ignora o processo histórico de explo- para exteriorizar de um modo essencial
ração nas sociedades escravocratas e, sua vida”. (p. 150). Uma direção oposta
atualmente, sob as relações sociais capi- às teses em voga no Brasil atualmente,
talistas. Portanto, o que se afirma como que buscam determinantes biológicos
mérito individual, no mais das vezes, para explicar a violência e o crime. Ou
esconde a meritocracia, o privilégio e então se exime a análise das determina-
a desigualdade. ções e condições sociais que produzem a
A concepção de ser humano que criminalidade e individualiza-se a culpa.
se inscreve no processo de sua emanci- Daí surge o lema neofacista: bandido bom
pação política, social, cultural e, sobre- é bandido morto.
tudo, humana, é de que não nascemos O conhecimento que concorre para
humanos, mas nos tornamos humanos a emancipação humana é o que nos
ou desumanos historicamente na socie- ajuda a desvelar e mostrar tanto os me-
dade. Esta compreensão Marx a expli- canismos que produzem a desigualdade

385
E M A N C I PA Ç Ã O H U M A N A

e a exploração e as diferentes esferas de da natureza, estética) – a alienação


alienação humana quanto os processos econômica.
destrutivos da natureza e, portanto, das A alienação social se caracteriza
bases da vida. Um conhecimento que pelo fato de os indivíduos não se reco-
ajuda a cada ser humano tornar-se sujei- nhecerem como sujeitos produtores da
to autônomo e entender como funciona história e não perceberem que o tipo
a sociedade humana e a da natureza da de sociedade desigual, concentradora
qual somos parte. de propriedade privada que acumula
O embate no campo das ideias e riqueza e produz miséria, fome, doenças,
concepções é fundamental para dar desespero é fruto não da vontade dos
direção à luta política, mas somente deuses ou de uma suposta natureza hu-
E as ações concretas na práxis cotidia- mana, mas sim obra de seres humanos.
na é que fazem avançar o processo de Isso se expressa na atitude de não se
emancipação humana. Lutas por direito considerar individual e coletivamente
à terra para trabalhar, direito ao traba- as pessoas como sujeitos políticos. Vale
lho digno e à moradia, à educação de dizer, a consciência de que, em uma
qualidade, à saúde, à cultura, à arte, à sociedade de classes, a conquista dos
diversidade e à liberdade de pensamento direitos básicos, sociais e subjetivos
são a materialidade concreta e prática resulta da organização e luta coletiva
da construção não apenas da eman- dos excluídos. Naturaliza-se, assim, a
cipação política, mas do que impede ideia de que política é coisa de profis-
a emancipação humana. A afirmação sionais. Perversa também é a tese de que
acima é interessante, mas precisaria ser o Banco Central, controlador do fundo
desenvolvida um pouco mais, ou deixar público e da riqueza da sociedade, seja
mais claro o que se quer dizer. Sugiro blindado da política. Isto leva à situação
ainda remeter adiante, no verbete onde na qual o fundo público, que é para
se aponta a diferença entre emancipa- atender direitos universais, passa a ser
ção política e emancipação humana. apropriado privadamente por empresas
É neste processo de ação concreta e bancos privados.
que coletivamente podemos perceber Um dos elementos da alienação
as diferentes formas de alienação a que social se manifesta no plano cultural
estamos submetidos e que nos torna pela alienação religiosa. Não se trata de
submissos a poderes que nos dominam negar a espiritualidade, seja ela ligada
e impedem que nos tornemos sujeitos ou não a uma determinada denomi-
autônomos. nação religiosa. Trata-se de situá-la
Marilena Chauí (2000), num pe- estritamente no plano da opção pessoal
queno e denso texto, faz uma síntese do privada e, portanto, separada do estado.
pensamento de Marx sobre diferentes Desse modo, o Estado laico não elimina
formas de alienação, e destaca três o direito pessoal à religião, mas esse
formas básicas: social, econômica e direito não pode fazer parte e nem se
intelectual. 3 Além de estarem rela- sobrepor às leis que regulam a vida de
cionadas, elas têm como fundamento todos os cidadãos, crentes ou não.
– assim como as outras formas de alie- O Estado laico e democrático não
nação (educacional, cultural, religiosa, pode permitir o uso da religião e da fé

386
E M A N C I PA Ç Ã O H U M A N A

simples do povo para resigná-lo ao seu para morar. Sem essa condição autôno-
sofrimento e pobreza ou explorá-lo. ma de trabalhadores associados e como
Cabe a esse Estado impedir práticas proprietários coletivos dos meios de
de charlatães dos novos vendilhões produção da ciência e tecnologia como
dos templos que por suas redes de TV bens coletivos, a emancipação humana
e rádio usam o nome de “deus” como não se realiza de forma efetiva.
mercadoria. Em nome dele, vendem li- Assim, a alienação econômica efeti-
tros de água e saquinhos de sabão em pó va-se no fato de que o trabalho humano,
que teriam o poder de lavar os pecados. como atividade vital e imperativa de
A alienação social tem como con- intercâmbio dos seres humanos com
trapartida atualmente, no Brasil, a jun- a natureza na produção e reprodução
ção de três fundamentalismos que não social de si mesmos, é subvertido pelas E
apenas anulam a democracia e o Estado relações sociais capitalistas, assentadas
laico e de direito, mas atentam, por na propriedade privada da mercadoria
diferentes caminhos que se potenciam força de trabalho. Mediante o direito
mutuamente, contra a vida dos pobres, positivo, legaliza-se o impedimento
dos negros, dos LGBTs e contra o pen- da maioria dos seres humanos a esta
samento divergente: fundamentalismo relação vital com a natureza para solida-
econômico, onde tudo é reduzido ao riamente produzirem, no menor tempo
mercado; político, que vê os adversários possível, a sua reprodução material e
e críticos como inimigos a eliminar; ampliarem o tempo livre para desenvol-
e religioso, que busca restabelecer o ver suas qualidades e sentidos humanos.
criacionismo como doutrina do Estado. Assim, sob as relações de produção
A alienação econômica resulta da capitalistas, o trabalhador e a classe
divisão da sociedade em classes sociais trabalhadora, em seu conjunto, são
e da propriedade privada e constitui-se alienados e roubados sob três dimensões
na base de todas as formas de alienação intrínsecas. A primeira e fundamental
por incidir na atividade vital do traba- dimensão da alienação dá-se pelo fato
lho humano. Não há possibilidade de de que, ao vender sua força de trabalho,
reprodução da vida humana sem um o trabalhador é expropriado da concep-
determinado tempo de trabalho. Por ção e do produto de seu trabalho. Ou
isso, a superação da propriedade privada seja, ao ser impelido a vender sua força
é condição necessária para que se efeti- de trabalho, perde a condição de ser
ve não apenas a emancipação religiosa o autor de seu trabalho e de regular o
e política, mas a emancipação humana. tempo da produção e perde, igualmente,
A economia é entendida não como o produto de seu trabalho. O trabalha-
um fator isolado, que mecanicamente dor é reduzido nesta relação alienadora
determina a vida social, mas como es- à coisa – mercadoria força de trabalho
trutura econômica social que expressa administrada por quem a comprou.
as relações sociais que os seres humanos Nesse processo, em que nem a
estabelecem entre si e em relação com a concepção, nem o produto do seu tra-
natureza para produzir, pelo trabalho, os balho lhe pertencem, e seu trabalho
bens materiais imprescindíveis à vida: não tem como função precípua res-
o comer, o beber, o vestir, o ter um teto ponder a necessidades humanas, mas

387
E M A N C I PA Ç Ã O H U M A N A

produzir mercadorias e serviços que conhecimentos que expressam e afir-


engendram exploração para produzir mam seus interesses.
lucro e mais-valia, estabelecem-se as O entendimento da emancipação
demais dimensões de sua alienação: humana como um processo histórico em
a separação de si mesmo, do conjunto curso nos permite perceber, primeira-
dos demais trabalhadores e do gênero mente, que todas as lutas empreendidas
ou espécie humana. pelas classes oprimidas e dominadas pelas
Duas dimensões que derivam desta conquistas de direitos universais comuns
tríplice alienação. A primeira é que a a todos os seres humanos são partes deste
ciência e o conhecimento apropriados processo. Também faz parte dele a batalha
pelas grandes corporações econômicas das ideias, confrontando e desmascarando
E e financeiras não somente determinam as concepções de ser humano e de conhe-
uma superexploração dos trabalhadores cimento naturalizados que sustentam os
empregados, mas de forma crescente processos de alienação social, econômica,
deslocam grandes massas de desem- intelectual, cultural e estética.
pregados às mais degradantes formas Ao analisar, no livro A questão ju-
de informalidade ou o simples des- daica, o debate na sociedade alemã sobre
carte. A segunda dimensão é de que a emancipação dos judeus, Marx (2010)
a terra, as riquezas minerais e a água, reconhece a importância de sua eman-
apropriadas privadamente e mediante cipação religiosa e política, mas coloca
uma produção destrutiva em nome do estas conquistas nos limites da cidadania
lucro, atentam contra a saúde e a vida burguesa. Por isso, sustenta que a eman-
da humanidade. cipação humana não se restringe a um
A manutenção da alienação social povo ou a uma nação, mas diz respeito ao
e econômica implica que se instaurem gênero humano. A efetiva emancipação
na sociedade mecanismos de alienação humana tem como condição necessária
intelectual. A divisão em classes sociais a superação da sociedade de classes e,
e a produção capitalista, para se repro- portanto, o fim da propriedade privada
duzirem, têm, entre suas leis imanentes, dos meios de produção. A tarefa histórica
a divisão do trabalho manual e intelec- da superação da emancipação política
tual; em outras palavras, a separação pela emancipação da humanidade se
entre quem concebe a produção e quem efetivará pela consciência e organização
a executa e a hierarquiza. Aliena-se, coletiva da classe trabalhadora. Por isso,
assim, o direito da classe trabalhadora o processo de emancipação humana em
ao conhecimento científico, tecno- curso se efetivará quando a pré-história
lógico, cultural e estético coletiva e da humanidade, sob a sociedade de clas-
historicamente produzidos. Por outra se, for abolida, e com ela a dominação e
parte, sob a suposta neutralidade do exploração de seres humanos por outros
conhecimento, os intelectuais da classe seres humanos. Trata-se de relações so-
dominante, mediante os seus aparelhos ciais centradas, não na exploração e no
de hegemonia (grandes corporações de indivíduo isolado, egoísta e competitivo,
mídia empresarial, institutos privados mas seres humanos solidários, coopera-
de pesquisa e a própria escola etc.), tivos, em que os meios de produção são
buscam definir como universal aqueles propriedade da humanidade.

388
E M PAT E S

Referências
ADORNO, T. W. Educação e emancipação. In: ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Tradução
de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 216-220.
SILVA, J. M. Raízes do conservadorismo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 41. reimpressão. São Paulo:
Paz e Terra, 2010.
_______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: Expressão Popular, 2016.
LOSURDO, D. Contra-história do liberalismo. São Paulo: Ideias e Letras, 2006.
MARX, K. Crítica da crítica absoluta ou a crítica, conforme o Senhor Bruno. In: MARX, K.; ENGELS,
F. A sagrada família. São Paulo: Boitempo, 2003.
_______. Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001.
_______. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
TONET, I. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Editora Unijuí, 2015
E
Notas
1
A palavra alienação vem do latim alienus, que significa que pertence a outro. O sentido que damos
neste verbete é o dado por Marx e Engels, que desenvolveremos ao longo do texto. Uma obra fun-
damental para o aprofundamento desta perspectiva é Marx: a teoria da alienação, do filósofo István
Mészáros (1981). O autor analisa diferentes esferas da vida nas quais incide a alienação nas relações
sociais capitalistas: economia, política, ontológica, moral e estética.
2
Para uma compreensão sobre o longo processo histórico, em diferentes partes do mundo, pela abo-
lição da escravidão e emancipação política dos escravos, ver Losurdo (2006). Como o escravizado
não era só para o trabalho forçado, mas também mercadoria para negócio, as lutas emancipatórias,
como mostra esse autor, tiveram, paradoxal e contraditoriamente, forte resistência dos fundadores
do liberalismo. No Brasil, a escravidão durou mais de três séculos e isso explica em grande parte a
constituição de uma classe capitalista predatória e violenta contra os direitos dos trabalhadores.
Duas obras nos ajudam a entender o longo processo de emancipação política formal, mas no plano
das relações sociais ainda parcial dos escravos e seus descendentes e os entraves nas lutas pela
emancipação humana em nossa sociedade. Ver: As raízes do conservadorismo brasileiro (Silva, 2018)
e A escravidão reabilitada (Gorender, 2016).
3
Cf. Chauí, 2000. Ver especialmente, da página 216 a 220.

EMPATES

E lder A ndr ade de Paula

No Dicionário Houaiss da Língua gueiros e demais camponeses oriundos


Portuguesa (2001), a palavra “empatar” da região. Ela é sempre usada no sentido
é definida como “dificultar a continui­ de indicar algum tipo de impedimento
dade de; sustar, suspender, embaraçar”. nas situações mais diversas: “a ponte caiu
No estado do Acre, o uso dessa palavra é e está empatando a passagem”, “caiu um
recorrente, notadamente entre os serin- pau na estrada e empatou a passagem do

389
E M PAT E S

caminhão”, “choveu o dia inteiro, empa- ocorria em outros estados da Amazônia


tou meu trabalho no roçado” e assim por brasileira [ver B ioma A mazônico]. Esses
diante. Em suma, de um modo geral, o conf litos sociais resultaram do novo
seu uso cotidiano designa algum tipo de ciclo de desenvolvimento e expansão
impedimento. de fronteiras capitalistas na Amazônia,
Foi exatamente nesse sentido de desencadeado sob a ditadura militar no
impedimento que a palavra “empate” pós-1964. A marcha dessa expansão da
foi usada para denominar uma forma de fronteira seguiu o rito que marca esse
mobilização coletiva. Essa mobilização processo em escala planetária: expro-
ocorreu pela primeira vez em março de priação de terras/territórios do campe-
1976 no seringal Carmem, município sinato e povos indígenas, violência de
E de Brasileia, quando um fazendeiro todo o tipo, morte e destruição acelera-
ameaçou expulsar os seringueiros da da das florestas e todo o ambiente [ver
área e eles se recusaram a sair. A saída Campesinato e Terras Indígenas].
encontrada por esses camponeses e A invenção do “empate” como for-
pela direção do Sindicato dos Traba- ma de luta resultou não só da situação
lhadores Rurais de Brasileia foi orga- imediata no enfrentamento dos confli-
nizar um grupo para se concentrar na tos sociais pela posse da terra, mas da
área onde estava iniciando a primeira combinação de outros três elementos: 1)
etapa dos trabalhos de desmatamento, a trajetória dos seringueiros e suas ex-
para “empatar” o trabalho dos peões. periências de resistência nos interstícios
Durante três dias, esse grupo formado da empresa extrativista; 2) a chegada da
por aproximadamente 60 camponeses, Confederação Nacional dos Trabalha-
munido com suas espingardas de caça, dores na Agricultura (Contag) no Acre
cercou o acampamento dos peões con- em 1975, estimulando a organização
tratados pelo fazendeiro para fazer o do movimento sindical, que passou a
desmatamento em parte do seringal. representar esse campesinato até então
Realizou-se, assim, o primeiro de uma politicamente invisível e destituído de
série de “empates” que posteriormente representação formal na esfera estatal;
se notabilizariam como uma das mar- 3) o processo de formação desencadea-
cas singulares do sindicalismo rural no do pelas Comunidades Eclesiais de Base
Acre. “Esse ‘empate’ representou um (CEBs), ligadas à Teologia da Libertação
passo importantíssimo para a luta dos (Paula, 2016).
seringueiros: na medida em que afirmou Sob esse ambiente de conflitos e
a eficácia da ação coletiva como forma efervescência política, o sindicato pas-
de pressão para conquistar seus direitos, sou a ser visto como o próprio sujeito
ao mesmo tempo, inaugurou a adoção da libertação, como mostra parte desse
de uma outra linha de ação pelo sindi- poema de autoria de um seringueiro da
calismo emergente na região” (Paula, região, publicado pelo Jornal Varadouro
2016, p. 96). no final dos anos 1970 e transcrito por
Esse primeiro “empate” se realizou nós (Paula, 2016, p. 82): “Está aqui,
em um contexto marcado por intensos meu povo, o sindicato que veio nos
conf litos sociais pela posse da terra ajudar/Que veio mandado por Deus
no estado do Acre, a exemplo do que para nos libertar/Estão aí também os

390
E M PAT E S

companheiros de nossa união/ Que vislumbrados na segunda metade da


deram o primeiro passo na libertação/ década de 1970, na sua fase inicial. As
Nos libertou a borracha e nos livrou do mobilizações, em vez de reivindicarem
patrão/ Da cadeia e da prisão”. um lote de terras, têm como objetivo
Esse reconhecimento e todo o peso não só “empatar” a realização dos des-
simbólico que o permeia fez do sindicato matamentos, mas também rechaçar
o núcleo aglutinador das lutas, articu- esse tipo de acordo. A luta passou a ter
lador e incentivador de ações coletivas uma conotação diferente: a de garantir
de resistência pela terra, notadamente a permanência dos seringueiros nas suas
os “empates”. Entre março de 1976 e colocações, preservando-se a sua forma
julho de 1980 – data do assassinato do de vida, trabalho e valores culturais
presidente do STR de Brasileia, Wilson (Paula, 2016). E
Pinheiro –, os “empates” foram em Daí resultou a proposta de reservas
sua maioria capitaneados pelo STR de extrativistas, a “reforma agrária dos se-
Brasileia. Além de conter parcialmen- ringueiros”, como dizia Chico Mendes.
te o avanço voraz da expropriação e Isto é, a regularização do território de
destruição das florestas e vidas de seus acordo com a forma de ocupação e uso
moradores, assegurou a conquista de de seus moradores. Em decorrência das
lotes de terras por parte de uma parcela suas virtudes ecológicas – agricultura
do campesinato, segundo os critérios para autoconsumo, coleta de látex,
estabelecido pelo Estatuto da Terra, Lei castanha e outros produtos extrativos
n. 4.504, de 1964 (Brasil, 1964). não madeireiros de forma compatível
A retomada dos “empates” foi mar- com a conservação das florestas –, essa
cada por um vigoroso processo de resis- forma de uso social da terra passou a
tência, liderado pelo STR de Xapuri no atrair simpatias em outros lugares. As
intervalo de 1983-1988, ano em que foi alianças externas e a visibilidade para
assassinado Chico Mendes, presidente além das fronteiras nacionais foram
daquele sindicato. Enfrentando desde desdobramentos do interesse desperta-
grupos econômicos poderosos, como o do em torno da proposta de Reservas
da Bordon, até fazendeiros medianos, Extrativistas. Chico Mendes teve papel
como Darli Alves – um dos executores destacado na construção dessas alian-
do assassinato de Chico Mendes –, os ças com organizações e movimentos
“empates” realizados nos seringais de ambientalistas, de intelectuais e de
Xapuri se distinguiram dos realizados estudantes universitários, entre outros.
anteriormente em três aspectos impor- Simbolicamente, esses “empates”
tantes: 1) pauta de reivindicações; 2) passaram a ter, para os seringueiros, o
alianças externas; 3) visibilidade para mesmo significado que têm as greves
além das fronteiras nacionais. para os operários.
O essencial na pauta de reivindi- É um momento de mudança no seu
cações foi o deslocamento do critério cotidiano, quando param de exercer
de “obediência da lei” para outro, di- atividades normais de trabalho e
recionado para a “mudança da lei”. afazeres diversos e partem para a
Os “empates” passaram a almejar um luta, a fim de defender seus direitos.
horizonte mais amplo em relação aos Nesse momento, é criado tanto um

391
E M PAT E S

espaço de confraternização entre – área ocupada individualmente pelo


os seus participantes (nas conversas seringueiro e sua família – que seriam
informais, nas brincadeiras, nas atingidas, direta e indiretamente. A se-
cantorias), como também, em certas guir, discutia-se a posição que os serin-
ocasiões, para o estreitamento dos
gueiros deveriam tomar. A decisão era
laços de união nos momentos de
sempre a de “empatar” o desmatamento,
maior tensão, nos confrontos com
a polícia e com os capatazes dos e então os detalhes eram combinados:
fazendeiros nos acampamentos dos quem iria participar, as estratégias a se-
peões. (Paula, 2016, p. 126-127) rem adotadas, o horário de saída para o
local do acampamento dos peões, entre
Os “empates” estabelecem o con-
outros encaminhamentos.
fronto, marcando a diferença de in-
E Ao chegar ao acampamento dos
teresses. Os seringueiros vivenciam
peões, os líderes do grupo procura-
esse fato nas suas reuniões, nas áreas
vam o responsável pela “empreita” e
de conf litos e no enfrentamento da
comunicavam a decisão de “empatar”
polícia que, ao defender os interesses
o desmatamento, aconselhando-os a
dos fazendeiros, mostra nitidamente de
se retirar da área. O clima era sempre
que lado está o governo. Isso politiza
marcado por muita tensão. Quando
mais esses conflitos, criando condições
não havia proteção policial – a polícia
para que, no processo de lutas, eles
era quase sempre acionada pelos fa-
reconheçam o seu lugar na sociedade,
zendeiros para “proteger” os peões –,
os seus aliados e os seus inimigos, con-
os peões se retiravam da área e os se-
tribuindo decisivamente na formação
ringueiros “apagavam” os seus vestígios
de sua identidade política.
na mata, derrubando suas barracas de
Dada essa caracterização geral dos
acampamento, às vezes apreendendo
“empates” e seu contexto, trataremos
motosserras e outros equipamentos
finalmente de mostrar como eram or-
utilizados nos desmates. A presença da
ganizados. O processo de preparação
polícia nos “empates” provocava o agra-
dos “empates” começava, via de regra,
vamento do clima de tensão na área.
com um relato de moradores junto ao
Quando não havia solução negociada
delegado sindical ou membro da direto-
entre as lideranças dos seringueiros e
ria do sindicato, denunciando a entrada
o comandante da guarnição policial,
dos peões em uma determinada área
acabavam ocorrendo prisões de muitos
para realizar desmatamento. O passo
seringueiros. Pouco depois, o sindicato
seguinte era dado pela direção sindical,
acionava um advogado para libertá-los
convocando os seringueiros da zona
da prisão, sob a alegação de falta de
atingida para discutir o problema e
provas do delito de que eram acusados.
tomar uma posição.
Na maioria desses “empates”, os
No decorrer dessas reuniões, os di-
seringueiros compareciam armados
rigentes sindicais repassavam informa-
de suas espingardas de caça ou com
ções mais pormenorizadas a respeito do
terçados (um tipo de facão de grande di-
desmatamento planejado: dimensões da
mensão utilizado no trabalho dos serin-
área, nome do proprietário etc. Depois
gueiros e de outros trabalhadores da re-
se avaliava o número de “colocações”
gião), o que assustava muito os “peões”,

392
E M PAT E S

fazendo com que estes abandonassem Após o assassinato de Chico Mendes


a área. Com a intervenção da polícia, (presidente do Sindicato dos Traba-
os seringueiros procuravam esconder lhadores Rurais de Xapuri), em 22 de
suas armas para evitar que estas fossem dezembro de 1988, os “empates” foram
apreendidas. Com a evolução das lutas gradativamente abandonados como for-
em Xapuri e a projeção que começaram mas de luta – os últimos ocorreram ainda
a adquirir no cenário político nacional em meados da década de 1990. Diante
e internacional, os “empates” passaram das inesperadas repercussões internacio-
a ficar mais sofisticados politicamente. nais de mais esse crime praticado pelos
Nas palavras Chico Mendes: latifundiários na Amazônia, o governo
Quando nós temos 100, 200 com- brasileiro adotou uma série de políticas
panheiros na luta de empate, en- voltadas para mitigar os conflitos so- E
frentamos motosserras e as foices ciais pela posse da terra e território, tais
dos peões da fazenda, ao mesmo como criação de reservas extrativistas
tempo, nós temos uma equipe para e ampliação do número de projetos de
transmitir o que está acontecendo assentamento. Dessa forma, os conflitos
para todo o país e, posteriormen- sociais pela posse da terra e território
te, para o exterior [...]. Daqui pra foram reduzidos temporariamente.
frente nós vamos ter uma equipe de
Em Paula (2013), analisamos esse
resistência organizada nas áreas do
processo de forma mais detalhada.
desmatamento, uma equipe aqui em
Xapuri que fica transmitindo para Além das ações de governo nas dife-
todo o canto do país e pra nível in- rentes esferas, destacamos as repercus-
ternacional o que está acontecendo sões da ideologia do “desenvolvimento
naquele momento, pedindo solida- sustentável” e da prática de grandes
riedade, e uma equipe trazendo, ONGs conservacionistas na desmobili-
comunicando, que fica trazendo a zação do outrora poderoso Movimento
ligação entre o movimento de resis- Sindical dos Trabalhadores Rurais no
tência e a equipe de apoio na cidade, Acre, notabilizado pela realização dos
então essa é a luta que nós estamos “empates” nas décadas de 1970-1980.
fazendo. (Grybowsky, 1989, p. 39)
Finalmente, deve-se destacar que
Outra novidade nos “empates” foi sob esse cenário marcado pela crescente
a incorporação de novos personagens, espoliação praticada pelo capital também
como mulheres e crianças dos seringuei- na Amazônia continental, os conflitos
ros. Tratou-se de uma estratégia usada pela posse e uso da terra e território se
para tentar coibir a repressão policial, espraiam por todo o estado do Acre, a
pois a “polícia pensaria duas vezes antes exemplo do que ocorre nos demais esta-
de atirar em uma criança ou em uma dos da Amazônia brasileira. Em pesquisa
mulher, na família dos seringueiros”, concluída recentemente, Milenna Rocha
representantes de central sindical, par- (2016) analisou os velhos e novos confli-
tidos políticos. Anteriormente, só os ho- tos sociais pela posse da terra e território
mens participavam e era rara a presença no Acre. De acordo com ela,
de outras pessoas que não estivessem Dados da Comissão Pastoral da
diretamente envolvidas no cotidiano Terra (CPT) registram o aumento
do sindicato (Paula, 2016). considerável nos registros no núme-

393
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

ro de conflitos por terra no Acre. percebemos que os conflitos não se


De quatro (4) registros em 2010, localizam especificamente em uma
para cinquenta e oito (58), em 2015 regional administrativa específica
atingindo mais 4.750 famílias e uma do Acre. Atingem todo o estado e
média de vinte e três mil e sete- as mais diversas categorias de cam-
centas pessoas (23.700). Ainda nos poneses florestais como posseiros,
baseando nos dados apresentados ribeirinhos, sem-terra, seringueiros
pela Comissão Pastoral da Terra, e indígenas. (Rocha, 2016, p. 66)

Referências
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 4.504, de 30
de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4504.htm. Acesso em: 25 mar. 2021.
E GRYBOWSKY, C. O testamento do homem da floresta: Chico Mendes por ele mesmo. Rio de Janeiro:
Fase, 1989.
HOUAISS, A; SALLES VILLAR, M. de. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro:
Ed. Objetiva, 2001.
ROCHA, L. M. Capitalismo verde, campesinato e conflitos por terra/territórios na Amazônia: O caso Acre.
Dissertação (Mestrado). PPGMDR, Universidade Federal do Acre, 2016.
PAULA, E. A. Seringueiros e sindicatos: um povo da floresta em busca da liberdade. Rio Branco: Nepan
Editora, 2016.
_______. Estado e (des)envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionários do progresso
aos mercadores da natureza. Rio Branco: Edufac, 2013. 2. ed. E-Book disponível em: http://www.ufac.
br/editora/livros/des-envolvimento-insustentavel.pdf. Acesso em: 12 jan. 2021.

Para saber mais


Jornal Varadouro – pode ser acessado no Portal Biblioteca da Floresta: http://bibliotecadafloresta.ac.gov.
br/wps/portal/biblioteca-floresta/biblioteca-floresta/principal. Acesso em: 25 mar. 2021.
Nesse mesmo Portal podem ser encontrados vídeos, revistas etc.
Dossiê o Acre (Conselho Indigenista Missionário – Cimi) que os mercadores da natureza escondem.
Disponível em: https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Dossie-acre_2012.pdf. Acesso em: 12
jan. 2021 (ver especialmente entrevista com Dercy Teles de Carvalho, presidente do Sindicato dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Xapuri).
CHIAVERINI, T. O “Acre contra Chico Mendes”, Repórter Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.
org.br/acre/. Acesso em: 12 jan. 2021.

EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

D ominique G uhur
Nívia R egina da S ilva

A epistemologia se preocupa com cimento prático da vida cotidiana, o


o “como conhecer”, através de uma conhecimento mágico-religioso), que
modalidade peculiar de conhecimento é o conhecimento científico; estuda de
(entre outras, como a arte, o conhe- um ponto de vista histórico e crítico os

394
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

princípios, as hipóteses e as conclusões economia ecológica) e da antropologia


das diferentes ciências, bem como a (com aportes especiais da etnografia)
filosofia das ciências; seu objeto privi- (Hecht, 1989). Mais recentemente, a
legiado de estudo “são as ciências em problematização de aspectos da for-
via de se fazerem, em seu processo de mação da cultura camponesa e do
gênese, de formação e de estruturação patriarcado como base da cultura oci-
progressiva” (Japiassú; Marcondes, dental, de maneira geral, aproximaram
2001, p. 63). também os estudos feministas.
A agroecologia é comumente con- A agroecologia requer, assim, uma
siderada como uma ciência emergente, abordagem integradora das formula-
ainda em processo de construção e ções e métodos de diversas áreas do
organização. No campo científico, ela conhecimento, o que abre possibili- E
surge no final dos anos 1920 e início da dades, mediante diferentes e novas
década de 1930 como um interesse cres- abordagens metodológicas, mas coloca
cente por se estudar a agricultura e os também tensões e questionamentos
sistemas agrícolas sob uma perspectiva a determinados aspectos da ciência
ecológica, ou seja, levando em conta as positivista ou dominante. Coloca-se
interações entre os organismos e destes assim a questão: teria a agroecologia
com o meio. Na ecologia [ver E colo ­ uma epistemologia própria? Esse tema
gia], buscou conceitos-chave tais como tem sido abordado com frequência por
comunidades e interações ecológicas, pesquisadores da área (Gomes, 2005;
ecossistemas, coevolução, sucessão Leff, 2007; Sicard, 2019; Caporal, 2011;
ecológica, ciclos biogeoquímicos, dentre Sevilla Guzmán, 2011; Borsatto; Car-
outros. O agroecossistema, expressão mo, 2012; entre outros).
material de uma determinada forma de Por se tratar de uma construção
agricultura, tornou-se a unidade básica plural e em processo, propomos no pre-
de análise da Agroecologia (Gliessman, sente texto uma contribuição ao debate,
2001). Da agronomia, buscou integrar considerando os diferentes contextos,
diversas disciplinas, destacando-se a compreensões e perspectivas que o
climatologia agrícola, a ciência do solo tensionam, e em diálogo com autores do
e a fisiologia vegetal, entre outras (Al- campo agroecológico. Desde as elabora-
tieri, 1989). ções práticas e teóricas dos movimentos
Entretanto, o estudo mais siste- sociais populares do campo articulados
mático de sistemas agrícolas tradicio- na Via Campesina, partimos de uma
nais, camponeses e povos originários, compreensão da agroeco­logia enquanto
principalmente a partir dos anos 1970, práxis, o que nos leva a uma reflexão
passou a demandar o aporte de ou- sobre as bases ecológicas da agroeco-
tros campos científicos, que dessem logia em uma perspectiva articulada à
conta também das dimensões sociais, transformação social. Dividimos assim
econômicas e culturais: contribuições o texto em dois momentos principais:
importantes vieram da geografia, da 1) de crítica às concepções herdadas da
sociologia rural (em especial, do desen- revolução científica, mas localizando-
volvimento rural e dos estudos campo- -as no contexto mais amplo do papel
neses), da economia (destacando-se a da ciência na sociedade capitalista; 2)

395
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

de contribuições a uma epistemologia gusto Comte, no século XIX) afirmaria,


da agroecologia. ainda, a neutralidade da ciência e a exis-
tência de um método único e universal
Crítica à ciência positivista de conhecimento (Rolo; Ramos, 2012).
e mecanicista A visão medieval do mundo (“a
O conhecimento, em suas diversas grande cadeia do Ser”), holística e inte-
formas, tem como ponto de partida a gral, embora rigidamente hierarquizada
produção da existência humana pelo e estática, foi substituída por um mundo
trabalho em sua mediação com a natu- atomizado (não apenas os elementos quí-
reza, na realização da apreensão do real micos, mas também as espécies e os seres
desenvolvida na história a partir de sua humanos passaram a ser vistos como
E reprodução social, de maneira que “[...] átomos isolados) (Levins, 2015). Tudo foi
a forma como os homens trabalham e separado e dicotomizado: os elementos
produzem suas condições de existência da natureza, a natureza e o humano, a
material determina a forma como eles mente e corpo etc. A natureza passou a
pensam, sentem e representam o mundo ser compreendida como um agregado de
em que vivem” (Rolo; Ramos, 2012, p. coisas passivo e inerte, podendo ser desa-
155). Não se trata, evidentemente, de um gregada, separada e depois reconstruída
mero reflexo mecânico, uma vez que as de diversas maneiras (O’Connor, 2001),
ideias anteriormente elaboradas exercem tal qual um mecanismo, uma máquina, e
influência sobre a maneira de pensar e o conhecimento foi reduzido a um saber
conhecer, e também transformações na como transformar, dominar e controlar
produção da existência a natureza para fins utilitaristas, em uma
Assim, a crítica ao positivismo, ao relação predatória e destrutiva com os
mecanicismo e ao reducionismo precisa processos naturais (Rolo, 2015).
buscar seus fundamentos na análise Essas mudanças ocorreram de ma-
histórica das condições de surgimento neira concomitante ao processo de con-
da ciência moderna na Europa, entre os solidação do capitalismo e de ascensão
séculos XVI e XVIII, que determinou da burguesia como classe dominante, o
a visão científica do mundo. O que se que pode ajudar a explicar sua perma-
constituiria como “método científico” nência, ainda hoje, como concepção de
pode ser identificado nas sistematizações ciência dominante em que “[...] o indi-
de alguns pensadores, especialmente no vidualismo do homem econômico é um
empirismo de Francis Bacon e no racio- modelo para a autonomia e o isolamento
nalismo de René Descartes, embora tam- de todos os fenômenos, e onde uma
bém se deva destacar as contribuições de indústria do conhecimento transforma
Galileu Galilei, Thomas Hobbes, John ideias científicas em mercadorias comer-
Locke, David Hume e Isaac Newton. cializáveis” (Lewontin; Levins, 1996, p.
Apesar das diferenças substantivas entre 107). Assim, é preciso levar em conta,
eles, desenvolveu-se uma concepção além dessa herança epistemológica, mais
mecanicista do universo, da natureza outros dois fatores: a) a Economia Polí-
e do ser humano, e uma perspectiva de tica, que cria a mercadoria do conheci-
domínio sobre a natureza (Andery et al., mento e b) a fragmentação institucional
1996). O positivismo (iniciado com Au- do conhecimento (Levins, 2015).

396
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

Sob as relações capitalistas de pro- seu trabalho (Rolo, 2015). Assim, com
dução, o conhecimento foi gradati- o aprofundamento da divisão técnica do
vamente se transformando em uma trabalho, o trabalhador perde a visão da
mercadoria, e as pesquisas desejáveis são totalidade, alienado da realização e do
cada vez mais aquelas capazes de pro- produto do seu trabalho, da relação com
duzir lucro. Principalmente no século a natureza e das relações sociais/huma-
XX, a ciência tornou-se força produtiva nas, excluindo-se também a dimensão
do capital, atendendo às exigências do criativa do processo de trabalho.
aparato produtivo e antecipando-se Estes processos foram conformando
a elas, com a pesquisa passando a ser a ideia de ciência, de conhecimento e
produzida em larga escala, em grandes compreensão dos fenômenos da realida-
corporações científicas associadas ao de. Nas ciências agrícolas, conhecimen- E
capital industrial e financeiro (Rolo, tos desenvolvidos no século XIX, que
2015), nas quais o pesquisador que exe- sustentaram a [ver Revolução Verde], se
cuta uma agenda de pesquisa privada tornaram hegemônicos, ao exemplo das
não tem controle sobre os resultados descobertas de Jacob Berzelius, Justus
do seu trabalho. von Liebig, Friedrich Wöhler, cientis-
Ao mesmo tempo, há uma contínua tas que tiveram papel de destaque no
transformação das necessidades humanas desenvolvimento da agricultura de base
em mercadoria, ao criar novas necessi- industrial. Ao passo que outros, como Ju-
dades e inaugurar a superprodução e o lius Hensel, Jean-Baptiste Boussingault,
desperdício em larga escala. Estabelece-se Sergei Winogradsky, Nikolai Vavilov
assim uma lógica produtivista, orientada (que desenvolveram aspectos ecológicos,
a aumentar a produtividade do trabalho, fatores biológicos, a microbiologia do
a extração de mais-valia e a valorização solo, as sementes e centros de origem da
do capital, que significa superexploração agrobiodiversidade), tiveram seus estudos
do trabalho humano e aprofundamento não conhecidos, reconhecidos ou mesmo
da depredação da natureza. destruídos. A superação desse caminho
Trata-se de determinações mais pro- precisa se dar, portanto, não apenas no
fundas do desenvolvimento capitalista, nível epistemológico, mas também nas
com efeitos sobre os processos de traba- relações sociais de produção.
lho e de produção do conhecimento, que
passam a ser cada vez mais fragmentados, Contribuições a uma
seccionados em partes. O parcelamento, Epistemologia da Agroecologia
simplificação e especialização das tarefas As contribuições que elencamos a
na indústria somam-se à separação entre seguir partem de uma compreensão da
concepção e execução; a pesquisa acaba agroecologia enquanto práxis – prática
restrita a um conjunto de profissionais social, ciência e luta como momentos ou
da ciência cada vez mais qualificados e dimensões que se integram e também se
especializados, embora estes, em geral, tensionam mutuamente [ver Agroecolo­
desconheçam a cadeia da qual o seu gia]. Na atualidade do modo de produção
trabalho é só uma parte, e tampouco capitalista, as camponesas e camponeses,
tenham domínio das leis de mercado os povos tradicionais e originários têm
que regerão o consumo dos produtos de suas vidas e territórios sob permanente

397
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

e violento ataque do agrohidromine- 2005) dos sujeitos que, com seu trabalho,
ronegócio, o que lhes exige ao mesmo criam, reproduzem e alteram aquela
tempo resgatar e reinventar práticas determinada forma de organização do
sociais e formas de luta, de resistência e agroecossistema, e que nesse processo
enfrentamento. A agroecologia, em sua também vão modificando sua maneira
dimensão de ciência, é então tensionada de pensar, de ser e estar no mundo. Não
a integrar, ao seu corpo de conhecimen- se trata, portanto, de pensar conceitos e
tos, uma chave de leitura que permita ra- significações simbólicas descolados das
dicalizar sua abordagem social. Falamos condições objetivas de vida (Loureiro,
aqui da necessidade de apropriação dos 2015), mas de levar em conta as mun-
fundamentos da concepção materialista dividências, tradições, saberes, projetos
E e dialética da história, para ir à raiz e necessidades dos sujeitos, as quais vão
da forma capitalista de agricultura, do se constituindo e sendo expressas nas
funcionamento da sociedade burguesa, interações com os elementos bióticos e
compreendê-la em suas contradições e abióticos ali presentes – ainda que no
na sua dimensão histórica e, portanto, contexto mais amplo das relações sociais
passível de superação, de reconstrução e sob coerções sistêmicas.
social e ecológica.
As elaborações dos movimentos, Delimitação
temperadas na luta e experimentadas na Pode-se considerar um agroecos-
prática social, dialogam com e incorpo- sistema a partir de um enfoque mais
ram dialeticamente elementos de diver- ou menos restrito: desde um campo de
sos autores e vertentes, reconhecendo cultivo agrícola ou uma horta urbana;
a existência de diferentes concepções. uma unidade de produção, individual ou
Sem pretender esgotar o tema, nem es- coletiva (estabelecimento rural, assenta-
tabelecer princípios gerais, elencamos a mento de reforma agrária); um território
seguir algumas abordagens no caminho ou região; até o sistema agroalimentar.
da epistemologia da agroecologia, inda- Em qualquer uma dessas escalas, um
gando criticamente sobre quais teorias, agroecossistema não está isolado; nele se
conceitos e procedimentos contribuem expressam ao mesmo tempo processos e
para se conhecer um agroecossistema. determinações ecológicas e sociais, mes-
mo que não imediatamente perceptíveis.
Centralidade dos sujeitos
Um agroecossistema [ver Agroecos­ Inter-relações e conexões
sistema] é um ecossistema alterado pelo Por meio dos ciclos biogeoquímicos,
trabalho humano com finalidades pro- um agroecossistema está conectado à
dutivas; é também a objetivação de uma biosfera, a qual tem existência anterior
determinada forma de se fazer agricultu- e independente do ser humano. Esse mo-
ra. Não é, portanto, um dado imediato vimento ativo e dinâmico, de interações
da natureza. Assim, é preciso considerar bióticas e abióticas, pode ser captado na
a centralidade dos sujeitos camponeses sucessão ecológica (Vernadsky, 2019). A
que nele vivem para adequadamente vida não se adapta passivamente; ela faz
“conhecer” um agroecossistema; le- e refaz seu próprio ambiente (Margulis,
vantar o “universo temático” (Freire, Sagan, 2002), e pressiona pela apreensão

398
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

de qualquer espaço livre da biosfera: “Na construíram um processo dialético


superfície terrestre, não há força química de resistência, enfrentamento e in-
que atue de forma mais permanente e, corporação da agricultura capitalista.
portanto, mais poderosa em seus efeitos Essa dinâmica produziu historicamente
finais do que os organismos vivos como formas próprias de experimentação,
um todo” (Vernadsky, 2019, p. 37). de produzir, organizar e sistematizar
A partir do seu surgimento como o conhecimento, possuindo critérios
espécie que altera intencionalmente o próprios de validação (Arroyo, 2014).
ecossistema, o ser humano, como ser No seu processo histórico de c­ oevolução
social, participa na sucessão ecológica, com os agroecossistemas que manejam,
coevoluindo em processos agricultu- produziram (e produzem) saberes que
rais contraditórios – ora sinérgicos, são fruto de investigação empírica sis- E
complementares com a natureza, ora temática (observação, experimentação)
antagônicos, depredatórios. Importa, e passaram pela “prova do tempo” (ou
portanto, identificar no agroecossiste- seja, sobreviveram como válidos ao
ma tanto os fluxos de matéria e energia largo de várias gerações), o que pode
quanto os fluxos de trabalho e renda, as lhes conferir credenciais epistêmicas
potencialidades assim como os limites, sólidas do ponto de vista da ciência
perdas e contradições. (Lacey, 2019). Esses agroecossistemas
A relação entre o ser humano e o tradicionais foram, é importante lem-
restante da natureza, a que podemos brar, a base material que permitiu aos
chamar de metabolismo, é mediada pesquisadores identificar os princípios
pelo trabalho, pela produção da vida elementares da agroecologia.
material (Foster, 2005); [ver M etabo ­ Para que se estabeleça um diálogo
lismo S ocioecológico], o que implica o de saberes entre os sujeitos camponeses
estabelecimento de determinadas rela- e pesquisadores/técnicos em torno de
ções também entre os seres humanos, um objeto comum de conhecimento
que vão assumindo formas distintas ao (o agroecossistema), é importante ter
longo da história. É preciso, portanto, presente que cada um desses sujeitos
localizar historicamente essas relações “leva consigo seu conhecimento e sua
para perceber como se materializam no ignorância” nesse processo; cabe então
agroecossistema. Na sociedade capitalis- perguntar de antemão qual é o “erro
ta, isso passa necessariamente pela críti- típico” que cada grupo costuma cometer,
ca da Economia Política (Foster, 2005; para que o ponto de partida seja “a auto-
2020; Levins, 2015), pela compreensão consciência de uma ciência crítica de si
crítica do funcionamento da economia mesma” (Levins, 2015, p. 26) [ver Educa­
do capital, em especial na agricultura, ção Popular em Agroecologia]. Isso passa
incluindo os meios de apropriação da também por reconhecer as diferenças de
riqueza socialmente produzida pelo cam- poder que cada sujeito dessa relação tem
pesinato [ver Campesinato]. na sociedade de classes.

Diálogo de saberes Totalidade, movimento e contradição


Os povos originários e tradicio- “Redução” é uma “tática investiga-
nais, as camponesas e camponeses tiva”, consistindo na busca dos elemen-

399
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

tos constitutivos daquilo que se deseja diferentes tipos e velocidades, havendo


conhecer. Já reducionismo é a pretensão processos homeostáticos e outros “[...]
de que essa redução às unidades ou que subvertem o sistema dentro do qual
partes fundamentais seja suficiente para se desenvolvem” (Levins, 2015, p. 26).
conhecer algo (Levins, 2015), quando Entretanto, ao considerar os processos
ao contrário, os elementos ou partes se e conexões, é preciso cuidado para não
encontram sempre em inter-relação e os desprender da materialidade do que
em determinações recíprocas, formando se conecta. Mesmo os processos sociais
conjuntos auto-organizados e estrutu- têm uma dimensão material.1
rados (totalidades), num permanente Cada objeto de certa complexidade
movimento entre conservação e trans- é internamente heterogêneo, de ma-
E formação (Bottomore, 1988). Como neira que apresenta processos confliti-
apontamos acima, um agroecossis­tema vos, contrários, e um mesmo processo
pode ser compreendido como uma to- produz fatores opostos. Por exemplo,
talidade complexa (que se encontra, internamente ao organismo temos
por sua vez, inserida em totalidades “[...] o sistema nervoso simpático e
maiores), cujos componentes encon- parassimpático; autônomo e voluntário;
tram-se em interação dinâmica, onde, inflamatório e anti-inflamatório” (Le-
em cada nível de organização (popula- vins, 2015, p. 26); entre organismos de
ção, comunidade, ecossistema), se ex- espécies diferentes, há associações “que
pressam propriedades emergentes, que podem ser simultaneamente parasíticas
não estavam presentes no nível anterior e mutualísticas em diferentes condições
(Gliessman, 2001). ambientais” (Carrapiço, 2009, p. 14)
Entretanto, estudar “tudo” de uma [ver Interações Ecológicas]. A ecologia
só vez é impraticável (além do que a lida com processos contraditórios, com
realidade é inesgotável, sua riqueza, “[...] a interdependência e a autonomia
infinita). É preciso fazer escolhas, de- relativa, com a semelhança e a diferen-
limitar um problema. Ao contrário do ça, com o geral e o particular, com o
reducionismo, que orienta a começar acaso e a necessidade, com o equilíbrio
pelo menor problema possível, podemos e a mudança, com a continuidade e a
“elaborar um problema suficientemente descontinuidade (Lewontin; Levins,
grande para que caiba uma solução, [...] 1985, 2 apud Foster, 2005, p. 32-33).
cruzando fronteiras” entre campos dife- Assim, um bom ponto de partida no
rentes do conhecimento, identificando enfrentamento de um problema novo
variáveis que se influem mutuamente pode ser identificar quais são seus fato-
em escalas semelhantes, e perguntando res opostos (Levins, 2015).
regularmente pelo “resto do mundo”
(Levins, 2015, p. 31-32), para localizar Conexão entre as Ciências da Natureza
o problema em suas relações com a e as Ciências Sociais e Humanas
totalidade. Embora a crítica à dissociação his-
Além disso, é preciso estar atento tórica entre as ciências da natureza e as
ao fato de que mesmo aquilo que parece ciências sociais e humanas possa pare-
fixo é algo como a fotografia de um cer algo recente, a dialética marxiana
processo. Os processos podem ser de já insistia em uma “conexão perpétua

400
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

e íntima” entre elas (Foster, 2005, p. dialética entre os processos naturais e


21), uma vez que estudam dimensões as relações sociais.
intimamente interligadas e interde-
pendentes. Nessa abordagem, contudo, Encerrando o texto,
nem a sociedade nem a natureza são seguindo com o debate
inteiramente ­subsumidas uma na ou- Como toda ciência, a agroecologia
tra; e nosso próprio conhecimento da precisa “[...] construir o seu método,
natureza é considerado “[...] um produto abrir o seu caminho, e não buscá-lo em
do nosso metabolismo social e humano, ciências-fetiche. Não existem c­ iências
ou seja, nossa relação produtiva com o por excelência e não existe um método
mundo natural” (Foster, 2020, p. 10). por excelência, ‘um método em si’”
Essa conexão precisa se fazer de ma- (Gramsci, 2001, apud Ferraro, 2015, E
neira cuidadosa, para evitar aquilo que p. 130). A epistemologia da agroeco-
se critica – uma das ideias fundamentais logia encontra-se ainda em aberto,
do positivismo é justamente a de que a em construção, com fundamentos
sociedade seria regida por leis naturais teóricos e bases filosóficas diversos,
(Löwy, 2009). Uma vez que inicialmente não necessariamente convergentes,
pode ser necessário recorrer a analogias alguns complementares, outros con-
e metáforas, é preciso estar atento à flitantes. A pesquisa em agroecologia
tendência à antropomorfização da na- pode dialogar com o acúmulo de outras
tureza (nela projetando ideias, valores e estratégias de pesquisa, e conhecimen-
sentimentos humanos) e à zoomorfização tos produzidos desde referenciais teó-
da sociedade humana (explicação do rico-metodológicos diferentes podem
seu funcionamento com base direta conf luir para o mesmo objetivo de
na herança genética, no instinto, na denunciar, enfrentar e superar a ex-
termodinâmica etc.), que, conectadas às ploração da natureza e do ser humano
formas materiais de reprodução do capi- como parte integrante dela.
tal, acabam se tornando ideológicas. São Na agroecologia, busca-se conhecer
exemplos: genes “egoístas” e “sobrevivên- para transformar – transformar práticas
cia dos mais aptos”; “custos”, “benefício” sociais de produção, e mais amplamente,
ou “prejuízo”, “progresso”, “sucesso”, a relação humana com a natureza, de
“guerra”, “competição” e “investimento”, modo a reconhecer “o caráter inegociá­
referidos a processos ecológicos (Sacar- vel de nossas conexões” com as demais
rão, 1986), e ainda, “recursos naturais” espécies (Margulis, Sagan, 2002, p. 20):
e “capital natural”. a agroecologia como um acrescentamento
A conexão entre as Ciências Natu- à emancipação humana, e a emancipação
rais e as Ciências Humanas e Sociais, humana como determinação social da
tão necessária à agroecologia, implica agroecologia. Como práxis, convida,
o reconhecimento da especificidade de face ao desafio, a não se deixar seduzir
cada uma dessas dimensões e a recusa por soluções simplificadoras e desmobili-
às transposições mecânicas de uma zadoras das lutas coletivas, que apostem
dimensão à outra; ela reside na busca isoladamente “na ética, na técnica, no
por uma verdadeira reconstrução con- conhecimento abstrato ou no compor-
ceitual, a partir da complexa conexão tamento como variáveis dissociadas da

401
EPISTEMOLOGIA DA AGROECOLOGIA

materialidade social” (Loureiro, 2015, p. tico (transformar-se transformando o


173). Convoca a olhar também para além mundo), desde que inserida em um pro-
da ciência, para a potência da agroeco­ cesso social emancipatório, em conflito,
logia enquanto possibilidade da práxis enfrentamento, luta contra o capital e sua
camponesa, atualizada no seu fazer prá- forma direta como agronegócio.

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Notas
1
“Ainda que as estruturas sociais sejam dependentes da consciência que os sujeitos tenham de que
as reproduzem e transformam, não são redutíveis a sua consciência. [E] as práticas sociais não se
esgotam em seus aspectos conceituais” (Bhaskar, 2016, p. 3).
2
Edição em espanhol: Lewontin, Richard; Levins, Richard. El biólogo dialéctico. Ciudad Autónoma E
de Buenos Aires: RyR, 2015.

ESTADO

S onia R egina de M endonça

Os liberais e o Estado Para tanto, serão abordadas as gran-


O principal objetivo deste texto des matrizes teóricas que foram – e ainda
é apresentar as principais matrizes de são – concorrentes entre si, produzindo
concepção do Estado vigentes no mundo sentidos antagônicos e presentes, até
ocidental, desde o século XVII até os dias hoje, nos debates acerca do Estado: a
atuais. Pretende-se analisar os pressupos- liberal e a marxista.
tos teóricos centrais dessas matrizes, bem A matriz filosófica liberal tendeu a
como as tensões até hoje existentes entre sobrepor-se às demais, tendo influen-
elas, as quais, muitas vezes, conduzem a ciado boa parte das ref lexões sobre
uma visão “coisificada” ou “personalis- as bases do Estado e da política. Ela
ta” do que seja o Estado. Leituras como se baseou em uma jovem Economia
essas, derivadas do paradigma liberal, Política, na escola histórica escocesa,
varrem “para baixo do tapete”, conceitos além de ter recebido contribuições de
caros à concepção socialista do Estado, teorias utilitaristas (Fontana, 1982;
como os de classes sociais, sujeitos co- Macpherson, 1978).1 A matriz liberal
letivos, disputas de hegemonia, lutas de elaborou uma percepção de sociedade
classe etc. O eixo orientador do verbete é composta por indivíduos “em estado
a premissa de que o Estado é, ele mesmo, de natureza”, com pleno exercício de
uma relação social. seus interesses egoístas e belicosos,

403
E S TA D O

capazes de inviabilizar, no limite, a duos e a sociedade, dotado de iniciativa


reprodução da espécie. Partindo dessa própria e imune às pressões sociais dos
premissa, pensadores liberais definiram “de baixo”, difundiu noções ainda hoje
o Estado como fruto de um contrato, presentes nos discursos cotidianos, tais
firmado entre cada indivíduo e seu como “o Estado fez”, “o Estado decidiu”
governante, apto a assegurar os chama- ou mesmo “o Estado tinha intenção de”,
dos direitos “naturais” fundamentais: a sempre negando os conflitos sociais exis-
vida e a propriedade. A despeito dessa tentes em cada contexto histórico, já que
matriz ter travado ferrenha luta contra deste prescindiam os pensadores liberais.3
a Igreja e sua visão de um poder ema- Dessa matriz derivaram várias “li-
nado do direito divino, o Estado era nhagens”, resultantes das significativas
E apresentado como um pacto dotado modificações políticas relacionadas às
de duas frentes: o monopólio legítimo lutas populares do século XIX, quando
da violência física e uma racionalidade a emergência da sociedade de massas
que lhe seria imanente, a pairar acima tornou necessário reconfigurar a teoria.
e fora da sociedade. Uma dessas novidades foi a Teoria das
O Estado liberal era apresentado, Elites, elaborada pelos italianos Gae-
assim, como um “sujeito de razão” de- tano Mosca (1992) e Vilfredo Pareto
rivado do direito natural e inerente à (1984), tendo por pressuposto que toda
tradição iniciada pelos “três grandes sociedade contém, naturalmente, uma
pensadores”: Hobbes, Locke e Rousseau, minoria formada por indivíduos “seletos”
a despeito das várias diferenças entre eles e “iluminados” que, portando atributos
existentes. Tais divergências, todavia, especiais – como riqueza, conhecimento,
seriam superadas pelo método por eles dons etc. –, deteriam, também natural-
gestado, capaz de transformar as ciências mente, o poder de dirigir a maioria.
humanas em algo tão rigoroso e passível Nessa reapropriação da matriz li-
de demonstração quanto as ciências beral, esbarramos com um forte viés
exatas, tomando a matemática como abertamente pautado por princípios
seu paradigma. Partindo desse pressu- anti-igualitários e antidemocráticos,
posto, trataram de criar leis universais muitos deles ainda em voga e responsá-
da conduta humana, que comprovassem veis, no plano cultural e simbólico, por
a repetição do comportamento humano, transmutar capitalismo em neoliberalis-
verificável em todo e qualquer tempo, mo, em uma operação que oculta/abole
tirando sua dimensão histórica.2 categorias fundantes do capitalismo,
Por seu caráter a-histórico, a noção como a superexploração dos trabalha-
de Estado divulgada pelos liberais de- dores, a superextração de sobretrabalho,
sembocou em uma leitura de “sociedade a preponderância de grupos dominan-
civil” como o somatório de indivíduos tes derivados do capital financeiro ou
sem atributos que os vinculassem entre mesmo a existência das lutas de classes
si, fazendo crer – como até os dias atuais – intra e entre elas –, dentre outros esca-
– que a sociabilidade humana somente moteamentos político-ideologicamente
verifica-se no âmbito do político, o que nocivos e desmobilizadores dos movi-
não era/é fato. A consolidação de um mentos sociais organizados ou em vias
Estado “sujeito”, a pairar sobre os indiví- de organização.

404
E S TA D O

A matriz marxista e a classe que assegurava as condições da


disputa teórica pelo Estado reprodução ampliada do capital e simul-
O século XIX viu nascer, em seus taneamente sufocando/controlando as
primórdios, com o filósofo alemão G. contradições dela decorrentes.
W. F. Hegel, as primeiras críticas con- Alguns marxistas posteriores tende-
tundentes à concepção liberal de Estado, ram, entretanto, a fazer derivar as rela-
discordando ele, veementemente, de seu ções políticas ou culturais diretamente
cunho a-histórico e da ideia de um “con- de uma base econômica cristalizada,
trato social” que transferia ao governan- tornando o Estado uma espécie de objeto
te todos os poderes. Além dessas críticas, manipulado por uma classe dominante
somava-se outra, relativa à perspectiva supostamente homogênea. Tais apropria-
individualista de conceber-se o Estado. ções mecanicistas devem ser vistas como E
A obra de Marx e Engels promoveria a a “vulgata” do marxismo, aproximando-
total ruptura com o liberalismo, desde -se do estruturalismo e originando uma
seus fundamentos econômicos até seus tradição pouco dialética e histórica, de
desdobramentos políticos e históricos. grande penetração no meio universitário.
Na matriz marxista, se há uma Outros desdobramentos do marxismo,
natureza humana biológica, ela é du- todavia, ativeram-se às bases originais e
plicada por uma forma especificamen- avançaram na construção teórica sobre
te sócio-histórica de existência, que a composição e as transformações do
integra as transformações produzidas Estado capitalista.
pelos próprios seres sociais tanto sobre Abrimos um parêntese para mencio-
a natureza quanto sobre o conjunto das nar que, na década de 1970, em meio ao
relações junto das quais se inserem. A escasso debate historiográfico sobre as
isso denominamos historicidade. Assim, relações entre Estado, cultura e política,
a sociabilidade deixava de restringir-se outras vertentes teóricas passaram a
ao plano do político como espaço, por enfatizar a temática do poder, desco-
excelência, de exercitar-se a vontade nectando-a, contudo, do Estado. Vale
coletiva.4 O Estado não procede de um destacar a contribuição de Michel Fou-
pacto. Ele surge do conjunto das relações cault, talvez o autor mais influente junto
sociais para assegurar a continuidade da aos estudos sobre o poder, especialmente
produção e reprodução de sua existência. entre historiadores. Para ele, tratava-se
Ele tampouco consiste em uma exigência de buscar, nos mínimos espaços sociais,
da natureza humana, resultando das como os poderes se multiplicavam, re-
diferenciações inerentes à vida social, produzindo estratégias de dominação e
derivadas da divisão da sociedade em criando novos mecanismos de opressão/
classes. Nesse viés teórico, o poder do subordinação. Deixando de lado a cen-
Estado deita suas raízes nas formas de tralização e o controle exercidos pelo
dominação presentes na cena social Estado, o foco passou a incidir sobre a
(econômicas, sociais, culturais, políticas capilaridade de micropoderes (Foucault,
etc.). Marx, rastreando as bases sociais 1979) sustentando uma historiografia
do processo de produção/reprodução do não propriamente política, porém cul-
capital, aponta o Estado como a orga- turalista, com ênfase na análise das
nização do conjunto da dominação de representações, ritos e símbolos de poder.

405
E S TA D O

Retomando as grandes transforma- resgata conceitos clássicos do marxismo


ções sócio-políticas ocorridas no alvore- – como os de sociedade civil e sociedade
cer do século XX, ressaltamos que, dos política – porém as recria, recriando, ao
próprios domínios do marxismo, outras mesmo tempo, o conceito de Estado –
concepções sobre o Estado emergiram, integral ou ampliado – que incorpora,
merecendo relevo aquela elaborada pelo dialeticamente, ambas as instâncias.
filósofo e militante comunista italiano Segundo o pensador sardo, não
Antonio Gramsci, ainda nos anos 1930. mais seria possível, na análise do Esta-
A grande questão norteadora de suas do capitalista contemporâneo, operar
reflexões foi, justamente, a necessidade de com uma lógica dual, sendo necessá-
refinar a definição do Estado “ocidental” rio assentar-se em uma lógica triádica
E contemporâneo, enfatizando a complexi- que englobava, em uma totalidade, a
dade de suas determinações e criticando infraestrutura (espaço das relações de
a leitura “economicista” ou “mecanicista”. produção e de trabalho); a sociedade
Sua principal contribuição, claramente civil (formada pelo conjunto dos sujeitos
no âmbito do marxismo, é o conceito de sociais organizados junto aos chamados
Estado Ampliado elaborado a partir de aparelhos privados de hegemonia, espa-
uma análise fortemente histórica, tanto ços promotores da ação política cons-
no tocante à construção das formas de ciente, capitaneados pelos intelectuais
intervenção social de classes, grupos e orgânicos de uma dada classe ou fração
frações de classe, quanto no sentido de dela, quer do capital, quer do trabalho,
imbricar a expansão socioeconômica em disputa pela afirmação hegemô-
capitalista à política e ao Estado. nica de seus respectivos projetos); e a
O conceito de Estado ampliado per- sociedade política (ou Estado restrito,
mite analisar a íntima correlação entre identificado aos aparelhos e agências
as formas de organização das vontades do poder público).5
(singulares e coletivas), a ação e a própria Todavia, para ele, o Estado restrito
consciência (desenvolvidas no âmbito da jamais pode ser concebido no registro
sociedade civil) – sempre enraizadas na da pura coerção pois, se assim o fosse –
vida socioeconômica – e as instâncias levando em conta o contexto italiano de
específicas do Estado em seu sentido afirmação do fascismo, pano de fundo de
restrito (sociedade política). Com isso, suas reflexões –, seria inexplicável que os
Gramsci supera a dualidade das análises mais oprimidos e despossuídos da Itália
que contrapunham a base à superestru- (camponeses) venerassem um ditador.
tura, integrando a sociedade civil e a Percebe-se que o Estado, em Gramsci,
sociedade política em uma só totalidade, conta com outra dimensão além da força e
em permanente inter-relação. do poder político-econômico da burguesia:
O Estado, para Gramsci, não seria a cultura. Mas não aquela dos eruditos,
“sujeito” nem “objeto”; seria uma relação porém o conjunto dos projetos e visões
social, ou melhor, a condensação das de mundo – valores, crenças e autoper-
relações sociais presentes em uma dada cepções de indivíduos e grupos sobre seu
sociedade (Poulantzas, 1980), sendo lugar social – desenvolvido por cada classe
por elas atravessado, absorvendo, nele ou fração dela, em permanente disputa.
mesmo, os conflitos nela presentes. Ele Afinal, segundo ele, todos os homens

406
E S TA D O

são intelectuais, pois mesmo os trabalhos intelectuais produtores da hegemonia das


físicos mais mecânicos exigem um mínimo classes dominantes ou de suas frações.
de atividade intelectual criadora (Gramsci, Sempre atento às contradições que
2001, p. 18). Com isso, Gramsci destaca a realidade do processo produtivo capi-
a capacidade organizativa das vontades talista amplifica, o filósofo pondera que,
coletivas exercida por intelectuais oriundos dado ao fato de certos grupos sociais nem
das classes subalternas. sempre conseguirem organizar-se e gerar
Logo, o Estado guarda também uma sua própria visão de mundo (pela dificul-
dimensão de consenso, obtido a partir da dade em manter seus próprios aparelhos
ação das vontades coletivas organizadas privados de hegemonia), acabam por ado-
junto aos aparelhos de hegemonia da tar como sua a visão de mundo de outros
sociedade civil, e da atuação do Estado grupos, via de regra os dominantes. Essa E
restrito, que generaliza a visão/projeto é a premissa da dinâmica da hegemonia,
da fração de classe hegemônica num ou seja, quando a cultura de uma classe,
dado bloco histórico. É a disputa pela ou fração dela, se impõe sobre todas as
hegemonia de certa fração de classe que demais, promovendo o consenso.
institui a política e o Estado ampliado, À guisa de conclusão, é possível
ambos indissociáveis da cultura. Para afirmar que, partindo dos conceitos
tanto, o filósofo ref lete sobejamente de Estado ampliado e de intelectuais
sobre o papel dos intelectuais, já que, orgânicos de Antonio Gramsci, torna-
no capitalismo ocidental, cuja sociedade -se impraticável supor o Estado sem a
civil se complexificou em função das participação de intelectuais ligados às
lutas populares, o intelectual detém uma classes subalternas, organizadores das
função social específica. lutas contra-hegemônicas. Uma vez
Não por acaso seu primeiro exem- que o intelectual é, para Gramsci, um
plo remete ao organizador do processo persuasor permanente, abre-se, necessa-
produtivo (burguês) e seus “gestores”, riamente, a possibilidade e imperiosidade
difusores de certa concepção de natureza, de os subalternos multiplicarem seus
vida social e, em particular, disciplina e próprios aparelhos privados de hegemo-
obediência. Eles desempenham, pois, o nia (partidos), visando contraporem-se
papel social de intelectuais orgânicos, e se defenderem da crescente domina-
que os liga ao processo de produção da ção de classes, através da formação e
existência, mas também à reprodução reprodução de seus próprios intelectuais
das formas de ser por ela requeridas. São orgânicos (Gramsci, 2000, p. 85).

Referências
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FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Tradução: Roberto Machado. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
_______. Cadernos do cárcere. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
MACPHERSON, C. B. A democracia liberal: origens e evolução. Tradução: Nathanael Caixeiro. Rio
de Janeiro: Zahar, 1978.
MENDONÇA, S. R. Estado e Sociedade. In: BADARÓ, M. (org.) História: pensar e fazer. Rio de Janeiro:
Laboratório Dimensões da História, 1998.
_______. Estado. In: CALDART, R. S. et al. (org.) Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro/
São Paulo: EPSJV/Expressão Popular, 2012.

407
E S TA D O

_______; FONTES, V. História e Teoria política. In: CARDOSO, C. F.; VAINFAS, R. (org.) Novos
domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
_______. O Estado Ampliado como ferramenta metodológica. Marx e o marxismo, v. 2, n. 2, jan/jul, p.
26-43, 2014.
MOSCA, G (1992). La classe politica. México: Fondo de Cultura Econômica, 1992.
POULANTZAS, N. O Estado, o poder e o socialismo. Tradução: Rita Lima. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

Para saber mais


BOBBIO, N.; BOVERO, M. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. Tradução: Carlos Nelson
Coutinho. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
GRYNSZPAN, M. Ciência política e trajetórias sociais: uma sociologia histórica da teoria das elites. Rio
de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999.
NEGRO, A. L.; SILVA, S. (org.). E. P. Thompson. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas:
Ed. Unicamp, 2001.
NEVES, L. M. W. (org.) A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso.
E São Paulo: Xamã, 2005.

Notas
1
Este trecho encontra-se desenvolvido em capítulo de livro elaborado por Mendonça e Fontes, 2012.
2
Estas formulações derivam das reflexões por mim desenvolvidas em Mendonça, 2014.
3
Esse trecho deriva de capítulo de livro anteriormente elaborado por Mendonça, 1998.
4
Esse trecho foi anteriormente desenvolvido em Mendonça, 1998.
5
Esse trecho foi desenvolvido anteriormente em Mendonça, 1998.

408
F
FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

I r idia ni G r aciele S eibert


L iza ndr a G uedes
K elli M afort

Naquele momento já não se ouvia política, social e ambiental. O capital,


mais a respiração, porque havia outros ao seguir seu impulso expansivo e de
sons mais fortes, o som da quebra das
apropriação/dominação, não admite
correntes nos arrepiava, nos provo-
cava gritos emocionados, como se nenhum tipo de obstáculo, mesmo que
aquelas correntes que identificavam o interfira em questões éticas, de direitos
latifúndio não fossem só isso, e de fato adquiridos ou territórios conquistados.
não eram. É nessa concentração, nesse Vivemos um retrocesso impressio-
poder que se apresentam o tráfico,
nante em direitos que até então pare-
a exploração, a violência, e a apro-
priação de nossos corpos, de nossas ciam intocáveis, que atingem princi-
vidas, de nosso trabalho e do poder de palmente os mais pobres, proletários
dominação. do campo e da cidade, com pouca ou
Aquelas correntes de fato tão nenhuma autonomia sobre o processo
fortes, tão grossas, malditas, pesadas
produtivo e os meios de produção. A
e cruéis tinham que ser quebradas,
rompidas, estraçalhadas. O ‘tililim’ do intensidade da precarização da vida
impacto do machado e da marreta na não atinge a classe trabalhadora da
quebra das correntes que nos aprisio- mesma forma, pois cada vez mais so-
nam soava como uma música clássica mos provocadas/os a compreender as
aos nossos ouvidos tão desacostuma-
determinações sociais que constituem
dos a escutar.
Witcel, 2019 a nossa classe quanto a gênero, raça,
diversidade sexual e posição geracional.
A barbarização humana O capital persegue, fere e mata
e a urgência do feminismo principalmente aqueles/as que já são
A crise atual tem caráter estrutural historicamente considerados, nas so-
e sua duração é prolongada, com aspec- ciedades de classes, como subordinados
tos incontroláveis que afetam todas as e passíveis de uma intensificação dos
dimensões da vida humana – econômica, processos de exploração. Por isso a
FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

naturalização sobre o barbarismo é tão das desigualdades e que se nutre da


funcional para o comodismo da classe exploração humana.
trabalhadora, e mesmo quem se importa Não é somente o conjunto das
com essas vidas humanas ceifadas, por classes que precisa reconhecer as dife-
vezes, se sente contemplado com uma renças e criar espaços de participação.
dada luta setorial, sem nada fazer para A questão atual está para além disso,
alterar as estruturas dominantes basi- pois em tempos de crise profunda do
lares da sociedade de classes. capital, ampliação da precarização
O sistema hegemônico está estru- do trabalho, desemprego estrutural,
turado essencialmente no domínio das naturalização da violência, encarcera-
forças do capital, sobre as forças do tra- mentos em massa, migrações forçadas,
balho. No entanto, existem outros pilares mercantilização acentuada dos bens
históricos que sustentam a sociedade de naturais etc., nosso maior desafio é
classes: o patriarcado e o racismo. E é retomar a luta ofensiva, e para tal, é
F justamente na crise em que tais estru- fundamental se imbuir coletivamente
turas de dominação se evidenciam com do posicionamento político de quem
mais força, pois convivemos com um tipo não teve direito à trégua, mesmo em
de desemprego que é estrutural e uma tempos de aparente calmaria.
parte da humanidade passa a ser siste- A vida das mulheres trabalhadoras
maticamente descartada. Dessa forma, o é uma luta diária, e quanto mais se so-
capital abre mão do seu discurso liberal, brepõem as dominações, mais potencial
de igualdade, ainda que falacioso, pois de reação está ali contido. É por isso
a desigualdade precisa ser assimilada, que quando uma mulher trabalhadora
naturalizada e defendida, inclusive pelos se move, vai rompendo as correntes de
mais atingidos por ela. classe e da sociedade patriarcal, estrutu-
Nesse contexto, o racismo, o ma- rante da desigualdade de gênero.
chismo, a misoginia, a lgbtfobia e o No campo, em uma perspectiva con-
desprezo aos mais pobres assumem pa- tinental e mundial, as mulheres foram
tamares insuportáveis, jogando ao chão se organizando a partir de suas distintas
qualquer ideia de avanço progressista, realidades, mas com a necessidade co-
apoiado em uma esfumaçada crença de mum de enfrentar a origem da opressão
evolução da humanidade. As sociedades de gênero que está no cerne da sociedade
não só avançam e não só regridem, pois de classes, que através do patriarcado foi
são resultantes das lutas de classes; assim, perpetuando a divisão sexual do trabalho
fica evidente que a velha sociedade não pelos diferentes modos de produção.
será enterrada através da luta que se A construção social da subordina-
coloca apenas contra um de seus pilares ção da mulher foi imposta através de
de sustentação. diferentes formas de dominação e,
Por isso as lutas feministas, antipa- principalmente, por meio da violên-
triarcais, antilgbtfóbicas e antirracistas cia, desempenhada pelos homens e
são fundamentais não somente para pelo Estado, e consentida por toda a
“corrigir” mazelas da desigualdade, mas sociedade. Cotidianamente, as diver-
ao contrário, para destruir os pilares sas expressões da violência contra as
mulheres foram sendo naturalizadas,
que estruturam a sociedade geradora

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FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

como se a mulher precisasse ser cas- bens naturais pelas empresas transna-
tigada até aprender qual é o seu lugar cionais, a padronização das commodities
na sociedade. (Movimento dos Tra- agrícolas e minerais como modelo he-
balhadores Rurais Sem Terra, 2015) gemônico no campo e o forte aparato
Antes do surgimento do feminismo do Estado, subsidiando o capital, com
– como um movimento social, político financiamentos públicos, perdão de
e cultural no século XIX –, as mulheres dívidas e um amplo arcabouço jurídico/
já organizavam distintas formas de resis- institucional. Tais questões impedem
tência diante das imposições dominantes avanços concretos na democratização
das sociedades de classes, e muitos foram do acesso à terra, na reforma agrária,
os processos de enfrentamento a esses na demarcação de territórios indíge-
sistemas societários. É deste legado his- nas, no reconhecimento de territórios
tórico que surge o feminismo, e muitos camponeses e quilombolas e em uma
movimentos feministas foram criados plataforma de políticas públicas volta-
com o avanço das lutas das mulheres por das para o fortalecimento da pequena F
sua emancipação, vinculados a diferentes agricultura, e em defesa dos povos do
correntes teóricas e políticas. campo, das águas e das florestas.
Na perspectiva do feminismo das As mulheres do campo têm desen-
trabalhadoras, e, portanto, de luta por volvido um processo de resistência e
emancipação humana, estamos cons- lutas frente a esse modelo, e a maior
truindo o feminismo camponês e po- expressão disso ocorre nas ações do 8 de
pular – com identidade e revolucionário. março, dia internacional das mulheres,
Suas bases estão estruturadas a partir tal como a ação protagonizada pelas
de uma análise da realidade do campo mulheres da Cloc/Via Campesina Brasil,
em nível mundial, que identifica ele- em 2006, um marco histórico que teve
mentos comuns em toda parte onde como simbologia a destruição de mudas
atuamos como Via Campesina/Cloc: de eucalipto nos viveiros da empresa
a apropriação e especulação sobre os Aracruz celulose.

Feminismo – Movimento social e político de enfrentamento ao patriarcado,


à divisão sexual do trabalho e às manifestações do machismo, do racismo, da
lgbtfobia, da gordofobia etc.
Camponês – Sob a perspectiva das mulheres e dos movimentos sociais do campo,
abarcando os povos da floresta e das águas.
Popular – Com um posicionamento político de classe, no desafio da construção
do poder popular.
com Identidade – A partir das cosmovisões presentes nos diferentes povos e
etnias, vinculando a luta pela terra ao território.
e Revolucionário – Rompendo com as estruturas de dominação e exploração
presentes nas sociedades de classes. Forjar a nova sociedade, uma sociedade
emancipada, uma sociedade socialista!
(MST, 2015)

411
FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

Feminismo, agroecologia logia para as mulheres do campo é parte


e soberania popular do seu modo de vida, é aquela agricultura
Segundo a Food and Agriculture que foi feita pelos ancestrais, pelos povos
Organization (FAO)(2018), as mulheres originários, ou seja, é a agricultura antes
rurais são responsáveis por mais de 45% da constituição da propriedade privada.
da produção de alimentos no Brasil, che- Pois era uma agricultura que surgia a par-
gando a 80% em outros países da América tir das necessidades locais, buscando ob-
Latina e Caribe; o seu empoderamento, servar e se inspirar nos ritmos e modos da
além de promover maior justiça social, natureza, uma agricultura possivelmente
poderá garantir a segurança alimentar descoberta pelas mulheres e trabalhada
do planeta e ampliar em 30% a produção por homens e mulheres. Mesmo sabendo
agrícola. No entanto, apesar deste evidente que o nome agroecologia é recente, as
protagonismo das mulheres na agricultura mulheres do campo conseguem ver e
e na alimentação, elas e as crianças são as compreender que suas origens estão em
F maiores vítimas da fome e somente 20% tempos remotos.
delas cultivam em suas próprias terras Na história recente da agroecologia
(Food and Agriculture Organization, construída como ciência, movimento e
2017). Além disso, ocorre um processo prática, ela surge como um enfrentamento
acentuado de feminização do trabalho direto ao modelo devastador da vida na-
agrícola assalariado, dado que “entre 1994 tural e social promovido pela Revolução
e 2000, as mulheres ocuparam 83% dos Verde [ver Agroecologia; Revolução Verde].
novos empregos no setor da exportação São as mulheres as primeiras a compreen­
agrícola não tradicional” (Vivas, 2012), der a importância dessa nova proposta
que apesar de representar maior renda e de organizar a vida no campo, pois esse
possibilidade de emancipação financeira era o modelo que se baseava na própria
das mulheres, carrega as marcas da repro- experiência camponesa, indígena e negra.
dução das desiguais relações de gênero na As mulheres viram suas práticas milenares
divisão do trabalho. serem resgatadas.
As mulheres do campo em sua luta A agroecologia valoriza as sementes
cotidiana produzem rupturas e desloca- que as mulheres guardaram, enquanto
mentos que abalam as estruturas do poder muitos camponeses se deixaram levar
patriarcal e dominante. São as mulheres do pelo tecnicismo da assistência técnica e
milho, que revolvem a terra, alimentam extensão rural, adotaram todo o pacote
reviravoltas no mundo e fazem renascer o da Revolução Verde e abriram mão de sua
sonho de um povo. soberania. A agroecologia valoriza a pro-
[...] Y parece enterrado el pueblo. dução a partir de um diálogo e integração
Pero el maíz vuelve a la tierra. dos diversos subsistemas da roça familiar,
Atravesaron el silencio ou da comunidade indígena e negra, va-
sus implacables manos rojas. lorizando assim aquela produção que nem
Desde la muerte renaceremos. era vista, mas que garantia a soberania
(Neruda, Arena Americana) alimentar dos povos e a diversidade na
Pensar sobre a agroecologia e o femi- alimentação da família.
nismo é pensar tradições, renovações, diá- A partir desse olhar é possível per-
logos e práxis revolucionárias. A agroeco- ceber que o trabalho realizado pelas mu-

412
FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

lheres camponesas, indígenas e negras é ressignificando este lugar, demonstrando o


muito importante para o fortalecimento valor social do seu trabalho e construindo
da estratégia de autonomia e soberania novas relações entre homens e mulheres no
camponesa, para a defesa dos territórios e trabalho de produção e de reprodução da
para a preservação da natureza. vida humana no seio familiar e em toda a
Mas a agroecologia também não está vida do campo (Movimento das Mulheres
fora da realidade das relações sociais cons- Camponesas, 2018).
truídas pelo sistema capitalista, patriarcal Para as mulheres do campo, a agroeco­
e racista. Essa realidade faz com que as logia não é apenas uma ideia, é um modo
contradições se expressem também na de vida. É concreto, faz parte da sua reali-
construção da agroecologia, que na me- dade, é ciência forjada em suas experiên-
dida em que cresce e ganha visibilidade cias e, por isso, é construída no dia a dia das
coloca as mulheres de volta na invisibili- mulheres e homens do campo (Movimento
dade em nome do trabalho da família, que das Mulheres Camponesas, 2018).
se expressa muitas vezes na valorização A construção do feminismo campo- F
apenas do trabalho dos homens. nês e popular – que vem das diversas lutas
Na divisão sexual do trabalho no travadas pelas camponesas, indígenas,
campo, as mulheres realizam tanto os mulheres negras do campo e assalaria-
trabalhos considerados pelo sistema capi- das – constrói soberania e autonomia
talista como produtivo e o trabalho repro- em diversos sentidos. Um deles é quando
dutivo, de cuidados, gerando uma intensa elas saem do aprisionamento da casa
e extenuante jornada de trabalho. Por ser e do espaço doméstico, iniciando seu
invisibilizado, o trabalho das mulheres processo de libertação, construindo sua
não é considerado como tal e em geral autonomia e capacidade de tomada de
não é entendido como gerador de renda. decisão, tornando-se sujeito político e so-
Não contabilizar o trabalho das mulheres cial, percebendo-se e valorizando-se como
do campo em dinheiro poderia não ser um trabalhadora (Movimento das Mulheres
problema, se nessa sociedade capitalista, Camponesas, 2018).
racista e patriarcal o valor das coisas não Para as mulheres do campo, a agroe-
fosse medido a partir do dinheiro. cologia somente poderá avançar e se efeti-
Dessa forma, uma das lutas centrais var como proposta política de resistência
do feminismo camponês e popular é dar ao capitalismo, e como fortalecimento
visibilidade e promover a valorização do modo de vida pleno para os povos do
do trabalho das mulheres do campo, ao campo, se avançar no reconhecimento
passo que também resgata e valoriza a do trabalho e da contribuição política
sua identidade, intrinsecamente vincu- das mulheres do campo na construção
lada ao trabalho realizado por elas na da agroecologia, na construção da resis-
construção da soberania alimentar a tência camponesa, e estabelecer como
partir da agroecologia. um de seus princípios o enfrentamento à
A agroecologia para as mulheres tam- exploração do trabalho, a todas as formas
bém é uma luta anticapitalista. Por isso, de desigualdade, opressão/dominação,
elas em suas lutas buscam dar destaque ao discriminação, como também a todas as
seu cotidiano de vida e de trabalho, porém, formas de violência praticadas contra as
a partir de uma perspectiva feminista, mulheres e populações negras e indígenas.

413
FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

O feminismo camponês e popular de Resistência Indígena, Negra e Popular


reivindica o campo como lugar e espaço que deu origem à Coordenadoria Latino-
de vida, a terra, os territórios, os bens -americana de Organizações do Campo
naturais, o resgate e a valorização da diver­ (Cloc)/Via Campesina, para articular a
sidade de culturas e identidades dos povos resistência às políticas neoliberais impos-
do campo, elementos centrais da luta tas e para fortalecer a defesa dos direitos
feminista e camponesa. Contudo, com e da soberania dos povos do campo e da
uma perspectiva crítica, também desvela classe trabalhadora.
e questiona as expressões culturais, sociais As mulheres inseridas nas lutas do
e econômicas, fundamentadas na ideologia campo em âmbito local, nacional e conti-
patriarcal e racista que se expressam no nental se conscientizam, na ação cotidia-
campo, reproduzidas por estes sujeitos: na, de que precisam lutar contra a invisibi-
o campesinato, os povos indígenas e po- lidade, pois muitas vezes estão alijadas das
pulações negras. Por isso, o feminismo instâncias decisórias, dos grandes debates
F camponês e popular busca ressignificar a políticos sobre os rumos do movimento
compreensão de campesinato, de povos do do campo no continente, e suas lutas
campo, que não oculte, em suas relações ficam relegadas a segundo plano e não são
sociais, culturas e identidades, no interior percebidas pelo conjunto das lutas coleti-
das famílias, nas organizações populares vas. Assim, elas se organizam em espaços
do campo, práticas e ideias patriarcais, de próprios das assembleias de mulheres para
discriminação, violência, desvalorização e garantir sua efetiva participação política
inferiorização das mulheres. em todas as instâncias e principalmente
O feminismo camponês e popular é nos espaços de tomada de decisão, com
a contribuição das mulheres do campo paridade conquistada de gênero, para
para avançar na construção de um projeto assumir coletivamente a transversali­dade
popular, com soberania dos povos sobre da discussão de gênero em todas as lutas e
seu território e sobre os rumos políticos do temas discutidos na Cloc/Via Campesina
país, onde as mulheres do campo e de toda (Coordenadoria Latino-americana de
a classe trabalhadora sejam protagonistas Organizações do Campo, 1997 e 2015).
neste processo de libertação e nesta outra A organização e luta das mulheres do
sociedade que buscamos construir. campo está inserida no seio das lutas po-
pulares do campesinato latino-americano,
Construção feminista nas lutas por direito à terra, ao território,
no âmbito da Cloc/Via Campesina aos direitos às sementes, à produção de
As mulheres do campo sempre esti- alimentos saudáveis e ao direito de viver
veram presentes e ativas nos processos de no campo com soberania e dignidade.
luta e resistência do campo nos diferentes Nasce no leito histórico de lutas contra o
contextos e momentos históricos. E não foi sistema de exploração capitalista com suas
diferente nas lutas de resistência à implan- expressões no campo – o modelo econômi-
tação do modelo neoliberal nas décadas de co, político e social do agro-hidro-minero
1980/1990 no continente latino-america- negócio – que massacra e usurpa os direi-
no. No marco das comemorações dos 500 tos e a vida do campesinato, dos povos
anos de “descoberta do continente” pelos indígenas e populações negras do campo.
colonizadores se constitui a Campanha Portanto, a luta das mulheres da Cloc/

414
FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

Via Campesina parte da compreensão da assumida pelo conjunto do movimento da


perspectiva de gênero e classe, entendendo Via Campesina (La Via Campesina, 2008).
que as desigualdades que afetam as mu- A partir dos processos políticos orga-
lheres do campo são estruturais de uma nizativos, das lutas concretas que mudam a
sociedade capitalista, patriarcal e racista, vida econômica, social e política da classe
e, assim, não se pode eliminar a opressão, trabalhadora, dos povos do campo, e em
dominação e exploração de gênero sem particular, das mulheres, encontram-se os
eliminar suas formas e expressões de classe elementos que determinam a práxis – prá-
e de raça/etnia (Coordenadoria Latino- tica cotidiana e coletiva das mulheres do
-americana de Organizações do Campo, campo, em que se desenvolve uma cons-
1997, 2005 e 2015). ciência militante feminista das mulheres
Neste marco, se engajam e ajudam a da Cloc/Via Campesina. A partir da com-
construir como Via Campesina a Campa- preensão da importância da luta feminista
nha Global pela Reforma Agrária. A luta como movimento protagonizado pelas
em defesa das sementes e em defesa de mulheres em luta por seus direitos, autono- F
outro modelo de produção em consonância mia e libertação, elas vão se dando conta
com as identidades camponesa e indígena de que todas as lutas que vinham travando
também é importante bandeira das mu- historicamente eram lutas feministas. E
lheres do campo, rechaçando o uso de passam a nomear este acúmulo político,
agrotóxicos, de organismos geneticamente organizativo e de luta das mulheres do
modificados e de modelos destrutivos dos campo de feminismo camponês e popular;
bens naturais. A partir das mulheres se ele é a expressão da luta das mulheres do
constitui, no seio do movimento camponês campo em movimento no seio das lutas
latino-americano e mundial, a Campanha camponesas e populares. Este feminismo
contra o Uso dos Agrotóxicos e pela Vida e é a reafirmação de uma perspectiva social
a Campanha de Sementes Patrimônio dos e histórica, de caráter coletivo, que parte
Povos a Serviço da Humanidade. As mu- da realidade, da vida e do trabalho das
lheres também promovem debates sobre a mulheres do campo, visando a transfor-
agroecologia como estratégia e proposta de mação profunda da sociedade, uma nova
resistência dos povos do campo frente ao sociedade, de novos valores, práticas e
modelo do capitalismo agrário e como um relações sociais socialistas (Coordenadoria
modo de vida que impulsiona a construção Latino-americana de Organizações do
da soberania alimentar, que é o direito dos Campo, 2010, 2015, e 2018).
povos, com justiça de gênero, em decidir Trata-se de um feminismo que promo-
sobre sua produção de alimentos, seus ve transformações cotidianas e concretas
territórios e a vida no (Coordenadoria na vida das mulheres do campo, e nas
Latino-americana de Organizações do relações entre homens e mulheres, mas
Campo, 1997, 2001, 2005 e 2010). também se propõe e tem em seu horizonte
A luta contra a violência doméstica as mudanças estruturais da sociedade. Por
que assola cotidianamente a vida das isso, coloca no marco das lutas feministas
mulheres do campo em suas diferentes o enfrentamento ao sistema capitalista, ao
expressões é outro grave problema social enfrentar o modelo destrutivo e explorador
que ganhou visibilidade com a Campanha do capitalismo agrário das transnacionais
Basta de Violência contra as Mulheres no campo. Um feminismo que luta pelo fim

415
FEMINISMO CAMPONÊS E POPULAR

de todas as formas de exploração, opressão, Desse modo, reafirmamos que o


subordinação, discriminação e exclusão, e Socialismo e o Feminismo são parte
que, em contraposição, apresenta um pro- de nosso horizonte estratégico de
jeto de agricultura camponesa, indígena, transformação. Por isso, afirmamos
um Feminismo Camponês e Popular,
negra que promove o bem viver dos povos
insubmisso, socialista, que questiona
do campo, que alimenta a humanidade e
as concepções patriarcais e burgue-
preserva a natureza. Portanto, o feminismo sas, que são funcionais às políticas de
camponês e popular se forja na luta cotidia- exploração capitalista. Desse modo,
na de resistência e enfrentamento ao capi- a concepção Feminista que estamos
talismo e ao patriarcado, particularmente construindo como Via Campesina
em suas expressões no campo, sendo esta a está fortemente vinculada a pro-
contribuição desde as mulheres do campo cessos políticos, organizativos, de
para a construção dos caminhos de trans- formação política e de lutas concre-
formação rumo a uma sociedade socialista, tas, permanentes que alterem a vida
F onde haja uma humanização do gênero social, econômica e política da classe
trabalhadora e, particularmente, das
humano e uma verdadeira emancipação
mulheres trabalhadoras. (Movimen-
de mulheres e homens (Coordenadoria
to dos Trabalhadores Rurais Sem
Latino-americana de Organizações do Terra, 2015)
Campo, 2018).

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416
FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA

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WITCEL. R. Mulheres e a quebra das correntes. Centro-Oeste, mimeo., 2019.

FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA
F
L adislau D owbor

As finanças não constituem uma mais mostrar que tem “liquidez” nos
“área” da economia, algo para economis- cofres. Aliás, o cofre é para o pouco de
tas. Saúde tem de ser financiada, tal como ­papel-moeda que guarda para pequenas
a compra de equipamentos industriais, a retiradas nas agências. O cofre realmen-
produção agrícola, a nossa aposentadoria. te existente, hoje, é o computador, e a
Trata-se do nosso dinheiro, de uma di- sua chave é uma senha. O banco pode
mensão de todas as atividades. Qualquer emprestar dinheiro que não tem. A espe-
proposta que tenhamos exigirá recursos. culação não é nova, mas a sua escala sim.
Mas ninguém nunca teve no Brasil uma Com a informática, surgiu a internet,
só aula sobre como funciona o dinheiro, a conectividade global. Com os cabos
como se organizam as finanças, salvo em de fibra ótica conectando os países e as
cursos muito especializados. Isto é parti- instituições, e os satélites assegurando
cularmente grave, pois gera um ambiente cobertura global, o dinheiro imaterial pas-
de incompreensão, e abre espaço para os sou a ser instantaneamente transferível
abusos que vivemos. para qualquer parte do mundo, gerando
O dinheiro, a partir dos anos 1980, uma volatilidade financeira planetária. O
mudou de natureza: com a generalização espaço morreu, comentam os manipula-
do uso da informática, o dinheiro passou dores de dinheiro dos outros. As finanças
a ser representado por sinais magnéticos passam a jogar no espaço-nave terra.
nos computadores, dinheiro virtual que, O dinheiro pode navegar em segundos
por exemplo, temos no nosso bolso sob entre as chamadas “praças” financeiras,
forma de uma tarja no cartão. Tornou-se e gratuitamente.
imaterial, intangível. Isso permitiu o Bem-vindos ao mundo da financei-
surgimento de um conjunto de práticas rização. Em vez de servir aos produtores
inovadoras, e em particular dos proces- com crédito barato para poder investir,
sos especulativos. O banco não precisa e aos consumidores para que possam

417
FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA

expandir o seu consumo, a máquina que separava os serviços bancários para


financeira passa a girar solta, com juros correntistas e as operações especulativas.
descontrolados, gerando dividendos para Os banqueiros poderiam fazer as suas
os que vivem de aplicações financeiras, operações especulativas mais ou menos
sem precisar produzir. arriscadas, mas com o próprio dinheiro,
Gerou-se com isso uma disfunção não o dos correntistas. A partir de 1980,
estrutural no planeta: enquanto o dinhei- com Margareth Thatcher na Grã-Bre-
ro navega no espaço global, especulando tanha e Ronald Reagan nos EUA, o
com as moedas de diferentes países ou sistema foi sendo liberalizado. Clinton
com a cotação de matérias-primas, ou colocou a pá de cal em 1999, repelindo
ainda com taxas diferenciadas de juros, a lei Glass Steagall (Banking Act, 1933).
os governos continuam nacionais, limi- Com a desregulamentação total, dinhei-
tados pelas fronteiras. Onde navegam os ro virtual e conectividade planetária,
satélites que repassam os sinais, não há desapareceu qualquer capacidade de
F fronteiras. Quando um governo tenta, controle. Bem-vindos ao mundo caótico
por exemplo, controlar a especulação e da financeirização.
ganhos improdutivos, o dinheiro sim- O Brasil evoluiu de maneira paralela,
plesmente muda de país, buscando o mas diferenciada. O ponto de partida é a
que chamam de ambientes “amigáveis”, Constituição de 1988, que por meio do
business-friendly. artigo 192º (Brasil, 1988a) definiu regras
Como não há governo mundial, os para o Sistema Financeiro Nacional, em
grandes manipuladores de dinheiro, como particular limitando os juros a 12% ao
bancos, investidores institucionais, traders ano mais inflação. Além desse teto, ca-
de commodities, grandes fundos e outros racterizaria usura, crime punível por lei.
atores sentem-se livres para gerar fluxos O objetivo geral do sistema foi claramente
muito intensos de recursos financeiros definido: “O sistema financeiro nacional
que desequilibram as políticas nacionais [será] estruturado de forma a promover
de desenvolvimento. Temos sim o Fundo o desenvolvimento equilibrado do país
Monetário Internacional (FMI ), o Ban- e a servir aos interesses da coletivida-
co Mundial, o Banco Internacional de de, em todas as partes que o compõem”
Compensações BIS (BIS), instituições (Brasil, 1988a). Esta definição de rumos
que tiveram a sua importância, mas que é essencial, pois o banco, mesmo privado,
hoje, frente aos grandes bancos de im- trabalha com o dinheiro do público, e
pacto global, apenas dão bons conselhos. tem de fazê-lo com responsabilidade. Para
Gerou-se um imenso espaço mundial poder funcionar, tem de obter uma carta
desgovernado. A crise financeira de 2008 patente do Banco Central, que o autorize
teve raízes que hoje são claras. a trabalhar com dinheiro dos outros.
Não só não temos mais capacidade Mas o marco jurídico do sistema
política de regulação do sistema finan- financeiro foi sistematicamente desman-
ceiro, como hoje sequer temos as leis telado. Entre 1993 e 1995, a hiperinflação,
para fazê-lo. A partir da crise de 1929, que era uma das grandes pragas do Brasil e
criada também pelo sistema financeiro, de mais 43 países, foi dominada em todos
foi instituída a sua regulação pela lei eles. Os bancos precisavam de uma moe-
Glass-Steagall (Banking Act, 1933), da mais estável para participar do sistema

418
FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA

global. Em compensação, ganharam em a massa da população, a chamada base


1995 a possibilidade de colocar as nossas da pirâmide, o consumo das famílias se
poupanças em títulos da dívida pública, expande. Trata-se do principal motor da
remunerados 25% por ano, já com infla- economia. O consumo de massa, como foi
ção baixa, drenando os nossos impostos: chamado, amplia por sua vez a demanda
é a taxa Selic. No mesmo ano, como de produtos tanto da indústria como da
presente de natal, em 26 de dezembro, agricultura. A dinamização das empresas
foi aprovada a isenção de impostos sobre e da agricultura familiar exige mais mão
lucros e dividendos distribuídos. Eu, como de obra. O desemprego caiu de 12% em
professor da PUC-SP, tenho 27,5% do meu 2002 para 6,0% em 2012. A expansão
salário descontado. Os milhões que en- do emprego e a sua formalização (foram
tram no bolso dos aplicadores financeiros 18 milhões de empregos formais criados)
passaram a ser isentos. aumentam ainda mais a demanda. Como
O desmantelamento da regulação as empresas no Brasil têm uma grande ca-
financeira continuou em 1997, com a pacidade ociosa, a expansão da demanda F
aprovação, pelo Congresso, do finan- encontra os produtos correspondentes,
ciamento corporativo das campanhas não gerando inflação.
eleitorais. Dar dinheiro a um deputado O consumo das famílias, ao crescer,
para votar de determinada maneira con- aumenta o volume de impostos pagos, o
tinuaria sendo ilegal. Mas comprar um que gera maior receita para o Estado. Da
deputado ou senador por quatro anos se mesma forma, ao se dinamizar as ativi-
tornou legal. Este absurdo perdurou até dades empresariais, aumenta também o
o final de 2015, quando o STF notou, volume de impostos sobre a produção,
após 18 anos, que o artigo primeiro da mais receita para o Estado. O resultado
nossa Constituição, “todo poder emana é que as contas do Estado ficam equili-
do povo” (Brasil, 1988b), tinha sido vio- bradas. O dinheiro que o Estado coloca
lado. É este Congresso, eleito de forma na dinamização do andar de baixo da
inconstitucional, que sob comando de economia gera mais recursos do que o
uma figura bizarra como Eduardo Cunha, que se investe, por efeito multiplicador
organizou e deu aparência legal ao golpe e natural do recurso bem alocado. Com
ao conjunto de medidas que hoje travam o mais recursos, o Estado passa também
desenvolvimento do país. Em 1999, surgiu a expandir o consumo coletivo da po-
a proposta de emenda constitucional PEC pulação, o chamado salário indireto que
53, que abolia o artigo 192º que regulava vem através de serviços públicos gratui-
o sistema financeiro nacional. Era a pá tos e universais como educação, saúde,
de cal. O Brasil entrava plenamente na saneamento básico, infraestruturas de
era da financeirização, do vale-tudo da transporte e semelhantes. Esse modelo,
especulação e do endividamento. aplicado em muitos países, simplesmen-
Hoje temos uma visão clara do que te funciona, ao contrário da chamada
funciona em economia. E não se trata de austeridade. Para o pequeno produtor
discussões teóricas sobre visões ortodoxas rural, que depende do mercado interno
ou heterodoxas e debates semelhantes, para a comercialização da sua produção,
mas do exame dos resultados práticos. a expansão da capacidade de compra da
Quando se faz uma política que favorece massa da população é essencial.

419
FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA

O bem-estar das famílias não de- da Europa no pós-guerra, chamado de


pende apenas do dinheiro que chega no Welfare State, Estado de bem-estar social.
bolso, da chamada renda. Um exemplo Ninguém disse aos europeus que primei-
ajuda a entender: o canadense pode ter ro precisava aumentar o bolo (dos ricos)
um salário menor do que o americano, para depois distribuir. Entre 1945 e 1975,
mas não precisa gastar com médico, foram os chamados 30 anos de ouro da
com escola, com piscina (são públicas) Europa, e também da América do Norte.
e assim por diante. O salário indireto O milagre econômico da Coreia do Sul,
do canadense mais do que compensa ou do Japão, pertencem à mesma lógica
o salário direto menor. A saúde custa em que a política, o econômico e o social
em média ao americano US$ 10.400 se articulam em torno ao bem-estar das
por ano. Para o canadense, o custo é de famílias. Não no futuro eternamente
US$ 4.400 por ano, com resultados muito adiado, mas como ponto de partida.
superiores. No conjunto dos países ricos, O impressionante sucesso econô-
F os Estados Unidos são o país que mais mico da China se deve ao fato de ter
gasta, e o que tem o pior nível de saúde. aproveitado as imensas necessidades
Isso é muito importante de se entender, da população como um horizonte de
pois envolve o papel do Estado, funda- expansão econômica, fator de oportuni-
mental para assegurar serviços básicos dades. O Banco Mundial estima que, do
públicos, gratuitos e universais. Reduz a bilhão de pessoas que saíram da pobreza
desigualdade, melhora a qualidade, e a nas últimas décadas, 700 milhões são
custos menores. A expansão das políticas chinesas. E não é apenas com renda,
sociais no Brasil não aumentou os gastos, mas com ampliação das políticas sociais
ao contrário, liberou recursos. (Camburray, 2020).
Com o aumento da renda da base A realidade é simples, e a raiz fi-
da população, e a expansão de infraes- nanceira da crise não exige cálculos
truturas e políticas sociais, o país foi se complicados. No conjunto, à medida
tornando simultaneamente mais justo e que o governo popular foi expandindo a
mais rico. É o chamado círculo virtuoso. capacidade econômica dos mais pobres,
Esse modelo de inclusão social funciona, o grande comércio e os bancos foram
mas não é nenhuma invenção brasileira. expandindo a captação do dinheiro
Foi assim que Roosevelt tirou os Estados que a massa da população ia ganhando.
Unidos do buraco nos anos 1930: taxou o Tirar dinheiro do bolso de dezenas de
sistema financeiro, liberou recursos para milhões de pobres pode ser complica-
a massa da população, financiou peque- do. Mas quando o dinheiro é um sinal
nas obras disseminadas nos milhares de magnético, extrair pequenas quantias de
municípios. Com isso, o consumo se ex- uma massa grande de pessoas torna-se
pandiu, as empresas voltaram a produzir simples. O cartão de crédito representa
e a empregar, e os impostos pagos cobri- hoje um canudinho eletrônico que abre
ram a iniciativa. Política para os pobres acesso ao nosso dinheiro. Uma compra
funciona. Nos EUA, isso foi chamado de de R$ 100 no cartão de crédito custa
New Deal, novo pacto social. R$ 100 ao comprador, mas o vendedor
Essa política de inclusão produtiva é recebe apenas R$ 95, pois o banco cobra
o que permitiu o milagre da reconstrução 5% sobre a operação. Multiplicado por

420
FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA

dezenas de milhões de compras diárias, guiam juros mais razoáveis com o Banco
só esta e outras tarifas pagam uma vez e Nacional de Desenvolvimento (BNDES),
meia a folha de pagamento dos bancos. a massa de pequenas e médias empresas
Não se trata de alta finança. Trata-se era esmagada com juros acima de 40% no
de milhões de pequenas extorsões. No crédito bancário, e muito mais escandalo-
Canadá se desconta apenas 6 centavos sos evidentemente no cheque especial ou
de dólar por operação com cartão. Faz no rotativo do cartão. Somando os juros
sentido cobrar porcentagem? pagos pelas famílias e pelas empresas,
Outro mecanismo são os crediários. cerca de 15% do PIB são sugados pelos
A Associação Nacional dos Executivos intermediários financeiros, sem produzir
de Finanças, Administração e Contá- rigorosamente nada. Esse é o sistema de
beis (Anefac) apresenta os juros prati- agiotagem que quebrou o país.
cados. Para artigos do lar, por exemplo, A essa realidade temos de acrescen-
a média está na ordem de 76,10%. Ou tar a apropriação dos nossos impostos
seja, o grosso da população que não tem pelos intermediários financeiros. Lem- F
como pagar o eletrodoméstico à vista bremos que a taxa Selic foi criada em
paga quase o dobro. Este sobrecusto do 1995, e a partir de 1 de julho de 1996
produto sequer é levado em considera- o governo passou a pagar 25% sobre
ção no cálculo da inflação. Mas é como os títulos da dívida pública, quando
se tivesse dividido por dois o dinheiro no resto do mundo raramente passam
que a pessoa tem no bolso. Na Europa, de 1% ou 2% ao ano. O mecanismo é
a taxa de juros mais elevada que en- simples. O cidadão que tem dinheiro o
contrei em crediários, na rede Midia@ deposita no banco, que lhe paga um juro
markt, é de 13% ao ano. No Brasil, simbólico. O banco, por sua vez, aplica
apresentam o juro ao mês, e apresentam este dinheiro em títulos do governo que
a prestação que “cabe no bolso”. pagavam juros de 25%. Nos Estados
A mesma distorção escandalosa se Unidos, para comparar, pagavam 2%
encontra no crédito bancário. O próprio ao ano (2018). Para pagar aos bancos e
crédito consignado é um escândalo, outros aplicadores financeiros, o governo
custando na faixa de 28%, quando na tem de desviar os nossos impostos do que
Europa é 3,5% ao ano. Quando as pes- deveria fazer – financiar infraestruturas,
soas se enforcam na dívida, recorrem ao saúde etc. – para repassá-los aos bancos.
cheque especial, que chega a 150%, ou Esses repasses eram, em 2019, da ordem
ao rotativo no cartão, acima de 250%. de 310 bilhões de reais, cerca de 4,5%
O resultado prático é que em 2019 do PIB. O Bolsa Família, para se ter
tínhamos 64 milhões de adultos “ne- uma ideia da dimensão desses repasses,
gativados”, com o chamado nome sujo, é da ordem de 30 bilhões. Se somarmos
excluídos do crédito. Se acrescentarmos os 15% do PIB que se transformam em
as famílias, estamos falando da metade juros pagos por pessoas físicas e pessoas
da população brasileira. jurídicas, e os 4,5% que são pagos pelo
A situação das empresas não é mui- governo (sobre os nossos impostos),
to melhor. Enquanto as multinacionais temos uma sangria anual da ordem de
tomavam dinheiro no exterior abaixo de 20% do PIB. Nenhuma economia pode
5% ao ano, e as poucas grandes conse- funcionar assim.

421
FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA

Essa deformação já vinha se agra- esfera urbana como no campo, têm tudo
vando durante o governo Lula e mais a ganhar com crédito barato e controlado
ainda durante o governo Dilma, já que localmente. A democracia política é
a liquidação do Artigo 192 da Cons- reforçada pela democracia econômica.
tituição (Brasil, 1988a), que limitava Os donos do dinheiro controlam o que
os juros reais a 12% ao ano, liberou as com ele é feito.
taxas. Entre 2012 e 2013, o f luxo de A China é particularmente interes-
juros pagos aos bancos e também a ren- sante. O Bank of China, tipo de ­BNDES,
tistas da classe média alta, onerando as financia grandes infraestruturas. A in-
famílias, as empresas e o governo, estava dústria pesada, como siderurgia, cimento,
estrangulando a economia, travando centrais elétricas e semelhantes empresas
o seu crescimento. Dilma não tinha estatais têm bancos próprios, de maneira
outra solução senão intervir reduzindo a assegurar o controle financeiro e a
os juros no sistema público. Reduziu flexibilidade de investimentos. Mas o
F os juros para famílias e empresas na grosso do financiamento é assegurado
Caixa Econômica Federal e no Banco no âmbito local, em cada município, e
do Brasil, já que legalmente os bancos orientado em função das necessidades
privados podem cobrar o que quiserem. do desenvolvimento, e não das necessi-
Originou-se um fluxo de clientes dos dades de agiotas. O sistema financeiro é
bancos privados para os bancos públi- apenas um meio, não um fim. Os bancos
cos. Ao mesmo tempo reduziu a taxa locais assumem um papel de fomento,
Selic, para liberar recursos para uso não de empobrecimento.
produtivo, reduzindo a imensa mama Inúmeros exemplos positivos e que
que a dívida pública representava para funcionam bem podem ser encontrados.
os bancos, a classe média alta e os ricos Desde a Islândia, que foi quebrada pela
em geral. Essas medidas eram abso- especulação financeira e simplesmente
lutamente necessárias para reduzir o nacionalizou os bancos – podemos falar
vazamento dos recursos para rentistas em desprivatização – até a Polônia, que
improdutivos. Em 2019, a taxa Selic foi se tornou capitalista, mas guardou do
reduzida drasticamente, mas o estoque socialismo os seus 470 bancos coopera-
da dívida tornou-se muito maior. tivos, que financiam o que os donos do
O sistema financeiro pode funcionar dinheiro precisam que seja financiado.
de outra maneira? Em vez de argumen- A Polônia apresenta 16 anos seguidos de
tos ideológicos, o melhor é olhar o que crescimento de 4% ao ano. Na França,
funciona. Na Alemanha, por exemplo, funciona uma rede de ONGs de inter-
as famílias e pequenas empresas colocam mediação financeira, que asseguram o
o seu dinheiro em caixas de poupança que chamam de “aplicações financeiras
municipais, Sparrkassen, e os recursos éticas”: as pessoas podem financiar proje-
servem para financiar o desenvolvimento tos ambientais ou sociais, tornando o seu
local. O dinheiro é do público, e o seu dinheiro útil, por meio de organizações
uso é público. Em vez de remunerar comunitárias. Algumas destas ONGs
agiotas, promove o bem-estar. E se trata têm recursos aplicados no volume pró-
de mais de 60% da poupança privada. ximo de 1 trilhão de Euros. E recebem
Os pequenos produtores locais, tanto na garantia da Banque de France.

422
FINANCEIRIZAÇÃO DA ECONOMIA

O essencial é que se trata de países e Uma experiência particularmente


de iniciativas que se preocupam não com interessante é a dos bancos de desenvol-
o quanto os bancos ganham, mas com vimento comunitário. Hoje são 113 no
quanto contribuem. No Brasil, com cinco Brasil, emitem a própria moeda e cartões
bancos controlando 85% dos ativos do de crédito, e escapam do dreno econô-
país, não há concorrência, e o que deveria mico dos usurários. O Banco Palmas foi
ser um órgão regulador, o Banco Central, pioneiro, e a sua experiência mostra como
foi apropriado pelos banqueiros. Mas o a moeda local, perfeitamente legal no
resgate do poder político, uma regulação Brasil, ao dinamizar as atividades locais
efetiva pelo Banco Central, e a utilização sem cobrar juros astronômicos, torna o
dos dois grandes bancos públicos, a Caixa dinheiro produtivo.
Econômica Federal e o Banco do Brasil, As inovações não faltam. O que nos
no sentido de reduzir os juros e de reintro- falta, evidentemente, é resgatar o poder
duzir a concorrência no sistema, poderia sobre o nosso dinheiro. E já vimos que
transformar radicalmente o sistema. Os os rentistas que vivem de juros sobre o F
bancos cooperativos existentes também dinheiro dos outros – tanto bancos como
podem ajudar na reconversão. Temos os a classe média alta rentista, e até muitas
bancos, temos as agências, temos pessoas empresas antes produtivas que decidiram
que sabem manejá-los: a inversão neces- que rende mais aplicar no tesouro direto do
sária é que os bancos devem reaprender a que investir na produção – se agarram com
servir à economia e ao desenvolvimento, unhas e dentes a um poder que trava o país.
em vez de se servirem destes, já que tra- Resgatar a democracia significa também
balham com dinheiro que não é deles. resgatar o direito ao nosso dinheiro.

Referências
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econômica financeira. Capítulo IV: Do sistema financeiro nacional. Disponível em: https://www.senado.
leg.br/atividade/const/con1988/con1988_atual/art_192_.asp. Acesso em: 29 mar. 2021.
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fundamentais. Disponível em: https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_14.12.2017/
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Para saber mais


DOWBOR, L. Como funciona a economia na era da financeirização: Disponível em: http://dowbor.
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______. A era do capital improdutivo: por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade da população
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423
FOME

FOME

M ar ia E mília Pacheco

Um problema tão antigo quanto a fenômeno social, o autor assim construiu


própria humanidade. A falta do que co- o conceito:
mer para viver mostra o limite da própria O nosso objetivo é analisar o fenô-
sobrevivência da espécie humana. Mas meno da fome coletiva – da fome
este tema, durante longo tempo da his- atingindo endêmica ou epidemica-
tória constituiu-se um tabu ou um tema mente as grandes massas humanas.
proibido como denunciou o brasileiro, Não só a fome total, a verdadeira ina-
F médico, escritor, geógrafo, sociólogo, nição que os povos de língua inglesa
diplomata e político, cidadão do mundo chamam de starvation, fenômeno, em
Josué de Castro. geral, limitado a áreas de extrema
miséria e a contingências excep-
Ao romper com a visão da calami-
cionais, como o fenômeno muito
dade da fome como fenômeno natural,
mais frequente e mais grave, em suas
ou como uma contingência que não se consequências numéricas, da fome
removia como a morte, e denunciar a parcial, da chamada fome oculta,
fome como fenômeno social provocado na qual, pela falta permanente de
pelos homens, esse autor explicou em determinados elementos nutritivos,
seu célebre livro A geografia da fome – o em seus regimes habituais, grupos
dilema brasileiro: pão ou aço, em 1946, que inteiros de populações se deixam
o silenciamento sobre a fome devia-se a morrer lentamente de fome, apesar
interesses econômicos e políticos, e a de comerem todos os dias. (Castro,
preconceitos (Castro, 1963). 1963, p. 22)
A entrada da classe trabalhadora no Josué de Castro elaborou o primeiro
cenário político, reivindicando melhores mapa da fome no país, incorporando
condições de vida, e a contribuição métodos da geografia e dialogando com
pioneira e corajosa de Josué de Castro a ecologia. Identificou cinco diferentes
falando sobre o flagelo da fome trou- áreas alimentares, que formam o mo-
xeram à tona uma questão social. O saico alimentar brasileiro. São elas: área
subtítulo do livro – pão ou aço – indicava Amazônica, área da Mata do Nordeste;
a preocupação com os rumos do desen- área do Sertão; área do Centro-Oeste
volvimento econômico, desde os anos e área do Extremo Sul. Em cada uma
1930, ao mesmo tempo que argumentava delas identificou recursos típicos, com
ser necessário entender historicamente a dieta habitual e produtos regionais e
o aprofundamento da miséria e da po- seus diferentes grupos humanos com suas
breza, frutos da agricultura baseada no características próprias do ponto de vista
latifúndio e nos monocultivos, fazendo psíquico, biológico e cultural.
a defesa da Reforma Agrária. Objeti- Distinguiu as áreas de fome como
vando o estudo da fome coletiva, como aquelas em que pelo menos a metade da

424
FOME

população apresentava manifestações como o gado que haviam perdido na


carenciais no seu estado de nutrição, seca, na região do Alagadiço, atual
sejam elas permanentes (áreas de fome São Gerardo, no Ceará. E com força
endêmica), sejam transitórias (áreas de de imagem, nos convida a pensar sobre
epidemia de fome). Concluiu que três essa desumanidade:
áreas na época eram nitidamente áreas Conceição passava agora quase o
de fome: Amazônica, Mata e Sertão dia inteiro no Campo de Concen-
Nordestino (Castro, 1963). Para a ge- tração, ajudando a tratar, vendo
ração formada nos anos 1950 e 1960 morrer às centenas as criancinhas
no Brasil, o livro Geografia da Fome foi lazarentas e trôpegas que as retiran-
um clássico que influenciou reflexões tes atiravam no chão, entre montes
e ações. de trapos, como um lixo humano
que aos poucos se integrava de todo
no imundo ambiente onde jazia.
Desenterrar a dor
(Queiroz, 2017, p. 135) F
Na história da fome no Brasil,
há fatos que têm sido esquecidos ou Em 1932, a prática de manter a ci-
são desconhecidos. A memória social dade dos ricos afastada (ou parcialmen-
precisa ser valorizada e revisitada. E te afastada) da miséria concretizou-se
nessas lembranças de desenterrar a dor, novamente na construção de locais
e desnudar a barbárie, é importante para o aprisionamento dos flagelados,
ouvir vozes e entender outras narrati- bem como em frentes de trabalho, e
vas, como falaria Josué de Castro, se também com as políticas de emigração
estivesse vivo. Assim compreendemos forçada para outros estados. Nesta seca,
o motivo pelo qual o autor, com toda o poder público isolou parte dos serta-
a sensibilidade, dedicou o Geografia da nejos em sete campos de concentração,
Fome aos romancistas da fome no Bra- distribuídos em lugares estratégicos,
sil – Raquel de Queiroz, que escreveu para garantir o encurralamento de um
O Quinze e José Américo de Almeida, maior número de retirantes no Sertão
autor de A bagaceira. Mas é, sobretu- do Ceará (Rios, 2014).
do, em Raquel de Queiroz que vemos Ainda hoje, mantendo a tradição
o que afirmou Mário de Andrade: “É de mais de 20 anos, ano após ano, uma
mais que uma conversão da seca à grande romaria, denominada Cami­
realidade, é uma conversão à humani- nhada­da Seca, em Senador Pompeu,
dade” (Andrade, 2017). A leitura desse termina no “Cemitério da Barragem”,
romance nos traz profunda emoção e que foi criado em torno das valas co-
uma tristeza amarga. muns, onde os habitantes dizem que
Confinar, controlar e vigiar pessoas estão enterradas mais de mil pessoas.
em determinados locais aconteceu na Mas recordemos também da ma-
seca de 1877, com os abarracamentos nifestação de protesto contra a fome,
em torno de Fortaleza. E na seca de expressa na poesia do muito esquecido
1915, descrita por Rachel de Queiroz, Francisco Solano Trindade, pernam-
houve o primeiro campo de concentra- bucano, negro, poeta, ator e criador de
ção, chamado pelos retirantes de “curral alguns movimentos negros no Brasil do
do governo”, porque se sentiam tratados século XX.

425
FOME

Em 1944, durante a ditadura do Caminhando com os


Estado Novo, Solano, autor do sensível tropeços da história
poema da dor da fome (Tem gente com A partir dos anos 1940, o Esta-
fome), denunciava as mazelas sociais do passa a intervir sobre essa questão
que a população pobre e negra sofria. social, com distintas orientações que
Foi preso e teve o livro Poemas de uma percorrem a história. As primeiras ini-
vida simples apreendido. O poema foi ciativas reportam-se ao governo Vargas,
duas vezes censurado no Brasil, uma em com a definição de um piso mínimo
1944 e outra em 1975, quando um grupo salarial, após um período de debates e
musical pretendia gravá-lo. Fatos que reivindicações da classe trabalhadora ao
ocorreram nos dois regimes ditatoriais longo dos anos 1930. Josué de Castro,
(Munanga e Gomes, 2006). O cenário com seu estudo sobre As condições de
de seus versos é o trajeto do trem que vida das classes operárias do Recife, em
vai da Estação Leopoldina até a Esta- 1932, já chamava a atenção sobre o
F ção Mauá, no Rio de Janeiro. Em sua estado de penúria dos trabalhadores.
travessia, percorre o subúrbio, algumas Nesse período, criou-se o Serviço
favelas e bairros de classe média, com o Central de Alimentação do Instituto de
povo pobre que busca comida. E num Aposentadoria e Pensões dos Industriá-
tom lírico e triste, com os sons onoma- rios, que foi chefiado por Josué de Cas-
topaicos dos movimentos do “trem sujo tro. Posteriormente, transformou-se no
da Leopoldina, vai correndo, correndo Serviço de Alimentação da Previdência
e parece dizer tem gente com fome [...]”. Social (Saps), sob a responsabilidade do
Na cadência do ritmo da estrada de Departamento de Administração do Se-
ferro, vai deslizando o trem, repetindo tor Público (Dasp). O Saps tinha como
“tem gente com fome [...]”. Nas estações principais atribuições atender os segura-
que vai parando, pede: “se tem gente dos da previdência social. Criou-se uma
com fome, dá de comer [...]”. E o movi- grande rede de restaurantes destinada
mento se repete até chegar ao final da aos trabalhadores. No ano de 1945,
viagem, quando escutamos o “psiu” do existiam seis unidades funcionando no
silenciamento autoritário que manda o Rio de Janeiro e 42 em outras partes do
trem calar (Eddine e Gonçalves, 2016). país (Silva, 2006). Mas como analisam
Citamos Raquel de Queiroz e o poema de vários autores, eram iniciativas calcadas
Solano Trindade por compartilharmos na visão da cidadania regulada, ou seja,
da visão segundo a qual dirigida àqueles que estavam inseridos
[...] a literatura pode mudar vidas, no mercado de trabalho. Como nos ex-
não apenas em um sentido utópico plica Wanderley Guilherme dos Santos:
de que ela reconstrói a realidade, Por cidadania regulada entendo o
mas também, ao desvelar sentidos conceito de cidadania cujas raízes
sociais, culturais e históricos, tra- encontram-se não em um código de
zendo formas de enxergar a realidade valores políticos, mas em um siste-
e, também, novas configurações ma de estratificação ocupacional, e
subjetivas para combater precon- que, ademais, tal sistema de estrati-
ceitos e discriminações. (Eddine e ficação ocupacional é definido por
Gonçalves, 2016, p. 81) norma legal. Em outras palavras,

426
FOME

são cidadãos todos aqueles membros internacionais. Impedido de voltar ao


da comunidade que se encontram país, foi viver na França, onde morreu
localizados em qualquer uma das em 1973. Seu célebre livro, Geografia
ocupações reconhecidas e definidas da fome, caiu no esquecimento. Só foi
em lei. (Santos, 1979, p. 75)
reeditado em 2001, pela Fiocruz.
Na década de 1950, foi instituído o Chegando no período da rede-
Plano Nacional de Alimentação (Brasil, mocratização, foi fundamental a ação
2015) voltado fundamentalmente para dos movimentos sociais, estudiosos e
ações de suplementação alimentar de articulações da sociedade civil, que
segmentos da população considerados influenciaram o governo paralelo, des-
vulneráveis. Mas é também nesta época, de 1991, organismo que antecedeu o
do governo Getúlio Vargas, que a me- Instituto pela Cidadania. A mobili-
renda escolar, o mais antigo programa zação “Ação da Cidadania Contra a
alimentar brasileiro, como ficou conhe- Fome, a Miséria e pela Vida”, liderada
cido através dos tempos, foi oficializado, pelo sociólogo Herbert de Souza (o F
em 1955, sob a inspiração de Josué de Betinho) e a respectiva “Campanha
Castro. Vinculado ao Ministério da Nacional de Combate à Fome”, em
Educação e Cultura, contava na época 1993, recolocaram na agenda política
com doações internacionais de alimen- a questão social da fome. Nessa época,
tos sob os auspícios da Organização das foi também criado o Conselho Nacional
Nações Unidas para a Agricultura e de Segurança Alimentar e Nutricional
Alimentação (FAO), baseadas na visão (Consea), no governo Itamar Franco,
de assistência alimentar, pós Segunda como mecanismo inovador de parce-
Guerra Mundial, com o escoamento ria e governabilidade. A mobilização
do excedente da produção dos países social com múltiplas representações da
do norte. Como exemplo, havia a dis- sociedade, por ocasião da I Conferência
tribuição do leite em pó. Nacional de Segurança Alimentar, em
No período da ditadura militar, 1994, foi um passo significativo.
houve extinção de vários programas, Com o início do governo FHC e
mas manteve-se o programa ainda o consequente arrefecimento do tema
denominado merenda escolar. O Saps da segurança alimentar e nutricional,
deixou de existir no ano de 1967. Hou- substituído pela proposta do Programa
ve também a interrupção do debate so- Comunidade Solidária, esses atores
bre o fenômeno da fome como produto encontraram limitações políticas e
da desigualdade socioeconômica e que institucionais para atuar na construção
precisaria ser enfrentado com medidas de políticas públicas.
estruturais e emergenciais. A fome foi
devolvida à condição de tema proibi- Fome Zero: reorientação das
do (Cerri; Santos, 2002). E naquele políticas de Estado
contexto, os militares impuseram a Chegamos aos primeiros anos do
cassação dos direitos políticos de Josué século XXI com o projeto Fome Zero –
de Castro, que, em 1963, havia renun- Uma Proposta de Política de Segurança
ciado ao mandato de deputado federal Alimentar no Brasil, lançado em outubro
para cumprir missões em organismos de 2001, pelo Instituto de Cidadania,

427
FOME

órgão não governamental criado por Luiz Em 2004, a Escala Brasileira de


Inácio Lula da Silva, entre outros. Com Medida de Insegurança Alimentar
uma ampliação do debate sobre a fome, (Ebia) foi incorporada, por decisão do
avançamos na definição da segurança Ministério do Desenvolvimento Social
alimentar e nutricional, e na proposta e Combate à Fome, à Pesquisa Nacional
de inclusão do Direito Humano à Ali- por Amostra de Domicílios (PNAD).
mentação Adequada no Capítulo 6º da Surgiu assim o primeiro diagnóstico,
Constituição Federal de 1988 (Brasil, no Brasil, de segurança e insegurança
1988). alimentar domiciliar, com abrangência
O Programa Fome Zero (Brasil, e representatividade nacionais. Os re-
2011) ancorou-se em uma combinação sultados mostraram que cerca de 40%
de políticas estruturais, com a pers- da população brasileira convivia com
pectiva de diminuir a vulnerabilidade algum grau de insegurança alimentar,
alimentar das famílias, por meio do sendo 18% com insegurança alimentar
F aumento da renda familiar, da uni- leve, outros 14,1% com insegurança
versalização dos direitos sociais, do alimentar moderada e 7,7% com in-
acesso à alimentação com qualidade segurança alimentar grave. O que sig-
e da diminuição da desigualdade de nificava aproximadamente 14 milhões
renda; específicas, destinadas a promo- de brasileiros convivendo com a fome e
ver a segurança alimentar e combater outros 25 milhões com restrição quan-
diretamente a fome e a desnutrição dos titativa importante na sua alimentação,
grupos populacionais mais carentes; totalizando mais de 39 milhões de bra-
e políticas locais, com o estímulo a sileiros (Segall e Leon-Marin, 2009).
programas que já se encontravam em Com a articulação de várias po-
execução nos estados e municípios e líticas, o país retirou 28 milhões de
que deveriam ser ampliados. O reco- brasileiros da pobreza absoluta (Brasil,
nhecimento da agricultura familiar 2011) e saiu do mapa da fome em 2014.
e camponesa como peça-chave para Nos últimos anos, com os desmontes
garantir a disponibilidade de alimentos da Política Nacional de Segurança Ali-
redefiniu o seu lugar como ator social mentar e Nutricional, o país caminha
nas políticas. de volta ao mapa da fome.

Referências
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à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. 1988.

428
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

CASTRO, J. Geografia da Fome. O dilema brasileiro: pão ou aço. São Paulo: Brasiliense, 1963.
CERRI, C.; SANTOS, A. C. Fome: história de uma cicatriz social. Brasília, 2002.
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Pós-Graduação Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras
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MINAYO, M. C. de S. (org.). Raízes da Fome. Petrópolis: Vozes/Fase, 1985.

FORMAÇÃO EM ALTERNÂNCIA

Salomão M ufar r ej H age


M ar ia I sabel A ntunes -R ocha
F er na ndo M ichelotti

A formação em alternância diz res- dagogia da alternância, paradigma no


peito às formas de organização do tra- qual a Educação do Campo estabelece
balho pedagógico em tempos e espaços diálogo, mas que também se diferencia.
diferenciados e inter-relacionados. Para Retomamos o conceito para apresentar
apresentar o conceito, organizamos o como ele se organiza na Educação do
texto apresentando inicialmente sua Campo. Consideramos pertinente apre-
vinculação ao movimento da Educação sentar os marcos legais conquistados ao
do Campo. Em seguida, trazemos a pe- longo das últimas décadas, pois estes ga-

429
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

rantem a institucionalidade desta forma escola. Ao longo do tempo, passou a


de organização pedagógica. Finalizamos ofertar as séries finais do Ensino Fun-
com algumas reflexões sobre os limites damental e o Ensino Médio articulado
e potencialidades da formação em alter- à formação profissional, constituindo-se
nância nas práticas educativas no con- como uma rede de ensino. Nas diferentes
texto do campesinato e da agroecologia. regiões brasileiras, recebem denomina-
A alternância é uma prática for- ções diferenciadas como Escolas Famí-
mativa construída no âmbito do movi- lias Agrícolas (EFA), Casas Familiares
mento da Educação do Campo no final Rurais (CFR) e Escolas Comunitárias
da década de 1980 (Telau, 2015). Nessa Rurais (ECOR). Na última década, estas
condição, se constitui como uma estra- diferentes instituições se organizaram
tégia teórico-metodológica de formação nacionalmente por meio do Movimen-
dos sujeitos do campo ancorada na rela- to Centros Educativos Familiares de
ção trabalho-educação-território. Essa Formação por Alternância (Ceffas). Na
F estratégia tem como intencionalidade se atualidade, os Ceffas se estruturam com
constituir como um processo educativo cerca de 273 centros localizados em 22
potencializador das dimensões que são estados federativos.
estruturantes das formas de produzir e O movimento da Educação do
reproduzir a existência no contexto do Campo, já em suas primeiras experiên-
campesinato. cias, teve na pedagogia da alternância
A pedagogia da alternância tem uma referência para organizar o traba-
suas raízes na França, nas décadas ini- lho pedagógico, mas na perspectiva de
ciais do século XX. Famílias agriculto- articular a escola com o território. O
ras, preocupadas com a escolarização que significa dizer relacionar a escola
e o futuro dos filhos empreenderam com os sujeitos e suas organizações
esforços para criar uma escola cujo sociais (incluindo a família) em seus
funcionamento possibilitasse a perma- diferentes espaços e temporalidades.
nência destes com a família, garantindo Essa intencionalidade deu origem aos
também condições para que o projeto termos tempo escola ou tempo univer-
pedagógico atendesse às demandas das sidade e tempo comunidade. A forma-
formas de vida vinculadas aos seus ção em alternância, segundo Queiroz
modos de existência. Nessa perspectiva, (2004, p. 42), se efetiva e se fortalece
a alternância se organiza no meio fami- com o entendimento de que a relação
liar/profissional e no meio escolar. Em escola-família-sociedade pressupõe
meados do século, há um processo de uma sinergia, uma integração e uma
expansão dessa experiência para vários interpenetração que possibilite rom-
continentes (Begnami, 2004). per com a dicotomia teoria e prática,
A primeira experiência brasileira abstrato e concreto, conhecimentos
ocorreu em 1969, na cidade de An- escolares e saberes tradicionais, forma-
chieta, no estado do Espírito Santo. O ção e produção, trabalho intelectual e
movimento iniciou com apoio da Igreja trabalho manual.
Católica como uma associação criada As primeiras experiências aconte-
por famílias focalizando a formação ceram no âmbito do Programa Nacio-
profissional, mas sem vínculos com a nal de Educação na Reforma Agrária

430
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

(Pronera).1 A formação de educadores lar de períodos de estudos, grupos


para atuar na Educação de Jovens e não seriados, com base na idade, na
Adultos demandou uma organização di- competência e em outros critérios,
ferenciada. Dessa forma, havia tempos ou por forma diversa de organização,
sempre que o interesse do processo
concentrados de formação nas univer-
de aprendizagem assim o exigir.
sidades e tempos formativos ao longo da
execução dos cursos nos assentamentos. O Art. 28 possibilita a oferta de
O desenvolvimento dos cursos de En- conteúdos curriculares apropriados aos
sino Fundamental, Médio e Superior reais interesses e necessidades do modo
ofertados pelo Pronera mantiveram de organização do trabalho na zona
esse formato, possibilitando assim a rural, criando assim possibilidades para
emergência de práticas alternadas para propor uma organização escolar própria.
organizar o período letivo. Em 2008, Na oferta de educação básica para
o Ministério da Educação incorpora a população rural, os sistemas de
a alternância como referência para ensino promoverão as adaptações F
organizar os cursos de Licenciatura em necessárias à sua adequação às pe-
Educação do Campo a serem ofertados culiaridades da vida rural e de cada
no âmbito do Programa de Apoio à região, especialmente:
Formação Superior e Licenciatura em I – Conteúdos curriculares e meto-
dologias apropriadas às reais neces-
Educação do Campo (Procampo).
sidades e interesses dos alunos da
Nesse processo, foram sendo cons- zona rural;
truídos alguns marcos legais relevantes II – Organização escolar própria,
para a formação em alternância. incluindo adequação do calendário
A perspectiva metodológica da al- escolar às fases do ciclo agrícola e às
ternância faz parte do espírito da Lei de condições climáticas;
Diretrizes e Bases da Educação Nacio- III – Adequação à natureza do tra-
nal (Lei 9.394/96) (Brasil, 1996). Essa balho na zona rural.
definição encontra-se já no seu artigo As Diretrizes Operacionais para a
primeiro, ao definir o lócus onde ocorrem Educação Básica nas Escolas do Campo,
os processos formativos: provadas pelo Parecer n. 36, de 2001 e
Art. 1º: A educação abrange os pela Resolução n. 01, de 2002, explici-
processos formativos que se desen- tam de forma ainda mais contundente
volvem na vida familiar, na convi- a alternância como possibilidade de
vência humana, no trabalho, nas organização escolar.
instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações Art. 7º, parágrafo 2º: As atividades
da sociedade civil e nas manifesta- constantes das propostas pedagógi-
ções culturais. cas das escolas, preservadas as fina-
lidades de cada etapa da Educação
E no artigo 23, quando aborda as Básica e da modalidade de ensino
possibilidades de organização dos tempos prevista, poderão ser organizadas e
escolares. desenvolvidas em diferentes espaços
pedagógicos, sempre que o exercí-
A educação básica poderá organi-
cio do direito à educação escolar e
zar-se em séries anuais, períodos
o desenvolvimento da capacidade
semestrais, ciclos, alternância regu-

431
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

dos alunos de aprender e continuar mudanças na dinâmica da organização


aprendendo assim o exigirem. dos processos educativos, da organização
O Parecer CEB n. 1/2006, do Con- do trabalho dos educadores e educa-
selho Nacional de Educação, reconhece doras, da organização e planejamento
a pedagogia da alternância como forma curricular e dos processos de produção
legítima de organização escolar (Brasil, do conhecimento.
2006). Foi aprovado por unanimidade Na organização dos processos edu-
pela Câmara de Educação Básica do cativos, a formação em alternância am-
Conselho Nacional de Educação e publi- plia o território formativo dos sujeitos do
cado no Diário Oficial da União, com a campo, por meio da interlocução direta
homologação do Ministro da Educação, na relação entre o tempo, o espaço e o
em 15 de março de 2006. Ainda que conhecimento que ocorre entre as dis-
esse documento tenha sido direcionado tintas experiências formativas em que
para o funcionamento dos Ceffas, reco- os sujeitos participam, transcendendo os
F nhece-se que ele fortalece a formação espaços, os horários/tempos/calendários
em alternância. e saberes específicos escolares, e apro-
O decreto n. 7.352, de 4 de novem- ximando-os dos processos de produção
bro de 2010, que reconhece a Educa- de conhecimento que se materializam
ção do Campo como política pública, nas situações presentes no trabalho, nas
reafirma a pedagogia da alternância práticas culturais e na vida dos sujeitos
como possibilidade de organização dos do campo.
processos formativos de educadores e da Na prática, essas mudanças incidem
prática escolar. na estrutura dos processos educativos,
Vale registrar que vários estados fe- que passa a organizar a formação por
derativos brasileiros aprovaram Diretri- meio da alternância enquanto unidade
zes Estaduais da Educação do Campo, e espacial/temporal de integralização de
nestas normativas encontra-se indicada dois momentos específicos: “tempo esco-
a formação em alternância como possi- la/universidade” e “tempo comunidade”,
bilidade de organização dos processos que se inter-relacionam, se alternam e
formativos de professores e das Escolas se complementam para a articulação
do Campo. Em termos da rede superior dos diferentes tempos/espaços e saberes
de ensino, registra-se que a Universidade formativos nos processos educativos,
Federal de Minas Gerais aprovou em apresentando-se como o diferencial
2018 a formação em alternância como que inova na formação dos sujeitos do
uma das modalidades de oferta de cursos campo, quando comparada à organi-
de graduação. zação do ensino convencional: seriada,
disciplinar, semestral, em etapas, que
A formação em alternância e sua terminam por fragmentar e hierarqui-
construção pedagógica zar o tempo/espaço/conhecimento nos
A formação em alternância reco- processos formativos.
nhece que diferentes tempos, espaços e O “tempo escola/universidade” é
saberes são educativos e, portanto, todos constituído por ações educativas rea­
contribuem com a formação dos sujeitos lizadas em espaços institucionais em
do campo. Essa compreensão provoca que os processos educativos são ofer-

432
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

tados: na escola ou na universidade. dos educadores e educadoras visa o


O “tempo comunidade” é constituído desenvolvimento de práticas formativas
por ações educativas realizadas em assentadas nos princípios fundantes da
espaços em que os educandos desen- Pedagogia do Movimento.
volvem: o trabalho em interação com A Pedagogia do Movimento vin-
os bens da natureza através da agri- cula-se às referências pedagógicas da
cultura, da pesca e do extrativismo; Educação do Campo, que se produz a
suas ações coletivas de militância nos partir da organização, da mobilização
movimentos e organizações sociais; e e das lutas empreendidas pelos movi-
suas práticas culturais de convivência: mentos sociais e sindicais do campo
religiosas, esportivas, de lazer etc., na por determinados projetos de desen-
família, nas comunidades rurais, nos volvimento do campo e da sociedade
assentamentos e acampamentos. Onde em perspectiva contra-hegemônica,
se materializa a existência, a vida con- inspirada nas contribuições de Gramsci­
creta dos sujeitos do campo. (1982), que combina as lutas pela ter- F
Ambos – tempo escola/universida- ra, pela reforma agrária, pelo direito
de e tempo comunidade – são tempos/ ao trabalho, à cultura, à soberania
espaços de práxis, ou seja, de articulação alimentar e ao território com os proces-
entre teoria e prática, de diálogo entre os sos formativos dos sujeitos do campo
saberes da tradição do trabalho e da vida (Caldart, 2004, p. 21-23).
e os conhecimentos científicos, entre os Nas tensões que se evidenciam no
saberes culturais e os conhecimentos trabalho dos educadores e educadoras
escolares. São tempos/espaços que pro- do campo, a formação em alternân-
vocam alterações na organização dos cia toma como elemento central de
processos educativos, incluindo a escola, construção da contra-hegemonia e
ao oportunizar a interação entre conhe- da emancipação o reconhecimento
cimento e realidade nas comunidades e da organização social e política e da
territórios rurais, ao fortalecer a articu- vida material e simbólica de sujeitos do
lação entre a pesquisa, a intervenção e campo; que se referenciam pela coletivi-
a militância política na formação dos dade, pela diversidade e principalmente
sujeitos do campo. pela formação humana dos sujeitos do
Na organização do trabalho dos campo, referências essas que precisam
educadores e educadoras, a formação ser compreendidas e assumidas pelos
em alternância oportuniza uma ação educadores e educadoras em seus tra-
coletiva, dialógica, participativa, in- balhos educativos.
tegrada e interdisciplinar, articulando O trabalho dos educadores na
todos os sujeitos sociais envolvidos e que formação em alternância é referência
protagonizam os processos educativos também por assumir o trabalho como
na escola e nos demais processos educa- princípio educativo, que tem sua gênese
tivos: educadores, educandos, gestores, na pedagogia socialista, fundamentada
pais, mães, sujeitos e lideranças das no materialismo histórico dialético, que
comunidades, organizações e movimen- tem na materialidade da vida o traba-
tos sociais e sindicais do campo. Esta lho como essencial na produção das
forma coletiva de organizar o trabalho condições reais de existência e de (re)

433
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

existência do ser social. Marx e Engels naridade no trato com os componentes


(1979) enfatizam que o “trabalho neste curriculares, ao afirmar uma perspec-
contexto é entendido como produtor tiva relacional entre as várias áreas de
dos meios de vida tanto nos aspectos conhecimento, entre os conhecimentos
materiais quanto culturais – ou seja, científicos/escolares e os saberes do
de conhecimento, de criação material e trabalho e da produção cultural dos su-
simbólica e de formas de sociabilidade”. jeitos do campo; provocando, com tudo
Ancorando-se no trabalho como isso, mudanças substantivas na forma
princípio educativo a formação em al- hegemônica de produzir e socializar os
ternância promove a articulação da conhecimentos científicos.
formação dos sujeitos com o espaço da No aspecto da dialogicidade e da
produção, promovendo a relação entre inter-relação dos sujeitos e seus saberes, a
“trabalho intelectual” e “trabalho ma­ teoria freiriana se apresenta com bastante
nual”, pautando com isso a necessidade pertinência como uma referência que
F de uma organização diferenciada do coloca em evidência as culturas, os co-
trabalho dos educadores e educadoras nhecimentos e os saberes como princípios
na escola do campo como nos demais fundantes dos processos educativos, visto
processos educativos sociais, sob os pi- que busca ouvir os sujeitos do campo;
lares de uma formação crítica e huma- aprender com suas experiências; afirmar
na que busca valorizar os saberes e as os seus modos de vida; oportunizar o aces-
experiências dos sujeitos que produzem so à informação, ciência, tecnologias, sem
suas condições de existência na terra, no hierarquizar os conhecimentos, valores e
campo, nas águas e nas florestas. ritmos de aprendizagem.
Na organização e planejamento Nesse sentido, a formação em al-
curricular, a formação em alternância ternância contribui para fortalecer a
estimula os sujeitos – educadores, edu- interculturalidade na organização do
candos e demais sujeitos participantes currículo ao afirmar as identidades e
dos processos educativos – a pensar e modos de vida próprios dos territórios
materializar outras formas de conceber rurais, a heterogeneidade ambiental,
o planejamento e o currículo, visto que produtiva e sociocultural que constitui
são instigados a dar outros sentidos e esses mesmos territórios; as diferenças
significados ao processo de formação entre eles existentes; e a conflitualidade
dos sujeitos do campo, ancorados na que demarca a convivência entre os
dialogicidade entre os sujeitos e seus povos, etnias, grupos, coletivos e classes
saberes, experiências, conhecimentos sociais que neles vivem. Ela estimula os
e culturas. educadores e educadoras a incorporar
Para que se possa afirmar a dialo- no currículo dos processos educativos
gicidade, é importante que os processos os saberes dos povos que manejam a
educativos escolares e sociais construam terra, a água e as florestas, assim como
uma matriz curricular que dê conta da os saberes das Ciências e da Tecnologia,
articulação de saberes de diferentes enfrentando a hierarquia, a apartação e
tradições: do trabalho, da ciência e desigualdade entre eles.
tecnologia e da cultura, fortalecendo a Nos processos de produção do co-
interdisciplinaridade e a transdiscipli- nhecimento, a formação em alternância

434
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

incide de várias maneiras, provocando e diagnósticos diversos. Elas passam a


mudanças na forma hegemônica e con- ser compreendidas como sujeitos co-
vencional de produzir e socializar os letivos com dinâmicas, necessidades,
conhecimentos científicos, assim como interesses, desejos e demandas próprias,
legitimando processos de produção e que interagem com as escolas e demais
socialização de conhecimentos que se espaços educativos e com eles assumem
ancoram em matrizes epistemológicas a ação formativa dos sujeitos do campo
outras, de base não acadêmico-científica. (Hage; Silva; Farias, 2016).
Nos processos formativos em alter- Assim, a pesquisa, na formação em
nância, as problemáticas do campo são alternância, se efetiva durante todo o
pautadas e investigadas em toda a sua processo formativo, reconhecendo que o
complexidade, como totalidades, nas tempo comunidade e o tempo escola/uni-
suas contradições, no seu movimento versidade são indissociáveis no processo
histórico, diferenciando-se da perspec- de formação dos sujeitos do campo; pois,
tiva cartesiana, que fragmenta, aparta e é na cultura vivida que suas referências F
hierarquiza as partes. Assume-se, assim, se entrecruzam com novos saberes, in-
uma perspectiva temática/totalizante/ vestigando a realidade local, do ponto de
interdisciplinar, fortalecendo a rela- vista diagnóstico e experimental, onde os
ção entre realidade e conhecimento, sujeitos vivem e trabalham, combinando
entre teoria e prática (práxis), e entre reflexões coletivas que oportunizem a
pesquisa e intervenção, promovendo o compreensão e a intervenção qualificada
imprescindível diálogo entre os con- nessa mesma realidade.
teúdos trabalhados no tempo escola/ A formação em alternância objetiva
universidade e as tensões e contradições formar todos os envolvidos nos processos
vivenciadas na produção material da educativos em sujeitos pesquisadores,
vida dos educandos nos territórios do capazes de inquirir suas realidades, bus-
campo, no tempo comunidade. cando compreender, com o suporte do
A formação em alternância assume conhecimento científico em diálogo com
a pesquisa como princípio metodo- os saberes tradicionais e demais saberes
lógico, estimulando todos os sujeitos que circulam e são produzidos nos ter-
participantes dos processos educativos ritórios rurais, a essência dos processos
a produzir conhecimentos articulando econômicos, sociais, políticos, ambien-
o viés acadêmico com os saberes da tais e culturais que ocorrem nos seus
experiência do trabalho e da cultura territórios. Nesse processo, são utilizados
nos territórios rurais. Esse processo muitos instrumentos e metodologias que
proporciona a transgressão da lógica lhes permitam compreender suas realida-
de entender a pesquisa nos processos des com mais profundidade e construir
formativos e sua relação com as comu- coletivamente possibilidades e condições
nidades, que deixam de ser entendidas de intervenção nessas realidades.
apenas como lócus de experimentação, Diferentes experiências de interação
de aplicação da prática, de testagem de entre educação do campo e agroecolo-
experiências, de investigação da reali- gia, dada a centralidade das interações
dade, de levantamento de informações e trabalho – educação – território, têm
dados para a construção de inventários trabalhado nessa direção, incorporando

435
F O R M A Ç Ã O E M A LT E R N Â N C I A

e ampliando as possibilidades da forma- tura acadêmica (Sousa et al., 2016; An-


ção em alternância. A sistematização drade et al., 2017; Vieira, 2017) e em sites
da experiência do Instituto de Agroe- dos movimentos sociais e sindicais, com
cologia Latino-americano na Amazônia destaque para a página da Escola Lati-
(Iala) (Silva Junior, 2018) mostra como no-americana de Agroecologia (2020).
a articulação entre formação em alter- Frente às potencialidades dessas
nância e pesquisa-participante forneceu dinâmicas relacionadas à formação em
elementos que permitissem colocar no alternância, o movimento da Educação
centro dessa construção pedagógica as do Campo a tem incorporado nas práti-
demandas técnico-políticas, concepções cas de formação humana, escolar e pro-
de mundo, formas de sistematizar o fissional dos sujeitos do campo, visando
pensamento e critérios de validação dos à transformação dos próprios processos
sujeitos das comunidades camponesas educativos escolares e sociais, bem como
envolvidas no processo. Dessa forma, de suas intencionalidades políticas. A
F mesmo sendo cursos de educação su- formação em alternância associa-se,
perior vinculados à institucionalidade portanto, com as demandas por uma
universitária, a organização do processo produção de conhecimento agroecológi-
educativo, do trabalho do/as educadores/ co tanto em sua dimensão de resistência
as e do planejamento curricular podem dos camponeses ao processo de expulsão
convergir, desde uma relação dialógica e desterritorialização promovido pelo
entre sujeitos das comunidades, educan- agro-hidro-mínero-negócio (Molina;
dos e educadores, para o fortalecimento Hage, 2016, p. 815) como de produção
dos processos de produção de conheci- de territórios e territorialidades eman-
mento agroecológico em seus sentidos cipatórias, baseadas no trabalho e na
mais políticos. O relato e a análise dessas transformação da natureza voltados à
experiências estão disponíveis na litera- produção e reprodução da vida.

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Programa de Pós-Graduação em Mestrado Profissional em Educação e Tecnologia do Instituto Federal
Sul-Rio-Grandense, Campus Pelotas, 2017 (Dissertação). F

Nota
1
Algumas experiências de cursos em alternância no âmbito da reforma agrária ocorreram antes do
Pronera. A Fundep, experiência do início da década de 1990, que depois deu origem ao Iterra, ao
IEJC, já constituiu seus cursos em alternância, e visitou experiências de escolas-família para inspiração
e recriação da lógica desde nossas circunstâncias e objetivos. Há informações e reflexões sobre isso
no livro do IEJC: Escola em movimento, Expressão Popular, 2013.

437
H
HOMEOPATIA

P edro B off
M arcelo S ilva P edroso
L eyza Paloschi de O liveir a

Homeopatia: ciência e arte de cura tes, Hahnemann abandonou o exercício


por sua própria história da medicina e passou a se dedicar à
O costume de cuidar com plantas, tradução de livros, aproveitando-se de
animais e mesmo com o ser humano tem sua facilidade com línguas. Em uma des-
sido substituído pela técnica do controle, sas traduções, conheceu o trabalho do
do tratamento e da erradicação de coisas médico escocês Willian Cullen sobre os
maléficas que se associam aos seres vivos. possíveis mecanismos de cura da malária
O ethos do cuidado nos educa para um por China officinalis (china). Hahne-
ato comunicativo de convivência, de to- mann discordou do que lera e resolveu
lerância e da compreensão dos mais altos fazer nele próprio testes com a planta.
fins da existência que cada ser vivo tem Ele descreveu sintomas semelhantes à
a cumprir. Caberia, pois, ao cuidador-ser malária, como febre intermitente, entre
humano, consciente de sua responsabi- outros. A experiência possivelmente
lidade na preservação da vida na terra, fez o gênio Hahnemann lembrar do
proporcionar meios de cura verdadeira, que aforisma de Hipócrates, segundo o qual
não sejam agressivos e sejam tanto quanto a cura pode ocorrer pelos opostos ou
possíveis de rápida ação e de efeito perma- pelos semelhantes, mas sempre a partir
nente. Essas considerações, no processo de do todo. Após reunir evidência de que
cura ao enfermo, têm sido propostas por esses sintomas nele provocados seriam
Christian Friedrich Samuel Hahnemann propriedades curativas do medicamento
como orientações primeiras, ao propor a em questão, passou então a buscar a
homeopatia como ciência e arte de cura em verdadeira natureza curativa de subs-
sua obra-prima Organon da arte de curar, tâncias que, ao encontro de um quadro
de 1810 (Hahnemann, 1996). semelhante no enfermo (doente), daria
Inconformado com os procedimen- lugar à cura verdadeira, Similia Similubus
tos agressivos adotados na época (séc. Curentur (o semelhante pelo semelhante
XVIII), como sangria, vomitivos e laxan- se cura). Daí que, desde o início, Hah-
H O M E O PAT I A

nemann chamou seu método de ciência mas surpreendentemente conservavam o


da homeopatia, porque suas observações poder curativo.
partiram de evidências distintas dos fatos Se o poder curativo do medicamento
conhecidos na época e foram confirma- homeopático passa a ser imaterial, então
das empírica e sistematicamente. é de se esperar que sua ação é sobre um
Após seis anos de experimentação e ente imaterial. A esse ente imaterial,
clínica, Hahnemann publica seu primeiro Hahnemann denomina de força vital ou
trabalho científico, advindo da hipótese poder vital. Mas o processo de cura só
de que o quadro sintomatológico descrito é possível se a força vital do organismo
na experimentação em organismos sadios reage ao medicamento, e isso ele cha-
é capaz de aniquilar o semelhante quadro mou de ação secundária reativa. Assim
de um enfermo. Portanto, semelhante se estrutura a homeopatia como ciência.
enfermo terá cura verdadeira com um Entretanto, a prática homeopática desafia
medicamento o mais semelhante possível, o homeopata a encontrar um medica-
que lhe é revelado na experimentação mento o mais semelhante possível, entre
em organismos sadios. Os axiomas da a descrição nos compêndios de matérias
ciência da homeopatia se completam com médicas, as patogenesias, como a totali-
H
medicamento único e doses mínimas e dade sintomática do organismo enfermo.
dinamizadas. Além disso, é feito uso de um Esse exercício de compreender o enfermo
medicamento por vez, pois só assim pode- como organismo único individualizado
-se averiguar a eficácia na cura relacionada e de buscar o semelhante medicamento
à identidade original da matéria-prima. que possa melhor cobrir o quadro enfer-
A diluição e dinamização, também, mo, priorizando primeiro os sintomas de
derivam do ímpeto genial de Hahnemann maior hierarquia, os mais vitais, exige
na busca da cura através dos simples que o homeopata-terapeuta praticante
recursos naturais disponíveis. Muitas das da homeopatia seja um artista de cura.
substâncias utilizadas no sec. XVIII eram Portanto, a homeopatia como ciência e
efetivas para algumas doenças epidêmicas arte de cura do organismo enfermo, cujo
terríveis, como no caso do uso de mercú- mecanismo de ação do medicamento
rio no tratamento da sífilis. Entretanto, ao depende da reatividade do poder vital
mesmo tempo que esse tratamento curava (natureza imaterial) para operar a cura
da sífilis, intoxicava o organismo. Hahne­ pelo semelhante, é de racionalidade cien-
mann passou então a diluir os compo- tifica distinta do convencionalismo mate-
nentes, atenuando seus efeitos tóxicos, rialista cartesiano. Em outras palavras, a
mas conservando sua natureza curativa. medicina das doenças, a veterinária das
Depois de certo tempo, passou também a drogas e a agronomia dos agrotóxicos não
agitar logo após diluir os medicamentos e oferecem receptividade à grandiosidade
observou que em muitas situações havia que é a homeopatia para o ser humano
aumento da eficácia do medicamento com seu todo interativo ambiente.
homeopático na cura do enfermo. O
preparo dos medicamentos com sucessivas Saúde: harmonia pela homeostase e
diluições e agitações (sucussões) elimina- autodeterminação
ria sua constituição químico-material que O conceito superior de saúde é har-
poderia provocar agravações indesejáveis, monia. Nos sistemas biológicos, podemos

440
H O M E O PAT I A

entender harmonia como equilíbrio di- manter o equilíbrio dinâmico – do organis-


nâmico, dando condições de emergir a mo pela ação da força vital e sua ação se dá
resiliência, que é a propriedade do sistema, no organismo como um todo. Os sintomas
no nosso caso a agricultura/agroecos- apresentados no indivíduo sadio ao ingerir
sistema, em poder voltar ao equilíbrio a homeopatia são capazes de curar aquele
dinâmico uma vez cessado o agente de que, no adoecimento, apresenta os mesmos
perturbação. A perturbação poderia ser sintomas. Deste modo, o semelhante cura
causada por agentes físicos (alterações o semelhante, e, alicerçado na força vital,
meteorológicas e humanas) ou agentes embasa a possibilidade de utilizar a homeo­
biológicos como doenças e pragas, entre patia para os humanos, assim como para
outras. Assim, um agroecossistema, culti- os animais e para as plantas.
vo vegetal ou rebanho e seu entorno terão O que faz adoecer o solo, a água, as
maior resiliência se tolerarem a ocorrência plantas e os animais também faz adoecer
de insetos e parasitas, por exemplo, e, ao o homem. A informação veiculada pela
mesmo tempo, puderem restabelecer seu homeopatia promove uma resposta que
equilíbrio vital, sem ajuda da intervenção permite o reequilíbrio da parte tratada,
humana. O redesenho do sistema produti- assim como tem sintonia com tudo que
H
vo é o procedimento mais adequado para é semelhante no sistema. Dessa forma, a
efetivar essa estratégia. Neste redesenho, abordagem para o tratamento é de forma
busca-se otimizar o uso dos recursos lo- integrativa.
cais como solo, águas, biodiversidade e o Considerando a característica me-
trabalho familiar. A potencialização das dicamentosa da homeopatia, é possível,
interações biológicas nos agroecossistemas por similitude, atuar nos diferentes níveis
é, na maioria das vezes, suficiente para de complexidade de seres vivos. A Arnica
tolerar possíveis problemas fitossanitários, montana (arnica europeia) que é utilizada
embora em determinadas situações seja em traumas físicos em seres humanos e
necessário e desejável estimular o sistema animais, pode ser também utilizada em
imunológico vegetal/animal. O papel traumas após poda, enxertia, granizo ou
da homeopatia, nessas circunstâncias, é transplante de plantas (Tabela 1). Nux
proporcionar a reorientação da ciclagem vomica, que tem efeito em desintoxicações
de matéria orgânica, do fluxo de energia nos seres humanos e animais, tem sido
e de facilitar os serviços ecológicos. experimentada na agricultura para tran-
A homeopatia, como ciência e arte sição para sistemas ecológicos, atuando
de cura, deve integralizar-se nessa pers- favoravelmente na desintoxicação do
pectiva de soberania intelectual dos povos organismo agrícola. As observações regis-
menos favorecidos e instrumentalizá-los tradas das modificações que ocorrem no
a se libertarem das limitações que lhes conjunto dos organismos, em determinado
impõe o quadro enfermo pela dor, pela agroecossistema, orientam o processo me-
dependência e pela competição. todológico no tratamento. A observação
dos sintomas e a conexão entre as partes
Homeopatia: terapêutica integrativa do sistema são as bases das informações
A homeopatia tem como pressuposto para a prática terapêutica. É necessário
no processo saúde e doença o restabeleci- considerar que os elementos vivos são
mento da homeostase – propriedade de frutos de uma evolução endossimbióti-

441
H O M E O PAT I A

ca – os cloroplastos e as mitocôndrias dos páticos produzidos a partir de trituração


organismos eucariontes têm origem pela ou macerado de nosódio de Acromyrmex
associação entre procariontes, benéfica spp. 30CH a 0,5m na trilha de forra-
para ambos – e que a simbiose – associação geamento principal das formigas, a um
entre espécies, com benefícios mútuos e metro de distância do ninho no início da
interdependência metabólica – faz parte manhã ou ao entardecer em cinco dias
da organização dos seres no sistema ter- consecutivos pode reduzir eficientemente
restre. As informações fluem, a comuni- a atividade e forrageamento das formigas.
cação se dá em diferentes níveis e os seres Belladonna 30CH, também, foi efetiva na
percorrem seus ciclos vitais. Há maior redução da atividade das formigas. As
ou menor expressão da autonomia dos preparações homeopáticas restabelecem
indivíduos nesses contextos, que deve ser a homeostase no agroecossistema ao
levado em consideração para a definição atuar no ponto de perturbação, evitando
do conjunto de sintomas característicos. a multiplicação de colônias.
Do ponto de vista evolutivo, após O manejo de pragas e doenças na
a transição das plantas, da água para o cultura do tomateiro foi estudado em casa
sistema terrestre, a sua fixação se deu de vegetação e a campo, utilizando-se ho-
H
num ambiente de trocas contínuas com meopatia em sistema orgânico (Modolon
outras plantas e de maior dependência nas et al., 2012). Nesse experimento, foram
relações com o solo, água, astros, espaço utilizados preparados homeopáticos de
aéreo e outros seres vivos. Desse modo, a Solanum lycopersicum (tomate x cultivar
expressão dos sintomas de uma doença Santa Cruz Kada) e Solanum aculeatissi-
em planta é predominante nos órgãos mum (tomate silvestris), Arnica montana,
vegetativos e reprodutivos, mas com in- Staphysagria, Arsenicum album e Sulphur;
terdependência das ações inteligentes e Calda Bordalesa a 0,3%, calda cúprica
psíquicas do sistema. Há necessidade de 50 ppm (formulada com vinagre de uva,
reconhecer os fatores de adoecimento do semente de linho e sulfato de cobre) e
sistema. Para o uso dessa terapêutica, é Bacillus thuringiensis. A maior produção
necessário buscar reconhecer “os obstácu- de frutos de tomateiro no campo foi ob-
los à cura” e promover ações para vitalizar tida com a Arnica montana 12DH. Com a
o sistema em seu conjunto. A terapêutica utilização de Sulphur 12CH observou-se a
homeopática repousa na experiência e, redução de danos da broca pequena, igua-
ao ser aplicada, permite desenvolver a lando-se ao tratamento com B. thuringien-
arte de individualizar o meio em que se sis. Com estes tratamentos não foi possível
encontra, perceber as relações entre as reduzir a incidência de brocas grandes.
partes, exercitar escolhas e acompanhar A incidência de septoriose do tomate,
as respostas aos movimentos executados. quando o cultivo foi realizado em casa de
A aplicação da homeopatia na agroe- vegetação, foi completamente suprimida
cologia pode ser exemplificada no manejo com o preparado de tomateiro 12CH e
de Acromyrmex spp., formigas cortadeiras, drasticamente reduzida quando utilizada
sem causar colapso (morte do formi- a potência de 24DH. Estes preparados
gueiro) ou recolonização (migração para homeopáticos no manejo da cultura do
novas áreas) (Giesel et al., 2012). A pul- tomateiro são adequados para preencher
verização de 10ml de preparados homeo­ o requisito legal de produção orgânica.

442
H O M E O PAT I A

Tabela 1 – Ampliação do uso da homeopatia em sistemas agrícolas


Procedimento metodológico no tratamento/ cura do
Homeopatia: uma prática integrativa enfermo, como exemplo pelo sintoma de queixa prin-
cipal (1)
Característica
Medicamen-
medicamentosa Humanos Animais Plantas
to/ remédio
do recurso
1. Sintoma(s) de queixa principal de maior importância no
A. Matéria Médica Ho- momento;
A. Homeo- meopática/ Patogenesias/ 2. Similimum: analisa/trata o organismo como um todo;
patias experimentação em orga- 3. Gênio Epidêmico: Busca o que há de comum entre or-
nismo sadio (Humano) ganismos doentes;
4. Miasmatico: modo de adoecer/possibilidade reativa
Apis melifica:Atarefado, inconstante, (1)Inchaços, pre- (1)Inchaço de (1)Sensível ao ca-
macerado melancólico/choroso; venção de picadas úbere, inflamação lor, aborto(pré),
da abelha ­ciúme; inchaços gânglios, de insetos, inso- em geral, reten- repelência vespa
inteira (api- edemas, dores agudas/ lação; alergias, ção de placenta e mosca
toxina) picantes/ queimantes/pul- inflamações com após parto
santes; sem sede; edemas
Arnica Medo de morte repentina; ( 1 ) P a n c a d a s , ( 1 ) Fe r i m e n t o s (1)Traumas físi-
montana: sensação de golpeado/ma- traumas físicos externos, traumas cos, poda, grani-
macerado chucado/corpo quebrado; externos, feri- físicos/ chicote, zo, vento, enxer- H
da planta rejeita o toque, sensação mentos por aci- cirurgias, castra- tia, transplante
na floração dolorosa; autoritário, sabe dente; transtorno ção,
(arnicina) tudo, orgulhoso; hemor- físico por parto/
ragias; rosto quente e o cirurgia, sustos
resto frio
Belladonna: Hipersensível, irritável/ (1)Febre alta, (1)Febre, mastite (1)Ferrugens, for-
macerado bom humor; delírios e transtornos men- com febre migas, manchas
da planta convulsões; furioso, bate tais; escarlatina avermelhadas por
colhida na na parede, morde e chora; (crianças) viroses/bacterio-
floração gordos de cabeça grande; ses
(atropina) calor, vermelhidão, late-
jamento
Nux vomica: Impaciente, colérico, into- (1) Desintoxica- (1)Desintoxica- (1) Desintoxi-
maceração lerante/afetuoso; Impres- ção, mau humor, ção cação, transição
da semente siona-se. Magro, rápido, moléstias da vida para ecológico,
seca e ralada friolento; Gastrite, boca sedentária. fitotoxidez, cobre
(estricnina) amarga, dor de cabeça. Ine- em videira
ficiente desejo de evacuar.
Sulphur: Magro, arqueado, cara (1) Alergia, co- (1) Alergias, sar- (1) Acaro, pul-
trituração de velho; filósofo maltra- ceira, doenças no nas, pulgas gões, oidios (de
da “flor de pilho, concentrado em si estágio inicial; estufa)
enxofre” mesmo, paranoico; páli- levantar forças,
do, amarelo, fedorento purgar; preven-
ção. Homem de
negócios.
Thuya Desejo de ficar só. Medo (1)Verrugas, tu- (1) verrugas, tu- ( 1 ) Ve r u g o s e s ,
occidentalis: de ficar louco. Obeso, mores; doenças mores, mal das cancros, galhas
cedrinho, baixo e pesado; peludo, vacinas
gênito-urinarias e
cipreste friorento; Crescimento da pele. Blenor-
(resina) exagerado; falsas aparên- ragia
cias; ulcerações
B. nosódios/ B-A: Cura pelo igual/mes- Insetos, parasitas, doenças, partes de plantas doentes, so-
bioterápicos mo causador da doença los doentes, águas contaminadas...
ou problema
Fonte: Os autores

443
H O M E O PAT I A

A utilização de homeopatia pode in- A homeostase é favorecida pelas inter-


fluenciar a produção de repolho em siste- venções de efeito continuado, como cita-
ma orgânico desde os estágios iniciais do dos acima, além da própria homeopatia,
cultivo (Pulido et al., 2014). A utilização por abrigar complexas interações tróficas
de Sulphur 6CH em plântulas propiciou o e ecológicas, e trocas cooperativas com
aumento da altura e comprimento de raiz o meio biótico/abiótico externo princi-
em relação à testemunha. Silicea terra palmente pela ciclagem de materiais e
30CH e Sulphur 6CH proporcionaram fluxo energético. Entretanto, quando
aumento da produção de matéria seca de tais perturbações não são superadas pela
cabeças de repolho cultivadas no campo. propriedade resiliente aí presente, todo o
O aumento da massa seca pode ser ob- sistema padece e consequentemente os
servado. Também, com Arnica montana indivíduos que dele fazem parte. Nesse
6CH e 30CH, e Silicea terra 30CH. A contexto, terapias não residuais devem
utilização de Sulphur 6CH foi eficiente ser consideradas como única possibi-
em relação ao aumento de matéria seca lidade de tratamento e cura, uma vez
e na qualidade das plântulas de repolho. que já foram implementadas as práticas
preventivas disponíveis.
H
Homeopatia na agropecuária: A homeopatia traz a possibili­dade de
intervenção a favor de processos que seus pressupostos, uma vez atenden-
produtivos saudáveis do à ordem natural das coisas (princípios
Sistemas agropecuários são por de- naturais), permitem estender sua aplica-
finição modificações dos ecossistemas ção a todos os seres vivos.
naturais para atenderem demandas da Existem algumas abordagens para a
sociedade humana por alimentos, fibras aplicação da homeopatia em animais. A
e bioenergia. Em situações de ocorrên- principal delas é a anamnese e a reperto-
cia de epidemias de pragas, parasitas e rização individual do animal buscando
­doenças, agricultores recorrem a méto- o Simillimum deste com o objetivo de
dos de controle, muitos dos quais de gra- equilibrá-lo em seu todo, mental e fisi-
ve impacto sobre os recursos naturais, so- camente. Também podemos fazer anam-
los, águas e biodiversidade. Agrotóxicos, nese (levantamento de todos os sintomas
drogas veterinárias e adubos minerais de físicos e mentais) e repertorização (cru-
alta solubilidade são alguns dos produtos zamento da síndrome sintomática com
utilizados na produção agropecuária que os medicamentos homeopáticos seme-
ao mesmo tempo aliviam os cultivos e lhantes) em todo o rebanho, tratando-o
criações de problemas sanitários, mas como um único indivíduo; desta forma,
apresentam efeitos colaterais desastro- tratando todos os animais enfermos
sos no meio ambiente. Esses produtos com o mesmo medicamento semelhante
induzem, também, o surgimento de raças de forma a equilibrá-los igualmente. A
de patógenos e de pragas resistentes aos este método denominamos de gênio
próprios agentes de controle. Ou seja, a epidêmico, sendo que aqueles animais
avaliação da eficácia de intervenções fi- que não respondem ao tratamento serão
tossanitárias e veterinárias deve conside- individualizados para o conhecimento
rar sua duração ao longo do tempo e que do seu Simillimum. Outra forma que
os efeitos colaterais sejam minimizados. podemos utilizar são os nosódios, prepa-

444
H O M E O PAT I A

rados homeopáticos elaborados a partir nismo. Para o tratamento pelo gênio


do agente causador da enfermidade de epidêmico ou pelo Simillimum, poderão
forma a auxiliar na resolução de surtos ser utilizados um dos mais de dois mil
agudos. Neste último, lançamos mão medicamentos já experimentados em
muitas vezes de preparados homeopáti- organismos sadios e descritos nos com-
cos (bioterápicos) elaborados a partir de pêndios de matéria médica homeopática,
parasitas como carrapatos, moscas, ber- cuja escolha segue o método de reperto-
nes, vermes, dentre outros, assim como rização pela totalidade sintomática do
também de secreções de locais doentes organismo enfermo.
como leite com mastite clínica, secreções Além de realizarmos o equilíbrio dos
de feridas contaminadas com dificuldade animais com o medicamento semelhante
de cicatrização, bem como outras enfer- (Simillimum), complementamos, muitas
midades semelhantes. Também se pode vezes, com tratamentos pon­tuais para ca-
lançar mão de preparados realizados a sos agudos que não cedam integralmente
partir de substâncias tóxicas que possam à cura pela medicação do “gênio epidê-
estar comprometendo a saúde dos ani- mico”. Como exemplos, utiliza-se Apis
mais, como venenos, metais pesados etc., mellifica para edemas, principalmente de
H
como forma de facilitar sua eliminação úbere, e eliminação placentária; Phyto-
pelo organismo. Uma outra abordagem lacca decandra para mastite clínica; Nux
empregada é a utilização de preparados vomica em processos de intoxicação; Arni-
a partir de órgãos anatômicos normais ca montana para traumatismos (descorna,
a fim de curar esses mesmos órgãos no castração, pancadas, cirurgias); Arsenicum
indivíduo enfermo, como os exemplos album para diarreias; Ignatia amara para a
do músculo cardíaco, medula óssea, separação entre vacas e suas crias; Thuya
rim, fígado, dentre outros. Lembrando occidentalis para o tratamento de verrugas.
que o caminho primordial é sempre o A utilização de nosódios – bioterápicos
encontro do medicamento Simillimum preparados a partir do próprio agente da
do indivíduo ou do rebanho como forma enfermidade ou sinais característicos – é
de equilíbrio de seu todo, e somente após feita de forma emergencial e pontual. Por
lançar mão dos preparados nosódios isso, essas indicações do tipo enfermida-
como forma auxiliar nos tratamentos de-remédio devem vir sempre precedidas
das enfermidades nos animais. de um tratamento com o medicamento
A aplicação da homeopatia na pro- Simillimum do rebanho, para alcançar a
dução animal pode ser observada em cura verdadeira.
diversos casos na região sul de San- Tanto para os medicamentos do
ta Catarina, trabalhados da seguinte “gênio epidêmico” quanto para os medi-
maneira: sempre busca-se encontrar o camentos pontuais dos casos agudos, a
medicamento do “gênio epidêmico”, ou potência, frequência e dosagem são ana-
Simillimum (semelhante) dos rebanhos, lisados caso a caso, pois, em se tratando
através da anamnese e repertorização, de homeopatia animal, não existem
de forma a equilibrar os animais e assim protocolos estabelecidos que norteiem
curar todas as enfermidades, sejam elas todos os tratamentos, uma vez que o
agudas ou crônicas, e em última análise melhor tratamento é pela individualiza-
restabelecer a saúde do enfermo-orga- ção do enfermo.

445
H O M E O PAT I A

Referências
GIESEL, A. et al. The effect of homeopathic preparations on the activity level of Acromyrmex leaf-cutting
ants. Acta Scientiarum Agronomy, v. 34, n. 4, p. 445-451, oct./dez. 2012.
HAHNEMANN, S. Organon da arte de curar. 6 ed. São Paulo: Robe Editora, 1996. 248 p.
MODOLON, T. A. et al. Homeopathic and high dilution preparations for pest management to tomato
crop under organic production system. Horticultura Brasileira, v. 30, p. 51-57, jan./mar. 2012.
PULIDO, E. E. et al. Preparados homeopáticos en el crecimiento y en la producción de repollo cultivado
en sistema orgânico. Horticultura Brasileira, v. 32, n. 3, p. 267-272, jul./set. 2014.

Para saber mais


BOFF, P. (coord.). Agropecuária saudável: da prevenção de doenças, pragas e parasitas à terapêutica não
residual. Lages: Epagri; Udesc, 2008. 80p.
DIAS, A. F. Repertório homeopático essencial. 2. ed. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 2004.
ECHEVARNE, A. Gênio epidêmico na produção animal. Florianópolis: Anais do XVIII Congresso
Brasileiro de Homeopatia, outubro de 2006.
KAVIRAJ, V. D. Homeopathy for farm and garden: plant and soil problems and their remedies. 3 ed.
Kandern-Alemanha: Narayana Pub., 2012.
LATHOUD, J. A. Estudos de matéria médica homeopática. 2 ed. São Paulo: Organon, 2004.

446
I
IMPÉRIOS ALIMENTARES

Julia n P er ez-C assar ino


Jairo A ntônio B osa
G r azia nne A lessa ndr a S imões -R amos

O sistema alimentar pode ser defi- naturais onde se encontravam inseridos


nido como o conjunto de atividades que (Porto-Gonçalves, 2006).
se integram com o objetivo de cumprir Por outro lado, o aumento do poder
a função da alimentação humana. Para econômico – e político, em consequência
tanto, é preciso lançar um olhar comple- – das grandes corporações agroalimen-
xo sobre estas, compreendendo-as de for- tares busca condicionar o saber e o fazer
ma articulada. Para compreender como em torno da produção, processamento e
se dá o processo alimentar, é necessário comercialização dos alimentos, em uma
observar as inter-relações das etapas que lógica definida por Ploeg (2008) como
se dão desde a produção até a mesa do impérios alimentares. Compreender essa
consumidor (Soler, 2009). lógica se torna tarefa fundamental para
Diferentemente de outras atividades pensar e construir estratégias de resistên-
econômicas, os sistemas alimentares cia que sejam promotoras de soberania
dependem diretamente dos ciclos bio- e segurança alimentar e nutricional e
lógicos, o que acarreta uma série de que garantam a função do alimento
instabilidades e particularidades de acor- enquanto direito humano.
do com a realidade de cada sociedade, Apresentamos aqui uma síntese
cultura e agroecossistema (Soler, 2009; de alguns conceitos-chave para a com-
Delgado, 2010). Essas incertezas levaram preensão desse processo. Inicialmen-
a um processo de “coevolução” das so- te, o verbete apresenta a concepção
ciedades com o ambiente, que resultou de regimes alimentares, que nos ajuda
em uma enorme diversidade de espécies a compreender a evolução histórica da
vegetais e animais domesticada, manejo atividade alimentar. Em um segundo
dos recursos naturais, práticas culinárias momento, apresentamos o conceito
e hábitos alimentares que propiciaram em si de impérios alimentares, como a
identidade aos diversos grupos sociais em manifestação contemporânea da ordem
função de sua interação com os recursos alimentar global hegemônica. Por fim,
I M P É R I O S A L I M E N TA R E S

uma breve discussão sobre a relevância após a Segunda Guerra (meados dos anos
da construção de processos de resistência 1950 aos anos 1970), sob a hegemonia dos
e formas alternativas de organização dos Estados Unidos da América (EUA) e no
sistemas alimentares, lançando desafios contexto da Guerra Fria. Durante esse
para as organizações populares e para as regime, os EUA lançam mão da ajuda
políticas públicas. alimentar para criar alianças, mercados
e oportunidades para seu modelo agroin-
Regimes alimentares: a atividade dustrial intensivo. Para Maluf (2009),
agroalimentar ao longo da história as ajudas alimentares, para além de sua
Friedmann (2000) e McMichael finalidade de doar ou vender alimentos
(2016) estudam os regimes alimentares a baixo custo para nações em situação
– denominação dada às formas como de insegurança alimentar, atendem a
se organizam e funcionam os sistemas um propósito maior de escoar excedentes
e estruturas de produção, processamen- de produção dos países centrais em um
to e comércio de alimentos em escala período de forte expansão da produção
mundial – segundo os interesses e acor- em escala. Entretanto, essas mesmas
dos das nações e grupos econômicos “ajudas”, muitas vezes, desestruturam
hegemônicos. Os regimes caracterizam sistemas de produção locais e afetam os
períodos, estratégias e relações de co- padrões de consumo e a cultura e hábitos
I mércio agroalimentar em que países e alimentares regionais.
corporações agroindustriais sintonizam Este regime foi regido pelo princípio
seus interesses à lógica de acumulação de “apoio ao desenvolvimento” e contou
capitalista e de poder sobre outros po- com forte regulação do Estado no setor
vos e lógicas de organizar a atividade agroalimentar que, dentre outras ações,
alimentar por meio da estruturação de promoveu fortemente a difusão do mo-
um sistema alimentar que se impõe sobre delo da revolução verde na agricultura
essas outras racionalidades. [ver Revolução Verde]. A doutrina liberal
O primeiro regime alimentar é de- defendia a redução das regulações, mas a
nominado imperial (1870 a 1930), pe­ “insegurança alimentar” no contexto da
ríodo marcado pela Revolução Industrial guerra e os conflitos de interesses entre
(hegemonia da Inglaterra no cenário países e entre setores da economia jus-
mundial) e por relações de dominação e tificaram a intervenção governamental
lutas por independência das colônias em na questão alimentar, criando formas
relação ao colonialismo europeu. Nesse de regulação do Estado ao setor agroali-
regime, as relações comerciais ocorriam mentar que não encontrava similar em
bilateralmente, geralmente dos países outros setores da economia.
colonizadores com as colônias e a riqueza Assim, o regime intensivo do pós-
de um capitalismo industrial emergente -guerra foi marcado por políticas e di-
se conectava com zonas de abastecimen- retrizes globais, mediadas pelas Nações
to de alimentação barata em expansão Unidas, para a produção e circulação
pelo mundo. Era regido pelo princípio do de alimentos, com forte intervenção
livre-comércio. dos governos. A indústria, componente
O segundo regime alimentar, iden- central dos investimentos modernizan-
tificado como intensivo ou fordista, surge tes, cresceu e ampliou seu alcance sobre

448
I M P É R I O S A L I M E N TA R E S

os processos agrícolas e, principalmen- liberal”, que “reverteu a ordem do ‘pro-


te, sobre o sistema alimentar. Um dos jeto de desenvolvimento’ anterior, por
resultados do regime intensivo foi, na meio do qual Estados regem mercados”.
produção, a especialização em produtos Agora, “Estados servem a mercados”
em monocultura e, no consumo, a mas- (­McMichael, 2016, p. 71-72). Uma ten-
sificação e homogeneização dos padrões dência em curso é a de que as corpora-
alimentares, com redução da base ali- ções privadas passem a controlar ainda
mentar. No Brasil, o golpe civil-militar de mais o complexo agroalimentar, desde a
1964 representou um campo aberto para produção (mesmo que não atuem direta-
a implementação das políticas alinhadas mente na agricultura) até, principalmen-
a este regime, cuja política econômica se te, a transformação e o mercado.
deu sob grande influência da iniciativa O Brasil, ator relevante na produção
privada e fortemente alinhada aos EUA. mundial de alimentos, tem sido alvo
Temos a compreensão de que esses prioritário dos interesses que regem o sis-
regimes se sucedem ou se reestruturam tema alimentar global, manifestando de
e se mantêm. Atualmente, há um de- forma clara essas transições entre regi-
bate a respeito de estarmos vivendo um mes alimentares. As crises da década de
novo regime ou uma reestruturação e 1980 se refletiram no país, que viveu um
aprofundamento do regime intensivo. momento de desorganização produtiva e
Friedmann e McMichael indicam a desestruturação de políticas, abrindo es- I
vigência do regime alimentar corporativo paço para o avanço das políticas liberais.
(privado), desde os anos 1980, como o 3º A ascensão do governo Collor (1990),
regime alimentar capitalista. por exemplo, marcou esta passagem, com
Esse regime é definido pela hegemo- a redução de políticas e órgãos de estado
nia do mercado (e não mais dos Estados- no campo agroalimentar, ampliando
-nação) e seu papel em um amplo projeto a desregulamentação neste mercado
neoliberal dedicado a assegurar rotas (Menezes; Porto; Grisa, s/d).
transnacionais de capital e commodities Porém, como destacam Friedmann
(incluindo alimentos), transformando e McMichael, o final do século XX tam-
pequenos agricultores em uma força de bém se caracterizou pela emergência de
trabalho global em prol do capital. Tam- um conjunto relevante de lutas sociais
bém é entendido como bifurcado: por um e ambientais. No caso brasileiro, um
lado, a intensificação do regime fordis- dos reflexos dessa luta foi a criação do
ta-industrial (centrado na padronização Programa Nacional de Fortalecimento
dos alimentos e ampliação do controle da Agricultura Familiar (Pronaf) em
por redes supermercadistas) e, por outro, 1995 e a criação do Conselho Nacional
tensionado pela crise socioambiental que de Segurança Alimentar e Nutricional
impõe demandas por novas relações com (Consea) em 1993, extinto pelo governo
a natureza, com os alimentos e com a Fernando Henrique Cardoso em 1995
saúde, muitas dessas agendas assumidas e retomado em 2003 no governo Lula.
por movimentos sociais camponeses, Em síntese, a forte presença estatal
consumidores e povos tradicionais. no regime intensivo fordista promoveu a
O regime alimentar corporativo é organização do complexo agroalimentar
parte do “projeto de globalização neo- em função da especialização produtiva,

449
I M P É R I O S A L I M E N TA R E S

da integração com a grande indústria entre os tipos de agricultura e os modelos


e da homogeneização de hábitos ali- dominantes de interação com a socieda-
mentares, condições que se tornaram a de. Porém, a agricultura empresarial e a
base para o avanço da iniciativa privada capitalista possuem caráter eminente-
sobre a regulação e funcionamento da mente capitalista, estando fortemente li-
produção, processamento, transporte e gadas ao mercado mundial, via indústrias
comercialização de alimentos em escala de processamento e comercialização de
global (Wilkinson, 2008). Esse debate alimentos em escala. Em contraparti-
ganhou um forte impulso com o que da, a agricultura camponesa, em geral,
Ploeg (2008) definiu como “impérios baseia-se em circuitos curtos e descen-
alimentares”, uma leitura crítica do atual tralizados, não submetidos ao controle
sistema alimentar hegemônico, cujos direto do capital, embora indiretamente
elementos são apresentados a seguir. o controle do capital exerça grande in-
fluência. Apesar de submetida também
Impérios alimentares: controle ao Império, a agricultura camponesa (ver
corporativo sobre os alimentos campesinato) representa uma resistência
Impérios alimentares são estruturas a ele, buscando escapar e ultrapassar as
compostas por esquemas de regulação pressões que o império exerce.1 Segundo
política e econômica, nas e através das o autor, o império estabelece as regras
I quais o mercado e o Estado estão cada a que todos devem se alinhar e se sub-
vez mais interconectados, e que impõem meter e, neste sentido, sua relação com
à sociedade e à natureza sua lógica de a sociedade, em qualquer nível, é coer-
funcionamento (Ploeg, 2008). citiva. Seu esforço está em conquistar e
Para Ploeg (2008), as diferentes for- controlar da produção ao consumo de
mas de se fazer agricultura (camponesa; alimentos em escala global.
empresarial; e capitalista ou corpora- O conceito-chave para entender o
tiva de grande escala) interagem com modus operandi do império é o de des-
a sociedade por meio de dois modelos conexões, tanto no tempo quanto no
dominantes: 1) circuitos curtos e descen- espaço (Ploeg, 2008). Na produção, a
tralizados: que aproximam a produção desconexão se observa, por exemplo, no
do consumo, ou seja, a agricultura e a desrespeito às condições dos ecossiste-
sociedade em seu entorno; e 2) impé- mas e dos territórios locais. No consumo,
rio: formado por grandes empresas de se expressa no distanciamento da po-
processamento e comercialização de pulação urbana dos processos técnicos,
alimentos, operando em escala mundial. sociais e ambientais que envolvem a
É um modelo fortemente centralizado, cadeia alimentar2 e na dificuldade em
um modo de ordenamento que tende a definir o que são alimentos saudáveis.
tornar-se dominante e personificado por O império motiva essa desconexão
grandes varejistas, mecanismos estatais, para então estruturar-se a partir dos
grupos do agronegócio, assim como leis, recursos já disponíveis localmente. “Para
tecnologias, modelos científicos etc., implantar essa estrutura, é necessário
que conformam os impérios alimentares. expropriar ou substituir os modos de es-
Ploeg (2008) afirma que não há truturação alternativos” da comunidade
delimitações claras e uma única relação local (Ploeg, 2008, p. 98). A combinação

450
I M P É R I O S A L I M E N TA R E S

dos recursos é definida pela lógica do (transporte, comunicação etc.) que pos-
capital, cuja função não é promover o suem capacidade de transferir grandes
desenvolvimento, mas, sim, acumular quantias de capital de uma parte do
mais capital. “O capital é apenas parte mundo para outra num intervalo peque-
do império – e, seguramente, não o seu no de tempo, mas, também, se origina
núcleo” (Ploeg, 2008, p. 98). O núcleo do nos aparelhos estatais e nos acordos
império é representado pelos conjuntos supranacionais. Complementarmente, o
de normas e parâmetros generalizados império opera em modos de organização
que governam todas e quaisquer práticas centralizados, porém de longo alcance,
locais e específicas no campo agroali- baseados em tecnologia da informação e
mentar (Ploeg, 2008, p. 98). comunicação, além de modos específicos
Ou seja, os impérios alimentares de produção do conhecimento.
sintetizam uma forma de organizar a Um breve olhar sobre o sistema ali-
atividade agroalimentar centrada na mentar global nos permite evidenciar
concentração de capital nas mais diver- esse domínio das grandes corporações.
sas etapas do sistema alimentar, desde a Segundo o ETC Group (2013), em 2011,
produção de insumos (sementes, adubos, as dez maiores empresas de sementes
agroquímicos etc.), passando pelo pro- controlavam 75% do mercado global.
cessamento, transporte e comercializa- Somente a Monsanto (1a colocada) de-
ção dos alimentos. tinha 26% do mercado à época, sendo I
Vejamos: o principal setor em ex- que em 2018 ela foi adquirida em sua
pansão do sistema alimentar atual são totalidade pela Bayer, 7a colocada naque-
as grandes redes varejistas (Flexor, 2008; le momento. Já as 11 maiores empresas
Wilkinson, 2008). Duas lógicas des- de agroquímicos controlavam 98% do
critas por Ploeg são possíveis de serem mercado global, ou seja, quase a totali-
observadas em sua ação. A primeira no dade, sendo que Bayer (2a) e Monsanto
que se refere à apropriação dos recursos (5a) hoje se fundiram. Segue o mercado
locais. Grandes redes nacionais e globais de fertilizantes, em que as dez maiores
varejistas dificilmente abrem novas lojas empresas controlavam 41% do mercado
em uma determinada região, mas agem e no de medicamentos veterinários,
pela fusão e aquisição de redes locais, dominavam 81%.
ou seja, não geram novas riquezas, mas A recente publicação do Atlas do
se apropriam dos recursos existentes e agronegócio (Santos; Glass, 2018) mostra
os direcionam para seus interesses. A essa concentração corporativa em outros
segunda lógica leva essas grandes redes setores do sistema alimentar, eviden-
a determinar uma forma de organizar a ciando a lógica de organização e fun-
atividade varejista, que se impõe sobre cionamento dos impérios alimentares.
redes locais e regionais de supermercados Segundo o documento, 50 fabricantes
(Perez-Cassarino, 2013). de alimentos controlam 50% do mercado
Ploeg (2008) afirma ainda que o global. O Brasil é um dos países onde essa
império é o resultado de mundos so- concentração é mais evidente: “entre 60
ciotécnicos cada vez mais interligados. e 70% das compras de uma família são
Origina-se nas grandes corporações produzidas por dez grandes empresas,
multinacionais e em suas redes diversas entre elas Unilever, Nestlé, Procter &

451
I M P É R I O S A L I M E N TA R E S

Gamble, Kraft e Coca-Cola” (Santos; gica da: 1) expansão (pelo rompimento


Glass, 2018, p. 30). As quatro maiores de fronteiras e domínio da natureza); 2)
comercializadoras de grãos (ADM, Bun- hierarquia (pela imposição da superio-
ge, Cargill e Louis Dreyfus Co) dominam ridade política, cultural, econômica e
70% do mercado global de commodities militar) e 3) ordem (pela reconfiguração
agrícolas (Oxfam, 2018). do mundo natural e social de acordo
Na ponta do sistema alimentar en- com seus interesses).
contram-se as grandes redes varejistas Nesse sentido, o poder e o controle
que, na relação direta com os consu- dos impérios alimentares tendem a se
midores, possuem o poder de definir difundir e a ampliar. Porém, ainda são
hábitos e práticas de compra do público muitas as possibilidades de resistên-
consumidor, exercendo enorme poder cia e enfrentamento a essa lógica, que
de barganha com as demais corporações também possui fissuras e contradições,
à jusante do sistema alimentar. As dez analisadas a seguir.
maiores redes supermercadistas con-
trolam 50% do varejo de alimentos em A resistência aos impérios e a
escala global (Oxfam, 2018). construção de redes alimentares
A concentração de riqueza é refor- alternativas
çada pela característica dos impérios Apesar da hegemonia e pressão po-
I alimentares de sugar e exaurir os re- lítica, econômica e social exercida pelos
cursos naturais locais e, quando estes impérios alimentares, estes não possuem
estão desgastados, estes impérios levam o controle total e absoluto sobre o siste-
a riqueza obtida para outros lugares, dei- ma alimentar. Ao contrário, segundo o
xando a pobreza e a destruição ecológica ETC Group (2017), a “rede camponesa”
no lugar anterior: ele “extrai a riqueza (camponeses, pescadores artesanais e
produzida localmente para concentrá-la agricultores urbanos) é responsável por
e reutilizá-la de acordo com sua lógica” alimentar 70% da população do planeta.
(Ploeg, 2008, p. 91). Ou seja, a agricultura camponesa e os
Uma das manifestações mais claras circuitos regionais e locais ainda pos-
desta ação dos impérios pode ser ob- suem uma relevância significativa na
servada na distribuição de ganhos no produção e consumo de alimentos em
decorrer do sistema alimentar. Segundo escala global. O fato é que essa produ-
a Oxfam (2018), no ano de 2015, do ção e consumo, em sua maioria, não se
preço final pago pelo consumidor por encontra articulada e não possui uma
um alimento, 6,5% correspondiam à fatia ação coletiva que permita dar-lhes vi-
obtida por pequenos agricultores e tra- sibilidade e força política e econômica,
balhadores rurais, 38% ficaram com as seja pela sua dispersão, seja pela falta de
beneficiadoras e fabricantes de alimentos recursos e de políticas que possibilitem
e 48% foram apropriados pelas redes de essa articulação.
supermercados. No âmbito do campesinato, as pro-
Os números demonstram a na- postas e práticas em torno da agroe-
tureza e a dinâmica de organização e cologia e da soberania alimentar têm
funcionamento das redes imperiais, que, buscado promover essa resistência aos
segundo Ploeg (2008), obedecem à ló- impérios alimentares e, ao mesmo tempo,

452
I M P É R I O S A L I M E N TA R E S

construir formas alternativas. O que vale assumem papel essencial neste processo.
ressaltar é que, cada vez mais, essas re- A construção social de mercados emerge
sistências e alternativas só fazem sentido como uma estratégia central de reconfi-
se pensadas na forma de redesenhos dos guração dos espaços de consumo, a partir
sistemas alimentares como um todo, ou da aproximação e articulação social e
seja, que suas práticas configurem mo- política entre agricultores e consumido-
dos contra-hegemônicos que abarquem res. Essa centralidade está apoiada na
as mais diversas etapas da atividade compreensão dos espaços de consumo
agroalimentar. como espaços de disputa política e ideo-
No entanto, Goodman (2017) des- lógica em torno do conceito de qualidade
taca que muitas dessas redes alimentares dos alimentos. Da mesma forma, como
alternativas (RAA) têm sustentado sua espaços de contestação e denúncia do
ação no processo de diferenciação dos modus operandi dos impérios alimentares.
produtos que acarreta, invariavelmente, O debate e a busca de políticas pú-
a prática de preços diferenciados como blicas que fomentem esta perspectiva
forma de valorização desses formatos de cumprem papel fundamental. No Brasil,
produção e consumo. Isso leva a uma desde 2003, uma das principais ferramen-
mercantilização do alimento e a uma tas para propiciar formas de democratizar
diferenciação social pelo consumo, fa- o acesso a alimentos saudáveis são as com-
cilmente cooptada pelas corporações pras públicas; representadas pelo Progra- I
alimentares, limitando a ação dos atores ma de Aquisição de Alimentos (PAA) e
e a expansão dos desenhos alternativos. pelo Programa Nacional de Alimentação
Alguns desafios se apresentam à Escolar (Pnae) (Perez-Cassarino et al.,
construção de RAA, como a ampliação 2016). Ou seja, é preciso resgatar o papel
da escala das experiências visando a do Estado como ente regulador do mer-
popularização do acesso a alimentos de cado alimentar e promotor de modelos
qualidade (agroecológicos, por exemplo). alternativos (Goodman, 2017).
Porém, é preciso superar a noção e as me- Por fim, o alimento, em seus mais
todologias para se gerar escala referencia- diversos âmbitos, tornou-se mais que um
das nos modelos verticais, característicos bem material, um conceito em disputa.
das formas produtivas e logísticas das O redesenho dos sistemas alimentares
grandes corporações. A busca da escala deve levar em conta essa realidade e
por meio de processos horizontais e arti- construir formatos sociais e políticos que
culados, bem como do fortalecimento dos superem a concepção mercantilizada do
sistemas locais de abastecimento, ainda é alimento – que tem gerado concentração
um desafio para os movimentos sociais do de riqueza, exclusão social e degradação
campo e da cidade. ambiental – por uma perspectiva do
Nesse sentido, as formas de comer- alimento enquanto direito humano e
cialização e abastecimento de alimentos patrimônio dos povos.
Referências
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453
I M P É R I O S A L I M E N TA R E S

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L. F. C; FLEXOR, G; SANTOS, R. Mundo rural brasileiro: ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro:
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Porto Alegre: Editora Unesp/Editora da UFRGS, 2016.
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princípios e reflexões conceituais. Brasília: Embrapa, 2013.
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por meio do mercado institucional: a experiência brasileira. In: BEZERRA, I.; PEREZ-CASSARINO,
J. (org.). Soberania alimentar (Sobal) e segurança alimentar e nutricional (San) na América Latina e Caribe.
Curitiba: Ed. UFPR, 2016.
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Internacional de Andalucía/Universidad de Córdoba, 2009.
WILKINSON, J. Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar. Porto Alegre: Editora
da UFRGS. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, 2008.

Para saber mais


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Road Entertainment, 2008. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=smk2xq2l3Ig >. Acesso
em: 29 mar. 2021.
CARNE E OSSO. Direção: Caio Cavechibni e Carlos Juliano Barros. Produzido por Maurício Hashizu-
me. Roteiro e edição: Caio Cavechini. São Paulo: Repórter Brasil, 2011. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=887vSqI35i8. Acesso em: 2 fev. 2021.
MUITO ALÉM DO PESO (Way Beyond Weight, 2012) Obesidade, a maior epidemia infantil da história.
Ficha Técnica: Direção: Estela Renner. Produção Executiva: Marcos Nisti Direção de Produção: Juliana
Borges Fotografia: Renata Ursaia Montagem: Jordana Berg Trilha Sonora: Luiz Macedo (Versão SD).
São Paulo: Maria Farinha Filmes e Instituto Alana, 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=8UGe5GiHCT4&t=34s. Acesso em: 11 out. 2018.
ROTTEN. Produzido por Jonathan Mussman. Netflix, 2018.
SCHUTTER, O. Agroecologia e o direito humano à alimentação adequada. Relatório apresentado pelo
Relator Especial sobre direito à alimentação. Brasília: CAISAN/MDS, 2012.

Notas
1
Para compreender os modelos de agricultura citados (camponesa, empresarial e capitalista), ver
Ploeg (2008), capítulo 1.
2
Para saber mais sobre este processo de desconexão, assistir aos documentários “Muito além do peso”
e “Alimentos SA (Food Inc)”, disponíveis no Youtube.

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INSTITUTOS DE AGROECOLOGIA
LATINO-AMERICANOS (IALAS)
Itelvina M ar ia M asioli
J oão C ar los de C ampos
S imone A par ecida R ezende

Os Institutos de Agroecologia La- agitação política e crescimento das lutas.


tino-Americanos (Ialas) são espaços Constituía-se uma consciência social de
de formação político-profissional com que “outro mundo era possível”, e que
foco na agroecologia, construídos com outra sociedade deveria ser construída. O
o objetivo de formar jovens estudantes povo organizado buscava soberanamente
provenientes das bases dos movimentos forjar um projeto de nação, perspectiva
sociais populares camponeses, indíge- esta que se expressou no slogan do Fórum
nas e afrodescendentes vinculados à Social Mundial (2001). Nesse contexto,
Coordenadora Latino-Americana de houve um ascenso de governos progres- I
Organizações do Campo – Via Campe- sistas que se estabeleceram na região, e
sina (Cloc/Via Campesina)(Castellano, apesar das contradições e dos limites que
2010). Neste verbete, abordaremos ele- estes apresentaram, houve uma alteração
mentos sobre seu surgimento, objetivos da correlação de forças. Essa mudança
e princípios, seus limites e desafios na abriu um novo período na luta de classes,
atualidade. Inicialmente, é importante com possibilidades reais de avanço para os
destacar que a Cloc/Via Campesina é um trabalhadores e trabalhadoras do campo
movimento internacional que articula e da cidade.
povos e organizações sociais do campo.1 Dentre as várias articulações políti-
Nasceu no início dos anos 1990 no auge cas e econômicas entre esses governos,
da ofensiva do neoliberalismo no mundo destacamos a Aliança Bolivariana Para
e particularmente na América Latina, os Povos de Nossa América (Alba). Lan-
onde se intensificava um brutal ataque çada em 2004 pelo governo bolivariano
aos direitos dos povos e aos bens da presidido por Hugo Chávez na Venezuela,
natureza. Sua construção exigiu muita ao lado do governo de Fidel Castro em
sabedoria coletiva, determinação política Cuba, com o firme propósito da cons-
e lutas que ressignificaram o papel dos trução da unidade na América Latina e
camponeses e camponesas na luta pela Caribe, frente aos ataques imperialistas
terra, pela reforma agrária, na defesa dos dos Estados Unidos da América (EUA).
territórios e pela soberania dos povos em Nesse marco, se concretizaram acordos
todo o mundo (Fernandes, 2012). econômicos, políticos, culturais, energé-
No final da década de 1990 e início ticos e sociais, além da implementação
dos anos 2000, a América Latina encon- do Tratado Comercial dos Povos (TCP).
trava-se num momento histórico de muita Assim, a Alba-TCP tem buscado uma

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integração baseada no caráter de jus- rum Social Mundial. O acordo foi firmado
tiça social. Seus princípios se baseiam entre a Via Campesina Internacional,
em seis conceitos-chave: solidariedade, Via Campesina Brasil, Movimento dos
­cooperação, complementaridade, respeito Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
à soberania dos países e povos, justiça e o Governo da República Bolivariana da
social e equidade. Uma oposição ao que Venezuela (Via Campesina, 2005).
propunha a Área de Livre Comércio das Esse protocolo teve como objetivo
Américas (Alca) (Campos, 2014). principal desenvolver ações a fim de pro-
Nesse caminho de lutas, resistências mover a soberania alimentar dos povos,
e enfrentamento ao capital e ao império, assegurar as sementes e a biodiversidade
fortalecidos pelo processo de criação da como patrimônio dos povos e a serviço da
Alba entre os governos progressistas, humanidade, tendo a agroecologia como
potencializou-se a construção da Alba ciência orientadora da reconstrução eco-
Movimentos Sociais. Nela há uma evi- lógica da agricultura e a criação de cursos
dente proposta de integração continental universitários de agroecologia (Martins,
anti-imperialista, antineoliberal e antipa- 2014). A assinatura desse protocolo e a
triarcal, impulsionada por Movimentos determinação da Cloc-Via Campesina
Sociais Populares de todo continente com na criação das escolas/universidades para
base social organizada e com capacidade a formação de jovens do campo abriram
I de mobilização (Aliança Bolivariana para muitas portas para estabelecer outras ini-
os Povos de nossa América TCP, 2012). É ciativas de convênios de cooperação com
nesse bojo que nasce o projeto de cons- várias universidades públicas, governos
trução dos Ialas, sendo que a Escola Lati- nacionais e estaduais, garantindo assim a
no-Americana de Agroecologia (ELAA), constituição e a conquista de vários Ialas
no Assentamento Contestado, localizada em diferentes países. A seguir apresenta-
no estado do Paraná, sul do Brasil, foi a mos a localização, o ano de inauguração
pioneira dessa rede de Institutos Latino- e a localização geográfica dos institutos.
-Americanos de Agroecologia (Escola Escola Latino-Americana de Agro-
Latino-Americana de Agroecologia, ecologia (ELAA): inaugurada em 2005,
2005). Uma segunda iniciativa construída no Assentamento Contestado em Lapa,
quase que paralelamente foi o Instituto Paraná, Brasil.
Agroecológico Latino-Americano Paulo Instituto Agroecológico Latino-
Freire, no Estado de Barinas, na Vene- -Ame­r icano Paulo Freire (Iala Paulo
zuela. O êxito dessas duas experiências Freire): iniciou suas atividades em 2005,
despontou a construção de outras delas no município de Alberto Arvelo Torreal-
em diferentes países. ba, em Barinas, Venezuela.
A iniciativa de construção dos Ialas Instituto Agroecológico Latino-
por parte dos Movimentos Sociais Cam- -Ame­ricano Guarani (Iala Guarani): os
poneses articulados na Cloc-Via Cam- trabalhos de sua construção foram ini-
pesina se concretizou num protocolo de ciados em 2008, está situado no Departa-
cooperação assinado em 30 de janeiro de mento Central, no Distrito Nueva Itália,
2005 durante um ato político realizado no na localidade de Brio Taquara, Paraguai.
Assentamento Lagoa do Junco, no Muni- Instituto Agroecológico Latino-
cípio de Tapes-RS, nos marcos do V Fó- -Ame­r icano Amazônico (Iala Amazô-

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nico): inaugurado em 2009, no assen- e Pesquisa da Reforma Agrária – Iterra,


tamento Palmares 2, no município de 2004; Toná, 2007).
Parauapebas, Pará, Brasil. Como estratégia político-pedagó-
Instituto Agroecológico Latino-Ame­ gica, adota-se a alternância entre dois
ricano Mesoamerica (Iala Mesoamé­rica tempos e espaços educativos: o tempo
Ixim Ulew): com início de suas ativida- escola e o tempo comunidade – esse
des em 2017, está localizado na comuni- tema é abordado com maior profundida-
dade de Tierra Blanca, município Santo de no verbete formação em alternância.
Tomás, departamento de Chontales, Ele com­preende o tempo escola como as
Nicarágua. atividades políticas e acadêmicas desen-
Instituto Agroecológico Lati­no-Ame­ volvidas no período integral de perma-
ricano Semeadoras de esperança (Iala nência no espaço escolar e o tempo co-
Semeadoras de Esperança – só para mu- munidade como as atividades de estudo,
lheres): inaugurado em 2013 na localidade pesquisa e relação com a comunidade no
de Auquinco, Chépica, Chile. pe­ríodo de permanência dos estudantes
Instituto Agroecológico La­t ino- em suas comunidades de origem. Assim,
-Ame­r icano Maria Cano (Iala María a educação se constitui como processo de
Cano): começou sua construção em formação para a ação política e técnica,
2012, foi inaugurado oficialmente em para o protagonismo da classe trabalha-
2017 no município de Viotá Cundina- dora, no qual o princípio educativo do I
marca, Colômbia. trabalho tem que compreender ações
Instituto Agroecológico La­tino-Ame­ de planejamento, estudo e reflexão que
ricano Haiti (Iala Haiti): em processo de visem a multiplicidade de processos de
construção no Haiti. cooperação permanente entre os povos
Entre os princípios pedagógicos e do campo e, em especial, potencializem
organizativos que demarcam a intencio- os processos de agroecologia (Instituto
nalidade na construção dos Ialas está a Técnico de Capacitação e Pesquisa da
busca constante da autonomia e auto- Reforma Agrária – Iterra, 2004; Escola
gestão política, pedagógica, financeira, Latino-Americana de Agroecologia,
organizativa e produtiva, dialogando 2005; Freire, 2006).
permanentemente com a realidade de Para alcançar esses princípios, alguns
cada território. Parte-se da compreen- elementos são necessários: a organização
são coletiva que a realidade concreta e permanente; a criação e o fortalecimento
suas contradições são a base da produ- de coletivos pedagógicos; a formação
ção do conhecimento, ou seja, há uma permanente de educadores e educadoras;
necessária relação entre os processos a combinação entre processos pedagógi-
educativos, a luta político-econômica cos coletivos e individuais; a autonomia,
e os processos produtivos e culturais, autogestão e gestão democrática nos
a relação intrínseca entre a formação processos político-pedagógicos, tendo
política, a formação técnica e acadê- como base a auto-organização dos/das
mica e a vivência permanente com os estudantes para o estudo, trabalho e da
camponeses e as camponesas e seus ter- manutenção permanente da vida em
ritórios (Guhur, 2010; Tardin; Guhur, coletividade (Instituto Técnico de Capa-
2012; Instituto Técnico de Capacitação citação e Pesquisa da Reforma Agrária

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– Iterra, 2004; Escola Latino-Americana Colômbia; ou especialização em agroeco-


de Agroecologia, 2005). logia, no Brasil. Vale ressaltar que os Ialas
Os Institutos de Agroecologia são se formaram a partir da experiência dos
escolas internacionais de formação téc- Centros de Formação em Agroecologia e
nica e política que buscam formar seres demais experiências de educação popular
humanos em suas várias dimensões com na Educação Básica, nos distintos países,
base em uma perspectiva politécnica, assim como as experiências desenvolvidas
que tem no trabalho, nas relações so- nos cursos universitários conquistados no
ciais e na relação da sociedade com a marco do Programa Nacional de Educa-
natureza seus pilares formativos funda- ção na Reforma Agrária (Pronera), no
mentais (Caldart, 2015) [ver Educação caso do Brasil.
Politécnica]. Objetivam a formação de Muitos têm sido os desafios na cons-
intelectuais orgânicos que contribuam trução dos Ialas ao longo desses mais de
na construção do projeto estratégico 14 anos. Num cenário de hegemonia do
de transformação social, formando um agronegócio como expressão do reorde-
espaço unitário de articulação da classe namento global do capitalismo no cam-
trabalhadora, sendo expressão viva do po, o âmbito das políticas públicas para a
princípio internacionalista da luta e agricultura na maioria dos países no con-
resistência do povo Latino-Americano tinente tem fortíssima representação no
I (Escola Latino-Americana de Agroeco- poder político no Estado, bem como há
logia, 2009). Visam também fortalecer uma hegemonia dominante no controle
o intercâmbio de experiências políticas, sobre a formação de profissionais das
organizativas, culturais e resgatar os ciências agrárias sintonizados com seus
saberes ancestrais agroecológicos, pau- interesses e necessidades (Coordenadora
tados na qualidade no processo educa- LatinoAmericana de Organizaciones del
tivo, primando pela autonomia política Campo (Cloc)/Via Campesina, 2015).
pedagógica na formação de sujeitos que Neste sentido, os Ialas representam uma
tenham condições técnicas, científicas e grande conquista na ruptura da “cerca do
metodológicas de discutir e implementar latifúndio do conhecimento” em ciências
a agroecologia (Castellano, 2010). São agrárias. Em todos os países onde estão
escolas da classe trabalhadora em luta, funcionando, foram as primeiras escolas
escolas que buscam construir uma práti- de graduação em agroecologia, pioneiras
ca pedagógica a partir da integração po- inclusive para a criação dos cursos for-
pular latino-americana (Campos, 2014). mais em agroecologia em parceria com
Portanto, os Ialas são parte da po- as instituições e universidades públicas,
lítica de formação e educação da classe que na maioria dos casos certifica os
trabalhadora, projetados por movimentos cursos e também é a via de fornecimento
sociais populares em parceria com outras do quadro docente dos cursos. Estes pro-
instituições. Desenvolvem diferentes cur- cessos impulsionaram o reconhecimento
sos em nível de educação básica, tecnoló- desta formação técnica como profissão
gica e universitária, como, por exemplo: legitimada (Escola Latino-Americana de
Engenharia em agroecologia, na Venezue- Agroecologia, 2005).
la e Paraguai; tecnólogo em agroecologia O processo social e pedagógico
e técnico em agroecologia, no Brasil e desenvolvido nessas escolas correspon-

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dem à práxis transformadora posta em movimentos sociais que acompanham


marcha pelas organizações e movimen- cada instituto imprimem. Identidade essa
tos sociais camponeses articulados na que se apresenta na cultura vivenciada
Cloc-Via Campesina. Esses princípios e recriada; na relação orgânica com as
e valores que orientam e permeiam a comunidades de origem e no entorno
práxis social nos Ialas rompem com o desses institutos; na forma das relações
elitismo das instituições acadêmicas e estabelecidas com as instituições parceiras
a prática anti-dialógica dos profissio- para a construção, a ampliação e o fortale-
nais técnicos, concretizando-se como cimento de processos agroecológicos; e na
uma universidade popular que propõe e articulação dos conhecimentos científicos
exercita a prática do diálogo de saberes e populares na educação político-pro-
na convivência social entre técnicos, fissional em agroecologia [ver Educação
educadores, professores e professoras, Popuar em Agroecologia].
camponeses e camponesas (Guhur, Os Ialas colaboram diretamente na
2010; Tardin; Guhur, 2012; Instituto luta pelo acesso à escolarização, direito
Técnico de Capacitação e Pesquisa negado aos povos do campo, e reafir-
da Reforma Agrária – Iterra, 2004; mam contundentemente a compreensão
Toná, 2007). de agroecologia como uma ciência viva
Em cada país, os Ialas vão se estabe- e vinculada a um projeto político da
lecendo com a identidade própria que os classe trabalhadora. I

Referências
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459
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

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Nota
1
A Cloc é uma organização regional da Via Campesina Mundial. Seu território de abrangência é
a América Latina e Caribe. Mais informações a respeito da Cloc–Via Campesina, seus objetivos,
princípios e história encontram-se disponíveis no site https://cloc-viacampesina.net/.

INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

I nês C laudete B urg

I A coevolução é um tipo de evolução convencional tem seu manejo centrado


da comunidade formada pelos seres vivos no controle das interações negativas
através da interação evolutiva positiva (predação, parasitismo, competição),
entre seus organismos, o que resulta e para isso lança mão de herbicidas,
em uma estreita interação ecológica, inseticidas e fertilizantes para cor-
com pressão seletiva recíproca em que rigir deficiências do solo e resolver
a evolução de uma espécie na relação problemas que surgem a partir dos
depende em parte da evolução da outra. desequilíbrios provocados em fun-
Neste processo foram se desenvolvendo ção do manejo. Já a agroecologia tem
vários tipos de interações ecológicas como princípio os processos ecológicos
entre organismos, como o mutualismo, dos agroecossistemas, e dessa forma a
a protocooperação e a simbiose (Box 1). compreensão desses processos para a
Em contraponto aos benefícios das transição e manejo agroecológicos se
interações ecológicas, a agricultura torna imprescindível.

Definição e exemplificação das relações ecológicas


Mutualismo
É uma relação ecológica harmônica entre seres vivos de espécies diferen-
tes, em que ambas são beneficiadas na relação. Mais do que isso, as espécies
necessitam uma da outra para sobreviver, ou seja, estabelecem uma relação de
dependência. Exemplos:
• O cupim e os protozoários que vivem no seu sistema digestivo. O cupim
necessita desses protozoários para fazer a digestão da celulose e o proto-
zoário necessita da celulose consumida pelo cupim como alimento;

460
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

• Os líquens formados pelas algas e fungos. Os fungos fornecem às algas


proteção, minerais e nitrogênio e recebem das algas matéria orgânica para
se alimentar; e
• Fungos micorrízicos que vivem em associação com as raízes, onde formam
órgãos que aumentam a capacidade da planta de extração de minerais do
solo, especialmente o nitrogênio e o fósforo. Os fungos, por sua vez, são
abastecidos com parte dos fotossintatos da planta, em especial os açúcares
da planta que lhes servem de alimento.

Protocooperação
Considerada uma relação ecológica harmônica facultativa entre seres vivos
de espécies diferentes, em que ambas se beneficiam; porém, ao contrário do que
ocorre no mutualismo, ela não é indispensável para a sobrevivência. Exemplos:
• a relação entre abelhas e algumas espécies de vegetais. As abelhas se ali-
mentam do néctar destas plantas, que não ficam prejudicadas; ao contrário,
se beneficiam da polinização feita pelas abelhas; e
• algumas espécies de pássaros que comem carrapatos de bois e cavalos.

Simbiose
É uma associação de dois seres vivos, duas plantas ou uma planta e um
I
animal, na qual ambos os organismos recebem benefícios, mesmo que em pro-
porções desiguais. Nestas relações, cada parceiro proporciona algo que o outro
não possui. Exemplos:
• o líquen é o resultado da simbiose entre o fungo e a alga; o fungo fornece
abrigo e umidade e a alga fornece hidrato de carbono. Eles vivem como
se fossem um único ser: e
• as plantas, em sua maioria da família das leguminosas, que podem conse-
guir uma parte ou a totalidade de sua nutrição nitrogenada diretamente
do ar, devido sua associação com bactérias específicas ou rizóbios que
formam nódulos nas plantas, onde o nitrogênio do ar é convertido em
nitrogênio fixado para a assimilação ou estocagem pela planta.

Biodiversidade funcional entre os componentes bióticos e abióti-


Algumas formas de manejo que cos no agroecossistema e à manutenção
adotamos no desenvolvimento de de um equilíbrio dinâmico. Em sistemas
agroeco­ssistemas podem incrementar que se mantêm em equilíbrio dinâmico
essas relações ou interações resultando através de complexas inter-relações,
em inúmeros benefícios. Recentemente, prevalece a coexistência, em detrimento
tem-se discutido com muita ênfase a da competição.
necessidade do incremento na biodiver- As interações entre organismos
sidade funcional relacionada às funções- afetam a distribuição e a abundância
-chave dos organismos nas interações das espécies; portanto, a diversifica-

461
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

ção de espécies animais e vegetais nos do solo, especialmente o nitrogênio e


agroecossistemas promove um efeito o fósforo. Os fungos, por sua vez, são
positivo nos sentidos temporal e espacial abastecidos com parte dos fotossintatos
(Gliessman, 2001). Os principais efeitos da planta, em especial os açúcares da
positivos estimulados são o aumento planta que lhes servem de alimento. Os
da população de inimigos naturais em fungos micorrízicos também ajudam a
virtude da maior disponibilidade de suprimir certas plantas espontâneas não
alimento (néctar e pólen) ou abrigo, que desejadas, bem como podem melhorar
favorece a sobrevivência e o potencial a resistência de raízes colonizadas ao
reprodutivo de predadores e parasitoides ataque de patógenos do solo, incluindo
(inseto que põe ovos no corpo do hospe- fungos ou nematoides. Em contraparti-
deiro, matando-o durante o seu desen- da, são considerados os mais importantes
volvimento); aumento da diversidade de agentes biológicos para agregação do
espécies fitófagas, as quais podem servir solo, o que causa uma melhoria na ab-
de alimento alternativo na ausência de sorção e retenção da água, penetração de
praga-chave; dificuldades de localização raízes, maior diversidade da biota do solo
do hospedeiro, com efeito negativo sobre e maior presença de minhocas (Odum;
a permanência e a reprodução de insetos Barret, 2011).
especialistas, principalmente quando os
I sistemas de transição são formados por Simbiose
misturas de plantas hospedeiras e não Da mesma forma, podemos citar a
hospedeiras [ver Teia A limentar]. Tais contribuição das bactérias na fixação
efeitos devem-se à confusão proporcio- simbiótica de nitrogênio (N). A impor-
nada pelo excesso de estímulos visuais e tância do N pode ser tão limitante quan-
químicos (Ritzinger et al., 2017). to a água para o crescimento e produtivi-
dade das plantas. Essas dependem do N
Mutualismo da matéria orgânica (MO) do solo ou da
Na agricultura, a ciclagem mineral, adição de adubos nitrogenados (Odum;
assim como a produção de alimentos, é Barret, 2011). As plantas das famílias das
aprimorada por reações mutualísticas leguminosas podem conseguir uma parte
entre microrganismos e plantas. Estes ou a totalidade de sua nutrição nitroge-
microrganismos podem ser inoculados nada diretamente do ar, devido às suas
com a aplicação de biofertilizantes, ou associações com bactérias específicas ou
suas populações aumentadas com o rizóbios que formam nódulos nas plantas
aumento de matéria orgânica no solo. onde o nitrogênio do ar é convertido em
De forma geral, a diversidade de mi- nitrogênio fixado para a assimilação ou
crorganismos presentes no solo favorece estocagem pela planta. Essa colaboração
uma série de interações que resultam em planta-bactéria pode ser considerada
benefícios entre as espécies. Exemplos uma nova forma de vida. A complexi­
importantes de mutualismo são os fungos dade dos tecidos dos nódulos e o alto
micorrízicos que vivem em associação grau de especialização para regular os
com as raízes onde formam “órgãos” gases, enzimas e o transporte vascular,
compostos que aumentam a capaci­ indicam uma longa coevolução entre as
dade da planta de extração de minerais duas partes da ação cooperativa. O N

462
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

fixado pelas associações simbióticas sig- estratos de células de microrganismos ou


nifica uma importante alternativa ao uso microrganismos vivos, através da utiliza-
de fertilizantes químicos nitrogenados. ção de bioprodutos na agricultura, que
além de induzir a resistência em plantas
Organismos endofíticos promovem o crescimento delas. Dentre
Outra categoria de microrganismos as rizobactérias mais estudadas como
que estabelecem interações ecológicas elicitadoras de indução de resistências
são os endofíticos, que são encontrados tem-se destacado espécies do gênero
em órgãos e tecidos vegetais como folhas, Bacillus, pois elas, além de participar
ramos e raízes e têm a capacidade de como indutores bióticos, promovem o
colonizar sistematicamente o hospedei- crescimento de plantas. Os benefícios
ro, alterando a sua condição fisiológica resultam da produção de hormônios e
e morfológica, além de atuar sobre as antibióticos produzidos pela bactéria
populações de outros microrganismos que, como outras espécies do gênero,
presentes no interior da planta. Há vários coloniza a raiz. A indução de resistência
efeitos positivos atribuídos às bactérias com a utilização de rizobactérias promo-
endofíticas, como a promoção do cresci­ toras de crescimento são importantes no
mento vegetal, fixação de N, controle manejo de doenças e pragas. As rizobac-
biológico de pragas e doenças, indução térias Bacillus subtilis e B. pumilus podem
de resistência sistêmica, produção de reduzir a severidade de diversas doenças I
sideróforos (composto orgânico que atua foliares, como a ferrugem; Pseudomonas
na captação de ferro por organismos aereofaciens podem induzir a resistência à
como as bactérias) e produção de anti- antracnose; P. aeruginosa podem conferir
bióticos. A intima relação entre micror- maior resistência à podridão radicular; e
ganismos endofíticos e seus hospedeiros Bacillus thuringiensis têm efeitos proteto-
envolveu processos coevolutivos. Os res contra patógenos.
microrganismos produzem metabólitos
secundários como antibióticos, pigmen- Biofertilizantes
tos, toxinas, indutores de competição Os biofertilizantes utilizados na
ecológica e simbiose, pesticidas, inibi- agricultura podem ser produzidos em
dores de enzimas, agentes antitumorais, meio aeróbico e anaeróbico, a partir
feromônios e promotores de crescimento de uma mistura de materiais orgânicos
de animais e plantas. O conhecimento (esterco, frutas, leite), minerais (macro e
desses princípios e interações ecológicas micronutrientes) e água, que passam por
é importante para fundamentar algumas um processo de fermentação, resultan-
práticas no manejo das lavouras e do do em um líquido rico em nutrientes e
agroecossistema como um todo. microrganismos, cujos teores irão variar
de acordo com a forma de preparo e da
Elicitores e indução de resistências matéria-prima utilizada. Os biofertili-
Existem também microrganismos zantes funcionam como promotores de
que são promotores de crescimento ve- crescimento (equilíbrio nutricional) e
getal, como as rizobactérias, que induzem como elicitores na indução de resistência
a resistência a doenças em plantas. A re- sistêmica na planta. Além disso, ajudam
sistência de plantas pode ser ativada por na proteção da planta contra o ataque de

463
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

doenças, por antibiose (Bettiol; Tratch; mento, indutores de resistência a pragas,


Galvão; 1998) e contra o ataque de pra- doenças e estresse abiótico. O conhe-
gas, por ação repelente, fagodeterrente cimento da diversidade microbiológica
(inibidores de alimentação) ou afetando presente em biofertilizantes é de grande
o seu desenvolvimento e reprodução. importância para a compreensão da for-
Essa estratégia tem sido um dos processos ma como os microrganismos são afetados
mais empregados no manejo trofobióti- pela variação do tempo de maturação
co de pragas e doenças e é baseada no do produto, quais fatores ambientais os
equilíbrio nutricional da planta (tro- influenciam e como podem atuar na
fobiose), em que a resistência é gerada nutrição vegetal. Em algumas pesquisas
pelo melhor equilíbrio energético e me- já realizadas foram identificados 217
tabólico do vegetal (Chaboussou, 1987; microrganismos ao longo do processo
Pinheiro; Barreto, 1996) [ver Trofobiose]. de maturação do biofertilizante. Castro;
Os biofertilizantes possuem compostos Santos; Akiba (1992) e Bettiol; Tratch;
bioativos, resultantes da biodigestão de Galvão (1998) isolaram várias leveduras
compostos orgânicos de origem animal e bactérias, destacando Bacillus subitilis,
e vegetal, como células vivas ou latentes reconhecido produtor de antibióticos.
de microrganismos (bactérias, leveduras, Importantes grupos microbianos de
algas e fungos filamentosos) e também ação conhecida, como promotores do
I metabólitos e quelatos organominerais crescimento vegetal, foram isolados, a
e metabólitos como compostos de pro- exemplo do Bacillus spp., Streptomyces
teínas, enzimas, antibióticos, vitaminas, spp., Artrobacter spp., Alcaligenes spp.,
toxinas, fenóis, ésteres e ácidos, inclusive Trichoderma spp., entre outros.
de ação fito-hormonal. A elaboração de inoculantes com
Alguns possíveis inóculos de micror- microrganismos de eficácia já compro-
ganismos são: esterco bovino, cama de vada tem se constituído uma alternativa
aviário, solo proveniente de regiões com viável aos atuais sistemas de produção.
densa vegetação preservada ou microrga- Percebem-se resultados positivos do
nismos eficientes (EM), entre outros. A biofertilizante na melhoria das carac-
adição de microrganismos contribui para terísticas químicas, físicas e biológicas
a fermentação do biofertilizante e para o do solo; controle de pragas e doenças.
aumento da população de microrganis- Segundo Pinheiro; Barreto (1996), os
mos benéficos no solo. Posteriormente, metabólitos resultantes do processo
estes atuarão nos seguintes processos: fermentativo, como enzimas, coenzimas,
melhoria na fertilidade do solo com a cofatores (metaloporfirinas, citocromos,
ciclagem da matéria orgânica; melhor vitaminas etc.) ativam e catalisam as
disponibilidade e reposição de nutrien- reações biológicas das plantas superiores.
tes para as plantas; fixação biológica Além do efeito nutricional conhecido,
de nitrogênio; solubilização de fosfato; os biofertilizantes apresentam efeitos de
produção de hormônios vegetais ou ação fungistática e bacteriostática sobre
fitoestimuladores. Além disso, podem fitopatógenos, aumentando a resistên-
disponibilizar nutrientes inicialmente em cia das plantas ao ataque de pragas e
formas não assimiláveis para as plantas doenças (Bettiol; Morandi, 2009), e na
que atuarão como promotores de cresci- inibição do desenvolvimento e reprodu-

464
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

ção de alguns insetos e ácaros fitófagos. microrganismos nocivos, como


O autor relata também os efeitos deste o Fusarium;
biofertilizante sobre o crescimento e a • bactérias fotossintéticas que uti-
sanidade de hortaliças. Deleito et al. lizam a energia solar em forma
(2004) concluíram que o biofertilizante de luz e calor. Também utilizam
apresentou efeito benéfico ao desenvol- substâncias excretadas pelas
vimento de mudas de pimentão e ação raízes das plantas na síntese de
bacteriostática sobre Xhantomonas cam- vitaminas e nutrientes, ami­
pestris pv. Vesicatoria. noácidos, ácidos nucleicos, subs-
tâncias bioativas e açúcares, que
Microrganismos eficientes (EM) favorecem o crescimento das
Os chamados microrganismos efi- plantas. Aumentam as popula-
cientes são muito utilizados atualmente ções de outros microrganismos
e disponíveis em formulações comer- eficazes, como os fixadores de
ciais. São considerados microrganismos nitrogênio, os actinomicetos e
regenerativos e produzem via metabo- os fungos micorrízicos.
lismo secundário hormônios e vitami- Os microrganismos retiram seus
nas. Além de produzir as substâncias alimentos da matéria orgânica formada
orgânicas úteis às plantas, melhoram por restos vegetais e animais. Nessa
as propriedades físicas, químicas e bio- decomposição, há redução do todo em I
lógicas do solo. O EM é formado pela compostos menores, que são liberados
comunidade de microrganismos encon- no ambiente. Muitos desses compostos
trados naturalmente em solos férteis e são nutrientes, hormônios, vitaminas
em plantas, que coexistem quando em que alimentam a própria comunidade
meio líquido. Quatro grupos de micror- microbiana, além de animais e plantas.
ganismos compõem o EM: Os microrganismos ainda liberam no
• leveduras (Saccharomyces) que ambiente alguns compostos que aumen-
utilizam substâncias liberadas tam a resistência das plantas aos insetos
pelas raízes das plantas, sinte- e doenças. A decomposição da matéria
tizam vitaminas e ativam ou- orgânica no solo faz proliferar grupos de
tros microrganismos eficazes do microrganismos, que estruturam o solo,
solo. As substâncias bioativas, agregam melhor as partículas mine-
tais como hormônios e enzimas rais, evitam compactação e aumentam
produzidas pelas leveduras, pro- a porosidade, a infiltração de água, a
vocam atividade celular até nas água disponível e a profundidade de
raízes; enraizamento. Como consequência, há
• actinomicetos que controlam redução da erosão e da frequência da
fungos e bactérias patogênicas e necessidade de irrigação. Os microrga-
também aumentam a resistência nismos eficientes podem ser aplicados
das plantas; nos solos, especialmente nos berçários
• bactérias produtoras de ácido de plantio, pulverizados sobre as plantas,
lático (Lactobacillus e Pediococ- inoculados em sementes, na água, para
cus), que produzem ácido lático saneamento ambiental, na compostagem
com o qual controlam alguns e nos animais, para prevenir doenças.

465
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

Adubação orgânica integrado por diversos componentes, cujo


Os sistemas agroecológicos têm dinamismo está ligado à incorporação de
como princípio de manejo o uso da adu- resíduos vegetais, animais e microbianos ao
bação orgânica, que visa ativar e manter solo e à transformação e evolução destes,
a vida dos organismos no solo. Além mediadas pela interação de vários proces-
disso, as substâncias húmicas presentes sos ecológicos sucessivos. As substâncias
nos adubos orgânicos têm a capacidade húmicas estão presentes nos solos, nas
de estimular diretamente o crescimento águas e nos sedimentos. Além de influen-
das plantas, especialmente de suas raízes ciar as características físicas, químicas e
[ver Solos]. O uso da adubação orgânica microbiológicas desses compartimentos,
procura imitar os processos naturais de podem afetar diretamente o metabolismo
ciclagem dos nutrientes, direcionando-os e o crescimento das plantas. A respeito
para o aproveitamento das culturas. Os dos efeitos fisiológicos das substâncias
restos de culturas, a adubação verde, a húmicas, grande parte dos trabalhos ci-
aplicação de estercos, a queda de folhas, tados relatam estímulos de promoção do
a morte de animais e microrganismos crescimento radicular de diversas plantas.
devolvem para o solo a matéria orgânica Com­preender isso é fundamental para elu-
da qual são formados. A decomposição cidar a adaptação das plantas ao ambiente
desses resíduos no solo libera energia e e para o uso e o manejo racional da matéria
I substâncias nutritivas que podem ser orgânica. Além de fornecer nutrientes
utilizadas novamente pelas plantas e para as plantas por meio da mineralização
pelos microrganismos, fechando, assim, (transformação das formas orgânicas em
um ciclo de vida, ou seja, de trans- formas minerais assimiláveis por meio da
formações químicas que conduzem à ação das enzimas dos microrganismos), as
estabilidade da matéria orgânica e do substâncias húmicas também podem esti-
solo. Além de adicionar nutrientes, a mular diretamente o desenvolvimento e o
adubação orgânica afeta as propriedades metabolismo das plantas por meio de me-
físicas, químicas e biológicas do solo, canismos ainda não totalmente elucidados.
contribuindo para o desenvolvimento
de um ambiente favorável ao desen- Caldas fertiprotetoras
volvimento das plantas [ver C iclagem As caldas fertiprotetoras são de am-
de N utrientes]. Entre os benefícios, há plo uso na agricultura, sendo que a do
a redução da densidade e melhoria da tipo sulfocálcica possui ação fungicida,
estrutura do solo; melhoria na aeração inseticida e acaricida, sendo utilizada,
e drenagem; proteção do solo contra ainda, como fertilizante foliar, pois for-
erosão e aumento da capacidade de nece cálcio e enxofre ao metabolismo
fornecimento e retenção de nutrientes. das plantas, que estimulam as reações
de fotossíntese e induzem-nas à maior
Substâncias húmicas resistência às pragas. A calda bordalesa
A matéria orgânica do solo age so- tem ação preventiva e curativa contra
bre o desenvolvimento e o metabolis- fungos e bactérias, e algumas contêm
mo das plantas, através da bioatividade micronutrientes. O princípio básico
de substâncias húmicas (Canellas et al., dessas caldas é aumentar a resistência
2005). Trata-se de um sistema complexo das plantas, fortalecer os tecidos folia-

466
INTERAÇÕES ECOLÓGICAS

res, dando proteção contra o ataque de micro e macrorganismos coevoluiram e


pragas e doenças. Uma das principais desenvolveram intricadas interações e
razões desse fortalecimento das plantas interdependências. A conservação da
é o fornecimento de nutrientes essenciais diversidade genética e o incremento
que atuam no processo de proteossíntese, da biodiversidade funcional são fun-
com redução dos radicais livres e açúca- damentais para a manutenção desses
res solúveis. processos e para o desenvolvimento
Durante o processo de evolução da de agroecossistemas produtivos e em
agricultura, humanos, plantas, animais, equilíbrio dinâmico.

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uso da agrobiodiversidade: relatos de experiências locais. Coleção Transição Agroecológica. Embrapa. 2017.

467
J
JUSTIÇA AMBIENTAL

M arcelo Fir po de S ouza Porto

Esse texto está organizado em duas tin Luther King. Nos anos seguintes, es-
partes.1 Inicialmente, buscamos situar o ses movimentos buscaram se reinventar
contexto que deu origem ao conceito de e encontraram uma importante fonte de
justiça ambiental (JA) nos EUA, estreita- inspiração no ambientalismo que crescia
mente relacionado à articulação entre os nos EUA à época, principalmente a
movimentos pelos direitos civis e contra partir da publicação, em 1962, do livro
o racismo, e o movimento ambientalista A primavera silenciosa, de Rachel Carson
em ascensão. Posteriormente, vários (Carson, 2010).
movimentos ambientalistas e sociais A articulação entre ambas as lutas
em todo o mundo foram incorporando sociais emergentes, contra o racismo e
o conceito, inclusive na América Latina pela ecologia, ganhou fôlego no final
e no Brasil. nos anos 1970 e início dos anos 1980
Na segunda parte do texto, traba- quando, pela primeira vez, foi cunhado
lhamos o conceito de justiça ambiental o termo racismo ambiental. O principal
a partir da Ecologia Política, em arti- conflito que provocou o uso da expressão
culação com outras três dimensões da foi um caso de contaminação de resíduos
justiça – social, por saúde e cognitiva. tóxicos em uma comunidade afro-ame-
Também buscamos estabelecer uma ricana em Warren County, Carolina do
breve conexão entre justiça ambiental e Norte. Ele estabeleceu não apenas uma
a agroecologia. conexão entre a distribuição desigual da
poluição de acordo com a classe social,
Racismo e justiça ambiental: origens mas também com a questão racial. Ou
nos EUA e sua expansão no Brasil seja, as áreas mais poluídas não estavam
A expressão justiça ambiental foi somente concentradas onde se encon-
originalmente cunhada nos EUA entre travam os trabalhadores mais pobres e
os anos 1970 e 1990. Após avanços im- explorados: a poluição tinha cor e raça.
portantes, o movimento negro e pelos Desde então, o racismo ambiental
direitos civis sofreu importantes reveses passou a ser usado e é considerado por
com o assassinato de líderes como Mar- muitos ativistas e teóricos o mais adequa-
J U S T I Ç A A M B I E N TA L

do. Posteriormente, os conceitos de in- ou desabamento ocasionados por chuvas


justiça e justiça ambiental passaram a ser torrenciais ou, ainda, locais poluídos
crescentemente utilizados por incorporar próximos a estradas com trânsito intenso
de forma ampla inúmeros movimentos e e riscos de acidentes de trânsito.
lutas sociais para além dos trabalhadores Com o acirramento da crise eco-
e negros, como as mulheres, os indígenas e lógica, ao longo da década de 1990 e
outros movimentos étnicos. Por exemplo, no século XXI o conceito de justiça
nos EUA foram criadas várias associações ambiental passou a ser incorporado por
de justiça ambiental de acordo com a ori- vários movimentos e lutas sociais do
gem das populações: chicanos e latinos, planeta. Como era de se esperar, exis-
africanos, árabes, dentre outras. tem diferenças entre seu uso nos EUA
Os conceitos de racismo e (in)justiça e em continentes como Ásia, África
ambiental não são excludentes: enquanto e América Latina, com suas distintas
o último é mais geral, o primeiro reforça condições históricas, econômicas, eco-
a dimensão colonial e racista das desi- lógicas e culturais.
gualdades ambientais contra negros, Por exemplo, nos EUA, os movi-
indígenas e povos do Sul Global. A carta mentos por justiça ambiental foram for-
de princípios para a justiça ambiental temente organizados por comunidades
apresentada nos EUA em 1991 fala da locais e grupos étnicos bastante especí-
necessidade de serem transformadas as ficos, especialmente populações negras,
lógicas de colonização e opressão políti- mas também indígenas e outras. Embora
ca, econômica e cultural que marcaram autores como Robert Bullard assumam
J os cincos séculos de colonização no uma visão crítica quanto à dimensão não
continente americano. apenas racial, mas das classes sociais ex-
Para o sociólogo Robert Bullard ploradas pelo capitalismo na distribuição
(1994), um dos maiores nomes da luta desigual dos problemas ambientais, nos
contra o racismo ambiental nos EUA, a EUA, visões localistas pouco sistêmicas
justiça ambiental deve ser compreendida influenciaram reivindicações comunitá-
como um movimento amplo de enfrenta- rias não acompanhadas de uma dimen-
mento da questão ambiental articulada são humanitária e internacional mais
às várias formas de discriminação social: ampla da questão ecológica. Tal visão
de classe, racial, de gênero e étnica. foi reforçada por noções funcionalistas
Bullard também é um dos criadores da da sociologia ambiental como os gru-
noção de zona de sacrifício, que designa pos Nimby (“Not In My Backyard”, ou
os locais mais poluídos e sem infraestru- “Não no Meu Quintal”) para justificar
tura que expõem as populações vulne- as lutas de grupos sociais que passavam
rabilizadas por sua condição de classe, a rejeitar fábricas poluentes ou lixões
raça, etnia e gênero a toda uma sorte próximos aos seus locais de moradia,
de cargas ambientais desigualmente circulação e trabalho, sem considerar
distribuídas que provocam injustamente a divisão internacional do trabalho e
doenças e mortes evitáveis. Tais locais dos riscos decorrentes do capitalismo
podem ser lixões, aterros de rejeitos ur- globalizado. Visões acríticas também
banos ou industriais, fábricas perigosas e estão presentes na economia ambiental
poluentes, áreas de riscos de inundação e em propostas como a economia verde,

470
J U S T I Ç A A M B I E N TA L

as quais reforçam o discurso dominante dos danos ambientais do desenvolvi-


que considera serem todos igualmente mento às populações de baixa renda,
responsáveis pelas causas e consequên- aos grupos sociais discriminados,
cias dos problemas ambientais (Acselrad; aos povos étnicos tradicionais, aos
bairros operários, às populações mar-
Herculano; Pádua,2004).
ginalizadas e vulneráveis.
Na América Latina e no Brasil, o
processo de incorporação dos conceitos Já o conceito de justiça ambiental
de racismo e justiça ambiental possui é entendido por um conjunto de prin-
características próprias. Embora a rápi- cípios e práticas que asseguram que
da urbanização ao longo do século XX nenhum grupo social, seja ele étnico,
tenha produzido cidades e metrópoles racial, de classe ou gênero, “suporte uma
fortemente desiguais em termos das parcela desproporcional das consequên-
condições de vida e trabalho, com a cias ambientais negativas de operações
expansão de favelas e periferias que se econômicas, decisões de políticas e de
assemelham à noção de zonas de sacrifí- programas federais, estaduais, locais,
cio, os movimentos urbanos que reivin- assim como da ausência ou omissão de
dicam moradia, saneamento e cidades tais políticas” (Rede Brasileira de Justiça
mais inclusivas e democráticas não têm Ambiental, 2002).
incorporado de forma mais ampla, até Desde seu lançamento, a RBJA,
o momento, conceitos como racismo e com diferentes percursos e percalços,
justiça ambiental. tem articulado múltiplos sujeitos nas
No Brasil, um marco importante na lutas em torno de conflitos e injustiças
incorporação dos conceitos de racismo ambientais, sejam eles vinculados a mo- J
e justiça ambiental ocorreu em setem- vimentos sociais, ONGs, organizações
bro de 2001, quando representantes de comunitárias ou grupos acadêmicos. De
movimentos sociais, sindicatos, ONGs, diversas formas a RBJA vem promoven-
entidades ambientalistas, organizações do intercâmbios e trocas de experiências,
afrodescendentes, indígenas e pesqui- reflexões teóricas, análises de contexto e
sadores universitários do Brasil – com a elaboração de estratégias de ação.
presença de convidados dos EUA, Chile Para concluir esse item, uma obser-
e Uruguai – se reuniram em um Colóquio vação sobre a diferença entre injustiça
Internacional sobre Justiça Ambiental, ambiental e conf lito ambiental. As
Trabalho e Cidadania na Universidade injustiças ocorrem sempre que existe
Federal Fluminense. O colóquio resultou exploração, espoliação, violência e vio-
no lançamento de uma Declaração de lação de direitos humanos, territoriais e
Princípios no Fórum Social Mundial, de saúde envolvendo inúmeras popula-
em Porto Alegre, em 2002, e em seguida ções, comunidades e trabalhadores por
foi criada a Rede Brasileira de Justiça parte de projetos, políticas, instituições
Ambiental (RBJA). governamentais e ações de empresas
A declaração da RBJA definiu in- ligadas a setores como agronegócio,
justiça ambiental como mineração, construção de hidrelétri-
o mecanismo pelo qual sociedades
cas, especulação imobiliária, dentre
desiguais, do ponto de vista econô- outros. Os conf litos ambientais, por
mico e social, destinam a maior carga sua vez, constituem-se num momento

471
J U S T I Ç A A M B I E N TA L

avançado de organização e resistência anos 1980, vêm fortalecendo e incor-


popular por parte de comunidades, porando a pauta ecológica em suas
organizações e movimentos sociais que lutas por direitos territoriais, seja a
lutam por direitos e dignidade. Um dos reforma agrária, seja a demarcação de
grandes desafios dos movimentos por terras indígenas e quilombolas.
justiça ambiental é articular as dife- A inserção na América Latina no
rentes escalas de lutas originalmente mercado global, via a reprimarização
locais e comunitárias em níveis mais da economia e exportação de com-
amplos, sistêmicos, nacionais, regionais modities agrícolas e minerais,2 explica
e globais. porque a maioria dos casos presentes
no Mapa de conflitos envolvendo injus-
Justiça ambiental, Ecologia Política tiça ambiental e saúde no Brasil ocorre
e sua relação com as justiças social, predominantemente em espaços rurais
sanitária e cognitiva e não nos urbanos.3
Um aspecto teórico, prático e po- Teoricamente, o conceito de jus-
lítico importante para os movimentos tiça ambiental vem sendo elaborado
e organizações que atuam por justiça principalmente pelo campo da Ecologia
ambiental no Brasil e, mais amplamente Política, em estreita articulação com o
no Sul Global, é a crítica ao modelo de conceito de conflitos ambientais, so-
desenvolvimento capitalista e neoextra- cioecológicos ou distributivos (Porto;
tivista. O neoextrativismo intensifica Martinez-Alier, 2007), assim como de
a exploração de recursos naturais em metabolismo social ou socioecológico
J tempos de capitalismo financeiro glo- (Molina; Toledo, 2011; Foster, 2000).
bal, com a produção e exportação de De especial interesse para a
commodities agrícolas e metálicas para agroeco­logia e as populações dos cam-
o mercado mundial. Isso decorre do pos, f lorestas e águas, o conceito de
papel de setores como a mineração, o metabolismo social ou socioecológico
agronegócio, a exploração de petróleo, a é muito importante para compreen-
construção de hidrelétricas e infraestru- dermos a relação entre o capitalismo
turas como rodovias, hidrovias e portos globalizado, o neoextrativismo e a crise
de exportação, além da especulação ecológica atual. O metabolismo social é
imobiliária que vem transformando um desenvolvimento teórico-metodoló-
as propriedades rurais e as moradias gico que integra os processos sociais e
nas cidades em ativos financeiros do econômicos com os processos de orga-
mercado global. nização da natureza a partir dos fluxos
As principais populações atingidas de energia e materiais realizados pelo
pelo modelo neoextrativista articulado trabalho humano e concretizados pelo
ao capitalismo global são as indígenas, modo social de produção em uma dada
camponesas, quilombolas, pescadoras sociedade. Dessa forma, toda socieda-
e outras dos campos, florestas e águas de e comunidade, num dado contexto
que possuem seus direitos territoriais histórico, socioeconômico, cultural e
e modos de vida afetados. Tais popu- ecológico, sempre forja ou se submete
lações se organizam em movimentos a certo tipo de metabolismo social [ver
sociais que, principalmente desde os Metabolismo Socioecológico].

472
J U S T I Ç A A M B I E N TA L

Autores ecomarxistas, como transporte, no consumo e no descarte


O’Connor (1992) e Altvater (2007), de resíduos. Os conflitos relacionados
além de Nicholas Georgescu-Roegen,4 à extração de recursos naturais (água,
um dos pais da economia ecológica e terra e solo) são típicos dos países do
que inf luenciou autores da Ecologia Sul Global exportadores de commodities,
Política, têm sido utilizados para ana- e os conflitos gerados pelo descarte de
lisar a insustentabilidade ambiental resíduos e lixo (poluição) são globais
da economia capitalista, em especial a e principalmente urbanos, ainda que
partir da crítica ao regime energético e problemas como os agrotóxicos afetem
à exploração de recursos naturais não e conectem o campo e as cidades.
renováveis, assim como pela geração Para autores como O’Connor, a
de resíduos pela sociedade industrial contradição capital versus trabalho,
e de consumo. O modelo moderno, relacionada às condições de trabalho
industrial e capitalista, tem acelerado e às lutas por justiça social da classe
entropias globais, ou seja, processos de trabalhadora, vem sendo justaposta
desorganização dos ecossistemas e da por uma segunda importante contra-
própria vida, acentuados pela emer- dição associada às próprias condições
gência dos chamados riscos ecológicos de produção e reprodução da vida. Os
globais nas últimas décadas. principais protagonistas dessa segunda
Por exemplo, o conceito de frontei- contradição são coletivos contra-hege-
ras planetárias proposto por Rockström mônicos organizados inicialmente em
et al. (2009) busca operacionalizar torno de agendas locais e comunitárias
a ideia de um ‘espaço seguro para a de resistência e transformação social. J
humanidade’. Em esfera global, pelo São exemplos os povos tradicionais, gru-
menos três limiares já teriam sido ul- pos étnicos e organizações camponesas
trapassados na atuali­dade: as mudanças que lutam contra o racismo ambiental e
climáticas, a perda da integridade da na defesa de seus modos de vida, cultu-
biosfera (destruição de ecossistemas, ras, territórios e outras economias que
perda de biodiversidade e extinção de reconheçam os bens comuns e sejam mais
várias espécies) e o fluxo biogeoquí- solidárias, compartilhadas, ambiental-
mico envolvendo os ciclos do fósforo e mente sustentáveis e socialmente justas.
nitrogênio, os quais estão fortemente Tais lutas também incluem coletivos
associados à agricultura industrial e ambientalistas e feministas, populações
sua dependência de fertilizantes quími- atingidas por certos riscos ambientais e
cos [ver Ciclagem de Nutrientes]. problemas de saúde (como os agrotóxi-
O metabolismo das sociedades ca- cos, transgênicos e a poluição química
pitalistas, nas últimas décadas, vem em geral), e grupos acadêmicos voltados
intensificando a crise ecológica global a essas pautas a partir de metodologias
e a geração dos conflitos ambientais participativas e colaborativas como a
em inúmeros territórios. Os conflitos pesquisa-ação.
podem ocorrer nas várias fases que mar- No Brasil e no conjunto do Sul Glo-
cam a organização social, a economia e bal, os movimentos por justiça ambiental
o comércio, como na extração de recur- têm se articulado com os movimen-
sos naturais, na produção industrial, no tos que lutam pela reforma agrária e

473
J U S T I Ç A A M B I E N TA L

agroeco­lógicos, principalmente desde de modos de vida e saberes não cien-


20115 no Encontro Nacional de Diálogos tíficos de diferentes populações que
e Convergências – Agroecologia, Saúde e lutam por existência, dignidade, saúde
Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, e direitos territoriais, como indígenas,
Economia Solidária e Feminismo. A camponesas, quilombolas, além das
Campanha Permanente contra os Agro- populações que vivem nas periferias
tóxicos e pela Vida é outro importante urbanas do Sul Global. Por isso, as lutas
exemplo de articulação de conhecimen- sociais contra o racismo e pelas justiças
tos e práticas. ambiental e cognitiva implicam dimen-
A justiça ambiental inevitavelmente sões ontológicas e epistemológicas que
se conecta às lutas por justiça social articulam as três formas de dominação
e por saúde, esta última pelo fato de moderna eurocêntrica: o capitalismo, o
muitas lutas envolverem problemas re- colonialismo e o patriarcado. Esse é o
lacionados à poluição química. Porém, significado de descolonizarmos nossas
principalmente no Sul Global, as lutas mentes e corações, ou seja, nossas formas
contra o racismo ambiental trazem à de sentir e pensar para produzir outros
tona o que diversos autores chamam de conhecimentos, culturas e economias
justiça cognitiva (Santos, 2007). Ela se como base para a construção de socie-
refere ao reconhecimento e validação dades pós-capitalistas.

Referências
J ACSELRAD, H.; HERCULANO, S.; PÁDUA, J. A. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Ed.
Relume-Dumará, 2004. 312 pp.
ALTVATER, E. Existe um marxismo ecológico? In: BORON, A. A.; AMADEO, J.;
GONZÁLEZ, S. A teoria marxista hoje: Problemas e perspectivas, p. 19, 2007.
BULLARD, R. Dumping in Dixie: Race, Class and Environmental Quality. Boulder, CO: Westview
Press, 1994.
CARSON, R. Primavera silenciosa. São Paulo: Gaia, 1910.
FOSTER, J. B. A ecologia de Marx: materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.
MOLINA, M; TOLEDO, V. M. Metabolismos, naturaleza e historia: hacia una teoría socio-ecológica de
las transformaciones. Barcelona: Icaria editorial, 2011.
O’CONNOR, J. Causas Naturales: ensayos de marxismo ecológico. México: Siglo XXI, 2001.
PORTO, M. F. Uma ecologia política dos riscos: princípios para integrarmos o local e o global na promoção
da saúde ambiental e da justiça ambiental. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2007. v. 1. 248p.
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sustentabilidade do desenvolvimento e para a promoção da saúde. Cadernos de Saúde Pública 23(Supp.
4): S503 - S512, 2007.
_____. Movements and the Network of Environmental Justice in Brazil. Environmental Justice 5(2):
100-104, 2012.
_____; PACHECO, T.; LEROY, J. P. Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil – O mapa de conflitos. 1. ed.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2013. v. 1. 306p.
REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL (RBJA). Manifesto de Lançamento. 2001. Disponível
em: https://antigo.mma.gov.br/educacao-ambiental/pol%C3%ADtica-nacional-de-educa%C3%A7%-
C3%A3o-ambiental/documentos-referenciais/item/8077-manifesto-de-lan%C3%A7amento-da-rede-
-brasileira-de-justi%C3%A7a-ambiental.html Acesso em: dez 2019.
ROCKSTRÖM, J. et al. Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating Space for Humanity.
Ecology and Society v.14, n. 2, 32. [online]. Disponível em: http://www.ecologyandsociety.org/vol14/
iss2/art32/.Acesso em: 29 mar. 2021.
SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos
estudos CEBRAP; v. 79, p.71-94, 2007.

474
J U S T I Ç A A M B I E N TA L

WALLERSTEIN, I. Mundialização ou era de transição? Uma visão de longo prazo da trajetória do


sistema-mundo. In: CHESNAIS, F. et al. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Xamã, 2003.

Para saber mais


ATLAS INTERNACIONAL DE JUSTIÇA AMBIENTAL (EJAtlas). Disponível em: https://ejatlas.
org/. Acesso em: 29 mar. 2021.
BLOG COMBATE AO RACISMO AMBIENTAL: Disponível em: https://racismoambiental.net.br/.
Acesso em: 29 mar. 2021.
MAPA DE CONFLITOS ENVOLVENDO INJUSTIÇA AMBIENTAL E SAÚDE NO BRASIL:
Disponível em: https://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/. Acesso em: 29 mar. 2021.
REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL: Disponível em: https://redejusticaambiental.wor-
dpress.com/. Acesso em: 29 mar. 2021

Notas
1
Para a construção deste verbete, baseamo-nos principalmente em textos produzidos anteriormente
pelo autor (Porto, 2007 e 2012) ou em parceria com acadêmicos e ativistas da justiça ambiental
(Porto; Martinez-Alier, 2007; Porto; Pacheco; Leroy, 2013).
2
As commodities podem ser definidas como mercadorias, principalmente gêneros agrícolas, minérios
e seus processamentos como o ferro, o aço e o alumínio, que são produzidos em larga escala e co-
mercializadas em esfera mundial. O fato de terem seus preços definidos pelo mercado internacional,
podendo variar subitamente de um ano para o outro, além de possuírem baixo valor agregado, faz com
que os países especializados na produção de commodities agrícolas e minerais sejam mais vulneráveis
diante de um mercado internacional marcado pelo comércio injusto entre o centro e as periferias.
Tais países correspondem, via de regra, ao Sul Global, ou seja, com histórico de colonização, e que
fazem parte do que Wallerstein (2003) denomina de regiões periféricas e semiperiféricas do siste-
ma-mundo capitalista moderno.
3
Disponível em: http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/
4
Economista heterodoxo e que influenciou a proposta de decrescimento econômico. É autor de obras
como A lei da entropia e o processo econômico de 1971, e Energia e mitos econômicos de 1976.
J
5
Encontro Nacional de Diálogos e Convergências – Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, So-
berania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo, ocorrido em Salvador/BA entre os dias 26 e
29 de setembro de 2011, e que contou com a participação de 300 pessoas vindas de todo o Brasil.
Para maiores detalhes ver: http://www.agroecologia.org.br/2013/01/24/carta-politica-do-encontro-
-nacional-de-dialogos-e-convergencias-2/

475
L
LA VIA CAMPESINA

R ita Z a notto
Vivia na R ojas Flor es

O nome La Via Campesina (LVC) e se propõe a ser uma via que promove a
não tem tradução em outros idiomas.1 soberania dos povos, a soberania alimen-
É nome próprio. Como o nome mesmo tar, a justiça social, a dignidade e se opõe
diz, é La Via, uma via, é um caminho radicalmente à proposta do latifúndio e
para uma alimentação saudável, para a do agronegócio, que destrói a nature-
construção da soberania alimentar com za, contamina, envenena e promove a
base agroecológica, para um modo de ­doença no mundo, tendo em vista o lucro
viver saudável. Hoje, La Via Campesina através do que chamam de produção de
é a voz das camponesas e camponeses alimentos; ela portanto, luta e defende a
do mundo e segue reafirmando a ne- reforma agrária popular, integral.
cessidade de existência de movimentos La Via Campesina conta atualmente
fortes que defendam o campesinato e com 182 organizações membras, de 81
que promovam a soberania alimentar. países da África, Ásia, Europa e Amé-
Parafraseando Alegria, em Desmarais rica, e representa em torno de 200 mi-
(2013, p. 1), “O que nos une é um espírito lhões de camponesas/es. Se trata de um
de luta e transformação... Aspiramos um movimento político, autônomo, plural,
mundo melhor, um mundo mais justo, multicultural, de justiça social, que luta
mais humano – onde existam igualdade por paridade e igualdade de gênero e que
e justiça social”. se mantém independente de qualquer
La Via Campesina reúne cam- partido político, crença religiosa ou
poneses e camponesas, pequenas/os afiliação econômica ou de outro tipo.
agricultoras/es, sem-terras, indígenas, Representa o campesinato que luta pela
comunidades tradicionais, quilombolas, terra nas mãos de quem a trabalha, e que
pescadores, organizações de mulheres e produz para alimentar o mundo.
jovens, pastores em todo mundo. Cons- La Via Campesina, um movimento
trói um sentido forte de unidade, de de movimentos, surge num contexto
solidariedade na defesa do campesinato econômico, político e social em que o
LA VIA CAMPESINA

capitalismo, de forma direta e em escala força e o campesinato ter voz; a constru-


global, passa a minar a capacidade do ção de processos locais que promovam
campesinato de manter o controle de a soberania alimentar com políticas
suas terras e de suas sementes. Motiva- que respeitem as culturas diversas e
dos por esse contexto, em maio de 1993, promovam a produção agroecológica
organizações camponesas do mundo [ver A groecologia], a preservação das
promoveram uma conferência com a sementes camponesas e a vida no pla-
participação de 46 camponeses e campo- neta, respeitando a Mãe Terra como
nesas do mundo, na Bélgica, e criaram La um ser vivo.
Via Campesina. Porém, suas raízes vêm
de muito antes, vêm de lutas regionais A organicidade de La Via Campesina
na América Latina, na contracome- Em sua estrutura estão a Confe-
moração dos 500 anos de invasão desse rência Internacional, realizada a cada
continente, na chamada “Campanha 4 anos como um espaço de deliberação
500 anos de Resistência Índia, Negra e política e animação do movimento; a
Popular”, que levou em 1994 à criação Comissão Coordenadora Internacional,
da Coordenadora Latino-Americana composta por uma mulher e um homem
de Organizações Camponesas (Cloc). das nove regiões organizativas (com
Como também na Europa, na articulação a 10ª em processo de construção na
da Coordenadora Campesina Europeia região do meio oriente); uma secretaria
(CPE), entre outras. operativa internacional e uma estrutu-
La Via Campesina é uma articu- ra rotativa, definida nas conferências
lação mundial de movimentos cam- (teve funcionamento em Honduras,
poneses que tem entre seus objetivos Jakarta e Zimbabwe e em 2021 estará
L a construção de relações de solidarie- na França); os coletivos de trabalho
dade que reconhecem a diversidade do atuam segundo os diversos temas cen-
campesinato no mundo; a construção trais que aprofundam o debate político e
de um modelo de desenvolvimento da propõem, coordenam e articulam ações
agricultura que garanta a soberania em âmbito local e internacional. La Via
alimentar [ver S ober ania A limentar] Campesina também constrói alianças e
como direito dos povos de definir suas participa de espaços internacionais que
próprias políticas agrícolas; a preserva- dão unidade à classe trabalhadora, com
ção dos bens naturais com a proteção da trabalhadores do campo e da cidade,
biodiversidade, a luta pela construção com mulheres, jovens e outros espaços
de um movimento com paridade, com que fortaleçam as lutas, a unidade e a
igualdade entre os gêneros. solidariedade.
Algumas linhas políticas que dão Para conhecer a Via Campesina, é
unidade e fortalecem a luta de La Via preciso conhecer as lutas camponesas que
Campesina são: o rechaço explícito ao lhe dão unidade, que se fazem em todos
modelo neoliberal de desenvolvimento os continentes por um campesinato forte,
rural; o rechaço às políticas agrícolas que cuida do bem maior que é a Terra e
mundiais que não consideram o campe- que produz alimentos para o conjunto da
sinato; o compromisso para trabalhar em sociedade. Os temas políticos defendidos
unidade na diversidade para construir por La Via Campesina são: terra, água

478
LA VIA CAMPESINA

e território, soberania alimentar com sementes crioulas são pautas de La Via


agroecologia; justiça climática; direitos Campesina porque as sementes garantem
humanos do campesinato; agricultura sustentação à soberania alimentar. A
camponesa sustentável; biodiversidade e agroecologia é a chave de resistência
recursos genéticos; migrantes e trabalha- a um sistema econômico que coloca o
dores agrícolas, a construção de relações lucro antes da vida, antes do bem viver.
de gênero paritárias e de igualdade e La Via Campesina reconhece que as/os
com participação da juventude, além de pequenas/agricultoras/es, camponesas/es,
trabalhar temas como a comunicação, a pescadoras/es, pastoras/es, comunidades
formação política e a educação. Não se tradicionais representam quase a metade
trata de estabelecer hierarquias entre os da população mundial e são capazes,
temas, mas fazer com que levem à mobi- como sempre foram na história da hu-
lização cada vez maior de forças sociais, manidade, de produzir alimentos para
que superem os limites do campesinato suas comunidades e alimentar o mundo
em unidade com a classe trabalhadora de uma forma sustentável e saudável, em
do mundo, para promover as mudanças âmbito local, segundo seu clima, segundo
necessárias. sua cultura alimentar.
Para La Via Campesina, a soberania As sementes são um pilar insubsti-
alimentar é um desafio permanente dos tuível para a produção de alimentos e a
povos no mundo, para não depender do base da produção segundo a cultura, a
mercado capitalista centrado em poucas história e a forma de se alimentar dos
empresas que querem controlar a produ- povos. Por isso a existência da campanha
ção e a alimentação e sua distribuição. “Sementes, patrimônio dos povos, a ser-
Defender a soberania alimentar, lutar viço da humanidade”.2 As corporações
pela terra e pela reforma agrária. Esta trabalham as sementes como sendo dos L
visão da soberania alimentar foi lançada povos, mas não a serviço da humanida-
por La Via Campesina em 1996 durante de; por isso a privatizam, transformam
o Fórum Mundial sobre Alimentação, sua genética, a fazem resistentes a ve-
promovido pela FAO. Entendendo que nenos que elas mesmas produzem. E o
soberania alimentar é o direito dos povos campesinato defende que as sementes
a alimentos nutritivos e culturalmente têm que estar a serviço da humanidade
adequados, produzidos de forma susten- e sob a guarda do campesinato.
tável, em âmbito local e com o direito de A promoção dos direitos das campo-
decidir a própria forma de se alimentar nesas e dos camponeses e a luta contra
e de produzir. É o direito a produzir de a criminalização das lutas e das/os luta-
forma sustentável, em pequena escala, doras/es é um dos pilares fundamentais.
em comunidade, respeitando o meio Há um argumento na criminalização, na
ambiente. A soberania alimentar com discriminação, na expulsão e exploração
agroecologia, com direito à terra para camponesa, no não reconhecimento de
produzir, com gestão da terra, das águas, sua terra e seus territórios. As empresas
das sementes, dos animais, da riqueza do nacionais, transnacionais e os latifun-
solo e subsolo. diários continuam impunes, violando
A promoção da agroecologia e a os direitos básicos, enquanto as pessoas
defesa das sementes camponesas, ou que lutam pela defesa e pelo direito das

479
LA VIA CAMPESINA

comunidades seguem sendo criminaliza- nização Mundial do Comercio


das, assassinadas, desaparecidas. (OMC) e os tratados de livre
La Via Campesina e organizações comercio. Neste dia, LVC faz
aliadas como Fiam, Cetim entre outras, memória ao Sr. Lee Kyun Hae,
construíram por dez anos uma Decla- um agricultor da Coreia do Sul
ração dos Direitos Camponeses, que que se imolou durante ações
inclui o direito à vida digna, o direito massivas de protesto contra
à terra, ao território, às sementes, à a OMC em Cancún, México,
informação, justiça e igualdade entre em 2003. Levava na mão uma
mulheres e homens. Esta declaração faixa que dizia ‘A OMC mata
dos “Direitos dos Camponeses e Ou- os agricultores’.
tras Pessoas que Trabalham nas Áreas • 16 de outubro: Dia Internacional
Rurais” foi adotada durante a 73ª Ses- de Ação pela Soberania Ali-
são da Assembleia Geral das Nações mentar e contra as corporações
Unidas (AGNU 73), em Nova York, no internacionais.
dia 17 de fevereiro de 2018. (Naciones • 25 de novembro: Dia Internacio-
Unidas, 2018) nal pelo FIM da violência contra
La Via Campesina trabalha no sen- as mulheres.
tido de construir processos de formação • 3 de dezembro: Dia Mundial de
política e técnica de suas organizações, de Ação contra os Agrotóxicos.
seus dirigentes e de sua base. Fortalece a
formação em agroecologia, a formação Escolas e processos de formação em
de mulheres, a formação da juventude, agroecologia da La Via Campesina
entendendo que somente a formação Nos mais de 25 anos de história de
L promove as pessoas a partícipes de seus La Via Campesina, a formação política
processos e de sua liberdade. Promove a e técnica tem sido uma prioridade es-
comunicação interna e com a sociedade, tratégica do movimento, uma vez que
porque é pela comunicação que passamos a força das mudanças está no nível de
a entender as cadeias que nos prendem e consciência e no grau de organização
como romper essas cadeias. dos povos. La Via Campesina entende
que a formação político-agroecológica
Lutas comuns constitui um processo contínuo, amplo
Cada país e cada organização tem e sistemático de reflexão sobre a práti-
sua organicidade e suas formas de lutas. ca, de incorporação do conhecimento
Em âmbito internacional, realiza ações socialmente produzido. Um processo
conjuntas nas seguintes datas: de produção e socialização de novos
• 8 de março: Dia Internacional conhecimentos a partir das realidades
da Mulher. concretas em que vivemos, respeitando
• 17 de abril: Dia Internacional da a multiplicidade de conhecimentos e a
Luta Camponesa (em memória diversidade social e humana.
aos 19 mortos do massacre de Neste sentido, os processos de
Eldorados dos Carajás de 1996). formação que se desenvolveram como
• 10 de setembro: Dia Interna- movimento estão intimamente ligados
cional de Luta contra a Orga- ao nosso projeto político de libertação

480
LA VIA CAMPESINA

baseado na agroecologia, que é o coração por organizações membras de La Via


da soberania alimentar. Campesina nos cinco continentes. A
Cada instituto da rede de Institutos política de formação agroecológica é o
Latino-Americanos de Agroecologia conjunto de ações pedagógicas, organiza-
(Iala), cada escola, curso e intercâmbio cionais e de luta que, com diferentes me-
busca contribuir para formar e construir todologias e conteúdos, visam enriquecer
uma força social e uma força política: o conhecimento e ampliar a consciência
entendemos por força social os povos or- da base, dos militantes e líderes, buscan-
ganizados. E a força política são os povos do o crescimento cultural e político dos
cada vez mais conscientes e organizados indivíduos e de toda a organização.
para a ação de transformação. Nossos processos de formação levam
A importância de discutir e imple- em consideração especialmente as ques-
mentar a formação agroecológica dentro tões de soberania dos povos, soberania
de cada movimento e organização resi- alimentar, agroecologia e território,
de na possibilidade de compreender o compreendendo este último não só do
processo histórico, os avanços, limites e ponto de vista geográfico, mas na defesa
desafios que a práxis da luta proporciona. integral dos seres humanos e da Mãe
A caracterização e a análise teórica dos Terra, das águas, montanhas, sementes,
movimentos sociais são fundamentais ar, natureza e biodiversidade em geral.
para nos preparar e fortalecer diante da O que faz a Via Campesina em sua
investida que enfrentaremos. Sem um estratégia de formação agroecológica?
conhecimento profundo da realidade e 1 – Denuncia o modelo de Capi-
das teorias, se torna difícil desenvolver tal no campo – através de lutas
lutas pela transformação das estruturas diretas, grilagem de terras, as-
da sociedade. sembleias, fechamento de ruas, L
Ao redor do mundo, as organizações- feiras, eventos;
-membro de La Via Campesina têm mais 2 – anuncia o nosso projeto Campe-
de 70 escolas e/ou processos de formação sino de Agricultura e construir
baseados na educação popular, já que conhecimentos;
essa última, assim como seu método e 3 – realiza cursos formais e infor-
concepção, propõe a massificação da mais para líderes, militantes e
agroecologia nos territórios e o fortaleci- base;
mento da soberania alimentar dos povos. 4 – promove intercâmbio de expe­
Para a La Via Campesina, a agroeco­ riências agroecológicas em todas
logia não é possível sem a educação as regiões e biomas;
popular, sem a participação de mulheres 5 – organiza processos de intercâm-
e jovens. Porque a agroecologia deve bio nas experiências que formam
estar em toda a cadeia produtiva, como a diversidade internacional;
uma prática que torna possível a solida- 6 – constrói alianças com várias
riedade, a autonomia, a reforma agrária organizações que promovem a
popular, o trabalho, a renda e, portanto, agroecologia.
a soberania alimentar.
Todos os processos de formação Globalizemos a luta, globalizemos a
agroecológica estão sendo construídos esperança!

481
LA VIA CAMPESINA

Referências
NACIONES UNIDAS. Asamblea General. Declaración de las Naciones Unidas sobre los Derechos de
los Campesinos y de Otras Personas que Trabajan en las Zonas Rurales. Septuagésimo tercer período de
sesiones: Tercera Comisión: Tema 74 b) del programa: Promoción y protección de los derechos humanos:
cuestiones de derechos humanos, incluidos otros medios de mejorar el goce efectivo de los derechos
humanos y las libertades fundamentales. 2018. Disponível em: https://undocs.org/es/A/C.3/73/L.30.
Acesso em: 18 maio 2020.
DESMARAIS, A. A. A Via Campesina. 1. ed. São Paulo: Cultura Acadêmica/Expressão Popular, 2013
(Vozes do Campo).

Para saber mais


COORDENADORIA LATINO-AMERICANA DE ORGANIZAÇÕES DO CAMPO (Cloc). Dispo-
nível em: https://cloc-viacampesina.net/que-es-la-cloc-via-campesina/. Acesso em: 14 fev. 2020.
LA VIA CAMPESINA: Disponível em: https://viacampesina.org/es/. Acesso em: 29 mar. 2021.
SOBERANIA ALIMENTAR: Disponível em: https://nyeleni.org/spip.php?rubrique3 . Acesso em: 29
mar. 2021.

Notas
1
La Via Campesina é um movimento de movimentos camponeses nacionais. No Brasil, por exemplo,
fazem parte diversos movimentos camponeses: MST, MPA, MMC, MAB, Conaq, PJR, MPP, MAM.
Somente no Brasil, também fazem parte pastorais que têm trabalho com as organizações camponesas
e organizações estudantis no sentido de somar esforços para a grande tarefa da organização, formação,
articulação e lutas.
2
A história da Campanha tem suas origens no 3° Congresso da Cloc realizado no México em 2001,
quando as mulheres da Cloc, em sua 2ª Assembleia, propuseram uma campanha em defesa das
sementes nativas e crioulas. Deste modo, La Via Campesina e Amigos de la Tierra com outras
organizações aliadas lançaram a campanha mundial “As sementes, patrimônio comum da huma-
nidade” e que posteriormente passou a ser chamada de “Sementes, patrimônio dos povos a serviço
da humanidade”.

482
M
MEDICINA TRADICIONAL BRASILEIRA

L aur a Bar roso G omes


Jaqueline Eva ngelista D ias
L our des C ar dozo L aur ea no

A medicina tradicional brasileira dos ofícios da medicina tradicional para


tem origem indígena e negra e consti- garantir a legitimidade a quem está rei-
tui um complexo cultural que remonta vindicando seus direitos consuetudiná-
desde a colonização do país, recebendo rios perante o poder público. Assim, uma
influência de imigrantes europeus, e raizeira tem como principais caracterís-
chega até a atualidade, reunindo saberes ticas ser uma grande protetora da natu-
e fazeres conectados com ancestralida- reza e, para isso, ela precisa conhecer a
de, espiritualidade e solidariedade. O dinâmica do(s) bioma(s) em que trabalha
ofício tradicional de cura, exercido por e contribuir para a conservação; ter
quem pratica a medicina tradicional, conhecimento sobre o poder de cura de
é considerado uma missão divina, um cada planta; saber fazer seu uso correto;
“dom”, “uma herança de sabedoria e ser agente de acessibilidade à medicina
trazida pela ancestralidade” (Dias; tradicional e de solidariedade, uma vez
Laureano, 2014). que os remédios caseiros são vendidos a
um preço justo ou doados a quem não
Identidades sociais dos ofícios pode pagar; e, por fim, em toda a vivên-
tradicionais de cura cia deve ter uma preparação espiritual,
A medicina tradicional se expressa seja durante a coleta das plantas, seja no
como um modo de vida praticado por preparo dos remédios caseiros, seja no
raizeiras, erveiras, mateiras, benzedei- atendimento de saúde.
ras, rezadeiras, parteiras e outras tantas Essas mulheres comumente se reco-
identidades sociais que compartilham nhecem com múltiplas identidades, tais
experiências de cuidar da saúde por meio como agricultoras raizeiras, quilombolas,
da biodiversidade e de conhecimentos benzedeiras etc. Seus conhecimentos são
tradicionais. produzidos e reproduzidos em farmácias
A identidade de “raizeira” foi defi- caseiras e comunitárias, sindicatos, pas-
nida como a identidade representativa torais de saúde etc.
MEDICINA TRADICIONAL BRASILEIRA

O ofício de raizeira, abarcando suas Benzedeiras e Pajés da Chapada dos


demais identidades, encontra-se em Veadeiros.
processo de registro no Instituto do O trabalho de produção de alimen-
Patrimônio Histórico e Artístico Nacio- tos saudáveis e de cuidados realizado
nal (Iphan) como patrimônio cultural pelas mulheres muitas vezes são traba-
imaterial. lhos não remunerados no âmbito domés-
tico ou comunitário, que raramente são
Relação entre medicina contabilizados na gestão financeira das
tradicional e agroecologia famílias. Dessa mesma forma, os ofícios
As práticas de cura realizadas por tradicionais de cura são pouco valori-
essas pessoas, na sua maioria mulheres, zados socialmente, uma vez que esses
são repletas de saberes ancestrais, e são saberes tradicionais não são validados
regidas por cuidados preventivos, que cientificamente e não têm como objetivo
envolvem também o cuidado com a principal a geração de lucro, ou seja, não
alimentação. As/os praticantes destes segue a lógica capitalista.
ofícios utilizam diversos recursos para a Sendo assim, a medicina tradicional
prevenção e tratamento de saúde, como é em si uma prática anticapitalista, uma
benzeções, remédios caseiros, banhos, vez que faz parte da reprodução da vida
aplicação de argila, dietas etc. de povos e comunidades tradicionais e
Geralmente, elas também contri- garante a existência desses povos e a
buem na produção de alimentos saudá- conservação da sociobiodiversidade. E,
veis [ver Alimento], diversificados e sem ainda, faz parte de um modo de vida e
agrotóxicos, em seus quintais produtivos, de resistência em que o cuidado da saúde
hortas comunitárias, sistemas agroflores- não serve aos interesses de acumula-
tais [ver Agrofloresta e Sistemas Agroflo­ ção das grandes indústrias. Garantir a
restais] etc. Essa dimensão do trabalho continuidade da medicina tradicional
das mulheres explicita uma importante é também enfrentar o avanço dessas
M conexão entre medicina tradicional e indústrias, que muitas vezes acessam os
agroecologia, pois elas garantem a produ- conhecimentos tradicionais milenares
ção de alimentos saudáveis nos arredores e consagrados pelas histórias de povos
de casa e, com isso, garantem a soberania indígenas e comunidades tradicionais
alimentar de suas famílias. [ver Povos e C omunidades Tradicionais],
Essas mulheres são também pro- sem o consentimento prévio, e desenvol-
tagonistas nas ações de articulação de vem produtos que são patenteados, sem
redes de cuidadoras/es e na proteção devolver aos povos o que lhes é direito.
e transmissão desses conhecimentos.
São exemplos de articulações de deten- Conhecimentos tradicionais e
toras/es desses ofícios, por autonomia agroecologia
de exercer a medicina tradicional e Os conhecimentos tradicionais
pela defesa da biodiversidade local e associados ao uso de plantas medici-
de seus territórios tradicionais: a Ar- nais são transmitidos por gerações,
ticulação Pacari Raizeiras do Cerrado; geralmente através da oralidade. Na
o Encontro de Saberes da Caatinga; e agroecologia, a transmissão desses co-
os Encontros de Raizeiros, Parteiras, nhecimentos também se dá através dos

484
MEDICINA TRADICIONAL BRASILEIRA

intercâmbios e encontros, em que a Conservação da biodiversidade


troca de saberes contribui para a cons- A prática da medicina tradicional
trução coletiva do conhecimento. A está associada à conservação da biodi-
medicina tradicional tem papel central versidade dos biomas brasileiros, uma
na construção da agroeco­l ogia, e assim vez que as praticantes sabem identificar e
deve ser reconhecida. coletar cada planta de forma sustentável,
Pesquisas populares são de extrema atentando principalmente para a conti-
importância para a salvaguarda desses nuidade de sua reprodução e deixando
conhecimentos tradicionais. Salvaguar- frutos e sementes para a alimentação
da, segundo a Convenção para a Salva- de animais silvestres. Sendo assim, as
guarda do Patrimônio Cultural Imaterial práticas tradicionais de cuidado da saúde
da Organização das Nações Unidas devem ser consideradas como ações de
para a Educação, a Ciência e a Cultura conservação da biodiversidade e das
(Unesco), significa águas, nos diferentes biomas brasileiros.
Medidas que visam garantir a viabi- Para a continuidade da medicina
lidade do patrimônio cultural ima- tradicional, é preciso garantir o livre
terial, tais como a identificação, a acesso aos territórios nos campos, nas
documentação, a investigação, a cidades, nas florestas e nas águas onde
preservação, a proteção, a promoção, esses povos e comunidades vivem, e onde
a valorização, a transmissão – es- encontram as plantas, animais e mine-
sencialmente por meio da educação rais utilizados nas suas práticas de cura.
formal e não-formal – e revitalização
deste patrimônio em seus diversos
Remédios caseiros
aspectos. (Unesco, 2003, p. 11)
Os remédios caseiros são prepara-
Esses saberes não podem cair no ções que utilizam plantas medicinais
caminho da mercantilização, assim e insumos provenientes da agricultura
como essas práticas tradicionais não familiar, como mel, rapadura, cachaça
devem ser reguladas ou submetidas a leis e óleos. As raizeiras preparam inúmeros M
que não respeitam os diferentes modos tipos de remédios caseiros, tais como
de vida e que violam o direito à con- chás, tinturas, xaropes, garrafadas e
sulta prévia assegurado pela Convenção pomadas. Os remédios caseiros são pre-
169 da Organização Internacional do parados a partir de técnicas tradicionais
Trabalho (OIT) (Brasil, 2004). Ou semelhantes às utilizadas para o preparo
seja, os povos interessados devem ser de alimentos e em locais com as mesmas
consultados, por meio de procedimentos características de uma cozinha, sendo
adequados, sempre que sejam previstas denominados de “farmácias caseiras” ou
medidas legislativas ou administrativas “farmácias comunitárias”. Esta última
suscetíveis de afetá-los diretamente. E é organizada por um grupo, formado
ainda, as consultas devem ser livres, principalmente por mulheres, e tem um
prévias e informadas, e realizadas de espaço próprio na comunidade, aberto ao
maneira adequada às circunstâncias, público em geral (Dias; Laureano, 2014)
de maneira que um acordo ou consenti- A produção dos remédios caseiros é
mento em torno das medidas propostas uma prática tradicional que sofre ameaças
possa ser alcançado. de continuidade. Uma dessas ameaças é o

485
MEDICINA TRADICIONAL BRASILEIRA

artigo 273 do Código Penal (Brasil, 1940), ficação das plantas medicinais, passando
que considera crime disponibilizar produ- pela coleta sustentável das ervas, cascas,
to terapêutico sem registro no Ministério sementes, resinas e frutos, higienização
da Saúde. Essa criminalização coloca dos espaços e das embalagens, a adoção
em risco a prática das raizeiras, que tem de pesos e medidas na produção dos re-
como principais instrumentos de cura os médios, ao uso adequado e reciclagem das
remédios caseiros e demais preparações embalagens dos remédios, a rotulagem e
com plantas medicinais. Essa lei deve ser armazenamento adequado de plantas,
revista a partir de um esforço coletivo e insumos e remédios prontos. Além disso,
de amplo diálogo entre governo e povos e as boas práticas das raizeiras têm um sig-
comunidades tradicionais. nificativo diferencial, que passa também
Nesse sentido, é preciso também por um processo de meditação e concen-
intensificar o diálogo com a Agência tração antes da produção dos remédios
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi- e também pela intenção de cura. Outra
sa), órgão de regulação e fiscalização que importante etapa é a dispensação, ou seja,
promove a segurança sanitária de produ- o atendimento e a indicação do remédio,
tos para a promoção da saúde, tendo em que é feita de forma personalizada.
vista a revisão e a ampliação da Resolução A comercialização direta dos remé-
(RDC) 49/2013 (Agência Nacional de dios caseiros, aliada ao baixo gasto de
Vigilância Sanitária, 2013), que prevê a energia para a sua produção, também
inclusão produtiva com segurança sani- caracteriza esses remédios como produ-
tária, incluindo as práticas tradicionais tos de cadeias ou circuitos curtos (Dias;
de cuidado da saúde e a preparação de Laureano, 2014)
remédios caseiros, assumindo a diretriz
da razoabilidade, na perspectiva de uma Instrumentos políticos,
abordagem de vigilância prioritariamente legislações e políticas públicas
orientadora. Faz-se necessário que o Sis- Os instrumentos políticos cria-
M tema Nacional de Vigilância Sanitária dos pelos próprios movimentos e redes
assuma as diretrizes da RDC 49, em toda ­reafirmam a luta pelos direitos e pela
a sua dimensão cultural, a fim de proteger autonomia dos povos. Nesse sentido, os
as diferentes formas de produzir cuidado protocolos comunitários, reconhecidos
em saúde e preservar costumes, hábitos e pela Lei n. 13.123/2015 (Brasil, 2015),
conhecimentos tradicionais, respeitando que trata do acesso ao patrimônio ge-
e valorizando o multiculturalismo dos nético e conhecimento tradicional, são
povos e comunidades tradicionais e agri- importantes instrumentos políticos para
cultoras/es familiares. visibilizar as práticas tradicionais e incidir
A eficácia e a segurança dos remédios em políticas públicas relacionadas à gestão
caseiros são garantidas através das boas e proteção dos conhecimentos tradicio-
práticas construídas pelas raizeiras, seus nais. Eles contêm acordos elaborados
coletivos e redes solidárias, fundamen- por povos e comunidades tradicionais sobre
tadas no conhecimento tradicional e na temas relevantes aos seus modos de vida,
experiência das raizeiras, a partir dos objetivando a garantia de seus direitos
seus valores culturais e espirituais. As consuetudinários. Esses direitos são fun-
boas práticas vão desde a correta identi- damentados na tradição, expressos por

486
MEDICINA TRADICIONAL BRASILEIRA

valores, princípios, regras, cosmovisões [ver reconhecendo o seu papel fundamental


Cosmovisões] e práticas que são passadas para a conservação da biodiversidade;
de geração em geração, num movimento a Convenção para a Salvaguarda do Pa-
vivo e contínuo (Dias; Laureano, 2014). trimônio Cultural Imaterial (Unesco),
Destaca-se o Protocolo Comunitário que assegura o preparo tradicional do
Biocultural das Raizeiras do Cerrado, remédio caseiro como um “bem cultu-
que trata do direito consuetudinário ral imaterial” dos povos e comunidades
de praticar a medicina tradicional, e os tradicionais; a Lei n. 13.123, de maio de
Protocolos de Consulta Quilombolas de 2015 (Brasil, 2015), que dispõe sobre o
Abacatal/Aurá e o Protocolo de Consulta acesso ao patrimônio genético, sobre a
Munduruku, construídos pelas próprias proteção e o acesso ao conhecimento
comunidades quilombolas e pelo povo tradicional associado e sobre a repartição
indígena Munduruku, e que se referem de benefícios para a conservação e uso
ao direito à consulta prévia, assegurado sustentável da biodiversidade; a Política
pela Convenção 169 da Organização Nacional de Plantas Medicinais e Fitote-
Internacional do Trabalho (Brasil, 2004), rápicos, Decreto n. 5.813, de 22 de junho
citada anteriormente. de 2006 (Brasil, 2006), que preconiza em
Outros importantes instrumentos sua diretriz 10 a promoção e o reconhe-
políticos são as farmacopeias tradicionais, cimento das práticas populares de uso de
elaboradas através de pesquisas populares, plantas medicinais e remédios caseiros; e
que dão visibilidade aos conhecimentos a Política Nacional de Desenvolvimento
tradicionais associados à biodiversidade Sustentável dos Povos e Comunidades
e são registros estratégicos para iden- Tradicionais, Decreto n. 6.040, de 7 de
tificação da procedência das plantas fevereiro de 2007 (Brasil, 2007), que tem
medicinais e dos povos e comunidades como um dos objetivos específicos (artigo
tradicionais que sempre fizeram o seu uso 3º) a garantia aos povos e comunidades
tradicional e sustentável. Por isso, as far- tradicionais do acesso aos serviços de
macopeias são importantes instrumentos saúde de qualidade, com ênfase nas con- M
para elaboração de planos de salvaguarda cepções e práticas da medicina tradicional
da medicina tradicional e garantia dos [ver Plantas Medicinais e Fitoterápicos na
direitos consuetudinários dos povos e Saúde Pública].
comunidades tradicionais sobre o acesso à A implementação dessas políticas e
biodiversidade e sobre seus conhecimen- legislações se faz necessária, e também
tos tradicionais (Dias; Laureano, 2014). a construção de uma política pública
Um conjunto de convenções, leis específica, construída a partir de uma
e políticas públicas está relacionado à ampla mobilização, de forma apropriada,
continuidade da medicina tradicional: que assegure a participação efetiva desses
a implementação da Convenção da Di- sujeitos de direito de praticar a medicina
versidade Biológica no Brasil, principal- tradicional e popular, e de exercer seus
mente referente aos artigos 8 “j” e 10 modos de vida em seus territórios.
“c”, recomenda aos países signatários o
respeito, a promoção e a manutenção Salvaguarda da medicina tradicional
dos conhecimento, inovações e práticas A prática da agroecologia possibi-
de povos indígenas e comunidades locais, lita reconhecer, valorizar, pesquisar, sis-

487
MEDICINA TRADICIONAL BRASILEIRA

tematizar, documentar e transmitir os reconhecida por povos e comunidades


conhecimentos tradicionais e populares tradicionais e agricultores familiares como
associados ao uso das plantas medicinais e uma das principais ações de salvaguarda
as práticas tradicionais de cuidado da saú- da medicina tradicional praticada por or-
de, incluindo a garantia da soberania ali- ganizações sociais e trabalho em rede, de
mentar e nutricional, com a manutenção maneira a enfrentar a mercantilização da
de sistemas alimentares tradicionais, e a saúde e a ameaça dos grandes empreen-
valorização dos trabalhos protagonizados dimentos aos territórios e à permanência
por mulheres. Portanto, a agroecologia é das comunidades tradicionais.

Referências
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (Anvisa). Resolução-RDC n. 49, de 31 de
outubro de 2013. Dispõe sobre a regularização para o exercício de atividade de interesse sanitário do
microempreendedor individual, do empreendimento familiar rural e do empreendimento econômico
solidário e dá outras providências. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2013/
rdc0049_31_10_2013.html. Acesso em: 7 abr. 2021.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei n. 2.848,
de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
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_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 5.813,
de 22 de junho de 2006. Aprova a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5813.
htm. Acesso em: 7 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 6.040,
de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/
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_______. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 5.051,
de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho-OIT sobre
Povos Indígenas e Tribais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/
M decreto/d5051.htm. Acesso em: 7 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 13.123,
de 20 de maio de 2015. Regulamenta o inciso II do § 4º do art. 225 da Constituição Federal, o Artigo
1, a alínea j do Artigo 8, alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e §§ 3º e 4º do Artigo 16 da Convenção
sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto n. 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre
o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e
sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida
Provisória n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.htm. Acesso em 7 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Secretaria-Geral. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 13.123,
de 20 de maio de 2015. Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da Constituição Federal, o
Artigo 1, a alínea j. do Artigo 8, a alínea c. do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3º e 4º do Artigo 16 da
Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto n. 2.519, de 16 de março de 1998;
dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional
associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade;
revoga a Medida Provisória n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível
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DIAS, J. E.; LAUREANO, L. C. Protocolo Comunitário Biocultural das Raizeiras do Cerrado: Direito
consuetudinário de praticar a medicina tradicional. Turmalina: Articulação Pacari, 2014. Disponível em:
https://absch.cbd.int/api/v2013/documents/E5195138-7269-5615-AD9E-E25D19844AFB/attachments/
Protocolo_Comunitario-Raizeiras.pdf. Acesso em: 7 abr. 2021.
UNESCO; Texto base. Convenção de 2003 para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial.
Paris. Disponível em: https://ich.unesco.org/doc/src/00009-PT-Brazil-PDF.pdf. Acesso em: 7 abr. 2021.

488
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

Para saber mais


BRANDÃO, C. R.; ROCHA. E. O jardim da vida. Goiânia: Ed. da UCG, 2004. 304 p.
CARRICONDE, C. et al. Plantas medicinais & Plantas Alimentícias. Olinda: Centro Nordestino de
Medicina Popular: Universidade Federal Rural de Pernambuco, 1995. v. 1.
COMUNE, A. Recursos da Natureza para a Saúde: Cartilha de Saúde. Araçuaí: Diocese de Araçuaí, 2008.
WUYXAXIMÃ; KEREPO; PAHYHYP. Protocolo de Consulta Munduruku. Disponível em: https://fase.
org.br/wp-content/uploads/2016/01/munduruku-final-2.pdf. Acesso em: 7 abr. 2021.
Pesquisa Popular de Plantas Medicinais: Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas, Articulação
Pacari – Plantas Medicinais do Cerrado. Belo Horizonte: Rede de Intercâmbio, 2004. 100 p.

METODOLOGIAS EMANCIPATÓRIAS

Fabr ício Vassalli Z a nelli


Willer A r aujo Bar bosa
I r ene M ar ia C ar doso

O termo “metodologias participa- planejamento e à definição de projetos


tivas” é bastante comum e conhecido e ações pelas camadas populares. Desse
tanto no âmbito acadêmico quanto na modo, enfrentam os procedimentos
sociedade civil brasileira. No entanto, unilaterais, subalternizantes e unifor-
apropriações recentes desse termo têm mizantes que buscam oprimir as classes
sido marcadas por um caráter mercadoló- e camadas populares.
gico e meramente estético, desvinculado A relação dialética constituída entre
de um projeto popular. Por isso, traba- ser humano e natureza, mediada pelo M
lharemos ao longo do texto com a noção trabalho, produziu uma infinidade de
de metodologias emancipatórias para o saberes pelos agrupamentos humanos
reconhecimento popular, compreenden- no planeta e que sistematicamente são
do-as como instrumentos promotores do desprezados pelas ciências da classe do-
diálogo entre conhecimento científico e minante. A inventividade humana e o
popular, que sejam capazes de estimular desenvolvimento de instrumentos técnicos
a participação ativa dos sujeitos envolvi- marcam expressivamente a existência
dos na transformação de sua realidade. humana. No entanto, em que pese sua
A base referencial das metodologias capacidade de explicação do movimento
emancipatórias é a educação popu- da realidade, o padrão constituído pela
lar, sobretudo o pensamento de Paulo ciência hegemônica hierarquiza a relação
Freire. Concebemos tais metodologias entre conhecimento científico e outras
enquanto abordagens teórico-práticas matrizes de saberes. Assim, se perde mui-
capazes de realizar a denúncia e o anún- to do conhecimento e das experiências
cio do mundo: estimulam a problemati- historicamente acumuladas, sobretudo
zação da realidade, o direito à fala, ao entre os camponeses, cuja relação de tra-

489
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

balho se dá também pela observação da cimento não é possível, nem viável, se


natureza e suas mais sensíveis alterações. reservássemos ao povo o lugar do silên-
Por isso afirmamos a necessidade de cio, da simples escuta e da passividade.
compatibilizar essas dimensões do saber. É preciso refletir sobre o silêncio e
O desprezo e o silenciamento siste- os processos silenciadores. Freire (1983)
mático dos saberes advindos das expe- alerta para a necessidade de compreen-
riências pelas ciências da modernidade der por que muitos camponeses falam
foram denominados por Boaventura pouco, expressam pouco e muitas vezes
Santos (2002) como desperdício de expe­ assumem o discurso da falta de saber.
riências. Atualmente, reforça-se a ne- Este silêncio foi produzido, sobretudo
cessidade de se retomar os olhares sobre pelas relações de exploração inerentes
esses saberes desperdiçados. As metodo- ao latifúndio, que são em sua essên-
logias emancipatórias podem contribuir cia antidialógicas, como explica Freire
para aguçar tais olhares. (1983, p. 31),
No entanto, alguns cuidados devem o latifúndio, como estrutura vertical
ser tomados ao utilizar as metodologias e fechada, é, em si mesmo, antidialó-
emancipatórias. Por um lado, é impres- gico. Sendo uma estrutura fechada
cindível considerar que tais metodolo- que obstaculiza a mobilidade social
gias por si só não resolvem a postura vertical ascendente, o latifúndio
antidialógica de educadores, técnicos, implica uma hierarquia de cama-
extensionistas e pesquisadores. Caso a das sociais em que os estratos mais
mudança do comportamento diante da ‘baixos’ são considerados, em regra
geral, como naturalmente inferiores.
relação educativa/situação gnosiológi-
ca não seja alterada, as metodologias Portanto, é preciso não respon-
servirão apenas como alegoria. Por sabilizar os camponeses pela falta de
outro lado, também é imprescindível diálogo e compreender os processos
considerar que as metodologias eman- históricos de silenciamento a que foram
M cipatórias têm um potencial pedagógico submetidos, para melhor conseguirmos
enorme para contribuir com os projetos modificar essa realidade. Esse deve ser
populares, pois alteram a forma como o um desafio central. Mas afinal, para
conhecimento é concebido e trabalha- que servem as metodologias emancipa-
do. As metodologias emancipatórias, tórias? Essa é uma questão para a qual
se bem utilizadas, permitem trabalhar cabem três considerações.
racionalidades, temporalidades, ter- i) A importância de ler o mundo, tal
ritorialidades, ritmos e motivações como escreveu Freire (1989) referindo-se
que contribuem para compreender a à alfabetização: “a leitura do mundo
complexa trama na qual estão envol- precede sempre a leitura da palavra, e a
vidos os grupos populares e, com isso, leitura desta implica a continuidade da
reposicionar as ações educativas. leitura daquele” (Freire, 1989, p. 13). Essa
Portanto, ao mesmo tempo que há o reflexão se direciona a todos os processos
perigo de tomar as metodologias eman- educativos emancipatórios, aconteçam
cipatórias como mera fantasia, é preciso eles dentro ou fora do espaço escolar. A
reconhecer que uma transformação leitura de mundo implica a percepção
profunda da forma de produzir conhe- crítica, a interpretação e a ‘re-escrita’ da

490
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

própria realidade, e por isso carrega um trabalho intelectual e trabalho manual,


potencial de se tornar instrumento para e a reprodução de processos educativos
ações contra-hegemônicas (Freire, 1989). alienantes. As metodologias emancipa-
As metodologias emancipatórias devem tórias devem estimular as pessoas não
ser instrumentos para que os sujeitos apenas a lerem seu mundo e dizerem sua
realizem a leitura de seu mundo e para palavra, mas sobretudo a descobrir seu
que, com isso, se redescubram enquanto potencial de nele intervir com seu co-
transformadores dela. nhecimento, suas propostas, suas ações
ii) A necessidade de dizer a palavra. concretas de transformação da realidade.
A divisão social de poder em sociedades Para alcançar essas finalidades, há três
desiguais reproduz as diferenças entre caminhos-premissas.
quem pode e quem não pode pronunciar a) Mergulho na vida e na realidade
as palavras: do povo: educadores populares, inde-
Palavras que ordenam a vontade de pendente de qual instituição atuem,
poucos sobre o trabalho de muitos não podem negar a tarefa do convívio
são as que criam os nomes de to- com o povo, com sua realidade, com
das as coisas na sociedade onde o sua matriz complexa de (re)produção da
poder existe separado do trabalho vida. Não é possível conceber o trabalho
produtivo, tanto quanto da vida com metodologias populares como um
simbólica coletiva. Mundos sociais presente ou uma doação ao povo, senão
onde o ofício de pronunciar a palavra como presença junto a ele. O educador
necessária distancia-se do consenso;
popular e a instituição que está promo-
do pensá-la em comum como poesia
vendo o trabalho com as metodologias
e pensamento da vida coletiva sem
a desigualdade, e da experiência da emancipatórias têm o dever de imergir
solidariedade através das diferenças. no universo temático do povo, sendo
(Brandão, 2006, p. 2) esse universo a síntese de seu modo de
vida, de sua cultura, de sua relação com
Dizer a palavra, portanto, representa M
a natureza, das suas formas de trabalho.
substituir o lugar de passividade pelo lu-
Tratamos aqui de negar a condição de
gar do pensamento crítico, da capacidade
isolamento do pesquisador/educador/
de pronunciar outros mundos. Enquanto
técnico diante do povo e de afirmar a
denunciamos o latifúndio e os processos
necessidade urgente de mergulhar em
de silenciamento, anunciamos que as
sua realidade.
metodologias emancipatórias carregam
b) Problematização: as metodo-
o potencial para que todos possam dizer
logias emancipatórias não devem ser
sua palavra.
algo inerte, apenas para se diagnosticar
iii) As finalidades das metodologias
uma realidade. Em uma compreensão
emancipatórias dizem respeito ao poten-
crítica, é preciso ir mais além, e traba-
cial criativo inerente ao ser humano, ou
lhar para que os sujeitos envolvidos no
a sua vocação em ser mais, como afirma
processo reconheçam seu potencial de
Freire. A dinâmica de reprodução da
transformar a realidade e se assumam
sociedade capitalista tem intensificado
como força condutora de novas lutas,
processos como a alienação e a explo-
novas conquistas, novas transforma-
ração do trabalho, a separação entre
ções. Para chegar a essa tomada de

491
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

consciência e dar o passo seguinte ao conhecimentos (método de pesquisa)


diagnóstico da realidade, a problema- como para o processo de transmissão-
tização é essencial: -assimilação de conhecimentos (método
O que importa fundamental- de ensino).
mente à educação, contudo, c) Ir além da lectoescrita: Ao assu-
como uma autêntica situação mir a necessidade de mergulho na rea-
gnosiológica, é a problematiza- lidade concreta do povo, e ao assumir
ção do mundo do trabalho, das a tarefa da problematização, é impres-
obras, dos produtos, das ideias, cindível romper com a exclusividade do
das convicções, das aspirações, uso da leitura e da escrita. Os processos
dos mitos, da arte, da ciência, educativos em muitos casos, por mais
enfim, o mundo da cultura e libertários que pretendam ser, se tor-
da história, que, resultando das naram reféns desta lógica: ler, copiar e
relações homem-mundo, condi- escrever. Reconhecemos a importância
ciona os próprios homens, seus da leitura e da escrita nos processos
criadores. (Freire, 1983, p. 57) de libertação das camadas populares
Freire sustenta que, ao problema- da sociedade, e estamos convictos de
tizar o mundo, as pessoas se colocam que a leitura e a escrita são habilidades
diante de uma análise crítica da ação fundamentais a todo ser humano. To-
de cada uma e da ação dos outros sobre davia, afirmamos que a educação tem
o mundo. As classes populares se perce- potencial para ser muito mais do que
bem enquanto sujeitos de conhecimen- isso! Portanto, cabe perguntarmos aqui:
to, não mais como receptores. Ao passo quais são os outros sentidos que não es-
que isso acontece, adquirem confiança tamos explorando em nossos trabalhos
e afirmação de sua capacidade de trans- com as metodologias emancipatórias?
formar o mundo: Quais são os recursos que temos uti-
E quanto mais se voltam criticamen- lizados para compreender o universo
M te para suas experiências passadas e temático do povo e problematizar sua
presentes em e com o mundo, que própria realidade? Como superar a ló-
veem melhor agora porque o revi- gica a qual nós fomos submetidos, de
vem, mais se dão conta que este não que devemos palestrar ou proferir ao
é para os homens um beco sem saída, povo para que eles adquiram consciên­
uma condição intransponível que os cia? O que precisamos desaprender
esmaga. (Freire, 1983, p. 57) e o que precisamos reaprender para
A problematização da realidade alcançarmos outra lógica de produção
também é apontada por Saviani (1999) do conhecimento? Quais os caminhos
como um dos elementos indispensáveis alternativos que já estão em curso, e
a uma pedagogia revolucionária. Ao como aprendemos com eles?
defender a prática social como ponto de No desafio de responder a tais ques-
chegada e de partida, esse autor defende tões, temos percebido a necessidade
a dinâmica de diagnóstico, problema- urgente de trilhar outros caminhos.
tização e busca conjunta por respostas Temos percebido que a arte cumpre um
como uma orientação segura tanto papel fundamental nas outras grafias
no processo de descoberta de novos que podem ser trabalhadas para além da

492
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

caligrafia: a grafia dos corpos em dança, elemento). De preferência, as pessoas


a grafia dos pincéis nas mãos de pinto- devem apresentar a ideia em círculo, a
ras/es, as cartografias elaboradas pelos partir da primeira e em sequência, até a
sujeitos e movimentos sociais nas suas última apresentar sua ideia. Isto ensina
formas de relacionar e de mapear seu as pessoas a escutar o outro e a esperar
próprio território, enfim, naquilo que se sua vez de falar. Após cada um apre-
desperta no povo ao se descobrir capaz sentar seu elemento ou a palavra, ou no
de produzir não apenas trabalho, mas momento de apresentação do elemento
poesia, canto, dança, força social, moti- ou palavra, cada um diz o nome e expli-
vação, empoderamento e humanidade. ca porque apresentou aquela palavra ou
Descreveremos a partir de agora elemento. Todos as palavras ou elemen-
algumas das experiências de metodolo- tos devem ser organizados (por todos ou
gias emancipatórias com as quais temos por quem queira) de forma a fazer uma
trabalhado: círculos de cultura, insta- síntese da ideia geral do grupo. Esta
lações artístico-pedagógicas, caravanas síntese representa a resposta coletiva
territoriais agroecológicas, intercâmbios à pergunta formulada. Se elementos/
agroecológicos e terreiros culturais. objetos são utilizados, estes podem ser
organizados em uma pequena instalação
Círculos de cultura artístico-pedagógica.
Os círculos de cultura foram am-
plamente utilizados por Paulo Freire e, Instalações artístico-pedagógicas.
inspirados em seus ensinamentos, utili- As instalações artístico-pedagógi-
zamos um formato que pode ser associa- cas têm sido praticadas com êxito pelo
do a todas as demais metodologias e em movimento agroecológico do Brasil,
qualquer roda de conversa. Os círculos desde o processo preparatório do III
de cultura promovem o processo de en- Encontro Nacional de Agroecologia
sino e aprendizagem e realizam debates (ENA), realizado em 2014. Os elemen-
sobre questões centrais do cotidiano. tos ou objetos de uma instalação são M
O círculo de cultura horizontaliza os organizados de formas a criar um cená-
conhecimentos e potencializa a dialogi- rio que propicia um ambiente dialógico
cidade entre os participantes, sejam eles e provocador das denúncias e anúncios
camponeses, estudantes, professores, sobre um tema a ser debatido em cole-
trabalhadores informais etc. Uma for- tivo. Essa ambiência se constitui não
ma de realizar os círculos de cultura é apenas dos recursos da escrita e da fala,
iniciar com uma pergunta. As pessoas, mas busca explorar outros sentidos,
em círculo, respondem a esta pergunta. como tato, olfato, paladar. Os cenários
Cada resposta deve ser apresentada criados com os elementos/objetos são
com um objeto/elemento ou com uma fundamentais para provocar reflexões,
palavra que sintetize uma ideia. Se a apontar problemas e estimular a busca
palavra é utilizada, ela pode ser escrita de soluções, a partir da compreensão
em um quadro negro ou em uma tarjeta. que nos territórios encontram-se proble-
Todos podem apresentar quantas ideias mas, mas também as soluções para eles.
quiser e o tempo permitir, mas uma Nas instalações, tanto os elementos/
ideia por vez (sintetizada na palavra ou objetos naturais como rochas, solos,

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M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

sementes, águas, raízes, folhas, estercos, transição agroecológica. Os intercâmbios


frutos, como aqueles criados pela huma- estão se expandindo em diversas regiões
nidade, como artesanatos, instrumentos do país pela eficácia do aprendizado de
musicais, pinturas, poemas, alimentos, um camponês com o outro e por sua
chás, bandeiras, livros, cartilhas, são capacidade de ampliar as práticas agroe-
importantes e devem ser utilizados. O cológicas. Esses são espaços de encontro
corpo muitas vezes é provocado durante de agricultores familiares camponeses
uma instalação, ora para dançar os can- para trocar experiências, sementes, mu-
tos e ritmos da cultura popular, ora para das e, sobretudo, conhecimentos sobre o
se contorcer e atravessar os obstáculos, manejo dos solos, das águas, das plantas
os espinheiros do caminho. e dos animais. Sua metodologia é prota-
Após vivenciarem a experiência de gonizada pela organização social dos agri-
sentidos durante a visita a uma instala- cultores, que através de seus sindicatos,
ção, os participantes devem se sentar e cooperativas ou movimentos mobilizam
conversar (círculo de cultura) sobre suas suas bases para um encontro nas terras
impressões. Para propiciar que todos de uma família.
falem, cada participante é estimulado a O início do intercâmbio acontece
falar a partir de um objeto presente na com uma mística de abertura, nor-
instalação. Com isso, a circularidade e a malmente acompanhada de um canto,
horizontalidade são respeitadas, e assim uma poesia, ou mesmo uma oração; em
que a roda se encerra, a palavra é aberta seguida, todos se apresentam. Este é
novamente até que se consiga compreen- um primeiro momento de romper com
der as denúncias e os anúncios daquele o silenciamento imposto aos campone-
tema em questão. Com isso, evita-se que ses; a família anfitriã, então, conta sua
as instalações não se transformem em história. Relatam como se conheceram,
palestras tridimensionais, onde os slides como foi o casamento, a criação dos
são substituídos pelo cenário construído filhos, a história da e na propriedade, o
M com os objetos. manejo da terra, os processos da tran-
As instalações artístico-pedagógicas sição agroecológica etc. Em seguida,
são desenvolvidas por seu potencial dia- todos os participantes saem em uma
lógico, e por sua capacidade de romper caminhada pela propriedade, para co-
com os processos de “educação bancária” nhecer o agroecossistema manejado
em que os participantes destes espaços pela família. No retorno da caminhada,
são, na maioria das vezes, vistos como os participantes trazem um objeto (so-
meros receptores de conhecimento.1 los, sementes, lixo, mudas etc.) sobre o
qual gostariam de falar. Forma-se então
Intercâmbios agroecológicos um círculo de cultura, no qual estes
Os intercâmbios agroecológicos objetos são apresentados e promovem
(Zanelli et al., 2015) são ambientes de o debate. A problematização dos obje-
interação agroecológica e têm sido o nosso tos apresentados, para a promoção do
jeito de colocar em prática a metodologia debate, é protagonizado pelos presentes,
denominada camponês a camponês (Ma- sejam eles técnicos, acadêmicos e mes-
chín Sosa et al., 2012), utilizada em outros tres griô agroecológicos presentes.2 Na
países da América Latina para promover a problematização aparece uma série de

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M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

questões e dúvidas que podem ser temas a agroecologia enquanto ciência, mo-
de aprofundamento posteriormente. vimento e prática, a disseminação das
Após a problematização, realiza-se a práticas agroecológicas e, sobretudo,
troca de sementes e mudas (ofertada a constituição de uma rede de conhe-
por aqueles que participam do intercâm- cimentos, articulando camponeses,
bio), momento crucial para fortalecer a técnicos e acadêmicos.
agrobiodiversidade nos territórios cam-
poneses. Este é um momento peculiar Caravanas culturais e agroecológicas e
para discutir sobre os transgênicos [ver cartografia social.
Transgênicos] e as leis que ameaçam a As caravanas são viagens de es-
autonomia do camponês no uso de suas tudos realizadas por vários grupos,
sementes. Em seguida, realiza-se a mesa que seguem por diferentes rotas de um
da partilha (também ofertada pelos par- mesmo território. Nessas rotas, os par-
ticipantes), onde são servidos alimentos ticipantes analisam os aspectos físicos
agroecológicos locais. Neste momento, e sociais, dialogam com a população,
em especial, ocorrem as conversas so- conhecem sua realidade, visitam expe-
bre soberania e segurança alimentar, riências que propiciam análises acerca
trocam-se receitas e discutem-se sobre das denúncias e os anúncios envolvidos
a origem, forma e produção daqueles neste território, “provocando um fazer
alimentos, e também sobre a produção político-pedagógico comprometido
do lixo, e o não uso de descartáveis com o fortalecimento da articulação e
na mesa da partilha. O intercâmbio se mobilização dos povos e comunidades
encerra com uma mística e a definição em busca de justiça, dos direitos e de
do tema e da data do próximo encontro. novos horizontes de sentido para a vida”
Para o aprofundamento de temas espe- (Barcelos et al., 2014, p. 228).
cíficos, são organizados intercâmbios Ao final, as diferentes rotas se en-
temáticos, oficinas, mutirões e visitas contram. No momento da culminância,
a outras experiências em alguns casos cada rota apresenta a experiência vivida M
fora do município. para as demais, utilizando instalações
Muito além de um conjunto de me- artístico-pedagógicas. Cada rota visita a
todologias, os Intercâmbios Agroeco­ instalação preparada pelas outras rotas.
lógicos se constituem como grupos de Após as visitas, é feita uma ref lexão
produção e trocas de conhecimento, coletiva, normalmente em plenária,
baseadas na problematização e na ação para extrair os anúncios, denúncias, e
sustentada na práxis de seus sujeitos. traçar estratégias de ação coletiva sobre
Muitos são os potenciais dessas ativi- o território em questão.
dades: as contínuas trocas de semen- As caravanas são inspiradas nas
tes, a valorização das histórias e das excursões pedagógicas de Makarenko
trajetórias familiares, a conscientiza- (1977), nas caravanas da cidadania, nas
ção sobre os problemas da agricultura romarias e nas caminhadas do povo, e
convencional e sobre os benefícios da também foram utilizadas como atividades
agroecologia, a ressignificação dada à preparatórias do III ENA (Encontro Na-
alimentação camponesa, o ambiente cional de Agroecologia, 2014) e IV ENA
que inspira muitas pesquisas e fortalece (Encontro Nacional de Agroecologia,

495
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

2018). Elas também vêm sendo realizadas de produzir cultura e celebrar a vida
para estudos de problemas complexos, em coletivo. O nome terreiro vem dos
como a tragédia-crime do Rio Doce e de diversos significados a ele atribuído, por
reconhecimento de territórios e saberes exemplo, os terreiros com seus jardins
quilombolas em Minas Gerais. Nas ca- no entorno das casas, os terreiros de
ravanas, múltiplos olhares se fazem pre- café, de umbanda, dentre outros.
sentes. As caravanas são exercícios muito Assim, na organização dos terrei-
consistentes da leitura dos territórios. Ne- ros culturais, procuramos vasculhar a
las aprendemos na diversidade, pela forma memória da comunidade, procurando
como o outro “lê” o mundo, a partir das saber se existiam parteiras na comuni-
experiências de resistência identificadas, dade, terapeutas, benzedeiras, ferreiros,
ao ouvir as populações sobre sua relação marceneiros, artesãos, folias, congadas,
com seus territórios. sanfoneiros, e se ainda existem. Quem
Há um grande potencial a ser ex- são as/os moradoras/es mais antigas/os?
plorado na relação entre as caravanas Qual a história que elas/eles contam
agroecológicas e a cartografia social. Ao sobre a comunidade? Quem são as lide-
evidenciar as territorialidades de popu- ranças da comunidade? Como esse grupo
lações que normalmente são excluídas está organizado e quais seus projetos de
e/ou ignoradas nas representações dos futuro? O que se comia antigamente?
lugares, as caravanas agroecológicas O que se produzia de alimentos e como
também revelam que as disputas por era o manejo?
essas representações estão intimamente A preparação para o terreiro cul-
relacionadas às disputas por território. tural deve ser cuidadosa, afetuosa e
Dessa forma, produzem contrainfor- comprometida. Muitas vezes, é preciso
mação em defesa da democratização do ter uma relação de trabalho e confiança
território e de seus recursos, como faz já construída com a comunidade para
a cartografia social (Acselrad, 2008). chegar a todos esses detalhes. Todas as
M Exemplos dessa disputa são apresenta- pessoas são convidadas para o terreiro
dos pelo projeto nova cartografia social cultural, que é uma celebração da vida
da Amazônia.3 daquela comunidade e valoriza o papel
de cada um de seus membros. Por isso,
Terreiros culturais normalmente tem muita cantoria, muita
Os terreiros culturais celebram a comida agroecológica, muita conversa e
vida do campo, o potencial artístico e a presença das manifestações culturais
criativo do povo e criam ânimo novo na abertura, no encerramento e em
para sonhar e realizar transformações. diversos momentos.
Os terreiros culturais apresentam uma Em meio às apresentações artísticas
forma da universidade se relacionar com são estabelecidos espaços de conversa
a sociedade, que não se define unica- sobre a comunidade. Pelo respeito à tra-
mente pela produtividade do campo. dição dos griôs africanos, normalmente
Trata-se de reconhecer que por trás dos as pessoas mais velhas começam con-
alimentos produzidos existem pessoas, tando a história daquela comunidade;
famílias e comunidades com seus modos em seguida, são chamadas as benzedei-
próprios de organizar a vida, o trabalho, ras, parteiras e terapeutas para falar da

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M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

saúde na comunidade. Poetas, músicos, comunitários e a relação entre a co-


cantoras/es são chamadas/os a lembrar munidade/o movimento com outros e
as festividades de antigamente e de demonstram que o campo é um espaço
hoje. As lideranças da comunidade são dinâmico e cheio de vida.
também chamadas a falar, para demons- Em síntese, apresentamos neste
trar a importância da organização social texto algumas conceitualizações, refle-
para a conquista dos direitos. Quase xões e experiências concretas com as
sempre um dos momentos é dedicado a metodologias emancipatórias. Afirma-
discutir sobre alimentação, quando se mos a importância da leitura do mundo,
procura trazer a origem dos alimentos, da pronúncia da palavra, da problema-
quem produziu, a relação com a tradição tização, de romper a exclusividade da
da comunidade etc. lectoescrita. As metodologias eman-
Nos terreiros culturais também é cipatórias podem nos ajudar na tarefa
possível realizar instalações artístico- urgente de compreender o ser humano
-pedagógicas e oficinas, para discutir em sua complexidade e a reconhecer
sobre temas específicos importantes que os camponeses são mais do que pro-
para a comunidade, como por exemplo dutores de alimentos; são portadores de
água, plantas medicinais, educação, saberes, de criatividade, de sonhos, de
criação animal e cultura popular. Os esperança e de capacidade de intervir
terreiros culturais fortalecem os laços e transformar o mundo.

Referências
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BARCELOS, E. et al. A Caravana Territorial da Bacia do Rio Doce: Mineração e territorialidades em
tensão. Terra Livre, v. 2, n. 43, p. 225-266, 2014.
BRANDÃO, C. R. O que é educação popular. São Paulo: Brasiliense, 2006. M
CENTRO DE TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS DA ZONA DA MATA (CTA). Intercâmbios
agroecológicos – uma proposta de metodologia (Folder), 10 dez. 2018. Disponível em: https://issuu.com/
centrodetecnologiasalternativasdazo/docs/folder_-_agroecologia_2_. Acesso em: 7 abr. 2021.
ENCONTRO NACIONAL DE AGROECOLOGIA, 3., 2014, Juazeiro. Carta política do III ENA: cui-
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enagroecologia.org.br/files/2014/05/Carta-Pol%C3%ADtica-do-III-ENA.pdf. Acesso em: 23 abr. 2021.
_______. 4., 2018, Belo Horizonte. Carta política [do] IV ENA: agroecologia e democracia unindo campo
e cidade. Rio de Janeiro: AS-PTA: Articulação Nacional de Agroecologia – ANA, 2018. 47 p. Dispo-
nível em: http://enagroecologia.org.br/files/2019/03/carta_politica_web.pdf. Acesso em: 23 abr. 2021.
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 8. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1983.
_______. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Autores Asso-
ciados/Cortez, 1989.
MACHÍN SOSA, M. B. et al. Revolução Agroecológica: O Movimento Camponês a Camponês da ANAP
em Cuba. 1ª ed. São Paulo: Outras Expressões, 2010.
MAKARENKO, A. As bandeiras nas torres. Lisboa: Livros Horizonte, 1977.
SANTOS, B. de S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica
de Ciências Sociais, 63, 2002 (p. 237-280).
SAVIANI, D. Escola e democracia: polêmicas do nosso tempo. 32ª ed. Campinas: Autores Associados, 1999.
SILVA, C. S. et al. Do griô ao vovô: o contador de histórias tradicional africano e suas representações
na literatura infantil. Nau Literária, v. 9, n. 2. p. 1-13, 2013.
ZANELLI, F. V. et al. Intercâmbios agroecológicos: aprendizado coletivo. Informe Agropecuário. Agri-
cultura orgânica e agroecologia, Belo Horizonte, v. 36, n. 287, p. 104-113, 2015

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M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

Notas
1
O projeto Sistematização de Experiências produziu diversos materiais de apoio às instalações
artístico-pedagógicas e outras metodologias (Associação Brasileira de Agroecologia [ABA]. Caderno
de Metodologias – Inspirações e experimentações na construção do conhecimento agroecológico,
2017).
2
A palavra griô se refere a mestres(as) africanos(as) da tradição oral, guardiões da memória. Com
registros desde o século XIV, no império Mali, griôs são considerados narradores da história de uma
comunidade ou de um povo, e possuem também outras atribuições, como transmitir saberes às novas
gerações, conduzir cerimônias, atuar como genealogista, entre outras (Silva, 2013).
3
Mapas e outras publicações, ver Instituto Nova Cartografia Social.

Metodologias participativas e pesquisa agroecológica


Jorge Enrique Montalván Rabanal
Marília Andrade Fontes

A pesquisa promove a interação do conhecimento técnico-científico ao


conhecimento tácito de povos e comunidades camponesas, por meio do res-
gate, sistematização e revalorização do conhecimento local, com o objetivo
de construir, em diálogo, o conhecimento agroecológico [ver C onhecimento
Agroecológico] que orienta e anima os processos de transformações econômi-
cas, sociais e políticas (Fontes, 2019). Para tanto, faz uso de metodologias de
pesquisa e extensão orientadas pelos princípios da participação, dialogicidade,
horizontalidade e comprometimento.
Dentre as origens múltiplas das metodologias participativas, podemos
destacar, no campo da pesquisa, a pesquisa-ação; a partir da década de 1970,
M essa modalidade passa a ser utilizada na ação política da prática científica e
em trabalhos com agricultura. A pesquisa-ação é um instrumento de ação
científica de dimensão pedagógica e política (Brandão; Borges, 2007), que
permite agir no campo da prática e investigar a respeito dela (Tripp, 2005).
Tem como horizonte a intervenção na realidade pesquisada e permite aprofun-
dar o conhecimento da realidade entre os pesquisadores e os demais sujeitos
envolvidos (Thiollent, 2008).
Na perspectiva de tornar-se parte, de incidir na realidade estudada, Giarracca
(2008) elucida a pesquisa militante, ou seja, a investigação realizada pelos próprios
sujeitos do processo, ou intelectuais nativos, como denominado pela autora. Essa
modalidade é fruto de um processo que iniciou em vários países da América Latina,
a partir de 1994, quando inicia uma nova etapa de resistência e luta contra as
políticas neoliberais – nesse contexto, surgem também relações de participação
e compromisso dos intelectuais nos movimentos sociais (Giarracca, 2008). A
autora defende que a pesquisa (ou investigação científica) deve ter elementos
como ativismo político, práticas artísticas e intervenções.

498
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

Apresentamos, como exemplo disso, os diagnósticos participativos e a


perspectiva de agricultor-experimentador.
Os diagnósticos participativos (principalmente de sistemas rurais) come-
çaram a tomar corpo nos anos 1970, no bojo da contestação aos projetos de
desenvolvimento rural baseados na “transferência tecnológica”, e tornaram-
-se mais conhecidos na década seguinte (Chambers; Gujit, 1995; Verdejo,
2010). Sua adaptação a diferentes contextos e objetivos deu origem a diversas
variações: o Diagnóstico Rural Rápido (DRR) (dentre eles, o mais centrado
nos investigadores), o Diagnóstico Rural Participativo (DRP), o Diagnóstico
Rápido Participativo de Agroecossistemas (DRPA) e o Diagnóstico Rural
Participativo Emancipador (DRPE) são os mais conhecidos. São bastante utili-
zados por Organizações Não-Governamentais e também por algumas agências
governamentais responsáveis por programas de desenvolvimento. Apesar da
concepção inicial e do próprio nome, vão além do simples diagnóstico e podem
ser igualmente utilizados em áreas urbanas.
Os diagnósticos participativos, portanto, se tornam ferramentas (por
exemplo, calendário sazonal, rotina diária, mapeamento, diagrama de
Venn) que possibilitam não somente identificar os recursos, os processos
organizativos e a forma como os interesses sociais se articulam em âmbito
local mas, acima de tudo, proporcionam um processo de leitura coletiva da
realidade social, econômica, política e ambiental das comunidades rurais com
vistas à identificação das contradições existentes, atuando como dinamizador
e animador na superação dos problemas identificados (Coelho, 2005).
O conceito de agricultores experimentadores surgiu na América Central,
e chegou a ser adotado em programas oficiais da região na década de 1990
(Hocdé; Meneses; Miranda, 2000). Suas origens remontam às práticas desen-
volvidas por movimentos camponeses e ONGs, na década de 1970, que dariam M
origem, mais tarde, ao método campesino a campesino [ver Educação Popular em
Agroecologia] (Holt-Giménez, 2008). São agricultores que experimentam em-
piricamente técnicas, práticas ou processos, propondo ou adaptando inovações
e compartilhando conhecimentos. Importante destacar que a experimentação
é constitutiva da práxis camponesa desde a origem da agricultura.
Uma evolução desse processo pautado em diagnósticos se alicerçou
em uma constante atividade de sistematizações de experiências agroe-
cológicas que se realizam em diversos territórios brasileiros e que, quan-
do colocadas em contato por meio de intercâmbios de experiências,
faz brotar um novo ator, guardião de saberes, o agricultor-experimen-
tador. Uma figura que tem se desenhado em contornos de dificuldade,
mais precisamente no semiárido brasileiro, onde, através de tecnologias
sociais de captação de água da chuva, tem feito surgir experiências de con-
servação da agrobiodiversidade, manejo alternativo de forragens, estratégias
de segurança alimentar e nutricional, quintais produtivos, protagonismo de
jovens e valorização do trabalho feminino.

499
M E T O D O L O G I A S E M A N C I PAT Ó R I A S

No Brasil, a ONG Assessoria e Serviços em Agricultura Alternativa – AS-


-PTA foi pioneira em buscar conhecer a experiência campesino a campesino,
na América Central, a qual adaptou metodologicamente nos seus programas
de agroecologia nos estados do Paraná e Paraíba, sob a denominação de Agri-
cultores Experimentadores, na segunda metade dos anos 1990, socializando-a
no interior da Rede Projetos Tecnologia Alternativa – Rede PTA (Petersen;
Tardin; Marocchi, 2002). Esse trabalho abriu um vasto campo de necessidades
de aprofundamento de pesquisas, atraindo pesquisadores de diferentes institui-
ções públicas, a exemplo da Embrapa – Seropédica (Rio de Janeiro), Instituto
Agronômico do Paraná – Iapar, universidades etc.
Paralelamente, esse processo desafiou, por exemplo, a uma qualificação
do Diagnóstico Rápido Participativo de Agroecossistemas (DRPA), resultando
no “Método de Análise Econômico-Ecológica de Agroecossistemas” (Petersen
et al., 2017).

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500
MINERAÇÃO

MINERAÇÃO

A r aê L ombar di
E r iva n C amelo da S ilva

O presente verbete trata e reflete mesmo que tenham elementos metáli-


sobre o significado da mineração e suas cos em sua composição, como argila,
relações com os territórios e os bens fosfato, enxofre, diamante, cloreto
naturais (natureza) a partir da lógica es- de sódio etc. As rochas são formadas
poliativa da indústria da mineração nos por dois ou mais tipos de minerais
seus diversos ciclos de produção, bem agrupados. Quando esses (rochas e
como a necessidade de construirmos minerais) passam a ter valor comercial,
um projeto de sociedade que enfrente o são denominados minérios.
modelo de mineração degradante ainda A palavra mineração deriva do latim
vigente. Partiremos da compreensão mineralis, “Material inorgânico, sólido,
técnica para em seguida discorrermos formado espontaneamente na natureza,
sobre as contradições da mineração de composição química definida e es-
nos territórios e na sociedade como trutura interna regular e que compõe a
um todo. litosfera” (Caldas, 2012), que significa mi-
A palavra mineração é definida, na neral. O ato de extrair os minerais da terra
maioria dos dicionários, como ação ou deu origem ao verbo minar. Portanto, o
efeito de minerar; trabalho de extração processo de extração de minerais, fruto do
do minério e depuração do minério ex- desenvolvimento histórico de tecnologias
traído das minas. E o que é mesmo o e do trabalho humano na natureza é o que M
minério? Agregado natural de mineral chamamos de mineração. Chamamos de
ou rocha que, em determinado estágio lavra o local onde ocorre a exploração
da tecnologia, pode ser utilizado para mineral e, nesse sentido, existem muitos
a extração econômica de um ou mais métodos de lavrar, a depender da tec-
metais (IBGE, 1999). nologia disponível, da profundidade do
Os minerais são substâncias en- minério, características geológicas e das
contradas na natureza, resultantes de condições históricas do território.
milhões de anos de dinâmicas naturais. Segundo o Ministério de Minas e
Podem ser classificados em metálicos Energia (MME) (Brasil, 1967), comu-
e não metálicos. Metálicos são os que mente o método de lavra é designado
contêm em sua composição elementos como sendo a técnica de extração do ma-
químicos que conferem característica terial. Conforme o MME, a escolha do
da condução de calor e eletricidade ao método de lavra é uma das decisões mais
mineral, como ferro, cobre, alumínio importantes que são tomadas durante
etc. Os não metálicos são minerais o estudo de viabilidade econômica. Na
que não têm características metálicas, fase de planejamento, a seleção é baseada

501
MINERAÇÃO

em critérios geológico, social, geográfico socioeconômica brasileira, associada


e ambiental; todavia, as condições de ao Estado enquanto responsável pela
segurança e higiene devem ser garantidas violência institucional” (Movimento
durante toda a vida útil da mina. pela Soberania Popular na Mineração,
A extração mineral faz parte da 2017, p. 9). O Código da Mineração de
história da humanidade, e desde o pe- 1967 (Brasil, 1967) diz, em seu primeiro
ríodo clássico da acumulação primitiva inciso, que compete à União adminis-
do capital e, principalmente, a partir trar os recursos minerais, a indústria
da Revolução Industrial, o processo de de produção mineral e a distribuição,
mineração desponta como fator vital o comércio e o consumo de produtos
na produção de riquezas (Pinassi; Cruz minerais. Ou seja, o Estado interme-
Neto, 2015, p. 22). Para Sodré (2002), deia as relações nos territórios desde
a mineração já era uma atividade co- licenciamentos e autorização de lavra
nhecida e praticada por populações até as contradições e conflitos ineren-
pré-colombianas, como a dos Incas nos tes à atividade em busca do acúmulo e
Andes, que produziam metais preciosos expansão do lucro privado.
e eram utilizados em rituais e ornamen- Discorreremos a seguir, de forma
tações, mas aparentemente não para resumida, três momentos de grande im-
fins monetários. Com a chegada dos portância e destaque para a mineração
colonizadores na América Latina, deu-se na história econômica nacional, que
início ao “saqueio de minérios” para fins pela estrutura do presente verbete não
econômicos, que ao longo dos mais de serão aprofundados.
300 anos foi um bom negócio europeu. O primeiro ocorre na fixação da
A mineração envolve, além da ex- coroa portuguesa no Brasil e a intensi-
tração, toda uma estrutura para seu ficação das exportações para a Europa.
beneficiamento. Há produtos menos As primeiras “catas” ou garimpos foram
industrializados, às vezes apenas moídos feitos no interior de São Paulo (São
M e levados para o mercado, e outros mais Vicente e Vale da Ribeira); depois, “os
complexos, com separações químicas, bandeirantes paulistas espalharam-se
físicas etc. O material extraído necessa- por Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso”
riamente será transportado até chegar (Germani, 2002, p. 6). Segundo Celso
na indústria (estradas, ferrovias, portos Furtado (2005, p. 81) “a base geográfica
e minerodutos) e depois ainda segue a da economia mineira estava situada em
logística de escoamento em forma de uma vasta região compreendida entre a
produtos. Para tudo isso, cabe ressaltar serra da Mantiqueira, no atual Estado de
que necessitará do Estado nacional para Minas Gerais, e a região de Cuiabá, no
suas liberações ambientais, de funciona- Mato Grosso, passando por Goiás”. Essa
mento, bem como criar estruturas para exploração se baseava na utilização de
as indústrias e logísticas fluírem. mão de obra escrava e tecnologia rudi-
A organização da “indústria mi- mentar; apesar da baixa produtividade,
neral” se confunde com a formação do sabemos do grande ganho da coroa nessa
Estado brasileiro, como amparo e braço fase de exploração de nosso território.
jurídico e de poder, onde “a mineração O segundo momento acontece em
impõe seu ritmo e formas na formação meados do século XX, na consolidação

502
MINERAÇÃO

da revolução industrial em sua mundia- projetos de investimentos, entre os quais


lização, com a segunda divisão interna- o Projeto Grande Carajás, prioridade
cional do trabalho. Naquele momento, da CVRD.
o mundo estava dividido entre países No final deste período histórico se
especializados em fornecer matéria- dá a concretização e a implantação do
-prima (América Latina e África) e os neoliberalismo na economia mundial e,
industrializados (centro). com isso as grandes privatizações, como
A criação da Companhia Vale do no Brasil foi o caso da CVRD,1 em 1997.
Rio Doce (CVRD), em 1942, e da Pe- Nesse processo de consolidação do
trobras, em 1953, ocorre no final da neoliberalismo é aprovada a chamada
Segunda Guerra Mundial e início da Lei Kandir (Brasil, 1996), 2 que esta-
Guerra Fria, período em que os países belece que matérias-primas são isentas
centrais necessitavam se reestruturar de taxação no ato da exportação. Ou
e, por isso, disputavam matéria-prima seja, se aprofunda o “saque de bens na-
(ferro, petróleo e energia). Portanto, turais” em função do capital financeiro
as empresas estatais citadas nascem controlado pelas multinacionais nas
umbilicalmente ligadas ao capital in- bolsas de valores. A Fundação Amazô-
ternacional, que inclusive financiou o nia Paraense de Amparo aos Estudos
nascimento de ambas. e Pesquisas (Fapespa) (2016) divulgou
O que coube aos países de “eco- um estudo apontando que, de 1997 a
nomia periférica”, como os da África e 2016, os estados brasileiros deixaram
América Latina, foi fornecer matéria- de arrecadar R$ 466 bilhões por causa
-prima. No Brasil, foi principalmente da Lei Kandir com a política de isen-
o envio de minério de ferro aos países ção do ICMS referente à exportação
de economia central (Movimento pela de produtos primários. Só em 2015,
Soberania Popular na Mineração, 2017). por exemplo, os estados deixaram de
São descobertas grandes jazidas de ferro arrecadar R$ 47 bilhões, e em 2016
em Minas Gerais e, um tempo depois, foram R$ 25 bilhões. Não é por acaso M
em Carajás (Pará), além de jazidas de que os estados mais prejudicados pela
fosfato e matéria-prima para a crescente lei Kandir são os que mais sofrem com
indústria de fertilizantes para a agricul- a grave crise fiscal. Portanto, a Lei
tura (que vivia a chamada Revolução Kandir garantiu incentivos e subsídios
Verde), indústria de cimento e demais às exportações de produtos primários
agregados para a construção civil em e reforçou a divisão internacional do
um momento de crescimento desenfrea­ trabalho, um verdadeiro “negócio da
do dos centros urbanos. China” que atribuiu ao Brasil o papel
O regime civil-militar permitiu ain- primário-exportador.
da mais a entrada do capital estrangeiro O terceiro momento histórico de
por meio de concessões no setor da mi- importância da mineração foi sua grande
neração. Segundo Coelho (2015), entre intensificação no início do século XXI
o final da década de 1970 e início dos até os dias atuais, com a financeirização
anos de 1980, o país recebeu grandes da economia mundial (e natureza), no
investimentos do capital estrangeiro no período que ficou também conhecido
valor de US$ 230 bilhões, através de 33 como superciclo das commodities [ver

503
MINERAÇÃO

F inanceirização da E conomia]. Alguns criarem-se alternativas econômicas, como


autores (Tádzio Coelho e Bruno Mila- é o caso de Mariana, Brumadinho e tan-
nez, entre outros) definiram esse mesmo tos outros. As relações entre as empresas
período como o “boom das commodities”, e o Estado favorecem a atuação do setor
no qual a produção mineral no Brasil privado por uma série de benefícios e
cresceu 550% entre os anos de 2001 e favorecimentos. Dessa forma, a população
2011. Confirma Bittencourt (2013) que, também se encontra excluída dos proces-
durante essa década, a participação da sos deliberativos que dizem respeito a estes
indústria extrativista mineral no PIB megaprojetos de mineração.
cresceu 156%. Cabe ressaltar que vivemos uma
Para o Movimento pela Soberania crise estrutural do capitalismo global,
Popular na Mineração (MAM) (2017), que levará a diversas medidas, tanto
o aumento expressivo da extração de conjunturais quanto estruturais para a
minérios no território brasileiro no pe- retomada de seu processo de acúmulo
ríodo do “boom” se deu principalmente e crescimento. Sendo assim, “haverá
por dois motivos: o primeiro, pelo alto reestruturação de todo os processos
consumo mundial de importação de ferro econômicos, dos Estados, do setor
pela China. No ano 2000, se encontrava produtivo e dos territórios com a cria-
no patamar de 150 milhões de toneladas ção de condições apropriadas para a
das importações globais, e, somente renovação da acumulação” (Harvey,
em 2014, o Brasil exportou para China 2005, p. 45).
cerca de 152,88 milhões de toneladas de É nesse último momento que se
minério de ferro, o que correspondeu a acirram os conflitos entre os territórios
52% da exportação brasileira de commo- que resistem ao avanço voraz da mine-
dities. O segundo motivo foi a política ração, que visa solapar qualquer força
de crescimento econômico baseada na social que lhes afronte. É também nesse
reprimarização da economia, que deu contexto de luta dos povos amazônicos
M ênfase a fortes investimentos em bens contra o neoextrativismo, desde a pri-
primários, mais do que nos beneficiados meira década deste século, que surge
e industrializados. o MAM na Amazônia, em 2012, onde
No Brasil, a indústria minerária está situado a maior mina de ferro do
realiza uma “economia de enclave”, mundo (Serra de Carajás, Parauapebas/
que não dialoga com as outras matrizes PA), partindo da reflexão de que era
econômicas, tornando os municípios necessário qualificar o entendimento
minerados dependentes desta fonte de e a resistência ao modelo de mineração
renda, deixando as regiões mais vulne- existente no Brasil. Origina-se como
ráveis a crises econômicas provocadas uma articulação de organizações com
pelo capital financeiro internacional. o objetivo de acumular força social
É isso que Coelho (2016) chama de capaz de enfrentar o modelo mineral
minério-dependência, que se dá quando dominante. O MAM é um movimento
a estrutura produtiva de um municí- de caráter nacional e internacionalista.
pio, região ou país é especializada na Até então, atua diretamente em 12 esta-
extração de minerais. Por conta desta dos da federação e com articulações em
especialização, existe dificuldade de pelo menos mais seis estados. Com as

504
MINERAÇÃO

massas espoliadas e organizadas, discute tais e comportamentais, principalmente


a superação do modelo mineral vigente, porque, desde que o crime aconteceu,
travando com base nos territórios em muitos moradores tiveram que deixar
conflito a luta de classes que aos pou- de realizar algumas atividades habi­
cos vai se materializando na soberania tuais. Ainda segundo o ISS, as principais
popular na mineração. O MAM se pauta doenças notificadas como provenientes
em organizar o povo que está em con- ou que têm relação com a lama são:
flito com a mineração (seja na beira da bronquite, rinite, sinusite, pneumonia,
cava, na ferrovia, no mineroduto, na gripe constante, alergia de pele, dengue,
estrada, perto da barragem de rejeitos, AVC, dermatite, falta de ar, manchas na
no porto etc.) e debater na sociedade o pele, pressão alta, depressão e dores nas
modelo mineral, primário-exportador pernas, sintoma comum de intoxicação
em que vivemos no país, contribuindo por minério.
com a construção do projeto popular Depois do crime da Vale no Córrego
para o Brasil. do Feijão, um estudo da Fundação SOS
Os mais de 50 milhões de m 3 de Mata Atlântica (Ribeiro, 2019) revelou
lama após o rompimento criminoso da que a lama de rejeitos provocou um
Barragem do Fundão, de responsabili- rastro de destruição ao longo do manan-
dade da Samarco/Vale/BHP Billiton, cial, elevando o nível de metais pesados
em novembro de 2015, no município na água do Rio Paraopeba, que ficou
de Mariana (Minas Gerais),3 bem como imprópria para o consumo. Já são 305
mais um crime envolvendo o rompi- km rio abaixo considerado morto, e pelo
mento de uma barragem de rejeitos (13 menos 21 municípios sem abastecimento
milhões m 3), de responsabilidade da em decorrência da contaminação.
Vale, em fevereiro de 2019, no córrego Ainda segundo a Fundação SOS
do Feijão, município de Brumadinho Mata Atlântica, já se pode afirmar que a
(Minas Gerais), colocou em xeque a contaminação por metais pesados, a per-
aliança das empresas transnacionais da de oxigênio e, sobretudo, a perda de M
do setor e o Estado, onde a população 112 hectares de floresta nativa de Mata
viveu as consequências do que repre- Atlântica na região de cabeceiras do rio
senta o saqueio de minérios que levou na região do Alto e do Médio Paraopeba
à morte de centenas de trabalhadores/ trouxeram um enorme prejuízo para a
as e moradores/as das áreas próximas e biodiversidade, que estava no momento
a contaminação dos territórios. final da piracema, quando os peixes
Segundo uma pesquisa feita por Vor- sobem o rio para desova e procriação.
mitag (2019), do Instituto Saúde e Sus- A partir de várias pesquisas e de
tentabilidade (ISS), a lama que desceu relatos de militantes que acompanham
no Rio Doce (Minas Gerais) aos poucos os crimes das mineradoras nos vales do
foi virando pó e continua, depois de três Rio Doce e do Rio Paraopeba (Minas
anos, provocando doenças respiratórias, Gerais), percebe-se que os territórios
afecções de pele, doenças infecciosas, (pescadores, camponeses, ribeirinhos,
doenças oculares, problemas gástricos e indígenas...) que têm uma relação espi-
intestinais. Todos os problemas citados ritual, simbólica e de coexistência com
também têm causado transtornos men- estes rios também estão sofrendo, porque

505
MINERAÇÃO

o lugar de reprodução de suas culturas sua grande maioria ligados a setores do


(vidas) está morto. capital financeiro internacional.
Nesses próprios territórios onde Portanto, se faz cada vez mais ne-
as mineradoras se instalam, coexistem cessário compreender a fundo o funcio-
camponeses produtores de alimentos, namento de todo processo da mineração
comunidades tradicionais (quilombo- (produção, circulação e produção de bens
las, indígenas, ribeirinhos etc.), áreas de consumo), desde suas raízes históricas
de proteção ambiental, comunidades até os dias atuais, onde vivenciamos “tra-
periféricas. São ao mesmo tempo ter- gédias programadas”, bem como construir
ritórios sem regularização, porém com forças sociais para apontar as saídas para
facilidades de instalação de indús- superação do modelo de mineração que
trias da mineração, do agronegócio e mutila e mata pessoas e ecossistemas por
complexos industriais em contradição inteiro, a exemplo de Mariana e Bruma-
constante com a reprodução social dinho, no qual os efeitos da indústria da
histórica dessas localidades. mineração foram sentidos para além dos
O Brasil extrai dezenas de minerais lacônicos bordões superávit primário ou
das mais variadas formas, desde con- equilíbrio da balança comercial.
dições artesanais, garimpos (legais e É mais que urgente e necessário
ilegais), até as grandes empresas privadas pensar e construir um Brasil que supere
nacionais e, sobretudo, transnacionais. a indústria da mineração e se constitua
Todos são processos para garantir a como nação soberana capaz de respeitar
construção e a expansão das cidades, o povo e os bens comuns que geram a
do setor industrial e do agronegócio em vida nos territórios.

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_______ (org.). Antes fosse mais leve a carga: reflexões sobre o desastre da Samarco/Vale /BHP Billiton.
1. ed. Marabá: Editorial Iguana, 2016. 2 v. (A questão mineral no Brasil).

Documentários
SERTÃO DOS INHAMUNS: MINERAÇÃO E DESTRUIÇÃO. Movimento pela Soberania Popular
da Mineração (MAM). 2017.Duração: 17 min. Vídeo. Disponível em: https://www.youtube.com/wat-
ch?v=hNUZ2-5ZKxI. Acesso em: 7 abr. 2021.
NARRATIVAS DE FERRO: EXPERIMENTO 1 Grupo Estudo de Cena / Movimento pela Soberania M
Popular da Mineração (MAM). Conceição do Mato Dentro, Minas Gerais.
2018. Duração: 31 min. Vídeo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NPuG_ScIL-U.
Acesso em: 7 abr. 2021.

Notas
1
Nos últimos anos antes de ser privatizada, a CVRD teve lucros líquidos em milhões de dólares bastante
significativos, o que destoa por completo do discurso de privatização. A CVRD foi privatizada em
maio de 1997 por R$ 3,338 bilhões, quando somente suas reservas minerais eram calculadas em mais
de R$ 100 bilhões no mesmo período. A justificativa do Estado era que a privatização da empresa
aconteceria para diminuir a dívida pública, que, ao contrário, pulou de 32,84% do PIB (1997) para
48,50% (1999) (Coelho, p. 38, 2015).
2
Criada em 1996 pelo deputado Antônio Kandir. A mineração é um dos setores econômicos que
menos paga impostos no mundo, pela sonegação, evasão e subsídios. No caso do Brasil, a Lei Kandir
desonerou qualquer imposto sobre a circulação de mercadorias (ICMS) (Movimento pela Soberania
Popular na Mineração, 2017).
3
A lama percorreu mais de 700 km até foz do Rio Doce, no litoral do Espírito Santo, matando 19
pessoas e impactando mais de 2 milhões de pessoas.

507
MOVIMENTO AGROECOLÓGICO

MOVIMENTO AGROECOLÓGICO

A dr ia no da C osta Valadão
S ilva na dos Sa ntos M or eir a

Movimento agroecológico é o pro- autor destaca três fases importantes


cesso de organização de diversos sujei- na constituição deste movimento. A
tos do campo e da cidade que propõe primeira é marcada pela reconstrução
estratégias baseadas na agroecologia de “novas relações com a natureza e
[ver A groecologia] em contraposição sociedade” (Brandenburg, 2002, p. 23)
à lógica industrial de produção. Essas por diversas categorias sociais. Na se-
estratégias não se limitam a questões gunda fase, o reconhecimento social é
de produção e incluem a comercializa- alcançado a partir de uma conjuntura
ção, a cultura, as formas organizativas favorável a movimentos ecológicos, e que
e a saúde, bem como a denúncia dos contribuem para a “reafirmação de uma
problemas que o modelo da agricultura identidade coletiva na qual se multipli-
convencional proporciona. cam formas de organização, preocupação
O movimento agroecológico pode com técnicas de plantio e articulação
ser compreendido a partir do conceito para apoio político e se articula regio-
de movimento social apontado por nalmente e nacionalmente em forma
Gohn (2007). A autora considera a de redes” (Brandenburg, 2002, p. 23).
realidade latino-americana e identifica Na terceira, ocorre o que o autor define
as questões de classe como centrais, mas como o fomento à institucionalização,
também aponta elementos culturais en- com vistas à reorganização de estruturas
M fatizados pelas correntes dos chamados de beneficiamento e comercialização
novos movimentos sociais.1 (Brandenburg, 2002).
Um movimento social se caracteri- Wezel et al. (2009) apontam que a
za por possuir uma identidade, ter opo- definição de movimento agroecológico
sitor e articular-se ou fundamentar-se não é clara, dada a ampla variedade
em um projeto de vida e de sociedade. de formatos e práticas assumidas por
Historicamente, os movimentos so- seus componentes, tanto na esfera local
ciais têm contribuído para organizar e quanto na regional e até global. Os auto-
conscientizar a sociedade; apresentam res sugerem que estes podem apresentar
conjuntos de demandas via práticas de elementos mais políticos, em busca de
pressão/mobilização; têm certa conti- desenvolvimento rural, como no Brasil,
nuidade e permanência. ou vir de grupos de agricultores que
A noção de movimento agroeco- buscam responder aos desafios ecológi-
lógico foi proposta inicialmente por cos em sistemas com considerável grau
Brandenburg (2002) enquanto uma de especialização, com a realização de
hipótese para os avanços na organi- parcerias, como nos Estados Unidos.
zação dos agricultores ecologistas. O Em geral, estes movimentos têm em co-

508
MOVIMENTO AGROECOLÓGICO

mum a orientação para a ação, buscando Unidos a gênese da agroecologia se dá


demonstrar que a agricultora ecológica enquanto disciplina científica devido ao
é possível. Para tanto, desenvolvem prá- trabalho de pesquisadores e pequenos
ticas e formas organizativas que buscam grupos com pouca articulação entre si.
acessar mercados locais, compartilhar Os precursores do movimento
saberes, sementes e práticas e também agroeco­l ógico no Brasil defenderam
construir pautas coletivas a partir de como proposta a agricultura alternativa,
suas demandas de pesquisa, assistência que surge ao final da década de 1970
técnica e políticas públicas. como um conjunto de sujeitos que se
Com base em Schmitt (2009), pode- articulam inicialmente em torno da
-se apontar que a literatura e o discurso crítica ao modelo da Revolução Verde
da agroecologia operam com três grandes [ver Revolução Verde] e na defesa de uma
noções. Primeiro, a de ciência ou campo agricultura de base familiar.
científico interdisciplinar que aplica os Na década de 1980, várias organi-
conhecimentos da ecologia nas ciências zações não governamentais iniciam seus
agrárias com apoio de diversos campos trabalhos com as comunidades cam-
das ciências sociais e outras áreas do ponesas para discutir uma agricultura
conhecimento, em um diálogo com o alternativa; neste momento, destaca-se
conhecimento tradicional camponês. o trabalho da Rede PTA-Fase. Estes
A segunda noção de agroecologia está grupos promoveram quatro Encontros
ligada a um conjunto de práticas e téc- Brasileiros de Agricultura Alternativa
nicas agrícolas menos agressivas ao meio (EBBAs), nos anos de 1981, 1984, 1987
ambiente. Destaca-se a valorização dos e 1989. Nos dois primeiros encontros na-
recursos internos ao agroecossistema, cionais, privilegiou-se a problemática da
como, por exemplo, a ciclagem de nu- degradação ambiental pelas tecnologias
trientes e a adubação verde, assim como da agricultura industrial; no terceiro e no
a não utilização de agrotóxicos, adubos quarto encontro, ganharam relevância as
industrializados e sementes transgênicas. questões sociais da produção, com maior M
Por fim, a terceira noção de agroecologia importância para a questão política. As
é a de um modo de vida ou ação cole- críticas a esse período apontam que
tiva, noção que remete à articulação do havia um privilégio da discussão de ques-
movimento agroecológico. tões técnicas, levantadas principalmente
Na América Latina, especialmente por profissionais das ciências agrárias,
no Brasil, a gênese da agroecologia se deu estudantes e agricultores neorrurais
através da ação de movimentos sociais (pessoas que retornavam ao campo com
e especialmente de ONGs que trabalha- o objetivo de desenvolver a produção de
vam com agricultores camponeses com alimentos saudáveis). Via de regra, esse
o intuito de oferecer uma alternativa movimento era visto como apenas um
ao modelo da agricultura convencio- movimento de contracultura e sem base
nal, hoje chamado de agronegócio [ver científica (Luzzi, 2007).
Agronegócio]. Por isso, o surgimento do Nos anos 1990, a agroecologia é
movimento agroecológico se destaca na proposta como uma nova disciplina
América Latina, pois, como apontam científica, ou mesmo uma nova ciência
Wezel et al. (2009), na Europa ou Estados (Altieri, 2001), recebendo um suporte

509
MOVIMENTO AGROECOLÓGICO

técnico-científico. A partir da ECO-92, Sem Terra (MST), que inicia uma ampla
programas de pós-graduação inserem a reflexão sobre a necessidade de avançar
sustentabilidade a partir da agroecologia na prática da agricultura ecológica, a
em suas demandas de pesquisas, inau- partir do seu IV Congresso Nacional,
gurando por exemplo o doutorado em realizado no ano 2000, na cidade de
Meio Ambiente e Desenvolvimento da Brasília. Como exemplo dos desdobra-
Universidade Federal do Paraná (UFPR). mentos do IV Congresso, é possível citar
Ao mesmo tempo, há uma rearti- a constituição de escolas de formação
culação da antiga Rede PTA/Fase, que em agroecologia e o protagonismo do
passa a executar diretamente projetos MST na organização da Jornada de
de agricultura alternativa, se transfor- Agroecologia a partir de 2002, no es-
mando na AS-PTA. Junto a outras or- tado do Paraná. Na mesma época, o
ganizações que atuam em um contexto Movimento dos Pequenos Agricultores
regional, inicia trabalhos massivos com (MPA) elabora o Plano Camponês. Este
os camponeses, através de dias de campo, documento coloca a agroecologia como
produção de materiais gráficos, cursos de orientadora do processo produtivo. Estes
formação e sistematização de experiências e outros movimentos sociais camponeses
visando ampliar a adoção da agricultura se articulam nacionalmente e internacio-
de base ecológica. Entre as ações de nalmente através da La Via Campesina,
grande relevância destas entidades estão incorporando temáticas que fortalecem
o resgate, a seleção e a multiplicação de a discussão da agroecologia nos movimen-
sementes crioulas, o apoio para a cons- tos sociais da América Latina.
tituição de associações e cooperativas Em 2004, é criada a Articulação
e a busca de parcerias para o desenvol- Nacional de Agroecologia (ANA) [ver Ar­
vimento de pesquisas em agroecologia ticulação Nacional de Agroecologia], que
(Luzzi, 2007). aglutina em âmbito nacional o movimen-
No sul do país, em 1998, as organi- to agroecológico no Brasil e busca atuar
M zações camponesas que desenvolvem a como o seu espaço de operacionalização.
agroecologia criaram a Rede Ecovida de A ANA congrega atualmente 23 redes
agroecologia que, aliada a outras redes e estaduais e regionais e 15 movimentos
entidades, contribuiu para a consolida- sociais de abrangência nacional. A ANA
ção da certificação participativa garanti- atua, ainda, em estreita parceira com a
da pela Lei 10.831/2003, regulamentada Associação Brasileira de Agroecologia
pelo Decreto 6.313/2007 (Brasil, 2007). (ABA), responsável por discutir questões
A partir do final da dé­cada de 1990, am- mais técnicas e de cunho científico.
pliam-se as reivindicações por políticas A ANA organiza a cada dois anos os
públicas para agroecologia na denúncia do Encontro Brasileiros de Agroecologia,
agronegócio, assim como na proposição buscando congregar representantes dos
de ações que colaboram para a transição diversos segmentos que trabalham com
agroecológica. o tema.
A partir do ano 2000, os movimen- Scherer-Warren (2006) aponta que
tos camponeses vão se somando ao mo- uma característica dos movimentos
vimento agroecológico. Destaca-se o sociais na atualidade é a articulação
Movimento dos Trabalhadores Rurais em redes. O movimento agroecológico

510
MOVIMENTO AGROECOLÓGICO

assume essa forma, se estabelecendo pesino (MACaC). Este movimento tem


como uma rede composta de movimen- juntado a produção coletiva de conhe-
tos sociais, instituições, pesquisadores, cimentos com um método inovador para
estudantes em diferentes formatos de a adoção da transição agroecológica mas-
organizações, na qual cada participante siva, em âmbito nacional, protagonizado
busca manter sua autonomia, apresentar pela Associação Nacional dos Pequenos
e lutar por suas demandas específicas, Agricultores (Anap). Machín (2017)
formando um espaço de diálogo, de afirma que após 20 anos de ações do
busca de convergências, de pontos de MACaC, Cuba tem 130 mil famílias de
contato e consensos. agricultores em transição agroecológica.
Atualmente, a articulação do movi- Ainda na América Latina, o movi-
mento agroecológico expressa-se princi- mento agroecológico de América Latina
palmente: na atuação dos diversos atores; e Caribe (Maela) busca avançar na arti-
na realização dos Encontros Nacionais culação entre os diversos atores de países
de Agroecologia (ENA); na intensa par- da região na divulgação e sensibilização
ticipação dos movimentos sociais em em relação à agroecologia, atuando com
Eventos Científicos da Agroecologia, o apoio da Sociedade Científica Latino-
especialmente nos Congressos Brasileiros -Americana de Agroecologia (Socla).
de Agroecologia; em campanhas como Assim, o movimento agroecológico
“As sementes são patrimônio da humani- apresenta grande diversidade, desde a
dade!” e a “Campanha contra os Agrotó- dimensão local até a dimensão nacional
xicos”; nas Jornadas de Agroecologia; nas e internacional. A distribuição fluída
redes de certificação participativa; nas dificulta o seu dimensionamento. No
feiras locais, regionais e nacionais; redes entanto, a partir dos contextos regionais,
de produtores e consumidores; nos grupos o movimento agroecológico tem se colo-
de agroecologia; no trabalho de ONGs; cado como um movimento de resistência
e na luta pela implantação e acesso a po- ao agronegócio, e se organiza através de
líticas Públicas de apoio à Agroecologia. uma capilaridade de redes e movimentos. M
Na América Latina, destaca-se a Apresenta como pontos convergentes a
experiência de Cuba em direção ao pro- luta por um outro modelo de agricultura
cesso de transição agroecológica. Com o como contraponto à agricultura indus-
fim da União Soviética, o país passou por trial. Nos espaços coletivos de encontros,
um período especial, tendo o desafio de ganham relevância questões como o fe-
aumentar a produção de alimentos sem minismo e a agroecologia, a cultura e a
insumos industriais e petróleo. Foi neste necessidade de resistência diante da atual
contexto que se formou o Movimento onda política conservadora que tem au-
Agroecológico de Campesino a Cam- mentado os conflitos pelos bens coletivos.

Referências
ALTIERI, M. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. Porto Alegre: UFRGS, 2001.
BRANDENBURG, A. Movimento agroecológico: trajetória, contradições e perspectivas. Desenvolvi-
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de 27 de dezembro de 2007. Regulamenta a Lei n. 10.831, de 23 de dezembro de 2003, que dispõe sobre
a agricultura orgânica e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2007/decreto/d6323.htm. Acesso em: 7 abr. 2021.

511
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

GOHN, M. G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo:
Loyola, 2007.
LUZZI, N. O debate agroecológico no Brasil: uma construção a partir de diferentes atores sociais. 194
f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais, em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) Instituto de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
MACHÍN, B. El Movimiento Agroecológico de Campesino a Campesino en sus 20 años de implemen-
tación en Cuba: realidades, realizaciones y retos. Agroecología, v. 12, n. 1, p. 99-105, 2017. Disponível
em: http://revistas.um.es/agroecologia/article/view/330411. Acesso: 20 set. 2018.
SCHERER-WARREN, I. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Sociedade e Estado, v. 21,
n. 1, p. 109-130, jan./abr. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/se/v21n1/v21n1a07.pdf. Acesso:
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SCHMITT, C. J. Transição agroecológica e desenvolvimento rural: um olhar a partir da experiência
brasileira. In: SAUER, S.; BALESTRO, M. V. Agroecologia e os desafios da transição agroecológica. São
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WEZEL, A. et al. Agroecology as a science, a movement and a practice. A review. Agronomy for Sus-
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cd=1&hl=pt-PT&ct=clnk&gl=br Acesso: 20 set. 2018.

Para saber mais


AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia: Disponível em: https://aspta.org.br/. Acesso em: 7
abr. 2021.
ANA – Articulação Nacional de Agroecologia: Disponível em: https://agroecologia.org.br/. Acesso
em: 7 abr. 2021.
Jornada de Agroecologia – Disponível em: https://jornadadeagroecologia.org.br/. Acesso em: 7 abr. 2021.
Rede Ecovida de Agroecologia – Disponível em: http://ecovida.org.br/. Disponível em: 7 abr. 2021.
O QUE É AGROECOLOGIA? Produzido por Rafael Forsetto e Kiane Assis. Curta metragem vencedor
do concurso global de vídeos da juventude sobre Mudanças Climáticas TVEBioMovies 2019. Promovido
pela Organização das Nações Unidas (ONU). Disponível em: https://youtu.be/5svhDXrauLk. Acesso
em: 7 abr. 2021.

Nota
1
“Novos movimentos sociais” foi a expressão utilizada para indicar os movimentos sociais que surgiram
a partir do início da década de 1970 e que tinham pautas que iam além da tradicional luta sindical
com viés de classe. Exemplos mais comuns são os movimentos ambientalistas, feministas, culturais,
M pacifistas, antiglobalização, de consumidores e muitos outros (Gohn, 2007).

MUDANÇAS CLIMÁTICAS

A ndr ei C or netta

O fenômeno das mudanças cli- prejuízos econômicos que tal fenômeno


máticas ganhou projeção nas últimas pode impulsionar, seja pelas diversas
décadas do século XX como um dos transformações que já se observam na
principais temas de debate da ciência superfície terrestre, as mudanças no
contemporânea. Seja em função dos clima têm levantado inúmeras contro-

512
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

vérsias a respeito de suas causas, de seus cias à vida animal, como o deslocamento
efeitos e de como lidar politicamente e a extinção de espécies. Conforme os
com o fenômeno. relatórios do IPCC vêm apontando,
O Painel Intergovernamental sobre para que estes efeitos não sejam mais
Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla drásticos, é preciso reduzir de 50% a
em inglês), órgão ligado à Organização 85% das emissões de GEE até a metade
Mundial de Meteorologia (OMM) e que deste século (Intergovernmental Panel
responde pelas publicações de maior on Climate Change, 2013).
projeção sobre o tema, tem afirmado Diante do cenário alarmante, uma
que a temperatura média da atmosfera série de políticas e medidas econômicas
cresceu de maneira alarmante ao longo foram tomadas no âmbito dos fóruns
do século XX. A hipótese é a de que multilaterais das Nações Unidas (ONU),
as atividades humanas, em função da assim como nas políticas públicas vol-
intensificação das emissões na atmosfera tadas às mudanças do clima dentro
de gases de efeito estufa (GEE), “tenham dos territórios nacionais. A partir daí,
causado cerca de 1,0 °C de aquecimento surgem uma série de arranjos jurídico-
global acima dos níveis pré-industriais, -econômicos que ganharam destaque
com uma variação provável de 0,8 °C em programas governamentais, além
a 1,2 °C” (Intergovernmental Panel on da criação de uma “economia de baixa
Climate Change, 2019, p. 7). emissão de carbono”. Argumenta-se que
Este aumento na temperatura esta- esta última é parte das soluções para os
ria sendo provocado pela concentração efeitos das emissões de GEE em relação
dos GEE na atmosfera (dentre os mais ao aumento da temperatura. Em linhas
relevantes: dióxido de carbono [CO2], gerais, trata-se de um modelo de econo-
metano [CH4], óxido nitroso [N2O], mia baseado na substituição de fontes
hexafluoreto de enxofre [SF6], cloro- energéticas fósseis e que se desdobra
fluorcarbonetos [CFCs], hidrofluorcar- em inúmeros rearranjos produtivos e do
bonetos [HFCs] e perfluorcarbonetos uso do solo. M
[PFCs], além do vapor d’água), afetando A Terceira Conferência das Partes
diretamente o balanço energético pro- (COP-3), realizada em 1997, que deu
porcionado pelo efeito estufa, fenômeno origem ao chamado Protocolo de Kyoto,
que equilibra a troca energética entre é emblemática nesse sentido, pois foi
superfície e atmosfera, proporcionando este acordo que proporcionou a base
uma temperatura média global próxima para a formulação das políticas públicas
à superfície de 15º C, garantindo, assim, voltadas ao tema, sobretudo por esta-
a vida na Terra como nós a conhecemos. belecer um acordo vinculante entre os
Dentre os desdobramentos que o países signatários em relação a metas
aquecimento do clima pode impulsionar de emissões de GEE.1 Neste acordo, os
estão o comprometimento da agricul- países do Norte – mais especificamente,
tura, os danos às infraestruturas e os aqueles que fazem parte da Organização
decorrentes efeitos sobre a economia por para a Cooperação e o Desenvolvimento
eventos extremos de chuvas ou secas, a Econômico (OCDE) e os países indus-
elevação no nível dos oceanos, afetando trializados que compunham parte do an-
as faixas litorâneas, além de consequên- tigo bloco soviético – se comprometeram

513
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

a reduzir suas emissões em 5,2%, com indicativo, pode-se dizer que o mercado
base no ano de 1990, entre o período de de compensação de gases efeito estufa,
2008 e 2012. pela sua própria característica funcional,
Com o propósito de atingir a meta se restringe a um comércio entre países
estabelecida, o Protocolo prevê a criação industrializados; tanto os do Norte como
de dispositivos econômicos, dentre os os do Sul.
quais o chamado “Mecanismos de De- Esta perspectiva geopolítica das
senvolvimento Limpo” (MDL),2 o único mudanças climáticas foi reafirmada na
a considerar a participação dos demais COP-21, realizada em Paris, no ano de
países. Estes são mecanismos que possi- 2015, que ficou marcada não apenas
bilitam que os países industrializados há por ter estabelecido um tratado vin-
mais tempo, e que possuem metas de re- culante, a exemplo do que foi o Proto-
dução, possam compensar suas emissões colo de Kyoto, mas pelos países terem
por meio dos mercados especializados na apresentado suas metas de redução de
comercialização de créditos compensa- emissões até 2030. Se, por um lado, a
tórios de carbono equivalentes,3 gerados divisão/condição Norte-Sul se apresenta
por atividades desta natureza nos países limitada ao se tratar das mudanças
do Sul. climáticas, afinal todos podem sofrer
Em linhas gerais, estas atividades consequências, por outro, as relações
definem-se como um parâmetro para desiguais de poder entre os países cen-
simular4 um cenário de emissões que po- trais e periféricos permanecem.5
deriam ser atribuídas a determinada ati-
vidade econômica, caso não existisse um Diferentes visões sobre o clima:
mecanismo de redução ou compensação controvérsias entre mitigação e
acoplado a ela. A partir do momento adaptação
em que se atesta a redução de emissões, As dinâmicas do clima envolvem,
mediante a utilização dos procedimentos necessariamente, alterações na realidade
M obrigatórios (fundamentalmente a linha biofísica, marítima, terrestre, assim como
de base), a atividade será considerada nas dimensões econômicas, sociais e
“adicional”, e poderá gerar e negociar políticas. Entretanto, a atenção que é
créditos compensatórios de GEE no dada atualmente às mudanças climáticas
chamado “mercado de carbono” [ver deve-se, em grande medida, à perspectiva
Capitalismo Verde]. que se construiu no campo da meteoro-
Para que a implantação de um sis- logia física e que ecoou para o mundo a
tema como esse seja efetivado por um partir da OMM e de seu braço, o IPCC.
país ou empresa, é necessário que haja Todavia, para além desta visão –
capacidades tecnológicas, sobretudo que ocupa o centro do debate científico
aquelas voltadas à substituição de matri- –, existem outros entendimentos sobre
zes energéticas de origem fóssil. Não por os fenômenos atmosféricos e que são
acaso, China, Índia e Brasil detiveram pouco considerados pelos formuladores
mais de 80% dos projetos de MDL em de políticas. Nesse universo, que não
funcionamento no mundo, durante o se restringe ao saber tido como “cien-
primeiro período do Protocolo de Kyoto tífico”, encontram-se as visões que os
(2008-2012) (Brasil, 2016). Frente a este diferentes grupos sociais oferecem sobre

514
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

o clima, embora em outras escalas de orbitais da Terra, entre outros eventos de


com­preensão do fenômeno. origem não humana. Diferentemente da
Exemplar neste sentido são as ex- posição do IPCC, para estes cientistas a
pectativas que os Ticuna têm em relação temperatura da Terra estaria se dirigindo
aos fenômenos climáticos e que estão para um resfriamento.
registradas na iconografia de narrativas Observa-se que o argumento deste
gráficas vistas em indumentárias de entendimento vem sendo utilizado, em
panos, máscaras, ou “rodas” rituais,6 muitos casos, para legitimar o atual
coletadas pelo etnólogo Curt Nimuen- modelo de desenvolvimento baseado em
daju nos anos 1940 (Faulhaber, 2004). energias fósseis – sobretudo pelo interes-
A ritualização do clima é um aspecto se da indústria petroleira –, uma vez que
do modo de vida de povos indígenas e essas teses desvinculam as mudanças do
de populações rurais que criam estraté- clima da influência humana.
gias de adaptação frente às adversidades Em contrapartida, os relatórios de
atmosféricas, como garantia para suprir avaliação do IPCC reafirmam a tese
as deficiências alimentar ou hídrica, ou das mudanças climáticas de origem an-
mesmo a fome sazonal (Wilbert, 1996). trópica, ao mesmo tempo que os GEE
Os inúmeros efeitos apontados como ganham centralidade nas políticas vol-
consequências do “aquecimento global” tadas ao tema. Em síntese, as políticas
já são sentidos há tempos por essas popu- para mudanças climáticas privilegiam
lações no nível de suas relações imedia- práticas compensatória de emissões na
tas, não necessariamente pela elevação atmosfera, em detrimento de estratégias
da temperatura terrestre, mas pelos mais de adaptação territorial.
diversos processos que incluem as com- Ainda sobre as soluções que se bus-
plexas relações entre as sociedades e o cam frente às mudanças climáticas,
seu meio.7 surgem as chamadas “geoengenharias”,
No campo da meteorologia, as con- enquanto intervenções em grande escala
trovérsias sobre mudanças climáticas se no sistema climático da Terra, cujos ob- M
desenham de maneira polarizada. De um jetivos passam pela redução, ou mesmo
lado, estão os chamados “aquecimen- a reversão, dos efeitos do aquecimento
tistas”, ligados à perspectiva do IPCC; do planeta. Entre as principais propos-
de outro, os chamados “céticos”, cujas tas dos que defendem a geoengenharia
investigações têm mostrado uma visão está aquilo que se entende por “geren-
distinta a respeito das causas e efeitos das ciamento da radiação solar”. Este seria
mudanças do clima. Estes cientistas con- executado por meio do lançamento de
sideram como fatores de maior in­f luência espelhos de grandes proporções na ór-
na variabilidade climática – mais do bita da Terra, com o intuito de refletir
que as emissões antrópicas de GEE – a radiação do Sol, ou pelo lançamento
fenômenos como a oscilação energética de partículas reflexivas de enxofre na
do Sol, o aumento do albedo planetário estratosfera, o que supostamente ajudaria
(a refletividade difusa ou o coeficiente a filtrar a energia solar.
de reflexão de uma superfície) devido à No entanto, o possível uso dessas
intensidade de vulcanismos por longos tecnologias tem despertado inúmeras
períodos, as variações dos parâmetros controvérsias entre os cientistas, que

515
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

levantam uma série de questionamentos ao determinismo climático, como o “mal


sobre a efetividade desses equipamentos, dos trópicos”, a indolência do homem das
assim como suas possíveis consequências zonas mais quentes, “doenças tropicais”
irreversíveis para o planeta em termos ou o subdesenvolvimento dos trópicos
de balanço energético e de seus efeitos em função das médias térmicas.
sobre os ecossistemas. Além dessas incer- Temas relacionados à fome e
tezas, os especialistas chamam a atenção ­doenças também são abordados pelos
para o fato de que tais propostas podem relatórios do IPCC, embora enquanto
afastar a atenção das ações de redução fenômenos relacionados aos níveis de
das emissões de gases de efeito estufa, emissões de GEE e o decorrente aque-
assim como das necessárias medidas de cimento do planeta. O aumento da sub-
adaptação territorial.8 nutrição e das consequências negativas
É importante lembrar que, embora da diarreia, o aumento da amplitude e
as mudanças climáticas possam parecer do potencial de transmissão de malária,
algo recente, um fenômeno impulsiona- dengue e leishmaniose e a alteração da
do pela sociedade moderna, as ações de distribuição espacial de alguns vetores
adaptação frente às mudanças do clima de doenças infecciosas (fenômenos que
não são algo novo para a humanidade. também possuem implicações políticas
Ao contrário, é parte constitutiva dos e sociais em seu desenvolvimento) são
territórios, uma vez que a espécie huma- alguns dos principais temas discuti-
na convive com as mudanças do clima dos nos estudos compilados pelo IPCC
desde antes do Holoceno, período após (Intergovernmental Panel on Climate
os últimos 40 mil anos na escala geológi- Change, [2007]; [2014]; [2019]).
ca terrestre.9 Nessa perspectiva, os riscos No que se refere à questão alimentar,
relacionados às mudanças climáticas não os cenários são múltiplos e preocupam
se restringem aos efeitos alarmantes que de maneira igual os cientistas, sobretudo
já ocorrem na superfície terrestre, mas pela nova geografia do uso do solo que se
M à sua própria relação indissociável com desenha com a elevação da temperatura.
a política e seus desdobramentos na Em contrapartida, a agricultura capita-
realidade social. lista, que ocupa grandes extensões de
terras com monoculturas, e que amplia
Mudanças climáticas, saúde e a paulatinamente as áreas desmatadas,
questão alimentar tem figurado no debate sobre mudanças
Desde as primeiras décadas do sé- do clima não apenas pelas alterações
culo XX, uma leva de médicos geógrafos geográficas dos diferentes cultivos e de
sanitaristas – dentre os mais conhecidos suas altas taxas de emissões de GEE, mas
está o pernambucano Josué de Castro – também no que se refere à economia de
inauguraram um novo campo na ciência baixo carbono.
no Brasil, em que se buscava chamar a Verifica-se, dentre as diversas ati-
atenção para questões sociais e políticas vidades que envolvem o agronegócio
relacionadas a um entendimento espacial [ver Agronegócio], uma maior inserção
das doenças, e suas relações com a fome nas questões sobre o clima dos setores
[ver Fome] e o clima. Esses trabalhos pro- voltados ao mercado de energia, espe-
curaram desmistificar ideias relacionadas cialmente o sucroenergético e de papel

516
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

e celulose. Ressaltam-se as vantagens dos Andes, que receberá essa umidade


competitivas pela capacidade de pro- em forma de chuva em sua porção leste,
dução de “energia renovável” a partir formando as cabeceiras de parte dos rios
do aproveitamento das sobras de seus da bacia amazônica. Porém, outra par-
processos produtivos (biomassas, basi- cela importante dessa massa de ar, tam-
camente), por meio do uso de sistemas bém conhecida como “rios voadores”,
de cogeração de energia.10 justamente por carregarem quantidade
A crescente demanda por fontes de água maior ou superior à vazão do rio
não fósseis de energia tem levantado Amazonas (200 mil m3/s), dirigem-se ao
algumas preocupações em relação a trans- sul devido ao barramento da cadeia de
formações no espaço rural, sobretudo pela montanhas dos Andes. Assim, os cha-
expansão das chamadas “monoculturas mados rios voadores seguirão seu curso
energéticas”. Nesse sentido, questionam- em direção ao sul, transportando chuva
-se, também, como políticas para mu- e umidade para as regiões Centro-Oeste,
danças climáticas – focadas em grande Sudeste e Sul do Brasil, além de países
medida nas consequências das emissões vizinhos como Argentina, Paraguai e
de GEE – podem reiterar um modelo Uruguai (Fearnside, 2015).
produtivo que privilegia a expansão das Ainda sobre as mudanças climáticas
monoculturas em prejuízo de uma pro- e as florestas, fala-se da importância
dução maior de variedades de alimentos. das florestas na absorção e no armaze-
namento do carbono, com a função de
Mudanças climáticas, florestas e produzir biomassa e consequentemente
disputas territoriais estocar, ou fixar, carbono nas folhas,
Um dos principais aspectos sobre a caules, raízes e principalmente no tecido
importância das florestas no contexto lenhoso das árvores.
das mudanças climáticas está relacio- Embora as discussões sobre o uso
nado a sua função no regime climático. das florestas como mecanismo de com-
No caso da floresta amazônica, ela pode pensação de GEE tenha espaço desde M
ser entendida como um regulador do as primeiras conferências das partes, foi
clima das demais regiões do Brasil, uma somente durante a COP-7 – realizada em
vez que ela absorve a umidade evapo­ 2001, quando foram aprovados os “Acor-
rada do Atlântico que é carregada pelos dos de Marrakesh” – que sua função se
ventos alísios e que, por sua vez, irá definiu, ao menos temporariamente.
precipitar sobre a floresta. A ação da Durante as negociações da referida COP,
evapotranspiração das árvores, sob a momento em que se regulamentaram
intensa temperatura da zona equatorial, as atividades relacionadas ao MDL, a
irá devolver à atmosfera a água da chuva conservação de florestas foi excluída
na forma de vapor. Assim, a umidade dos mecanismos válidos do período de
que recarrega o ar continuamente segue vigência do Protocolo de Kyoto. Entre
sendo transportada a oeste e voltará as justificativas estão as dificuldades
para a floresta como chuva em um ciclo para se aferir o carbono estocado em
contínuo. Seguindo esse curso, essas florestas. Além disso, argumentou-se que
massas de ar recarregadas de umidade a atividade poderia afetar a soberania e
encontrarão a barreira da Cordilheira o direito ao desenvolvimento dos países

517
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

detentores de florestas que viessem a rer créditos de carbono e negociá-los


aderir ao regime. nos mercados especializados.
Os projetos florestais de carbono A visão utilitarista que se criou so-
ganharam força a partir da regulamenta- bre a floresta, no contexto das mudanças
ção dos chamados “REDD+” (Redução climáticas, gerou novos valores de uso e
das Emissões por Desmatamento e De- de troca sobre processos ecológicos. Em
gradação Florestal) durante a COP-19, nome da resolução das contradições en-
realizada em Varsóvia, em 2013. Sobre tre o modelo de expansão do capitalismo
esses projetos, é preciso considerar sua em regiões como a Amazônia, criam-se
característica singular enquanto ativi- novas formas de apropriação de bens
dade econômica e seus consequentes comuns [ver Bens Comuns].
desdobramentos territoriais. Nota-se que nesse cenário as disputas
Basicamente, o REDD+ possui a tornam-se díspares e reafirma-se a relação
peculiaridade de seu valor residir no desigual Norte-Sul. No âmbito internacio-
fato de que não se pode consumi-lo nal, empresas e países adquirem o direito
produtivamente, tendo a função espe- de poluir e incorporam tal ação dentro de
cífica em produzir biomassa e conse- suas estratégias competitivas; nos territó-
quentemente fixar carbono no tecido rios [ver Territórios], florestas são ressigni-
lenhoso das árvores. A partir do aferi- ficadas, reduzidas enquanto sumidouros de
mento do carbono estocado e o cum- carbono, ao mesmo tempo que se alteram o
primento de uma série de exigências metabolismo socioecológico entre florestas
técnico-burocráticas – procedimento e aqueles grupos que a constituíram histo-
semelhante à validação dos MDL –, os ricamente e que seguem conservando sua
participantes do projeto podem reque- diversidade e seus diferentes significados.

Referências
BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Status dos Projetos
M de MDL – 2016. Brasília, DF: MCTIC, [20 dez. 2016]. Disponível em: https://bit.ly/3eEBqPx Acesso
em: 15 jul. 2020.
FAULHABER, P. “As estrelas eram terrenas”: antropologia do clima, da iconografia e das constelações
Ticuna. Rev. Antropo., São Paulo, v. 47, n. 2, dez. 2004.
FEARNSIDE, P. Rios voadores e a água de São Paulo. (2015). DOI: 10.13140/RG.2.1.2430.1601
INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC). Climate Change 2007 – The
Physical Science Basis Summary for Policymakers. Paris: 10th Session of Working Group I of the IPCC,
February, [2007]. Disponível em: https://bit.ly/2hbOZtC. Acesso em: 30 nov. 2018.
_______. Working Group I contribution to the IPCC 5th Assessment. Report Climate Change 2013: The
Physical Science Basis. Cambridge, United Kingdom and New York, NY, USA: Cambridge University
Press, [2013]. Disponível em: https://bit.ly/2AqcEl6. Acesso em: 02 jan. 2019.
_______. Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. Part A: Global and Sectoral
Aspects. Cambridge, UK; New York, USA: Cambridge University Press, [2014]. Disponível em: https://
bit.ly/2lUEQWd. Acesso: 30 nov. 2018.
_______. Sumário para formuladores de políticas 2018. Aquecimento Global de 1,5° C. Brasília-DF: MC-
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pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). Povos Indígenas no Brasil. 2018. Disponível em: https://bit.
ly/2CLsGYk. Acesso em: 2 jan. 2019.
SCARBOROUGH, V. et al. Water and sustainable land use at the ancient tropical city ok Tikal, Gua-
temala. PNAS, n. 31, v. 109, jul. 2012. Disponível em: https://bit.ly/2Au4ND8. Acesso em: 30 nov. 2018.
WILBERT, J. Mindful of famine. Religious climatology of the Warao indians, Cambridge: Harvard
University, 1996.

518
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Para saber mais


DAVIS, M. Holocaustos coloniais. Clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo. São
Paulo: Record, 2002.
MORALES, E. Cambio climático: Salvemos al planeta del capitalismo. 28 nov. 2008. La Paz: Ministerio
de Medio Ambiente y Agua (MMAyA). Disponível em: https://bit.ly/39bJOFg. Acesso: 15 jul. 2020.
RODRIGUES FILHO, S. Entrevista com Carlos Nobre: “É essencial dar às questões de adaptação a
mesma ênfase dada à mitigação”. Sustentabilidade em Debate – Brasília, v. 5, n. 1, p. 196-202, jan./abr. 2014.
MARUYAMA, S. Aquecimento global? São Paulo: Oficina de textos, 2009.
TADDEI, R. Meteorologistas e profetas da chuva. Conhecimentos, práticas e políticas da atmosfera. São
Paulo: Terceiro nome, 2017.

Notas
1
Acordos vinculantes são aqueles que resultam em diretrizes prescritas a serem cumpridas pelas partes
que ratificam determinado tratado internacional, a exemplo do Protocolo de Kyoto, que estipula
metas de redução de GEE obrigatórias.
2
Tais projetos, em geral, estão acoplados a outras atividades produtivas e podem estabelecer diferentes
formas de compensação de GEE, por meio inovações ou reordenamentos produtivos que vão desde a
eficiência energética até o aproveitamento de metano de aterros sanitários para a geração de energia
elétrica. Basicamente, inovações de substituição de fontes fósseis de energia.
3
Da maneira como o MDL foi concebido, fica definida uma equivalência que permite expressar as
emissões de qualquer outro GEE em termos de toneladas de dióxido de carbono equivalente. Essa
equivalência é denominada “Potencial de Aquecimento Global” em horizonte de 100 anos.
4
Para uma leitura mais aprofundada sobre a contabilidade do carbono, ver: Moreno, C.; Speich, D.;
Fuhr, L. A métrica do carbono: abstrações globais e epistemicídio ecológico. Rio de Janeiro: Fundação
Heinrich Böll, 2016.
5
Uma análise mais detalhada sobre os aspectos geopolíticos do clima pode ser encontrada em:
Cornetta, A. A financeirização do clima: uma abordagem geográfica do mercado de carbono e suas
escalas de operação. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2012.
6
Os Ticuna habitam a região do alto Solimões (Amazona), na fronteira com Peru e Colômbia, e são
o mais numeroso povo indígena do Brasil, com uma população de 53.544 (Instituto Socioambiental,
2018).
7
São inúmeros os episódios que evidenciam os processos pelos quais distintos grupos sociais criaram
estratégias de adaptação frente às mudanças climáticas, estabelecendo, assim, traços importantes
na formação de seus territórios. Os grupos que habitavam a cidade de Tikal, por exemplo, na
Península de Yucatán, Guatemala, criaram estratégias de adaptação para superar a escassez hídrica
durante 1.500 anos, até o colapso da civilização Maia, por volta de 900 d.C. Estudos arqueológicos M
mostram que Tikal tinha um complexo sistema de coleta e armazenamento de água da América
pré-colombiana, capaz de armazenar água suficiente para abastecer sua população (Scarborough et
al., 2018).
8
Para uma leitura mais completa sobre este tema ver: Rahman, A. A. et al. Developing countries
must lead on solar geoengineering research. Nature. v. 556. abr. 2018.
9
Sobre este tema ver: Loiola, S. A. Variabilidade paleoclimática e a evolução de sistemas complexos
adaptativos nos humanos modernos. 2014. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Estudos
Socioambientais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.
10
Esta discussão encontra-se aprofundada em: Cornetta, A. Entre o clima e a terra o atual regime
político das mudanças climáticas globais e a agroindústria de papel e celulose no Brasil. In: Ramos, G.
C. D.; Cornetta, A.; Diaz, B. F. Cambio climático global, transformación agraria y soberanía alimentaria
en América Latina. Buenos Aires: Clacso, 2014.

519
N
NOVAS BIOTECNOLOGIAS

S ilvia R ibeiro

Dentre as técnicas de engenharia plantações transgênicas, as pesquisas de


genética, além das usadas para obter os opinião realizadas em todas as partes do
cultivos transgênicos que já são comer- mundo evidenciam que a maioria das pes-
cialmente produzidos, como o milho Bt soas prefere não comer transgênicos. E, se
ou a soja resistente a agrotóxicos [ver os consumidores têm a opção, evitam es-
Transgênico; Agrotóxicos], outras formas ses produtos. Além disso, há também uma
de manipulação genética de cultivos resistência cada vez maior aos agrotóxicos
têm sido desenvolvidas. São técnicas e ao aumento de seu uso acarretado pela
diferentes, mas todas com o objetivo de produção dos transgênicos.
alterar, de forma artificial, o genoma de Para evitar essa resistência por parte
vegetais, animais e outros seres vivos da população, a indústria biotecnológica e
contra os processos naturais e, por isso, seus cientistas estão buscando desvincular
implicam muitas incertezas e impactos as novas formas de engenharia genética
na saúde, no meio ambiente, nas culturas dos organismos transgênicos que estão
e na economia. Algumas são tecnologias no mercado, dando outros nomes a essas
agressivas contra a vida, como a tecno- novas aplicações tecnológicas, chaman-
logia Terminator, que produz sementes do-as, por exemplo, de “edição genética”
suicidas com o objetivo de impedir que ou “edição genômica”. Com isso, querem
os agricultores continuem a semear suas dar a ideia de que se trata somente de
próprias sementes, ou a de “impulsores uma mudança mínima, como trocar uma
genéticos”, que poderia inclusive exter- palavra em um texto e que, por isso, não
minar uma espécie inteira. Em todos os seria necessário realizar avaliações de
casos, predomina o desenvolvimento risco ou submeter esses novos produtos a
tecnológico guiado pelo interesse de regulações de biossegurança, pelas quais
lucro das indústrias transnacionais. passam os demais organismos transgê-
nicos. Este é um conceito errôneo, uma
Edição genômica vez que todos os organismos obtidos por
Embora em alguns países, como no meio dessas novas técnicas são também
Brasil, existam grandes extensões de organismos geneticamente modificados.
N OVA S B I O T E C N O L O G I A S

Quando se trata de aplicações na Portanto, embora estas novas bio-


agricultura, a indústria trata de “novas tecnologias sejam apresentadas como
tecnologias de melhoramento”, sem sendo “técnicas de precisão”, as incer-
mencionar que é engenharia genética. tezas sobre seus efeitos secundários são
No Brasil, a Comissão Técnica Nacional enormes e certamente poderiam ser
de Biossegurança (CNTBio) as classifica ainda piores que as dos transgênicos
como Técnicas Inovadoras de Melhora- que já existem. Usando um exemplo
mento de Precisão (Timp). do que chamam de edição genômica,
Nesse conceito, entre outras, estão como se os cromossomos fossem um
incluídas técnicas como: agroinfiltração, texto que pudesse ser editado, pode-
mutagênese local dirigida, mutagênese mos dizer que a ciência atualmente
direcionada por oligonucletídeos, meti- compreende as letras e as muitas pala-
lação de ADN e alteração ou silencia- vras que o compõem, mas não tudo o
mento de genes por interferência com que o texto quer dizer. Eliminar partes
RNA (técnicas de RNAi). Também do “texto” pode alterar essencialmente
estão nessa categoria outras técnicas o seu sentido.
que atuam com enzimas construídas A seguir são apresentados alguns
sinteticamente, como CRISPR-Cas9 dos exemplos mais emblemáticos
(nucleases de sequências palindrômicas dessas biotecnologias.
repetidas), Talen (nucleases tipo ativa-
dores de transcrição) ou ZFN (nucleases Terminator/Gurt
com dedos-de-zinco). Trata-se de uma tecnologia trans-
Outra denominação usada para gênica para a produção de sementes
essas novas biotecnologias é “biologia suicidas: se plantam, dão fruto, mas a
sintética”, que inclui as nomeadas an- segunda geração se torna estéril, para
teriormente como “edição genômica”, obrigar os camponeses a comprar nova-
Timp etc. Além disso, no conceito de mente sementes a cada ciclo de plantio.
biologia sintética existem formas de al- Foi desenvolvida e patenteada, em 1998,
terar o metabolismo de microrganismos pela empresa Delta & Pine Land (pos-
N para que estes produzam e excretem teriormente comprada pela Monsanto),
substâncias que imitem e pretendam com o Departamento de Agricultura dos
substituir substâncias naturais. Estados Unidos. Todas as transnacionais
Embora cada uma destas tecnolo- que atualmente controlam as sementes
gias represente problemas e impactos transgênicas registraram patentes tipo
específicos, são todas alterações arti- Terminator. A suíça Syngenta é a empre-
ficiais dos genomas. Embora tenham sa que registrou o maior número delas.
sido realizados milhares de mapas ge- Os desenvolvedores da tecnologia
nômicos de muitas espécies, incluindo a chamaram originalmente “Sistema de
seres humanos, vegetais, animais e Proteção da Tecnologia”, porque foi de-
microrganismos, ainda há enormes senhada para impedir que os agricultores
lacunas de conhecimento sobre as e camponeses usassem as sementes sem
funções e as interações dos genes pagar por elas, ou sem pagar pelo direito
entre si, nos organismos e destes com de uso das patentes. As grandes empresas
o meio ambiente. de sementes querem esta tecnologia por-

522
N OVA S B I O T E C N O L O G I A S

que lhes permite exercer um monopólio agora, esses projetos de lei têm sido barra-
ainda mais forte que as patentes. dos pelos protestos e mobilização de uma
Os cientistas a chamam Gurt – Ge- ampla coalização de movimentos cam-
netic Use Restriction Technology [Tecno­ poneses, populares e ambientalistas. Essa
logia Genética de Restrição de Uso]. ampla resistência à tecnologia Terminator
Ela se baseia em uma reação em cadeia não ocorre apenas no Brasil. Está presente
ativada por um indutor externo à planta, em todo o mundo, por ser uma tecnologia
por exemplo, uma substância química. que pretende impedir que os camponeses
Na patente original de Terminator, este e agricultores possam guardar e reutilizar
indutor é o antibiótico tetraciclina. Se as sementes.
não se aplica, a planta germina; se se
aplica, já não pode germinar. CRISPR
Desde que a organização internacio- De todas as novas ferramentas da
nal Grupo ETC/Rafi denunciou a tecno- engenharia genética, a CRISPR – criada
logia Gurt em 1998, uma ampla campa- em 2012, e especialmente sua variante
nha internacional foi formada reunindo CRISPR-Cas9 (lê-se crísper-cás-nove) – é
organizações camponesas, ambientalistas, a que se expandiu mais rapidamente, de-
consumidores, entre outras. No ano 2000, vido ao seu amplo espectro de aplicações
a Convenção da ONU sobre diversidade possíveis, por ser barata e aparentemente
biológica estabeleceu uma moratória sobre mais eficaz. É uma espécie de “GPS gené-
sua experimentação e comercialização em tico com tesouras”: é capaz de identificar
todo o mundo, que continua vigorando e um local específico no cromossomo e
não pode ser violada por nenhum país, de- cortar as duas fitas das hélices do DNA,
vido à forte reação social dos movimentos obtendo a desativação ou desabilitação
populares e organizações para garantir que da função do gene sob intervenção, ou
se mantenha. Em 2006, quando a CDB se pegar um novo material genético, nesse
reuniu em sua 8ª Conferência Global, em caso produzindo um transgênico. Estudos
Curitiba (estado do Paraná, Brasil), apre- científicos comprovam que essa técnica
sentou-se um projeto de legalização do uso pode ocasionar efeitos não desejados,
do Terminator. A campanha internacional que alteram várias funções dos genes, N
“Terminar Terminator”, e, em especial, como, por exemplo, desarmar sistemas de
da Via Campesina, barrou esta proposta defesa do organismo sob intervenção, com
com uma contínua mobilização dentro e possibilidade de causar câncer.
fora do local da Conferência. A moratória O sistema CRISPR (do inglês Cluste-
se manteve. red Regularly Interspaced Short Palindromic
No Brasil, a Lei de Biossegurança n. Repeats, ou seja, repetições palindrô-
11.105/2005 (Brasil, 2005) proíbe o uso micas curtas agrupadas e regularmente
de Terminator, em concordância com a interespa­çadas) é uma construção genéti-
moratória global estabelecida em 2000, no ca que ocorre naturalmente em bactérias
âmbito da Convenção sobre Diversidade para reconhecer e defender-se do ataque
Biológica da ONU. Desde 2005, várias de vírus. A tecnologia CRISPR constrói
iniciativas legislativas buscaram reverter sinteticamente um sistema de reconhe-
essa proibição e autorizar seu uso, em cimento das sequências genéticas sobre
violação da moratória internacional. Até as quais se pretende intervir, similar a

523
N OVA S B I O T E C N O L O G I A S

esse sistema de defesa bacteriano. A Sanger do Reino Unido, mostrou que


esta construção se agrega uma enzima CRISPR-Cas9 provoca a eliminação ou
que corta o ADN no lugar que foi re- reordenamento de longas sequências de
conhecido por meio do CRISPR. Estes DNA, distantes do lugar onde se supunha
sistemas são chamados “Cas” (do inglês que atuaria diretamente. Igualmente,
CRISPR associated system – sistema as- estudos anteriores, mostraram um alto
sociado ao CRISPR). Há várias versões, risco de “efeitos fora do alvo” (off-target),
porém o mais utilizado é Cas9, portanto o que quer dizer que a técnica CRISPR
a técnica mais difundida é conhecida pode cortar ou desarticular o ADN em
como CRISPR-Cas9. A maioria das outros locais fora do alvo escolhido, com
modificações experimentais utilizadas na potenciais efeitos nocivos.
agricultura, animais e humanos tem sido Embora os estudos se refiram sobre-
produzida com este sistema, também cha- tudo ao uso de CRISPR-Cas9 em medi-
mado de CRISPR-Cpf1 a partir de 2017. cina, o problema se manifesta também na
Diversas modificações genéticas em manipulação de cultivos: efeitos similares
vegetais estão sendo experimentadas podem ser produzidos em plantas, o que
com CRISPR, incluindo milho, trigo, leva a impactos imprevisíveis nos cultivos
soja, batata, canola, arroz e várias frutas e também no seu consumo, porque a ati-
e hortaliças. Nos Estados Unidos, já vação/desativação de genes e a eliminação
está sendo comercializado um cogu- ou o rearranjo de sequências pode causar
melo comestível e a maçã Artic, ambos alergias e outras formas de toxidade.
manipulados por meio de CRISPR para Todas as empresas que trabalham
que não adquira cor marrom quando atualmente com CRISPR afirmam que
cortados. Também há experimentos com essa técnica é “mais precisa” que as utili-
animais reprodutores, insetos, camun- zadas até para a criação dos transgênicos
dongos, vermes e micróbios. Há muitos anteriores, isto é, aceitam agora que os
experimentos em células para uso em transgênicos hoje cultivados já tinham
seres humanos. Em novembro de 2018, muitos problemas inerentes a seu proces-
o cientista chinês He Jiankui alegou so de construção. Mas, como mostram
N ter manipulado embriões humanos que estudos recentes, nem o CRISPR oferece
desenvolveram bebês gêmeos modifi- essa precisão, embora corte o DNA em
cados geneticamente, fato que não foi um determinado lugar, mas pode ao
comprovado, e que recebeu fortes críticas mesmo tempo afetar e alterar seriamente
da comunidade científica internacional. outras áreas do DNA fora aquelas a que
Vários estudos publicados em revis- se dirige intencionalmente.
tas científicas mostram que o uso dos Duas equipes de pesquisadores dis-
sistemas CRISPR provoca efeitos não putam ter sido os primeiros a inventar
desejados e perigosos. Por exemplo, um a forma de sintetizar e usar CRISPR em
estudo do prestigioso Instituto Karolinska 2012. Este fato desencadeou uma guerra
da Suécia, em 2018, mostrou que o uso sobre quem seria dono da patente de in-
desta técnica em humanos aumenta no- venção da tecnologia, entre pesquisadores
tavelmente o risco de desenvolvimento de da Universidade de Harvard e o Instituto
câncer. Outro estudo, de 2018, da equipe Tecnológico de Massachusetts (MIT).
de Allan Brasley, do Instituto Wellcome Depois de anos de disputa, em setembro

524
N OVA S B I O T E C N O L O G I A S

de 2018, o Tribunal Federal de Apela- para produzir apenas machos, em algumas


ções dos Estados Unidos concedeu ao gerações poderiam eliminar toda uma
Instituto Broad a patente sobre o uso de população da espécie manipulada e, com
CRISPR em plantas, animais e humanos. o tempo, extinguir a espécie inteira, com
Tanto o Instituto como a Universidade da impactos imprevisíveis no ecossistema.
Califórnia têm feito contratos de licença Os promotores desta tecnologia
de tecnologia e atualmente há mais de apresentam-na como uma maneira de
mil famílias de patentes de CRISPR em eliminar espécies daninhas, pragas, trans-
trâmite para diferentes usos de CRISPR missores de doenças como mosquitos que
na indústria biotecnológica, farmacêutica transmitem malária ou dengue. Há mui-
e agrícola. Tanto Monsanto-Bayer como tos problemas com essa visão mecanicista
DuPont-Dow e outras transnacionais da natureza e das doenças. Por exemplo:
agrícolas têm licenças para o uso de va- quem define o que é daninho ou praga?
riantes de CRISPR. Para a agricultura industrial, tudo o que
está vivo em um campo, menos o cultivo
Condutores ou impulsores genéticos: que se quer desenvolver, é daninho. Quais
o exterminador as consequências da eliminação de uma
Os condutores ou impulsores genéti- espécie inteira de um ecossistema, que
cos (gene drives, em inglês) são uma forma tem coevoluído com ela, inclusive levan-
de engenharia genética para driblar as leis do, em reação, a outros desequilíbrios? O
de herança e para que todos os descen- que acontece com outros organismos que
dentes de uma espécie – sejam insetos, ve- se alimentam dessa espécie? Em casos em
getais ou animais – herdem forçosamente que os insetos transmissores de doenças
uma característica transgênica. foram eliminados, está abundantemente
As espécies que se reproduzem se­ comprovado que se as causas e o ambien-
xualmente – vegetais, animais, seres te de ocorrência de uma dada doença
humanos – herdam a metade dos genes persistem, outros vetores de transmissão
de cada progenitor, alguns dominan- poderão surgir; inclusive, ser ainda piores.
tes, outros recessivos, que nas próximas Os cultivos transgênicos já conta-
gerações tendem a desaparecer. Com minam e são um problema, mas eles de- N
impulsores genéticos – que se constroem vem ser plantados a cada novo ciclo e
usando a técnica da biologia sintética as plantas não transgênicas conservam
CRISPR-Cas9 –, os genes inseridos car- suas defesas naturais. Com impulsores
regam a instrução de eliminar o gene genéticos, as plantas modificadas que
correspondente do outro progenitor não cruzarem forçarão as outras a se tornarem
modificado, transmitindo-se 100% à transgênicas. Por esse modo de ação, a
descendência. Repetem o ato em cada tecnologia é considerada como uma po-
cruzamento (procriação) e, assim, em tencial arma biológica, e já está incluída
algumas gerações estarão em toda a po- na agenda de discussão da Convenção de
pulação. Seus inventores o chamam de Armas Biológicas e Tóxicas.
“reação mutagênica em cadeia”. Os principais financiadores dessa tec-
É a primeira vez que se projetam nologia são o Exército dos Estados Unidos
transgênicos para disseminá-los agressi- e a Fundação Bill e Melinda Gates. Para
vamente no ambiente. Se a modificação é evitar o debate sobre seus usos militares e

525
N OVA S B I O T E C N O L O G I A S

agrícolas, a tecnologia é apresentada como poderiam ser disseminados em grandes


uma necessidade para exterminar mosqui- extensões, esta condição poderia atuar
tos transmissores da malária na África. como uma moratória de fato.
De acordo com o relatório “Exter- Existe uma ampla campanha – en-
minadores no campo”, da organização campada por camponeses, ambientalis-
internacional Grupo ETC (Grupo ETC, tas, organizações de direitos humanos,
2018), os principais usos dessa tecnolo- entre outros – que visa a proibição global
gia seriam destinados à agricultura e pe­ dessa tecnologia.
cuária industriais para favorecer o lucro
de grandes empresas de agronegócio. As Biologia sintética
duas patentes-chave sobre a tecnologia de A maioria das técnicas de edição
impulsores genéticos (dos inventores Kevin genômica e outras citadas anterior-
Esvelt e Ethan Bier, separadamente) fazem mente são parte do que se considera
referência a mais de 500 usos possíveis na biologia sintética.
agricultura, incluindo seu emprego com São consideradas biologia sintética as
232 agrotóxicos (186 marcas de herbicidas formas de engenharia genética realizadas
e 46 pesticidas) e como modificar ou ex- com a ajuda de computadores e sinteti-
tinguir 310 tipos de insetos considerados zadores de ADN dos ácidos nucleicos
pragas agrícolas, além de nematoides, (citosina, guanina, timina, adenina, co-
ácaros, lagartas e outros. nhecidos como bases ou “letras” do DNA:
No Brasil, a CTNBio emitiu a re- C, G, T, A), para construir formas de vida
solução normativa n. 16/2018 que es- e sistemas biológicos que não existem na
tabelece a aprovação de procedimento natureza. O termo também se refere ao
simplificado para os produtos derivados redesenho do metabolismo de micror-
de técnicas de edição genética, incluindo ganismos (bactérias, fungos e leveduras)
os impulsores genéticos, para considerar para que produzam substâncias que não
sua liberação com menos exigências de são obtidas de forma natural.
avaliação de riscos que os demais orga- Alguns cientistas – como Craig Ven-
nismos transgênicos. ter, dos Estados Unidos – buscam criar
N Em novembro de 2018, a Convenção micróbios inteiros totalmente artificiais
da ONU sobre Diversidade Biológica para usar como fábricas moleculares. Mas
decidiu sobre a exigência de os governos a maioria do que se está produzindo são
considerarem essa tecnologia apenas se micróbios modificados geneticamente
cumprirem previamente uma série de que são colocados em tanques de fer-
condições que incluem análises adequa- mentação, alimentados com açúcares
das de risco (os marcos atuais de biosse- para produzir determinadas substâncias
gurança não são suficientes para avaliar químicas, princípios ativos farmacêuticos,
essas novas biotecnologias). Também fragrâncias, aromatizantes, plásticos,
estabeleceu a obrigação de consultar e corantes, adesivos, têxteis, entre outros.
obter o consentimento prévio, livre e No início dessa indústria, a maior
informado das comunidades indígenas parte dos investimentos era para produzir
e locais que possam ser afetadas por essa biocombustíveis com micróbios transgêni-
tecnologia. Como os organismos com cos em tanques alimentados com açúcar
impulsores genéticos, uma vez liberados, de cana ou de milho. Entre os maiores

526
N OVA S B I O T E C N O L O G I A S

investidores em biologia sintética estão As indústrias apresentam os pro-


as maiores companhias petroleiras do dutos como “naturais” porque são ob-
mundo, as maiores indústrias químicas, tidos por fermentação, mas na reali-
de agronegócio e farmacêuticas. dade são substâncias excretadas por
Não obstante, a intenção de produzir micróbios transgênicos em tanques,
combustíveis encontrou dificuldades alimentados com açúcar. Não existem
técnicas e de insumos de biomassa para estudos sobre os efeitos que essas subs-
a produção em grande escala, por isso a tâncias podem causar na saúde, mas já
indústria retomou a produção de cosméti- estão em todos os mercados. No Brasil,
cos, fragrâncias e aromatizantes, produtos várias marcas de alimentos, fragrâncias
de pouco volume e alto valor. e cosméticos usam esses derivados de
Atualmente, há mais de 300 produ- biologia sintética.
tos em progresso no mundo, dos quais A Convenção sobre Diversidade
algumas dezenas já se encontram nos mer- Biológica aborda o tema da biologia
cados. A Synbiowach (2021) possui uma sintética desde 2010 e, atualmente, está
base de dados dos produtos de biologia discutindo sobre como deveriam ser
sintética em desenvolvimento e em venda. avaliados os impactos no meio ambiente
A empresa estadunidense Amyris e biodiversidade dos organismos, com-
abriu uma sucursal no Brasil para produzir ponentes e produtos da biologia sintéti-
biocombustíveis com biologia sintética, ca, além dos impactos socioeconômicos
mas abandonou essa empresa depois de causados pelo deslocamento da produ-
poucos anos, porque não se mostrou lu- ção camponesa e tradicional. Contudo,
crativa. Em 2018, Amyris Brasil firmou devido ao lobby das indústrias, essas
um contrato com a Camil, produtora de discussões são lentas e ainda não foram
açúcar da marca União, para produzir um estabelecidos marcos para a avaliação,
adoçante derivado de biologia sintética, regulação nem a rotulagem destes pro-
baseado em um dos princípios ativos da dutos que já estão nos mercados.
planta estevia, de origem guarani. A es-
tevia é uma das plantas mais doces do Regulação das novas biotecnologias
mundo, mas não produz glicemia, ou seja, Junto da utilização da CRISPR e N
açúcar no sangue. de várias outras novas biotecnologias,
Entre as substâncias que estão sen- a indústria biotecnológica agrícola tem
do produzidas com biologia sintética, atuado agressivamente, em todo o mun-
destacam-se: baunilha, açafrão, estevia, do, para que esses novos produtos não
sândalo, óleo de rosas, vetiver, manteiga sejam considerados transgênicos. Para
de cacau e de karité, óleo de coco, entre tanto, buscam se esquivar das regulações
outras. Todas são espécies produzidas por de biossegurança e fazer o público crer
camponesas, camponeses e indígenas, que não se trata de organismos geneti-
porque requerem muita mão de obra. camente modificados. Argumentam que,
Portanto, a indústria da biologia sintética com o uso destas novas tecnologias, o
está desenvolvendo produtos, em forma produto final pode ou não conter novo
industrial e sintética, que competem material genético de outras espécies e,
com a produção natural de milhões de portanto, não seriam “trans-gênicos”.
camponesas e camponeses. Este argumento é infundado, porque em

527
N OVA S B I O T E C N O L O G I A S

todos os casos se alteram artificialmente de riscos das leis de biossegurança e sua


o genoma das espécies e isso acarreta apreciação deve basear-se no princípio de
grandes incertezas, porque não se conhe- precaução. Isso foi uma vitória das orga-
cem todas as funções e interações dos nizações camponesas, ambientalistas e
genes. Os exemplos dos efeitos do uso de consumidores diante da insistência da
da CRISPR fora do alvo correspondem indústria biotecnológica de que as novas
aos sérios riscos que acarretam. biotecnologias não necessitam passar por
Os Estados Unidos aprovaram a avaliação de biossegurança.
canola, um tipo de maçã e um de cogu- A Convenção sobre Diversidade
melos para comercialização mundial sem Biológica, por abrigar o Protocolo de
passar pela regulação da biossegurança. Cartagena sobre Biossegurança, deve
Na Argentina e no Brasil, existem reso- continuar a abordar esses temas, afir-
luções normativas – não leis – que per- mando o princípio de precaução, e avan-
mitem uma atenção frouxa, ou inclusive çar nas medidas mais rigorosas para
que produtos derivados das novas biotec- garantir que tecnologias de alto risco,
nologias possam não ser considerados como Terminator e impulsores genéticos,
organismos modificados geneticamente não sejam liberadas.
e não necessitem passar pelos trâmites Contudo, nenhuma dessas biotec-
da aprovação de biossegurança. nologias é necessária para alimentar
Ao contrário, o Tribunal de Justiça a população, nem no Brasil nem no
da União Europeia decidiu, em 2018 – mundo. Atualmente, mais de 70% da
depois de um julgamento iniciado por humanidade se alimenta por meio das
uma petição legal da Via Campesina, redes de camponeses, de pescadores
Amigos da Terra e outras organizações artesanais e de hortas urbanas que não
da França –, que os produtos das novas usam nenhuma dessas tecnologias. Ao
biotecnologias (que incluem mutagêne- contrário, essas tecnologias, as empresas
ses e CRISPR) são organismos genetica- que as controlam e os agrotóxicos que
mente modificados, quer dizer, transgê- agregam são uma ameaça à saúde, ao
nicos, e que devem passar por análises ambiente e à soberania alimentar.
N
Referências
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 11.105, de
24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1º do art. 225 da Constituição Federal,
estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos
geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança –
CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política
Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei n. 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória
n. 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10 e 16 da Lei n. 10.814, de 15 de dezembro
de 2003, e dá outras providências. 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2005/lei/l11105.htm. Acesso em: 8 abr. 2020.
Grupo ETC. Exterminadores en el campo. Impulsores genéticos: cómo favorecen la agricultura industrial
y amenazan a la soberanía alimentaria. 2018.
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org/2018/09/synthetic-biology-shoppers-guide-updated-and-in-stores-now/. Acesso em: 8 abr. 2021.

Para saber mais


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nível em: https://www.biodiversidadla.org/Principal/Creditos/Quienes-somos. Acesso em: 8 abr. 2021.

528
N U T R I Ç Ã O V E G E TA L

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NUTRIÇÃO VEGETAL

M a noel Baltasar Baptista da C osta

Os referenciais teórico-conceitual ocorrem as relações infrassistema, no


e técnico-científico adotados pelas que diz respeito ao manejo dos recursos
ciências agrárias têm se mostrado insu- edáficos e hídricos, e as relações supras-
ficientes na identificação e solução dos sistema, relativas ao clima, às políticas
problemas agrícolas contemporâneos de agrícolas, sociais e econômicas, ao mer-
grande dimensão e complexidade. Daí a cado, à infraestrutura de comunicação
necessidade de se adotar um referencial e transporte, dentre outros aspectos. A
analítico sistêmico na leitura da reali- caracterização, a análise e a orientação
dade agrícola, buscando-se entender, produtiva abrangem as explorações vege-
analisar e orientar os agroecossistemas tais, animais e florestais, sua organização N
em suas dimensões produtiva, ecoló- e interações, a ciclagem dos nutrientes
gica, social, econômica e energética, no complexo solo-planta e os esquemas
contemplando em tais análises os ciclos de manejo e conservação dos recursos
minerais, as transformações de energia, naturais que as suportam.
os processos biológicos e as relações
socioeconômicas (Altieri & Nicholls, Os agroecossistemas nos trópicos e
2000). nas regiões temperadas
É relevante entender e analisar o O planeta terra possui realidades
funcionamento de uma unidade produ- ecológicas bastante distintas, que de-
tiva agrícola enquanto um sistema, que terminam os processos bióticos e os
tem suas escalas, componentes, intera- biomas que nelas ocorrem. Em função
ções, entradas e saídas [ver Agroecos­ das condicionantes térmicas, hídricas
sistemas]. Além das relações internas do e de radiação solar, os ciclos biogeoquí-
sistema, do complexo agrosilvipastoril, micos nos trópicos possuem dinâmicas

529
N U T R I Ç Ã O V E G E TA L

fundamentalmente distintas dos ciclos potencial produtivo dos solos agrícolas


existentes nas regiões temperadas. [ver Ciclagem de Nutrientes].
Nos trópicos há uma maior disponi- Nos trópicos, o revolvimento inten-
bilidade de energia térmica e radiante, sivo do solo (com arações e gradagens)
associada a uma maior disponibilidade o expõe às chuvas torrenciais, que pro-
hídrica e maior intensidade da pluvio- movem sua degradação física e biológica,
sidade no decorrer do ano, daí os ciclos adensamento e compactação. O revolvi-
biogeoquímicos serem mais intensos, mento intensivo do solo também acelera
promovendo um maior intemperismo, a decomposição da matéria orgânica,
caracterizado como o conjunto de pro- lixiviando os nutrientes para camadas
cessos mecânicos, químicos e biológicos mais profundas do solo.
que ocasionam a desintegração e a
decomposição das rochas e a formação Produção e decomposição de
dos solos. Tais regiões têm um potencial biomassa para a ciclagem de
de produzir até seis vezes mais bio- nutrientes
massa por unidade de área do que as A queimada, por exemplo, que por um
regiões temperadas e frias, e ocorre aí lado poupa trabalho, por outro promove a
uma elevada lixiviação de nutrientes, precipitação apenas parcial dos nutrientes
carreados pelos excedentes hídricos contidos na biomassa no solo, pois grande
das chuvas intensas e torrenciais, que parte deles é expelida para a atmosfera no
causam elevado impacto em solos sem processo da combustão (Tabela 1). O uso
cobertura vegetal. do fogo é compreensível em realidades
Nas regiões temperadas e frias, se em que haja oferta abundante de terras,
constata uma diversidade biótica bem vegetação exuberante e baixa densidade
mais reduzida que a dos trópicos nos demográfica, como no caso de terra indí-
reinos animal e vegetal, e a maior con- genas, onde é possível se utilizar o solo até
centração dos nutrientes do complexo a perda de seu potencial produtivo, que é
solo-planta se encontra no solo e não recuperado através do pousio de médio
na biomassa. Já nas regiões tropicais, a longo prazo (mais de 10 anos). Mesmo
N a maior concentração dos nutrientes assim, trata se de prática impactante sobre
contidos no complexo solo-planta está na o meio ambiente e a atmosfera, pois o fogo
biomassa e não no solo, que na maioria das queimadas produz Gases Efeito Estufa
dos casos são ácidos e distróficos, com (GEE) em quantidades elevadas.
baixa concentração de bases (cálcio,
magnésio e potássio). Tabela 1 – Perda de nutrientes da
Se nas regiões temperadas cabem biomassa pela queimada
ser adotadas estratégias, técnicas e prá- ELEMENTO PERDAS
ticas que contribuam para uma maior Cálcio – Ca 52 %
velocidade dos ciclos biogeoquímicos, Magnésio – Mg 42 %
nos trópicos são demandadas ações e Nitrogênio – N 95 %
orientações diametralmente opostas, Fósforo – P 51 %
que favorecem a redução da velocidade Potássio – K 44 %
da ciclagem natural, com a finalidade Enxofre – S 59 %
de melhor conservar os nutrientes e o Fonte: Pivello, V. R.

530
N U T R I Ç Ã O V E G E TA L

A mobilização mínima do solo com trigo. As crotalárias (Crotalaria spp.),


implementos escarificadores e não re- as mucunas (Mucuna spp.) e o guandu
volvedores contribui para a melhoria (Cajanus cajan) são as leguminosas de
de suas características físicas, químicas verão que apresentam os melhores efeitos
e biológicas. A produção de biomassa no controle populacional de diversos
e seu uso como cobertura do solo pelo nematoides.
maior espaço de tempo possível evita Quanto às consorciações com
a exposição do solo ao sol e às chuvas cultivos perenes, os citrus podem ser
(Costa et al., 1991; Miyasaka, 1994). consorciados com soja perene (Glycine
Deve-se otimizar a produção e a recicla- wightii), crotalárias, cudzu (Pueraria
gem de toda a biomassa da propriedade phaseoloides, caupi (Vigna sinensis) e
(Hodges, 1983), incorporando-a ao mucunas; videiras com ervilhaca (Vicia
solo in natura, deixando-a como co- spp.), ervilha-forrageira (Pisum sp.), chí-
bertura ou umificando-a por métodos charo (Lathyrus sativus), Indigofera sp. e
biológicos, aeróbios ou anaeróbios (por amendoim rasteiro (Arachis prostrata);
exemplo: compostagem, minhocultura macieiras e pessegueiros com Trifolium
ou biodigestão). spp., serradela (Ornithopus sativus),
Na produção de biomassa para o Avena spp., Vicia spp., Mucuna spp., Do-
manejo do solo, deve-se atentar para as lichos lablab, e Crotalaria spp.; café com
plantas conhecidas como adubos verdes, Mucuna deeringiana e pruriens, Leucaena
que fixam do ar o nitrogênio demandado leucocephala e Crotalaria spp.; seringueira
pelos cultivos. Deve-se optar pelas espé- com Pueraria mucunoides; goiabeiras,
cies mais adequadas a cada tipo de clima, caquizeiros e abacateiros com Indigofera
solo e época do ano (primavera/verão e sp. e Mucuna spp.
outono/inverno). Plantas com elevada A adubação verde é indicada tam-
capacidade de penetração de raízes pi- bém em áreas degradadas ou que sejam
votantes promovem a recuperação de originalmente muito pobres. Nestes
solos compactados (Cintra; Mielniczuk, casos deve-se proceder à correção inicial
1983). Dentre as espécies que podem ser da acidez e a algum aporte de fósforo ao
utilizadas com tal finalidade incluem-se solo, com fórmulas de baixa ou média N
a colza (Brassica napus), tremoço bran- solubilidade, bem como à inoculação
co (Lupinus albus L), mamona (Ricinus inicial das sementes com inoculantes
comunis L), guandu (Cajanus cajan) e específicos, e, no caso das leguminosas,
mucuna preta (Stizolobium aterrimum). peletizá-las também com molibdênio.
Os adubos verdes são também muito A biomassa assim produzida pode
eficientes no controle de algumas doen- ser incorporada ao solo, deixada em co-
ças radiculares, destacando-se entre os bertura e/ou utilizada no arraçoamento
materiais de inverno a aveia (Avena spp.), animal. Dentre algumas espécies que
a serradela (Ornithopus sativus Brot.), a se prestam a tal modalidade incluem-se
ervilhaca (Vicia sp.), o tremoço (Lupinus Mucuna aterrima, Leucaena leucocephala,
spp.), o linho (Linum usitatissimum) e feijão de porco (Canavaglia ensiformis) e
a colza. A aveia preta (Avena strigosa) guandu (Cajanus cajan). Em muitas si­
tem se mostrado eficiente no controle tuações, a própria vegetação espontânea
do mal do pé (helmintosporiose) no se presta como adubo verde, a depender

531
N U T R I Ç Ã O V E G E TA L

de sua composição, vigor vegetativo e ferro, a anemia, a de cálcio, problemas


produção de biomassa. ósseos; o mesmo ocorre com os vege-
Nos trópicos, são desaconselháveis os tais e animais. Nesse sentido, devem-se
sistemas produtivos simplificados, as mo- aportar os nutrientes demandados pelos
noculturas e as técnicas de revolvimento vegetais em doses e fórmulas adequadas,
intensivo do solo, que sofre acelerado através de produtos naturais, fermenta-
processo de degradação de suas carac- dos e/ou quelatizados.
terísticas físicas, químicas e biológicas Na esfera nutricional é relevante se
quando descoberto e exposto à incidência atentar para a função de cada elemento
direta do sol e das chuvas [ver Solos]. químico nos vegetais, tanto os macronu-
A principal preocupação para se trientes quantos os micronutrientes, o
alcançar a sanidade vegetal na agricul- que está expresso nos quadros seguintes
tura diz respeito à nutrição adequada e (Quadros 1 e 2), o primeiro tratando
balanceada dos vegetais. No ser humano dos macronutrientes e o segundo, dos
a deficiência de iodo produz o bócio, a de micronutrientes.

Quadro 1 – Funções dos macronutrientes


Macronutrientes Função
Elemento promotor de crescimento das plantas, participa da formação de aminoácidos e, por
Nitrogênio (N)
consequência, das proteínas, além de atuar na produção da clorofila.
Atua no desenvolvimento das raízes, sementes e frutos, e auxilia no armazenamento de
Fósforo (P)
energia pela planta.
Auxilia na formação de açúcares e proteínas, controla a entrada e saída de água nos ve-
Potássio (K)
getais, e sua presença é essencial para que ocorra absorção de outros elementos minerais.
Atua na formação celular e promove a absorção de água, em processo que promove um
Cálcio (Ca)
aumento da elasticidade e permeabilidade da parede da célula.
O magnésio atua na produção de clorofila pela planta, e por consequência nos processos
Magnésio (Mg)
fotossintéticos.
Auxilia na formação de proteínas dos grãos, e na simbiose entre as plantas e as bactérias
Enxofre (S)
fixadoras de nitrogênio.

N Quadro 2 – Funções dos micronutrientes


Micronutrientes Função
Auxilia na formação do pólen e no desenvolvimento do embrião, além de aumentar a
Boro (B)
resistência física das plantas.
Auxilia no desenvolvimento das raízes e, assim como o Enxofre, é importante nos proces-
Molibdênio (Mo)
sos de fixação de nitrogênio pelas bactérias das raízes das plantas.
Participa da produção de hormônios vegetais de crescimento, como as auxinas, influenciando
Zinco (Zn)
no desenvolvimento das estruturas jovens dos vegetais, como os brotos.
Influencia na formação da clorofila e, por consequência, age na fotossíntese do vegetal, elemen-
Ferro (Fe)
to também responsável pelo aproveitamento de outros nutrientes pela planta.
Auxilia na formação de vitaminas, acelera a germinação de sementes, participa no desen-
Manganês (Mn)
volvimento das raízes dos vegetais, além de conferir melhora no sabor e odor de frutos.
Confere resistência às plantas quanto às variações climáticas, pragas e doenças, além de
Cobre (Cu)
atuar na formação de proteínas.
Cloro (Cl) Fundamental para o aproveitamento dos macronutrientes pelas plantas.
Cobalto (Co) Auxilia nos processos de fotossíntese e de fixação de nitrogênio nas plantas leguminosas.

532
N U T R I Ç Ã O V E G E TA L

Muitos dos problemas sanitários produtiva. O quadro seguinte expressa


vegetais são resultantes da carência e/ os problemas causados nas plantas pela
ou do desequilíbrio nutricional, e as deficiência em minerais, o que pode
plantas geralmente apresentam sin- resultar em problemas no desenvolvi-
tomas visíveis quando carentes em mento de órgãos de vegetais como as
determinado elemento químico, com folhas, troncos e raízes, e na incidência
reflexos na sua sanidade e eficiência das pragas e doenças vegetais.

Quadro 3 – Sintomas de deficiência de nutrientes


Carência Sintomas gerais
Plantas raquíticas, redução do crescimento foliar e amarelecimento uniforme des-
Nitrogênio
tas; geralmente os sintomas aparecem primeiramente nas folhas mais velhas
Variáveis colorações nas folhas, que podem apresentar manchas amarelas, esbran-
quiçadas ou pardas, e baixo desenvolvimento radicular. A deficiência desse nu-
Potássio
triente também pode ocasionar o secamento das margens das folhas, bem como o
enfraquecimento dos caules.
Diminuição do crescimento da planta, folhas arroxeadas e escuras, raquitismo,
Fósforo
atraso na maturação de frutos, e grãos cochos.
Manchas amareladas nas margens das folhas e entre as nervuras, fraqueza das
Cálcio
raízes, rachadura dos frutos, deformação de brotos e das folhas jovens.
O ápice e a margem das folhas podem adquirir coloração púrpura avermelhada,
as folhas podem apresentar aspecto quebradiço e se encurvarem para cima, ocorre
Magnésio
também diminuição da fotossíntese e, por consequência, diminuição do cresci-
mento vegetal.
Redução do crescimento e florescimento das plantas, clorose iniciada nas folhas
Enxofre mais jovens e enrolamento na margem delas. Além disso, ocorre a diminuição do
espaço entre os internódios.
Folhas jovens deformadas, morte da gema apical, caule rachado, escurecimento
Boro no interior das hortaliças e desenvolvimento da vassoura de bruxa nas plantas
frutíferas.
Necrose nas pontas dos folíolos das folhas jovens e dificuldade do caule em se
Cobre
manter ereto.
Os sintomas ocorrem inicialmente nas folhas mais jovens, que irão apresentar N
tamanho menor do que o comum, e muitas vezes poderão ficar retorcidas. Tam-
Zinco
bém ocorre redução do crescimento vegetal e interferência nos processos de
frutificação.
Clorose internerval nos folíolos, enrolamento e queda das folhas, e aparecimento
Manganês
de pontos necróticos nelas.
Coloração verde-pálida nas folhas novas, redução do crescimento das plantas e
Ferro
inibição do desenvolvimento dos primórdios foliares.

A superação das deficiências nu- – planta, via fontes com baixa concen-
tricionais dos vegetais não se resume à tração e solubilidade, caso das rochas e
intensificação das adubações químicas minerais moídos, termofosfatos, escórias,
com produtos industrializados de alta adubos organominerais, biofertilizantes
concentração e solubilidade. Deve-se aeróbios e anaeróbios, resíduos urbanos
identificar tais deficiências e aportar os e industriais não agressivos ao meio
nutrientes carentes no complexo solo ambiente e ao ser humano.

533
N U T R I Ç Ã O V E G E TA L

Na recuperação de áreas degradadas a uma produção de alimentos com maior


e de baixa fertilidade, aconselha-se a cala- valor biológico e nutricional.
gem quando necessária, nunca em quanti- Não é indicado o uso de fertilizantes
dade superior a duas toneladas de calcário de elevada concentração e solubilidade,
por hectare, uma adubação fosfatada básica pois nesta forma são rapidamente lixivia-
com produtos de baixa solubilidade e a dos, volatizados ou imobilizados no solo,
introdução da adubação verde, preferen- afora contaminar os aquíferos subterrâ-
cialmente consorciando-se gramíneas e neos. O uso dos agrotóxicos também é
leguminosas (Costa et al., 1991). condenável, face à crescente resistência
Sob a ótica física, a matéria orgâni- das pragas, doenças e invasoras a eles, e
ca contribui para uma melhor aeração aos desequilíbrios biológicos resultantes de
e permeabilidade do solo, para a maior seu uso. Afora os impactos sobre a saúde
retenção da água e dos nutrientes, no humana, seja dos agricultores, seja dos
desenvolvimento das raízes e resistência à consumidores urbanos de alimentos pro-
erosão, afora minimizar a variação da tem- duzidos com agrotóxicos [ver Agrotóxicos].
peratura do solo resultante da intensidade Os problemas fitossanitários são,
da radiação solar. Em âmbito biológico e em larga medida, resultantes de dese-
bioquímico, a matéria orgânica se cons- quilíbrios nutricionais dos vegetais com
titui em fonte de energia aos organismos a adubação convencional, baseada em
do solo, incrementando sua população e uns poucos elementos, aportados através
diversificação, e contribui para a melhoria de produtos com alta concentração de
da relação saprófitos/parasitos, induzindo nutrientes e solubilidade (Chaboussou,
uma maior resistência das plantas aos or- 1995) [ver Trofobiose].
ganismos que afetam seu sistema radicular A superação das deficiências nutri-
[ver Teia Alimentar]. cionais dos vegetais é buscada através
A matéria orgânica disponibiliza nu- do aporte dos nutrientes carentes nos
trientes e energia para os microrganismos agroecossistemas, via fontes com baixa
do solo, promove sua estruturação e aera- concentração e solubilidade de nutrientes
ção, melhora a CTC (Capacidade de Troca (Primavesi, 1990). Os adubos minerais
N de Cátions) e a retenção da água no solo convencionais têm um potencial efeito
(Kiehl, 1985). negativo sobre os microrganismos do solo, e
Sob a ótica química, afora constituir- geralmente promovem um incremento dos
-se em fonte de nutrientes (principalmente problemas fitossanitários, destaque para
N, P e S), a matéria orgânica aumenta a o excesso de nitrogênio e desequilíbrios
CTC do solo e seu poder tampão, promove nutricionais (Chaboussou, 1995); além
a complexação de íons tóxicos aos vegetais da acelerada lixiviação no nitrogênio e do
(Fe e Al principalmente), e uma maior potássio, e a imobilização do fósforo, que
retenção no solo do Ca, Amônia, K e Mg está presente no solo, mas as plantas não
(Costa et al., 1991). conseguem absorvê-lo.
Nos sistemas agroecológicos, se Na adubação fosfatada, são indicados
aportam os nutrientes carentes, se ati- a farinha de ossos, os termofosfatos e os
vando a biologia do solo e suprindo as fosfatos de rocha in natura e semissolubi-
deficiências minerais dos vegetais, o que lizados. É tolerado o uso do superfosfato
induz a plantas mais sadias e produtivas e simples em casos de deficiência acentuada,

534
N U T R I Ç Ã O V E G E TA L

apenas como aporte inicial. O uso de cado, é tolerado por alguns segmentos da
escórias também é aceito, desde que com- agricultura orgânica o uso do cloreto de
provadamente isentas de metais pesados e/ potássio, enquanto outros a restringem ao
ou elementos tóxicos aos vegetais. Não é sulfato de potássio.
indicado o uso de adubos fosfatados com Orientação central na consecução
elevada concentração e solubilidade de da sanidade vegetal e da eficiência produ-
nutrientes, casos do mono-amônio-fosfato tiva contempla os microelementos, cujas
(MAP), e do di-amônio-fosfato (DAP). fontes devem passar por um processo de
Como fontes de nitrogênio, devem fermentação e quelatização das moléculas
ser utilizados resíduos animais, preferen- químicas, produto esse que é diluído em
cialmente fermentados; torta de mamo- água (3 a 5%), e aspergido nas plantas
na; e biofertilizantes na adubação foliar. nas fases de crescimento, pré-floração e
Os adubos verdes são recomendados crescimento do produto (fruto, folha ou
principalmente nas espécies legumino- raiz), e que aportado aos vegetais promove
sas, que devem ser rotacionadas e/ou uma nutrição ampla, que resulta em bom
consorciadas com os vegetais explorados/ desenvolvimento vegetal, com sanidade e
cultivados para o aporte de N fixado eficiência produtiva.
biologicamente. Não é indicado o uso O processo de fermentação dos
de adubos nitrogenados concentrados microele­mentos é aeróbio, e se adota tam-
– ureia, sulfato de amônia, nitrato de bém a utilização de produto fermentado
amônia e demais formulações conven- anaerobicamente, composto por esterco
cionais com elevada concentração de N. fresco de bovino e água, visando a nutrição
No caso do potássio, estimula-se o e a proteção dos cultivos da incidência de
uso das cinzas vegetais e de sulfato de muitas pragas e doenças. Ricos em aminoá-
potássio, em substituição à forma clorada, cidos, tais produtos são muito eficientes na
o cloreto de potássio. Mesmo assim, pelas prática, no tocante a uma nutrição vegetal
poucas alternativas disponíveis no mer- ampla, e a uma maior sanidade vegetal.

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535
P
PEDAGOGIA DO CAPITAL

Virgínia F ontes

A pedagogia visceral do capital necessidade que impele os seres sociais


A pedagogia do capital envolve à venda de sua força de trabalho.
um conjunto de características pe- O capitalismo, portanto, se constitui
dagógicas da dominação capitalista. de forma contraditória: produz e reproduz
Nesse verbete, apresentaremos seus incessantemente seres sociais ditos “li-
elementos mais gerais, enfatizando em vres”, porém submetidos a uma condição
seguida a dimensão formativa que o social na qual a necessidade os impele a
capital vem imprimindo à educação vender sua força de trabalho. A primeira
através de entidades empresariais sem contradição já é evidente: sabemos que a
fins lucrativos que não integram a rede liberdade somente se exerce em sua pleni-
escolar pública, mas visam controlá-la tude quando as necessidades fundamentais
e drenar seus recursos. Antes de entrar estão satisfeitas. Essa massa de seres sociais
em algumas dessas características, é definida pela necessidade (mas formalmen-
preciso lembrar que a própria forma de te livre de laços de dependência pessoal,
vida social sob o capital envolve uma como no modo de produção feudal) é con-
educação prévia e difusa, derivada dos traposta aos detentores da riqueza social
contraditórios lugares sociais nos quais altamente concentrada. Produz-se, portan-
todos os seres humanos se inserem, to, seres sociais desprovidos (expropriados)
ainda que involuntariamente, desde a dos meios singulares, coletivos e/ou sociais
mais tenra infância, e que permeia a para assegurar sua própria subsistência.
formação do ser social durante toda a A riqueza concentrada se multiplica e se
sua existência. Há uma naturalização valoriza pela extração de mais-valor de
da violência primordial que atravessa trabalhadores (Marx, 1996)1 o que pode
o processo histórico de implantação e ocorrer de inúmeras maneiras, com ou
de expansão do capitalismo. Diferente- sem contrato de trabalho, com ou sem
mente de outras sociedades de classes, a direitos. Os ideólogos do capital querem
violência no capitalismo nem sempre é apresentar essa sociedade como expressão
direta e imediatamente visível no pro- da liberdade, mas ocultam que ela repousa
cesso de trabalho, pois repousa sobre a sobre seu oposto – a necessidade. De forma
P E DAG O G I A D O CA P I TA L

igualmente contraditória, instaura-se o prática cotidiana do trabalho reproduz


conflito entre a igualdade entrevista pela e aprofunda os seus fundamentos. Tal
universalização das condições de existên- contradição é vivida e sentida pelos tra-
cia e a concentração de riquezas, da luta balhadores e, por essa razão, desde seus
entre reivindicações em defesa da plena primórdios, diferentes camadas de argu-
socialização da existência e a defesa ferre- mentos filosóficos, sociológicos, políticos
nha da manutenção da ordem capitalista. e econômicos se superpõem e se repetem,
A violência é produzida no cotidiano, procurando “educar” dominantes e do-
discreta e insidiosa, visando assegurar a minados através da naturalização dessa
conservação da sociabilidade que assegu- forma social, postura criticada por Marx
ra o predomínio do capital: a propriedade e Engels (2007) e analisada por Lukács
do capital como valor fundamental. A (2013). Tais argumentos, desde Hobbes,
pedagogia do capital começa por justi- Locke, Adam Smith, David Ricardo, den-
ficar essa violência primordial e assume tre outros, repousam sobre as seguintes
apresentações e formatos variados para suposições: 1) as desigualdades sociais
impedir que as massas que produzem derivam da própria natureza humana; 2)
a riqueza assumam o comando dessa a natureza humana é estática e não se mo-
produção. O capitalismo, forma social difica com os processos históricos; 3) as
expansiva e contraditória, resulta no características da propriedade capitalista
aprofundamento dos seus pressupostos derivam da natureza humana (Fontana,
sociais (expropriação,2 extração de mais- 1998). Tais argumentos configuram uma
-valor, apropriação da riqueza sob forma espécie de pedagogia visceral do capital.
concentrada)3 e na permanente reiteração
de sua pedagogia visceral. Pedagogia do capital
A elucubração em prol do capital as- e conflito social
sume um viés cientificista e naturalizante, O próprio capitalismo, como toda
que oculta as imensas transformações forma de vida social, é também histórico
históricas que deram origem à própria e ao se reproduzir de maneira ampliada,
sociedade capitalista e pretende justificar aumenta seu alcance territorial e social
as desigualdades. Em seus primórdios, e multiplica o grau e a escala de suas
enfrentou alegações da sociedade feudal, contradições. Precisa responder a varia-
marcadas pela teologia e pela suposição das e renovadas finalidades pedagógicas,
P de que os lugares sociais (ricos, pobres, das quais destacamos duas: a preparação
nobreza ou campesinato) eram definidos adequada da força de trabalho para as
pela vontade divina. Transformações necessidades específicas de expansão
nas próprias religiões levaram muitas do capital; e a contenção das formas de
delas a reelaborarem teologias e práticas lutas sociais e de classes que se expandem
endossando o capitalismo (Weber, 1967), em seu bojo. Essas finalidades recebem
evidente também na Doutrina Social da conteúdos diferentes em cada momento
Igreja Católica e na teologia neopente- histórico.
costal da prosperidade (Mariano, 1996). Anos a fio, as diversas imposições do
Como o trabalho vivo aumenta ainda capital e as intensas lutas sociais resulta-
mais a riqueza das classes dominantes ram em sistemas e processos educativos
e aprofunda a desigualdade, a própria diferenciados e contraditórios, algumas

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vezes organizados em estruturas duais prima a defesa específica de interesses


(uma formação elitista e outra popu- setoriais (econômicos ou sociais); e o nível
lar), outras vezes ocorrendo significativa estatal, quando se constroem solidarieda-
distância entre o universo escolar e o des entre todos os membros do grupo ou
âmbito produtivo (Manacorda, 2007). A classe social, e emergem as reivindica-
tendência principal é a separação entre a ções de participação no Estado, mas sem
educação culta e erudita – para aqueles questioná-lo em seus fundamentos. As
que deverão ser os dirigentes da socieda- relações de força ganham densidade no
de – e uma educação prática e aligeirada, momento organizativo seguinte, ético-po-
voltada para a execução das tarefas – lítico, no qual as ideologias anteriores se
decididas e impostas para aqueles que transformam em “partido” e irradiam-se
deverão ocupar lugares subordinados na por toda a sociedade, construindo uma
sociedade. As transformações nos proces- unidade intelectual e moral, para além
sos produtivos, sobretudo a partir da Re- daquela econômica e política (Gramsci,
volução Industrial, trouxeram exigências 2000, p. 40-46). Aqui reside a grande
de novas formações para trabalhadores: política, que abre as grandes opções para
alfabetização, aprendizado técnico, espe- a vida social, contraposta à pequena
cializações, inclusive de nível superior. As política, que apenas pretende pequenos
lutas operárias e populares reivindicam o ajustes no quadro já existente (Gramsci­,
direito e o acesso universais à educação 2000, p. 21-22).
e à cultura que – sem desqualificar a im- Como se observa, Gramsci procu-
portância dos conhecimentos técnicos e ra compreender o Estado capitalista a
das práticas do mundo do trabalho – seja partir das lutas sociais e de classes. Sem
acompanhada do acesso à cultura e aos descaracterizar o fundamento central das
níveis mais elevados das ciências (Saviani, divisões de classe, o autor define o Estado
2003). A contradição presente nos am- capitalista “ocidental” como a unidade
bientes escolares e educativos, envolvidos entre sociedade civil e sociedade política.
pela pedagogia visceral do capital, gera e Enquanto a sociedade política aparenta
renova conflitos intensos. ser restrita ao âmbito institucionalizado
Antonio Gramsci, pensador mar- e oficial do Estado, a sociedade civil é
xista, analisou o adensamento das lutas o âmbito no qual se expandem formas
sociais nos países onde o capitalismo se associativas – tais como os partidos, sin-
expandia, como na Itália das primeiras dicatos, clubes, imprensa, escolas, Rotary P
décadas do século XX. Enraizadas no e Lyons Club – que não resultam de im-
chão social do processo produtivo e das posição legal, nem constituem o cerne do
divisões de classe, as lutas sociais se des- processo produtivo, embora nele tenham
dobram em inúmeras formas associativas suas raízes. São entidades associativas que
que expressam e consolidam relações de promovem um certo tipo de convivência
forças, às quais correspondem momen- (sociabilidade) e defendem posições e va-
tos distintos da consciência. Partem da lores específicos, características de certos
experiência imediata das contradições grupos sociais.
estruturais de classe, quase naturalizadas, Gramsci destaca que a distinção
e passam por diferentes níveis de organi- entre sociedade civil e política é apenas
zação: econômico-corporativo, no qual metodológica, pois a expansão das lutas

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sociais resulta em uma certa incorpora- pedagogia visceral do capital, procu-


ção de alguns de seus traços pelo Estado, rando disseminá-la em todos os âmbitos
assim ampliado em várias direções: a da vida social, formulando políticas em
atuação de aparelhos privados de hege- prol do capital para a educação escolar.
monia (APHs) (isto é, voltados para a Nesse texto, ao tratar a pedagogia do
conservação da dinâmica do capital) na capital, a consideramos em seus aspectos
sociedade civil permite alcançar amplas amplos, ou seja, como um conjunto de
dimensões da vida social, indo além da práticas sociais que envolvem processos
ossatura material do Estado restrito. Em aberta ou discretamente educativos nas
contrapartida, quando as proposições sociedades contemporâneas – família,
desses APHs se tornam políticas públi- linguagem, convivência social, escolas,
cas, convertem-se em obrigatórias para universidades, trabalho, bairro, jornais,
todos, consolidando a posição de tais associações, religiões, internet, apli-
setores de classe. cativos de celular etc. Trataremos em
Tais entidades associativas tornam- especial da pedagogia contemporânea do
-se defensoras (ou críticas) das posturas capital, organizativa através de algumas
do Estado para além das circunscrições formas associativas, indutoras de uma
estatais tradicionais. Convertem-se em determinada sociabilidade, de com-
trincheiras móveis de defesa do Estado portamentos, modos de ser e de pensar
para além de seus limites institucio- que, originadas e elaboradas por setores
nais. No sentido inverso, tais entidades empresariais, são disseminadas também
integram o Estado, tanto através de no âmbito escolar.
apoio à eleição de seus quadros e de seus
intelectuais orgânicos (ou de partidos Dominação burguesa atual na
próximos) quanto pela sua incorporação educação pública no Brasil
através de nomeações de especialistas. A estreita relação entre sociedade
Seus projetos convertem-se em políticas, civil empresarial e o Estado brasilei-
destinadas a todos, indo muito além dos ro foi pioneiramente investigada pelos
limites de cada associação. Como é de se trabalhos fundadores de René Armand
supor, os aparelhos de hegemonia empre- Dreifuss (1986; 1987; 1989) e os de Sonia
sariais requentam a pedagogia visceral Regina de Mendonça (1997; 1998; 2010),
do capital, readequada ou reconfigurada que demonstraram os processos históri-
P segundo as diferentes necessidades das cos de instauração de órgãos estatais, e/
classes dominantes. ou de sua reconfiguração, elaborados e
Vale ressaltar ainda que, desde direcionados por aparelhos privados de
meados­do século XX, multiplicaram-se hegemonia empresariais. As associações
organismos internacionais cuja função é do setor empresarial tiveram acolhida
formular propostas para o aumento da no Estado [ver Estado], que incorporou
lucratividade do capital imperialista, tais as reivindicações de seus aparelhos de
como o Grupo Banco Mundial (Pereira, hegemonia. O mesmo não aconteceu
2010; Pereira; Pronko, 2015), o Fundo com as organizações populares, crimi-
Monetário Internacional, a Organização nalizadas e perseguidas, do que resultou
Mundial do Comércio, dentre muitos em uma ampliação seletiva e autoritária
outros. Desenvolvem e sistematizam a do Estado brasileiro.

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As lutas populares pela educação ocupação das escolas contra a reforma


pública universal no Brasil atravessaram do Ensino Médio, em 2015-2016. Mais
o século XX, como na campanha em recentemente, em 2019, vimos a pauta
defesa da educação pública e gratuita, educacional levar um número expressivo
nas décadas de 1950-1960, luta na qual de pessoas às ruas, em manifestações
se engajou Florestan Fernandes. A dita- de caráter nacional, contra os cortes
dura empresarial-militar (1964-1988) não do orçamento público para a educação,
apenas reprimiu as formas de organização em particular no Ensino Superior. Essas
popular como deslocou pesadamente os exemplificações evidenciam a permanên-
recursos públicos para o apoio à iniciativa cia, não sem dificuldades e limitações, das
privada em todos os níveis de ensino. lutas em defesa da educação pública. Tais
Apesar da violência ditatorial, as lutas movimentos se defrontam com o Estado,
populares foram intensas nas décadas de uma vez que “na condição de educador,
1970 e 1980, culminando em uma transi- o Estado capitalista desenvolveu e desen-
ção democrática tutelada, mas assegurada volve uma pedagogia da hegemonia, com
uma constituinte que asseverava ser a ações concretas na aparelhagem estatal e
educação um dever do Estado. Expressan- na sociedade civil” (Neves, 2005, p. 27).
do o poder empresarial, a Constituição de Diversos estudos e pesquisas assina-
1988 admitiu a coexistência de institui- laram a aproximação entre aparelhos pri-
ções públicas e privadas e a destinação de vados de hegemonia empresariais (apesar
recursos públicos para ambas. de se apresentarem como entidades sem
No contexto da constituinte, emerge fins lucrativos) e as políticas educacionais
na década de 1980 a Campanha Nacional do Estado brasileiro, sobretudo a partir
pela Escola Pública Gratuita e, em 1987, da década de 1990. Uma pedagogia da
organizou-se o Fórum Nacional em Defe- hegemonia no Brasil se direcionava a
sa da Escola Pública. Para Leher (2018), o educar o consenso das grandes maiorias,
fórum atuou como espaço aglutinador das agindo dentro e fora das escolas públicas,
lutas educacionais até o início dos anos num ambiente formalmente democrático,
2000, respaldado por uma agenda hete- em uma década na qual a expropriação
rogênea, mesclando proposições liberais de direitos se tornava prática recorrente.
e socialista. Iniciativas governamentais, No século XXI constata-se que as classes
entretanto, contribuíram para esvaziar o e setores dominantes enfrentam as lutas
fórum, abrindo terreno para proposições sociais de forma mais complexa, asso- P
empresariais. ciando o uso direto da violência a intenso
Tais lutas prosseguiram com inten- processo de convencimento.
sidade no século XXI, como demonstra o A contrarreforma do Estado realiza-
trabalho intelectual, elaborativo e prático, da no governo Fernando Henrique Car-
realizado pelo Movimento dos Traba- doso e levada a efeito por Bresser-Pereira
lhadores Rurais sem Terra referenciado em 1995 (Behring, 2018) integrou na
na “Pedagogia do Movimento” (Kolling ossatura institucional as reivindicações
et al., 2012), assim como as lutas pela dos setores empresariais, consolidando
universidade pública, gratuita e de quali- a prática das parcerias público-privadas
dade; as lutas do magistério da Educação e ampliando a possibilidade do uso de
Básica, as lutas dos estudantes com a verbas públicas para entidades privadas

541
P E DAG O G I A D O CA P I TA L

e/ou sem fins lucrativos. Uma enorme sociometabólica gerada pela monocultura,
variedade de aparelhos privados de he- pelo envenenamento do ar, do solo, das
gemonia empresariais passava a orbitar águas e pelo uso massivo de agrotóxicos.
em torno da educação pública, com Outros aparelhos de hegemonia,
iniciativas como a adoção de escolas, também sem fins lucrativos, seriam im-
parcerias diversas, acompanhamento plementados visando a agregar e poten-
curricular, avaliação, formulação de cializar a atuação dos anteriores, como o
políticas, elaboração de material ins- Grupo de Institutos e Fundações Empre-
trucional e de tecnologias, introdução sariais (Gife, criado informalmente em
de gestão empresarial no setor público. 1989 e formalizado em 1995, com mais
Algumas dessas entidades chegaram a de 100 entidades e empresas associadas),
definir a seleção e a contratação de tra- o Movimento Todos pela Educação
balhadores sem direitos (‘voluntários’) e (em atividade desde inícios do sécu-
de secretários ou secretárias municipais lo XXI, formalizado em 2005), e mais
ou estaduais de educação. recentemente o Movimento pela Base
Algumas das entidades mais conhe- Nacional Comum, de 2013. Lastrea­
cidas no âmbito escolar nos dias atuais dos em empresas ou outras entidades
são: Fundação Lemann, Instituto Ayrton empresariais similares, desenvolveram
Senna, Instituto Unibanco, Fundação intensa atividade na elaboração, formu-
Itaú Social, Instituto Península, Funda- lação, acompanhamento e avaliação de
ção Roberto Marinho, Movimento Brasil políticas públicas educacionais.
Competitivo, Fundação Vale (Araújo, A ação dessa malha de aparelhos
2018), Associação Brasileira do Agrone- empresariais de hegemonia guarda forte
gócio (Abag), Instituto Natura, Instituto correlação com as práticas levadas a
Inspirare, Instituto Gerdau, Fundação efeito internacionalmente. Mas a vin-
Bradesco, Instituto Akatu, (Leher, 2018; culação mais estreita as aproxima dos
Fontes, 2017) além de inúmeros outros, Estados Unidos e dos “reformadores
dentre os quais o já tradicional Sistema empresariais da educação”, voltados
S (formação de mão de obra dirigida pelo para a privatização da educação através
patronato), que na atualidade agrega de práticas mercantis (vouchers) e para
Senai, Sesi, Senac, Sesc, Sebrae, Senar, o controle da educação pública através
Sest, Senat e Sescoop. de testes padronizados, sanções e mo-
P Embora haja mais estudos sobre os dificações na formação de professores.
âmbitos urbanos, esses aparelhos de he- Lá, como aqui, com fartos recursos e
gemonia empresariais atuam ativamente forte apoio midiático, são criadas difi-
nos espaços rurais. Entidades como a culdades como argumento para vender
Associação Brasileira do Agronegócio soluções empresariais. A educação pú-
(Abag) (Dipieri, 2018; Aquino, 2018; blica é apresentada como um caos: com
Lamosa, 2016) e o Serviço Nacional de pessoal despreparado, é considerada cara
Aprendizagem Rural-Senar (Ribeiro, por não implementar procedimentos
2018) promovem junto a escolas públicas empresariais de gestão, entre outras
uma suposta “educação ambiental” [ver argumentações. Um “neotecnicismo se
Educação Ambiental] desprovida de análi- estrutura em torno a três grandes ca-
ses críticas sobre os fundamentos da crise tegorias: responsabilização, meritocracia

542
P E DAG O G I A D O CA P I TA L

e privatização” (Freitas, 2012, p. 383, sem direitos, sem contratos, sem jornadas
itálicos do original). delimitadas.
Este hiperativismo empresarial gera
um curto-circuito nos procedimentos Novas inquietações
democráticos da escola pública (Fontes, Esse novo formato da pedagogia do
2017), deslocando o debate sobre razões capital envolve tanto a intensificação de
estruturais das desigualdades sociais para aparelhos hegemônicos para o convenci-
paliativos tecnocráticos e gerenciais, mento de setores populares quanto para a
que tendem a definir a escola pública formação de quadros e lideranças empre-
como “escola para pobres”, quando as sariais. No entanto, ele jamais reduziu as
reivindicações populares são de uma doses de coerção e de repressão vigentes
educação de cunho universal. No Brasil, na sociedade brasileira, de origem estatal
sob a aparência do “apoio” democrático ou paraestatal (milícias e outras formas
à educação, as classes dominantes procu- de violência direta).
ram redirecionar as iniciativas populares, A partir de 2015, tornou-se evidente
homogeneizar as práticas educativas sob o recrudescimento, no interior dessa ma-
o manto da eficiência e de testes padro- lha de aparelhos de hegemonia empresa-
nizados segundo parâmetros empresariais riais, de entidades com perfil reacionário
(e não democráticos), tentam apagar as e até mesmo protofascista, algumas delas
diferenças programáticas entre os partidos fazendo a defesa direta da violência
políticos erigindo-se em “partido infor- contra os subalternos. Associam-se a
mal” da educação pública, guiado pelo entidades religiosas (neopentescostais
empresariado. No mesmo compasso em e setores católicos) em recusa aberta à
que apoiam as sucessivas expropriações de educação pública conduzida de maneira
direitos dos trabalhadores (trabalhistas, democrática, com forte viés anticultura,
sindicais, previdenciárias etc.), eviden- como o movimento Escola Sem Partido,
ciam seu impulso em direção à captura o Estudantes pela Liberdade (afiliado ao
dos fundos públicos: longe de lutarem Students for Liberty, dos EUA), o Instituto
contra o dramático subfinanciamento das von Mises, dentre outros (Colombo; La-
políticas universais brasileiras, educativas mosa, 2018). Na atualidade, o meio em-
e de saúde, propugnam “choques de ges- presarial requenta a pedagogia visceral
tão”, enquanto apoiam a compra pública do capital através do convencimento e
de materiais privados. A pedagogia visce- da truculência. Somente o conjunto das P
ral do capital é requentada sob o formato lutas sociais e populares poderá definir
do empreendedorismo, e a proposta em- novos marcos para a educação, efetiva-
presarial para a educação procura adequar mente democrática, enfrentando toda e
enormes massas da população ao trabalho qualquer pedagogia do capital.

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WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967.

Notas
1
Mais-valor – o trabalhador não vende ao capitalista o trabalho que realiza, mas sua capacidade de
trabalhar (força de trabalho). Ele é capaz de trabalhar mais tempo do que aquele necessário para repor
P socialmente o valor de sua força de trabalho. A diferença entre o valor de troca (bens necessários
à vida do trabalhador correspondentes ao salário) e o valor de uso do trabalhador (trabalhar, isto
é, produzir bens com valor) representa a base do lucro do capital (Marx, 1996).
2
Expropriação: a expulsão dos camponeses foi o procedimento histórico da formação de trabalhadores
“livres”, isto é, sem dispor de meios para assegurar a existência e obrigados a vender sua força de
trabalho. Cf. Marx (1996). As expropriações se aprofundaram ao longo dos séculos XX e XXI,
incidindo sobre inúmeras relações sociais e atividades; Fontes, V. “A transformação dos meios de
existência em capital” e Lupatini, M. “Notas sobre a expropriação na ‘odisseia’ do capital”. Ambos
In: Boschetti (2018).
3
Apropriação: toda produção é uma relação sociometabólica entre os seres sociais e a natureza, que
varia segundo as formas da divisão social do trabalho. Transformar os bens naturais em propriedade
privada é um processo histórico, que avançou brutalmente com a expansão do capital e o saque
realizado nos diversos continentes, que prossegue até os dias atuais.

544
PEDAGOGIA DO TRABALHO

PEDAGOGIA DO TRABALHO

C aroline Bahniuk
Sa ndr a L ucia na Dalmagro

As origens da pedagogia do traba- constituem as primeiras formulações


lho são muito antigas e se localizam na de uma Pedagogia do Trabalho. Rossi
necessidade das sociedades humanas de (1981),1 ao procurar as raízes da educação
formar as novas gerações para o traba- socialista, identifica desde os utópicos a
lho em cada momento histórico, ou, se busca por equacionar a educação aca-
quiser, educar para produção de sua exis- dêmica com o trabalho na terra, por
tência material. Formar para o trabalho, exemplo em Thomas Morus, que em
transmitindo às novas gerações o acúmu- sua Ilha da Utopia propõe combinar o
lo das anteriores é uma questão posta em trabalho do cérebro com o das mãos.
cada sociedade; as formas de resolver é Já Owen, Saint-Simon e Fourier arti-
que são as mais diversas. Só bem mais culam o processo educacional com o
recentemente é que a aprendizagem para trabalho industrial. Outros pensadores
o trabalho passa pela educação escolar, da modernidade como Montaigne, Ra-
ainda que não exclusivamente. belais e Rousseau opõem-se à educação
No embate entre Platão e os sofis- dogmática, baseada na memorização
tas subjaz o dilema da formação para o e de caráter livresco e contemplativo,
mundo das ideias ou para o mundo do lançando as bases do ensino ativo, do
trabalho. A sociedade grega, fundada conhecimento do mundo natural e da
sob a escravidão, não vê no trabalho, educação pelo trabalho. Estes autores
e particularmente no trabalho manual, foram sensíveis às profundas mudanças
nenhum valor moral; livre é o homem sociais. Polêmicas relevantes na história
que não necessita prover sua existência da educação – como as dicotomias en-
imediata porque a tem assegurada pelo tre educação geral e específica/técnica,
trabalho do escravo e que por isso pode formação para as artes ou para a ciência,
se dedicar ao culto do corpo, da filoso- aprendizagem baseada na memória ou P
fia e da arte. Conforme Chauí (1999), na atividade – são ainda extremamente
a palavra escola vem do grego scholé e atuais e encontram-se presentes nos de-
significa ócio: vão à escola aqueles que bates afins com a pedagogia do trabalho.
não precisam trabalhar. Já os sofistas são Com o advento do capitalismo, o
aqueles que propõem ligar a educação trabalho ganha não apenas centralidade,
às necessidades produtivas, ao caráter mas também um novo status. A Revolu-
útil e prático, por oposição ao mundo ção Industrial coloca “pela primeira vez o
platônico das ideias. trabalho produtivo no centro da vida so-
Ligar a educação ao trabalho e iden- cial, tanto no sentido econômico, como
tificar o caráter educativo do trabalho, no sentido cultural – moral e teórico”
seja na educação sistemática ou não, (Castro, 1988, p. 2). Ao contrário das so-

545
PEDAGOGIA DO TRABALHO

ciedades anteriores, nas quais o trabalho trabalho adquire conotação distinta.


tem a função de sobrevivência material, Podemos dizer que há uma perspectiva
na sociedade burguesa o trabalho passa burguesa e uma perspectiva socialista
a ser a razão principal da existência, o quanto à pedagogia do trabalho, nas
centro da vida social. Emergem dessas quais a dimensão formativa do trabalho
relações uma ideologia do trabalho, assume interesses distintos.
amplamente difundida, para a qual o
trabalho é visto como o que dignifica e Pedagogia socialista
enobrece o homem, desconsiderando as e pedagogia do trabalho
condições em que se realiza, ocultando A pedagogia socialista refere-se ao
a degradação e a exploração do trabalho conjunto de esforços “de associação e de
sob o capital. teorização de práticas educativas prota-
A profunda mudança social desen- gonizadas pelos trabalhadores ao redor
cadeada pelo modo de produção capita- do mundo, e conduzidas (na teoria e na
lista coloca o problema de qual instrução prática), desde seus objetivos de classe,
virá a atender as necessidades da grande para a construção de novas relações
indústria e seu constante aperfeiçoa- sociais de caráter socialista” (Freitas,
mento. Segundo Manacorda (2010),2 o 2015, p. 7). Ela se contrapõe à pedagogia
trabalho será o tema dominante na peda- do capital [ver Pedagogia do Capital], ou
gogia moderna. Expressão disso é o lugar seja, ao processo de internalização das
ocupado pelo trabalho nas formulações relações sociais sob o modo de produção
de um dos maiores expoentes da peda- capitalista, distinguindo-se desta pelos
gogia burguesa, Jonh Dewey. A dinâmica sujeitos que a produzem – os trabalha-
do trabalho na sociedade capitalista se dores; por suas finalidades formativas e
revela ainda na educação contempo- sociais, as quais visam contribuir para
rânea por meio das formulações como formação humana de lutadores e cons-
“aprender a aprender”, pedagogia das trutores de uma sociedade emancipada;
competências, aprender a empreender, e pelos métodos que integram teoria e
dentre outras, as quais contribuem para a prática na formação omnilateral. Na
adaptação do trabalhador nessa sociabili- direção do desenvolvimento humano
dade ao realizar uma formação unilateral pleno, a pedagogia do trabalho precisa se
voltada a atender a produção de valor. desenvolver em um ambiente educativo
P Essas pedagogias burguesas naturalizam rico em arte, cultura, filosofia, educação
a exploração do trabalho e educam para do corpo, das emoções, das relações, as
aceitar as demandas produtivas e flexí- quais são equacionadas com a educação
veis do capitalismo contemporâneo, se científica, intelectual e politécnica. A
adequar a elas e conviver pacificamente perspectiva socialista se distingue ainda
com o desemprego, a precarização e a por estabelecer uma relação intrínseca
perda dos direitos sociais e trabalhistas. com o trabalho – considerado central
Em seu oposto, mas como a outra para essa pedagogia.
face do mesmo tempo histórico, o tra- O marxismo é base teórica da pe-
balho também é tema dominante nas dagogia socialista, para quem a essência
formulações educacionais da pedagogia humana é a autoconstrução do ser social,
socialista, porém nesta a pedagogia do por meio do trabalho – intercâmbio entre

546
PEDAGOGIA DO TRABALHO

homem e natureza, o qual é o alicerce, o como necessidade histórica, precisa


determinante, sem o qual a vida humana ser articulado ao estudo ou à formação
não existiria (Manacorda, 2010). Para intelectual e corporal que desta forma
Marx (2006), o trabalho possui uma constituem “o germe” da formação
dupla e contraditória face, ao comportar omnilateral (Manacorda, 2010).
as dimensões de positividade e negati- A partir das formulações marxia-
vidade. Como positividade ou atividade nas, alguns autores elaboram o conceito
vital, o trabalho diferencia os seres hu- de trabalho como princípio educativo.
manos dos animais, humaniza-os. Ao Antonio Gramsci foi um dos pioneiros
transformar a natureza, o ser humano dessa elaboração. Parte integrante de
produz sua existência, transformando a sua proposição de Escola Unitária é
si e à sociedade. alicerçada na unidade entre instrução
Porém, o trabalho [ver Trabalho] e trabalho com a intenção de formar
assume diferentes formas históricas. Nas pessoas que tenham ao mesmo tempo
relações sociais capitalistas, o trabalho, capacidade de produzir e também de
em sua negatividade, gera desumaniza- ser dirigentes (Frigotto; Ciavatta, 2012).
ção. O trabalhador se aliena do processo, Porém, o trabalho enquanto prin-
do produto de sua classe e de si pró- cípio educativo sob as relações sociais
prio, sob o trabalho explorado. Produz capitalistas é um tema polêmico no
riqueza, mas embrutece, degrada-se e interior do campo marxista no Brasil
desenvolve-se unilateralmente, uma vez (Tumolo, 2005; Frigotto, 2009; Saviani,
que a formação da força de trabalho se 2011). Esse é um debate complexo, pois
direciona para atender as demandas da no materialismo histórico-dialético
produção do valor (Marx, 2006). o trabalho possui simultaneamente a
Nas elaborações de Marx e Engels dimensão de positividade e negativida-
sobre educação, os elementos sínteses de de, com a prevalência dessa última no
sua proposta são o trabalho, o estudo e capitalismo. Questiona-se: como o tra-
a educação física. Eles realizam a crítica balho explorado e alienado, que afinal
do trabalho, da educação e da escola é a forma do trabalho no capitalismo,
sob o capitalismo, mas dialeticamente poderia ser educativo? Enquanto per-
com­preendem que a articulação traba- durar a sociedade burguesa, o trabalho
lho-estudo contém a base da formação pode se constituir como plataforma
omnilateral, o germe da educação do da educação emancipatória? De nossa P
futuro (Marx, 2018). O trabalho é o parte, compreendemos que a pedago-
elo entre teoria e prática, capaz de gia socialista compartilha da crítica
unir o estudo e a produção e romper ao trabalho no capitalismo, mas, de
a separação entre trabalho intelectual modo consequente, não pode ignorar
e ma­nual. Como no capitalismo o tra- o trabalho como o fundamento da vida
balho se torna o seu oposto, e conside- social, e, portanto, a base da educação,
rando que esta inversão ocorre na base no capitalismo ou para além dele. Ou
material e não apenas na consciência, seja, como superação dialética, em uma
trata-se de revolucionar a base mate- perspectiva socialista, tem-se em vista
rial que origina as formas invertidas formar para o trabalho considerando
de consciência. Por isso, o trabalho, os processos que mesmo no interior do

547
PEDAGOGIA DO TRABALHO

capitalismo se opõem à lógica burguesa. Em se tratando da educação esco-


O trabalho, nesta perspectiva, é deter- lar, o termo Escola Única do Trabalho
minante das relações e da educação foi o nome dado ao sistema que se cons-
dos homens, e necessariamente precisa titui na primeira década da revolução
incluir a luta social, a auto-organização soviética (1917-1931). “Única” porque
ou a autodireção, a coletividade, a arte, não mais dual, como no capitalismo;
a filosofia, a ciência, enfim, o conjunto porque se trata da mesma escola para
da vida social cujo fundamento é o todos. As classes sociais devem ser ex-
trabalho, mas que com relação a ele tintas assim como a dualidade escolar
exercem relativa autonomia. que lhe corresponde. “Do trabalho”
Compreendemos ainda que a peda- porque é sintonizada com os interesses
gogia do trabalho, sob a ótica socialista, dos trabalhadores, os quais devem ser
precisa se afastar de um mero “aprender produtores e gestores da riqueza (Frei-
pela prática”, ou do “aprender a fazer, tas, 2012). Mas também “do trabalho”
fazendo”. Antes, ela pressupõe o do- porque este é tido como a base do co-
mínio teórico e prático do processo de nhecimento, da cultura e da sociabili-
trabalho, portanto o domínio intelec- dade, e, portanto, base da educação.
tual dos processos de produção em seus Na deliberação sobre a Escola Úni-
diferentes ramos e setores e o estudo ca do Trabalho, a questão é posta da
das relações de produção aí imbricadas. seguinte maneira:
Mas esse domínio teórico não se realiza na base da vida escolar deve estar
sem o trabalho cotidiano, concreto, útil, o trabalho produtivo, não como
necessário, que igualmente precisa ser um meio de pagar as despesas de
realizado e aprendido e que se modifica manutenção das crianças, e não só
a depender da forma social. A unidade como método de ensino, mas espe-
teoria e prática é o ponto central na cialmente como trabalho produtivo
perspectiva socialista, estando aí pres- socialmente necessário. Ele deve ser
suposto o fim das classes sociais, a partir fortemente organizado em ligação
com o ensino, lançando a luz do
da qual se ergue a educação omnilateral,
conhecimento a toda a vida circun-
isto é, multilateral.
dante. Gradualmente tornando-se
A pedagogia socialista soviética, cada vez mais complexo, devendo ir
vinda à tona com o processo revolucio- além do entorno imediato da vida da
P nário russo em 1917, foi uma das expe- criança, o trabalho produtivo deve
riências pioneiras na direção de realizar familiarizar a criança com uma am-
um processo educativo sintonizado com pla variedade de formas de produção,
a sociedade socialista em construção, o até as mais complexas. (Cverdlov;
qual tinha por centralidade o trabalho, Podrovsky; Avanesov, 2017, p. 278)
em articulação com as categorias atuali- Pistrak (2018), um dos principais
dade e auto-organização dos estudantes.3 autores na sistematização da experiên-
Nessa experiência, a educação e tam- cia soviética com Shulgin e Krupskaya,
bém a escola tinham por objetivo elevar ao investigar as concepções acerca da
cultural, intelectual e politicamente os relação escola e trabalho, aponta três
trabalhadores na direção de formar cons- perspectivas, as quais critica. A primeira
trutores e lutadores da nova sociedade. delas toma o trabalho como uma questão

548
PEDAGOGIA DO TRABALHO

metodológica, isto é, o trabalho ajuda a pendência das forças produtivas em cada


ilustrar o ensino, ele ocupa uma função momento histórico. Na escola, o TSN
complementar e auxiliar na escola. Uma precisa estar em sintonia com a força e
segunda concepção toma um determina- o desenvolvimento dos estudantes e em
do trabalho manual e em função deste articulação com os objetivos de ensino
organiza o programa de ensino, subordi- e o conjunto das atividades escolares.
nando este último ao primeiro. Por fim, Pistrak e Shulgin, buscando se afastar
uma terceira concepção entende que da ideologia do trabalho, não fazem
qualquer trabalho é educativo, e é preciso apologia ao dispêndio da força humana
desenvolver o amor pelo trabalho. Para o de trabalho; por repetidas vezes são en-
autor, nessas perspectivas, a relação entre tusiastas do desenvolvimento produtivo
o trabalho e a ciência é marginal. Na e cultural que possibilite ao ser humano
concepção educativa e escolar de Pistrak, emancipar-se do trabalho. Isso pode ser
o trabalho não pode ser tomado abstrata- verificado, dentre outros, na seguinte
mente, ou como uma disciplina isolada. passagem: “O ideal não é que todos fa-
O mais relevante são as relações entre o çam autosserviço, mas que todos sejam
trabalho e a realidade atual, o trabalho libertados deles, que a máquina esteja
das crianças e adolescentes como parte em toda parte, a serviço do homem”
do trabalho social. Não se trata, portan- (Shulgin, 2013, p. 41).
to, de estudar qualquer tipo de trabalho Na atualidade, podemos dizer que
humano, qualquer tipo de dispêndio de a Pedagogia do Movimento desen-
energias musculares e nervosas, “mas a volvida nos espaços educativos do
atividade racional socialmente necessária Movimento dos Trabalhadores Rurais
que determina as relações sociais das pes- Sem Terra (MST) contém ou alimen-
soas” (Pistrak, 2018, p. 69). Para o autor, ta em seu interior uma pedagogia do
a questão do trabalho na escola está em trabalho. A Pedagogia do Movimento
relação com os objetivos gerais da escola possui um duplo sentido: é a síntese
e desta com os objetivos mais gerais da da compreensão do trabalho de edu-
sociedade. Neste sentido, “a questão não cação do MST, e também se refere à
está nem na própria ciência e nem no pedagogia produzida por ele próprio, ou
próprio trabalho [...], mas a sua ligação às seja, diz respeito ao processo formativo
finalidades mais gerais da vida” (Pistrak, do Sem Terra, o caráter formativo do
2018, p. 154). Movimento (Kolling; Vargas; Caldart, P
O trabalho socialmente necessário 2012). Ela tem como fontes centrais
contribui para responder a esse desafio. de sua formulação, desde a origem: as
Para Shulgin (2013, p. 89), formulador experiências educativas socialistas, a
do referido conceito, “aquele tipo de Pedagogia do Oprimido da tradição
trabalho que produz algum resultado da Educação Popular de Paulo Freire
que é plenamente real, inteiramente e o próprio jeito de ser do MST (Cal-
concreto, por um lado, por outro, é o dart, 2015).4 O MST em sua pedago-
tipo de trabalho que tem valor pedagó- gia recupera alguns dos fundamentos
gico”. O trabalho socialmente necessário dessas formulações e as reconstrói na
é, portanto, aquele que necessita ser intenção de direcionar os processos
realizado socialmente e que está na de- educativos no movimento.

549
PEDAGOGIA DO TRABALHO

Para Dalmagro (2010), a educação de alimentos, ao longo da história e


do MST tem em vista a formação para principalmente na atualidade, proble-
o trabalho, particularmente o do cam- matizam as formas hegemônicas e suas
po, tendo como horizonte a edificação consequências para a natureza, a saúde
de uma base produtiva alternativa ao humana, entre outros (Caldart, 2017).
mercado capitalista. Para a autora, Neste verbete, buscamos recupe-
o trabalho transpassa a educação no rar a gênese da pedagogia do trabalho
MST, desde as formulações iniciais até e sua presença tanto nas pedagogias
as mais recentes; porém, o lugar deste burguesas quanto na pedagogia socia-
comporta variações em dados períodos lista. Destacamos que esta última toma
históricos. O MST articula a formação o trabalho como centralidade, e em
para/pelo trabalho às lutas sociais e à perspectiva histórica, o que significa
organização coletiva. considerar a alienação do trabalho e
Nos últimos anos, a agroecologia do trabalhador sob as relações sociais
vem sendo incorporada nas formula- capitalistas, incluindo seus limites de
ções pedagógicas do MST, como pode- desenvolvimento nessa forma social,
mos verificar pelas últimas produções mas também que o socialismo tem como
organizadas pelo Setor de Educação horizonte a redução do tempo de traba-
(Caldart, 2017; Ribeiro et al., 2017). Essa lho necessário para prover as condições
conexão entre educação e agroecologia básicas da existência e, portanto, a
está sintonizada com o atual programa criação e ampliação do tempo livre, do
político do MST, aprovado no último tempo de fruição e formação plena. Na
Congresso Nacional, em 2014, e sinte- perspectiva socialista, o trabalho eman-
tizado pela expressão “Lutar! Construir cipado é base da formação multilateral,
Reforma Agrária Popular!”. Nesse pro- ou seja, rearticula teoria e prática e se
grama, defende-se a matriz tecnológica desenvolve com forte ancoragem filosó-
agroecológica como modo de produzir fica, científica, artística, cooperativa e
e distribuir a riqueza na agricultura, ética. Colocamos em destaque também
como forma de enfrentar a dominação algumas experiências pedagógicas de
do campo sob o capitalismo financeiro, perspectiva socialista, que buscam não
o agronegócio (Movimento dos Traba- sem contradições contrapor-se à hege-
lhadores Rurais Sem Terra, 2014). monia do capital e à formação unilateral
P A educação e as escolas têm sido que lhe corresponde.
reconhecidas como espaços que podem, Destacamos o grande potencial da
a depender da intencionalidade educa- agroecologia em mediar essa relação
tiva e o vínculo com o trabalho social, entre educação e trabalho, em particu-
contribuir para o fortalecimento da lar, compreender os diversos aspectos
agroeco­logia [ver Agroecologia]. Nessa dos processos produtivos, conhecendo
relação, a produção de alimentos tem os fundamentos científicos e tecnoló-
aparecido com força na ligação entre gicos embutidos nesses processos. Por
escola e agroecologia. Em conexão com sua característica interdisciplinar, a
a produção da vida no entorno da escola, agroeco­logia requer conhecer os as-
os estudantes são colocados a compreen- pectos naturais, sociais, econômicos
der os processos de produção e consumo e culturais envolvidos. Na educação

550
PEDAGOGIA DO TRABALHO

escolar, a agroecologia se conecta com omnilateralmente, porém só se realiza


o conjunto das disciplinas escolares, de fato com a constituição dos traba-
com o entorno da escola, com as ativi- lhadores em livre associação, com a
dades de trabalho e de auto-organização superação do capitalismo. Em particu-
existentes, relacionando os saberes lar, nesse momento histórico de crise
populares e o conhecimento científi- social profunda, de intensa regressão
cos, exigindo processos de pesquisa da dos direitos sociais, criminalização dos
realidade, entre outros. movimentos sociais e de destruição da
A educação na perspectiva socia- natureza, afirmar essas experiências é
lista busca desenvolver o ser humano condição para continuar (re)existindo.

Referências
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551
P E R M A C U LT U R A

Para saber mais


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PISTRAK, M. A escola comuna. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

Notas
1
Wagner Gonçalves Rossi tem duas importantes obras na área Trabalho e Educação. São elas: Capitalismo e
Educação: contribuição ao estudo crítico da economia da educação capitalista (1978) e Pedagogia do Trabalho:
Raízes/Caminhos da Educação Socialista (1981). Ambas as obras foram publicadas pela Editora Moraes,
sendo a última em dois volumes, nos quais o autor realiza uma investigação sobre a pedagogia do trabalho
desde os socialistas utópicos aos socialistas contemporâneos; em certo sentido, recuperamos o fio condutor
desses dois volumes no verbete. Apesar de seus estudos promissores, o autor torna-se deputado estadual
em São Paulo ainda no início dos anos 1980, não retornando mais à produção acadêmica.
2
Mario Alighiero Manacorda (1914-2013) foi um educador italiano reconhecido internacionalmente e
cujas ideias e obras são difundidas no Brasil. Formado em letras, desenvolveu seus estudos no campo da
pedagogia e da história da educação. Adotando o marxismo como base teórico-prática, sempre esteve
ativo junto à luta dos trabalhadores. Algumas de suas obras principais e cuja leitura recomenda-se são:
História da Educação: da antiguidade a nossos dias (Manacorda, 2018); O princípio educativo em Gramsci
e Marx e a pedagogia moderna (Manacorda, 2010). Essa última obra em particular é uma das principais
sínteses da Educação em Marx e Engels e de leitura fundamental a quem partilha de uma concepção
educacional marxista.
3
Registra-se aqui a importância do professor e pesquisador Luiz Carlos de Freitas (Unicamp) na socialização
da Pedagogia Socialista Soviética no Brasil. Por meio de sua maior aproximação com o MST a partir de
2000, o professor vem traduzindo diversos materiais até então desconhecidos. Em particular, realizou
as seguintes publicações em parceria com a Editora Expressão Popular: Pistrak, M. A escola comuna
(2009); Shulgin, V. Rumo ao politecnismo (2013); Pistrak, M. Ensaios sobre a escola e o politecnismo (2015),
Krupskaya, N. K. A construção da Pedagogia Socialista (2017). Anteriormente só tínhamos acesso ao livro
de Pistrak, P. Fundamentos da escola do trabalho, publicado pela primeira vez no Brasil em 1981.
4
Segundo Rossi (1981), as formulações de Paulo Freire contribuem de forma substantiva para pensar a
Pedagogia do Trabalho: sua pedagogia se constrói tendo por base o modo de vida das classes populares
e dos trabalhadores tendo por objetivo formar uma consciência crítica voltada à ação transformadora.

PERMACULTURA

L ea ndro F eijó Fagundes


F er na ndo C ampos C osta

O ser humano vem dia a dia dei- dependente de recursos energéticos.


xando suas digitais no planeta, modifi- Na busca de um uso mais sustentável
cando o território e consolidando uma dos recursos do planeta terra, nasce a
paisagem artificializada e cada vez mais necessidade de consolidar, pela práxis,

552
P E R M A C U LT U R A

uma cultura permanente que almeje a Contudo, somente em 1997, através do


transformação do território, respeitando iraniano Ali Sharif,3 um dos principais
a diversidade cultural sem abrir mão do praticantes e difusor da permacultura no
protagonismo dos povos. país, consolidaram-se centros de vivên-
Os australianos, Bill Mollison1 e Da- cia e referência do método em diversos
vid Holmgren2 criaram, nos anos 1970, a biomas brasileiros.
palavra permacultura em contraposição Permacultura, em síntese, é a exe-
ao modelo da agricultura convencional, cução de práticas agrícolas presentes no
propondo uma “cultura permanente”. cotidiano diário de povos e comunidades
Esses autores buscaram, a partir das tradicionais com soluções modernas. O
culturas ancestrais sobreviventes e nos conceito objetiva estabelecer um de-
conhecimentos da ciência moderna, senho planejado, para promover uma
desenvolver um método de construção maior sustentabilidade dos ecossistemas
de uma permanente agricultura, tendo locais e prega, acima de tudo, uma práxis
como princípios básicos o cuidado com diária a fim de colocar mulheres e ho-
as pessoas, com o planeta e a distribuição mens como agentes transformadores de
dos excedentes. Levaram em considera- suas realidades [ver Tecnologias Sociais].
ção fatores sociais, econômicos e am-
bientais, a fim de construir uma leitura Ética e princípios da permacultura
multidimensional do meio voltada para a A permacultura nos coloca uma
organização de sistemas agrícolas. ética que impõe uma ação imediata;
A permacultura surge em um por menor e mais local que seja, ela se
ambiente de contracultura, buscando demonstra fundamental para uma nova
­reorganizar a vida com valores de uma organização. Também mantém uma
minoria disposta a mudanças profundas, “ética da vida”, a qual reconhece o valor
frente ao uso abundante do petróleo e intrínseco de tudo o que vive, não im-
energia, consumismo industrial, obso- portando se possui valor comercial (valor
lescência programada, agronegócio e de troca), desde que esteja integrada na
mineração. “A permacultura foi uma das natureza desempenhando funções (valor
alternativas ambientais que surgiram a de uso).
partir da primeira grande onda da mo- Para Mollison e Holmgren, a ética
derna conscientização ambiental, após abrange três áreas: a primeira preconiza
o relatório do Clube de Roma de 1972 o “cuidado com o planeta Terra”, ou seja, P
e as crises do petróleo de 1973 e 1975” cuidado com todas as coisas vivas e não
(Holmgren, 2002). vivas: solos, espécies e suas variedades,
Através dos Cursos de Design em atmosfera, floresta, micro-habitat, ani-
Permacultura (PDC) e palestras propor- mais e água; a segunda inclui o “cuidado
cionadas pelos centros de referências, as com as pessoas”, de forma que nossas
ideias da permacultura foram difundidas necessidades básicas de alimento, abrigo,
e praticadas em várias partes do mundo. educação, trabalho satisfatório e contato
No Brasil, Bill Mollison proferiu uma humano saudável sejam supridos; e a
palestra no ano de 1983, no Sítio Pé na terceira envolve a “partilha do exceden-
Terra, na localidade de Lomba Gran- te” de tempo, dinheiro e energia para
de, município de Novo Hamburgo/RS. alcançar os objetivos de cuidado com

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P E R M A C U LT U R A

a terra e as pessoas. Isto significa que, • policultura e diversidade de es-


após ter suprido as necessidades básicas pécies benéficas, objetivando
e projetado os sistemas da melhor forma um sistema produtivo e intera-
possível, o dever do/a permacultor/a é tivo;
expandir as influências e energias para • utilização de bordas e padrões
auxiliar outras pessoas no alcance desses naturais para um melhor efeito;
objetivos (Mollison; Slay 1998). • utilização e aceleração da suces-
Um projeto construído dentro da são natural de plantas, visando
ética da permacultura está alicerçado em o estabelecimento de áreas fa-
leis e princípios que podem ser adotados voráveis.
independentemente do clima, escala
ou condições culturais. Entretanto, as O desenho permacultural
técnicas podem ser alteradas conforme o Projetar envolve planejamento, im-
ecossistema e a cultura. Se o olhar estiver plantação e manutenção consciente de
nos princípios, veremos a multidisci- ecossistemas produtivos que tenham a
plinariedade que traz a permacultura, diversidade, a estabilidade e a resistência
sempre gerando uma evolução dos seus dos ecossistemas naturais. O desenho
próprios ensinamentos e jamais entrando permacultural é resultado da integração
em estagnação. das pessoas com a paisagem, com a fina-
Segundo Mollison e Slay (1998), lidade de prover alimentação, energia
esses princípios podem ser pontuados da e habitação, entre outras necessidades
seguinte forma: materiais e não materiais, de forma a
• localização relativa: cada ele- sustentar os habitats humanos. “Diver-
mento (estradas, horta, pomar sidade reduz a vulnerabilidade de uma
etc.) é posicionado em relação a variedade de ameaças e tira vantagens
outro, de forma que se auxiliem únicas da natureza e do meio ambiente
mutuamente; no qual ele reside” (Holmgren, 2002).
• cada elemento executa muitas O planejamento envolve buscar o
funções; maior número possível de informações
• cada função importante é apoia- da área onde será implantado o projeto
da por muitos elementos; permacultural. A compreensão dos ciclos
• planejamento eficiente do uso e sucessões que ocorre na natureza serve
P de energias para a casa e os as- como guia e inspiração ao/à permacul-
sentamentos (zonas e setores); tor/a. “Podemos ter um impacto positivo
• preponderância do uso de re- na mudança, sendo inevitável ao obser-
cursos biológicos sobre o uso de var cuidadosamente, e depois intervir
combustíveis fósseis; no momento certo” (Holmgren, 2002).
• reciclagem local de energia O projeto desenvolvido está relacio-
(ambas: as humanas e os com- nado ao sistema estrutural, conceitual
bustíveis); e estratégico do ambiente a ser trans-
• utilização e aceleração da suces- formado. Este planejamento leva em
são natural de plantas, visando consideração a estética, inspirada na
o estabelecimento de áreas fa- natureza, que nos transmite as formas
voráveis; e referências que resultarão em projetos

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P E R M A C U LT U R A

eficientes. O ambiente nos fornece in- esse formato no seu corpo protetor; ainda
formações preciosas que necessitam ser o encontramos no desenho projetado
lidas. Uma delas são os padrões naturais, pela onda do mar, nas nossas orelhas
que expressam formas e fluxos – tal como e em tantos outros lugares. Essa forma,
o mundo natural se organiza –, dando também pode ser utilizada para construir
ritmo à vida, num movimento dialético banheiros sem porta, espirais de ervas,
de constante ordem e desordem, sempre realizar a distribuição de um pomar no
procurando estabilidade. morro ou mesmo moradias. São exemplos
As formas geométricas encontra- de ambientes que, se bem pensados e
das nos ecossistemas vão para além das projetados, favorecem os fluxos de ener-
linhas retas. A natureza é formada por gia (sol, água, vento, matéria orgânica).
linhas sinuosas, como a borda de um Todo habitat humano necessita de
rio com a floresta, interface entre dois caminhos, vias de acesso, por onde circu-
ambientes altamente concentradores lam pessoas, animais, veículos motoriza-
de energia, nutrientes, matéria orgânica, dos ou não. Na natureza, a água percorre
recursos genéticos, entre outros. Se bem caminhos que formam pequenos dutos
observados, são locais produtores de d’água, de onde se originam os igarapés,
alimento, que beneficiam outras formas riachos, sangas, arroios e rios de vários
de vida, inclusive a humana. Observar tamanhos. Há um fluxo, ou seja, em cada
o efeito das bordas nos ecossistemas estágio há uma velocidade empregada
possibilita construir paisagens que se pelo elemento água, e essa velocidade é
assemelhem com estas estruturas na- condicionada pela topografia do terreno,
turais, permitindo aproveitar os fluxos que de acordo com a declividade forma
de energias, assim potencializando os as curvas do leito dos rios.
agroecossistemas a serem projetados. “A Ao observar as bacias hidrográficas,
interface entre as coisas é o local onde identifica-se um padrão, um comporta-
os eventos mais interessantes acontecem. mento das bacias, onde a vida é distri­
Estes são muitas vezes os elementos mais buída, formando suas cadeias alimen-
valiosos, diversos e produtivos no siste- tares e de sucessão. Nesse momento,
ma” (Holmgren, 2002). encontra-se o padrão dendrítico, tam-
As formas circulares e espiraladas bém observado na parte aérea e no siste-
são encontradas em diferentes lugares ma radicular das árvores, nos cristais, na
na natureza. Se cortarmos uma árvore, corrente sanguínea e descargas elétricas P
encontramos uma figura repleta de anéis, típicas dos trovões. O padrão dendrítico
que representa as estações de crescimento está ligado ao fluxo, perfeito para pensar
desse vegetal. Esse padrão pode ser usado as vias de acesso do território.
na construção de uma horta em forma de A natureza é uma fonte infinita
mandala (círculos), que será irrigada com de ensinamentos, e a observação é a
aspersores sem desperdício de água, ou base para acessá-los. Entretanto, o nível
uma sala de aula no formato de abóboda,4 de percepção humana vem se alteran-
para melhor aproveitamento do espaço, do com o modo de produção imposto
proporcionando eficiente circulação do ar. ­atualmente. O ser humano vem perden-
Os vegetais crescem na forma es- do o senso de orientação e a noção do
piralada, assim como os caramujos têm que os conecta com a teia da vida. Nesse

555
P E R M A C U LT U R A

sentido, pensar em unidades de conser- para identificar os fenômenos naturais


vação, partindo da lógica de locais de e as suas consequências; realizar uma
observação, faz sentido para visualizar os análise detalhada dos elementos ou
ciclos da natureza sem a interferência hu- componentes que o/a permacultor/a
mana, assim oportunizando uma leitura desejar introduzir na área; e distribuí-los
adequada dos ecossistemas, a fim de se no terreno entre as cinco zonas pré-es-
projetar e arquitetar a funcionalidade e tabelecidas pelo projetista.
a sustentabilidade dos agroecossistemas.
No planejamento do desenho, é O método da permacultura
importante entender a história do local, Os habitats humanos, sejam eles
seja ela oral, seja escrita, perpassando urbanos ou rurais, são projetados para
por aspectos sociais, ciclos econômicos, suprir suas necessidades básicas de mo-
catástrofes naturais tais como enchentes, radia, alimentação e energia, mantendo a
incêndios e outros. As pessoas com mais riqueza cultural e a sabedoria dos povos e
idade são ótimas informantes. As rela- das comunidades, garantindo que as ge-
ções sociais atuais têm que ser estudadas, rações futuras tenham como se satisfazer
problematizadas, para se compreender as das mesmas necessidades: “Colocando as
lógicas que estão dadas, a fim de se cons- coisas certas no lugar certo, as relações
truir métodos de diálogo para se avançar se desenvolvem entre eles e apoiam umas
em uma proposta que contribua para a às outras” (Holmgren, 2002).
emancipação dos sujeitos envolvidos. A identificação dos setores é usada
Outra questão importante são os na permacultura para posicionar todas
componentes físicos, nos quais devemos as energias que passam pelo ambiente,
buscar informações como temperatura, mas que as pessoas (ou os seres humanos)
umidade, índice pluviométrico, veloci­ não controlam ou que escapam ao con-
dade dos ventos, tipo de solo, topografia trole, tais como o sol, o vento, a chuva,
e outras, que muitas vezes estão arma- o fogo, a poeira, o barulho, o fluxo das
zenadas em estações meteorológicas, águas (incluindo enchentes) etc. Para
universidades e outros locais de pesquisa isso, podemos organizar um diagrama de
e ensino. Entretanto, se essas informações setores baseado na área a ser estudada.
não estiverem disponíveis, podemos de- Este diagrama é desenhado em forma de
senvolver formas para coletá-las: ter uma cunha, a partir do centro da atividade,
P biruta, um termômetro e um pluviômetro como a casa do camponês (ver Figura 12,
são instrumentos simples e de fácil acesso. adiante, p. 794).
Até mesmo nosso corpo pode servir como O método da permacultura procura
instrumento para aferir determinadas realizar uma análise cuidadosa dos ele-
condições climáticas (quente, frio, úmi- mentos ou componentes que desejamos
do, seco, vento forte ou fraco, se choveu ter no espaço. Todos esses aspectos são
muito ou pouco), desde que se construa fruto das observações, e ao introduzir um
uma metodologia para isto. elemento ou componente, deve-se obter
Para se implantar o projeto per- o maior conhecimento possível dele, suas
macultural, deve-se seguir os passos necessidades, o que ele produz e quais
propostos pelo método, que parte da suas características intrínsecas – aquilo
aplicação do planejamento de setores que é próprio de cada elemento.

556
P E R M A C U LT U R A

Se partirmos da casa de um cam- • Em que esse componente é


ponês que deseja criar galinhas, bovi- incompatível com outro com-
nos, suínos, peixes e plantar árvores ponente?
frutíferas, hortaliças e culturas anuais, O desenho permacultural tem que
ele vai necessitar de infraestrutura para ser funcional. Nesse sentido, toda função
produção de energia (elétrica, matéria deve ter pelo menos dois elementos (com-
orgânica...), armazenamento de água, ponentes) no sistema, e cada elemento
abrigo para animais e máquinas, entre deve ter pelo menos duas funções no
outros. Para tanto, deve-se fazer uma sistema (ver Figura 13, adiante, p. 794).
análise detalhada de cada um destes Para favorecer a manutenção do sis-
elementos, com o propósito de se realizar tema, os elementos devem ser alocados de
as conexões entre eles. modo a se autorregular o máximo possível,
Pode-se citar como exemplo desse visando minimizar o trabalho humano.
estudo detalhado o elemento minho- Para melhor distribuir os elementos e
cário, que necessita de insumos como posicioná-los de acordo com os setores, o
esterco, terra, água, minhocas, estrutura método da permacultura realiza o plane-
de suporte, sombra, dentre outros, bem jamento por zonas, que trata do posicio-
como seu manejo adequado. Como pro- namento dos elementos de acordo com
duto, têm-se húmus e minhoca, fonte de a quantidade ou a frequência em que os
proteína para outros animais, além de utilizamos ou necessitamos visitá-los. Por
outros produtos que desconhecemos no exemplo, áreas que precisam ser visitadas
momento da execução do projeto, mas todos os dias (estufa, galinheiro, horta) são
que podem ser aprendidos ao longo do localizadas mais próximas, enquanto locais
tempo. Já as características intrínsecas visitados com menos frequência (pomares,
desse elemento recaem sobre o tipo de pastagens, arvoredos) são posicionados em
minhoca, a estrutura, a alta produtivi- lugares mais distantes.
dade, dentre outras. Para posicionar elementos por zonas,
A análise de cada elemento que sempre é bom começar por um centro de
se deseja implementar tem a função de atividades. Geralmente – em se tratando
aprofundar o conhecimento do que este de camponeses – começa-se pela casa, já
produz e necessita, buscando aproximá- que é o local que as pessoas permanecem
-los de modo a se estabelecer conexões por mais tempo. Dentro de um desenho
entre eles. permacultural, geralmente dividimos a P
A distribuição dos elementos na área em cinco zonas de atividades, indo
área deve obedecer a topografia do terre- da zona zero à zona quatro. A zona cinco
no, bem como outras variáveis. Vejamos seria um espaço de controle da biodiver-
algumas “perguntas-chave” para a busca sidade local, não sofrendo interferência
de respostas em prol das conexões: dos seres humanos, como um local de
• Quais produtos desse compo- observação, com o propósito de se extrair
nente atendem às necessidades lições da natureza, a fim de se aprender
de outros componentes? a interferir nas outras zonas com mais
• Que necessidades desse com- coerência.
ponente são supridas por outro Para se definir o zoneamento, o méto-
componente? do leva em consideração o número neces-

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P E R M A C U LT U R A

sário de vezes para se visitar o elemento ou rural, basta se colocar em ação. “Siste-
componente. De maneira geral, podemos mas pequenos e lentos são mais fáceis de
dizer que zonas são formas abstratas, ou manter do que os grandes, fazendo uma
seja, é uma forma conveniente de lidar melhor utilização dos recursos locais que
com as distâncias. Podemos ressaltar que, produzem resultados mais sustentáveis”
na prática, as bordas de cada zona se mis- (Holmgren, 2002).
turam umas com as outras; a topografia e A permacultura é um dos principais
o acesso podem obrigar, em alguns casos, subsídios éticos e metodológicos para
que a área menos utilizada fique próxima um conceito que recentemente tem se
da casa. Por exemplo: se uma encosta ín- configurado nos movimentos populares
greme, composta por uma floresta, estiver e universidades, principalmente em
atrás da casa. assentamentos de reforma agrária: a
O método serve para construirmos “construção agroecológica” do espaço.
habitats humanos, dentro de uma racio- Sua conceituação abrange a permacultu-
nalidade, procurando maior resiliência ra e inclui aspectos econômicos e sociais
dos ambientes em prol do maior número da agroecologia, tais como a economia
de conexões entre os componentes (ele- solidária, a autogestão, a democracia e
mentos) projetados pelos seres humanos o poder popular, no manejo desaliena-
no ambiente [ver Tecnologia Social]. Um do de técnicas da bioconstrução como
projeto permacultural pode ser desenvol- afirmação da natureza e negação dos
vido por qualquer pessoa, independente processos capitalistas exploratórios do
da escala e do local, seja urbano, seja meio ambiente e dos seres humanos.

Referências
HOLMGREN, D. Permaculture: Principles and Pathways beyond Sustainability, 2002.
MOLLISON, B.; SLAY, R. M. Introdução à Permacultura. Tradução de André Luís Jaeger Soares. Brasília:
MA/SDR/PNFC, 1998. 204p.

Para saber mais


Para mais informações sobre a permacultura, consultar ou visitar os Centros de Permacultura espalhados
pelo Brasil. Entre estes, citamos: IPA – Manaus/MA; Ecocentro IPEC – Pirenópolis/GO; IPEP – Bagé/
RS; IPAB – Florianópolis/SC; GOIPB – Salvador/BA; IPEMA – Ubatuba/SP; IPERS – Porto Alegre/
RS; IPETERRAS – Irecê/BA; IPOEMA – Brasília/DF; OPA – Salvador/BA; IPC – Fortaleza/CE; entre
outros locais que desenvolvem a proposta da Permacultura.
P MORROW, R. Permacultura passo a passo. Tradução de André Luís Jaeger Soares. Publicação coordenada
pelo Ecocentro IPEC, 2000. 155p.
LEGAN, L. A escola sustentável – Eco-alfabetizando pelo ambiente. São Paulo: Impressão oficial, 2004, 171p.

Notas
1
Bruce Charles Mollison, conhecido por Bill Mollison, naturalista, pesquisador, cientista e professor,
é considerado o pai, com David Holmgren, da permacultura. Nasceu na Tasmânia, Austrália, no
ano de 1928, e faleceu em 2016, aos 88 anos.
2
David Holmgren, ecologista, escritor e co-criador do conceito permacultura. Em conjunto com
Bill Mollison, que foi seu co-orientador no curso de Design, surgiu o embrião do que mais tarde
seria o livro Permaculture One, publicado pela primeira vez na Austrália em 1978, pela Transworld
Publishers Pty Ltd. Outra obra escrita por David no ano de 2002 é o livro Permaculture: priciples &
pathways beyond sustainability, no qual aprofunda os princípios dos sistemas sustentáveis com base
nas vivências e prática da Permacultura. Nasceu em 1955 e atualmente vive na Austrália.
3
Ahmad Ali Sharif, formado em História na Inglaterra. Em 1984 foi aluno de Bill Mollison em um
curso de permacultura nos Estados Unidos; a partir daí dedicou-se às ideias da permacultura, sendo

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P L A N TA S M E D I C I N A I S E F I T O T E R Á P I C O S N A S A Ú D E P Ú B L I CA

responsável pela formação de diversos institutos na América Latina, fundador e coordenador da


PAL (Permacultura América Latina) e pela formação da Rede Brasileira de Permacultura. Nasceu
em 1953 e faleceu em agosto de 2017.
4
Abóbada é um tipo de cobertura curva, em forma de arco, usada em construções de todo tipo,
grandes ou pequenas. Pode ser feita de alvenaria de tijolos, pedra, até mesmo de lajes pré-fabricadas
ou ainda de madeira e sapé. Como possui maior altura que um telhado ou laje comum, permite a
circulação interna do ar com maior facilidade. Outro aspecto é seu custo, menor do que um telhado
com planos retos, seja ele de madeira e telhas de barro cozido ou laje, pois sinergicamente sua forma
estrutural é a mais econômica, dado que os materiais com seu peso se apoiam uns sobre os outros,
conferindo à construção o desenho curvo, até encontrar o chão, podendo ser tão fina quanto uma
casca de ovo. Sua beleza é conferida pela ancestralidade estética, pois está presente em povos de
todo o planeta, além de nos remeter ao útero materno, e sua proteção.

PLANTAS MEDICINAIS E
FITOTERÁPICOS NA SAÚDE PÚBLICA
M ar ia C onsolación Udry

Este texto apresenta conceitos ado- medicina, em particular no Ocidente,


tados para plantas medicinais e fitoterá- nos permite compreender o papel do
picos, medicina popular e conhecimento conhecimento tradicional ao longo do
tradicional. Abordaremos, ainda, de forma desenvolvimento científico e tecnoló-
sintética, o histórico do uso de plantas gico da medicina que vigora até os dias
medicinais e fitoterápicos na saúde pública, atuais. Hipócrates e Galeno estabelece-
destacando os avanços com a criação da ram o início das duas grandes correntes
“Política Nacional de Plantas Medicinais médicas filosóficas. Hipócrates (460-377
e Fitoterápicos (PNPM)” (Brasil, 2006a) e a. C.) se baseava no poder da cura através
da “Política Nacional de Práticas Integra- da própria natureza, utilizando plantas
tivas e Complementares (Pnipic)” (Brasil, medicinais, águas minerais, nos mesmos
2006b). Tais políticas têm como objetivo a princípios da homeopatia. A corrente P
universalização do acesso às plantas medi- de Galeno (131-200 a. C.) combatia as
cinais e fitoterápicos e práticas integrativas doenças por meio de substâncias que
no âmbito do Sistema Único de Saúde se opunham aos sintomas das doenças,
(SUS) (Brasil, 2009). Vale lembrar que constituindo as bases da atual corrente
essas políticas resultaram de um processo tecnicista alopática, construindo com isso
de participação democrática envolvendo a medicina do racionalismo científico.
múltiplos coletivos e estão asseguradas com Com a chegada do século XIX, na medi-
a Constituição de 1988. cina racionalista, os recursos terapêuticos
É desnecessário mencionar que o uso eram predominantemente plantas para a
de plantas medicinais é tão antigo quan- obtenção dos extratos vegetais. Esse fato
to a história do homem. A evolução da pode ser ilustrado com a Farmacopeia

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P L A N TA S M E D I C I N A I S E F I T O T E R Á P I C O S N A S A Ú D E P Ú B L I CA

Geral para o Reino e domínios de Portugal conhecimentos e práticas tradicionais


em 1824, de acordo com Pita (2014), em para promoção da saúde é a principal
que constavam mais de 400 espécies razão pela qual aumenta a importância de
vegetais. As plantas medicinais e seus ampliar o uso da medicina tradicional e
extratos constituíam a maior parte dos popular no Brasil – país de grande cultura
medicamentos que provinham do uso e rica biodiversidade.
tradicional, e pouco se diferenciavam dos O que nos preocupa na evolução da
remédios utilizados na medicina popular. ciência e da industrialização é o fato de
A grande cisão na medicina, no uso os nossos países ricos em biodiversidade,
terapêutico de plantas medicinais e fito- ou por vontade própria ou por pressão,
terápicos, ocorreu com a chegada da cha- terem liberado o uso de tudo que é recurso
mada “revolução industrial” e a evolução natural em nossos territórios, para ser
da química no século XIX. Nesse período usado livremente pelos países centrais. Ao
desenvolveu-se a indústria, que passou a mesmo tempo, o mundo central, de posse
utilizar os princípios ativos das próprias do conhecimento científico, patenteia
plantas e, posteriormente, a reproduzir, os seus produtos, bloqueia o acesso ao
sinteticamente, a substância ativa isolada. conhecimento, monopoliza o mercado
A evolução da indústria farmacêutica re- e, ainda, continua utilizando livremente
sultou na produção industrial em grande os nossos recursos naturais, inclusive as
escala dos medicamentos, propiciando a plantas medicinais. Ou seja, segundo
constituição de oligopólios fármaco-quí- dados do Instituto Nacional de Proprie-
micos no âmbito internacional. Em 1996, dade Industrial (Inpi), 94,2% das patentes
o Brasil entrou para o Acordo OMC e concedidas sobre fármacos desenvolvidas
reconheceu as patentes de medicamentos a partir de 278 plantas nativas brasileiras
e alimentos, induzindo à perda gradativa pertenciam a empresas e instituições de
da indústria nacional e à formação de pesquisa estrangeiras. Apenas 5,6% eram
monopólios e oligopólios internacionais. detidas por empresas e universidades
A legislação sanitária, atualmente sob co- brasileiras (Moreira et al., 2006), sendo
mando da Agência Nacional de Vigilân- que mais de 90% das patentes sobre pro-
cia Sanitária (Anvisa), ao estabelecer nor- dutos incluindo fármacos pertence aos
mas equivalentes aos mercados centrais, EUA, Japão e países europeus. Brasil,
acabou apoiando a exclusão não apenas México, Colômbia, Indonésia, Índia e
P das indústrias nacionais de medicamentos outros (os países que abrigam a maior
fitoterápicos mas também quase todas riqueza de biodiversidade do planeta) se
as indústrias farmacêuticas nacionais. A tornaram dependentes das tecnologias,
mesma agência, ainda, proibiu o uso de em especial dos produtos farmacêuticos
plantas medicinais e fitoterápicos tradi- dos países centrais. A Convenção da
cionais no SUS, exceto uma lista restrita Diversidade Biológica (CDB) assinada
de plantas predominantemente exóticas. durante a Eco-92 tentou estabelecer no-
Essa política colocou o país em depen- vas regras de negociação internacional,
dência quase total de insumos e produtos incluindo o reconhecimento do recurso
farmacêuticos fornecidos e controlados genético como patrimônio nacional e
por oligopólios internacionais. Assegurar dos povos e comunidades detentores
os recursos terapêuticos com base nos do conhecimento tradicional no uso da

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biodiversidade. No entanto, vários países da com propósitos terapêuticos (World


não homologaram esta convenção pelos Health Organization, 2002).
seus parlamentos, incluindo os EUA, im- 2. O medicamento fitoterápico é todo
pedindo, portanto, grandes avanços dos medicamento farmacêutico tecnicamente
direitos das comunidades desses países. obtido e elaborado, empregando-se exclu-
No Brasil, está em vigor a Lei n. sivamente matérias-primas ativas vege-
13.123/2015 (Brasil, 2015), que estabelece tais, com finalidade profilática, curativa
as condições de acesso aos recursos gené- ou para fins de diagnóstico, com benefício
ticos e aos conhecimentos tradicionais para o usuário, e é apresentado como
associados, e atualmente é o instrumento produto acabado, embalado e rotulado.
que tenta dar credibilidade à CDB. Tal lei Caracteriza-se pelo conhecimento da efi-
estabelece um cadastro para as atividades cácia e dos riscos de seu uso, assim como
de pesquisa e assegura a repartição de pela reprodutibilidade e constância da sua
benefícios no caso de exploração econô- qualidade. Na sua preparação, podem ser
mica. É importante destacar que essa lei utilizados adjuvantes farmacêuticos per-
adota a definição legal de “comunidade mitidos pela legislação vigente, mas não
tradicional” no Brasil, prevista no Decreto substâncias ativas de outras origens. Não é
n. 6.040/2007 (Brasil, 2007), que instituiu considerado produto fitoterápico qualquer
a Política Nacional de Desenvolvimento substância ativa, ainda que de origem
Sustentável de Povos e Comunidades vegetal, isolada, ou mesmo suas misturas.
Tradicionais (Brasil, 2007). A Conven- Esta definição consta da Resolução n. 17,
ção 169 da Organização Internacional de 24 de fevereiro de 2000, da Agência
do Trabalho (OIT) assegura aos povos Nacional de Vigilância Sanitária (2000).
indígenas e comunidades tradicionais o 3. A medicina popular é entendida
direito de consulta prévia sobre medidas como uma prática cultural realizada em
que os afetem diretamente. diferentes circunstâncias e espaços (em
Em síntese, o Decreto n. 6.040/2007 casa, nos espaços religiosos de cura) e por
(Brasil, 2007), que define e reconhece Po- várias pessoas (pais, tios, avós) ou por pro-
vos e Comunidades tradicionais e seus co- fissionais populares de cura (benzedeiras,
nhecimentos, a Lei n. 13 123/2015 (Brasil, médiuns, raizeiros, ervateiros, parteiras,
2015), que implementa a CDB, o Protocolo curandeiros, feiticeiros). Nessa perspec-
de Nagoya e a Convenção 169 da (OIT) tiva, é uma prática de cura barata que
são os principais instrumentos institucio- oferece respostas concretas aos problemas P
nais que asseguram os direitos e deveres, de doenças do dia a dia; pressupõe ajuda
bem como o acesso e o uso de plantas e solidariedade, aproxima e fortalece as
medicinais pelas comunidades e povos relações sociais entre as pessoas. A me-
indígenas, e a distribuição de benefícios do dicina popular preservou um espaço no
uso do conhecimento tradicional para fins qual os cientistas e pessoas do povo, ao
de exploração econômica (Santilli, 2015). produzirem um diálogo com a natureza,
extraíram dela os seus benefícios, que
Os principais conceitos adotados são constantemente transformados e
neste texto modificados (Lameira; Pinto, 2008). As
1. A planta medicinal compreende pesquisas demonstram que a medicina
espécie vegetal cultivada ou não, utiliza- popular sobrevive no interior mesmo das

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P L A N TA S M E D I C I N A I S E F I T O T E R Á P I C O S N A S A Ú D E P Ú B L I CA

grandes cidades ou na periferia delas, do grau da evolução cultural do homem


pois ela é parte inseparável da identidade com seu ambiente, cuja interação produz
cultural, um processo histórico vivo e conhecimento por meio de processos con-
atual. Ela veicula uma determinada visão tínuos e dinâmicos (Udry; Eidit, 2015).
de mundo, de doença, de organismo e de 7. O Sistema Único de Saúde (SUS)
saúde (Oliveira, 1985). representa o processo de gestão descentra-
4. Remédios caseiros são prepara- lizada para implantar a Política de Saúde
ções que utilizam plantas medicinais e/ no Brasil, com as garantias asseguradas
ou substâncias derivadas de animais e pela Constituição de 1988. Saúde é o es-
insumos como cachaça, vinho entre tado de completo bem-estar físico, mental
outras. A sua denominação faz referência e social, e não simplesmente a ausência
à tradição, por terem sido desenvolvidos de doença ou enfermidade. É um direito
originalmente em casa. Posteriormente se humano fundamental, e a consecução do
organizaram para a produção em grupos mais alto nível possível de saúde é a mais
comunitários para a preparação de remé- importante meta social mundial, cuja
dios caseiros, a exemplo da farmacinha realização requer a ação de muitos outros
comunitária organizada pela Articula- setores sociais e econômicos, além do
ção Pacari, consolidada no documento setor de saúde. A Carta de Ottawa para
Farmacopeia Popular do Cerrado (Farma- promoção de saúde, de 1986, reconhece
copeia, 2009). a paz, a educação, a habitação, o poder
5. A medicina tradicional com­ aquisitivo, o ecossistema estável, a con-
preende diversas práticas, enfoques, co- servação dos recursos naturais, a justiça
nhecimentos e crenças sanitárias que social e a equidade como pré-requisitos
incluem plantas, animais e/ou medica- fundamentais para alcançar patamares de
mentos baseados em minerais, terapias saúde aceitáveis. A Constituição Brasilei-
espirituais, técnicas manuais e exercí- ra de 1988 adotou os conceitos de Alma
cios, aplicados individualmente ou em Ata e da Carta de Otawa, no capítulo da
combinação para manter o bem-estar, saúde (Brasil, 1988).
além de tratar, diagnosticar e prevenir as
enfermidades (World Health Organiza- Relação entre a política da
tion, 2002). Organização Mundial de Saúde
6. O conhecimento tradicional é (OMS) e a política nacional de
P entendido como o conhecimento local plantas medicinais e fitoterápicos
e exclusivo de determinada cultura, e é Uma somatória de fatores tem fa-
a base para a tomada de decisões, em vorecido a ampliação do uso de plantas
âmbito local, na agricultura, saúde, ali- medicinais, fitoterápicos e seus usos tradi-
mentação, educação, gestão dos recursos cionais nas últimas décadas. Em primeiro
naturais e em várias outras atividades nas lugar, os efeitos negativos do uso intensivo
comunidades rurais. O que caracteriza e continuado de medicamentos químicos
o conhecimento tradicional é a especi- sintéticos na saúde humana. A crise am-
ficidade de uma cultura ou sociedade, biental e a influência das filosofias orien-
e está enraizado nos relacionamentos, tais (medicina ayurvédica e a medicina
nos rituais, nas práticas comunitárias e tradicional chinesa) contribuíram para o
nas instituições. É um grande indicador ressurgimento da medicina natural.

562
P L A N TA S M E D I C I N A I S E F I T O T E R Á P I C O S N A S A Ú D E P Ú B L I CA

Além disso, a Organização Mundial em 1971 (Brasil, 1971) para a construção


de Saúde (OMS) constatou que o Estado de uma autonomia em relação aos insu-
de Bem-Estar não atendia igualmente a mos farmacêuticos e assistência primária
todas as nações; pois as nações periféri- à saúde. A Ceme coordenou em âmbito
cas não conseguiam suprir as condições nacional, durante 20 anos, pesquisas com
de saúde de suas populações (Goulart, plantas medicinais a partir de extensivos
1996). A medicina tradicional e a popular levantamentos do uso tradicional de plan-
supriam cada vez mais a necessidades tas em todo o país e conseguiu, ao longo
de cuidados com a saúde da população deste período, criar capacitação científica
pobre e/ou excluída do sistema formal de e estabelecer infraestrutura científica
saúde. Esse fato levou a OMS a aprovar tecnológica para o desenvolvimento da
um Programa de Medicina Tradicional pesquisa de produtos fitoterápicos (Brasil,
e Cuidados com a Saúde (Word Health 2006c). Até sua extinção, em 1997, 74
Organization, 2002), que estabeleceu que espécies tinham sido selecionadas para
a “OMS colaborará com os estados mem- serem incluídas no SUS. Essas pesqui-
bros na revisão das políticas nacionais, sas foram interrompidas um ano após a
legislação e decisões relativas à natureza assinatura e reconhecimento pelo Brasil
e extensão de uso de medicina tradicional do Tratado da Organização Mundial do
nos seus sistemas de saúde”. Nesse caso, o Comércio (OMC). O país, a partir de
principal objetivo deveria ser o reconhe- 1996, passou a reconhecer as patentes
cimento da medicina tradicional como sobre medicamentos e alimentos.
parte integrante do sistema nacional de Entre os avanços do PPPM, destaca-
saúde, a cooperação entre a medicina mos o programa Farmácias Vivas, criado
tradicional e a alopática, a promoção e sob a coordenação do farmacêutico
o uso racional dos produtos, a promoção e professor J. Matos, da Universidade
da pesquisa e o desenvolvimento de me- Federal do Ceará (UFC). O Guia de
didas reguladoras e a introdução de um seleção e emprego de plantas usadas em
sistema seguro da qualidade. Os critérios fitoterapia no Nordeste do Brasil indicava
para a seleção dos fitoterápicos essenciais a metodologia utilizada para seleção de
deveriam ser principalmente segurança, plantas, as técnicas de preparação e as
eficácia, necessidade de saúde e disponi- formas de utilização em obediência aos
bilidade para o abastecimento. preceitos da fitoterapia científica. A
O Brasil, como país signatário das metodologia abrange três áreas: agrícola P
Nações Unidas e atendendo às recomen- (cultivo e manejo sustentável das plantas
dações da OMS, por meio do Ministério medicinas); farmacêutica (elaboração
da Saúde, criou a Política Nacional de dos fitoterápicos, dosagem e critérios
Plantas Medicinais e Fitoterápicos (Brasil, para avaliação de qualidade, toxidade e
2006a) e a Política Nacional de Práticas eficácia); e médica (aceitação pela classe
Complementares e Integrativas (Brasil, médica do conhecimento tradicional
2006b). As bases para a criação dessas para cura depois de validado cientifi-
políticas tiveram início em 1982, com o camente). Plantas medicinais: guia de
Programa de Pesquisa de Plantas Medi- seleção e emprego de plantas usadas
cinais (PPPM) no âmbito da Central de em fitoterapia no Nordeste do Brasil,
Medicamentos (Ceme), que fora criada apresenta a metodologia desenvolvida

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P L A N TA S M E D I C I N A I S E F I T O T E R Á P I C O S N A S A Ú D E P Ú B L I CA

e monografias das 74 plantas cientifi- medicinais e fitoterápicos, promovendo


camente validadas como medicinais o uso sustentável da biodiversidade, o
disponíveis no Nordeste (Matos, 1989). desenvolvimento da cadeia produtiva
O programa Farmácias Vivas, ao quali- e da indústria nacional” através de: 1)
ficar cientificamente o uso de plantas aperfeiçoar o marco regulatório sanitá-
medicinais, se constitui como um dos rio e ambiental em todas as etapas da
modelos metodológicos de referência no cadeia produtiva, de plantas medicinais
uso de plantas medicinais tradicionais e fitoterápicos, a partir de modelos e
validadas por pesquisa, para uso no SUS. experiências científicas e tecnológicas
O resultado da construção do programa existentes no Brasil e em outros países; 2)
de base municipal e da difusão dessa promover a adoção das boas práticas de
metodologia do programa Farmácias manejo, cultivo (de preferência orgâni-
Vivas espalhou-se por todo o país (Ma- co), manipulação e produção de plantas
tos, 1994), viabilizando a construção de medicinais e fitoterápicos; 3) desenvolver
uma autonomia em relação aos insumos instrumentos de fomento à pesquisa e
farmacêuticos e assistência primária à de tecnologias e inovações, nas diversas
saúde. Desde a década de 1990, inúmeros fases da cadeia produtiva; 4) aperfeiçoar
projetos de plantas medicinais e fitote- a formação técnico-científica dos re-
rápicos foram implantados em âmbito cursos humanos que atuam no setor de
municipal no SUS com o movimento plantas medicinais e fitoterápicos; e 5)
dos profissionais de saúde pela Fitotera- inserir plantas medicinais, fitoterápicos
pia no SUS. No entanto, os programas e serviços relacionados à fitoterapia no
sofriam descontinuidade política, com Sistema Único de Saúde (SUS), com
as mudanças ideológicas dos gestores segurança, eficácia e qualidade.
municipais. Importantes programas – As bases institucionais em direção
como o de Curitiba, Vitória, Brasília, e ao acesso universal de atendimento bá-
somando, ainda, mais de 60 experiências sico a saúde na assistência farmacêutica
bem-sucedidas em programas municipais com plantas medicinais e fitoterápicos
de plantas medicinais e fitoterápicos – estão estabelecidas e asseguradas a par-
sofreram descontinuidade. tir da “Política Nacional de Práticas
Assim, a base institucional foi cria- Complementares e Integrativas” e da
da através do Decreto n. 5.813 de 22 “Política Nacional de Plantas Medicinais
P de junho de 2006 (Brasil, 2006a), que e Fitoterápicos”. Com essas ações em
aprova a Política Nacional de Plantas prática, é possível avançar no SUS. No
Medicinais e Fitoterápicos; e da Por- entanto, é necessário que os movimentos
taria Interministerial n. 2.960, de 9 sociais, os profissionais de saúde pública
de dezembro de 2008 (Brasil, 2008), e os pesquisadores assumam cada vez
que aprova o Programa Nacional de mais seus papéis para assegurar tanto a
Plantas Medicinais e Fitoterápicos e continuidade das práticas da medicina
cria o Comitê Nacional de Plantas Me- popular quanto a implantação defini-
dicinais e Fitoterápicos. O Programa se tiva das políticas que visam assegurar a
propõe a atingir o objetivo da Política autonomia do país na assistência básica
de “garantir à população brasileira o de saúde, em que as plantas medicinais
acesso seguro e o uso racional de plantas e os fitoterápicos têm um papel central.

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Referências
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2000. Dispõe sobre o registro de medicamentos fitoterápicos. 2000. Diário Oficial da União 25/02/2000.
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_______. Lei n. 13.123 de 20 de maio de 2015. Regulamenta o inciso II do § 1º e o § 4º do art. 225 da
Constituição Federal, o Artigo 1, a alínea j do Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§
3º e 4º do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto n. 2.519,
de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao
conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso susten-
tável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001; e dá outras
providências. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13123.
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POLÍTICA AGRÁRIA

SANTILLI, J. Biodiversidade, agrobiodiversidade e conhecimentos tradicionais associados. O novo


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Para saber mais


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GOULART, F. A. de A. Política de saúde contemporânea no Brasil – o SUS. Artigo 1999.
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POLÍTICA AGRÁRIA

L eonilde de M edeiros

Políticas agrárias são medidas go- diferencial, relacionada à qualidade


vernamentais que incidem sobre as do solo, proximidade do mercado etc.
condições de acesso ao uso, posse e (Marx, 1974). Assim, quando falamos
propriedade da terra. Estão intima- em políticas agrárias, remetemos a dis-
mente relacionadas a outras políticas, putas entre grupos/classes sociais pela
tais como as de incentivo à produção, apropriação/capitalização da renda fun-
P preservação dos recursos naturais ou de diária, que nada mais é que mais-valia
garantias de direitos sociais e políticos social acumulada [ver Renda da Terra].
aos que vivem no campo. Neste verbete, sintetizamos as prin-
No capitalismo, a terra torna-se cipais formas assumidas pelas políticas
equivalente de mercadoria, uma mer- agrárias no Brasil, a partir do momento
cadoria singular que não pode ser pro- em que a questão agrária se constitui
duzida pelo trabalho. Trata-se da apro- como problema público, trazido à tona
priação privada de um bem comum [ver por diferentes grupos sociais e tratado
B em C omum], geradora de uma forma mediante intervenção do Estado, vi-
de renda fundiária chamada por Marx sando regular o acesso à propriedade
de absoluta, derivada da propriedade, fundiária. Isso se deu em especial em
em contraste com as formas de renda contextos de crítica social à concen-

566
POLÍTICA AGRÁRIA

tração de terras, constitutiva da nossa de negros escravizados; iniciativas do


sociedade. governo imperial para atrair imigrantes
As políticas agrárias assumiram europeus com o objetivo de substituir
diferentes formas, em diferentes mo- o trabalho escravo nas lavouras do
mentos históricos: programas de co- café, então em plena expansão; e a Lei
lonização; assentamento de trabalha- de Terras de 1850 (Brasil, 1850), que
dores sem-terra; estímulo ao acesso de regulamentou o direito de proprieda-
trabalhadores à terra via mecanismos de, previsto na Constituição de 1822,
de mercado; regularização fundiária; tornando a terra equivalente de mer-
reconhecimento de direitos territoriais cadoria (Martins, 2010). Essa lei deixou
a povos e comunidades tradicionais marcas profundas na história brasileira,
[ver Povos e C omunidades Tradicionais], se tornando instrumento de concentra-
envolvendo inclusive demarcação de ção fundiária na medida em que criou
terras indígenas; preservação ambien- barreiras para que tanto os imigrantes
tal, entre outras. A estas ações que recém-chegados quanto ex-escravizados
facilitam acesso aos que demandam e trabalhadores livres e pobres pudes-
acesso à terra ou permanência em ter- sem acessar a propriedade da terra por
ras tradicionalmente ocupadas, se so- outro meio que não a compra. Como
brepõem ou se articulam outras, que regra geral, restou-lhes o apossamento.
induzem à concentração fundiária. É Paralelamente, em algumas regiões do
o caso da concessão de terras públicas país foram instalados núcleos de coloni-
para pessoas físicas ou grupos empre- zação nos quais migrantes estrangeiros
sariais, incentivos fiscais ou creditícios acessavam terra mediante compra de
para empresas que elaborem projetos lotes com apoio do Estado imperial
de aproveitamento de terras, criação de (Martins, 1973; Santos, 1978).
perímetros irrigados etc. Essas formas Mesmo com a lei exigindo o registro
se combinam, competem entre si ou se de propriedade, a apropriação, pelos
sucedem. Suas variações derivam das grandes proprietários, de terras devolu-
relações de força entre classes e gru- tas e/ou públicas, visando ampliar seus
pos sociais e apontam para diferentes domínios, foi bastante comum. Pelo
regimes de propriedade (privada, com mecanismo conhecido como “grilagem”,
controle de pessoas físicas ou jurídicas; registravam uma parcela, mas apossa-
da União, algumas vezes com outorga vam-se de áreas vizinhas muito maiores, P
mediante concessão de uso; da União, ou simplesmente se apropriavam das
mas com exclusão de uso, como é o terras consideradas como devolutas. Em
caso das unidades de conservação etc.) ambos os casos as populações que nelas
e diversas formas de uso. viviam eram expulsas, em geral brancos
pobres, caboclos, negros ou indígenas.
Momentos fundantes Equacionaram-se assim os meca-
Tomamos como momento fundan- nismos básicos da política agrária que
te das políticas agrárias no Brasil os marcaram nossa história: ausência de
primeiros anos da segunda metade do limites para a concentração fundiária,
século XIX, quando três iniciativas se mas, em situações especiais, facilitação
entrelaçaram: proibição da importação de acesso à terra a lavradores pobres em

567
POLÍTICA AGRÁRIA

áreas consideradas estratégicas para a criados no entorno da cidade do Rio


política governamental, quer por ques- de Janeiro, visando formar um cinturão
tões geopolíticas, quer por necessidade verde para abastecer a capital federal.
de abastecimento alimentar, como foi o Neste caso, a política agrária tentava
caso dos projetos de colonização levados resolver a carência e os preços altos dos
a efeito na proximidade de alguns cen- alimentos, problemas para as cidades
tros urbanos, tanto no Império quanto em crescimento por efeito da incipiente
no período getulista. industrialização.
Nesse quadro de favorecimento da
grande propriedade, caíram no vazio Reforma agrária como alternativa
político, na segunda metade do século No pós-guerra, iniciou-se um
XIX, as demandas por distribuição de amplo debate sobre a necessidade de
terras aos escravos libertos. Nas pri- ­desenvolver e modernizar a economia
meiras décadas do século XX, voltou ao e a sociedade brasileira, colocando em
debate político o tema da necessidade xeque o papel do “latifúndio”, grande
de modificação da estrutura fundiária, propriedade considerada atrasada e ca-
desta vez estimulado por um grupo de racterizada por relações de exploração
jovens militares, os “tenentes”, que a e opressão. Paralelamente, as lutas por
viam como caminho para romper com terra, recorrentes na história brasileira
o controle que os grandes proprietários e protagonizadas por posseiros e por
exerciam sobre a política nacional, segmentos que viviam no interior das
mediante dominação social e política propriedades pagando uma taxa (“foro”,
sobre as populações interioranas e, “arrendo”, “meia”, conforme o local),
consequentemente, sobre seu voto (Ca- iniciaram um processo de articulação,
margo, 1981). trazendo para a pauta política nacional
Com a chegada de Getúlio Vargas o tema da reforma agrária. Explicitou-se
ao poder em 1930, foram tomadas a polarização entre as forças que apoia-
medidas para ocupar áreas de fronteira vam medidas, mesmo que parciais, de
com projetos de colonização, voltados reforma agrária (que aparecia no debate
para trabalhadores nacionais, sem-ter- público em diferentes versões) e os re-
ra ou com pouca terra: a marcha para presentantes dos grandes proprietários,
o Oeste (Lenharo, 1985; Santos, 1993). que se opunham a qualquer mudança
P Essa iniciativa, embora limitada e sem na estrutura fundiária e advogavam
efeitos sobre a concentração da terra e apoio do Estado para a modernização
o poder das oligarquias agrárias, atraiu das unidades produtivas como solução
lavradores de diversos pontos do país, para as tensões sociais no campo e para
que, sem conseguir acesso a um lote as recorrentes crises de abastecimento.
oficial, foram se estabelecendo como As disputas que se travaram envol-
posseiros nas cercanias das colônias viam possibilidades políticas de diferen-
agrícolas criadas pelo governo. Não por te amplitude: reformar a Constituição
acaso, anos depois, tornaram-se focos de 1946 (Brasil, 1946), permitindo a
de conf lito, em razão do avanço da desapropriação com pagamento das
grilagem sobre essas terras. O mesmo terras em título da dívida pública?1
se deu com os núcleos de colonização Fazer uma reforma agrária na marra,

568
POLÍTICA AGRÁRIA

com base em uma ampla mobilização tantes de entidades empresariais tanto


camponesa? Modernizar as grandes rurais como urbanas. A articulação
propriedades, buscando transformar política dessas entidades com setores
o “latifúndio” em empresa de forma a militares se intensificou, culminando
provocar a modernização tecnológica e na derrubada do governo João Goulart
também das relações sociais, em espe- (Camargo, 1981; Medeiros, 1989).
cial as que diziam respeito às questões
de trabalho? Regular relações tensas, A política agrária do regime
como o arrendamento e parceria? empresarial-militar: apoio à
No plano local, os embates se inten- grande propriedade e projetos de
sificavam, com resistências de posseiros; colonização na fronteira
emergência de conf litos envolvendo Paralelamente à brutal repressão
arrendatários e foreiros; ocupações de tanto sobre lideranças e organizações
terra (mais frequentes após a realiza- camponesas quanto sobre trabalhadores
ção do Congresso Camponês de Belo que viviam nos locais de conflito, já em
Horizonte, em novembro de 1961). O novembro de 1964 houve duas mudanças
acirramento das lutas no campo levou importantes que deram as balizas legais da
a que alguns governos estaduais buscas- política agrária brasileira dali em diante.
sem saídas pontuais para os conflitos Em 9 de novembro de 1964, foi
emergentes. Foi o que aconteceu em aprovada a Emenda Constitucional
São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de 10 (Brasil, 1964b), que dava à União
Janeiro, Pernambuco, Goiás, onde, sob poderes para desapropriar imóveis ru-
o nome de “projetos de colonização” ou rais localizados em “zonas prioritárias
de “revisão agrária”, áreas foram desa- de reforma agrária”, a serem fixadas
propriadas em benefício de posseiros ou pelo Poder Executivo, a partir de um
de trabalhadores sem-terra. cadastro rural a ser implementado. O
No plano federal, foi criada, em pagamento seria feito mediante “prévia
outubro de 1962 (Brasil, 1962) a Su- e justa” indenização em títulos da dívi-
perintendência de Política Agrária da pública, com cláusula de correção
(Supra), com a finalidade de elaborar monetária e resgatáveis em 20 anos, em
instrumentos legais e institucionais parcelas anuais. As benfeitorias seriam
para tratar do tema. Sob a sua iniciativa pagas em dinheiro. A mesma emenda
foram desapropriadas algumas áreas de estabelecia que as unidades da federa- P
conflito e nelas assentadas famílias de ção assegurariam aos posseiros de terras
trabalhadores. Em 13 de março de 1964, devolutas que nelas tivessem morada
um decreto da Supra determinou a de- habitual, preferência para aquisição de
sapropriação de uma faixa de 10 quilô- até cem hectares. Determinava ainda
metros às margens das rodovias federais que, sem prévia autorização do Senado
(Brasil, 1964a). Mesmo excluindo áreas Federal, não se faria qualquer alienação
inferiores a 500 hectares, bem como ou concessão de terras públicas, com
imóveis maiores do que esse limite, área superior a três mil hectares, sal-
desde que adequadamente aproveitados, vo quando se tratasse de execução de
o decreto foi lido como uma ameaça ao planos de colonização aprovados pelo
direito de propriedade pelos represen- governo federal.

569
POLÍTICA AGRÁRIA

Logo em seguida, foi aprovado o zação; estímulo ao cooperativismo e


Estatuto da Terra (ET), Lei n. 4.504, à agroindústria; eletrificação rural;
de 30 de novembro de1964 (Brasil, melhoria de infraestrutura. Estabele-
1964c), sinalizando para desapropria- cia-se ainda a tributação progressiva da
ções pontuais em áreas de conf lito, propriedade, de forma a criar constran-
mas também para um novo modelo gimentos aos imóveis não produtivos
de agricultura, alinhado com a visão (Medeiros, 2002).
desenvolvimentista dos militares e das Uma importante inovação foi a
forças civis que lhes deram apoio. Eram introdução do conceito de função so-
enumeradas como áreas prioritárias cial da propriedade, cumprida quando
para desapropriação aquelas com pre- o imóvel fosse explorado de modo a
domínio de minifúndios e latifúndios; favorecer o bem-estar dos proprietários
as já beneficiadas por obras públicas e dos trabalhadores; mantivesse níveis
ou prestes a serem; aquelas cujos do- satisfatórios de produtividade; conser-
nos se recusassem a adotar normas de vasse os recursos naturais; observasse
conservação dos recursos naturais; as as disposições legais que regulavam as
destinadas a empreendimentos de co- relações trabalhistas (Medeiros, 2002).2
lonização; e as com elevada incidência Foram ainda regulamentados os con-
de arrendatários, parceiros e posseiros. tratos de arrendamento e parceria, que
Além disso, traduziu para termos legais haviam se tornado importante focos de
algumas categorias que haviam adquiri- tensão antes do golpe e eram baseados
do sentido político nos anos anteriores, em costumes locais.
categorizando os imóveis rurais como O ET (Brasil, 1964) também previa
minifúndios (propriedades com área projetos de colonização a serem levados
inferior a um módulo); latifúndios por a efeito pelo poder público em áreas
exploração (entre um e 600 módulos, inexploradas, ou próximas a grandes
inadequadamente explorados em rela- centros de consumo e a eixos rodoviá-
ção às possibilidades físicas, econômicas rios, ou ainda as situadas nas fronteiras
e sociais regionais); latifúndios por econômicas do país. Um segmento de
extensão (área superior a 600 módu- agricultores foi escolhido para receber
los, independentemente da produção terra em projetos de colonização: con-
nela desenvolvida) e empresas (imóveis forme o Decreto n. 59.428, de 27 de
P entre um e 600 módulos, com nível de outubro de 1966 (Brasil, 1966), aquele
aproveitamento do solo compatível com com capacidade empresarial para gerir
padrões regionais). o lote (Santos, 1993).
A meta era a progressiva transfor- A Supra foi extinta e duas institui-
mação do latifúndio tanto por dimensão ções foram criadas para gerir a política
como por exploração em empresas. Para agrária: o Instituto Brasileiro de Refor-
tanto, havia previsão de apoio estatal à ma Agrária (Ibra), subordinado à Presi-
modernização mediante assistência téc- dência da República, Decreto n. 55.889
nica; distribuição de sementes e mudas; de 31 de março de 1965 (Brasil, 1965a)
estímulo à mecanização; garantia de e o Instituto Nacional de Desenvolvi-
preços mínimos; assistência financeira mento Agrário (Inda), subordinado ao
e creditícia à produção e comerciali- Ministério da Agricultura foi criado

570
POLÍTICA AGRÁRIA

com o Decreto 55.890 de 31 de março incentivos fiscais para utilização da


de 1965 (Brasil, 1965b). terra, em especial em projetos agro-
Nos anos que se seguiram à apro- pecuários [ver B ioma A ma zônico]. Ao
vação do ET, poucas foram as desapro- mesmo tempo, estimulou-se a ocupação
priações, mas o tema fundiário perma- dos Cerrados, por meio do Programa de
neceu como preocupação na agenda Desenvolvimento dos Cerrados (Polo-
do governo. Demonstração disso foi o centro), criado em 1975, e do Programa
Decreto-Lei n. 582, de 15 de maio de de Cooperação Nipo-Brasileira para o
1969 (Brasil, 1969b), que determinou Desenvolvimento dos Cerrados (Pro-
a intensificação da reforma agrária e decer), iniciado em 1976 e destinado
insistiu na prioridade às áreas de “ma- ao estímulo à produção de grãos (soja/
nifesta tensão social”, indicando que os milho) na região [v er B i o m a C er r a ­
conflitos continuavam a existir. Por ele, do]. Para o sucesso dessas iniciativas,
foi instituído ainda um grupo executivo foi fundamental o papel da Empresa
da reforma agrária, regulamentado pelo Brasileira de Pesquisa Agropecuária
Decreto n. 64.852, de 21 de julho de (Embrapa), criada pela Lei n. 5.851, de
1969 (Brasil, 1969a).3 7 de dezembro de 1972. (Brasil, 1972), e
A modernização tecnológica se ace- instituída em 1973. Por meio dela foram
lerou, com apoio do Estado, deslanchan- feitas pesquisa de solos, variedades de
do a Revolução Verde. Com ela, ocorreu grãos que permitiram que o cerrado em
um processo intenso de expropriação, poucos anos fosse ocupado por plantios
tanto nas áreas de fronteira, para onde de soja e milho.
foram atraídos grandes capitais do setor Outras importantes iniciativas fo-
financeiro e industrial, quanto nas de ram tomadas: o Plano de Integração
ocupação antiga, nas quais se reduzi- Nacional, que previu a construção da
ram as possibilidades de trabalhadores rodovia transamazônica; o Programa de
viverem como “moradores”, “foreiros” Redistribuição de Terras e de Estímulo
ou “colonos” no interior das fazendas à Agroindústria do Norte e Nordes-
(Silva, 1981). Onde era grande o nú- te (Proterra); a extinção do Ibra e do
mero de pequenos agricultores, como Inda e a criação do Instituto Nacional
o sul do Brasil, a modernização levou à de Colonização e Reforma Agrária
capitalização de alguns, mas provocou (Incra); a transformação das terras de-
o endividamento e a perda da terra para volutas na faixa de 100 quilômetros de P
muitos outros. ambos os lados dos eixos das rodovias
A primeira metade dos anos 1970 federais na Amazônia Legal em áreas
foi um marco em termos de ações ins- de segurança nacional (Decreto-lei
titucionais e legais, convergindo na 1.164, de 01 de abril de 1971). Caberia
direção da modernização, concentração ao Conselho de Segurança Nacional
fundiária e de renda. Os Planos Nacio- a responsabilidade pela implantação
nais de Desenvolvimento (I, lançado nelas de projetos de colonização.
em final de 1971, e II, três anos depois) A perspectiva de desapropriação es-
assumiram claramente uma política vaiu-se, foram estimuladas as migrações
de incentivo à ocupação da Amazô- do Sul para a Amazônia e a política agrá-
nia Legal, pelos grandes capitais, com ria passou a se ancorar na colonização,

571
POLÍTICA AGRÁRIA

quer por meio de projetos estatais, quer colonização: aos acampados de Encru-
pela iniciativa privada, privilegiando, em zilhada Natalino (RS), por exemplo,
especial, agricultores já com experiência foram oferecidos lotes em projeto de co-
do novo modelo de agricultura. Algumas lonização em Lucas do Rio Verde (MT).
dessas iniciativas deram inclusive origem
a municípios como, por exemplo, Sinop, A retomada da política de
Confresa, Canarana e Lucas do Rio reforma agrária a partir da
Verde, em Mato Grosso; Altamira e redemocratização: impasses
Itaituba, no Pará; Ouro Preto do Oeste No final dos anos 1970 e início da
e Ji-Paraná, em Rondônia. década de 1980, as pressões derivadas
Em decorrência desse conjunto de das ocupações de terra no sul do país,
políticas, ao longo da década de 1970, os a emergência do MST, as demandas da
conflitos fundiários se intensificaram, Contag, as lutas dos seringueiros no
em especial na região Norte, onde pos- Acre e dos posseiros na Amazônia Legal
seiros e povos indígenas eram violenta- colocaram a reforma agrária na ordem
mente deslocados de suas terras. Para do dia. Com o fim do regime militar e
responder à conflitualidade emergente, a instalação da Nova República, em
já sob o último governo militar e num 1985, foi anunciado o I Plano Nacional
contexto de intensificação das lutas de Reforma Agrária e um ministério
por redemocratização, foram criados, específico para o tema: o Ministério da
em 1980, o Grupo Executivo das Terras Reforma e Desenvolvimento Agrário
do Araguaia e Tocantins (Getat) e o (Mirad). Em que pesem essas mudan-
Grupo Executivo das Terras do Baixo ças e as metas ambiciosas do I PNRA,
Amazonas (Gebam), que militarizaram o governo Sarney, enfrentando forte
a questão fundiária na região (Martins, oposição das entidades de representação
1984). Também foram instituídos o dos proprietários de terra, assentou
usucapião especial (Lei 6.969, de 10 de pouco mais de 80 mil famílias.
dezem­bro de 1981), atribuindo o domí- Durante o processo constituinte
nio legal para aqueles que ocupassem (1987/1988), a reforma agrária foi in-
área contínua, até 25 hectares, por tensamente discutida e gerou impasses.
cinco anos ininterruptos, sem oposição, Ao final, a nova Constituição trouxe
e a houvessem tornado produtiva; o Pro- o tema para a parte referente à ordem
P grama Nacional de Política Fundiária e econômica e social, bem como incor-
os Projetos de Assentamento Rápido, porou a definição de função social
alocando trabalhadores em terras da re- da propriedade. No entanto, a forte
gião Norte sem qualquer infraestrutura. pressão dos empresários rurais sobre
Nessa mesma época, reiniciaram-se os constituintes levou a que a nova
as ocupações de terra, em especial no Carta também garantisse que terras
sul do país, levando o governo a criar, produtivas não poderiam ser desapro-
pelo decreto 87.457, de 16 de agosto de priadas, introduzindo uma contradi-
1982, o Ministério Extraordinário para ção no próprio texto constitucional
Assuntos Fundiários (Meaf), que pas- e consagrando a tendência que vinha
sou a abrigar o Incra e a gerir a política desde os anos 1950 de articular reforma
fundiária do país, mas insistindo na agrária com produtividade.

572
POLÍTICA AGRÁRIA

Em termos de política agrária, a em áreas onde havia conflito, marca


Constituição também reconheceu o forte da própria tradição da política
direito dos povos indígenas aos terri- agrária brasileira. No entanto, as pró-
tórios por eles tradicionalmente ocu- prias ocupações se tornaram uma lin-
pados, bem como, nas suas disposições guagem específica para tornar pública
transitórias, garantiu os direitos dos a demanda, criar o conflito e forçar o
quilombolas às suas terras. Inovações Estado a atuar (Sigaud, 2000). Uma vez
legais anteriores, como a instituição desapropriada uma área, as ocupações
de reservas extrativistas para uso dos se multiplicavam nas proximidades
seringueiros e de reservas de conserva- e algumas regiões abrigaram grande
ção de uso sustentável, levaram a que quantidade de assentamentos, consti-
importantes porções de terra fossem tuindo-se algo próximo à concepção
retiradas do mercado, impossibilitando de áreas reformadas. A Zona da Mata
sua transformação em equivalente de pernambucana é um bom exemplo.
mercadoria. Feita a desapropriação, assentadas
No que se refere especificamente à as famílias, do ponto de vista legal,
reforma agrária, as ocupações passaram há um prazo para a emancipação: é
novamente a se intensificar, a partir de o momento em que os assentados são
meados dos anos 1990, levando ao as- considerados capazes de caminhar sozi-
sentamento de pouco mais de 1 milhão nhos e podem começar a pagar por seu
de famílias entre 1985 e 2016, sendo lote e receber o título de propriedade.
os momentos de maior incidência o Isso se daria no período posterior à
segundo governo de Fernando Henrique implementação das políticas de infraes­
Cardoso e o primeiro de Luiz Inácio trutura produtiva e social ligadas à
Lula da Silva. O Mirad, extinto no go- reforma agrária, momento em que as
verno Collor, foi substituído no segundo famílias passariam a ser incorporadas
governo FHC pelo Ministério do Desen- à categoria geral de “agricultores fa-
volvimento Agrário, que chamou para miliares”. Isso nem sempre ocorreu,
si, além da política de reforma agrária, a levando uma parcela importante dos
política territorial e a de apoio a agricul- assentamentos, formados por famílias
tores familiares. Lado a lado, embora em descapitalizadas, por vezes tendo passa-
proporção bem menor, houve ensaios do anos em acampamentos [ver Acam ­
no sentido de estimular a implantação pamentos e A ssentamentos], a situações P
da política de reforma agrária por meio de grande precariedade. Até 2016 foram
de mecanismos de mercado, estimula- relativamente poucas as emancipações,
da pelo Banco Mundial e baseada em tanto pela condição dos assentamentos
crédito estatal para a compra de lotes. quanto pela própria demanda dos mo-
A ideia de constituição de áreas vimentos sociais pela concessão de uso
reformadas, já presente no I PNRA e não plena titulação.
e retomada no II PNRA, lançado no A partir do governo Temer, as ti-
final de 2003, no primeiro ano do go- tulações foram estimuladas e se acele-
verno Lula, não se consolidou, pois era raram, independentemente da imple-
contraditória com as determinações mentação das políticas de consolidação
legais de desapropriações caso a caso dos assentamentos. Ou seja, passou a

573
POLÍTICA AGRÁRIA

haver um paulatino retorno das terras Ao longo dos últimos 30 anos, a


ao mercado. Em algumas regiões, a articulação política desse segmento
tendência a arrendar lotes para gran- com os diferentes governos implicou a
des proprietários, em especial em áreas imposição de limites para as desapro-
produtoras de soja ou de cana, também priações, na busca por aprovação de
contribuiu para esse movimento de leis que garantam a criminalização dos
mercantilização da terra. movimentos sociais e das ocupações de
Não obstante a demanda por terra terra, dificultando o principal motor das
seja forte nas regiões Sul, Sudeste e Nor- desapropriações. Afinal, ter terras dis-
deste, a maior parte dos assentamentos poníveis para sua expansão é condição
foi realizada no Norte, constituindo-se para seu fortalecimento.
fundamentalmente na regularização Apesar de realizar políticas impor-
de terras de posseiros.4 Nesse processo, tantes de apoio à agricultura familiar,
teve papel central o Programa Terra desde o segundo governo Lula, a polí-
Legal (Lei n. 11.952, de 25 de junho tica de assentamentos perdeu seu ritmo
de 2009) (Brasil, 2009), que transferiu ascendente. No período recente, que se
para o MDA a competência para a regu- sucede ao golpe parlamentar que depôs
larização fundiária na Amazônia Legal a presidenta Dilma Rousseff, o quadro
pelo prazo de cinco anos, prorrogáveis tornou-se mais complexo e as portas para
por igual período, e que visava a regu- políticas fundiárias baseadas na redistri-
larização das áreas de até 15 módulos buição de terras ou no reconhecimento de
fiscais (máximo de 1.500 hectares) com territórios tradicionalmente ocupados se
ocupação mansa e pacífica anterior a fecharam. Extinção do MDA, aceleração
dezembro de 2004, dando, portanto, das titulações em assentamentos, ameaças
estabilidade aos que nela viviam e ga- ao reconhecimento de novos territórios
rantindo acesso a políticas públicas para indígenas, discussões sobre a possibilidade
desenvolvimento dos assentamentos. de permissão de arrendamento de terras
No entanto, a flexibilização para cima em territórios já reconhecidos, medidas
dos limites da regularização por lei concretas de criminalização das ações
acabou possibilitando regularização de dos movimentos sociais, estes são alguns
terras griladas.5 dos exemplos que mostram um cenário
Nos anos recentes, o crescimento de agravamento das disputas fundiárias,
P das lutas por terra teve como um de seus tendo como consequência o aumento da
resultados um reposicionamento polí- violência no campo.
tico do agronegócio, implementando Mais do que nunca, as possibili-
campanhas de valorização da agricul- dades de mercantilização da terra (e
tura modernizada, buscando mostrá-la também do subsolo e das águas) tor-
como sendo não só responsável pelas nam-se o centro de uma disputa política
exportações, fundamentais para a eco- intensa. A centralidade do agronegócio
nomia, como também produtora para e o poder político que adquiriu atualiza
o mercado interno. Paralelamente, os a questão fundiária e mostra que ela
assentamentos são desqualificados e continua sendo um ponto nodal para
colocados como a única alternativa de pensar o destino não só das populações
desenvolvimento para o país. rurais, mas do país.

574
POLÍTICA AGRÁRIA

Referências
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da união em obras de irrigação, drenagem e açudagem, atualmente inexploradas ou exploradas con-
trariamente à função social da propriedade, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder
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_______. Câmara dos Deputados. Legislação. Decreto n. 64.852, de 21 de julho de 1969. Regulamenta
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execução desses atos, que os executem e façam executar e observar fiel e inteiramente como neles se
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art. 22 do Decreto-lei n. 22.239, de 19 de dezembro de 1932, e os arts. 9 - 10 - 11 - 12 - 22 e 23 da Lei
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575
POLÍTICA AGRÁRIA

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1972. Autoriza o Poder Executivo a instituir empresa pública, sob a denominação de Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e dá outras providências. 1972. Disponível em: http://www.planalto.
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2009. Dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da
União, no âmbito da Amazônia Legal; altera as Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e Lei n. 6.015, de
31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. Dispõe sobre regularização fundiária das ocupações
incidentes em terras situadas em áreas da União ou do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), altera a Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, e a Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de
1973, e dá outras providências. (Redação dada pela Medida Provisória n. 910, de 2019). 2009. Disponível
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Para saber mais


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Notas
1
A Constituição de 1946 previa a desapropriação por interesse social, mas com indenização prévia
e em dinheiro, inviabilizando uma política ampla de redistribuição de terras.
2
Os direitos dos trabalhadores rurais foram reconhecidos em 1963, por meio do Estatuto do
Trabalhador Rural, Lei n. 4.214, de 2 de março de 1963 (Brasil, 1963). Também foi regulamentado
o direito aos trabalhadores rurais de se organizarem sindicalmente.
3
Nessas iniciativas, pesou o estímulo da FAO, que visitara o Brasil.
4
Para os dados sobre famílias assentadas, ver Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma
Agrária, Nera, Boletim Data Luta, 2017-2020.
5
Nas primeiras discussões do projeto, o limite para regularização era bem menor. Nas disputas políticas
em torno dos limites, acabou-se usando o parâmetro 15 módulos, o que corresponde ao limite do
que a Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 (Brasil, 1993), que regulamentou a Constituição de
1988, define como teto da média propriedade.

576
POLÍTICA AGRÍCOLA

POLÍTICA AGRÍCOLA

G uilher me C osta D elgado


S ílvio I soppo Porto

O caráter destacadamente histó- vez, irá requerer ações políticas


rico-geográfico das políticas agrícolas específicas às necessidades do
nacionais não lhes retira alguns traços abastecimento dos bens da cesta
de generalidade, que permitem identifi- básica, seja no mercado interno,
car características comuns e específicas. seja à exportação.
Estas, de certa forma, nos remetem As propostas e respostas das políticas
à pretensão da conceituação teórica, agrícolas nacionais a essa problemática
a que os casos nacionais de alguma específica do espaço rural variam em
maneira demarcariam para efeito da grande medida, a exemplo mais recente
regulação política. da política agrícola comum, precursora da
O campo agrícola da política guarda União Europeia desde os anos 1950; ou da
especificidade de uma área de estudos no política agrícola estadunidense, apoiada
âmbito das políticas públicas em razão de desde os primórdios (anos 1930) por um
duas questões factuais: sistema de subsídios, ancorado em vários
a) A utilização do espaço da na- regimes de support-price, que vêm sendo
tureza como meio de produção praticados há três quartos de século.
para a agricultura, meio de pro- Mas é sobre política agrícola brasileira
dução não produzido pelo tra- que o verbete tem pretensão de dizer algo
balho humano, para cuja posse mais, além dessas considerações iniciais
e uso se requer legitimação ou ora enunciadas.
legalização de parte do Estado
(na modernidade), condição Conceituando a política agrícola
que confere ao seu portador o A política agrícola é o conjunto de
usufruto da renda fundiária. políticas públicas que articula os ins-
b) Os processos de produção e de trumentos de crédito, seguro agrícola, P
circulação dos bens produzidos assistência técnica e extensão rural e
no espaço rural, muito fortemen- comercialização, os quais buscam fo-
te associados à provisão anual de mentar as atividades produtivas visando
alimentos, diferem qualitativa- promover o desenvolvimento rural. Além
mente dos processos produtivos disso, o abastecimento alimentar, nesse
industrial e de serviços pelo fato caso incluindo a população urbana, está
da descontinuidade do período associado à política agrícola (em especial
de produção e circulação agrí- no que tange aos instrumentos de fomento
cola, que lhes impõem lentidão e comercialização). Em contrapartida,
e defasagem nos tempos de ro- também incidem sobre o rural os direitos
tação do capital. Isto, por sua de propriedade, de posse e uso da terra, a

577
POLÍTICA AGRÍCOLA

legislação ambiental, entre outros instru- não o comportamento da safra do próxi-


mentos que são mediados pelo Estado, por mo ano-agrícola. Da mesma forma que os
vezes pela presença da regulação pública, meios e parâmetros delineados no PAP,
como também pela sua omissão. em boa medida, dependerão da política
Do ponto de vista normativo em macroeconômica adotada pelo governo.
vigência, o Art. 187 da Constituição Cabe salientar que esses arranjos
Federal (CF) (Brasil, 1988) prevê que a institucionais, para serem implementados,
política agrícola será planejada e execu- passam necessariamente pelo estabe-
tada na forma da lei, com a participação lecimento de consensos entre as forças
efetiva do setor de produção, envolvendo político-partidárias que ocupam o gover-
produtores e trabalhadores rurais, bem no e as suas interconexões com grupos
como dos setores da comercialização, econômicos (principalmente) e sociais.
do armazenamento e de transportes, Isso, em boa medida, explica porque a
levando em conta, especialmente: 1) agenda ambiental foi a última a ser incor-
os instrumentos creditícios e fiscais; 2) porada ao contexto institucional (início
os preços compatíveis com os custos de dos anos 1980), e porque, ainda assim,
produção e a garantia de comercialização; até hoje persistem constantes ataques e
3) o incentivo à pesquisa e à tecnologia; questionamentos sobre a sua relevância,
4) assistência técnica e extensão rural; estando no governo que se iniciou em
5) o seguro agrícola; 6) o cooperativis- 2019 totalmente subordinada aos inte-
mo; 7) eletrificação rural e irrigação; e resses do agronegócio.
8) habitação para o trabalhador rural.
Esse artigo considera que as atividades Breve histórico da política
agroindustriais, agropecuárias, pesqueiras agrícola no Brasil
e florestais [ver Agroindústria e Beneficia­ As primeiras ações em política agrícola no
mento] deverão ser levadas em conside- Brasil (1906-1964)
ração nesse processo de planejamento, Os diferentes contornos institucio-
devendo ainda compatibilizar as ações nais da política agrícola implementada
da política agrícola com as da reforma no país, desde o Império até o período
agrária (Brasil, 1988). recente, embora dirigidos ao rural, por
Nesse campo, a institucionalidade vezes tiveram seus objetivos alargados,
mais antiga, Decreto Imperial n. 1.067, incluindo aqueles voltados ao abasteci-
P de 28 de junho de 1860 (Brasil, 1860) é mento alimentar da população urbana.
a do Ministério da Agricultura, Pecuária Embora de baixa efetividade até os anos
e Abastecimento (Mapa), sendo o Plano 1970, algumas políticas ou ações dessa
Agrícola e Pecuário (PAP), ou Plano de natureza visavam atender tanto o polo
Safra, o instrumento de planejamento da produção quanto o do consumo; neste
agrícola mais estável ao longo do tempo, caso, em especial, em razão dos altos pre-
tendo sido estabelecido e implementado ços dos alimentos e restrições de oferta.
de forma contínua (com lançamento Possivelmente, uma das primeiras
anual) desde 1967. O papel do Plano Sa- ações públicas de vulto dirigidas a am-
fra poderá ser mais ou menos regulador, parar a produção interna por meio de
dependendo da concepção ideológica de instrumento público para a manutenção
cada governo, podendo assim induzir ou dos preços foi o Convênio de Taubaté,

578
POLÍTICA AGRÍCOLA

uma iniciativa dos governos provinciais rios de importações de bens de capital em


de São Paulo, Minas Gerais e Rio de regime cambial ultrafavorecido.
Janeiro (Delgado, 1977; Menezes; Porto; Segundo Delgado (2014), há com-
Grisa, 2016). Essa iniciativa veio a ser pensações internas importantes para um
federalizada nos anos 1930. Nesse mesmo rol de produtos e regiões abrangidas por
período foi criada a Carteira de Crédito políticas específicas além do café (que era
Agrícola e Industrial do Banco do Brasil coordenado pelo Instituto Brasileiro do
(Creai) (1935), único banco autorizado a Café – IBC), tais como o trigo, o açúcar
operar o crédito rural à época. e álcool e o cacau, com o planejamento
Os temas relativos ao fomento à pro- de respectivas políticas agrícolas pelas
dução, à comercialização de produtos agências especializadas: o Instituto do
básicos e à exportação, à pesquisa e ao Açúcar e do Álcool (IAA); o Serviço de
crédito rural foram possivelmente os Expansão do Trigo (SET) e a Comissão
temas mais presentes na agenda de desen- Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
volvimento rural a partir da segunda me- (Ceplac), da Superintendência da Valori-
tade do século XX. Esse período histórico zação Econômica da Amazônia (SVEA).
marca também o início da implementação O restante da política agrícola – não
da Revolução Verde [ver Revolução Verde] abrangida por essas políticas específicas,
no sul do Brasil, por meio do plano do go- que contemplava preços, crédito e forma-
verno (de Getúlio Vargas) de incrementar ção de estoques – ficou incluída no âmbito
a produção de trigo a partir do incentivo à da política conduzida pela Comissão de
lavoura de soja, com o objetivo de ampliar Financiamento da Produção (CFP), que
a renda da terra aos triticultores. à época tinha pouca relevância do ponto
O período posterior à Segunda Guer- de vista do fomento econômico.
ra até o início dos anos 1960 do século O final desse ciclo econômico de
passado é demarcado, no plano econô- valorização cafeeira e políticas específi-
mico, pelo relançamento da política de cas regionais se caracteriza pela super-
valorização dos preços externos do café, produção estrutural do café em 1961, e
parcialmente planejada pelo Brasil; e pelas crises de abastecimento alimentar
em grande parte beneficiário do boom do período inicial dos anos 1960, crises
de consumo do pós-guerra. O foco da que se adensam com o lançamento de
política econômica geral na “substituição uma questão agrária, não assimilada pela
de importações” e na industrialização base parlamentar do governo de então, P
implica a combinação de duas políticas precipitando o golpe civil-militar de 1964.
simultâneas que as viabilizam: a valoriza-
ção dos preços externos do café e a sobre- Avançando na institucionalidade na linha
valorização cambial (dólar semicongelado da modernização técnica pós-1964
em cruzeiros), o que dificulta a penetração A criação do Sistema Nacional de
dos demais produtos clássicos do nosso Crédito Rural (Banco do Brasil, 2004),
comércio exterior, porque não gozam Lei n. 4.829, de 5 de novembro de 1965
da mesma valorização. Essa política foi (Brasil, 1965), foi um marco para constituir
concebida dentro de uma estratégia mais a política agrícola brasileira. Para isso, foi
geral de transferência de recursos para os necessário dar outros passos normativos,
setores industriais emergentes, beneficiá- tais como: a regulamentação do Sistema

579
POLÍTICA AGRÍCOLA

Nacional de Crédito Rural, Decreto n. técnica e extensão rural – e a adoção do


58.380 de 10 de maio de 1966 (Brasil, uso de insumos (fertilizantes sintéticos,
1966); a criação dos títulos de crédito rural agrotóxicos e sementes comerciais). Essa
(Decreto-Lei n. 167, de 14 de fevereiro de nova institucionalidade contribuiu para
1967); e tornar obrigatório o direciona- ampliar a oferta de instrumentos disponí-
mento de 10% dos depósitos à vista para veis à política agrícola e a capacidade de
o crédito rural do Conselho Monetário planejamento do Estado brasileiro.
Nacional (CMN). Além disso, foi instituí­ A partir da década de 1980, sobre-
da a Política de Preços Mínimos (PGPM) tudo, o Estado brasileiro passou a adotar
(Decreto-Lei n. 79/1966), que estabeleceu, políticas mais liberais, por um lado dei-
além da Aquisição do Governo Federal xando o mercado comandar o que ocorre
(AGF), os instrumentos de Empréstimo nos sistemas agroalimentares e, por outro,
do Governo Federal (EGF), com opção contribuindo para o avanço das commo-
de venda (COV) ou sem opção de venda dities, em especial a soja, milho, cana e
(SOV). Antes de 1965, o crédito rural era carnes, em detrimento da manutenção
executado somente pelo Banco do Brasil, de sistemas de produção mais diversifi-
por meio de sua Carteira de Crédito Agrí- cados e destinados ao mercado interno.
cola e Industrial (CREAI) (1935). Esse O governo federal reduziu a oferta de
novo regramento estabeleceu as condições recursos oriundos do Tesouro Nacional
para o lançamento do Plano Agrícola e para financiar o setor agropecuário, em
Pecuário (PAP), ou Plano de Safra. paralelo criou a Poupança Rural, como
Na primeira metade da década de forma de diversificar as fontes de finan-
1970, a partir do lançamento do I Plano ciamento para as operações de crédito
Nacional de Desenvolvimento (1972- rural por meio dos bancos públicos. Cabe
-1974), foi criado o Sistema Nacional destacar que essa iniciativa, ao mesmo
de Centrais de Abastecimento (Sinac) tempo que amplia a participação dos re-
(1972); a Empresa Brasileira de Pesquisa cursos privados nas operações de crédito
Agropecuária (Embrapa) (1973); a Em- agrícola, delega aos bancos a decisão
presa Brasileira de Assistência Técnica sobre a alocação dos recursos do crédito
e Extensão Rural (Embrater) (1974); e o (custeio e investimento). Esse formato
fortalecimento da CFP. O governo pre- tende a gerar concentração dos recur-
tendia ampliar a disponibilidade interna sos em culturas com maior liquidez no
P de alimentos – visando reduzir os preços mercado; atender produtores com maior
aos consumidores e diminuir o descon- capacidade de pagamento; e concentrar
tentamento social – e, ao mesmo tempo, nas regiões de maior expressão das com-
diversificar a pauta das exportações agrí- modities agrícolas.
colas brasileira, ainda muito centrada no
café. Essa estratégia representava a “mo- A redemocratização e os contornos da
dernização conservadora” da agricultura política agrícola na Constituição Federal
brasileira, que buscava incrementar a pro- A partir da redemocratização do país,
dutividade por meio da adoção de “novos se instituiu um processo constituinte para
pacotes tecnológicos” disseminados pela debater, elaborar e promulgar uma nova
Revolução Verde – apoiados na pesquisa Constituição para o Brasil (Brasil, 1988).
agrícola, no crédito rural, na assistência Esse processo permitiu a mobilização e

580
POLÍTICA AGRÍCOLA

incidência política de diversos setores vistas na CF (Brasil, 1988) para a política


vinculados aos temas socioambientais. agrícola não são temas novos, a novidade
Isto produziu um texto relativamente foi o estabelecimento das interconexões
avançado, compreendendo, em sentido entre a produção, a questão fundiária e a
amplo, tanto aquelas relações produ- ambiental. Em contrapartida, essas áreas
tivas e comerciais quanto as relações historicamente são polos de tensão entre
fundiárias que se dão no espaço rural, diferentes setores, com representação
como pertinentes ao domínio da política social e política muito heterogêneas e
agrícola. Assim, o capítulo que trata interesses muitas vezes antagônicos.
explicitamente de política agrícola na
Constituição Federal (CF) denomina-se A neoliberalização da política agrícola
Da política agrícola, Fundiária e da Reforma Nos anos 1990, houve a ampliação
Agrária (Art. 184 a 191). Desse modo, se das fontes de crédito, tais como os re-
restringíssemos o espaço rural à ativida- cursos oriundos do Fundo de Amparo ao
de agrícola ou agropecuária, estaríamos Trabalhador (FAT), dos Fundos Constitu-
restringindo também a política agrícola cionais dirigidos às regiões ­Centro-Oeste,
a formulações produtivistas e comerciais Nordeste e Norte e novas linhas de cré-
ligadas a este setor de atividade. dito do Banco Nacional de Desenvolvi-
O referido capítulo da CF disciplina mento Econômico e Social (BNDES).
tanto as ações de fomento produtivo, co- Na segunda metade dessa década, houve
mercial e de energia sobre o espaço rural a implementação de renegociação de
(Art. 187), como conceitua também e dívidas, sobretudo aos médios e grandes
disciplina as relações agrárias do direito produtores e cooperativas rurais, fruto da
de propriedade e as formas de intervenção pressão e articulação da Bancada Ruralis-
para promoção da reforma agrária. É nesse ta do Congresso Nacional com o governo
contexto, do enfoque agrário da política FHC. Ainda, fruto da mobilização das
agrícola, que irá aparecer um conceito organizações sociais vinculadas à agricul-
central relativo a outra dimensão do espa- tura familiar, com a Resolução n. 2.191 foi
ço rural – a função social e ambiental da criada uma linha de crédito diferenciada
propriedade da terra (Art. 186), que com- para essa categoria social – o Programa de
parece aqui como conceituação daquilo Fortalecimento da Agricultura Familiar
que é fonte de legitimidade do direito de (Pronaf) (Banco Central do Brasil, 1995).
propriedade fundiária no meio rural, se- Nessa mesma década, foram criados P
gundo o Art. 5, item XXIII, da mesma CF. também novos instrumentos de comer-
Por seu turno, conquanto o conceito cialização – Prêmio de Escoamento da
normativo de política agrícola abranja Produção (PEP) e o Contrato de Opção
também a “utilização adequada dos re- de Venda (COV). À semelhança de me-
cursos naturais disponíveis e a preser- canismos de mercado, essas modalidades
vação do meio ambiente” como critério são ofertadas pela Companhia Nacional
demarcatório do direito de propriedade, as de Abastecimento (Conab) por meio
relações do Estado com o meio ambiente de leilões via as bolsas de mercadorias.
irão aparecer em outro domínio, o da or- Estes instrumentos tendem a esvaziar a
dem social e o da política específica para formação de estoques públicos e o uso
o meio ambiente (Art. 225). As ações pre- de instrumentos clássicos da PGPM. A

581
POLÍTICA AGRÍCOLA

exemplo da Aquisição do Governo Fe- Zero, a agricultura familiar e camponesa,


deral (AGF), o PEP sobretudo assegura em geral, e o MDA, em particular, pas-
o pagamento de subvenção agrícola aos saram a ter mais visibilidade. O Consea
produtores que adquirirem esses con- propôs a criação do Plano de Safra para
tratos, quando os preços de mercado a agricultura familiar e o público da re-
estiverem abaixo dos preços mínimos. forma agrária, promovendo a revisão do
Embora os recursos públicos para a po- Pronaf e do seguro agrícola, reinstituindo
lítica agrícola tenham voltado a crescer uma política de Assistência Técnica e
a partir do início dos anos 2000, em Extensão Rural (Ater) e outra de comer-
especial de 2003, em boa medida foram cialização específica para esse público.
direcionados para equalizar as taxas de Essa proposta permitiu lançar o Plano
juros dos empréstimos agrícolas. Por fim, de Safra em junho desse primeiro ano de
a arquitetura dos Planos Agrícolas e governo, delineando as diretrizes para
Pecuários (PAP) tende a se estruturar da a safra 2003-2004. A proposta de uma
seguinte forma: 1) crédito rural (custeio política de comercialização deu origem
e investimento); 2) zoneamento agrícola ao Programa de Aquisição de Alimentos
para orientar a aplicação do crédito; 3) (PAA) e o início do crescimento do orça-
seguro rural; 4) previsão de ações de mento do crédito dirigido a esse público
apoio à comercialização; 5) podendo [ver Compras Públicas de Alimentos].
ainda envolver programas especiais de O Pronaf apresentou uma série de
fomento setorial. iniciativas, com a pretensão de diversificar
o público atendido por esse Programa,
As inovações institucionais sobretudo em relação às mulheres (Pronaf
Ao final dos anos 1990, após a cria- Mulher), à juventude rural (Pronaf Jo-
ção do Pronaf, foi instituído o Ministério vem), em apoio aos sistemas agroflorestais
do Desenvolvimento Agrário (1999). (Pronaf Floresta), reformulação do Pronaf
Embora com uma base social ampla e B dirigido à Região Semiárida do Brasil, o
numerosa, esse Ministério surge com uma Pronaf Agroecologia, entre outros. Infe-
estrutura e um orçamento muito abaixo lizmente, em que pese todas essas inicia-
das necessidades de atendimento dessa tivas, a efetividade dessas linhas diferen-
base social, que naquele momento estava ciadas não avançou, possivelmente pela
muito dirigida à agricultura familiar (AF) lógica instituída pelo sistema financeiro e
P e aos assentados da reforma agrária, por a falta de ousadia para construir um outro
meio do Instituto Nacional de Coloniza- referencial de crédito desbancarizado,
ção e Reforma Agrária (Incra). em especial para as operações especiais
Em 2003, com o começo do governo de crédito. Essas operações englobariam
de Luiz Inácio Lula da Silva, houve uma todo esse público acima, que não conse-
transformação do MDA. Embora tenha guiu ser incluído pelo crédito rural, mais
seguido com uma estrutura adminis- os Povos e Comunidades Tradicionais
trativa e operacional muito enxuta, foi (PCTs). A exemplo do PAA, do Programa
capaz de se inserir nas disputas políticas Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)
do governo federal e dar visibilidade a e do Ecoforte,1 uma das iniciativas mais
essa categoria social da AF. Com apoio abrangentes de apoio e fortalecimento às
do Consea, a partir da agenda do Fome redes territoriais de agroecologia.

582
POLÍTICA AGRÍCOLA

A política agrícola aprovada em no federal, tais como o fim do MDA (e


1991 – como previsto na Constituição junção ao Mapa), redução do orçamento
Federal de 1988 – é a base legal para a para Ater, PAA, política territorial,
formulação dos principais instrumentos ações para as mulheres, agroecologia,
de crédito. Em contrapartida, essa ela- P1+2 e P1MC. Devemos reconhecer
boração está mediada pelo Ministério da que para parte considerável do público
Fazenda (MF) e em alguma medida pelo vinculado à AF, aos assentamentos de
Ministério de Planejamento, Orçamento reforma agrária, aos povos indígenas,
e Gestão (MPOG), Banco Central, Ban- às comunidades quilombolas e demais
cos Públicos, em especial o Banco do PCTs, essas políticas não haviam se
Brasil, por meio do Conselho Monetário estabelecido ou chegaram de forma
Nacional (CMN) e do Congresso Nacio- parcial. Ao mesmo tempo, entre 2003 e
nal. Dessa forma, fica bastante evidente 2014 foi possível experimentar novas di-
que as decisões políticas sobre a política nâmicas de construção de políticas pú-
agrícola, entendidas de forma ampla, tal blicas, com todas as suas controvérsias
qual descritas na CF, passarão em boa me- estabelecidas no âmbito do governo, que
dida pelo crivo de todas essas instâncias apostava na convivência de dois mode-
governamentais e parlamentares. Esse los agrícolas e agrários: o da agricultura
arranjo institucional tende a chancelar familiar e camponesa e o do agrone-
um Plano Agrícola e Pecuário (PAP) gócio. O seguimento desse processo
com sérios limites em direção a políticas poderia viabilizar a construção de novos
inovadoras, a exemplo da agroecologia, caminhos, sobretudo aqueles legitima-
ficando refém das ações tradicionais de dos por processos de lutas sociais e da
fomento dirigidas às commodities agrícolas construção de consensos pautados pelo
e à pecuária. interesse público, pela preservação dos
bens comuns e promoção da biodiver-
Ameaças e retrocessos pós-golpe sidade [ver Bens Comuns], assegurando
A conjuntura atual aponta para a essas categorias sociais o direito de
grandes retrocessos, seja em relação à acesso às suas terras e territórios, além
institucionalidade no âmbito do gover- da realização da reforma agrária.

P
Referências
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Rural – Institui o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Disponível
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n. 4, p. 10-17, out./nov./dez. 2004.
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583
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_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 4.829, de 5 de
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DELGADO, G. C. Agricultura: Ciclos econômicos e crises desde a Segunda Guerra Mundial ao Sé-
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resgate histórico. Série Políticas Sociais e de Alimentação (Caderno 1) do Centro de Excelência Contra a
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ca_alimentar/PAA_Institucional_Estudo1_Historico_lowres.pdf. Acesso 05 jan. 2019.

Para saber mais


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_______ (org.). Do “capital financeiro na agricultura” à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em
meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.
GRISA, C.; SCHNEIDER, S. (org.) Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre:
Editora UFRGS, 2015.
PORTO, S. I. População só terá acesso a alimentos de péssima qualidade durante pandemia. [Entrevista
concedida a] Lu Sudré. Brasil De Fato, São Paulo, 27 abr. 2020. Disponível em: https://www.brasildefato.
com.br/2020/04/27/populacao-so-tera-acesso-a-alimentos-de-pessima-qualidade-durante-pandemia.
Acesso em: 16 jul. 2020
PORTO, S. I. Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Política Pública de Fortalecimento da
Agricultura Familiar e da agroecologia no Brasil. Sevilla, Espanha, 2014. Dissertação (Mestrado em
Agroecologia). Instituto de Sociología y Estudios Campesinos (ISEC), Universidad Internacional de
Andalucía, Universidad de Córdoba, Universidad Pablo de Olavide de Sevilla. Sevilla (Espanha), 2014.

Nota
1
O Programa Ecoforte integra o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo) e
visa o fortalecimento e a ampliação das redes territoriais de agroecologia e produção orgânica. Os
recursos do Ecoforte são oriundos da Fundação Banco do Brasil (FBB), do Fundo Amazônia e do
Fundo Social do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

POLÍTICA AMBIENTAL

Naiar a A ndr eoli B ittencourt

Política ambiental é o conjunto de ções, normativas, políticas públicas,


atos e instituições voltados à regulação direcionamento de recursos públicos e
da biodiversidade, solo e bens naturais incentivos. É a ordenação ambiental e
em dado território, incluindo legisla- territorial com base no entendimento

584
P O L Í T I CA A M B I E N TA L

de conservação, proteção ou desen- caça para alguns animais e multas para


volvimento vigente em determinado corte de determinadas árvores confor-
momento histórico. me seu valor econômico e propriedade.
Assim, a política ambiental pode ser As ordenações, no entanto, autori-
direcionada a partir de diversos vieses, zavam a punição seletiva conforme a
a depender da concepção que se tem da posição social (Wainer, 1993, p. 195).
biodiversidade: integrada ou apartada As ordenações filipinas (1603-1824) já
do ser humano, se voltada ao extrati- trazem a concepção de realização de
vismo e ao esgotamento de recursos, se obras públicas e plantio de árvores em
de concepção desenvolvimentista ou terrenos baldios, proibição da pesca em
socioambiental. Mas, sobretudo, está determinados locais, além da respon-
conectada ao interesse das classes e po- sabilidade subjetiva, quando deve ser
vos que conformam e conflitam nesses caracterizada a culpa ou dolo, daquele
territórios, disputando os usos dos bens que causou o dano. Em geral, as ordena-
comuns e dos recursos naturais. ções portuguesas visavam mais proteger
Para compreender parte dessa his- os bens considerados de patrimônio
toricidade e o atual cenário da política da metrópole portuguesa e garantir
ambiental brasileira, perpassar-se-á bre- a salvaguarda econômica da colônia.
vemente pela trajetória da regulação Tanto que, em 1605, o Regimento sobre o
ambiental no Brasil, a mudança para- Pau-brasil exigia autorização portuguesa
digmática socioambientalista com a para o corte da árvore brasileira, o que
Constituição Federal de 5 de outubro se repete na legislação florestal da Co-
de 1988 (Brasil, 1988) e a ECO-1992; roa de 1773 em 1797 (Wainer, 1993, p.
alguns instrumentos jurídicos centrais da 199). Já a Carta Régia de 1800 obrigou
política ambiental e as relações da políti- a conservação de espécies determinadas
ca (socio)ambiental com a agroecologia pela Coroa portuguesa em faixa de dez
ou modos sustentáveis e tradicionais de léguas da costa.
produção da agrobiodiversidade. A vinda da família real ao Brasil
trouxe a concepção de estética colonial,
Trajetória da política com a mescla de espécies exóticas e
ambiental no Brasil nativas, além da criação do Jardim Bo-
No período colonial, as ordenações tânico no Rio de Janeiro, inaugurando
sobre terras, territórios e biodiversidade a perspectiva de zonas protegidas. Em P
acompanharam a importação do direito 1821 também se edita a Lei de Sesma-
português com vistas a cancelar a explo- rias, a fim de garantir a conservação
ração extrativa de recursos naturais no da sexta parte da propriedade com
território colonizado, autorizando a expor- bosques e florestas “para que para que
tação e transferência de recursos naturais, nunca faltem as lenhas e madeiras neces-
nas bases da acumulação originária ou sárias”, sendo quase uma embrionária
primitiva, ou, como David Harvey (2018) “Reserva Legal”. Após a independência,
denomina, acumulação por espoliação. ressaltam-se as vozes de José Bonifácio
As ordenações manuelinas (1521- de Andrade e Silva e Joaquim Nabuco,
-1603) dispunham sobre a conformação visionários aos alertas de desertificação
territorial, estabelecendo vedação de ambiental e na defesa de recursos natu-

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P O L Í T I CA A M B I E N TA L

rais como patrimônio nacional (Milaré, décadas seguintes por outros, como as
2005, p. 118). áreas federais ambientalmente protegi-
Na República, o Código Civil é pro- das e com regime jurídico diferenciado.
mulgado com a Lei n. 3.071 em 1 de Esses parques nacionais foram inspirados
janeiro de 1916 (Brasil, 1916) e não trata no modelo estadunidense para que os
efusivamente da temática ambiental. recursos naturais fossem preservados
Sua conformação é atinente ao direito sem a interferência humana, excluindo a
de propriedade e de vizinhança. Mesmo participação das populações que histori-
assim, é na formação do Estado nacional camente viviam nos territórios (Santilli,
republicano que se conforma a noção 2005, p. 26).
de valorização do bem público atrelado O segundo Código Florestal, Lei
a um modelo de desenvolvimento. Na n. 4.771, é datado de 15 de setembro
República Velha, imperava a dimensão de 1965 (Brasil, 1965), já no período
liberal de Estado, com extrema liberdade ditatorial militar no país, forjado na ten-
aos proprietários e pouca regulação sobre tativa de “modernizar” a legislação para
a exploração ambiental e territorial. se adaptar ao avanço da monocultura e
Com o Estado Novo, iniciaram-se as mecanização agrícola em larga escala,
regulações sobre a distribuição territorial especialmente nas culturas de café e
e de recursos em uma sociedade que se cana-de-açúcar. Também na ditadura
urbanizava e industrializava com mais que se erguem o Estatuto da Terra,
intensidade, especialmente no lapso do Decreto 4.504 de 30 de novembro de
período entre guerras, o que possibilitou 1964 (Brasil, 1964), a Lei de Zonea­
a ascensão de uma indústria de base no mento Industrial nas Áreas Críticas
Brasil, com inclinação das políticas de de Poluição, Lei Federal 6.803, de 2 de
incentivo de Getúlio Vargas. Assim, julho de 1980, (Brasil, 1980) e a Lei de
em 1934, instituiu-se com o Decreto n. Política Nacional do Meio Ambiente,
23.793 de 23 de janeiro o Código Flo- Lei Federal n. 6.938 de 31 de agosto de
restal (Brasil, 1934b) e com o Decreto 1981(Brasil, 1981), e outros instrumen-
n. 24.643 o Código das Águas (Brasil, tos normativos de regulação ambiental
1934a), como medidas de regulação e territorial. As leis na formalidade se
e controle aos avassalantes desmata- chocam com a política real de expansão
mentos no interior do país e das crises de burguesias nacionais associadas com
P ambientais e de abastecimento nas ci- o capital transnacional.
dades. Também a inclinação econômica É nesse período que se expande e
é candente, já que a lenha e o carvão se consolida a Revolução Verde [ver
vegetal eram “as principais fontes de R e volução V erde] no país, com altos
energia do processo de industrialização investimentos em tecnologias agrícolas
do Brasil até meados dos anos 1960”, associadas e dependentes de conglome-
sendo “produzidas e exploradas de forma rados de empresas estrangeiras. Ao mes-
imprevidente e irracional, originando mo tempo, os Planos Nacionais de De-
crises de abastecimento e instabilidade” senvolvimento na década de 1970 foram
(Hansen, 2018, p. 164). O Parque Na- responsáveis pelo aumento gradativo no
cional de Itatiaia também foi o primeiro desmatamento da Amazônia, além de
criado em âmbito nacional, seguido nas uma política de integracionismo forçado

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P O L Í T I CA A M B I E N TA L

ou extermínio de povos indígenas. Nes- A redemocratização no Brasil,


se período também inúmeras grandes a Constituição de 1988 e as
obras foram construídas “sem qualquer bases internacionais
consulta pública prévia ou avaliação A redemocratização no Brasil a partir
ambiental”, além da expansão de usinas de 1985, a Assembleia Constituinte de
nucleares e um complexo de indústrias 1987 e a Constituição Federal de 1988
poluentes em Cubatão (Santilli, 2005, (Brasil, 1988) trazem um novo momento
p. 27-28). político-jurídico no Brasil. As movimenta-
A Conferência das Nações Unidas ções socioambientalistas, a partir da inter-
sobre o Meio Ambiente de 1972 em locução de movimentos sociais populares
Estocolmo alterou a política ambiental e ambientalistas na incidência política
brasileira e mudou significativamente constituinte, ganham corpo após a reali-
os instrumentos normativos [ver Agroe­ zação da Conferência das Nações Unidas
cologia no Contexto das Nações Unidas]. sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
A Declaração sobre o Meio Ambiente no Rio de Janeiro em 1992, a ECO-1992.
(Declaração de Estocolmo) é o primeiro As forças sociais engendram a ecolo-
grande marco na tutela jurídica am- gia no texto constitucional e alavancam
biental (Lanfredi, 2002, p. 71), abrindo benefícios substantivos, como o “direito
as portas para a Política Nacional do ao meio ambiente ecologicamente equili-
Meio Ambiente (PNMA) (Lei Federal brado como bem comum do povo e essen-
6.938/1981), em vigor até hoje. A partir cial à sadia qualidade de vida, impondo-se
da PNMA, se tornaram obrigatórios o ao poder público e à coletividade o dever
licenciamento e a avaliação de impactos de defendê-lo e preservá-lo para as presen-
ambientais com potencial poluidor. tes e futuras gerações” (artigo 225 da CF)
A visão, portanto, que imperava (Brasil, 1988); o dever de não degradar,
nesse período era dicotômica: criava limitando o direito de exploração dos re-
espaços verdes a partir da perspectiva cursos naturais e da terra; a função social
conservacionista, objetivando excluir e ambiental da propriedade; a proteção
as populações tradicionais, povos in- ambiental como direito fundamental; a
dígenas e camponeses que viviam de obrigação da administração pública de
forma integrada à biodiversidade – uma proteção ao meio ambiente; e a ampliação
natureza sem gentes –, ao mesmo tempo da participação pública e do controle
que autorizava a extração de recursos social (Benjamin, 2008, p. 69-75). P
e expansão territorial agrícola e de A Constituição Federal de 1988 de-
extração mineral. Segundo Juliana monstra o rompimento formal do para-
Santilli, as leis nesse período tinham digma conservacionista ambiental para
caráter fortemente repressor e restritivo, o paradigma socioambiental, reconhe-
vedando atividades danosas, mas com cendo os povos indígenas como sujeitos
pouca política de promoção positiva coletivos com direito a suas terras, às
ambiental. Verifica-se uma “orientação comunidades quilombolas detentoras de
conservacionista, voltada para a pro- direitos territoriais tradicionais (no texto:
teção de ecossistemas e espécies, mas remanescentes de quilombos), às mani-
sem uma dimensão social claramente festações culturais populares e os direitos
incorporada” (Santilli, 2005, p. 29). fundamentais “da pessoa humana”.1

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P O L Í T I CA A M B I E N TA L

Nessa toada, a ECO-1992 que ocor- Em 2012, ocorreu a Rio+20 (Con-


reu no Brasil resultou na Declaração do ferência das Nações Unidas sobre De-
Rio sobre Meio Ambiente e Desenvol- senvolvimento Sustentável). Simulta-
vimento, na Convenção da Diversidade neamente, a Cúpula dos Povos, a partir
Biológica (CDB), na Agenda 21 e na dos movimentos sociais, denunciava
Convenção-Quadro das Nações Unidas a economia verde. Já a Agenda 2030
sobre a mudança do clima, que consoli- para o desenvolvimento sustentável, em
daram o princípio do desenvolvimento 2015, estabelece 17 objetivos de desen­
sustentável, do princípio da precaução, volvimento sustentável e 169 metas
do poluidor-pagador; da participação para o estímulo econômico, ambiental
social e direito à informação e a vincu- e social a ser empreendido pelos chefes
lação do poder público na proteção e de Estado e de governo reunidos na sede
defesa ambiental (Lanfredi, 2002, p. 72). das Nações Unidas.
A Convenção da Diversidade Biológica
(CDB) se ergue sobre os pilares da con- Instrumentos jurídicos
servação da diversidade biológica, sobre da política ambiental
o desenvolvimento sustentável e sobre a A política ambiental brasileira pode
repartição justa e equitativa dos benefícios ter fonte em diversos instrumentos jurídi-
provenientes da utilização dos recursos cos. Abordaremos em especial a Política
genéticos. A biodiversidade é entendida, Nacional do Meio Ambiente (PNMA),
portanto, como englobante de genes, Lei Federal n. 6.938, de 31 de agosto
espécies e ecossistemas (Ferreira, 2008, de 1981 (Brasil, 1981) e a Constituição
p. 235). Durante a ECO-92, a Cúpula da Federal de 1988 (Brasil, 1988).
Terra, evento paralelo empunhado pelos A PNMA tem como princípios basi-
movimentos sociais, começou a elaborar lares a ação governamental na manuten-
a Carta da Terra, lançada somente em ção do equilíbrio ecológico; a racionali-
2000 no Palácio da Paz em Haia. Um dos zação do uso do solo, do subsolo, da água
princípios da Carta da Terra é “erradicar a e do ar; o planejamento e fiscalização do
pobreza como um imperativo ético, social uso dos recursos ambientais; a proteção
e ambiental”. dos ecossistemas, com a preservação
Após a ECO-92, outros momentos de áreas representativas; o controle e o
foram marcantes na edificação de metas zoneamento das atividades potencial ou
P e políticas ambientais no marco global. O efetivamente poluidoras; incentivos ao
Protocolo de Kyoto foi resultado da Con- estudo e à pesquisa de tecnologias orien-
venção do Clima em 1997, com o objetivo tadas para o uso racional e a proteção
de redução global da emissão de carbono. dos recursos ambientais; o acompanha-
A 8ª Conferência das Partes da Conven- mento do estado da qualidade ambiental;
ção sobre Diversidade Biológica (COP-8) a recuperação de áreas degradadas; a
ocorreu no Brasil, na cidade de Curitiba, proteção de áreas ameaçadas de degra-
em 2006, e movimentou diversos setores dação; a educação ambiental a todos os
sociais, em especial a Via Campesina, que níveis de ensino, inclusive a educação da
denunciava a liberação desenfreada de comunidade.2
transgênicos e as violações do Protocolo A lei de Política Nacional de Meio
de Cartagena sobre biossegurança. Ambiente (Brasil, 1981) também cria

588
P O L Í T I CA A M B I E N TA L

o Sistema Nacional do Meio Ambiente Conservação e Natureza (SNUC)4 divi-


(Sisnama), caracterizado pelo “grande didos em dois grandes grupos: Unidades
arcabouço institucional da gestão am- de Proteção Integral5 e Unidades de Uso
biental no Brasil”, com um conjunto de Sustentável;6 d) o estudo prévio de impacto
instituições e órgãos das esferas da união, ambiental antes da realização de qualquer
dos estados, do Distrito Federal, dos terri- obra ou atividade potencialmente causa-
tórios e dos municípios do poder público dora de dano ambiental, cujos critérios
(Milaré, 2005, p. 393). O Sisnama deve devem seguir resoluções do Conama;
funcionar como um feixe da união com e) a gestão de riscos, com avaliação de
capilaridades até os municípios e tem o controle da produção, comercialização e
poder de gerar um fluxo de informações uso de técnicas, métodos ou substâncias
entre os órgãos que se dividem em funções que possam causar riscos à vida e ao meio
de polícia, gestão e promoção ambiental. ambiente, com medidas preventivas e
Um importante espaço de controle social precatórias, além de legislações ou regu-
também é garantido pela PNMA: o Con- lamentos específicos, como é o caso da
selho Nacional do Meio Ambiente (Cona- Lei de Agrotóxicos (Lei Federal n. 7.802
ma), com papel consultivo e deliberativo. de 11 de julho de 1989. (Brasil, 1989); f)
Alguns instrumentos de efetivação da a educação ambiental e conscientização
tutela ambiental também foram previstos, para o exercício da cidadania ambiental,
dentre eles o licenciamento ambiental, que atualmente é regulada pela Política
o zoneamento, a avaliação de impactos, Nacional de Educação Ambiental, Lei
incentivos e políticas públicas e “espaços Federal 9.795, de 27 de abril de 1999
territoriais especialmente protegidos (Brasil, 1999); g) a proteção da fauna e da
pelo poder público federal, estadual e flora (Ferreira, 2008, p. 233-263).
municipal, tais como áreas de proteção Isto é, de um regime que considera-
ambiental, de relevante interesse ecoló- va a fauna silvestre como “propriedade
gico e reservas extrativistas”. do Estado”, a Constituição consagrou
No entanto, a política ambiental da a natureza como bem comum do povo
Lei 6.938/1981 (Brasil, 1981) foi constitu- [ver B em C omum], sem possibilidade de
cionalizada, ampliando deveres do poder apropriação em razão da natureza difusa
público, que também foram regulamen- (Ferreira, 2008, p. 264).
tados por outras leis federais. Dentre os No entanto, o regime jurídico, em
deveres estão: a) a proteção dos processos sua gênese capitalista, também apresenta P
ecológicos, o manejo das espécies e seus ecos- o condão de regular e garantir a circula-
sistemas, de forma a identificar a ecologia ção de mercadorias, bens e serviços. A
como a integração sistemática relacional política ambiental que se ergue, mesmo
entre seres e meio; b) a proteção da diver- constitucionalizada, é apresentada como
sidade e do patrimônio genético, incluindo objeto à serviço humano. Nas palavras de
a fiscalização de entidades e que mani- Carlos Marés,
pulam e pesquisam o material genético os sujeitos é que têm direito, quer
do e no Brasil;3 c) os espaços territoriais e dizer, poder de tratar a natureza como
especialmente protegidos, com regime espe- lhe convier, para a satisfação de suas
cial, como as Unidades de Conservação, necessidades reais ou imaginadas. As
com a instituição do Sistema Nacional de coisas são a natureza, que ganham re-

589
POLÍTICA AGRÍCOLA

levância quando se tornam objeto do cultar a repartição de benefícios oriundos


desejo, da necessidade ou do interesse do patrimônio genético e do conhecimen-
humano. (Souza Filho, 2015, p. 98). to tradicional associado a ele. Contudo,
Na década neoliberal de 1990, o também se evidencia o aprimoramento
Brasil consolidou mecanismos de pri- de políticas públicas importantes para
vatização ambiental e de inclusão no os agricultores familiares, camponeses e
mercado de valores, como os “ativos comunidades tradicionais.
ambientais”. Apesar da década com O avanço do conservadorismo e o
expressivas legislações ambientais, gerou realinhamento das burguesias internas
a possibilidade de tratar a política am- com o capital transnacional culmina-
biental dentro do mercado financeiro e ram no golpe institucional de 2016 e na
não do Estado como garantidor do “bem eleição de Jair Bolsonaro, representando
comum do povo”. Neste período, “grupos a política autoritária, neoliberal e priva-
sociais, povos e etnias que mantinham tista que remodela a política ambiental.
relação profunda com a natureza foram As ações do governo indicam o apro-
desterritorizalizados pelo avanço de uma fundamento das desigualdades sociais e
agricultura sem agricultores” (Porto- a não participação social no debate das
-Gonçalves, 2012, p. 129). políticas públicas, o que, com a manuten-
Já na primeira década de 2000, em ção do extrativismo e a reprimarização
meados dela, o neodesenvolvimentismo da economia, apenas reforça as bases
imperou como o desenvolvimento possível coloniais do Estado brasileiro. Exemplos
periférico, ainda que dentro dos marcos são a Medida Provisória (MP) n. 870,
neoliberais. A frente ampla de coalizão de 1 de janeiro de 2019 (Brasil, 2019b)
levou ao choque permanente de interesses e o Decreto n. 9.672, de 2 de janeiro de
o governo de setores populares e da bur- 2019 (Brasil, 2019a). Vivemos hoje na
guesia interna brasileira, especialmente crise ambiental mais severa das últimas
de alguns setores do agronegócio. As décadas, em que a política ambiental é
contradições se expressam também na afastada como bem essencial de guarida
política ambiental e agrária em prol do do Estado para se tornar unicamente
agronegócio, cuja principal expressão é fonte inesgotável de riqueza para apro-
a reformulação do Código Florestal, Lei priação privada e lucrativa.
12.651, de 26 de maio de 2012 (Brasil,
P 2012), ampliando e consolidando áreas Política ambiental,
desmatadas pelo grande setor agrope­ sociobiodiversidade e agroecologia
cuário. Nesse período se aprovou a Lei A terra e a natureza, com advento
de Biossegurança, Lei n. 11.105, de 24 de normativo moderno, deixaram de receber
março de 2005 (Brasil, 2005) e o conse- o direito de uso para ser mercadoria pura,
quente ingresso de Organismos Geneti- servindo tanto de garantia ao capital
camente Modificados no Brasil e o marco financeiro como renda ao proprietário.
regulatório da Biodiversidade, Lei 13.123, Nesse sentido, a política ambiental se
de 20 de maio de 2015 (Brasil, 2015), dicotomiza, estabelecendo áreas verdes
entendido pelos movimentos sociais e apartadas do ser humano que são vendi-
comunidades tradicionais como Lei da das como cotas ambientais no mercado
Biopirataria, por facilitar o acesso e difi- financeiro, ao mesmo tempo que a sucção

590
P O L Í T I CA A M B I E N TA L

predatória e a privatização da biodiversi- pelas populações tradicionais” (Souza


dade são permitidas com a expansão de Filho, 2015, p. 103) que permitiria um
fronteiras agrícolas e os monocultivos em real desenvolvimento local, regional e
larga escala. nacional para a real política ambiental
Para romper com essa lógica, o so­ que congregue a biodiversidade em suas
cioambientalismo se ergue diversas formas.
no pressuposto de que as políticas Todavia, “a inclusão das externali-
públicas ambientais só teriam eficá- dades (natureza) esbarra nos limites do
cia social e sustentabilidade política capital e da própria lei” (Souza Filho,
se incluíssem comunidades locais e 2015, p. 101). A regulação do mercado
promovessem uma repartição justa também exige um Estado fortalecido e
e equitativa dos benefícios derivados comunidades e povos respeitados em sua
da exploração dos recursos naturais. diversidade e relação com a natureza, ao
(Santilli, 2005, p. 35) contrário do que prega o neoliberalismo,
É aí que se buscam programa e polí- o privatismo ambiental e a financeiriza-
ticas agrárias e de desenvolvimento rural ção da natureza. Os “vieses” da política
que agreguem a produção orgânica e ambiental se constroem na práxis e na
agroecológica, práticas agroextrativistas correlação de forças. Cabe a nós, povos
e agroflorestais com autonomia dos cam- brasileiros, empunharmos nossas bandei-
poneses, povos indígenas e comunidades ras e ocuparmos a arena, fincando o so-
tradicionais. É a “aliança forte com a cioambientalismo e a agroecologia como
natureza e um ideal coletivista ensinado ciência, prática, movimento e política.

Referências
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POLÍTICA AGRÍCOLA

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OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a
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o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o
destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de
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Artigo 8, a alínea c do Artigo 10, o Artigo 15 e os §§ 3º e 4º do Artigo 16 da Convenção sobre Diversidade
Biológica, promulgada pelo Decreto n. 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio
genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios
P para conservação e uso sustentável da biodiversidade; revoga a Medida Provisória n. 2.186-16, de 23 de agosto
de 2001; e dá outras providências. 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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Notas
1
Entendidos aqui como os direitos humanos econômicos, sociais, ambientais e culturais em seu
conjunto e integralidade.
2
Íntegra do artigo 2º, incisos I a X da PNMA. (Brasil, 1981)
3
A Lei de Biossegurança n. 11.105 de 24 de março de 2005 regula de forma ambígua e contraditória
a liberação de Organismos Geneticamente Modificado (Brasil, 2005).
4
Lei Federal 9.985, de 18 de julho de 2000 (Brasil, 2000).
5
Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parques Nacionais; Monumentos Nacionais; Refúgios de Vida
Silvestre.
6
Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta Nacional, Reserva
Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do
Patrimônio Natural.

POLÍTICA SOCIAL

G uilher me C osta D elgado

O conceito de política social1 é nos situar no âmbito da relação Estado,


relativamente novo para significar o sociedade e política social, do século P
conteúdo de “política de ação” (policy) XX ao presente, mirando o Estado de
no espaço social que vamos aqui tratar. Bem-Estar mas sem ignorar os exemplos
Esta conexão preambular entre “política” históricos e ideológicos contemporâneos
e “social” apresenta acepções diferentes que o negam. Vamos, por aproximações
em outros contextos históricos, teóricos sucessivas, fazer a contextualização con-
e políticos distintos do Estado de Bem- ceitual, que, como se verá, se ancora em
-Estar, que por sua vez é um conceito determinado campo doutrinário.
amplo o suficiente para albergar distintas Uma primeira aproximação consiste
tipologias. Daí que, para não cairmos em em situar a política social como espécie
uma polissemia infinita de fenômenos de um gênero maior, o das políticas
político-sociais indeterminados, vamos públicas, integrantes da esfera pública,

593
POLÍTICA SOCIAL

no sentido universal, da totalidade da política social lida com o conflito tácito


sociedade, mais além do espaço privado ou explicito, para definir em cada mo-
e também do espaço estatal. mento histórico o seu próprio espaço e
Uma segunda aproximação, de ca- a sua própria finalidade.
ráter teórico-epistêmico, ressalta uma O espaço social da política social
aparente ambiguidade presente no âm- nas muitas variantes do Estado de
bito do estudo. Por um lado, existe a Bem-Estar fundamenta-se no reco-
pretensão teórica da política social em nhecimento de que os seres humanos
se afirmar como disciplina científica, “[...] conviventes em sociedade são porta-
de par com outras disciplinas como a dores de direitos inerentes à condição
Sociologia, a Ciência Política, a Econo- humana. Estes direitos sociais têm em
mia e o Serviço Social, embora transite vista o atendimento de determinadas
por todas elas, dado seu caráter inter e necessidades, sintetizadas no amplo
multidisciplinar” (Potyara, 2008). Em conceito de proteção social, sem o que
contrapartida, outra concepção de polí- a vida humana correria sério risco de
tica social é considerá-la como campo de degradação, perecimento e ou perda de
estudo dessas disciplinas científicas ou de dignidade essencial. Este fundamento
outras, para as quais figure como fonte ético baseia-se em princípios filosófi-
de fatos e informações às abordagens cos, teológicos e políticos de um amplo
da disciplina científica a que pertença espectro de correntes de pensamento –
cada pesquisador. Neste texto, estamos liberais clássicos, sociais-democratas e
assumindo a primeira opção, sem ignorar socialistas do século XIX e XX.
que muitas vezes o conceito é utilizado Em contrapartida, há uma corrente
na linha do campo de estudo. de Economia Política contemporânea, a
Uma terceira dimensão conceitual do neoliberalismo, cujos protagonistas
tem relação não apenas com a política doutrinários – Ludwig von Misses, F.A.
social, mas com toda a política pública, von Hayek e Milton Friedman – negam
na acepção de policy (política de ação), explicitamente os direitos sociais en-
à qual estão implicadas duas dimensões quanto direitos humanos, remetendo
de fazer política. A primeira consistindo ao mercado autossuficiente a arbitra-
no processo de formação e concertação gem sobre os serviços sociais a serem
dos consensos políticos com respeito às providos e consumidos pelos indivíduos
P ações públicas a serem exercidas. A se- dotados de renda e riqueza, habilitados
gunda dimensão tem a ver com a gestão por tais atributos a atender desejos de
dessas ações de política social, no sentido consumo. Necessidades humanas bási-
da administração dos múltiplos serviços cas e direitos sociais correspondentes,
situados na esfera da política social. Essas a serem atendidos por serviços sociais
duas dimensões são autônomas, mas não construídos na esfera pública, não com-
independentes, porquanto se reportam parecem nessa visão ideológica, para
ao mesmo campo doutrinário daquilo quem política social tem conotação
que se poderia denominar de “espaço muito mais restrita às ações de alívio
social” de prestação de serviços sociais à extrema pobreza, mas sem qualquer
acordados na esfera pública. Mas aqui relação com direito social ou direito
já é possível prenunciar que a própria humano, positivamente construído.2

594
POLÍTICA SOCIAL

Do exposto infere-se que há direitos pleto com o conceito de política social


sociais,3 na categoria genérica de direitos ligado ao Estado de Bem-Estar, que ora
humanos, que precisam de definição estamos tratando.
positiva (legal) para serem exercidos, Trata-se de duas concepções doutri-
e que a política social fundamentada nárias opostas, que fundamentam aquilo
nesses direitos e nos serviços sociais cor- que formalmente se poderia chamar de
respondentes estará sempre em disputa, política social, sendo que a última é tão
seja no campo estritamente político, seja centrada no mercado autossuficiente que
no campo da gestão de governo, quando guarda precária relação com a política
o ideário neoliberal a assume. pública e o espaço social como aqui
Por sua vez, a Constituição Federal incorporados ao conceito de política
do Brasil (Brasil, 1988) define, em seu ar- social. Mas as concepções doutrinárias
tigo 6o, introdutoriamente, quais seriam nunca se encontram em estado puro
os direitos sociais a serem amparados na história concreta, tanto na “práxis”
pelo Estado nos termos mais detalhados dos serviços sociais oferecidos quanto
corroborados em mais de 30 artigos da nas definições de prioridade do agir
sua “Ordem Social” – (Art. 193 a 231). político dos governos. Daí o hibridismo
O Art. 6° assim os elenca: “[...] educação, e a ambiguidade das políticas sociais
saúde, alimentação, trabalho, previdên- efetivamente praticadas em cada país e
cia social, proteção à maternidade e in- no Brasil em particular.
fância, assistência aos desamparados nos As políticas sociais brasileiras institu-
termos desta Constituição”, e estes são o cionalizadas a partir de 1988 na Constitui-
cerne da política social. Isso pressupõe, ção Federal (Brasil, 1988), principalmente
com todas as suas consequências, que o nos artigos da “Ordem Social”, contêm
nosso ordenamento constitucional faz a mecanismos específicos de participação
ligação entre política social e esfera pú- popular, a exemplo dos Conselhos de
blica, direitos sociais e direitos humanos. Saúde, Assistência Social e Previdência
Do exposto, depreende-se existir Social, disciplinados no conceito da Segu-
um conflito ideológico quase que abissal ridade Social (Art. 194 – item VII), assim
no âmbito do que convencionalmente também no campo da Educação; podendo
se denomina “política social” com foco ser acessados a maior parte deles também
nos direitos sociais. Contraditoriamente nos níveis municipal e estadual.
a essa linha, a negativa do fundamento Mais além da participação em con- P
no direito humano privaria o acesso das selhos institucionalizados, as pressões
pessoas à política social nas situações políticas – tendo em vista formular
de evidente necessidade configurada. demandas e estabelecer consensos no
Trata-se da tese neoliberal, que prevê o âmbito das políticas social – operam-se
acesso a serviços mercantis tão somente em vários outros âmbitos políticos do
por aqueles indivíduos portadores de Estado e da sociedade; mas o referencial
renda e riqueza e, por essa via, habili- normativo principal está contido no
tados a comprar serviços no mercado Direito Social da ordem constitucional;
em todos aqueles âmbitos dos serviços daí porque há tanta demanda do campo
sociais – saúde, educação, previdência conservador na atualidade para derruba-
social etc. Essa tese choca-se por com- da desse ordenamento.

595
POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA

Referências
BRASIL. Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República
Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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POTYARA, A. P. P. Política social, temas e questões. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

Para saber mais


SUNG, J. M. Idolatria do dinheiro e direitos humanos – uma crítica teológica do novo mito do capitalismo.
São Paulo: Ed. Paulus, 2018.

Notas
1
Principal fonte deste texto: Potyara, A. P. P. Política social, temas e questões. São Paulo: Cortez Editora,
2008.
2
Para uma discussão ampla dos fundamentos econômicos neoliberais contrários aos direitos sociais e
consequente política social sobre estas bases, ver em especial o teólogo e economista Jung Mo Sung,
no livro Idolatria do dinheiro e direitos humanos – uma crítica teológica do novo mito do capitalismo
(São Paulo: Ed. Paulus, 2018, em especial o capítulo II, “A revolução da estrutura mítica do capita-
lismo”).
3
A teoria do Estado do Bem-Estar entende que a categoria direitos sociais, no contexto mais amplo
dos direitos humanos, se caracteriza a partir da linha de construção da “liberdade positiva”, que
implica na dotação de meios materiais pelo Estado à consecução desses direitos. Neste sentido, esses
direitos se distinguem da categoria dos direitos civis e políticos, conceituados na linha da “liberdade
negativa” ou da ausência da coerção, compulsão e intervenção do Estado.

POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA1

I r acema F er r eir a de M our a

O objetivo deste verbete é apresentar com consequente acentuação do pro-


e exemplificar como o enfoque agroe- cesso de degradação ecológica, cultural
cológico entrou na agenda de políticas e de exploração social (Guzmán Casado;
P públicas setoriais, foi delineando ações, Molina; Sevilla-Guzmán, 2000). Apesar
diretrizes e programas que foram integra- do relativo sucesso nos quesitos produção
dos e articulados na elaboração da Política e produtividade, esse modelo reproduziu
Nacional de Agroecologia e Produção as desigualdades distributivas na pro-
Orgânica (Pnapo) e do Plano Nacional priedade e na renda, gerou êxodo rural,
de Agroecologia e Produção Orgânica desemprego nos campos e nas cidades,
(Planapo), em 2012, consti­tuídos na re- marginalização urbana, exclusão social e
lação Estado e sociedade civil.1 econômica e desarticulação regional dos
A Revolução Verde [ver Revolução processos de desenvolvimento econômico
Verde] intensificou o uso dos recursos (Schneider; Ercher, 2011). Há uma ten-
naturais na produção agrícola, elevando-o dência para o esvaziamento do campo e
a um patamar industrial de exploração, a expansão da monocultura concentrada

596
POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA

em poucas espécies, como soja, milho cabendo ao Estado brasileiro assumir seu
e cana-de-açúcar (Sauer; Leite, 2012). papel no apoio e fortalecimento de uma
Nesse contexto, a agroecologia vem se agricultura de base agroecológica.
apresentando como uma importante A centralidade do tema da seguran-
estratégia para a implementação de pro- ça alimentar e nutricional esteve pre-
gramas de desenvolvimento rural em sente a partir de 2003, com a criação do
bases “realmente sustentáveis” (Moreira; Fome Zero no governo Lula, agregando
Carmo, 2004). outras questões como a preocupação com
a nutrição, o combate à fome e à misé-
Agroecologia nas políticas públicas ria, a cultura alimentar, a alimentação
Com a abertura democrática na dé- saudável, reinstalando e reestruturando
cada de 1980 e a Constituição Federal de o Conselho de Segurança Alimentar
1988 (Brasil, 1988), as instâncias de par- (Consea).2 Cria-se a Política Nacional
ticipação são visibilizadas e ampliadas, de Segurança Alimentar e Nutricional
possibilitando também o início de um (PNSAN), que tem como uma das dire-
processo de contestação à modernização trizes a “promoção do abastecimento e da
da agricultura. estruturação de sistemas descentraliza-
A implementação da Pnapo e do dos, de base agroecológica e sustentáveis
Planapo fez parte de uma construção de produção, extração, processamento
histórica, que vem da atuação do movi- e distribuição de alimentos”.3 A institu-
mento agroecológico desde a década de cionalidade criada por meio da PNSAN
1980, com várias iniciativas nas áreas vai se aliar a uma discussão sobre a base
de ensino, pesquisa, extensão, comer- produtiva e dar vida a programas como
cialização e certificação, protagonizadas o Programa de Aquisição de Alimentos
por esses movimentos sociais, ONGs (PAA), o Programa Nacional de Alimen-
e comunidades locais. Uma das ações tação Escolar (Pnae) e a Política de Ga-
precursoras do apoio do Estado para a rantia de Preços Mínimos para Produtos
transição agroecológica foi o subprogra- da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio) [ver
ma Projetos Demonstrativos (PDA) do Compra Pública de Alimentos].
Projeto Piloto. As ações do PDA foram Segundo Schmitt (2013), essas ações
locus importante para redes de atuação contribuem para a construção da agroe-
com a agroecologia, como é o caso da cologia em alguns aspectos em comum,
Articulação Nacional de Agroecologia tais como: possibilitam o fortalecimento P
(ANA) [ver A rticul ação N acional de das práticas extrativistas e da reprodução
A groecologia] , para apresentar suas social de quem vive delas, promovendo
ideias e demandas relativas a políticas a sustentabilidade; os produtos do ex-
públicas de apoio à agroecologia. trativismo e os adquiridos pelo PAA e
Essas iniciativas somaram, impul- Pnae apresentam enraizamento cultural
sionaram e pressionaram as ações ins- nos territórios; contribuem para resgatar
titucionais e as que seguiram nos anos e valorizar alimentos locais, conheci-
posteriores. Assim, dentro de um de seus mentos tradicionais, práticas culturais
pilares de atuação dos movimentos, ar- e alimentares; ambos os programas têm
ticulados na ANA, criaram-se as condi- o acréscimo de 30% nos preços de refe-
ções para disputar uma agenda política, rência para os alimentos produzidos de

597
POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA

modo agroecológico ou orgânico; ambos avaliação da conformidade existentes


os programas enfatizam o fornecimento no país e viabilizou o acesso aos pro-
de alimentos saudáveis às populações gramas de compra governamental para
em situação de insegurança alimentar e grupos de agricultores que fizeram a
nutricional, especialmente o Pnae. opção por sistemas participativos de
O fortalecimento de uma arena garantia (Karam et al., 2006). Os gru-
política ligada à Segurança Alimentar pos e as organizações do movimento
e Nutricional (SAN), como o Consea, orgânico e agroecológico brasileiros
e o papel que este exerceu na articula- dedicados ao fortalecimento de rela-
ção de diversos movimentos e sujeitos ções mais próximas entre produtores
sociais identificados com os princípios e consumidores fortaleceram e de-
da agroecologia e de políticas voltadas fenderam os processos participativos
ao desenvolvimento rural e agricultura de garantia como os que já vinham
familiar, permitiu que o enfoque agroe- sendo praticados pela Rede Ecovida de
cológico tornasse realidade nas políticas Agroecologia, no Sul do Brasil (Karam
públicas. Espaços como o Consea, assim et al., 2006).
como o Conselho Nacional de Desenvol- Nesse período, algumas importantes
vimento Rural Sustentável (Condraf), instâncias de participação foram cria-
tornaram-se arenas importantes para das, envolvendo diversas organizações
influenciar na formulação e implementa- do campo agroecológico e orgânico, a
ção de novos instrumentos e programas saber: a) Comitê de Agroecologia do
de políticas públicas, bem como articular Condraf; b) Comissão Interministerial
as inciativas em execução voltadas à criada com o intuito de promover, cons-
transição agroecológica. truir, aperfeiçoar e desenvolver políticas
As Conferências Nacionais de Se- públicas para a inclusão e incentivo à
gurança Alimentar e Nutricional e as de abordagem da agroecologia e sistemas de
desenvolvimento rural sustentável e soli- produção orgânica nos diferentes níveis
dário, outra promoção no contexto dos e modalidades de educação; c) Fórum
governos do presidente Luiz Inácio Lula Permanente de Agroecologia e projetos
da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff componentes dos projetos em rede Tec-
(2011-2016), também passaram a pautar nologias para Agricultura Orgânica e de
a agroecologia. Dessa forma, várias ações Transição Agroecológica da Embrapa;
P de políticas públicas nacionais passaram d) Câmaras Temáticas de Agricultura
a incorporar, ao menos em parte, pro- Orgânica, Comissão Nacional de Pro-
posições elaboradas por organizações dução Orgânica (CNPOrg) e Comissões
promotoras da agroecologia. da Produção Orgânica nas unidades da
No primeiro ano do governo Lula, Federação (CPorg).
por exemplo, a legislação brasileira re-
conheceu o papel do controle social na Políticas de ensino, pesquisa e
verificação e na garantia da qualidade, extensão e agroecologia
oficializando os sistemas participativos Algumas experiências no campo
de garantia e do controle social na ven- das chamadas agriculturas alternativas
da direta pelos agricultores familiares.4 foram o embrião para a constituição
Oficializou as diferentes práticas de de processos de ensino-aprendizagem.

598
POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA

Especialmente nas Ciências Agrárias, rural, com o objetivo de apoiar proje-


foram os estudantes, organizados nos tos voltados à realização de estudos e
centros acadêmicos e em articulação pesquisas em agroecologia, tais como a
com a Federação dos Estudantes de implantação e consolidação de núcleos
Agronomia do Brasil (Feab) e educado- de agroecologia (Padula et al., 2013). Em
res, os primeiros a levantar o debate e 2006, a Embrapa consolidou seu marco
conduzir várias iniciativas sobre a inser- referencial em agroecologia, abrindo a
ção da Agroecologia na educação formal possibilidade de elaboração e aprovação
desde os anos 1980. Sobretudo após o de projetos e programas de agroecologia
ano 2000, surgiram nas instituições de naquela instituição.
ensino formal cursos constituídos a par- A assistência técnica e a extensão
tir da crítica ao enfoque tecnicista que rural (Ater) foi outra área que incor-
se aproximam da agroecologia (Aguiar, porou o enfoque agroecológico quando
2010). Esses egressos das universidades algumas organizações da sociedade civil
encontraram um lugar para atuação assumiram um protagonismo na execu-
profissional quando surgiu, em 1997, o ção de políticas públicas. Criou-se um
Projeto Lumiar.5 O projeto era execu­ canal de interlocução com os governos
tado de forma bastante diferenciada nos locais, estaduais e com o Ministério do
estados, mas em geral favoreceu o desen- Desenvolvimento Agrário (Dias, 2004).6
volvimento de expe­riências e ampliou o No governo federal, em 2003, o Departa-
debate agroecológico nos assentamentos mento de Assistência Técnica e Extensão
(Dias, 2004). Rural (Dater) foi transferido do Mapa
Foram criados no Brasil, a partir de para o MDA.7 Nesse contexto, essa
2003, mais de 100 cursos de agroecolo- retomada da contribuição do governo
gia ou com enfoque em agroecologia. com o lançamento da Política Nacional
O Brasil conta com diversos cursos de de Assistência Técnica e Extensão Rural
tecnólogo e bacharel em agroecologia, (Pnater), em 2004, mostrou-se intima-
cursos de especialização, mestrado e mente vinculada à institucionalização
linhas de programas de doutorado dentro da política de desenvolvimento rural e
do campo de conhecimento da agroeco- de fortalecimento da agricultura familiar
logia (Balla; Massukado; Pimentel, 2014; em resposta à demanda de movimen-
Caporal; Petersen, 2012). O Programa tos sociais. Porém, com descompassos
Nacional de Educação para Reforma temporais que aconteceram entre o P
Agrária (Pronera) do Instituto Nacio- lançamento da Pnater e o regramen-
nal de Colonização e Reforma Agrária to da forma de operação por meio da
(Incra) contribuiu para a aproximação Lei n. 12.188, de Assistência Técnica e
da Educação do Campo com os pressu- Extensão Rural (Ater), de 11 de janei-
postos da agroecologia (Aguiar, 2010). ro 2010 (Brasil, 2010b), (Diesel; Dias;
Em relação à pesquisa, uma ação Neumann, 2015). Segundo Caporal e Pe-
importante a partir de 2004 foi a aber- tersen (2012), é na Pnater que a palavra
tura de editais de pesquisa lançados agroecologia aparece pela primeira vez
pelo Conselho Nacional de Desen- em uma política pública nacional como
volvimento Científico e Tecnológico orientação para a ação dos extensionistas
(CNPq), em interface com a extensão rurais brasileiros.

599
POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA

Financiamento e a agroecologia político favorável, foi fator fundamental


Até o início da década de 1990, não para a elaboração da Pnapo e do Plana-
havia nenhum tipo de política pública po,10 instituídos pelo Decreto n. 7.794,
específica, com abrangência nacional, de 20 de agosto de 2012, com o objetivo
voltada para o financiamento dos agri- de integrar e articular políticas indutoras
cultores familiares no Brasil. Ainda no da transição agroecológica e da produ-
ano de 1994, o tema da reconversão e ção orgânica e de base agroecológica no
da reestruturação produtiva dos agricul- Brasil. A elaboração da Pnapo aconteceu
tores familiares passou a integrar mais em um contexto político-histórico de um
fortemente a agenda governamental.8 No governo federal que cria mecanismos de
decorrer dos anos em que foi implementa- diálogo com a sociedade e que se abre para
do, o Programa Nacional da Agricultura pautas antes não acolhidas.
Familiar (Pronaf) sofreu uma série de Os instrumentos dessa política apon-
mudanças e foram criadas novas moda- tados no decreto foram, em primeiro lu-
lidades, resultando na aprovação da Lei gar, o Planapo, seguido do crédito rural e
da Agricultura Familiar, Lei n. 11.326, de de outros mecanismos de financiamento,
24 de julho de 2006 (Brasil, 2006), que tais como o seguro agrícola, a renda, os
institucionalizou a categoria agricultor preços agrícolas e extrativistas, incluídos
familiar.9 Posteriormente, foram criadas mecanismos de regulação e compensação
modalidades de créditos conhecidas como de preços nas aquisições ou subvenções;
Pronaf Agroecologia e Pronaf Semiárido, compras governamentais; medidas fiscais
e regras que possibilitariam às modalida- e tributárias; pesquisa e inovação cien-
des já existentes financiar projetos com tífica e tecnológica; assistência técnica
enfoque agroecológico. Não obstante as e extensão rural; formação profissional
inovações, essas linhas de crédito não ti- e educação; mecanismos de controle; e
veram uma boa execução. Primeiramente, sistemas de monitoramento e avaliação.
os agentes financeiros não priorizaram A Pnapo foi resultado de um processo
os projetos de transição agroecológica. emergente, de baixo para cima. Foram
Além disso, os fatores, tais como a natural as experiências e ideias historicamente
complexidade dos projetos concebidos construídas na base que deram solidez às
pelo enfoque agroecológico, os prazos de diretrizes, instrumentos, objetivos, metas
carência e pagamentos e o montante que e iniciativas da política e do plano. Uma
P se propunha a investir contribuíram para característica da agroecologia é permitir
dificultar o acesso a essas modalidades estabelecer conexões com outras agen-
(Weid, 2010). das, fazendo com que, aos poucos, vários
segmentos da sociedade fossem adotando
Política nacional de agroecologia e essa agenda e pautando-a nas políticas
produção orgânica públicas por várias vertentes, seja pela
A atuação convergente do movi- agenda ambiental, seja pela agenda tec-
mento agroecológico e orgânico [ver nológica, da saúde pública, da educação,
Movimento Agroecológico; Agricultura da pesquisa.
Orgânica], com destaque para as organi- Apesar das limitações e lacunas, a
zações das mulheres trabalhadoras rurais Pnapo e o Planapo têm o grande mérito
e camponesas, aliada a um momento de serem a afirmação da agroecologia en-

600
POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA

quanto política pública, se estabelecendo direitos no Brasil, tais como: a concentra-


como um marco e uma conquista política. ção da terra; as desigualdades (de renda,
O conjunto de políticas e normati- étnica, racial e de gênero); a insegurança
vas instituídas após 2003 foram avanços alimentar e nutricional dos povos indí-
importantes na formulação de um apa- genas e comunidades tradicionais; além
rato legal para a garantia do DHAA e o de novos desafios, tais como a epidemia
fortalecimento da agricultura familiar e de obesidade e o fato de o Brasil ter se
camponesa, mesmo persistindo desafios tornado o maior mercado de agrotóxicos
históricos para a plena realização desses do mundo.

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_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 4.739, de 13
de junho de 2003. Transfere a competência que menciona, referida na Lei n. 10.683, de 28 de maio de 2003,
que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências.
2003b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4739.htm. Acesso: 10 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto 6.323, de 27 de
dezembro de 2007. Regulamenta a Lei n. 10.831, de 23 de dezembro de 2003, que dispõe sobre a agricultura
orgânica, e dá outras providências. 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/decreto/d6323.htm. Acesso em: 10 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 7.272, de 25
de agosto de 2010. Regulamenta a Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006, que cria o Sistema Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas a assegurar o direito humano à alimentação
adequada, institui a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - PNSAN, estabelece os
parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e dá outras
providências. 2010a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/ P
D7272.htm. Acesso em: 10 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 10.831, de 23 de
dezembro de 2003. Dispõe sobre a agricultura orgânica e dá outras providências. 2003c. Disponível em:
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outubro de 2009. Dispõe sobre a prestação de apoio financeiro pela União aos entes federados que recebem
recursos do Fundo de Participação dos Municípios − FPM, no exercício de 2009, com o objetivo de superar
dificuldades financeiras emergenciais; altera as Leis n. 11.786, de 25 de setembro de 2008, 9.503, de 23 de
setembro de 1997, 11.882, de 23 de dezembro de 2008, 10.836, de 9 de janeiro de 2004, 11.314, de 3 de julho
de 2006, 11.941, de 27 de maio de 2009, 10.925, de 23 de julho de 2004, 9.636, de 15 de maio de 1998, 8.036,
de 11 de maio de 1990, 8.212, de 24 de julho de 1991, 10.893, de 13 de julho de 2004, 9.454, de 7 de abril de

601
POLÍTICAS PÚBLICAS EM AGROECOLOGIA

1997, 11.945, de 4 de junho de 2009, 11.775, de 17 de setembro de 2008, 11.326, de 24 de julho de 2006, 8.427,
de 27 de maio de 1992, 8.171, de 17 de janeiro de 1991, 5.917, de 10 de setembro de 1973, 11.977, de 7 de julho
de 2009, 11.196, de 21 de novembro de 2005, 9.703, de 17 de novembro de 1998, 10.865, de 30 de abril de
2004, 9.984, de 17 de julho de 2000, e 11.772, de 17 de setembro de 2008, a Medida Provisória n. 2.197-43, de
24 de agosto de 2001, e o Decreto-Lei n. 1.455, de 7 de abril de 1976; revoga a Lei n. 5.969, de 11 de dezembro
de 1973, e o art. 13 da Lei n. 11.322, de 13 de julho de 2006; e dá outras providências. 2009. Disponível em:
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_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 12.188, de 11 de
janeiro de 2010. Institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura
Familiar e Reforma Agrária - PNATER e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na
Agricultura Familiar e na Reforma Agrária - PRONATER, altera a Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993,
e dá outras providências. 2010b. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/
lei/l12188.htm. Acesso em: 10 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei n. 12.512, de 14 de
outubro de 2011. Conversão da Medida Provisória nº 535, de 2011. Institui o Programa de Apoio à Conservação
Ambiental e o Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais; altera as Leis nºs 10.696, de 2 de julho
de 2003, 10.836, de 9 de janeiro de 2004, e 11.326, de 24 de julho de 2006. Brasília, 2011. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12512.htm. Acesso em: 10 abr. 2021.
_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Medida Provisória n. 726,
de 12 de maio de 2016. Altera e revoga dispositivos da Lei n. 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispõe sobre
a organização da Presidência da República e dos Ministérios. 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/mpv/mpv726.htm. Acesso em: 10 abr. 2021.
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Notas
1
Este verbete é uma adaptação do capítulo “Antecedentes e aspectos fundantes da agroecologia e
da produção orgânica na agenda das políticas públicas no Brasil”, de minha autoria, publicado no
livro SAMBUICHI, R. H. R. et al. A política nacional de agroecologia e produção orgânica no Brasil:
uma trajetória de luta pelo desenvolvimento rural sustentável. Brasília: Ipea, 2017.

602
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

2
Criado no governo Itamar Franco, o Consea foi suspenso durante o primeiro governo FHC e foi
recriado no primeiro governo Lula.
3
Decreto n. 7.272, de 25 de agosto de 2010 (Brasil, 2010a).
4
Lei n. 10.831, de 23 de dezembro de 2003 (Brasil, 2003c), define e estabelece condições obrigatórias
para a produção e a comercialização de produtos da agricultura orgânica. A Lei, assim como sua
regulamentação por meio do Decreto n. 6.323, de 27 de dezembro de 2007 (Brasil, 2007), foi apro-
vada contando com a participação de representantes do setor, membros de organizações públicas e
privadas. A Lei e o Decreto criaram os mecanismos de controle para a garantia da qualidade orgânica.
Pelo Decreto, foi criado o selo único oficial do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade
Orgânica (SISOrg) e o sistema participativo de garantia, não considerado nas normativas anteriores.
5
O Projeto Lumiar foi uma iniciativa emergencial do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) de descentralizar os serviços de prestação de assistência técnica aos assentados da
reforma agrária que funcionou até o ano 2000.
6
O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foi criado em 2000 e regulamentado pelo Decreto
n. 3.338 de 14 de janeiro de 2000 (Brasil, 2000), depois revogado pelo Decreto n. 4.723, de 6 de
junho de 2003 (Brasil, 2003a), que manteve o nome do ministério e definiu suas competências. O
MDA foi extinto pela Medida Provisória n. 726, de 12 de maio de 2016 (Brasil, 2016) e foi criada
a Secretaria Especial da Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário, também extinta em
2019. Parte de suas atribuições foram incorporadas ao Mapa.
7
Por meio do Decreto n. 4.739 de 13 de junho de 2003 (Brasil, 2003b).
8
Respondendo às pressões dos movimentos sociais, o governo Itamar Franco (1992-1994) lançou o
Programa de Valorização da Pequena Produção Rural (Provap), que serviu como ponto de partida
para a criação, em 1995, e implementação, em 1996, no primeiro mandato do presidente Fernando
Henrique Cardoso (1995-1998), do Pronaf (Ferreira; Alves; Filho, 2008).
9
Posteriormente, a Lei n. 11.326 de 24 de julho de 2006 (Brasil, 2006) foi alterada pela Lei n. 12.058,
de 13 de outubro de 2009 (Brasil, 2009) e pela Lei n. 12.512, de 14 de outubro de 2011 (Brasil, 2011).
10
Em atendimento ao Decreto, o processo de construção do Planapo foi liderado e coordenado, no
âmbito da Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (Ciapo), pelo Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) em estreito diálogo com a Comissão Nacional de Agroecologia
e Produção Orgânica (Cnapo), com a Secretaria-Executiva da SG/PR sob a responsabilidade da SG/
PR. Tanto a Ciapo quanto a Cnapo foram instâncias criadas pelo Decreto 7.794/2012.

POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS


P
M onica N ogueir a

O termo “povos e comunidades Brasil como uma categoria abrangente,


tradicionais”1 designa genericamente referindo também povos indígenas e
vários grupos que se distinguem cultu- quilombolas. Este verbete, no entanto,
ralmente do restante da sociedade bra- focaliza uma parcela dos povos e comuni-
sileira por seus modos de vida e relações dades tradicionais cujo reconhecimento
particulares com o meio ambiente e as e afirmação de direitos é mais recen-
terras que tradicionalmente ocupam te. São, em grande parte, agricultores,
(por posse ou propriedade). A categoria criadores e extrativistas, cujos modos
se estabeleceu nas últimas décadas no de vida guardam forte interface com o

603
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

campo teórico e prático da agroecologia meio ambiente – seja esse o litoral ou as


[ver Agroecologia]. Geraizeiros, quebra- beiras de rios, os campos ou as florestas
deiras de coco, vazanteiros, catadoras –, moldando, em certa medida, modos
de sempre-vivas, retireiros, pescadores de produção (com saberes e fazeres pró-
artesanais, seringueiros, castanheiros, prios), relações sociais e concepções de
ribeirinhos, fechos de pasto, caiçaras, mundo (ou cosmovisões) [ver Cosmovi­
pomeranos, faxinalenses são alguns dos sões]. Por essa razão, a emergência re-
povos e comunidades tradicionais que cente da categoria povos e comunidades
se encontram em diferentes regiões do tradicionais está fortemente associada à
país, de norte a sul, do litoral às terras noção de sociobiodiversidade e à afir-
interiores do Brasil, grande parte em mação das estreitas relações entre di-
áreas rurais, mas que se fazem presentes versidade cultural e biológica, em alguns
também em áreas urbanas.2 casos manifestas inclusive em termos de
O desenvolvimento desses modos cocriação – ou seja, de incremento da
de vida particulares resulta de com- diversidade cultural em decorrência de
plexos processos históricos, marcados interações com o meio ambiente, tanto
por entrecruzamentos culturais, nem quanto de aumento da biodiversidade
sempre pacíficos, entre povos indíge- pelo manejo humano.
nas, negros, colonizadores portugueses As relações que povos e comuni-
e imigrantes europeus que aportaram dades tradicionais estabeleceram com
no país em diferentes momentos. Parte as terras que tradicionalmente ocupam
desses processos estiveram associados a e seus recursos naturais fazem, portan-
distintas ondas de ocupação das terras to, com que esses espaços se tornem
brasileiras ao longo dos séculos – frentes territórios material e simbolicamente
colonizadoras como a portuguesa a partir apropriados pela experiência histórica
do século XVI, mas também aquelas im- e coletiva. Um povo ou comunidade
pulsionadas em períodos mais recentes, tradicional comumente expressa um
como o ciclo da borracha na Amazônia forte sentimento de pertencimento ao
a partir do século XIX; migrações com- seu território, nutrido pela memória do
pulsórias, como a sofrida por mulheres processo de ocupação desse lugar, in-
e homens, do continente africano para cluindo eventos e pessoas de um passado
o Brasil no período da escravidão, ou a comum, pelo apego às paisagens em que
P de refugiados da Primeira e da Segunda seus membros nasceram e se criaram ao
Guerra Mundial; dispersão por terras longo de gerações e pela familiaridade
livres impulsionada pelo declínio de ci- adquirida com esse mesmo lugar e cada
clos econômicos, como os ciclos do ouro um dos elementos que o constituem e
em Minas Gerais e Mato Grosso, apenas são manejados por eles.
para citar alguns exemplos. As estratégias produtivas, por sua
Portanto, povos e comunidades tra- vez, baseiam-se no conhecimento acu-
dicionais gestaram-se também a partir de mulado por gerações sobre os ecossis-
processos de territorialização, enquanto temas que configuram esses territórios
formas de organização e reorganização tradicionais. Foi a partir desse aprendiza-
social sobre um determinado espaço. do, estabelecido com base em processos
Tais processos implicaram adaptações ao de observação e experimentação de

604
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

longa duração, que povos e comunidades mas também de atividades sociais e


tradicionais desenvolveram formas de culturais para a reprodução simbólica
manejo que se revelam mais sustentáveis, desses grupos. Assim, as relações de pa-
em razão do grau de adaptação das ativi- rentesco e compadrio, na medida em que
dades produtivas aos ciclos e dinâmicas constituem a estrutura social pela qual
ecológicas locais. Os agroecossistemas se realiza o compartilhamento de expe-
[ver A groecossistemas] que resultam riências passadas e presentes, canalizam
desse esforço combinam usos diversos a memória coletiva, os conhecimentos,
(coleta, cultivo, criações) a medidas de usos e costumes, que consubstanciam
conservação da biodiversidade e mesmo os acervos culturais próprios a cada um
de enriquecimento dos ecossistemas dos povos e comunidades tradicionais.
manejados. Afinal, a longa, estreita e Celebrações, festividades, mutirões
sensível relação que mulheres e homens de trabalho, entre outras práticas, rea-
estabelecem com o meio ambiente, nes- firmam a reciprocidade entre pessoas,
ses contextos, favorece um sentido de grupos locais e comunidades, humanos
interdependência que os predispõem a e não humanos, como um princípio
zelar pelas florestas, campos e águas, fundamental da sociabilidade de povos
como condição para a continuidade da e comunidades tradicionais. Trata-se,
própria vida, presente e futura. afinal, de um princípio consonante com
Além do manejo dos ecossistemas, é cosmovisões que enfatizam as relações
comum que haja entre povos e comuni- de interdependência, inclusive entre
dades tradicionais estratégias de gestão cultura e natureza, o visível e o invisível,
territorial que expressam fundamentos justificando esforços de manejo da vida
da organização social desses grupos. A em sentido amplo, de modo a integrar
principal dessas estratégias reside na dimensões sociais, econômicas, ambien-
combinação de áreas de uso e domínio tais, místicas e religiosas.
particulares por parte de cada família A autoidentificação de um povo ou
(como os lugares de moradia e cultivo de comunidade tradicional é um fenômeno
roça) a outras de uso e domínio comuns largamente dependente das interações
entre famílias e comunidades (como as com a sociedade em geral ou com ou-
áreas de coleta, pesca ou de solta do tras comunidades em relação às quais
gado). Tal estratégia de gestão se esta- aquele se sente distinto. Em contrapar-
belece por acordos costumeiros quanto te, decorre também dessas interações P
às formas de acesso e uso dessas áreas, o reconhecimento social da diferença
partilhados por meio da rede de paren- cultural de um povo ou comunidade tra-
tesco, compadrio e vizinhança sobre a dicional pelos outros (nos âmbitos local
qual povos e comunidades tradicionais ou regional), comumente assinalada por
se organizam. alcunhas, a exemplo de morroquianos,
A família, nuclear ou extensa, catingueiros, pantaneiros, açaizeiros.
tem grande importância no contexto Não raramente, as alcunhas fazem re-
de povos e comunidades tradicionais, ferência a práticas laborais, percebidas
constituindo-se na base não só para a como uma ordem de especialização pro-
realização de atividades produtivas que dutiva a determinadas espécies (caso
garantem a sua reprodução material, das quebradeiras de coco babaçu ou das

605
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

catadoras de sempre-vivas), ou como as diferenças étnicas e culturais devam


uma vinculação de origem e identidade ser superadas em favor da afirmação de
com paisagens ou ambientes específicos, uma identidade nacional baseada no
como geraizeiros e ou ribeirinhos, apenas mito da fusão cultural.
para citar alguns exemplos. A promulgação e incorporação
A qualidade de tradicional atribuída ao ordenamento jurídico brasileiro da
a esses povos e comunidades se refere à Convenção 169 da Organização Inter-
profundidade histórica das narrativas e nacional do Trabalho (OIT), por meio
práticas partilhadas entre seus membros, do Decreto n. 5.051 de 19 de abril de
como códigos que distinguem cultural- 2004 (Brasil, 2004), reforçou os termos
mente cada um desses grupos. Dito de da Constituição Federal de 1988 (Brasil,
outro modo, a tradição não se refere a 1988). A Convenção 169 determina que
traços essenciais a serem preservados inal- os Estados Nacionais signatários pro-
terados, como testemunhos do passado. movam a plena realização dos direitos
Como sujeitos históricos que são, povos sociais, econômicos e culturais de povos
e comunidades tradicionais reelaboram tribais (conforme os termos originais da
e atualizam permanentemente suas prá- Convenção), respeitando suas identida-
ticas e narrativas culturais, apresentando des sociais e culturais; reconhecendo as
grande dinamismo e capaci­dade de ino- terras que tradicionalmente ocupam;
vação, mas o fazem afirmando o direito garantindo serviços de saúde e educação
à diferença, alicerçada sobre a memória interculturais, de acordo com as especifi-
comum, e o direito à autonomia relativa cidades e projetos de futuro desses povos.
para a construção do seu devir. Destacam-se ainda três novos prin-
cípios aportados pela Convenção 169:
Sujeitos de direitos a autoidentificação, ou consciência
Um conjunto de marcos legais, na- de identidade, como critério subjetivo
cionais e internacionais tem gerado fundamental para o reconhecimento
efeito combinado para a afirmação do desses povos; o direito à participação na
direito à diferença de povos e comunida- formulação, implementação e avaliação
des tradicionais no Brasil. Não obstante de planos e programas de desenvolvi-
o longo histórico do assimilacionismo mento; e o direito à consulta, sempre
no país – como ideologia e prática do que sejam previstas medidas legislativas
P Estado –, a Constituição Federal de ou administrativas que possam afetá-los
1988 (Brasil, 1988) reconhece a diver- diretamente.
sidade cultural brasileira nos artigos O critério da autoidentificação esta-
215 e 216, determinando a proteção dos belecido pela Convenção 169 fundamen-
bens materiais e imateriais que sejam tou o Decreto n. 6.040 de 7 de fevereiro
“portadores da referência à identidade, de 2007 (Brasil, 2007), que instituiu a
à ação, à memória dos diferentes grupos Política Nacional de Desenvolvimento
formadores da sociedade brasileira”. Esses Sustentável dos Povos e Comunidades
dispositivos constitucionais são resultado Tradicionais, definindo-os como:
de intensa mobilização política em torno [...] grupos culturalmente diferen-
do processo Constituinte e representam ciados e que se reconhecem como tais,
um avanço contra a perspectiva de que que possuem formas próprias de

606
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

organização social, que ocupam e de ato inconstitucional, que ameaça


usam territórios e recursos naturais a ordem, a segurança e a propriedade
como condição para sua reprodução privada. Como um decreto constitui-se
cultural, social, religiosa, ancestral e em ato administrativo cuja emissão é de
econômica, utilizando conhecimen-
competência do chefe do Poder Executi-
tos, inovações e práticas gerados e
vo, a ameaça de retrocesso é real.
transmitidos pela tradição (Art. 3°,
§ 1o). (Brasil, 2007)
Povos em luta por seus territórios
A partir do decreto, a noção de “po- Grande parte dos povos e comuni-
vos e comunidades tradicionais” – que dades tradicionais no Brasil hoje se veem
vinha sendo gestada na articulação entre envolvidos em conflitos socioambien-
pesquisadores, lideranças de movimentos tais e territoriais. Embora esses grupos
sociais, organizações da sociedade civil tenham contribuído ativamente para
e alguns setores de governo – é alçada à a conservação da biodiversidade, Uni­
condição de categoria político-jurídica dades de Conservação (especialmente as
para a afirmação de direitos específicos de proteção integral) têm sido sobrepos-
desses grupos em território brasileiro. tas aos seus territórios, restringindo-lhes
O Decreto n. 6.040/2007 (Brasil, 2007) o acesso à terra e aos recursos naturais
também deu consequência às propo- necessários à continuidade de seus modos­
sições constitucionais expressas nos de vida.
artigos 215 e 216 e, de forma paulatina, As diferentes frentes do agronegócio
desde a sua assinatura, ensejou a consi- [ver A gronegócio] (monocultivos de
deração das especificidades de povos e soja, cana-de-açúcar, dendê, eucalipto
comunidades tradicionais em diversas e pecuária), as grandes obras de infraes-
políticas públicas. trutura associadas (barragens, ferrovias,
Não obstante essas conquistas, um rodovias, hidrovias, portos), além do ex-
conjunto articulado de setores econômi- trativismo de larga escala (madeireiras,
cos tem organizado uma ampla ofensiva mineradoras) e de empreendimentos
contra os direitos de povos e comuni- imobiliários associados ao turismo de
dades tradicionais, visando sobretudo elite são, contudo, as iniciativas que
expropriar-lhes os territórios (terras e mais pressionam as terras tradicional-
recursos naturais). Dispositivos diversos mente ocupadas. Além da degradação
têm sido mobilizados nessa ofensiva, ambiental, que ameaça seus modos de P
em forte articulação com os poderes vida, a violência contra povos e co-
legislativo, judiciário e executivo, além munidades tradicionais é crescente em
da mídia empresarial, para questionar a decorrência do avanço dessas frentes de
legitimidade dos direitos territoriais de desenvolvimento.
povos e comunidade tradicionais. No Muitos povos e comunidades tra-
momento em que este verbete é redigido, dicionais têm reagido na defesa de seus
a Confederação Nacional de Agricultura territórios e das florestas, campos e águas.
e Pecuária do Brasil (CNA) e a Frente Os fortes vínculos com o meio ambiente e
Parlamentar da Agropecuária (FPA) o território que os caracterizam manifes-
pleiteiam a revogação do Decreto n. tam-se então em condutas de territoria-
6.040/2007, sob a alegação de tratar-se lidade, ou seja, predispondo esses povos

607
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

e comunidades tradicionais a defenderem Mais recentemente, essa crítica social


e lutarem pelos seus territórios, resistindo tem encontrado caminho também na
às mais violentas ofensivas contra eles. produção de conhecimento próprio, face
Os conflitos por terras e pelo acesso a aos desafios contemporâneos – dito de
recursos florestais, minerais e hídricos outro modo, em processos de produção
nos territórios de povos e comunidades de conhecimento protagonizados por
tradicionais têm resultado em invasões, povos e comunidades tradicionais ou por
despejos e remoções forçadas, na poluição alguns de seus membros individualmente,
letal do meio ambiente (especialmente das referidos às disputas em curso e devotados
águas) e na criminalização e morte de à construção de alternativas para os de-
lideranças. Para resistir a esses ataques, safios presentes. Participam do conjunto
alguns povos e comunidades tradicionais dessas iniciativas a cartografia social,
têm se organizado em movimentos sociais enquanto método coletivo e autônomo
e redes regionais, como o pioneiro Movi- de representação cartográfica dos terri-
mento Seringueiro na Amazônia, o Mo- tórios; a elaboração e/ou sistematização
vimento Interestadual das Quebradeiras de protocolos comunitários diversos e de
de Coco Babaçu (MIQCB) nos estados processos de autodemarcação territorial;
do Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins, além da produção intelectual por mem-
o Movimento Geraizeiro e a Articulação bros de povos e comunidades tradicionais
Rosalino Gomes, no Norte de Minas que ingressaram nas universidades e vêm
Gerais, a Rede Puxirão, na região Sul, experimentando aproximações entre os
somente para citar alguns desses coletivos. sistemas de conhecimento tradicionais
Por meio dessas iniciativas de arti- e a ciência.
culação política, além das ações diretas A crítica social ao desenvolvimento
em âmbito local, povos e comunidades capitalista, operada por povos e comu-
tradicionais têm afirmado suas identida- nidades tradicionais, é atravessada por
des coletivas e modos de vida particulares suas teorias sobre a interdependência
como antagônicos ao modelo de desenvol- entre os elementos da vida (em todas as
vimento capitalista. Cumprem assim um suas dimensões) e a afirmação da ética da
importante papel: o de realizarem a crítica reciprocidade, como seu correspondente
social dos fundamentos e disfunções desse prático. O tradicional então adquire novo
modelo, que se baseia na concentração de sentido: o de oferecer o vislumbre sobre
P riquezas, na promoção e aprofundamento outros modos de vida possíveis, contra a
das desigualdades sociais e na superexplo- imposição de uma via única de desenvol-
ração dos recursos naturais e consequente vimento, ampliando assim os horizontes
degradação ambiental. presentes e futuros para a humanidade.

Referências
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tiva do Brasil de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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sobre Povos Indígenas e Tribais. 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2004/decreto/d5051.htm. Acesso em: 12 abr. 2021.

608
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE DA POPULAÇÃO DO CAMPO

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto n. 6.040, de
7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais. 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/
decreto/d6040.htm. Acesso em: 12 abr. 2021.

Para saber mais


Textos
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faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA, UFAM, 2008.
LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: Por uma territorialidade antropológica.
Série Antropológica. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília. Brasília, 2002.

Site
Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA): reúne a autocartografia de diversos povos e co-
munidades tradicionais, além de publicações sobre o tema: Disponível em: http://novacartografiasocial.
com.br/. Acesso em: 12 abr. 2021.

Vídeos
BABAÇU, FLORESTA DE VIDA. Direção: Neto Borges Amazônia. Produção: Instituto Sociedade,
População e Natureza (ISPN). 2016. 26 min. 26 seg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?-
v=w7MCqdwR8w4. Acesso em: 12 abr. 2021.
CACUNDA DI LIBRINA. Direção: Luciano Dayrell. Produção: Produção: Helen Santa Rosa; Carlos
Alberto Dayrell. Realização: Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas Gerais (CAA/NM).
2008. 28 min. 29 seg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y64AtpevK-k&t=46s Acesso
em: 12 abr. 2021. Acesso em: 12 abr. 2021.

Nota
1
O exercício de definir o que são povos e comunidades tradicionais é sempre um desafio, tendo em
vista a diversidade entre esses grupos. A categoria em si é um constructo social – ao mesmo tempo
técnico e político – para designar uma grande variedade de configurações socioculturais, em um
esforço classificatório para o reconhecimento dessa diversidade face ao conjunto da sociedade bra-
sileira e a afirmação dos direitos à diferença e ao território por parte dos sujeitos que designa. Como
todo esforço dessa natureza, incorre em generalizações sobre uma realidade tão complexa quanto
dinâmica. Para um aprofundamento sobre o tema, são recomendáveis leituras complementares. A
caracterização que consta deste verbete também não evidenciou aspectos particulares de povos
ciganos e comunidades de terreiro.

P
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE
DA POPULAÇÃO DO CAMPO

Etel M atielo
M ercedes Q ueiroz Z ulia ni

A história e memória do povo bra- parte europeia, africana ou indígena.


sileiro se formam com a contribuição de Não sem conflitos, a base agrária no
populações campesinas, sejam de nossa Brasil [ver Política Agrária] nos deixa

609
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE DA POPULAÇÃO DO CAMPO

um legado de organização do trabalho o confronto com as doenças, os saberes


e produção e reprodução da vida, com e práticas disseminados na sociedade
aprimoramento de práticas e domínio brasileira voltam-se para a saúde como
de conhecimentos característicos do que vitalidade, isto é, o corpo como campo
existe de resistência em nossa saúde e de energia. Para essas culturas, a doença
cuidado. A constituição e fortalecimento é considerada como um processo muito
das práticas e saberes em educação e mais complexo de mudança do estado
saúde da população do campo contra- de saúde do que a medicina científica
põem-se ao modelo hegemônico de saúde ocidental (Andrade; Costa, 2010; Luz;
no Brasil. Barros, 2012).
No campo da saúde, o modelo he- Assim, ainda estão em disputa e
gemônico, conhecido como modelo convivem contraditoriamente as diversas
biomédico ou medicina científica oci- práticas e concepções de saúde-doen-
dental, fundamenta-se no paradigma ça-cuidado, desde as mágico-religiosas
newtoniano-cartesiano, e se alicerça no (benzeções, simpatias etc.), as de cunho
estudo das patologias e na hipervalori- racionalista (relação causa-efeito, centra-
zação das tecnologias médicas para o lidade no corpo etc.) e ainda a biologicista
combate das doenças (Andrade; Costa, (após avanço da tecnologia e descober-
2010). Este modelo proporcionou as ta dos micro-organismos, centrada na
bases para a medicina se desenvolver e doença), bem como a social (com foco
indicar procedimentos de diagnóstico nas relações de trabalho e ambientais)
de uma série de enfermidades, além da (Batistella, 2007). Desta forma, além de
intervenção nelas. conviverem, estas concepções também
Para Feo Isturiz (2003), o capitalis- possuem relações históricas com o modo
mo contemporâneo globalizado afetou de produção e organização das sociedades
significativamente o modo de pensar e no mundo. Vale ressaltar que no período
fazer a saúde, em que as necessidades do capitalismo mercantil, muitas práticas
de saúde das populações, dos homens e de cuidado em saúde foram “levadas” para
mulheres e de seus territórios, são tra- os vários rincões do planeta, principal-
tadas como mercados consumidores de mente quando eram práticas tradicionais
insumos e serviços, pouco considerando e realizadas pelos próprios sujeitos, que
as iniquidades sociais e/ou as determina- migravam ou imigravam. Exemplo disso
P ções sociais do processo saúde-doença. é um vasto conhecimento e uso de plantas
No entanto, Luz e Barros (2012) medicinais e formas de cuidado que o
reconhecem a existência de um parale- povo de origem africana trouxe ao Brasil.
lismo de culturas em saúde desde o Brasil Contudo, ao longo do século XX, os
colônia. De acordo com esses autores, a sujeitos do campo foram invisibilizados
cultura proveniente da trajetória institu- quanto à construção de políticas públicas
cional da saúde no século XX difere mui- de saúde. As poucas iniciativas existen-
to dos saberes e práticas difundidos na tes seguiram os modelos campanhistas
população urbana e rural, em especial no ou se estruturaram a partir de uma lógica
que tange às concepções de adoecimento urbana de acesso, não integrando sujei-
e cura. Enquanto os saberes e as práticas tos e práticas culturalmente preservadas
das instituições médicas voltam-se para que expressavam os modos próprios

610
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE DA POPULAÇÃO DO CAMPO

de produzir saúde dessas populações práticas tradicionais e o conhecimento


(Carneiro et al., 2012). Contudo, vão de herdado e repassado coabitam, muitas
encontro a isso a resistência dos cuidados das vezes, de forma externa e paralela,
populares, territorializados, identitários ao sistema de saúde vigente.
e, em geral, tradicionalmente sob o do- Entre as práticas e recursos terapêu-
mínio das mulheres, que exercem muitas ticos utilizados pela população campo-
vezes o papel de personagem principal no nesa, destacam-se as plantas medicinais
cuidado e encaminhamento dos proble- e a fitoterapia como recursos difundidos
mas de saúde familiares e comunitários no cotidiano dessa população, que se
(Oliveira; Moraes, 2010) [ver Medicina expressa, principalmente, nos quintais.
Tradicional Brasileira]. São também em Além das plantas, destacam-se o uso
maior número as mulheres parteiras e de crenças, religiosidade, alimenta-
os conhecimentos referentes à saúde ção saudável e práticas de prevenção
das mulheres, entendimento dos ciclos, à saúde, para citar os recursos mais
saberes que permitem o controle sobre utilizados. Para essa população, a ali-
os corpos, os cuidados na contracepção mentação saudável envolve não apenas
e também as formas de parto e cuidados. a diversificação dos alimentos e a ado-
Aqui há uma contradição quando ção de hábitos alimentares tidos como
analisamos a totalidade da sociedade: as mais saudáveis, mas, principalmente,
mulheres assumem o trabalho não pago o consumo de alimentos orgânicos e
de cuidados (seja o trabalho doméstico, agroecológicos (Rückert; Cunha; Mo-
seja o cuidado a doentes) no modo de dena, 2018). Outros recursos naturais
produção capitalista ao mesmo tempo como água, argila e flores também são
que são detentoras de um conhecimento utilizados terapeuticamente.1
tradicional e importante em função do No Brasil, a mobilização dos mo-
qual, em diversos momentos da história, vimentos sociais populares em torno
foram (e ainda são) perseguidas. Na saú- da luta por saúde aliou o debate da im-
de, as mulheres parteiras e conhecedoras portância da construção de políticas
de muitas formas de cuidado também públicas de saúde com essa ref lexão
foram perseguidas. Federici (2017) as- sobre o cuidado enquanto ação política,
socia essa realidade às necessidades da revitalizando práticas populares e ances-
acumulação primitiva, do controle dos trais de cuidado e de saúde e lutando por
corpos e sujeitos pelo Estado, processo sua inserção no Sistema Único de Saúde P
que se dá de formas diversas na Europa (SUS) [ver Plantas Medicinais e Fitoterá­
e/ou nas colônias. picos na Saúde Pública]. Tal mobilização,
Vale ressaltar que as diferentes prá- iniciada com o Movimento de Reforma
ticas de cuidados vivenciadas nos terri- Sanitária, continua sendo necessária, e
tórios do campo, da floresta e das águas consolida-se com a participação destes
também são indissociáveis da história dos movimentos nos espaços de controle
povos camponeses, na qual sua materia- social e gestão participativa, como as co-
lização se relaciona com as concepções missões de práticas integrativas presentes
de saúde-doença. Nesse sentido, pode-se nos vonselhos de daúde e os vomitês
analisar que a resistência das práticas de de práticas integrativas instituídos por
cuidado que utilizam o saber popular, as alguns estados e municípios. Estas prá-

611
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE DA POPULAÇÃO DO CAMPO

ticas – denominadas pela Organização movimentos sociais gerais que tinham


Mundial da Saúde (OMS) de medicinas entre suas pautas o direito à saúde. Estes
complementares e tradicionais e pelo Mi- movimentos aliavam o desenvolvimento
nistério da Saúde de práticas integrativas de práticas populares e tradicionais de
e complementares de saúde – sempre saúde com a luta e a mobilização em
estiveram presentes na constituição dos torno da conquista do direito à saúde.
sistemas de saúde, seja de forma com- As organizações de bairro e comuni-
plementar, seja como o principal pilar tárias em defesa da saúde, como a da
da prestação de serviços de saúde. Nos zona leste de São Paulo na década de
países pobres e em desenvolvimento elas 1970/1980, é que tornaram as reivin-
representam, muitas vezes, a principal dicações populares significativas na
forma de cuidado em saúde, a partir de construção do sistema público e estatal
uma dificuldade de acesso à estrutura de de saúde. Parte do que se construiu do
serviços públicos de saúde, especialmen- nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e
te em áreas mais dispersas (Organización do direito à saúde da Constituição Fe-
Mundial de la Salud, 2013). deral (CF) 1988 (Brasil, 1988) deve-se a
Por isso, reconhecer que essas essas experiências de luta e organização
populações do campo, da f loresta e popular (Matielo, 2009).
das águas possuem conhecimentos, Vale ressaltar que o aprendizado
saberes e práticas é afirmar que estes desses saberes envolve a socialização
são construídos nos territórios, es- familiar e intergeracional, a consulta
paços primordiais para a produção e a livros, revistas e programas de te-
reprodução da vida dessas populações, levisão, o aprendizado nos cursos e
assim como suas relações de trabalho com os movimentos sociais, passando,
e sociais construídas em integração inclusive, pela vivência como pacien-
com a natureza. Este saber ancestral te dos serviços de saúde. Destaca-se,
preserva e fortalece a vida dos seres ainda, o aprendizado desses saberes no
humanos, dos animais e do ambiente cotidiano de cuidados, junto às famí-
como um todo, em uma perspectiva lias ou comunidades, um processo de
ético-ambiental. Justamente por essa experimentação e observação que gera
defesa e fortaleza, seus territórios e a produção contínua desses saberes
vidas estão sendo disputados pelas (Rückert; Cunha; Modena, 2018).
P empresas, bancos etc. na atualidade, São vários os elementos que nos
em várias partes do mundo. Assim, fazem refletir sobre as práticas e saberes
as práticas e os saberes populares são de saúde das populações do campo, da
resistências político-organizativas tam- floresta e das águas, e uma das princi-
bém, na defesa dos territórios, da não pais é que estão ligadas, ao longo da
mercantilização da saúde, dos bens da história, ao seu território e ao modo de
natureza e da vida. produção e reprodução da existência.
No Brasil, no bojo da luta pela re- Por isso, várias das práticas de cuidado
democratização e por direitos sociais, têm sua relação direta com a terra, a
se organizaram movimentos próprios água, a floresta e o que a estes territórios
da saúde, como o Movimento Popular estão relacionadas, bem como a alimen-
de Saúde e a Pastoral da Saúde, além de tação. Além disso, a base para o cuidado

612
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE DA POPULAÇÃO DO CAMPO

enquanto ação transformadora e políti- Caruaru, Pernambuco (Santos, 2016),


ca, que considera os sujeitos como seres as mulheres da cadeia produtiva do mel
autônomos e partícipes desse processo, do Ceará, ou as Sementes da Paixão
é o conhecimento, o saber que gera na Paraíba (Londres, 2014). A saúde
poder. Este conhecimento, muitas vezes também é promovida no planejamento
tradicional, geracional e empírico, é o e nas construções de casas ou espaços
poder sobre a natureza e sobre os cor- coletivos que utilizam técnicas da per-
pos, gerando assim uma autonomia em macultura [ver Permacultura] (Jacintho,
relação às práticas e serviços ofertados 2007), em diálogo com a realidade e as
pela indústria e consumo das doenças necessidades vivenciadas. O saneamen-
no capitalismo. Quem cuida é um/uma to ecológico [ver Saneamento Ecológi ­
mediador/a que trabalha coletivamente, co], a produção e a habitação saudáveis,
aprende e ensina, objetiva gerar saúde, as formas de irrigação e os cuidados com
alegria e sobrevivência. a água, o uso de tecnologias sociais são
Em contrapartida, quando se per- formas de promoção da saúde ambiental
dem essas relações sociais, com o avan- do campo (Pessoa, 2010), bem como a
ço do agrohidronegócio e consequente produção de compostos para melhorar
expulsão dessas comunidades, também produtividade do solo e o aproveitamen-
se perdem muitas formas de cuidado to de todos os insumos orgânicos. Ainda
existentes e resistentes. Assim como é possível salientar os saberes e práticas
se perdem o saber e o fazer em saúde que muitas comunidades possuem na
quando as políticas verticalizadas im- extração de compostos e óleos vegetais
põem as normas e os pré-conceitos nas que são utilizados na alimentação e nos
suas ações, quando estabelecem, por cuidados da saúde de seres humanos,
exemplo, que somente profissionais animais e plantas. Sendo assim, as práti-
de saúde formados nas universidades cas e os saberes populares e tradicionais
é que “curam”, e que entre eles mesmo estão integrados à totalidade da vida
existe uma hierarquia, e ainda, quando nos territórios, nas relações humanas e
não dá certo, a responsabilidade é do com a natureza e também como forma
indivíduo por não seguir à risca as de resistência ao avanço do capital em
“orientações” indicadas. todas essas dimensões.
Entretanto, é também nos territó- Pode-se verificar essa disputa no
rios que se encontram as experiências campo das práticas da saúde a partir da P
coletivas que promovem saúde, como experiência de vários movimentos so-
as formas de produção agroecológicas ciais que, no 1º Encontro Nacional das
e de consumo de alimentos saudáveis, Populações do Campo, da Floresta e das
inclusive nas merendas escolares cujas Águas, manifestaram seu compromisso
escolas acessam o Programa de Aqui- em “enfrentar a medicalização da vida
sição de Alimentos (PAA). Lá também e garantir nossos conhecimentos tradi-
estão os diferentes coletivos organizados cionais, as ervas, as curas espirituais,
nesse campo da produção e comer- os fitoterápicos e outras práticas”, bem
cialização, que têm a saúde como um como “construir e fortalecer as práticas
compromisso ético-político, como, por populares de cuidado em saúde, envol-
exemplo, as Boleiras de Normandia, em vendo todos os sujeitos em seus próprios

613
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE DA POPULAÇÃO DO CAMPO

cuidados e construindo autonomia”. e a população, e a comercialização justa


Esses movimentos e outros – dentre os dos alimentos e produtos elaborados a
quais, coletivos de educação popular em partir dos saberes camponeses. Em sua
saúde, pastorais, movimento estudantil maioria, estes espaços aliam a comercia-
– constroem “espaços” de cuidado em lização com a formação, a cultura e as
feiras, congressos, encontros onde há práticas populares de cuidado em saúde,
diálogos de diferentes saberes e práticas e buscam integrar conceitos importan-
tradicionais e populares de saúde, arti- tes como saúde, economia solidária e
culação para a construção de políticas agroecologia [ver Agroecologia].
públicas e a defesa do SUS (Manifesto Nesta perspectiva, as ações de sujei-
da Saúde das Populações do Campo, da tos coletivos no cuidado integral à saúde
Floresta e das Águas, 2015). prescindem da organização, da atuação
Nos chamados “Espaços Saúde”, de diversos sujeitos com práticas e sa-
“Tendas de Educação Popular Paulo beres diferenciados, do planejamento
Freire”2 ou “Che Guevara”, nos “espaços coletivo, da afirmação de princípios
de cuidado” itinerantes, que funcionam orientadores destas práticas coletivas
durante atividades, congressos, feiras e e de articulação com as comunidades
outros, existe uma experimentação do e os serviços públicos para garantir a
que a classe trabalhadora conseguiu estrutura necessária e os possíveis en-
acumular. Materializam-se o planeja- caminhamentos aos serviços públicos
mento e a construção coletiva de uma de referência, demonstrando uma ca-
programação, que alia a prática com pacidade complexa de auto-organização
momentos de formação, a articulação e autonomia.
com diversos sujeitos e coletivos e suas O trabalho em saúde, na perspecti-
práticas, as relações com dispositivos va dos movimentos sociais, é construído
e serviços da saúde pública e insti- a partir de relações solidárias, relações
tuições formadoras. Florescem desses horizontais entre iguais, onde o sujeito
espaços experiências de formação em é um companheiro de sonhos e luta, e
saúde, conduzidas de forma mais críti- não apenas um paciente que necessi-
ca e participativa, como as residências ta ser atendido. Este trabalho, que se
multiprofissionais em saúde do campo, pauta no cuidado, é realizado de forma
especializações técnicas, cursos de ex- a superar as hierarquias construídas
P tensão, estágios de vivências e outros. com base no saber mais ou dominar
Outras estratégias importantes técnicas; é descentralizado, centrado
de construção coletiva das práticas na educação e na promoção de saúde
e saberes em saúde são as feiras esta­ e prevê organização e luta como parte
duais e nacionais da Reforma Agrária da construção da conquista da saúde.
(Maciel, 2018), encontros, jornadas e Estas experiências são portadoras
feiras de agroecologia e as feiras locais de uma dimensão educativa à medida
de comercialização. Nesses espaços, que orientadas por uma concepção
potencializam-se aspectos importantes, integral de ser humano e articuladas
como o cuidado dos trabalhadores das aos processos políticos de promoção
feiras, a troca de conhecimentos e expe- da saúde nos territórios. Em especial,
riências entre os feirantes e entre estes os grupos de mulheres constituem-se

614
PRÁTICAS E SABERES EM EDUCAÇÃO E SAÚDE DA POPULAÇÃO DO CAMPO

como educativos à medida que propi- transformação da sociedade, quan-


ciam “a participação ativa, a capacidade do assumem seu compromisso com
de ouvir, de fazer, de construir juntos, o cuidado e a conquista da saúde da
de enfrentar conflitos e contradições” classe trabalhadora. Que consideram
(Pulga, 2013, p. 585). saúde como um direito a ser conquis-
Embora ainda em número peque- tado e construído, e não como uma
no, tais experiências se multiplicam mercadoria do sistema capitalista. A
a cada dia, em âmbito nacional mas participação dos vários sujeitos se dá
também nos locais, nos territórios, e por identificação de uma luta comum
conseguem criar novos diálogos en- e, mesmo com divergências progra-
tre movimentos sociais e populares, máticas ou táticas, segue a mesma
comunidades, profissionais de saúde, estratégia no campo da saúde coletiva:
gestores do SUS, professoras/es de saúde só existe com democracia, justiça
universidades, pesquisadoras/es. São social e construção permanente de um
experiências que fazem sentido quan- novo modo de produção e reprodução
do inseridas num projeto popular de da vida.

Referências
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Para Saber Mais


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de Goytacazes, Nova Iguaçu /RJ. Realização: Fiocruz; Setor Saúde do MST. 2017. 24 min. Filme cur-
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fbclid=IwAR2CrqDzIECPK9cfsCvZ9RrgZkbw4_AYx3OXozPR4KSyF_yqAX4uWEjJrJ8. Acesso em:
12 abr. 2021.
ESCOLA POLITÉCNICA DE SAÚDE JOAQUIM VENÂNCIO (EPSJV); FUNDAÇÃO OSWALDO
CRUZ (Fiocruz). [Cooperação: Núcleo Tramas, Universidade Federal do Ceará, Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra, Universidade Federal Fronteira Sul – Campus Laranjeiras do Sul, Centro
de Desenvolviumento Sustentável e Capacitação em Agroecologia] Curso Técnico em Meio Ambiente
- Tramas e Tessituras. 5 volumes. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/ Fiocruz/ EPSJV, 2017. Disponível
em: http://www.epsjv.fiocruz.br/series/livros/732. Acesso em: 5 abr. 2021.

Notas
1
Os saberes e cuidados tradicionais e populares de saúde, associados aos diferentes povos do campo,
floresta e águas, estão descritos de forma mais aprofundada no verbete Medicina Tradicional.
2
Para maiores informações sobre as Tendas de Educação Popular em Saúde sugere-se consultar o II
Caderno de Educação Popular em Saúde (Brasil, 2014).

P PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

R aquel M ar ia R igotto
A da C r istina Pontes A guiar

Produção, ambiente e saúde são Mais que a abordagem isolada de cada


categorias teóricas importantes, entre uma destas categorias, vamos analisar as
outros, para os campos de conhecimento relações entre elas. Elas nos convidam a
em saúde do trabalhador e em saúde e observar e refletir sobre as diferentes for-
ambiente, estabelecidos com base na mas de relação das sociedades humanas
teoria da determinação social da saúde. com a natureza; sobre o quê, como e a

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

que custo produzimos/consumimos; so- geral, tais bens são considerados comuns
bre os sentidos e as condições do trabalho a todos da coletividade, e são acessados
humano [ver Trabalho]; instigando-nos por sistemas organizados a partir de
a compreender a saúde-doença como normas consuetudinárias. Tais práticas
expressão destas relações no corpo das são sustentadas por um conjunto de sa-
pessoas em seus grupos sociais. beres construídos ao longo do tempo, na
O processo saúde-doença é deter- relação com o ecossistema que os abriga.
minado pelo modo como o Homem Via de regra, integra essas culturas tra-
se apropria da natureza em um dado dicionais a dimensão do sagrado, que
momento, apropriação esta que se orienta a relação com a natureza. O que
realiza por meio do processo de tra- chamamos trabalho na cultura ocidental
balho, baseado em determinado é, para esses povos, atividade integrada
grau de desenvolvimento das forças ao modo de vida e voltada essencialmen-
produtivas e relações sociais de pro- te para o suprimento das necessidades
dução. (Laurell, 1982, p. 23)
cotidianas. Estudos demonstram que
Tambellini e Câmara (1998) tam- esse modo de produção, frequentemente
bém defendem que a questão da saúde nomeado como “primitivo”, tem contri-
aponta para o plano das relações entre buído enormemente para a conservação
produção e ambiente: a lógica da socie- dos biomas e para a ampliação de sua
dade penetra na natureza, através dos biodiversidade (Diegues, 2000; Toledo,
processos produtivos, e a “desnaturaliza”, 2001; Santilli, 2002).
distribuindo possibilidades diferenciadas Este é o modo de produção dos 5
de exposição dos indivíduos e seus coleti- milhões de indígenas que, de acordo
vos a agentes, cargas e riscos que podem com as estimativas, habitavam o Brasil
conduzir a processos mórbidos. quando os portugueses aqui aportaram
A produção – termo originado do – seu violento encontro com a moderni-
latim producere, que significa “fazer dade. Como analisam Santos e Meneses
aparecer” – refere-se à ação humana di- (2010), para dar sustentação simbólica
recionada a criar, originar, fabricar bens a este empreendimento da colonização,
para a satisfação das suas necessidades. foi forjada na cultura ocidental moderna
Envolve, portanto, o trabalho humano do século XVII a máxima “para além
e também a natureza, fonte primeva do Equador não há pecados”: sobre sel-
dos recursos a serem transformados nos vagens sub-humanos, cuja alma é um P
processos produtivos/de trabalho. receptáculo vazio, está justificada a apro-
A história das sociedades humanas priação e pilhagem dos recursos naturais,
demonstra um amplo e diverso leque de o trabalho forçado e a destruição das
formas de organizar a produção, com culturas em benefício da cristianização
repercussões distintas sobre o ambiente (Santos; Meneses, 2010, p. 37).
e sobre a saúde humana. Na América Com o intenso e violento genocídio
Latina, por exemplo, os povos originários perpetrado pelos colonizadores, e em
atendem às suas necessidades a partir alguma medida continuado em vários
dos bens naturais – a caça e a coleta momentos de nossa história, hoje os indí-
nas florestas, a pesca nos rios e lagos, genas somam cerca de 900 mil pessoas no
a agricultura, o artesanato. De forma país, distribuídas em 255 povos, falantes

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

de mais de 150 línguas (Gasparini et al., Do trabalho escravo provinha mais


2013). Ressalte-se que a cultura colonial de 70% da energia mecânica utilizada até
moderna tende a circunscrever este modo o século XIX (Miranda, 2012), revelando
de produção da vida apenas a um passado a intensidade da exploração da força de
remoto que pode ser visitado em museus, trabalho negra, cuja “vida útil” estava em
a título de ilustração. Entretanto, esses torno de 12 anos – produzindo riquezas
povos existem há milhares de anos e resis- que eram exportadas e acumuladas pela
tem há pelo menos 519 anos, defendendo Europa (Porto-Gonçalves, 2005). Nas
os territórios essenciais à sua forma de estimativas de Mello (1983), os escravos
vida, assim como seu direito a uma cultu- homens com 15 anos teriam uma expec-
ra própria, a qual certamente tem muito tativa de vida entre 29,85 e 32,30 anos. O
a ensinar à sociedade moderna à beira do trabalho era marcado pela sujeição, vio-
colapso socioambiental [ver antropoceno]. lência e acidentes, como bem expressa a
A necessidade de os colonizadores escritora moçambicana Paulina Chiziane
disporem de mão de obra para a explora- (2003, p. 54):
ção das minas de ouro ou para o cultivo Em Angola há um pedaço de terra
da cana e trabalho nos engenhos que adubado de sangue. Por baixo de
produziam açúcar para a Europa levou- cada sombra reside o corpo de um
-os ao sequestro de povos originários na preto anônimo, confirmam os mais
África e seu tráfico para o Brasil. Este velhos. Nos últimos anos nasceram
modo de produção escravista, em que novas roças cujas plantas são cru-
os senhores se apropriavam das terras e zes toscas pintadas de branco em
eram também proprietários das pessoas terra fertilizada de carne humana.
A fome, a doença e a tortura eram
negras, é assim caracterizado por Caio
os viveiros dessas plantas. As febres
Prado Júnior:
estranhas que nem o feiticeiro ango-
Se vamos à essência da nossa forma- lano conseguia curar, até aos brancos
ção, veremos que na realidade nos dizimavam. As cobras, por seu lado,
constituímos para fornecer açúcar, defendiam-se dos invasores com
tabaco, alguns outros gêneros; mais ataques infalíveis.
tarde, ouro e diamante; depois algo- O sol ultrapassara o meio-dia. Na
dão, e em seguida café, para o co- açucareira, os condenados e con-
mércio europeu. Nada mais que isso. tratados cantavam a música do co-
P É com tal objetivo, objetivo exte- ração, acompanhando o rodopiar
rior, voltado para fora do país e sem do engenho de açúcar e o colono,
atenção a considerações que não satisfeito, balançava a mente sobre
fossem o interesse daquele comér- o ouro que estava a ser transfor-
cio, que se organizarão a sociedade mado pelas mãos negras. Escutava
e a economia brasileiras. Tudo se com delícia essa música que o vento
disporá naquele sentido: a estrutura espalhava, fazendo dançar os braços
social, bem como as atividades do do canavial. A canção é a alma do
país. Virá o branco para especular, negro. Quando sofre, canta, quando
realizar um negócio; inverterá seus ri, canta, quando trabalha, canta.
cabedais e recrutará a mão de obra Até parece que a canção desperta
de que precisa: indígenas ou negros no fundo do ser a força secular de
importados. (Prado Jr., 2004, p. 23) todos os antepassados.

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

As vozes cantam, o canavial ba- Entre os séculos XVI e XVIII, sur-


lança, a máquina gira. De repente gem progressivamente concentrações
ouve-se um grito e o trabalho para. humanas de maior porte, configurando
Um homem deixou o braço ser ar- um mundo urbano com suas fábricas.
rastado pelas roldanas, puxando-o
para a máquina, e... crás! A cabeça [...] onde a produção passa a ser di-
esmigalhou-se como um coco. rigida em função da acumulação de
– Parem! – gritou o colono. – Dois riqueza. Sustentado na propriedade
de vocês encarregam-se do homem. privada dos meios de produção, o
Outros limpam a máquina, rápido, capitalismo se estrutura tendo na
tempo é dinheiro! exploração da força de trabalho sua
engrenagem fundamental. O des-
Do ponto de vista do ambiente, esse locamento dos trabalhadores do
modo de produção deu início à destrui- campo e a destruição do trabalho
ção da Mata Atlântica – hoje reduzida artesanal, para impulsionar as fá-
a 7% dos seus 1.300.000 km² do século bricas, dinamizam o sistema que, a
XVI – para dar lugar aos monocultivos partir do século XIX, acentua dois
de café, cana e cacau; à pecuária exten- fenômenos fundamentais para sua
siva e à mineração. Estas, por seu turno, dinâmica de funcionamento: a sim-
desviavam o curso dos rios, removiam plificação do trabalho – promovendo
a desqualificação do trabalhador ex-
grandes volumes de seu leito e contami-
propriado dos meios de produção – e
navam suas águas. a consolidação da grande indústria.
De acordo com Jessé de Souza (Miranda, 2012, p. 19)
(2017), esta cultura escravagista é a se-
mente de toda a sociabilidade brasileira, Sob o modo de produção capitalista,
criando “uma singularidade excludente o trabalho é convertido em emprego e em
e perversa”, assentada no racismo, “que meio de subsistência, torna-se estranha-
é a separação ontológica entre seres do; a força de trabalho converte-se, como
humanos de primeira classe e seres hu- tudo, em uma mercadoria, cuja finalida-
manos de segunda classe”, legitimando de vem a ser a produção de mercadorias
“a suposta superioridade inata de uns e (Antunes, 2000). Às resistências da clas-
a suposta inferioridade inata de outros”. se trabalhadora ao longo da história, os
Tal sociabilidade persiste viva em nossa agentes econômicos reagem, na segunda
cultura até os dias atuais, concretiza- metade do século XX, através da reestru-
turação produtiva, de forma a aumentar P
da, por exemplo, nos mais de 52 mil
trabalhadores libertados em condições o controle sobre a produtividade do tra-
análogas ao trabalho escravo entre 1995 balho e ampliar a extração de mais-valia.
e 2016, identificados especialmente Incorporam tecnologias da eletrônica e
na zona rural – pecuária, produção de da automação aos processos produtivos,
carvão e os cultivos de cana-de-açúcar, além de novas formas de organizar o
soja e algodão, mas também em centros trabalho; promovem a flexibilização e
urbanos, onde migrantes latino-ame- a focalização da produção, a financei-
ricanos são explorados na indústria de rização da economia, a reorganização
confecção e na construção civil (Souza, de seu sistema ideológico e político de
2017, p. 201). dominação – o neoliberalismo, por meio
da privatização do Estado.

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

No que diz respeito à saúde dos tra- das grandes corporações econômicas,
balhadores sob o capitalismo, desde encarregando-se não só de prover a
a Revolução Industrial, jornadas de infrae­strutura fundiária, hídrica, ener-
trabalho muito extensas, condições de gética e viária demandada por estes
trabalho insalubres e perigosas, mora- empreendimentos, mas também a des-
dias e saneamento precários incidem regulamentação de direitos trabalhistas,
negativamente sobre o perfil de saúde da ambientais, sanitários, entre outros.
classe trabalhadora, na forma de aciden- A expansão das fronteiras do agro-
tes e doenças relacionadas ao trabalho, negócio e da mineração sobre os terri-
instigando o movimento operário, assim tórios de vida de povos e comunidades
como o pensamento da medicina social tradicionais está na base de ampla gama
e da saúde coletiva. de conflitos e injustiças ambientais, me-
No Brasil atual, ao lado de proces- diados pela expropriação da terra/terri-
sos produtivos com estas mesmas ca- tório, pela degradação e contaminação
racterísticas, verifica-se a intensificação ambiental; pela ameaça aos modos de
do trabalho, a expansão do trabalho no vida, às formas tradicionais de produção,
setor de serviços e o aumento das formas à soberania alimentar e às culturas.
de controle sobre os trabalhadores, com A civilização do capital ampliou e
significativos impactos também sobre difundiu ainda desigualdades de classe,
a saúde mental, além das Lesões por de raça/etnia, de gênero e de geração,
Esforços Repetitivos/Doenças Osteo- como mostram dados do Relatório do
musculares Relacionadas ao Trabalho Desenvolvimento Humano 2014, elabo-
(LER/Dort). O desemprego estrutural rado pelo Programa das Nações Unidas
produz um crescente contingente de para o Desenvolvimento (Pnud):
“trabalhadores supérf luos” que, com • As 85 pessoas mais ricas do
a precarização da vida, apresentam mundo têm a mesma riqueza que
intenso sofrimento psíquico e vulnera- os 3,5 mil milhões mais pobres.
bilidade às doenças. De acordo com a Entre 1990 e 2010, a desigual-
Organização Mundial da Saúde, 12,6 dade de rendimentos nos países
milhões de pessoas perderam a vida em em desenvolvimento aumentou
2012 por viver ou trabalhar em ambien- 11%. Os povos indígenas, que
tes pouco saudáveis, quase um quarto correspondem a cerca de 5% da
P do total mundial de mortes (World população mundial, represen-
Health Organization, 2016). tam cerca de 15% dos pobres
A divisão internacional do traba- do mundo, um terço dos quais
lho, nesse contexto de mundialização em situação de pobreza rural
da economia, tem prescrito aos países extrema.
da América Latina a participação no • 748 milhões de cidadãos e cida-
mercado através da produção de com- dãs do mundo não têm acesso à
modities agrícolas (soja, cana, milho, água potável, e 1,8 bilhão con-
frutas, carnes) e minerais (ferro-aço) – o somem água contaminada com
chamado neoextrativismo. Os Estados agentes biológicos.
nacionais têm subordinado seus mode- • Há no mundo 830 milhões de
los de ­desenvolvimento aos interesses pessoas classificadas como tra-

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

balhadores pobres que vivem Se, durante milênios, as ações


com menos de 2 dólares por dia. transformadoras da natureza decor-
Mais de 200 milhões de pessoas, rentes de processos produtivos tive-
incluindo 74 milhões de jovens, ram consequências localizadas ou com
estão desempregadas, enquan- pouca capacidade de propagação, no
to 21 milhões de pessoas são último século a escala de interven-
vítimas de trabalho forçado. ção dos agentes econômicos sobre o
A Organização Internacional ambiente ampliou-se em dimensões
do Trabalho (OIT) estima que nunca experimentadas pelas sociedades
quase metade dos trabalhadores humanas (Miranda, 2012). O sistema
– mais de 1,5 bilhão – trabalha metabólico do capital colocou em risco
em regime de emprego precário a estabilidade do ecossistema global, ao
ou informal. ultrapassar limites do sistema Terra.
• Embora as mulheres realizem Três indicadores relevantes já foram
52% de todo o trabalho no mun- ultrapassados, como a concentração
do, elas têm menos probabili­ atmosférica de CO2 (que não deveria
dade de ser pagas por seu tra- ter ultrapassado 350 partes por milhão
balho do que os homens, sendo e beira os 400 ppm na média anual), o
que três em cada quatro horas ciclo do nitrogênio (cuja remoção da
de trabalho não remunerado atmosfera não deveria ter ultrapassado
são realizadas por mulheres. Nos 35 milhões de toneladas e já chega a 121
casos em que as mulheres são milhões) e a taxa de extinção de espé-
remuneradas, elas auferem, em cies, que é pelo menos dez vezes maior
média, em âmbito mundial, 24% do que a suportada pelo ecossistema
menos do que os homens e ocu- global e de 100 a 1.000 vezes maior do
pam menos de um quarto das que a do período pré-industrial (Costa,
posições de chefia nas empresas 2014, p. 4).
em todo o mundo. A cultura ocidental moderna tem
• Mais de 1,5 bilhões de pessoas promovido um distanciamento cada vez
vivem em países afetados por mais profundo entre os seres humanos e a
conflitos – aproximadamente, natureza. Enquanto os povos originários
um quinto da população mun- construíram representações simbólicas
dial. A instabilidade política que compreendiam a indissociabilidade P
recente tem tido custos huma- entre eles e o ambiente circundante, o
nos muito avultados – no final sistema do capital enxerga o ambiente
de 2012 cerca de 45 milhões de apenas como uma fonte inesgotável de
pessoas foram forçadas a deslo- recursos naturais e lucros, o que tem
car-se por motivo de conflitos perpetuado a destruição do planeta e o
ou perseguição, o número mais aprofundamento das injustiças e desi-
elevado em dezoito anos, mais gualdades em um sistema colonizador,
de 15 milhões das quais refu- opressor e aniquilador das diversidades.
giadas. (Programa das Nações A própria substituição reducionista do
Unidas para o Desenvolvimen- termo “natureza” por “meio ambiente”,
to, 2014, p. 98) ou até mesmo “ambiente”, evoca uma

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

visão empobrecida da verdadeira rique- lados milenarmente por diversos povos.


za que a natureza representava e ainda Por isso, rediscutir o lugar da ciência
representa para muitos povos: na atualidade exige também que sejam
Em primeiro lugar, o termo ambien- construídas pontes entre os conhecimen-
te, ou meio ambiente, esconde uma tos científicos e os saberes de povos e co-
perversidade das sociedades mo- munidades, o que Boaventura de Sousa
dernas para com a natureza e seus Santos e Maria Paula Meneses (2010)
seres tão vivos quanto os humanos. denominam de Ecologia de Saberes.
Na realidade, trata-se da natureza, O acirramento das crises emergentes
seja ela produzida por seu próprio nas últimas décadas – política, econômi-
movimento, seja modificada por uma ca, social, ambiental, moral e ética – tem
forte intervenção humana. Mas é
trazido graves repercussões no campo
de natureza que se trata. E tratar de
da saúde. A Saúde Coletiva, campo de
natureza quer dizer tratar dos seres
humanos que dela fazem parte. O conhecimentos e práticas forjado na
termo ‘ambiente’, natural ou artifi- América Latina a partir da década de
cial, é uma tentativa de manter o 1970, tem buscado construir análises
ser humano fora dele. É estranho. sobre os processos de adoecimento de-
Um ambiente humano sem gente? sencadeados por um sistema perpetuador
(Marés, 2019) de desigualdades. As aproximações entre
Diante dos desafios impostos pela as áreas de “Saúde do(a) Trabalhador(a)”
complexidade do momento atual da e “Saúde e Ambiente”, principalmente a
humanidade, a ciência moderna não tem partir dos anos 2000, tem sido muito fe-
dado conta de responder às principais cunda para o desvelamento das relações
questões a serem superadas para a garan- entre o modelo produtivo e de trabalho
tia da continuidade de uma vida humana em curso e o processo saúde-doença
com dignidade no planeta. Funtowicz e das populações. Assim, não é suficiente
Ravetz (1997) defendem que a mesma apenas a disseminação da concepção ho-
ciência que gerou e amplificou muitos lística de saúde formulada pela OMS em
dos problemas modernos não pode ser 1946, pois os desafios atuais no campo
um instrumento para superá-los. Assim, da saúde exigem que as suas dimensões
além de uma reflexão aprofundada sobre sejam analisadas sob as lentes de diferen-
o caráter e o papel da ciência nas socie- tes referenciais e conhecimentos plurais.
P dades modernas, é necessário repensar
também o lugar central, e muitas vezes Matriz de Corvalán
autoritário, que ela ocupa nas tomadas No esforço de compreender essas
de decisão que interferem diretamente relações, a Organização Mundial da
nas inter-relações produção/ambiente/ Saúde/ Organización Panamericana
saúde. Durante os últimos séculos, o de la Salud (Opas) (2000) desenvol-
conhecimento considerado legítimo veu, em 1996, um “marco causa-efeito
foi concentrado nos espaços formais da para a saúde e o ambiente”, expresso na
ciência (universidades, instituições de Matriz FPSEEA. Ela pode contribuir
pesquisa etc.), muitas vezes desconside- na análise de problemas de saúde, ao
rando-se os saberes ancestrais acumu- reconhecer os elos de determinação
entre forças motrizes, situadas num plano

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

mais macro da formação social, com a exposições combinadas proce-


geração de pressões que alteram o estado dentes de distintas fontes. Para
do ambiente, criando as condições para que este estado alterado do am-
a exposição humana a fatores de risco e biente exerça algum efeito sobre
para a instalação de agravos à saúde (ver a saúde humana, entre outros
Figura 14, adiante, p. 795). fatores, tem que haver a...
A matriz relaciona: 4) Exposição, enquanto interação
1) Forças-motrizes: as responsáveis entre o ser humano e o perigo
pela criação das condições nas ambiental, através de rotas de
quais se podem desenvolver ou contaminação que chegam ao
evitar distintas ameaças am- corpo através da respiração,
bientais para a saúde, como os da ingestão ou do contato com
processos produtivos do desen- a pele. Desta exposição vão
volvimento e as tecnologias. resultar...
Elas exercem... 5) Efeitos sobre a saúde, que varia-
2) Pressões sobre a Natureza, como rão de intensidade, magnitude e
são a urbanização; a superex- tipo de acordo com a natureza
ploração, a contaminação e a do perigo, o nível de exposição
desigualdade na distribuição e o número de afetados. Eles
da água. Essas pressões podem ­atuam junto aos fatores genéti-
produzir mudanças no... cos, à nutrição, aos riscos ligados
3) Estado do ambiente, alterando ao estilo de vida e outros fatores
a qualidade do ar nos centros para provocar a doença. São
urbanos, contaminando o ar das eles: as infecções respiratórias
moradias; expondo a radiações agudas, as doenças diarreicas,
ionizantes; gerando resíduos as que podem ser prevenidas por
domésticos; contaminando ou vacinação, as doenças tropicais
promovendo acesso desigual à transmitidas por vetores e as
água, ou facilitando a veicula- ­doenças emergentes, os aciden-
ção de doenças transmitidas tes e intoxicações – ocupacio-
por vetores relacionados com a nais ou não; as alterações de saú-
água; contaminando biológica de mental relacionadas a fatores
ou quimicamente os alimentos; físicos, químicos e psicossociais; P
degradando o solo; trazendo as doenças cardiovasculares; o
problemas relacionados à habi- câncer – de origem ocupacional,
tação – escassez, confinamento, por agentes infecciosos, por con-
qualidade dos materiais; aciden- taminantes do ar, da água ou dos
tes e lesões; trazendo exposições alimentos, as radiações ionizan-
a riscos nos locais de trabalho; e, tes e não-ionizantes, os fumos de
finalmente, gerando mudanças tabaco; as doenças respiratórias
ambientais de impacto global, crônicas, alergias, problemas de
como as mudanças climáticas saúde da reprodução.
e o movimento dos resíduos pe- Cada um destes pontos da cadeia
rigosos; além do problema das deve desencadear ações destinadas a con-

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

trolar e prevenir os efeitos nocivos para a rabilização e processo saúde-doença,1 que


saúde, ações estas que podem influir, por deverão ser analisados de acordo com
sua vez, nos distintos pontos da cadeia, cada fase dos grandes empreendimentos:
sendo que as mais efetivas são aquelas 1) período que antecede a chegada das
que modificam as forças motrizes. empresas; 2) fase de implantação; 3) fase
Apesar de a Matriz de Corvalán de funcionamento; 4) período em que o
representar uma tentativa de ampliar empreendimento abandona o território.
a compreensão a respeito dos planos A formulação dessa matriz foi oriunda
macro e microestruturais do processo de uma reflexão a partir das pesquisas
saúde-doen­ça que envolvem a dimen- realizadas em territórios em conflitos
são ambiental, ela ainda assim está ali- ambientais, observando-se a repetição
cerçada em uma sistematização linear de determinados padrões de ameaças
desses planos. Quando se adentra em à saúde e adoecimento das populações:
um terreno de problemas dotados de [...] a saúde é dimensão muito sen-
uma maior complexidade, como nos sível na vida das pessoas, ocupando
processos de vulnerabilização de povos lugar prioritário em suas preocu-
e comunidades tradicionais, muitos deles pações, e, muitas vezes, é a partir
desen­cadeados por contextos de con- do conhecimento e da experiência
flitos e injustiças ambientais, torna-se do adoecimento pessoal e coletivo
fundamental reunir aportes de outros que os sujeitos locais vão tecendo
campos, tanto de origem acadêmica pontes e elaborando reações ao novo
contexto de risco a partir de seus
como de sujeitos e movimentos dire-
saberes. Do ponto de vista da Saúde
tamente implicados nesses contextos.
Coletiva, desvelar esse quadro ajuda
Para superar o paradigma biomédico, a explicitar a distribuição desigual
que muitas vezes ainda apresenta-se dos ônus e bônus do ‘desenvolvimen-
como hegemônico nas ações de Saúde to’ e a desconstruir esse discurso, ao
Pública, Porto, Rocha e Finamore (2014) tempo que facilita sua denúncia na
propõem o Enfoque socioambiental crítico arena social, bem como a incidência
e transformador (ESACT), o qual reúne sobre as políticas públicas responsá-
aportes da Teoria da determinação social veis pela proteção de direitos, além
do processo saúde-doença, da geografia da de possibilitar a adequada atenção
saúde, do estruturalismo-construtivista e à saúde em cada caso, a partir do
P diagnóstico dos agravos. Assim, dia-
dos estudos descoloniais/epistemologias
leticamente, esse despertar sobre os
do sul, campos do conhecimento que
problemas de saúde nos conflitos
precisam estar em diálogo horizontal ambientais tem se revelado como
com os direitos humanos, sociais e ter- potente na construção de resistência
ritoriais que emergem das questões de e fortalecido os coletivos nas denún-
saúde e ambiente. cias e lutas por seus direitos. (Rigotto
A partir desse referencial proposto et al., 2018, p. 165)
pelo ESACT, Rigotto et al. (2018) cons- A partir do diagrama (ver Figura
troem uma matriz de análise dos proble- 15, adiante, p. 795), proposto por Santos
mas de saúde relacionados aos conflitos e Rigotto (2010), é possível vislumbrar a
ambientais por meio do entrecruzamento posição central da categoria “processos
dos conceitos desterritorialização, vulne-

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PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE

produtivos” também no plano dos terri- saúde-doença dos trabalhadores, que


tórios, como uma engrenagem impulsio- perpassam os fluxos internos e exter-
nada por meio das técnicas produzidas nos dos ambientes de trabalho. Assim,
pelo arsenal da ciência moderna e pela para que o campo da Saúde Coletiva
exploração, muitas vezes devastadora, compreenda profundamente os desafios
dos bens naturais. Ainda como parte complexos da contemporaneidade das
desse ciclo, esses mesmos processos pro- interfaces “Saúde do Trabalhador” e
dutivos impulsionam externalidades re- “Saúde e Ambiente”, com o intuito de
lacionadas à contaminação ambiental; superar as forças motrizes desse modelo
processos simbólicos e culturais; proces- produtivo hegemônico adoecedor, faz-se
sos urbanos/de urbanização; processos necessário apontar alternativas de arti-
de distribuição e comercialização, e, por culação entre a produção, o ambiente
fim, processos de consumo. Inseridas e a saúde que sejam compatíveis com o
intrinsecamente na engrenagem dos cuidado com a Vida de todos os seres,
processos produtivos, encontram-se inclusive os humanos, em patamares
as dimensões relacionadas ao processo que propiciem dignidade a todos.

Referências
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Nota
1
O conceito de vulnerabilização é proposto como forma de politizar a ideia mais comum no campo
da Saúde Coletiva sobre vulnerabilidades. A crítica a essa ideia parte da compreensão de que as
injustiças e assimetrias inerentes ao modelo hegemônico são impostas de forma muito violenta sobre
alguns grupos sociais – segmentados por classe, raça/etnia, gênero e geração, e de que a proteção
que o Estado oferece a eles é desigual. Assim, nos contextos de povos e comunidades em conflitos
ambientais, podem ser identificados processos de vulnerabilização, em que ações de empreendedores
e do Estado ativamente ampliam as vulnerabilidades desses grupos às consequências negativas das
intervenções.

626
Q
QUESTÃO AGRÁRIA

J oão P edro Stedile

A expressão questão agrária tem região ou país, há um problema na agri-


diversas utilizações na literatura polí- cultura, ou um conflito. Então, se há
tica brasileira. E diversos significados uma situação conflituosa, haveria uma
suscitados pela amplitude das duas questão agrária pendente.
palavras conjugadas. Em outros autores, há também a
O vocábulo “questão” pode desig- utilização apenas como referência a
nar problema, tema ou mesmo pergun- uma situação do desenvolvimento das
ta. O vocábulo “agrário” tem sua origem forças produtivas na agricultura. Se
na palavra latina agru, sinônimo de há muitos problemas, concentração
terra. Portanto, todas as palavras por- da terra, latifúndios, e isso impede o
tuguesas que possuem o prefixo agro se desenvolvimento das forças produ-
referem a atividades relacionadas com tivas no campo, então haveria uma
a terra, o solo. O termo agricultura [ver questão agrária. E, ao contrário, se
Agricultura], por exemplo, está relacio- em determinada região ou país não há
nado com todas as atividades de culti- mais conflitos e o capital se desenvolve
var a terra, como lavouras, hortas ou normalmente na sua lógica de acumula-
árvores etc., e até mesmo a pecuária é ção, então naquela região analisada não
uma atividade dentro da agricultura; já haveria uma questão agrária.
agricultor diz respeito à arte, ao conhe- A origem histórica da utilização da
cimento de cultivar a terra e, portanto, expressão “questão agrária” vem dos pri-
se trata de uma profissão daquele que meiros estudiosos que, a partir do século
sabe cultivar a terra. Não é uma classe XVIII e até o século XX, analisaram o
social e nem está relacionada com a desenvolvimento do modo de produção
propriedade da terra, é uma profissão, capitalista, ficando conhecidos como
daquele que tem conhecimento e pra- “pensadores clássicos”. Ao investiga-
tica o cultivo do agro. rem o comportamento do capital na
É frequente encontrar-se na litera- organização da produção agrícola e em
tura o uso dessa expressão como uma relação à propriedade da terra, esses
forma de dizer que, em determinada pensadores concluíram que, à medida
Q U E S TÃO AG R Á R I A

que o modo de produção capitalista se produzindo concentração da propriedade


desenvolvia, com sua lógica e suas leis, da terra.
a propriedade da terra foi se concen- Historicamente, a propriedade pri-
trando nas mãos de um menor número vada da terra foi se consolidando a partir
de proprietários capitalistas. Ou seja, o das revoluções burguesas, do estabele-
advento do capitalismo como modo de cimento das regras republicanas e da
produção predominante, combinado organização do Estado burguês. Nesse
com o regime político republicano, que regime, todos os cidadãos passaram a ter
havia introduzido o direito à propriedade direito à propriedade de terras, desde que
privada de bens e de mercadorias, trouxe tivessem dinheiro-capital para comprá-
como consequência o fato de a terra, -las do seu ocupante, ou, se fossem terras
antes vista como um bem da natureza públicas, do Estado.
sob controle monopólico das oligarquias À medida que o capitalismo evoluiu
ou nobreza (no período do feudalismo), da fase mercantil para o capitalismo
tornar-se agora uma mercadoria especial, industrial, como decorrência do pro-
sujeita à propriedade privada. cesso de acumulação de capital, houve
Em seus estudos sobre o desenvol- também uma crescente concentração
vimento do capitalismo na agricultura, da propriedade da terra. Ao analisarem
Karl Marx (1988) ao tratar da teoria da o comportamento do capitalismo que
renda da terra, chamou esta última de levava à contínua concentração da pro-
“mercadoria especial”, pois, com base priedade da terra, alguns pesquisadores
nos conceitos da Economia Política, não da época defenderam a tese de que a
era possível classificá-la como uma mer- concentração da propriedade da terra se
cadoria: a terra não é fruto do trabalho transformara em uma contradição e, por-
humano, é um bem da natureza. A terra, tanto, num problema agrário para o desen-
o sol, a água, os ventos (que também volvimento do capitalismo industrial. Se-
são fatores para a produção dos bens na gundo essa tese, o capitalismo industrial
agricultura) não têm valor em si, pois não precisava, para o seu crescimento, que
foram produzidos por tempo de trabalho se desenvolvesse um mercado interno
humano. No entanto, ao se introduzir de consumidores dos bens da indústria.
nesse bem da natureza o direito à sua Ao concentrar a propriedade da terra
propriedade privada, surgiu a cerca, a e manter os camponeses sem terra – e,
delimitação de tamanhos etc., e a terra portanto, despossuídos de renda –, esse
passou a ser regida pelas mesmas regras modelo freava o desenvolvimento do
do capitalismo. Assim, cada vez que o mercado interno e das forças produtivas.
Q
capitalista agrícola ganha mais dinheiro, A essa situação, que ocorreu em al-
tem mais lucros e acumula capital, ele guns dos países da Europa ocidental que
vai comprando mais terras de outros primeiro ingressaram na etapa industrial,
proprietários privados. Ou seja, o mesmo é que os pensadores clássicos atribuíram
movimento de acumulação de capital a condição de existência de um problema
que ocorre na indústria e no comércio, agrário. Assim sendo, num primeiro
nos meios de produção em geral, passa a momento, a expressão “problema agrário
ocorrer também na propriedade da terra, das sociedades capitalistas” nasceu como
pela tendência lógica do capitalismo a ir sinônimo da elevada concentração da

628
QUESTÃO AGRÁRIA

propriedade da terra, que impedia o de- três condições possuem características


senvolvimento do mercado interno. Daí diferentes, ainda que complementares.
também o uso da expressão da existência Ao se fazer o estudo da forma de
de uma questão agrária, não resolvida. organização socioeconômica do meio
Aqui no Brasil, essa abordagem rural de qualquer país ou região dentro
de que o problema agrário se resumia dele, se está estudando a questão agrária
na ocorrência ou não de concentração daquele país.
da propriedade como fator inibidor Cada sociedade tem uma forma es-
do capitalismo foi inf luenciada pela pecífica de usar a natureza e de organizar
divulgação do livro A questão agrária, a produção dos bens agrícolas. E o seu
de Karl Kautsky (1968). O estudo de uso vai determinar que produtos são cul-
Kautsky é bem específico: ele analisa, tivados, para atender a que necessidades
à luz das leis da Economia Política, sociais e que destino se dá a eles.
o comportamento do capitalismo na A posse da terra refere-se a quais pes-
agricultura da Alemanha, do final do soas e categorias sociais moram naquele
século XIX até o início do século XX. território, como vivem nele e, portanto,
E nosso colonialismo intelectual e aca- quem tem o seu domínio, sua posse.
dêmico nos levou a crer que a questão E a propriedade é uma condição jurí-
agrária se resumiria às teses defendidas dica, estabelecida a partir do capitalismo,
por Kautsky para a sociedade alemã de que garante o direito de uma pessoa,
determinado período histórico. empresa ou instituição que possua dinhei-
ro-capital comprar e ter a propriedade
O conceito de questão agrária privada de determinada área da natureza,
O significado do conceito de “ques- podendo cercá-la e ter absoluto controle
tão agrária”, como originalmente inter- sobre ela, impedindo que outros a ela
pretado pelos pensadores clássicos, evo- tenham acesso. Essa condição jurídica,
luiu nas últimas décadas, com o debate estabelecida por leis da ordem institucio-
mais aprofundado sobre o tema, com a nal de cada país, é que transforma a terra
contribuição de intelectuais orgânicos em uma mera mercadoria que se pode
vinculados aos movimentos campone- comprar e vender, e da qual se pode ser
ses, e ainda pelo surgimento de novos proprietário absoluto. Os proprietários
desafios relacionados com a nova etapa dessa natureza podem usar inclusive a
do capitalismo na agricultura, agora força do Estado para garantir seu direito e
dominado por grandes corporações impedir que outros a tenham, ou em mui-
transnacionais e pelo capital financeiro tas regiões o próprio proprietário exerce
Q
globalizado, que controlam o mercado ilegalmente essa repressão social, com uso
mundial das mercadorias agrícolas. de milícias e força militar privada.
O entendimento atual é que “a ques- Ao se estudar a questão agrária de
tão agrária” é uma área do conhecimento determinada sociedade, em determina-
científico que procura estudar, pesquisar, do período histórico, analisa-se como
conhecer, de forma genérica ou em terri- aquela sociedade organiza a posse de seu
tórios específicos, como cada sociedade território, a produção dos bens agrícolas
organiza, ao longo de sua história, o uso, para atender suas necessidades e a pro-
a posse e a propriedade da terra. Essas priedade da terra.

629
Q U E S TÃO AG R Á R I A

E, para cada aspecto estudado de Karl Kautsky (1968), como mencio-


cada sociedade em cada período histórico, nado, fez o mesmo estudo em relação à
serão encontrados diferentes “problemas Alemanha, abordando o final do século
agrários”, surgidos como resultado das XIX e o início do século XX, e as carac-
contradições criadas pelas formas de terísticas descritas por ele receberam a
organização presentes naquela sociedade. denominação de “via prussiana”, uma
Por exemplo, pode-se estudar a questão referência ao antigo Império Prussia-
agrária no Brasil durante o período colo- no, que imprimia características seme-
nial, no qual as características principais lhantes a toda aquela região da Europa
são o trabalho escravo, o monopólio da Central, que hoje está ocupada pela
propriedade da terra pela Coroa e a posse Alemanha, Áustria, Polônia e Ucrânia.
entregue em concessão de uso apenas a Vladimir Ulianov, Lenin, fez um
alguns grandes latifundiários capitalistas estudo do mesmo período tratado no
de origem europeia. Da mesma forma, trabalho de Kautsky sobre as caracterís-
pode-se estudar a questão agrária no final ticas do capitalismo na agricultura da
do século XX, caracterizada pelas in­ Rússia, denominando-as de “via junker”,1
fluências do capitalismo globalizado, pelas em uma referência à forma como o lati-
empresas agrícolas transnacionalizadas e fundiário local havia se transformado em
pelo capital financeiro. fazendeiro capitalista.
Lenin também realizou estudos se-
Estudos clássicos sobre o melhantes acerca do desenvolvimento do
desenvolvimento do capitalismo na agricultura nos Estados
capitalismo na agricultura Unidos, no período que abrange do final
Na literatura clássica sobre o tema, do século XIX até o início do século
existem diversos estudos realizados acer- XX. As características específicas desse
ca da questão agrária dos países, relacio- processo receberam a denominação de
nados com o período histórico em que o “via farmer” ou “via americana”, em
capitalismo industrial passou a dominar referência ao predomínio da organização
e organizar a agricultura. Os pensadores da produção em unidades familiares-ca-
que interpretaram a questão agrária des- pitalistas, decorrente da colonização de-
ses países construíram diferentes teses mocrática, pela qual todas as famílias de
sobre a natureza do desenvolvimento do agricultores tiveram o direito de acesso
capitalismo na agricultura. à mesma quantidade de terra, distri­
Karl Marx (1988), no capítulo 24 do buída pelo Estado, a partir de uma lei
livro I d’O capital, estudou o desenvol- de Abraham Lincoln de 1862. (National
Q
vimento do capitalismo na agricultura Archives, 1862).
na Inglaterra durante a transição do Há também diversos estudos clássi-
capitalismo mercantil para o industrial cos que analisam o comportamento da
(final do século XVI até meados do questão agrária imposto pelo capitalis-
século XIX). E as formas específicas mo nas colônias. Em todas as colônias
descritas pelo autor para aquela forma de do hemisfério sul houve basicamente
capitalismo receberam a denominação duas formas de organização da questão
de “via inglesa” do desenvolvimento do agrária: a plantation, que associava
capital na agricultura. grandes extensões de terra, produção

630
QUESTÃO AGRÁRIA

para exportação e trabalho escravo; e as privada das terras pela lei 601 de 1850
haciendas, implantadas sobretudo pelo (Brasil, 1850). Houve então uma transi-
capitalismo espanhol em suas colônias, ção de 1850 a 1930, até que se impôs a
e que combinavam trabalho servil, nova etapa do capitalismo industrial, a
produção para a exportação e produção partir da década de 1930 e durante todo
para o mercado interno. o século XX.
Finalmente, encontramos na litera- Substituiu-se o trabalho escravo
tura a análise da questão agrária em paí- pela migração camponesa europeia e,
ses com condições edafoclimáticas2 mais em menor grau, asiática. A agricultura
difíceis para a produção agrícola anual. brasileira passou a ser dominada pelos
É o caso de países montanhosos ou com interesses do capital industrial, gerou-se
invernos rigorosos, como a ­Suíça, ou das um mercado interno de bens agrícolas,
regiões de solo árido. Esses estudos foram e se introduziu a agroindústria e os in-
realizados por Giovanni Arrighi na dé- sumos industriais na agricultura (como
cada de 1960, e o desenvolvimento do fertilizantes, pesticidas, máquinas e
capitalismo na agricultura nessas áreas implementos), intensificando-se os in-
recebeu a denominação de “via suíça” vestimentos capitalistas. Esse período
ou “via migrante”.3 foi resumido, na tese de José Graziano da
Silva (1982), como “modernização dolo-
A questão agrária no Brasil rosa”, porque desenvolveu as forças pro-
A questão agrária no Brasil, inter- dutivas do capital na produção agrícola,
pretada como a análise das condições porém excluiu milhões de trabalhadores
de uso, posse e propriedade da terra na rurais, que foram expulsos para a cidade
nossa sociedade, já foi objeto de muitos ou tiveram de migrar para as fronteiras
estudos sobre os diferentes períodos agrícolas, em busca de novas terras.
da história, e existe ampla literatura Sobre a natureza da questão agrária
sobre o tema. Embora sempre haja in- nas últimas duas décadas (1990-2010),
terpretações específicas e/ou divergentes há dois enfoques básicos. O primeiro,
sobre um mesmo período, a maioria dos defendido por pesquisadores que se so-
pesquisadores considera ter predomi- mam à visão burguesa da agricultura,
nado, no período colonial, a plantation argumenta que existe um intenso desen-
como forma de organização capitalista volvimento do capitalismo na agricultura
na agricultura brasileira do período. brasileira, que aumentou enormemente
A plantation foi a forma específica de a produção e a produtividade da terra.
organizar a produção na colônia Brasil, Para essa concepção, a concentração da
Q
para atender a lógica e as necessidades propriedade e seu uso já não representam
do capitalismo mercantil, dominado pela um problema agrário no Brasil, pois as
Europa. A exploração do trabalho escra- forças capitalistas resolveram os proble-
vo e a exportação de toda produção para mas do aumento da produção agrícola a
a Europa, onde se realizava a acumulação seu modo, e a agricultura se desenvolve
principal do capital, foi sua marca. muito bem, do ponto de vista capitalista.
Esse modo de produzir entrou em Ou seja, a agricultura é uma atividade
crise; tivemos o fim do trabalho escra- lucrativa, com aumento permanente da
vo, porém se introduziu a propriedade produção e da produtividade agrícolas.

631
Q U E S TÃO AG R Á R I A

O outro enfoque, de pensadores da exploração capitalista na agricultura


marxistas, críticos, analisa que a forma brasileira, que degrada o solo e contamina
como a sociedade brasileira organiza o rios e lençóis freáticos, além de desmatar
uso, a posse e a propriedade dos bens da sem nenhum controle, desrespeitando
natureza ocasiona ainda graves problemas inclusive as leis ambientais do Código
agrários e de natureza econômica, social, Florestal (Brasil, 2012). O Instituto Bra-
política e ambiental. Esses problemas apa- sileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
recem no elevado índice de concentração Naturais Renováveis (Ibama) aplicou
da propriedade da terra, apenas 1% dos multas por crimes ambientais a grandes
proprietários controla 46% de todas as fazendeiros brasileiros, no valor total apro-
terras; no elevado índice de concentração ximado de 8 bilhões de reais, segundo o
da produção agrícola, em que apenas 8% noticiário da imprensa ao longo de 2011,
dos estabelecimentos produzem mais de que, no entanto, não foram pagas.
80% das commodities agrícolas exportadas A tecnologia utilizada pelo modo
[ver agronegócio]; na distorção do uso de capitalista de produzir na agricultura
nosso patrimônio agrícola, pois 80% de brasileira está baseada no uso intensivo
todas as terras são utilizadas apenas para da mecanização e dos venenos agrícolas.
produzir soja, milho e cana-de-açúcar, e E essas duas formas, além de expulsarem
na pecuária extensiva; na dependência a mão de obra e a população do campo,
econômica externa a que a agricultura representam uma agressão permanente
brasileira está submetida, por causa do ao meio ambiente, trazendo como con-
controle do mercado, dos insumos e dos sequência desequilíbrios ambientais que
preços pelas empresas agrícolas trans- afetam toda a população, mesmo a que
nacionais; e na subordinação ao capital mora na cidade.
financeiro, pois a produção agrícola de- Esses são exemplos de como há,
pende cada vez mais das inversões deste, ainda na atualidade, segundo essa cor-
que adianta recursos, cobra juros e divide rente de pesquisadores, um grave pro-
a renda gerada na agricultura. blema agrário na sociedade brasileira.
Do ponto de vista social, esses pro- No entanto, o estudo da questão agrária
blemas são evidenciados na extrema brasileira na atualidade exige um grau de
desigualdade social que essa estrutura aprofundamento e de estudos regionais
econômica gera no meio rural brasileiro, ainda mais detalhados, para compreen-
onde existem 7 milhões de pessoas que dermos sua natureza. Felizmente há uma
ainda vivem na pobreza absoluta e 14 motivação maior nos tempos atuais e
milhões de adultos analfabetos. percebe-se o desenvolvimento de muitas
Q
Há, também, um enorme passivo pesquisas e a publicação de literatura
ambiental resultante da forma predadora cada vez mais abrangente sobre o tema.

Referências
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setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas no Império. Disponível em: http://www.planalto.gov.
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632
QUESTÃO AGRÁRIA

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Expressão Popular, 2021.
MARTINS, J. de S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1986.
MORISSAWA, M. A história da luta pela terra no Brasil e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001.
STEDILE, J. P. A questão agrária no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2005. 8 v.
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Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2005.
_______. Questão agrária no Brasil. 11. ed. rev. São Paulo: Atual–Saraiva, 2011

Notas
1
O termo junker era usado no meio rural russo da época como sinônimo de fazendeiro rico; é provável
que tenha sido adotado por causa da proximidade da Rússia com a Alemanha.
2
Condições características de cada região, relacionadas com a fertilidade natural do solo, a quantidade
de água e sol, e as condições de clima para agricultura.
3
Para cada via de desenvolvimento capitalista na agricultura aqui resumidos, há farta literatura já
disponível em português.

633
R
REFORMA AGRÁRIA POPULAR

A dalberto M artins
D ébor a Nunes
G er aldo Gaspar in

Como parte dos processos de reflexão, Estado e os governos assumem a posição


dos debates coletivos e por ocasião da rea- de que não é mais necessária uma refor-
lização de seu VI Congresso Nacional (em ma agrária para o desenvolvimento da
2014), o Movimento dos Trabalhadores agricultura brasileira.
Rurais Sem Terra (MST) atualizou o seu No atual contexto, o capitalismo
“Programa Agrário”. É basicamente sobre mundial, agora controlado pelo capital
esse documento que se formula a nova financeiro e pelas grandes empresas
estratégia do MST: a Reforma Agrária privadas transnacionais, passa também
Popular. Essa estratégia representa o en- a controlar a forma de produção das mer-
frentamento com o modelo do capital, o cadorias agrícolas. O capital financeiro
agronegócio, e busca criar as condições e e as grandes empresas não só controlam
acumular forças para as mudanças estru- a produção, mas também os preços e o
turais de toda a sociedade. volume das mercadorias padronizadas
Assim, propomos a compreensão (commodities), a circulação, os insumos,
dessa temática sob três aspectos: o con- portanto dominam os mercados e ficam
texto histórico, as implicações na luta com a maior margem da renda agrícola
pela terra e os desafios para os assen- e dos lucros. Com a crise do próprio
tamentos.1 capitalismo, estamos assistindo, a partir
de 2008, uma ofensiva de capitais es-
Contexto histórico trangeiros que migram para o hemisfério
Faz-se necessário, preliminarmen- sul, investindo sobretudo na agricultura,
te, contextualizar o atual estágio de na apropriação privada da natureza, seja
desenvolvimento das forças produtivas terra, água, minérios (ferro, bauxita,
no campo que, controladas pelo grande ouro, cobre etc.) ou usinas de etanol, e
capital, hegemonizam há duas décadas no controle da produção, sobretudo de
um projeto de agricultura – o agrone- soja, milho, laranja, cacau, aves, suínos,
gócio. Com esse modelo, a burguesia, o carne bovina, entre outras.
R EFOR M A AGR Á R I A POPULA R

No caso brasileiro, as mudanças eco- setor agroexportador, conformando as-


nômicas que permitiram a aproximação sim o que se denominou de agronegócio
da empresa rural capitalista em relação [ver Agronegócio].
às empresas transnacionais que contro- Portanto, o agronegócio é expressão
lam diferentes pontos da cadeia produ- de uma nova aliança de classe no campo,
tiva (o mercado internacional de grãos; com enorme força política, econômica e
a fabricação de tratores e colheitadeiras, ideológica, transformando-se no princi-
entre outras máquinas agrícolas; e a pro- pal inimigo das populações que vivem
dução dos insumos agrícolas, especial- no campo e exigindo do MST uma nova
mente venenos, sementes transgênicas estratégia expressa na palavra de ordem
e adubos químicos solúveis) remontam reforma agrária popular.
ao ano de 1999. O governo Fernando O projeto do agronegócio evidente-
Henrique Cardoso, iniciando seu segun- mente trouxe mudanças estruturais na
do mandato, desvalorizou a moeda (real) propriedade da terra, no emprego e na
em função da crise econômica, forçando composição das classes sociais.
o aumento de exportações para gerar su- No tocante às mudanças estrutu-
perávit na balança comercial, necessário rais na propriedade da terra, houve um
para dar segurança aos especuladores in- processo acelerado de concentração. Os
ternacionais, atraindo-os para aplicações grandes proprietários (acima de 1.000
financeiras de curto prazo (Delgado, ha) passaram de 68.585 imóveis (em
2012; Filgueiras, 2000). 2003), para 95.030 em 2014, e a área
Essa política econômica fez com que controlada passou de 195,7 para 428,6
se constituísse uma nova força política milhões de hectares (Delgado, 2016).
no campo: a empresa rural capitalista, Os grandes e médios proprietários que
associada aos interesses das empresas representam o agronegócio controlam
transnacionais. Esta nova configuração 85% das terras e praticamente toda a
passou a “blindar” o latifúndio improdu- produção de grãos para exportação.
tivo, para que nestas áreas se avançasse Além disso, estima-se que as empre-
nos cultivos e criações destinados ao sas estrangeiras controlem mais de 30
mercado externo. Neste contexto, a Re- milhões de hectares no Brasil (Stedile,
forma Agrária foi bloqueada, impedindo 2013), revelando o grau de desnacio-
que a população sem-terra tivesse acesso nalização da propriedade da terra em
aos latifúndios, que passaram a ser áreas nosso país.
de futuros investimentos deste setor. Houve um aumento significativo
Os sucessivos governos de FHC, da produtividade agrícola, por hectare
Lula e Dilma não romperam com o ca- e por trabalhador, em todos os ramos de
pital financeiro e sua lógica parasitária, produção, combinado com o aumento
R ficando reféns dos superávits da balan- de escala dos monocultivos, bem como
ça comercial como forma de ampliar com o uso intensivo de agrotóxicos e
as reservas cambiais (dólar no Banco máquinas agrícolas, o que revela que
Central), sinal de segurança ao capital nossa agricultura é químico-dependente
especulativo. Por isso, as políticas agríco- de insumos e venenos importados.
las, ao longo deste período, sempre foram Para continuar com a sanha de
de favorecimento à grande fazenda e ao acumulação de riqueza através da pro-

636
REFORMA AGRÁRIA POPULAR

dução agrícola, esse capital procura se em uma luta contra o modelo do capital
expandir incorporando novas áreas ao para a agricultura brasileira.
agronegócio, sobretudo na região cen- Esses novos posicionamentos do
tro-oeste, no bioma Cerrado [ver Bioma MST e dos movimentos sociais como
C err ado] , no sul da Amazônia e no um todo, dentre os quais defender um
chamado Matopiba (sul do Maranhão novo projeto de reforma agrária que seja
e do Piauí, norte de Tocantins e oeste popular, isto é, construir alianças entre
da Bahia). todos os movimentos camponeses, com a
Já os trabalhadores assalariados do classe trabalhadora urbana e com outros
agronegócio totalizam 2,2 milhões (na setores sociais comprometidos com mu-
década de 1980, eram de 6 a 10 milhões, danças estruturais, de caráter popular, é
segundo o IBGE). Além disso, entre uma mudança que não interessa apenas
2006 e 2017 houve uma redução de 1,5 aos camponeses, mas ao conjunto dos
milhões de pessoas ocupadas no campo trabalhadores. Evidentemente que não
(IBGE, 2018). A conclusão é óbvia: o se trata de mudança de nome apenas.
agronegócio não gera emprego, e por A mudança é de conteúdo.
isso é uma atividade rentável apenas
para os grandes capitalistas. Na condi- Implicações na luta pela terra
ção social de camponeses, as estatísticas Como indicado anteriormente, são
apontam o número de 4,8 milhões de expressivas as mudanças na composição
agricultores familiares. Destes, apenas da classe dominante no campo: já não
1 milhão possuem renda que garanta são mais apenas os latifundiários (gran-
sua reprodução social. Os demais, 3,8 des proprietários rurais); a eles se alia-
milhões de camponeses pobres, estão ram os capitalistas financeiros-rentistas
inviabilizados por esse modelo (Stedi- e os capitalistas monopolistas (grandes
le, 2013), produzem basicamente para empresários transnacionais), além dos
a subsistência e vendem um volume grandes meios de comunicação – com
pequeno de produção. Entre eles está a os quais buscam disputar o apoio da
base social que lutaria pela terra e pela sociedade. Alterou-se, portanto, a cor-
reforma agrária. Eles estão à margem relação de forças no campo, impedindo
deste projeto de agricultura do agrone- que a reforma agrária avance. Ela está
gócio, excluídos de políticas públicas e bloqueada por essa aliança de classes,
incluídos em parte nas políticas sociais que permite concentrar terras e políti-
do bolsa família. cas públicas.
Frente a esse modelo, não há mais A luta pela terra, portanto, não se
espaço para uma reforma agrária do dá mais apenas no campo ou nos espaços
tipo clássica, aquela que objetiva a de- governamentais/institucionais, no âmbi-
mocratização da propriedade da terra, to do aparelho do Estado brasileiro, mas R
garantindo a reprodução dos campo- exige uma efetiva participação da socie-
neses com sua integração ao mercado dade e uma diversificação dos espaços.
interno e geração de renda. Ela não cabe Isso implica conjugar a luta direta
no atual projeto de agricultura que está pela garantia da existência dos assenta-
se estruturando em nosso país. Assim, a mentos de reforma agrária à resistência
luta pela reforma agrária se transformou à mercantilização da natureza e ao

637
R EFOR M A AGR Á R I A POPULA R

acelerado processo de espoliação no ração da terra, atribuindo centralidade


território brasileiro por empresas es- à função social da terra, que deve ser
trangeiras, portanto, trazendo também preservada e que precisa estar a serviço
o debate da soberania nacional (por da produção de alimentos saudáveis para
exemplo, na extração de minérios, na toda a sociedade, tendo garantido o seu
tentativa de controle das reservas aquí- acesso a quem nela quer viver e trabalhar.
feras); passando por ações que forcem Contudo, para que essas medidas
o Estado Brasileiro ao cumprimento se efetivem, é necessário que o Estado
do seu papel e pelo fortalecimento das brasileiro cumpra o seu papel, seja no
articulações com os diversos segmentos cumprimento constitucional da obser-
que fazem a luta pela terra (trabalhado- vância do quesito função social, seja
res sem-terra, ribeirinhos, quilombolas, no rompimento da lógica subserviente
indígenas...), de maneira a assegurar o aos interesses do capital, que tem sua
acesso à terra, como garantia do direito expressão na eficaz atuação da ban-
ao trabalho e meio de vida, às milhões cada ruralista no Congresso Federal,
de famílias que ainda não a possuem ou acompanhada pelos poderes Executivo
àquelas que têm cotidianamente seus e Judiciário.
territórios ameaçados. Assim, resistir Verifica-se a ausência efetiva do Es-
e enfrentar o agronegócio passa por tado na viabilização da reforma agrária,
confrontar o capital que tornou a terra pela paralisação na arrecadação ou desa-
uma mera mercadoria a seu serviço, propriação de terras para o assentamento
visando apenas o lucro. de novas famílias, ou ainda não garan-
Para enfrentar a lógica predatória e tindo condições para o desenvolvimento
privatista de apropriação e expropriação, dos assentamentos no que se refere à
o MST propõe: o estabelecimento do infraestrutura, ao crédito, ao acesso a
limite da propriedade rural; a garantia políticas públicas etc.
do acesso à terra a todas as famílias Em contrapartida, verifica-se sua
que quiserem nela morar e trabalhar; a presença forte no reordenamento jurídi-
desapropriação de todas as propriedades co e institucional que foi levando a luta
rurais de empresas ou pessoas que não política da Reforma Agrária para a buro-
tenham na agricultura a sua principal cracia estatal, um campo eminentemente
atividade e das grandes propriedades da burguesia. O ápice desse processo foi
que não cumprem a função social; expro- a lei 13.465/17 (antiga MP759), que regu-
priar, sem nenhuma indenização, terras lariza a grilagem de terras na maior parte
onde exista trabalho escravo; e demarcar do território brasileiro e abre caminho
como coletivas todas as terras indígenas, para a privatização dos assentamentos.
de quilombolas, faxinais, manguezais, Observa-se também o aprofunda-
R pastos e serras, de acordo com a tradição mento dos processos de criminalização
de cada região. Além da arrecadação e deslegitimação da luta pela terra.
de todas as terras públicas que estejam Dessa forma, embora a luta política
em posse de grileiros (Movimento dos por terra e reforma agrária precise con-
Trabalhadores Rurais Sem Terra, 2013). tinuar sendo enfrentada no campo insti-
Essas medidas colocam em debate o tucional, ela agora exige dos movimentos
atual modelo de propriedade e de explo- sociais e do MST que seja respaldada

638
REFORMA AGRÁRIA POPULAR

para além da garantia constitucional. assentamentos. E é preciso reconhecer


É necessário trazer perante a sociedade que a organização dos assentamentos
a justeza desta luta diante das enormes passa pelo desenvolvimento econômi-
desigualdades sociais, o que demanda o co-produtivo das famílias, implicando
fortalecimento das articulações com os a constituição de instrumentos eco-
diversos segmentos que fazem esta luta nômicos, expressos nas cooperativas.
e com a sociedade de modo geral – com Aqueles Estados e regiões nos quais as
os quilombolas, povos indígenas, pesca- lideranças compreenderam essa neces-
dores, posseiros, pequenos agricultores e sidade avançaram na organização das
tantos outros, para a luta direta, enfren- famílias assentadas, qualificando a ação
tando o crescente processo de concen- do movimento.
tração de terras e as expropriações dos Onde a organização dos assenta-
povos de seus territórios. mentos está baseada na produção de
A luta pela terra passa a ter uma alimentos saudáveis, vemos florescer o
centralidade política na cidade, pois desenvolvimento cooperado, democrá-
mesmo que sua materialização se dê no tico (com participação das mulheres
campo, a condição de sua conquista e e jovens), popular, de base ecológica,
legitimação passa necessariamente pela redesenhando os agroecossistemas,
cidade, quando a sociedade compreende trazendo ao MST uma nova qualidade
o seu papel na resolução de problemas ético-política. As famílias, no seu coti-
estruturais que afetam campo e cidade. diano produtivo, ao optarem por desen-
O MST, em sua práxis, com­preendeu volver uma agricultura de alimentos de
que a produção de alimentos saudáveis base ecológica, vislumbram a contra-
tem uma enorme força política, tanto dição política expressa no modelo do
para negar o agronegócio como para agronegócio, tornando-se conscientes
afirmar a possibilidade de organização das suas implicações sociais, econômi-
de uma agricultura voltada aos interesses cas e ambientais.
da população brasileira, desenvolvendo Ao se decidirem pelo caminho da
plenamente a função social da terra. agroecologia, afirmam uma trajetória
que as remete ao plano do gênero hu-
Desafios para os assentamentos mano. Essas escolhas, permeando sua
Ao indicar que a terra deverá cum- reprodução social, ao longo do tempo,
prir a sua função social, o MST coloca afirmam possibilidades de produções
na centralidade da luta política a função reais, concretas, que as vinculam a um
que os camponeses deverão cumprir, projeto societário distinto do atual; e
neste novo período da história brasileira. promovem condições para o desenvolvi-
Assim, produzir alimentos de base agroe- mento de uma nova ética (Lessa, 2012;
cológica e recompor os bens naturais nos Lukács, 2012). R
assentamentos passam a ser as principais A estratégia da Reforma Agrária Po-
tarefas políticas das famílias assentadas. pular leva o MST, no plano dos assenta-
Entretanto, não basta mais a decisão mentos, a plasmar, a materializar formas
política de produzir alimentos de base concretas de reprodução social que nos
agroecológica; requer-se criar as condi- vinculam ao futuro da humanidade, nos
ções efetivas para sua implantação nos aproximando do gênero humano.

639
R EFOR M A AGR Á R I A POPULA R

Essas experiências, também, já in- técnico-produtivo. Isto enfraqueceu a


dicam a possibilidade da construção força organizada do MST.
de uma base técnico-científica distinta No entanto, as experiências vêm in-
da matriz produtivista do capital. Sem dicando que os assentamentos se tornam
abrir mão daquilo que a humanidade realmente uma força política, na medi-
já avançou do ponto de vista de aliviar da em que assumem ações produtivas
a penosidade do trabalho, a produção voltadas para a produção de alimentos
agroecológica introduz novos elementos saudáveis, e com base nessas produções
técnico-científicos, assim como rein- viabilizam renda suficiente para a repro-
corpora práticas anteriores que foram dução social das famílias.
abandonadas pela ciência do capital. Disso fica claro que, nesse contexto
Sem querer regressar a formas an- de enfrentamento ao agronegócio e
teriores de sociabilidade, em uma visão afirmação da Reforma Agrária Popular,
idílica ou bucólica do campo, as expe­ as famílias assentadas e seus instrumen-
riências práticas do MST permitem tos econômicos deverão aprofundar e
abrir uma avaliação sobre o desenvol- problematizar essas duas dimensões: o
vimento das capacidades humanas e, trabalho familiar e a democratização
disso, debater sobre o desenvolvimento das relações sociais inauguradas com o
das forças produtivas. assentamento.
Outro aspecto a ser compreendido No tocante ao trabalho familiar, cabe
refere-se ao fato de que, ao se conquistar problematizar três aspectos:
o assentamento, surgem novas relações a) retomar a cooperação agríco-
sociais de produção. Se antes havia o la: em primeiro lugar, a lógica
trabalho assalariado (em muitos casos tradicional imposta pelo Incra
similar ao trabalho escravo), e um úni- está superada, seja no processo
co proprietário, concentrando a terra, individualizante (CPF-Cadas-
agora, com a luta e a conquista do as- tro-Lote-Crédito), seja na for-
sentamento, surge o trabalho familiar e a ma de corte dos assentamentos
democratização da terra. Estas novas re- (famoso “quadrado burro”), seja
lações sociais se revelaram, ao longo des- na forma de conceber o assen-
ses 30 anos de política de assentamento tamento apenas como unidade
dos sucessivos governos, insuficientes de produção agropecuária. É
para garantir o governo das famílias preciso resgatar as experiências
sobre as terras conquistadas. O governo coletivas que as famílias seguem
das famílias sobre o assentamento (a desenvolvendo, em especial as
gestão do território) é sucessivamente formas complexas de coopera-
disputado por diferentes forças sociais, ção, como os grupos e/ou coo-
R sejam elas forças econômicas, forças po- perativas plenamente coletivas.
líticas locais/regionais, sejam elas forças Deve-se também estimular as
ideológicas. E com o avanço do agrone- diferentes formas simples de en-
gócio no campo brasileiro, essas forças treajuda que emergiram com o
também chegaram nos assentamentos, desenvolvimento do mercado
na forma de arrendamento de áreas e institucional [ver C ompras Pú ­
na forma de reprodução do seu modelo blicas de Alimentos].

640
REFORMA AGRÁRIA POPULAR

b) mudar a matriz produtiva: afir- técnica etc.) que darão suporte à


mar a produção de alimentos sua implementação, tendo pre-
para o mercado interno como sente a necessidade de ampliar
atividade central das famílias é massivamente a produção de
o que indica a estratégia da re- alimentos de base agroecológica.
forma agrária popular. Mas essa No tocante à democratização das
produção deverá gerar renda. relações, é preciso radicalizar a parti-
Logo, é preciso repensar a matriz cipação das mulheres e da juventude,
produtiva, levando em conta a compreendendo que o restabelecimento
combinação de quatro fontes do governo das famílias no território (as-
de renda: viabilizar atividades sentamento) pressupõe a plena participa-
que garantam Renda Mensal ção de todos que ali vivem. Isso significa
(hortaliças, leite etc.); garantir partilhar o poder local, ampliando assim
a produção do autossustento a força política da organização local.
(diversificar a produção, sobre- Ainda nesse intuito, deve-se tam-
tudo no entorno das moradias), bém problematizar a vida comunitária,
viabilizando a soberania ali- estabelecer uma nova estética desta
mentar das famílias; estabelecer vida, influindo nos valores ali compar-
atividades que garantam uma tilhados, celebrados, no embelezamento
renda sazonal (safra), destina- das áreas e no acesso a outros espaços
da aos pequenos investimentos culturais, como bibliotecas e centros
­realizado pelas famílias, como culturais, praticamente inexistentes nos
por exemplo a produção de grãos assentamentos. Bem como potencializar
e de frutas; planejar uma “pou- a escola como instrumento de difundir a
pança viva”, como a produção cultura popular e a cultura política dos
de gado de corte e/ou árvores. trabalhadores e camponeses.
c) mudar a matriz tecnológica: a Por fim, o MST, ao indicar em sua
agroecologia [ver A groecolo ­ estratégia a reforma agrária popular, abre
gia] é central nesse processo, caminho para que, nos assentamentos,
mas isso requer uma decisão a produção de alimentos de base agroe-
política de realizar, desenvolver cológica permita a soberania alimentar,
e estimulá-la, rompendo com o bem como impulsione uma aliança de
modelo do agronegócio. Eviden- classes mais consistente com os demais
temente que a implantação da trabalhadores brasileiros, remetendo-nos
agroecologia terá na transição ao fortalecimento de um projeto socie-
o seu método. Essa ruptura (de- tário que supere revolucionariamente o
cisão política) deverá estar am- capitalismo, criando condições para a
parada em instrumentos econô- efetiva emancipação humana [ver Eman­ R
micos (cooperativas, assistência cipação Humana].

Referências
DELGADO, G. C. Do capital financeiro na agricultura à economia do Agronegócio: mudanças cíclicas em
meio século [1965-2012]. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.
_______. Questão agrária hoje. 2016. 15 p. Palestra no XI CSBSP.
FILGUEIRAS, L. História do plano real. São Paulo: Boitempo, 2000.

641
R E N DA DA T ER R A

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2017: resultados preliminares.
Rio de Janeiro, 2018.
LESSA, S. Mundo dos homens: trabalho e ser social. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.
LUKÁCS, G. Por uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2012.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Programa Agrário. São Paulo: 2013.
STEDILE, J. P. A questão agrária no Brasil: o debate na década de 2000. São Paulo: Expressão Popular,
2013.

Para saber mais


MARTINS, A. F. G. O contexto da reforma agrária bloqueada. In: PALUDO, C. (org.). Campo e cidade
em busca de caminhos comuns. I SIFEDOC. Pelotas: Editora da UFPEL, 2014. p. 91-103.
_______. Elementos para compreender a história da agricultura e a organização do trabalho agrícola.
Caderno de Formação n. 40. São Paulo: MST, 2016.
ROMERO, D. Marx e a técnica – um estudo dos manuscritos de 1861-1863. São Paulo: Expressão
Popular, 2005.

Nota
1
Para uma abordagem mais geral da Reforma Agrária, consultar Caldart, R. et al. Dicionário da
Educação do Campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/
Expressão Popular, 2012. 788 p.

RENDA DA TERRA

J oão P edro Stedile

A expressão renda da terra aparece na Há também a utilização do termo


literatura da Economia Política e também como sinônimo de renda fundiária, que
no senso comum das pessoas de diferentes aparece na literatura.
formas. A mais comum é considerar a Como conceito geral da Economia
renda da terra como sinônimo do valor do Política, a renda da terra é na verdade
arrendamento de uma terra, que seu pro- a expressão utilizada por Karl Marx,
prietário realiza a outro produtor, chamado como denominação a sua teoria geral
de arrendatário. E o proprietário cobra en- que procura explicar como funciona
tão um valor, por hectare ou por produção a lógica do capital na organização da
ao que vai utilizar a terra, como condição produção agrícola no modo de produ-
pelo único fato dele ser o proprietário legal ção capitalista.
R daquela parcela da natureza. Como veem, a renda da terra tem
Renda da terra também aparece diversas interpretações.
como um conceito específico dentro da
Economia Política, para explicar a dife- Evolução histórica
rença entre o lucro médio na agricultura Karl Marx foi o principal estudioso
e o valor que se incorpora aos preços a que, no século XIX, procurou desven-
título de renda da propriedade da terra. dar com detalhes como funcionava a

642
RENDA DA TERRA

lógica do desenvolvimento do capital de atividade. Os capitalistas concorriam


na organização da produção de todos entre si, dentro do mesmo ramo, para
os bens na sociedade. Em seu método conseguir maior produtividade do tra-
de trabalho, ele aproveitou as pesquisas balho e taxas de lucro mais altas. Assim,
e reflexões que haviam sido feitas tanto os capitalistas que obtivessem taxas me-
por pensadores que lhe antecederam nores de lucro, abaixo da média, teriam
quanto por alguns de seus contemporâ- menor capacidade de acumulação e de
neos, pode-se mencionar, entre outros, crescimento, e tenderiam a ir à falência
François Quesnay, Adam Smith, Stuart ou correriam o risco de suas empresas
Mill, Thomas Robert Malthus e David serem compradas por outros capitalistas.
Ricardo. Marx se baseou nos estudos Esse processo gerava uma concentração
que eles haviam realizado e no funcio- permanente do capital em um mesmo
namento real do capitalismo industrial ramo de produção.
para elaborar as teorias que explicam a Já na agricultura, Marx percebeu
lógica do capital na organização da pro- que a taxa média de lucro não se dava
dução, e que estão reunidas nas teorias por produto agrícola, mas era determi-
da mercadoria, do valor, da mais-valia, nada pela utilização de todas as terras na
da acumulação e da reprodução am­ produção de todos os produtos agrícolas
pliada do capital. colocados no mercado. A essas caracte-
Entre 1844 e 1883, período em que rísticas específicas da forma de funcio-
produziu suas principais teorias, Marx namento do capital na agricultura Marx
estudou o funcionamento do capitalis- chamou de teoria geral da renda da terra.
mo por meio de pesquisas empíricas na Contudo, como já ressaltamos, Karl
agricultura inglesa e nas fábricas, no Marx usou como método de trabalho os
auge do desenvolvimento do capitalis- estudos preliminares de outros autores,
mo industrial.1 seus antecessores, sobre as especificida-
No entanto, ao estudar a forma des do capital na agricultura. Ele partiu
como o capital se desenvolvia e orga- das concepções elaboradas sobretudo por
nizava a produção na agricultura, Marx Adam Smith, Johann Rodbertus, David
concluiu que havia particularidades e Ricardo e Thomas Robert Malthus, que
especificidades relacionadas à natureza, trataram do tema usando também a
ao ciclo da produção agrícola, ao limite denominação de renda da terra. Marx se
físico da unidade de produção e à disper- apropriou dessa designação e a utilizou
são dos produtores capitalistas. Assim, como referência à teoria do desenvolvi-
a teoria que explicava o funcionamento mento do capital na agricultura.
do capital dentro de uma fábrica não era Feita esta contextualização teórico-
suficiente para explicar a realidade do ca- -histórica, vamos aos conceitos funda-
pital na produção agrícola. Ele percebeu, mentais construídos por Marx. R
portanto, que havia muitas diferenças
entre a atuação do capital na indústria e A taxa média de lucro na agricultura
no comércio em comparação com o que Na agricultura capitalista, existem
acontecia na realidade da agricultura. em cada país, em geral, milhares de
Na indústria e no comércio se for- produtores capitalistas, donos dos meios
mava uma taxa média de lucro por ramo de produção, que aplicam seu capital na

643
R E N DA DA T ER R A

organização da produção de mercadorias Essa assertiva se comprova na práti-


agrícolas. Essas mercadorias podem ser ca, pois, caso um capitalista, por exem-
alimentos para seres humanos ou ani- plo, que atua em terras menos férteis,
mais, matérias-primas para a indústria, mais distantes do mercado, não tivesse
como por exemplo do vestuário, têxtil e lucro, ele abandonaria a produção da-
de calçados, mercadorias para a constru- quele produto e migraria somente para
ção civil ou para a obtenção de energia, aqueles que gerassem lucro. E, ao longo
como carvão e lenha. Mais recentemente do tempo, teríamos a produção de ape-
surgiram novas mercadorias de origem nas poucos produtos na agricultura,
agrícola, que são os chamados agro- independentemente das necessidades
combustíveis (etanol, óleo diesel vegetal, da sobrevivência humana e animal.
álcool etc.) – no vocabulário da imprensa Portanto, mesmo nas piores terras, e
em geral, também são conhecidos pela nas piores condições de produção, o
expressão biocombustíveis. fazendeiro capitalista tem ‘direito’ a ter
Também na etapa atual do capi- lucro, determinado por essa lógica de
talismo, globalizado e dominado pelo funcionamento do capitalismo.
capital financeiro e pelas grandes cor- E como a taxa média de lucro é for-
porações transnacionais, muitas mer- mada pela média de todos os produtores
cadorias agrícolas foram padronizadas de todos os ramos de produção, cada vez
nas suas características para poderem que um produto agrícola aumenta muito
ser comercializadas em todo mercado a sua taxa de lucro particular, imediata-
mundial com as mesmas características, mente influencia para que a taxa média
essas mercadorias foram chamadas de suba, fazendo, portanto, que aumente a
commodities agrícolas. E sua expressão é taxa de lucro de todos os demais produ-
universalizada em inglês. tores agrícolas.
Os produtores capitalistas e os agri- Portanto, quando um produto agrí-
cultores em geral precisam da terra, que cola sobe de preço no mercado, por
é um bem da natureza fundamental para qualquer motivo, ele aumenta a taxa
a produção dessas mercadorias. Assim de lucro daquele produtor, e influi no
como necessitam de outros bens da aumento da taxa média dos demais,
natureza como a água, o sol e os ventos. influenciando para que haja aumento
Marx defende a tese de que na agri- de preço médio em todos os produtos
cultura se forma uma taxa média de lucro agrícolas daquela região ou país. E os
entre todos os produtores capitalistas, produtos que estão globalizados na sua
independentemente do tipo de produto produção ou comércio, sofrem também
e do tamanho da área de terra utilizada. influência desse aumento.
Essa taxa média de lucro será determina-
R da por todos os produtores, seja aqueles A renda da terra
que obtêm elevadas taxas com produtos Há um determinante na produ-
mais lucrativos, seja aqueles que atuam ção capitalista de bens agrícolas, que
nas piores terras, distantes do mercado é a existência da terra, do espaço físico
e com produtos menos rentáveis. Todos necessário. Afinal, só é possível produ-
eles terão garantida uma taxa média zir mercadorias agrícolas sobre a terra.
de lucro. Mesmo quando se aplicam técnicas

644
RENDA DA TERRA

específicas de produção em estufas ou Assim, os capitalistas, que tinham


de hidroponia, que usa alto componente capital para comprar meios de produção
de água e fertilizantes líquidos, essas (insumos, fertilizantes, máquinas) e con-
instalações necessitam de um espaço e tratar trabalhadores livres-vendedores de
clima determinado. E a terra é um bem sua força de trabalho, agora passaram a
da natureza, limitado no espaço. ter o direito de também ter a propriedade
Não é isso o que acontece na indús- e comprar frações de terra. Sendo um
tria. A instalação de uma ou de várias bem da natureza.
fábricas não é determinada pelo fator Do regime jurídico-político do
terra ou pela limitação de espaço. Como ­d ireito à propriedade privada de um
a produção industrial se concentra em espaço da natureza é que surgiu, então,
pequenos espaços, é possível instalar o “monopólio” da propriedade da terra
um número indefinido de novas fábricas, por parte daqueles que tivessem maior
em muitos lugares, sem estar limitado dinheiro-capital para se apropriar dela.
pela inexistência de terra. Nesse caso, Pois se a terra é limitada em seu tama-
o espaço físico não é limitante. E, teori- nho, território, pela natureza, seria muito
camente, a expansão de novas fábricas difícil que todos os cidadãos de uma mes-
para produzir a mesma mercadoria não ma sociedade tivessem iguais condições
estaria limitada pela necessidade de de dinheiro/capital e que houvesse terras
mais terrenos para sua instalação, pois de exploração agrícola para todos.
o espaço físico ocupado por uma fábrica A teoria da renda da terra procura
é reduzido e tanto o planeta quanto o então explicar como os capitalistas, ao
território de um país permitiriam sua investirem seus capitais na compra e ma-
expansão quase infinita. nutenção da propriedade da terra, depois
Com o desenvolvimento do modo de cobram de toda a sociedade uma espécie
produção capitalista e partir das revolu- de taxa de retorno desse capital, embu-
ções políticas realizadas pela burguesia tindo nos preços agrícolas, uma renda
industrial, que passou a organizar o seu extra, acima do lucro médio, pelo simples
Estado, para atender suas necessidades fato de serem proprietários privados
políticas e legais, introduziu-se na socie- daquela terra. Então, poderíamos dizer
dade o direito à propriedade privada da que a renda da terra é um valor acima
terra. Ou seja, como parte da lógica do do lucro médio que todos os produtores
capitalismo, os Estados republicanos, sob capitalistas auferem e que é inserido no
a hegemonia da classe burguesa, garan- valor das mercadorias agrícolas vendidas,
tiram o direito da propriedade privada mas que se destina apenas aos que são
sobre um bem da natureza, como uma proprietários da terra. Essa renda da terra
espécie de segurança dada pelo Esta- é resultante apenas do fato de existir a
do aos capitalistas que investissem seu propriedade privada da terra. R
capital na agricultura. E a terra, apesar Por isso, Marx chamou a esse tipo
de não ser fruto do trabalho humano e, de renda auferida pelos proprietários
portanto, não ter valor, passou a ter pre- capitalistas da terra de renda da terra
ço – determinado por essa condição de absoluta – porque se refere a um “direito”
propriedade privada, para quem tivesse privado, adquirido de forma absoluta,
capital para investir nela. que ninguém contesta em função do

645
R E N DA DA T ER R A

regime político existente no capitalismo A renda da terra diferencial


– o qual determina a propriedade privada Ao seguir suas pesquisas, Marx des-
dos meios de produção e, no caso, tam- cobriu que as condições específicas de
bém de um bem da natureza. produção são diferentes de um fazen-
Mas atenção: nem todos os capita- deiro-capitalista para outro por diversas
listas da agricultura auferem a renda da razões, como a localização na natureza
terra absoluta, apenas aqueles que são e suas condições edafoclimáticas, re-
proprietários da terra. Alguns capitalis- lacionadas com chuvas, ventos etc., as
tas não proprietários inclusive pagam a condições de fertilidade natural das
renda da terra. Se um fazendeiro capita- terras, a proximidade ou não do mercado
lista organiza a produção de mercadorias etc. Essa enorme diferenciação que existe
agrícolas, mas não possui a propriedade no universo da produção agrícola, no
da terra, certamente ele precisará ar- entanto, não se dá na indústria, onde,
rendá-la. E, portanto, conseguirá obter em um mesmo ramo, as condições de
uma taxa média de lucro, porém terá de produção são bastante similares. Por
pagar, ou seja, transferir uma parcela de exemplo, entre as fábricas de calçados,
seu lucro ao proprietário da terra, que o sistema de produção é basicamente
não investe na produção, mas cobra um o mesmo, com a mesma tecnologia, as
“pedágio” pelo uso da sua propriedade. mesmas máquinas, as mesmas condições,
E como seria determinado o valor variando apenas a escala de produção,
dessa renda da terra absoluta? As refle- em cada país, e hoje praticamente em
xões de Marx nos dizem que o valor da todo mundo é semelhante.
renda da terra absoluta, é c­ onstruído Na agricultura, no entanto, Marx
socialmente em cada país. E que cada detectou que alguns capitalistas do
proprietário sempre embute esse valor campo obtinham um lucro extraordiná-
absoluto nos preços. Porém, por esse rio, acima da taxa média de lucro obtida
caminho é mais difícil identificar qual é por todos os demais fazendeiros-capi-
a taxa da renda da terra absoluta embu- talistas. A essa taxa de lucro extraor-
tida. Em muitas metodologias do cálculo dinário, que apenas alguns fazendeiros
do preço de um produto agrícola, os capitalistas obtêm, Marx chamou renda
calculadores colocam simplesmente, da terra diferencial.
custo da terra. Mas ela não tem um Marx tentou explicar as razões para
custo. Então Marx nos diz que a pista que apenas alguns fazendeiros obtives-
mais didática e mais próxima do valor sem essa taxa de lucro extraordinário.
real da renda da terra absoluta em uma E a primeira explicação encontrada
região ou para determinado produto foi que alguns produtores capitalistas
deve ser buscada no valor médio do possuem terras mais férteis, que pre-
R arrendamento cobrado por esses capita- cisam de menos adição de adubos, e,
listas-latifundiários quando arrendam a portanto, têm menor custo e obtêm
terra para os camponeses ou para outros maior produtividade física das plantas
capitalistas. Assim, pode-se simplificar ou animais. Há ainda situações em que
que o valor da renda da terra absoluta as fazendas, mesmo não tendo essas con-
equivale ao valor cobrado pelo arren- dições naturais de fertilidade, possuem
damento médio na região. uma característica geográfica particu-

646
RENDA DA TERRA

lar: estão mais próximas do mercado Assim conclui-se pela teoria geral
consumidor, das cidades ou do porto de da renda da terra, que o capitalismo
exportação, o que gera menor custo de na agricultura ao produzir mercadorias
transporte, oportunidades de melhores agrícolas, possui uma lógica distinta
preços nas entressafras etc. Ao lucro da indústria, e ocorrem além do lucro
extraordinário recebido pelos fazendeiros médio, a existência de uma renda da
capitalistas essas condições particulares, terra absoluta, que todos os proprietários
Marx chamou renda da terra diferencial recebem por serem apenas proprietários
I. Ou seja, é uma condição diferente, dos privados e a terra ser um bem finito. E
demais, da média, que lhe permite ter há alguns capitalistas que ainda auferem
um lucro a mais. uma renda diferente, a mais que da renda
No estudo da realidade da agricul- absoluta de corrente das diferentes con-
tura, revelou que havia também alguns dições de produção. A renda diferencial
fazendeiros que obtinham um lucro I e a renda diferencial II.
extraordinário, acima dos demais, por
outra razão: porque conseguiam admi- O preço da terra
nistrar seu capital constante aplicado A terra é um bem da natureza e,
em máquinas e benfeitorias de uma portanto, não é fruto do trabalho hu-
forma mais produtiva do que a maio- mano. Pela teoria geral do valor, os bens,
ria dos outros fazendeiros. Ou seja, as mercadorias só têm valor no mundo
comparando dois ou mais fazendeiros capitalista quando são fruto do trabalho.
que tivessem as mesmas condições de E seu valor se mede pela soma do tempo
fertilidade das terras, igual proximi- de trabalho necessário em média, para
dade do mercado e produzissem um produzi-lo, seja no tempo pregresso,
mesmo produto agrícola, alguns deles incluído no valor das matérias-primas,
organizavam o processo produtivo, sementes e ferramentas necessárias,
com trabalhadores e máquinas mais seja no trabalho imediato da produção
apropriados, que levou a uma produti- daquele bem. Com base nessa teoria, a
vidade do trabalho maior do que a de terra não é fruto de trabalho, logo, ela
seus vizinhos fazendeiros. Por exemplo, não tem valor. E não haveria fórmula ma-
dois fazendeiros possuem mil hectares temática que conseguisse calcular qual
de terra cada um, produzem soja e têm seria o valor real de um hectare de terra.
a mesma produtividade física: 45 sacas Como então explicar que a terra
de soja por hectare. Porém um deles, não tem valor, mas tem um preço? A
em vez de ter dez tratores pequenos e, explicação dos pensadores clássicos
portanto, dez tratoristas, investiu em anteriormente citados é que a proprie-
cinco tratores maiores, que conseguem dade privada da terra a transformou
cultivar os mesmos mil hectares, com em uma mercadoria especial, que pode R
apenas cinco tratoristas. Com isso, esse ser comprada por qualquer pessoa que
fazendeiro terá uma produtividade do pague por ela. Na verdade, quando se
trabalho, de seus empregados, maior compra uma terra, não se compra o valor
do que o fazendeiro vizinho. A esse trabalho que haveria dentro dela, mas
segundo tipo de renda diferencial Marx sim um direito de exploração. Por isso,
chamou renda da terra diferencial II. ela se transformou em uma mercadoria

647
R E N DA DA T ER R A

especial, uma mercadoria-fetiche, porque podem ter preços diferentes pelo fato de
o que as pessoas compram é um direito uma delas ter também um valor agregado
privado de explorar aquele espaço da por mais trabalho realizado nela.
natureza para ele obter lucro. Como a teoria nos explica, se o
E como se determina o preço dessa preço médio das terras é determinado
mercadoria especial, que em geral é pela expectativa e possibilidades reais
fixado por hectare, na moeda de cada de lucro a ser obtido dela, na vida real
país? Segundo os pensadores clássicos, das sociedades capitalistas, cada vez
o preço da terra é na verdade a renda que sobe a taxa de lucro na agricultura,
absoluta acumulada. Ou, em outras sobem também os preços da terra. E cada
palavras, uma antecipação do lucro que vez que cai a taxa média de lucro da
um capitalista faz ao ex-proprietário da agricultura, caem também os preços da
terra, transferindo a ele certo valor em terra, confirmando assim o que ocorre na
dinheiro, na expectativa de poder obter realidade, de acordo com a constatação
de volta esse capital, ao longo do tempo. teórica que vem desde o século XIX.
Em muitas regiões agrícolas do Bra-
sil e de todo o mundo, o preço médio A especulação com
da terra é fixado em dinheiro ou pelo os preços da terra
equivalente do volume de mercadorias À medida que o capitalismo foi se
que se pode obter naquela terra, o que, desenvolvendo e hegemonizando as
no fundo, representa também a possibi- condições de produção na agricultura,
lidade de obtenção do lucro médio, com os capitalistas perceberam que a terra
aquela determinada produção. Assim, era uma mercadoria especial e finita,
por exemplo, em áreas de soja, fixa-se o pois o tamanho das terras é determinado
preço do hectare de terra pelo preço de pela natureza. Não se pode aumentar
mercado de 30 sacas de soja. No exemplo seu tamanho, portanto seu acesso es-
concreto, como a produtividade seria de taria limitado a alguns proprietários.
45 sacas por hectare, o capitalista com- Com essa perspectiva, muitos capita-
prador está antecipando ao vendedor listas que não estavam vinculados ao
parte da renda absoluta que ele obteria setor agrícola, nem tinham interesse
se ele mesmo fosse utilizar a terra. em produzir mercadorias agrícolas, pas-
Por outra parte, quando um fazen- saram a investir seu capital-dinheiro na
deiro ou camponês organiza a produção compra do “direito” de ter terra, como
agrícola em uma determinada área, ele uma forma de reserva de valor para seu
aplica dias de trabalho sobre a terra nua, capital-dinheiro. Por ser um direito, essa
na forma de preparo para agricultura terra seria, ao mesmo tempo, facilmente
(por exemplo, desmatamento ou siste- negociável, quando os preços da terra
R matização da área em curvas de níveis), oscilassem para acima do que ele havia
construção de benfeitorias, bens, cercas pagado. Formou-se então um mercado
etc. Esses dias de trabalho que se incor- de disputa das terras pelos capitalistas
poram à propriedade também são conta- que possuem dinheiro e não necessa-
bilizados no preço médio da terra. Assim, riamente têm interesse em produzir na
duas áreas iguais, localizadas na mesma agricultura. Eles aplicam o dinheiro
região, voltadas para o mesmo produto, comprando o direito de determinadas

648
RENDA DA TERRA

áreas de terra; e quando a taxa de lucro renda. Esse processo leva a que quanto
sobe e, portanto, os preços das terras mais se desenvolve o capitalismo na
também, eles as revendem para obter agricultura, maior será a concentração
maiores margens de lucro nessa operação da propriedade de forma natural, como
comercial-especulativa. parte de sua lógica. Nos períodos de
Há uma segunda forma de prática crise capitalista, em que a taxa de lucro
de especulação sobre o preço das ter- cai ou desaparece e, portanto, os preços
ras. Ela ocorre nas regiões de fronteira das terras também caem, ao contrário
agrícola, onde as terras ainda não estão do que se esperava uma concentração
incorporadas à propriedade privada maior da propriedade da terra, na rea-
dos capitalistas. Em alguns países ou lidade, há uma estabilidade e pode até
em algumas regiões dentro dos países – haver desconcentração da propriedade,
como, aqui no Brasil, é o caso da região com os fazendeiros vendendo parte de
amazônica –, há ainda muitas terras que suas terras.
não possuem proprietários. Elas talvez
sejam utilizadas de forma comunitária, A centralização do capital na
por populações locais e nativas, ou po- propriedade da terra
dem ser consideradas terras públicas, O outro movimento que ocorre na
de domínio do Estado. Nessas regiões, agricultura como resultado da lógica
muitos capitalistas especuladores se natural do movimento do capitalismo,
apoderam das terras, tomando posse de é que, à medida que o capitalismo em
forma ilegal ou comprando-as, a preços geral se desenvolve e a economia se
simbólicos, das comunidades locais. transforma cada vez mais oligopolizada,
Depois essas terras são cercadas e regis- controlada por poucas empresas, esse
tradas como propriedade privada. Após capital também age sobre a agricultura.
o registro, seus compradores promovem Assim, percebe-se em todo mundo, e
o desmatamento e a melhoria do acesso cada momento mais forte, que as grandes
a estradas, preparam as terras para o empresas, mesmo do setor financeiro,
cultivo e revendem a outros capitalistas industrial, e comercial, passam também
por preços mais valorizados, obtendo a investir na propriedade de terras. Esse
assim altas taxas de lucro. movimento de que a propriedade das
terras, deixam de ser exclusividade dos
A concentração da capitalistas agrícolas, é que se chama de
propriedade da terra centralização do capital na agricultura.
Por essa teoria geral da renda da E como o capitalismo está na fase de
terra e pelo processo de acumulação de hegemonia do capital financeiro e das
capital, que todos os capitalistas no cam- corporações transnacionais que atuam
po obtêm o lucro médio, mais a renda em todo mundo, há como consequência R
absoluta e alguns a renda diferencial, se também, um processo de desnacionali-
estabelece uma lógica de que esses capi- zação da propriedade da terra, em que
talistas tendem então a aplicar seu capi- esses capitais, mesmo de origem estran-
tal acumulado na compra de mais terras, geira, passam a se apropriar de amplas
e assim terem mais extensões e escala, extensões de terra, para atender seus
para num segundo momento, obter mais interesses, seja especulativo, seja de pre-

649
R EVOLUÇÃO V ER DE

venção para o futuro, ou na expectativa ção, centralização e desnacionalização


de exploração dos recursos minerais e de da propriedade da terra a serviço das
água existentes nessas terras. grandes corporações, em todo mundo,
Nota-se nas últimas duas décadas mas em especial na África e na Amé-
um processo crescente de concentra- rica Latina.

Referências
MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. l. 3, v. 4.
_______. O capital. São Paulo: Nova cultural, 1988. (Os economistas, 5 vols.).

Para saber mais


KAUTSKY, K. A questão agrária. Rio de Janeiro: Laemmert, 1968. Cap. 5: O caráter capitalista da
agricultura moderna.
MARX, K. Teorías sobre la plusvalía. Buenos Aires: Grijalbo, 1975. T. 3.
ROSENBERG, D. Comentarios a El capital. México, D. F.: Universidad Autónoma de México, 1977.
(Apostilas de la Unam).
UMBELINO, A. de O. Modo capitalista de produção e agricultura. São Paulo: Ática, 1990.

Nota
1
O conjunto das teorias de Marx sobre o funcionamento do capitalismo está reunido na obra clássica
O capital: crítica da Economia Política. Os elementos sobre a teoria da renda da terra estão reunidos
no livro III dessa obra (Marx, 1974). Durante o século XX, outros pesquisadores contemporâneos
recuperaram escritos e anotações de Marx que revelam seu método de trabalho, suas pesquisas e os
comentários que fazia aos autores que o antecederam. As reflexões anotadas nos cadernos manus-
critos de Marx foram editadas, como os Grundrisse.

REVOLUÇÃO VERDE

C er es H adich
G ilmar A ndr ade

O novo ciclo imposto pelo siste- dos Estados Unidos para o Desenvolvi-
ma capitalista no campo pós-Segunda mento Internacional (Usaid), em 1968.
Guerra Mundial integrou o capital em Na ocasião, Gaud se referiu ao processo
R escala global, através das multinacionais de desenvolvimento de novas variedades
e transnacionais. Tal transformação, de trigo e milho, conduzido por Norman
profunda e radical no campo, somente Borlaug (1914-2009), como “a Revolução
foi possível com a implantação da Revo- Verde, feita à base de tecnologia e não do
lução Verde. sofrimento do povo”. Este pensamento re-
O termo foi utilizado pela primeira flete uma das bases filosóficas e teóricas
vez por William Gaud, chefe da Agência defendidas por seus idealizadores e, por-

650
REVOLUÇÃO VERDE

que não dizer, seus financiadores, que, centração de capital ficou conhecido
entre outros argumentos, justificavam a como acumulação primitiva do capital,
disseminação massiva de novas técnicas o que possibilitou à burguesia nascente
e tecnologias na agricultura como forma concentrar a propriedade dos meios de
de superação da fome no mundo, uma produção ao mesmo tempo em que pro-
tentativa de disfarçar os reais interesses. duzia (por meios violentos) a existência
A Revolução Verde foi um processo de trabalhadores assalariados e criava o
lento, não só de mudança técnica, mas mercado interno, dando origem assim
sobretudo econômica e também cul- ao próprio capitalismo.
tural que impulsionou transformações A liberação de força de trabalho do
na agricultura, associadas a um pacote campo para as grandes manufaturas foi
tecnológico (fertilizantes, sementes, possível à medida que a agricultura pas-
agrotóxicos e máquinas, (fármacos, ra- sava igualmente por mudanças nas técni-
ções, instalações, matrizes e reprodutores cas de produção, que incluíam a rotação
animais), que induziu a especialização de culturas, a drenagem e a integração
produtiva (monocultivos e confinamen- das atividades agrícolas e de pecuária,
tos e criação extensiva de animais) em que, permitiam a intensificação dos
grandes extensões de terra, com objeti- cultivos e o aumento da produtividade,
vo de exportação de matéria-prima. A num processo às vezes denominado
agricultura foi subordinada à indústria e de “Primeira Revolução Agrícola dos
assumiu sua lógica na produção agrope- tempos modernos” (Mazoyer; Roudart,
cuária, constituindo o que se denomina 2010, p. 353).
complexo agroindustrial. O processo da A partir do século XVIII, a inven-
Revolução Verde só foi possível com o ção das máquinas-ferramentas (como a
aporte de recurso público, consistindo máquina de fiar e o tear mecânico) e da
numa aliança entre as elites industriais e máquina a vapor deu início à Revolução
agrárias, para realizar intencionalmente Industrial, com a passagem da manufa-
uma modernização conservadora, para tura à maquinofatura que caracteriza o
desenvolvimento das relações capitalis- capitalismo industrial, o capital reorga-
tas no campo, sem alterar as estruturas nizando todo o processo de produção e
de poder e propriedade. a subsequente mudança na sociabilidade
e nas instituições (revoluções burguesas).
Revolução Verde: antecedentes e Essas mudanças também teriam conse-
processo histórico quências na agricultura.
Entre os séculos XVI e XVIII a A separação entre o campo e a cida-
burguesia europeia concentrou uma de, com concentração crescente da po-
grande quantidade de riqueza (ouro, pulação nas cidades, colocava um desafio
prata, dinheiro), a partir do saque e para a agricultura capitalista: aumentar R
roubo da América, do tráfico de escra- a produtividade agrícola, para atender
vos africanos, da conquista e saqueio a demanda crescente de alimentos nas
das Índias Orientais e da apropria- cidades, mas evitando a exaustão dos
ção privada das terras dos camponeses solos que já no séc. XIX se manifestava
através dos cercamentos (Marx, 2013). em muitas partes da Europa e EUA, em
Esse processo de enriquecimento e con- decorrência do abandono do pousio e

651
R EVOLUÇÃO V ER DE

da intensificação dos cultivos (Mazoyer; O guano ou esterco de aves e morcegos


Roudart, 2010). além do nitrato de sódio (popularmente
Nesse período, muitos avanços conhecido como salitre) proveniente das
científicos e tecnológicos foram de- minas do Peru, Chile, Bolívia, Argentina
terminantes no processo de industria- e ilhas do Pacífico constituíam a base
lização da agricultura. Na Química, da adubação agrícola em países como
houve a síntese da ureia, em 1828, por Inglaterra, França, Prússia, Holanda e
Friedrich Wöhler (antes, os compostos Estados Unidos na segunda metade do
orgânicos só podiam ser produzidos século XIX.
por seres vivos, animais e vegetais); a Outras inovações como equipamen-
elaboração da “Lei do mínimo”,1 por tos para tração animal (arados charrua
Carl Sprenger, em 1820; as descobertas metálicos, sementeiras, ceifadeiras, co-
de Liebig em 1840, sobre a natureza lheitadeiras etc.), permitiram dobrar a
mineral da nutrição das plantas (cuja produção e produtividade do trabalho
teoria é considerada a verdadeira ini- ao ponto de causar, em 1890, a primeira
ciadora da ciência do solo). Na Biologia, crise de superprodução agrícola (Ma-
as descobertas de Mendel, no período zoyer; Roudart, 2010), e liberar força
de 1856-1865, sobre os processos que de trabalho para a segunda Revolução
asseguram que cada ser vivo receba Industrial (a partir de 1850). Foi também
e transmita características através da nesse primeiro momento da Revolução
reprodução (hereditariedade), dando Verde que se desenvolveu a indústria de
início à genética. Nas fontes de energia, fertilizantes sintéticos (potássio, nitrogê-
a descoberta do petróleo, por Edwin nio e fósforo) e a técnica de hibridização
Drake em 1859. Na Mecânica, a inven- do milho (1914). Os adubos químicos
ção do motor de combustão interna, por foram rapidamente disseminados nos
Nicolaus Otto, 1876 e a invenção do ­países em que o capitalismo se encontra-
automóvel por Karl Benz, 1885. va avançado, não apenas pelos resultados
Para fins didáticos, é possível consi- no aumento da produção, mas também
derar que o surgimento, implementação porque se adequavam aos interesses da
e desenvolvimento da Revolução Verde indústria química.
passou por três fases. A segunda fase compreende o pe­
A primeira está compreendida entre ríodo de 1930 a 1980 e ficou marcada
os anos de 1840 e 1930. Nesse perío- pelo avanço no uso intensivo de subs-
do, o desenvolvimento de novos meios tâncias químicas – fertilizantes e agro-
de transporte, ferrovias e navegação a tóxicos, na substituição da tração animal
vapor amplia e intensifica o comércio, pela tração motorizada e pelo melhora-
aumentando os lucros dos países capita- mento genético de plantas (Foster, 2010).
R listas. Dentre as mercadorias integradas Os primeiros herbicidas surgiram por
à nova dinâmica do capital, além da volta de 1930, e em 1939, o entomolo-
produção agropecuária, que circula mais gista Paul Müller descobriu as proprie-
rapidamente, soma-se a incorporação da dades inseticidas do DDT (que já tinha
adubação natural que vinha de outras sido sintetizado em 1874 pelo químico
regiões substituindo o uso de fertilizantes alemão O. Zeidler), inaugurando o uso
naturais (húmus e esterco) na Europa. dos organoclorados, biocidas com imenso

652
REVOLUÇÃO VERDE

potencial de contaminação e risco para a de introdução de novas tecnologias


saúde humana e o meio ambiente. (comunicação, robótica, informática,
Durante a Segunda Guerra Mundial biotecnologia etc.), o que possibilitou a
(1939-1945), o mundo vivenciou um redução do tempo de trabalho na pro-
amplo desenvolvimento tecnológico nas dução e simultaneamente as novas tec-
indústrias bélica, química e farmacêu- nologias aumentaram a produtividade.
tica. Com o final do conflito armado, O avanço das multinacionais tornou-se
houve uma demanda em realocar todo mais intenso com a série de reformas e
o conhecimento e mercado, potencial- medidas neoliberais, com os programas
mente bloqueado (Machado; Machado de privatização, atraindo assim o capital
Filho, 2014). Assim, a indústria bélica externo e especulativo para os países em
reorientou a produção de aviões, veí- desenvolvimento, direcionado a investir
culos de guerra e implementos para a no campo. O mecanismo utilizado é a
mecanização da agricultura, assim como aquisição e fusão de empresas já esta-
a indústria química e farmacêutica, reo- belecidas, formando os oligopólios e/
rientou sua produção para a agricultura, ou monopólios, tendo sempre à frente
especialmente sementes, fertilizantes os grupos de empresas transnacionais,
e venenos. Outro exemplo bastante controladas e/ou dirigidas pelo capital
claro da relação íntima entre o desen- financeiro internacional (Bunde, 2012).
volvimento da agricultura moderna e A partir da década de 1990, há uma
indústria bélica foi o desenvolvimento intensificação do uso da genética, com a
e a aplicação de herbicidas desfolhan- utilização da biotecnologia e o desenvol-
tes (como o agente laranja – Tordon), vimento dos organismos geneticamente
utilizados na Guerra dos EUA contra o modificados [ver Transgênicos], conju-
Vietnã (1959-1975). gados ao processo de financeirização da
A grande propriedade capitalista se agricultura [ver Financeirização da Eco ­
especializou. Abandonaram-se os siste- nomia]. Nessa fase, destacam-se frentes
mas de policultivos para se dedicar quase importantes, como: biotecnologia, nano-
que exclusivamente à monocultura. As tecnologia, informática na agricultura, a
regiões em que a agricultura capitalista intensificação da agricultura de precisão,
se encontrava mais avançada foram a inserção das commodities na Bolsa de
desenvolvendo atividades especializadas Valores, oligopolização do processo de
e complementares (regiões de produção produção e distribuição dos alimentos,
de cereais, regiões de criação de gado biologia sintética e novos transgênicos
leiteiro, de corte, regiões de frutíferas [ver Novas Biotecnologias].
etc.). Estabeleceu-se a divisão social do
trabalho, entre os que realizam a tarefa O avanço do capitalismo
material da produção, daquelas que se no campo brasileiro R
dedicam às tarefas de formação, infor- O desenvolvimento do conjunto de
mação agrícola e produção intelectual técnicas da Revolução Verde se iniciou
e ideológica. Consolidou-se a separação nos Estados Unidos e países desenvolvi-
entre campo e cidade. dos da Europa, e nas décadas seguintes,
A terceira fase da Revolução Verde, com o apoio de programas de extensão e
a partir de 1980, vincula-se ao pe­ríodo formação foram sendo implantados em

653
R EVOLUÇÃO V ER DE

outros países. A grande promessa desse De toda forma, a Revolução Verde,


conjunto de transformações se baseava ainda que tenha sido inicialmente impul-
na capacidade de aumentar rapidamente sionada por financiamentos e interesses
e em grande escala a capacidade de pro- privados de instituições estadunidenses,
dução de alimentos no mundo, e por con- encontrou apoio estatal contundente
sequência, resolver o problema da fome para estabelecer-se de maneira efetiva
principalmente nos países periféricos, nos países periféricos do capitalismo,
que passavam por um amplo crescimento como foi, por exemplo, o caso do Brasil.
demográfico e por lutas, tanto nacio- Na década de 1940, a Fundação
nalistas e de descolonização, como de Rocke­feller­, por meio da Associação In-
construção do socialismo, especialmente ternacional Americana para o Desenvol-
nos continentes asiático, africano e ame- vimento Econômico e Social (AIA), passa
ricano. Entretanto, apesar do aumento da a estabelecer parcerias para assistência
produtividade em determinadas culturas técnica no Brasil, inicialmente com go-
(soja, milho e trigo), o que se observou foi vernos estaduais e posteriormente com
o aumento da concentração fundiária e o governo federal. Os EUA assinam um
renda, a contaminação por agrotóxicos e convênio com o governo brasileiro na
a redução da biodiversidade. área da agropecuária e estabelecem um
No contexto da Guerra Fria, os Escritório Técnico de Agricultura (ETA),
EUA, com objetivo de ampliar sua in- com sede no Rio de Janeiro. As primeiras
fluência, lançam uma política para a ações do ETA têm como foco criar convê-
agricultura em diversos países, tendo por nios com os estados da região Sul do país.
bases a assistência técnica e o crédito Na década seguinte são inauguradas as
rural. A finalidade era modernizar a associações de crédito e assistência rural
produção agrícola que, em síntese, seria a em diversos estados (Fonseca, 1985).
adoção de uma política de dependência: O sistema de empresas estaduais
fertilizantes químicos, venenos (agro- para aplicação de créditos e assistência
tóxicos), mecanização e monoculturas, técnica ganha impulso no governo de
em detrimento da biodiversidade e da Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956 a
autonomia dos agricultores. 1961), e a promessa de modernizar o país
A Fundação Rockefeller, estaduni- (“fazendo 50 anos em 5”), recuperando
dense, passou a financiar a pesquisa e a anos de atraso tecnológico em apenas um
exportação de tecnologias. A primeira mandato. O governo, a partir do Plano
experiência se deu no México em 1944, de Metas (energia, transporte, alimen-
com a produção de cultivares de trigo tação, indústria de base e educação),
adaptados a climas tropicais e subtro- indicava a necessidade de eliminar os
picais (Brown, 1970); em seguida, nas “pontos de estrangulamento” da econo-
R Filipinas, com a colaboração também mia brasileira. Na metaindústria incluía
da Fundação Ford, no desenvolvimento a produção de tratores e a mecanização
de cultivares de arroz, mais resistentes, da agricultura. Entretanto, o maior avan-
produtivos. As pesquisas de cultivares vi- ço da Revolução Verde se daria durante
savam aumentar a produtividade desen- a ditadura civil-militar.
volvendo variedades que respondessem Os governos militares tomaram
mais rapidamente aos insumos químicos. quatro medidas que foram fundamen-

654
REVOLUÇÃO VERDE

tais para implantar a Revolução Ver- vando a tecnicização da produção. Outra


de no Brasil. A primeira, com Delfim agremiação que surgiu para preparar
Neto à frente do Ministério da Fazenda a mão de obra e difundir as técnicas e
(1967), foi a implantação do Sistema tecnologias da Revolução Verde foram os
Nacional de Crédito Rural (SNCR) Clubes 4-S (Saber, Sentir, Saúde, Servir),
como principal estrutura de fomento criados no Brasil como uma cópia do
à produção agropecuária. A segunda modelo estadunidense dos Clubes 4-H
foi a criação da Empresa Brasileira de (Head, Heart, Hands, Health; Cabeça,
Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Coração, Mãos, Saúde), dentro da mesma
fundada em 1973. A Embrapa passou a finalidade extensionista e difusionista do
desenvolver pesquisas voltadas para a “pacote tecnológico” (Gomes, 2013).
adaptação de variedades (milho, soja, Os sucessivos governos militares
arroz, trigo) às condições climáticas e estabeleceram como funções da agricul-
de solos do país. A terceira foi articular tura liberar mão de obra para a indústria;
as agências estaduais de Assistência gerar oferta adequada de alimentos; su-
Técnica e Extensão Rural (Ater) no prir matérias-primas para indústria; ele-
sistema Embrater (Empresa Brasileira var as exportações agrícolas; transferir
de Ater), em 1974, com isso foi possível renda real para o setor urbano (Delgado,
uniformizar as práticas que estavam 2009). O projeto de modernização não
sendo difundidas pelos extensionistas. ocorreu de forma homogênea em todo
E a quarta foi a educação, identificada o Brasil. Houve uma concentração dos
como “a estratégia” sobre a qual a mo- investimentos nas regiões Sul e Sudeste
dernização da agricultura haveria de que levou a quase extinção da Floresta
“repousar fortemente”, com vistas a [...] Atlântica, posteriormente ampliados
elevar-lhe os padrões culturais pela via para parte do Centro-Oeste. O avanço
de extensionismo e transmitir-lhe uma da fronteira agrícola significou o desma-
tecnologia nova pela demonstração” tamento do Cerrado [ver Bioma Cerrado]
(Brasil, 1967, p. 108). e de parte significativa da Floresta Ama-
As políticas educacionais duran- zônica [ver Bioma Amazônico]; o desenvol-
te o regime militar visavam preparar vimento e adaptação de culturas como a
mão de obra que assegurasse o projeto soja às novas condições edafoclimáticas
desenvolvimentista e autoritário em e ao uso intensivo de insumos.
curso. Sob a égide­do economicismo e A Revolução Verde no Brasil foi
pragmatismo, adotou-se a ideologia do tecnicamente modernizante (técnicas,
capital humano, a profissionalização mecanização, insumos e créditos) e so-
compulsória do ensino médio e a for- cialmente conservadora (manutenção
mação técnico-profissional (Frigotto, da estrutura fundiária), porque baseada
2007), além da despolitização, segundo as numa aliança entre as elites industrial e R
conveniências da ideologia da Segurança agrária, resultando na derrota do movi-
Nacional (Kuenzer; Machado, 1986). Na mento pela reforma agrária. A aplicação
educação não formal, surgiram os Clubes do pacote tecnológico aos monocultivos
Agrícolas, vinculados ao Ministério da em grandes extensões de terra tinha
Agricultura, que realizavam capacitação por objetivo central a exportação de
e treinamento com a juventude, incenti- matéria-prima.

655
R EVOLUÇÃO V ER DE

De outro lado, é importante con- lução Industrial da Agricultura, com a


siderar que sua implementação contou consolidação, após a Segunda Guerra
com um processo violento de expulsão Mundial, de uma convergência entre os
de camponeses de suas terras e modos avanços dos agroquímicos e a acelerada
de produção, imposição de culturas, estruturação de um setor industrial. Os
reordenamento agrícola e fundiário, investimentos públicos (crédito, pes-
orientado pela política de colonização quisa, escolas técnicas e universidades,
e modernização agrícola do Estado bra- assistência técnica, infraestrutura viá-
sileiro. Inúmeras foram as iniciativas de ria, ferroviária e portuária) criaram as
resistência, que de maneira espontânea condições necessárias para desenvolver
e invisibilizada, porém não inexistente, e disseminar a Revolução Verde.
levaram à construção da agroecologia O processo de transformação capi-
[ver Agroecologia], e das bases do mo- talista da agricultura brasileira impul-
vimento agroecológico no Brasil [ver sionou o processo de urbanização da
Movimento Agroecológico]. população, em ritmo superior a países
Em nível mundial há que conside- capitalistas mais avançados. A popu-
rar a atuação, para além dos estados lação urbana, na segunda metade do
nacionais, das agências multilaterais, século XX, passou de 19 milhões para
como a Organização das Nações Uni- 138 milhões, um acréscimo, a cada ano,
das, a partir da atuação de suas estrutu- de 2,3 milhões de habitantes, em média.
ras, como o Fundo das Nações Unidas Na década de 1950, a população rural
para Alimentação e Agricultura (FAO) correspondia a 63,8% e nos anos 2000
e o Banco Internacional para Recons- a menos de 20% da população brasileira
trução e Desenvolvimento (BIRD). (IBGE, 2010). Estima-se que somente
Tais estruturas passaram a aportar, entre 1960 e final dos anos 1980, pe-
aos países parceiros, financiamento de ríodo de maior avanço da Revolução
programas de assistência técnica e de- Verde, saíram do campo em direção às
senvolvimento da produção, nos moldes cidades quase 43 milhões de pessoas
da Revolução Verde. (Brito; Carvalho, 2006).
Em relação às consequências de
Os impactos da Revolução Verde décadas de implantação dessa lógica
É necessário considerar a Revolu- de estruturação da produção agrope-
ção Verde como processo histórico, não cuária e fundiária no mundo, podemos
somente como um conjunto de técnicas destacar, de maneira geral, os seguintes
e tecnologias implantadas massivamen- aspectos comuns:
te na agricultura a partir da segunda 1. aumento da concentração
metade do século XX, mas sim, como fundiária e empobrecimento
R parte da estratégia de desenvolvimento dos pequenos agricultores. De
do capitalismo no campo. Por isso, ela acordo com a Organização das
traz em si consequências e contradições Nações Unidas (ONU) (2019),
características deste modo de produção no mundo existe em torno de
como um todo. 1,3 bilhões de pessoas extrema-
Nesse sentido, a Revolução Verde mente pobres e 80% delas estão
pode ser compreendida como a Revo- em áreas rurais;

656
REVOLUÇÃO VERDE

2. êxodo rural massivo, alterando do modelo neoliberal na economia


profundamente as caracterís- brasileira, hegemonizada pelo capital
ticas socioculturais do meio financeiro e internacional.
rural; A nova dinâmica de territorializa-
3. esgotamento do solo (em seus ção do capital no campo se materializa
atributos físicos, químicos e a partir de uma integração de capitais,
biológicos), avanço da erosão, que vai construindo cadeias produtivas
desmatamentos, alterações no que abrangem as esferas da produção e
clima com a redução da bio- circulação dos produtos agropecuários.
diversidade, aumento da po- Isso significa, o domínio do mercado
luição, emissão dos gases que de insumos (sementes, agrotóxicos, fer-
provocam o efeito estufa e con- tilizantes e outros), das técnicas e tec-
some 70% dos recursos hídricos nologias de produção (desde máquinas
utilizado na agricultura (ETC e implementos agrícolas, até pesquisas
Group, 2013); científicas em áreas como genética e
4. apropriação, por parte das mul- biotecnologia, entre outras), dos sistemas
tinacionais, das terras, recursos de financiamento, das indústrias de be-
naturais, biodiversidade e se- neficiamento, dos sistemas de transporte
mentes; e das redes de comercialização (Campos;
5. sofisticação da indústria do Campos, 2007).
agrotóxico e da genética, que Apesar dos avanços técnicos e tec-
passa a ser o centro do pacote nológicos promovidos nas últimas dé-
tecnológico, de modo que, o cadas, pelo desenvolvimento das forças
controle das sementes torna-se produtivas na indústria e no campo, a
fundamental. “As sementes são Revolução Verde não cumpriu a promes-
patrimônio dos povos a servi- sa inicial de acabar com a fome no mun-
ço da humanidade”, diz a Via do, ao contrário, gerou a concentração e
Campesina. Mas nesta lógica, centralização da riqueza, apropriação dos
a semente [ver S emente] passa recursos naturais pelas multinacionais,
a ser propriedade privada; e como consequência a fome atinge
6. a aplicação massiva do itinerá- perto de 1 bilhão de pessoas no mundo
rio da Revolução verde levou a (Ziegler, 2013). Atualmente o avan-
uma padronização da organiza- ço capitalista no campo, expresso no
ção da vida no campo e na ci- agronegócio [ver Agronegócio], envolve
dade, ou seja, do que se produz toda a cadeia produtiva, possibilitando
e do que come, com impactos a produção em grande escala, articula-
negativos sobre segurança e da com as indústrias processadoras; as
soberania alimentar [ver Segu­ produtoras de fertilizantes, de sementes, R
rança e S oberania A limentar] e agrotóxicos; empresas de comerciali-
sobre a saúde humana. zação e demais serviços e a indústria
No Brasil, a crise do modelo de in- cultural. No campo, como é próprio da
dustrialização dependente consolidou, sua lógica estrutural, o capitalismo segue
na década de 1990, as transformações a mesma dinâmica de centralização e
na agricultura, com a entrada massiva concentração do capital.

657
R EVOLUÇÃO V ER DE

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ZIEGLER, J. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez, 2013.

Nota
1
O crescimento das plantas seria limitado pelo elemento presente no solo abaixo da mínima quantidade
R dequada. Com esse entendimento, a produção aumentaria com a adição de fertilizantes.

658
R U P T U R A D O M E TA B O L I S M O S O C I O E C O L Ó G I C O

RUPTURA DO METABOLISMO SOCIOECOLÓGICO

L uiz H enr ique G omes de M our a

A produção da existência humana “oficinas de produção capitalista” do


é um processo histórico de coevolução século XVIII e, principalmente, século
com a natureza. Fruto do processo de XIX, já havia gérmens desta questão.
evolução natural, os seres humanos de- É por essa razão que entendermos
senvolveram a capacidade de mobilizar ser fundamental a retomada das análises
as forças naturais e aprender com essa re- críticas produzidas nesse período para
lação. Ao longo de milênios, os antepas- que possamos desenvolver uma teoria
sados do homo sapiens foram evoluindo recente sobre a questão ambiental. Nesse
na medida em que esse aprendizado foi sentido, as leituras empreendidas por
acumulado. Ao mesmo tempo, a nature- Karl Marx, por Friederich Engels e por
za ao seu redor também foi alterada, se Rosa Luxemburgo são tomadas como
transformando em uma nova natureza, base para nossa formulação histórica da
síntese dessa interação. relação ser humano-natureza.
Ao longo do desenvolvimento dos
modos de produção, essa coevolução As bases históricas da
produziu um metabolismo socioecoló- ruptura metabólica
gico que alterou toda a dinâmica plane- Analisando o desenvolvimento do
tária. À medida que os grupos humanos capital industrial, Marx observou tam-
foram avançando territorialmente, bém o desenvolvimento das forças pro-
foram transformando a natureza e sendo dutivas na agricultura e seus impactos
transformados, conformando territó- na relação ser humano-natureza. Sendo
rios com características específicas em a agricultura a base material dos modos
suas dimensões sociais, econômicas de produção anteriores, como o feuda-
e ecológicas, embora com estruturas lismo, a sua reestruturação sob a lógica
similares que demarcam esses modos capitalista teria impacto determinante
de produção. na formação social e econômica, mas
É no capitalismo que esse metabolis- também territorial e ambiental do novo
mo começa a ser rompido. A escala global modo de produção que estava emergin-
desse modo de produção gra­dualmente do. Como afirma Marx (2011)
rompe essa dinâmica territorial dos A história da propriedade fun­diária
modos de produção anteriores. Em es- que mostrasse a transformação pro- R
pecial, a partir de sua fase industrial, o gressiva do senhor feudal em rentista
capitalismo produz as bases da questão fundiário, do arrendatário vitalício
ambiental contemporânea. Assumindo por herança, semitributário e fre-
que hoje ainda vivemos a expansão do quentemente privado de liberdade
mesmo sistema capitalista, em fases mais no moderno fazendeiro, e dos servos
avançadas, podemos concluir que, nas da gleba e do camponês sujeito a

659
RU P T U R A D O M E TA B OL I S MO S O C IO E C OL Ó G I C O

prestação de serviços no assalariado relação com o surgimento e consoli-


rural, seria de fato a história da forma dação do sistema agrário com pousio
do capital moderno. (p. 194-195) e cultivo com tração leve. Este sistema
Partiremos da estratificação histó- agrário era baseado na integração en-
rica realizada por Mazoyer e Roudart tre a produção vegetal e animal, com
(2010), os quais utilizam o conceito de a última fornecendo adubação para a
sistemas agrários para analisar a agricul- primeira, além do aperfeiçoamento e
tura. Segundo Mazoyer (1987), um sis- expansão das práticas de irrigação, o
tema agrário é um modo de exploração que permitiu a produção de substan-
do meio historicamente constituído, um ciais quantidades de cereais. Devido
sistema técnico adaptado às condições ao baixo desenvolvimento dos meios
bioclimáticas de um espaço determi- de produção, o emprego de força de
nado, que responde às condições e às trabalho era intenso, e só era possível
necessidades sociais do momento. graças ao sistema escravista vigente.
Na formação das sociedades tribais, As condições históricas do feu-
no modo de produção conhecido como dalismo, com dispersão das estruturas
comunismo primitivo, a formação da político-econômicas e o fim do sistema
agricultura esteve baseada no sistema de escravista, substituído pela servidão,
cultivo de derrubada-queimada. A base da possibilitou um novo manejo agrícola.
fertilidade desses sistemas agrários estava Por volta do século X, duas invenções
na derrubada e queima de formações tecnológicas foram a base do novo
florestais ou savânicas, e sua conversão sistema agrário, caracterizado como
em campos de produção. A gradual e sistema de pousio e cultivo com tração
ampla degradação dos nutrientes oriun- pesada: o sistema de arreamento dos
dos desse manejo obrigavam os grupos animais e o arado-charrua ou de ai-
humanos a se deslocarem por um espaço veca. O primeiro possibilitou explorar
abrangente. a máxima potência dos animais de
O acúmulo de excedentes e a orga- tração, ampliando a capacidade de
nização político-econômica daí derivada carga, as distâncias e a intensidade
engendrou as primeiras sociedades de de trabalho de ferramentas de revol-
classes, as quais tiveram como base pro- vimento do solo; o segundo, derivado
dutiva um sistema agrário mais comple- do primeiro, permitiu uma grande eco-
xo, definido como sistemas hidráulicos. nomia de tempo no preparado do solo
Segundo os autores, tanto o império e a ampliação dos campos lavráveis.
Egípcio como o Incaico são expoentes Tais tecnologias, amplificadas por
máximos desses sistemas hidráulicos. O uma siderurgia mais elaborada e pelo uso
manejo agrícola conformou territórios de forças naturais, como a hidráulica,
R baseados na irrigação em larga escala incidiu profundamente na estrutura e
de terrenos planificados, e demandava calendário agrícola e levou ao desenvol-
grande força de trabalho. vimento de um sistema de transição, sem
O desenvolvimento das forças pousio. O elemento central desse novo
produtivas e as transformações das sistema agrário estava na produção de
relações sociais que resultaram no pastagens “artificiais”, ou seja, de gramí-
Império Romano estavam em íntima neas, como o azevém, e de leguminosas

660
R U P T U R A D O M E TA B O L I S M O S O C I O E C O L Ó G I C O

forrageiras, como o trevo. Com essas Tais questões se arrastaram por cerca
culturas, a produção animal cresceu de um século, conformando legislações
consideravelmente, o que aumentou não nacionais, especialmente na França, que
apenas a tração e a produção de proteína por fim praticamente inviabilizaram o
animal, como também o esterco, que “livre pastejo” e garantiram a integral
por sua vez, ao ser aplicado às culturas privatização das terras (Mazoyer; Rou-
de cereais, permitiu grande aumento da dart, 2010).
produtividade. Nos termos de Mazoyer Na Inglaterra, o cercamento das
e Roudart (2010), “[esse novo sistema terras iniciou-se por volta de século e
agrário] deu um passo à frente no sentido meio antes, devido ao investimento na
de uma integração cada vez mais estreita produção de ovelha para fins têxteis,
do cultivo com a criação” (p. 359). o que inviabilizou parte considerável
Ao mesmo tempo, um intenso e das unidades camponesas. Esses inves-
beligerante intercâmbio ocorria entre timentos vieram primeiro na pecuária
Europa, Oriente Médio, África e Ásia. devido a seu caráter extensivo e de baixa
O fluxo de conhecimento, material gené- necessidade de inversão de capital, por
tico agropecuário e tecnologias produziu conseguinte, de diminuição da renda
zonas de grandes avanços produtivos. fundiária a ser paga aos proprietários de
Esse desenvolvimento das forças terra (Marx, 1974). Juntamente com as
produtivas logo colidiu como as estru- leis de “garantia do preço mínimo” dos
turas fundiárias e jurídicas existentes cereais – as Corn Laws – que restringiam
até então. Deve-se aqui recordar que as ou impediam a importação deste gênero
práticas anteriores demandavam certo com objetivo de proteger os preços da
grau de coletivização das áreas produ- produção, essas medidas mantiveram o
tivas, principalmente no que tange às poder dos proprietários de terra ingleses.
criações animais, que pastavam nos Ambos os processos – conjuntamen-
campos pós-colheita, adubando-os para te com os demais, na Prússia e na Itália –
as próximas colheitas. Ou seja, o sistema praticamente inviabilizaram as pequenas
de propriedade das terras configurava-se propriedades camponesas familiares,
como um sistema híbrido, com aspecto beneficiando ora um campesinato es-
privado nas culturas agrícolas e coletivo truturado (França), ora os aristocratas
nas criações animais. agrários (Inglaterra, Prússia), processo
À medida que os alqueives foram que ao longo dos séculos XVIII e XIX
utilizados para produção de novas cul- expulsou milhões de camponeses para as
turas, impôs-se a necessidade de gradual cidades industriais (Kautsky, 1968; Oli-
privatização destes, sob o risco de ter veira, 2007; Porto-Gonçalves, 2006).1 No
essas culturas consumidas pelos animais. capítulo XLVII do livro III d’O capital,
Assim, os proprietários fundiários e Karl Marx (1974) enumera as diversas R
alguns camponeses mais estruturados, questões, que atacaram brutalmente o
que implementaram tais inovações cul- campesinato:
turais, tendiam a cercar suas unidades, Extermínio da indústria campo-
conflitando com os camponeses de mé- nesa doméstica [...], em virtude do
dio e pequeno porte que necessitavam desenvolvimento da grande indús-
das áreas coletivas para suas criações. tria; empobrecimento progressivo

661
RU P T U R A D O M E TA B OL I S MO S O C IO E C OL Ó G I C O

e esgotamento do solo submetido e circulação de mercadorias (Kautsky,


a esse tipo de agricultura; usurpa- 1968; Oliveira, 2007).
ção pelos grandes proprietários de Ao mesmo tempo, a Revolução
terras da propriedade comum que Industrial inglesa de meados do século
por toda parte constitui o segundo
XIX, que inicialmente promoveu grande
complemento da economia parce-
produção de bens de consumo, também
laria, sem o qual não lhe é possível
a criação de gado; concorrência da passou a produzir bens de produção, in-
agricultura em grande escala da clusive para a agricultura. Uma série de
empresa capitalista ou das plan- equipamentos ligados à tração animal
tações colônias. Adicionem-se a pesada e, posteriormente, a sistemas
essas causas os melhoramentos a vapor, intensificou o sistema agrário
introduzidos na agricultura que sem pousio, dando início a uma nova
contribuem para baixar os preços etapa na agricultura. A modernização
dos produtos agrícolas ou exigem dos meios de transportes, com navios a
desembolsos maiores e condições vapor e ferrovias, igualmente proporcio-
materiais de produção mais avul-
nou mudanças estruturais, criando, pela
tadas. (p. 924-925).
primeira vez, um consistente intercâm-
Residem nesse processo as bases da bio global de fertilizantes (nitrogênio
questão agrária contemporânea. A classe oriundo das minas do Chile e Peru,
camponesa não se ocupava apenas da Potássio da Alemanha) e circulação de
produção direta da agropecuária. As co- matérias-primas agropecuárias.
munidades camponesas eram quase her- Essa alteração para os sistemas agrá-
méticas, produzindo praticamente tudo rios mecanizados proporcionou, assim,
o que necessitavam, desde vestuários às um grau elevado de especialização da
ferramentas. As famílias camponesas agricultura (Kautsky, 1968; Mazoyer;
eram, pois, definitivamente artesãs. No Roudart, 2010), rompendo os sistemas
momento em que essa família vê seu integrados de fertilização e produção
calendário de produção sobrecarregado agrícola existentes até então. A deter-
e que as relações de troca de mercadorias minação do mercado urbano passará a
capitalistas amadurecem, o pagamen- comandar a produção agropecuária, sele-
to dos arrendamentos, das parcerias e cionando as espécies mais adequadas ao
mesmo a aquisição de meios de produção interesse do capitalismo naquele período.
não se dá mais com os produtos de sua À essa base agrária da ruptura me-
produção, mas sim com dinheiro. Para tabólica, devemos somar a escala global
adquirir o dinheiro, é necessário ir ao do modo de produção capitalista. A ex-
mercado e vender sua produção, que pansão europeia do início do capitalismo
tanto no que diz respeito ao vestuário subordinou impérios e povos da África,
R quanto às ferramentas, já não encontra Ásia e América a um intenso processo
viabilidade frente aos produtos manufa- de expropriação de conhecimento e
turados. Nesse momento, estrutura-se riquezas produzidos por milênios de
o camponês atual: um agricultor puro, metabolismos socioecológicos especí-
produtor de gêneros alimentícios especí- ficos. Como um gigantesco dreno, o
ficos, incorporado ao sistema capitalista capitalismo europeu sugou para seu
em seus diferentes estágios de produção desenvolvimento as forças históricas de

662
R U P T U R A D O M E TA B O L I S M O S O C I O E C O L Ó G I C O

cada canto do planeta, a partir de pro- mentos) a ser comandado pelas máqui-
cessos extremamente violentos nas, não pelos trabalhadores. A essa
O outro aspecto da acumulação do etapa definiu-se como subsunção real do
capital é o que se verifica entre o trabalho à indústria e esse é o segredo da
capital e as formas de produção não Revolução Industrial. Como nos aponta
capitalistas. Seu palco é o cenário Graziano da Silva (1981), é a máquina-
mundial. Como métodos das po- -ferramenta que transforma a indústria,
líticas coloniais reinam o sistema ao liberar o processo de produção das
de empréstimos internacionais, a especificidades humanas. A máquina a
política das esferas de influência e as vapor, portanto, é secundária, e tem sua
guerras. Aí a violência aberta, a frau-
importância na geração de uma autono-
de, a repressão e o saque aparecem
mia da fonte de energia que abastecia as
sem disfarces, dificultando a desco-
berta, sobre esse emaranhado de atos máquinas-ferramentas.
de violência e provas de força, do É esse salto qualitativo do capita-
desenho das leis severas do processo lismo que consolida, por fim, a ruptura
econômico. (Luxemburgo, 1985) entre campo e cidade, ao qual nos detere-
mos a seguir. Ao destravar a dependência
das forças naturais (hidráulica e eólica),
Economia Política da questão
a máquina a vapor – mãe das cidades
ambiental contemporânea
– concentra ainda mais o capitalismo
A esse processo, que se conclui com
agora industrial nas cidades, atraindo
a Revolução Verde [ver Revolução Verde],
para elas os milhões de camponeses que
tanto Graziano da Silva (1981) quanto
se transformarão em trabalhadores. Ao
Verges (2011) definem como a subsunção
mesmo tempo, intensifica a industria-
da agricultura à indústria. Ambos res-
lização do campo, reorganizado agora
gatam a transição da subsunção formal
sob os auspícios da indústria. Como nos
para a real do trabalho à indústria. Em
aponta Marx (2013),
termos gerais, a subsunção é um conceito
aplicado ao processo de incorporação do O modo de produção capitalista
trabalho humano às indústrias capitalis- completa a ruptura dos laços pri-
tas. Em sua primeira etapa – dita formal mitivos que, no começo, uniam a
agricultura e a manufatura. Mas,
–, a subsunção diz respeito à manufatura,
ao mesmo tempo, cria as condições
ou seja, à incorporação de artesãos e tra- materiais para uma síntese nova,
balhadores que controlavam o processo superior, para a união da agricultura
produtivo de acordo com suas habilida- e da indústria, na base das estrutu-
des, em um processo em que o capitalista ras que desenvolveram em mútua
fornecia o capital inicial – derivado em oposição. Com preponderância cada
salário, matéria-prima e algumas ferra- vez maior da população urbana que
mentas – aos trabalhadores aglutinados se amonta nos grandes centros, a R
em uma determinada fábrica. produção capitalista, de um lado,
Com a Revolução Industrial, o tra- concentra a força motriz histórica
balhador é completamente subordinado da sociedade, e, de outro, perturba o
intercâmbio material entre o homem
à maquinaria, passando o processo de
e a terra, isto é, a volta à terra dos
produção (ritmo, intensidade e movi- elementos do solo consumidos pelo

663
RU P T U R A D O M E TA B OL I S MO S O C IO E C OL Ó G I C O

ser humano sob a forma de alimentos nuscritos Econômico-Filosóficos. Com


e vestuários, violando assim a eterna forte caráter antropológico, ele incor-
condição natural da fertilidade per- pora quatro dimensões do fenômeno
manente do solo. Com isso destrói a alienação: i) ser humano alienado da
saúde física do trabalhador urbano
natureza; ii) ser humano alienado de
e a vida mental do trabalhador no
si mesmo; iii) ser humano alienado de
campo. Mas, ao destruir as condi-
ções naturais que mantêm aquele sua dimensão “genérica”, ou seja, como
intercâmbio, cria a necessidade de membro de sua espécie; iv) alienado
restaurá-lo sistematicamente, como dos outros seres humanos (Marx, 2010;
lei reguladora da produção em forma Mészáros, 2006).
adequada ao desenvolvimento integral A natureza encontra relação tão
do homem. [...] Na agricultura mo- central nesta primeira elaboração que
derna, como na indústria urbana, o Marx atribui à primeira e à terceira di-
aumento da força produtiva e a maior mensões da alienação a ruptura de uma
mobilização do trabalho obtêm-se relação intrínseca ser humano-nature-
com a devastação e a ruína física da
za. Conforme o próprio Marx (2010),
força de trabalho. E todo o progresso
da agricultura capitalista significa A vida genérica tanto no homem
progresso na arte de despojar não só quanto no animal consiste, fisica-
o trabalhador, mas também o solo. mente, em primeiro lugar, nisto: que
[...] A produção capitalista, portanto, o homem (tal qual o animal) vive
só desenvolve a técnica e a combina- da natureza inorgânica, e quanto
ção do processo social de produção, mais universal o homem é do que
exaurindo as fontes originais de toda o animal, tanto mais universal é o
a riqueza: a terra e o trabalhador (p. domínio da natureza inorgânica da
369, grifo nosso) qual ele vive. [...] Praticamente, a
universali­dade do homem aparece
Embora nessa versão da tradução precisamente na universalidade que
em português (de Reginaldo Sant’An- faz da natureza inteira o seu corpo
na) apareça o termo intercâmbio mate- inorgânico, tanto na medida que ela
rial, Foster (2005) defende que o termo é um meio de vida imediato, quanto
correto é metabolismo, oriundo do na medida em que ela é o objeto/
conceito alemão Stoffwechsel (p. 221). matéria e o instrumento de sua ati-
Esse é o mesmo entendimento de Pedro vidade vital. A natureza é o corpo
Scarón, tradutor da respeitada versão inorgânico do homem, a saber, a
espanhola d’O Capital, publicada pela natureza enquanto ela mesma não
é o corpo humano. O homem vive
editora Siglo XXI.
da natureza significa: a natureza
Tal conceito não nasceu apenas é o seu corpo, com o qual ele tem
da observação de Marx do processo de ficar num processo contínuo
R fabril da Inglaterra. Já em seus escritos para não morrer. Que a vida física
juvenis, de caráter mais filosófico, ele e mental do homem está interconec-
apontava a centralidade da relação ser tada com a natureza não tem outro
humano-natureza. É nessa época que sentido senão que a natureza está
ele esboça os primeiros ensaios acerca interconectada consigo mesma, pois
da temática, como em suas primeiras o homem é uma parte da natureza.
elaborações sobre a alienação nos Ma- (p. 84, destaque nosso)

664
R U P T U R A D O M E TA B O L I S M O S O C I O E C O L Ó G I C O

Esse é um exercício fantástico de – e o resultado promovido pelo desen-


materialismo, reconhecendo as capaci- volvimento do capitalismo, a ruptura
dades extraordinárias do ser humano, metabólica (Foster, 2005). Imerso no
mas a inutilidade destas se não houver trabalho de produção do capítulo I d’O
uma interconexão com a natureza. E capital, Marx tomou conhecimento dos
mais, a universalidade do ser humano trabalhos sobre agricultura e química, e
não reside na designação metafísica de escreveu a Engels que “a nova química
uma predestinação, em sua específica agrícola da Alemanha [...] é mais im-
capacidade de abstração ou na simples portante para este assunto [da renda
realização de transformações da natu- fundiária] que todos os economistas
reza, tal como um joão-de-barro edifica juntos” (Foster, 2005).
preciosos casebres. A universalidade é Articulando o conceito de trabalho
aqui compreendida como todo o poten- com o de metabolismo, o autor cria uma
cial criativo do ser humano, engendrado interdependência crucial entre ambos
no processo práxico de transformação El trabajo es, en primer lugar, un
da natureza. proceso entre el hombre y la natu-
Portanto, a natureza, evidentemen- raleza, un proceso en que el hombre
te, é a fonte dos meios de subsistência media, regula y controla su metabo-
humana, mas não se restringe a isso lismo con la naturaleza. El hombre
– o que nos separa definitivamente dos se enfrenta a la materia natural
demais animais. O ser humano faz, se- misma como un poder natural. Pone
gundo Marx (2010), “da sua ativida- en movimiento las fuerzas naturales
que pertenecen a su corporeidad,
de vital [aquelas necessárias para sua
brazos y piernas, cabeza y manos, a
subsistência] mesma um objeto da sua
fin de apoderarse de los materiales
vontade e da sua consciência” (p. 84). de la naturaleza bajo una forma útil
Ou seja, a busca pela existência, nos para su propia vida. Al operar por
seres humanos, construiu a sua própria medio de ese movimiento sobre la
essência como ser genérico, uma vez naturaleza exterior a él y transfor-
que “sabe produzir segundo a medida marla, transforma a la vez su propia
de qualquer espécie, e sabe considerar, naturaleza. Desarrolla las potencias
por toda a parte, a medida inerente ao que dormitaban en ella y sujeta a
objeto; o homem também forma, por isso, su señorio el juego de fuerzas de la
segundo as leis da beleza” (p. 85). misma. (Marx, 1975, p. 216)
Logo, o ser humano é mais um ser Desse modo, amplificando os ele-
da natureza, mas é o único que conse- mentos expostos nos Manuscritos, a for-
gue transformar essa própria natureza mulação em O capital coloca o trabalho
de forma crítica – é a coexistência ser como mediador, regulador e controlador
humano-natureza. O ser humano não do metabolismo socioecológico, entre ser R
é nem humano, nem natural apenas, humano e natureza. Não há nada aqui de
mas ambas as coisas ao mesmo tempo subjugação da natureza, de dominação
(Mészáros, 2006). opressiva das forças naturais, mas sim a
Já em estágio mais avançado, o “ve- sua compreensão e, a partir disso, a sua
lho Marx” amplia sua compreensão, utilização como complemento da vida
elaborando o conceito de metabolismo humana. Mais uma vez fica claro o pro-

665
RU P T U R A D O M E TA B OL I S MO S O C IO E C OL Ó G I C O

cesso dialético do trabalho: modifica-se muito além das fronteiras do próprio


a natureza exterior ao mesmo tempo país. (Liebig apud Marx, 1974, p. 931,
em que essa modificação engendra mu- grifo nosso)
danças na natureza interior. Assim, Entretanto, as consequências das
metabolismo, neste caso, é a concreta duas formas sociais são distintas do pon-
interação dialética entre a natureza e a to de vista socioecológico:
sociedade através do trabalho humano. A pequena propriedade fundiária
(Barreira, 1991; Foster, 2005). gera uma classe até certo ponto à
Para Marx, a sociedade que ou- margem da sociedade e que combi-
trora vivia em modos de produção que na toda a crueza das formas sociais
possuíam certo grau de integração do primitivas com todos os sofrimentos
“natural” com o “humano”, com o ca- e todas as misérias dos países civiliza-
pitalismo rompeu esse metabolismo dos. A grande propriedade fundiária
socioecológico, criando uma dicotomia deteriora a força de trabalho no últi-
entre campo e cidade, por um lado, e, mo refúgio onde se abriga sua energia
de forma mais ampla, entre sociedade natural e onde ela se acumula como
fundo de reserva para renovar a força
e ambiente (Marx, 2011; Engels, 1844).
vital das nações: o próprio campo. A
Esse entendimento em nada reside numa grande indústria e a grande agricul-
espécie de reacionarismo, de retorno ao tura industrialmente empreendida
passado ou, antidialeticamente, de defesa atuam em conjunto. Se na origem
de classes anteriores frente às novas clas- se distinguem porque a primeira
ses do modo de produção capitalista. Ao devasta e arruína mais a força de tra-
contrário, Marx (1974) expõe os limites balho, a força natural do homem, e a
da pequena e da grande propriedade: segunda, mais diretamente, a força
natural do solo, mais tarde, em seu
A pequena propriedade supõe que a
desenvolvimento dão-se as mãos: o
imensa maioria da população é rural
sistema industrial no campo passar
e que predomina o trabalho isolado
a debilitar também os trabalhadores,
e não o social. Implica, portanto,
e a indústria e o comércio, a pro-
que não existam as condições ma-
porcionar à agricultura os meios de
teriais e espirituais da riqueza e do
esgotar a terra. (Marx, 1974, p. 931,
desenvolvimento da reprodução e,
grifo nosso).
em consequência, tampouco as con-
dições de uma agricultura racional. Como vimos anteriormente, o pro-
Por outro lado, a grande propriedade cesso de subordinação da agricultura à
fundiária reduz a população agrícola indústria, seja na propriedade capitalis-
a um mínimo em decréscimo con- ta, seja na camponesa, fraturou a troca
tínuo, opondo-lhe uma população material entre a produção agropecuária
industrial que aumenta sem cessar,
(produção vegetal e produção animal) e
R concentrada em grandes cidades.
dessa com as comunidades, ou seja, no
Produz assim as condições que provo-
cam ruptura insanável na coesão do metabolismo socioecológico existente
metabolismo social estabelecido pelas nos modos de produção anteriores. Não
leis naturais da vida. Em consequên- é por acaso que Liebig (Foster, 2005),
cia, dissipam-se os recursos da terra, e Howard (2007) especularam sobre
e o comércio leva esse desperdício a destinação dos esgotos e lixo para

666
R U P T U R A D O M E TA B O L I S M O S O C I O E C O L Ó G I C O

a agricultura novamente, apontando pois se faz necessária uma crescente


para um futuro colapso da agricultura quantidade de embalagens e propagan-
pela diminuição da matéria orgânica das (Foster, 2012). A transformação do
nos campos.2 alimento em mercadoria permite que
No final do século XIX, essa rup- a produção agropecuária esconda seu
tura da relação ser humano-natureza, alto grau de envenenamento da saúde
seguida de uma reconstrução sob novas e depredação ambiental.
bases, como apontado anteriormente A fase de hegemonia do capital
pelo próprio Marx, se materializou. A financeiro intensifica essa ruptura me-
intensificação da industrialização na tabólica. A busca pela “pedra filosofal”
cidade veio acompanhada de uma piora do capitalismo, a capacidade de pro-
drástica na já precária quali­d ade de duzir dinheiro a partir do dinheiro,
vida urbana (Diegues, 2008; Howard, produz uma capacidade inigualável de
2007), recriando uma relação dos seres destruição. Quando o capital financeiro
humanos com uma natureza urbana desenvolve aparentemente a fórmula
baseada no ar e água poluídos e na D – D’, na realidade ele não está elimi-
moradia aglomerada e miserável. A rup- nando a fórmula D – M – D’, mas sim
tura metabólica e a subsunção real do está colocando a Mercadoria em um
trabalho à indústria geraram, geração nível tão subordinado à “produção de
após geração, um profundo processo mais dinheiro” que as próprias bases
de alienação do ser humano para com materiais de produção dessa mercadoria
a natureza.3 passam a não importar. Avança assim
Essa situação objetiva obviamente a acumulação por espoliação (Harvey,
derivou em impactos subjetivos. Aquela 2004) e a capacidade destrutiva do
capacidade criativa do trabalho livre, capital (Mészáros, 1989).
que atende não apenas às necessida- A reconstrução do metabolismo
des físicas, mas também espirituais socioecológico não passa, portanto,
dos humanos, estava ferida de morte. por formas anexas a esse capitalismo
Construiu-se uma crítica crescente de hegemonia financeira. As tentativas
da cidade, e uma busca pela “natureza de “discipliná-lo” tem demonstrado
selvagem”, aquela natureza da qual o ser completa incapacidade. É somente a
humano fora apartado, que agora pos- partir de novas dinâmicas socioeco-
sibilitava contemplação e isolamento lógicas, organizadas pelos povos, que
espiritual (Diegues, 2008). poderemos superar dialeticamente a
Essa desconstrução do metabolismo ruptura metabólica. Aí encontra-se a
e sua reconstrução como estranhamen- centralidade da agroecologia, da sobe-
to entre ser humano e natureza vão rania alimentar, da reforma agrária e
desenvolver consequências dramáticas da defesa dos territórios camponeses, R
e estão nas bases da questão ambiental em sua imensa diversidade de expres-
contemporânea. O avanço da contradi- sões sociais. É por esses eixos que se
ção entre valor de uso e valor de troca, reestabelecerá a relação das massas
aprofundando o fetiche da mercadoria, trabalhadoras com o campo e a pos-
dá nova escala à obsolescência progra- sibilidade de uma perspectiva popular
mada e a produção de resíduos sólidos, sobre a questão ambiental.

667
RU P T U R A D O M E TA B OL I S MO S O C IO E C OL Ó G I C O

Referências
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Para saber mais


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3; 2012, Bogotá. Actas... Barcelona: Geocrítica, 2012. v.1., p. 1-15.

Notas
1
Casos como o analisado no emblemático artigo que trouxera Marx para a Economia Política, em que
tratou sobre o cerceamento de lenhadores tradicionais utilizarem os seculares silvos (Debates sobre a
lei punitiva do roubo de lenha – 1842), fizeram parte deste momento de transição, onde a propriedade
privada destruiu territórios e comunidades tradicionais inteiras (Porto-Gonçalves, 2006).
R 2
O que de fato ocorreu, levando a guerra entre Peru, Bolívia e Chile. Essa guerra teve como razão
a disputa por regiões fronteiriças continentais entre os países, e pela propriedade de diversas ilhas
no Pacífico. Essas áreas eram ricas em salitre e guano (esterco de pássaro acumulado por milhares
de anos), bens naturais que passaram a sustentar a fertilidade dos solos ingleses, de tal magnitude
que o guano chegou a ser o segundo item de exportação peruana na segunda metade do século XIX
(Foster, 2005).
3
Ficou para a história momentos com o “grande fedor”, verão atípico de 1858 que, por suas altas
temperaturas, intensificou o cheiro pútrido do rio e bloqueou as atividades da Câmara dos Lordes
por quase uma semana (Foster, 2005).

668
S
SANEAMENTO ECOLÓGICO

A lex a ndr e P essoa


K ar la E mma nuella H or a

Este verbete apresenta o conceito atores sociais e públicos envolvidos na


de saneamento ecológico analisando apropriação do próprio sentido da tec-
sua proposição a partir das experiências nologia e, fundamentalmente, na demo-
de produção e reprodução social das cratização dos processos educacionais,
populações do campo, da floresta e das tecnológicos, organizacionais, políticos
águas. A concepção de saneamento e das relações de poder nos territórios.
parte da noção ligada ao ato de sanear, Ele toma para si a perspectiva crítica e a
segue pelo delineamento da ideia de sa- necessidade de superação das limitações
neamento básico e ancora-se no conceito dos projetos de saneamento, seja em ter-
de saneamento ambiental com objetivo mos de seus componentes, seja na forma
de promoção da saúde para, então, se de implantação nos territórios, muitas
chegar à multidimensionalidade, mul- vezes marcada por ações tecnicistas,
tiescalaridade e multiculturalidade do elitistas e fragmentadas.
saneamento ecológico e sua relação com
a agroecologia. Saneamento básico e saneamento
A perspectiva agroecológica, en- ambiental
tendida também como uma alternati- O termo saneamento define-se eti-
va de resistência e enfrentamento ao mologicamente como a ação de sanear
processo de dominação e alienação do (Saneamento, 2003), ou seja, de tornar
modo de produção capitalista, abriu um saudável. Traz, subjacente a essa defini-
novo caminho para se pensar, tanto o ção, sua relação com a saúde, compreen-
saneamento básico quanto o ambiental, dida como seu principal objetivo.
a partir de processos de emancipação, Em fins da década de 1950, o ter-
autonomia e cooperação locais. mo saneamento ‘básico’ foi cunhado
Dessa forma, o conceito de sanea- no Brasil para estabelecer o padrão
mento ecológico propõe uma atualização mínimo daquilo que seria fundamen-
teórico-conceitual, com desdobramentos tal para a vida humana, frente aos
nas metodologias de intervenção dos reduzidos recursos governamentais
SANEAMENTO ECOLÓGICO

destinados à infraestrutura sanitária. [inserido pelos autores] fundamen-


Referia-se, basicamente, às interven- talmente como de saúde pública,
ções de água potável e esgoto sanitário tendo como objetivo alcançar níveis
(Costa, 1994). Nas décadas de 1970 e crescentes de salubridade ambiental,
compreendendo o abastecimento de
1980, essa expressão se consolidou com
água em quantidade e dentro dos
a implantação do Plano Nacional de
padrões de potabilidade vigentes,
Saneamento (Planasa) (Brasil, 1978), o manejo do esgoto sanitário, de
que atuava prioritariamente no sistema águas pluviais, de resíduos sólidos
de abastecimento de água, também e emissões atmosféricas, o controle
executando ações de esgotamento ambiental de vetores e reservatórios
sanitário e, em menor escala de dre- e doenças, a promoção sanitária e o
nagem, nos centros urbanos (Costa, controle ambiental do uso e ocupa-
1994; Rezende; Heller, 2002). ção do solo, e prevenção do controle
Entretanto, apenas no fim da década do excesso de ruídos, tendo como
de 2000, se chegou a uma regulamenta- finalidade promover e melhorar as
condições de vida urbana e rural.
ção do saneamento básico, por meio da
(Brasil, 2005, p. 17)
Lei n. 11.445 (Brasil, 2007), que estabe-
leceu a Política Federal de Saneamento A Portaria n. 2.311 (Brasil, 2014),
Básico, apresentando diretrizes nacio- do Ministério da Saúde, instituiu a
nais para o setor. Por ela, o saneamento Política Nacional de Saúde Integral das
básico foi definido como o Populações do Campo, da Floresta e das
conjunto de serviços, infraestrutura
Águas, sendo que o inciso IV do artigo
e instalações operacionais de abas- 3º explana a importância das articu-
tecimento de: água potável, esgo- lações intersetoriais para promover a
tamento sanitário, limpeza urbana saúde, envolvendo ações de saneamento
e manejo de resíduos sólidos, dre- e meio ambiente, especialmente para a
nagem e manejo das águas pluviais redução de riscos sobre a saúde humana
urbanas. (Brasil, 2007) e gerando qualidade de vida para essas
Se de um lado, o marco normativo populações.
do saneamento básico apresentou-se
como uma vitória para o setor; por outro, Fundamentos para o conceito de
a luta por políticas públicas de sanea- saneamento ecológico
mento na perspectiva da determinação O termo saneamento ecológico co-
social da saúde, enquanto direito de todos meça a ser usado por alguns autores em
e dever do Estado, foi ancorada na Cons- fins do século XX. Esrey et al. (2001, p.
tituição Federal (Brasil, 1988) e na Lei n. 11) define-o como aquele que
10.257, reconhecida como Estatuto das oferece uma alternativa ao sanea­
Cidades (Brasil, 2001), que, no seu artigo mento convencional, e tenta re-
2º, indica a garantia ao direito às cidades solver alguns dos problemas mais
saudáveis e ao saneamento ambiental. O prementes da sociedade: doenças
S infecciosas, degradação ambiental
saneamento ambiental
e poluição, e a necessidade de re-
envolve o conjunto de ações téc- cuperar e reciclar nutrientes para o
nicas, socioeconômicas e culturais crescimento das plantas.

670
SANEAMENTO ECOLÓGICO

Trata-se de uma visão que permite múltiplos aspectos econômicos, sociais


incorporar o manejo integrado de vetores e ambientais (Lipietz, 2002).
(animais que transmitem doenças), o
manejo agrícola e do solo, a irrigação Construindo o conceito de
sustentável, o uso racional da água (re- saneamento ecológico
dução no desperdício, aproveitamento A definição de Saneamento Ecoló-
de água de chuva e reuso de esgotos), a gico parte do paradigma da Ecologia Po-
educação em saúde e os cuidados com o lítica e da justiça ambiental (Silva, 2018)
saneamento domiciliar. para indicar a necessidade de uma práxis
Essa definição considera a relação emancipatória no território como um
solo-planta-clima e os processos de elemento de identidade, de produção de
decomposição de matéria orgânica e
­
saberes, de trocas de materiais, energia,
ciclagem de nutrientes promovidos por tecnologias e comunicação. Essa práxis
microrganismos como instrumentos de aponta para a autonomia, para a cons-
melhoria sistêmica e sanitária local. Ao trução coletiva dos processos locais e não
considerar soluções técnicas, se aproxi- se limita a ser um replicador de técnicas,
ma da permacultura [ver Permacultura]. destinado à manutenção das condições
O conceito de ecológico, atribuído de dependência e exploração sobre um
à definição de saneamento que ora se determinado território, nem um gerador
apresenta neste verbete, fundamenta-se de desigualdades e injustiça socioam-
na Ecologia Política. Nos anos 1970, bientais [ver Tecnologias Sociais].
com o agravamento da crise ambiental, Enquanto conceito positivo, mul-
emergiram diferentes conotações para tidimensional e multicultural, o sa­
o paradigma ecológico. Cunhado por neamento ecológico assume o discurso
Haeckel em 1878 (Machado, 1984), o da promoção da saúde (Souza, 2007;
termo foi, inicialmente, compreendido Czeresnia; Freitas, 2009) que envolve
como o “estudo das inter-relações entre uma rede de questões, para além do foco
os seres vivos e suas funções dentro de em determinadas doenças.
ambientes diversos” (Lima, 1984, p. 19). O saneamento ecológico e o ma-
Seus desdobramentos e a perspectiva nejo dos agroecossistemas devem ser
analítica das interações entre o homem adequados às condições locais, com
e natureza, de forma interdisciplinar e insumos geralmente produzidos a partir
sob inspiração sistêmica, fundamen- de matérias-primas do território, onde se
taram pesquisas na área da Ecologia utilizam de tecnologias sociais, que contri-
Humana (Machado, 1984). Buscava-se buem para a preservação e recuperação
entender como a sociedade impactava a dos mananciais e dos solos.
natureza. No entanto, será na Ecologia Experiências de tecnologias sociais de
Política que tais análises vão incorporar saneamento ecológico têm se expandido
uma visão crítica ao capitalismo de em um processo intenso de inovações so-
modo a revelar os mecanismos estru- ciotécnicas, exemplificadas pelas tecno-
turais responsáveis pela produção de logias sociais de manejo de esgotos, tais S
desigualdades sociais, tais como a po- como: os tanques de evapotranspiração,
breza e a fome, buscando compreender banheiro seco, zonas de raízes, círculo
os impactos inter-relacionados nos seus de bananeiras, biodigestores etc. Para

671
SANEAMENTO ECOLÓGICO

o manejo das águas, existem diversas estabelecer maior organização em redes,


cisternas de aproveitamento de águas ampliando o debate sobre as vocações
de chuva, filtros domiciliares de água, regionais e visando à construção de
barragem subterrânea, sistema de barra- políticas públicas, a exemplo da Arti-
ginha, tanques de pedra, microirrigação, culação no Semiárido Brasileiro (ASA)
utilização de semente de moringa e de [ver Articulação do Semiárido], da Cam-
energia solar para tratamento de água panha Nacional em Defesa do Cerrado
etc. Em termos de manejo de resíduos e das articulações no âmbito dos Povos
sólidos e de manejo agrícola, tem-se a e Populações Extrativistas da Amazônia
compostagem de lodo de esgoto domésti- (Fenner, 2018).
co e de estercos, a vermicompostagem, os As linhas de luta pelas águas defi-
biofertilizantes, os quintais produtivos, os nem-se pela ASA como: águas de
sistemas agroflorestais (SAF), as manda- beber e higiene pessoal; águas de
las, as casas de sementes crioulas, dentre produção vegetal e animal; águas
outros. Todas essas propostas se ancoram comunitárias para banho, lavagem
no território e são potencializadas pelas de roupas etc.; águas de emergência,
práticas coletivas agroecológicas e pela enquanto fontes alternativas no pro-
troca de saberes. longamento das estiagens; e águas do
meio ambiente, visando à proteção
As tecnologias sociais em sanea-
dos mananciais. (Gnadlinger, 2011)
mento ecológico se abrem para outros
[ver convivência com o semiárido]
aspectos, seja de produção alimentar,
seja de convivência no território, com No mesmo sentido em que os proces-
respeito e ajuda mútua, dialogando sos de educação territorializada (educa-
diretamente com a promoção da saúde ção do campo, educação contextualizada,
e com a soberania alimentar. Trata-se de educação popular, educação politécnica),
práxis que se apoia na produção coletiva como práxis, atuam na construção do
e na troca de experiências por meio de saneamento ecológico (Dias et al., 2014),
intercâmbios entre comunidades. Mui- articulam-se conhecimentos populares e
tas dessas experiências se relacionam acadêmicos. A metodologia dos ‘Cami-
com a promoção da autonomia das nhos das Águas’, desenvolvida em pro-
mulheres, a valorização dos seus saberes cessos formativos de educação em saúde
e o reconhecimento do seu papel no de- ambiental para as populações do campo
senvolvimento dos territórios. Ademais, (Búrigo, 2017; Barcelos, 2017), é um
estas propostas se apresentam promis- exemplo. Por meio do mapeamento das
soras para que a juventude se eduque trajetórias das águas, desde suas fontes
sobre a perspectiva de uma educação até as diversas formas de consumo hu-
libertadora com justiça ambiental. mano, parte do princípio de que a água
As populações do campo, da floresta educa em sua multiescalaridade, multi-
e das águas, em defesa de seus direitos dimensionalidade e multiculturalidade.
e territórios, têm exercido múltiplas É possível, assim, junto aos territó-
S possibilidades de gestão socioterritorial rios, avaliar os manejos das águas (em
em diferentes escalas: local, territorial, termos de qualidade e quantidade), seus
municipal, estadual e nacional. Outras fatores de risco, bem como propor me-
escalas, a exemplo dos biomas, procuram lhorias sanitárias domiciliares e comuni-

672
SANEAMENTO ECOLÓGICO

tárias. O mesmo se aplica para as águas dos conceitos de saneamento básico e


residuárias (esgoto doméstico, efluentes ambiental, apresentando-se como uma
industriais, águas contaminadas por estratégia de luta e de emancipação
agrotóxicos etc.), cujos caminhos e des- dos povos do campo, das f lorestas e
tinos finais precisam ser adequados para das águas. Ele abrange componentes
o manejo do ciclo das águas como um teóricos, técnicos e metodológicos cons-
todo. Essa metodologia pode ser aplicada truídos a partir das experiências de vida,
utilizando-se de rodas de conversa, mapa mediadas pelo trabalho como princípio
falante, intercâmbios, dentre outros educativo (Frigotto; Ciavatta, 2012). Ele
(Búrigo, 2017; Barcelos, 2017). é sistêmico e incorpora as ações e narra-
tivas das comunidades em interação com
Saneamento Ecológico – uma síntese seus territórios.
Em síntese, o saneamento ecológico A aprovação, publicação e im-
pode ser conceituado como: a mediação plantação do Programa Nacional de
do ser humano com o ambiente, por Saneamento Rural (Brasil, 2019), que
meio do manejo das águas, dos resíduos apresenta o saneamento básico como
e efluentes, com base na agroecologia, direito humano, promotor da saúde,
visando à saúde ambiental, à soberania para a erradicação da extrema pobreza
alimentar e nutricional, à organização e o desenvolvimento rural solidário e
comunitária e à valorização da socio- sustentável é uma mudança de para-
biodiversidade. digma que dialoga com o saneamento
As categorias e relações estabeleci- ecológico, sendo imprescindível e im-
das pelo saneamento em diferentes pers- prorrogável sua efetividade para que o
pectivas podem ser vistas no Quadro 1. Estado atenda a uma dívida histórica
O saneamento ecológico deve ser para com as populações do campo, da
compreendido a partir da ampliação floresta e das águas.

Referências
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674
SANEAMENTO ECOLÓGICO

Quadro 1 – Categorias e relações nas perspectivas do saneamento básico


vigente e do saneamento ecológico emergente
Categorias e
Saneamento básico Saneamento ecológico
relações
Sentido positivo e multidimensional, poten-
Sentido negativo, de ausência de
Conceito de saúde cializando ações técnicas, socioambientais e
doenças
culturais
Alcance das Preventiva de doenças e promotoras de
Preventiva de doenças
intervenções saúde
Facilitadoras, participativas e problemati-
Abordagens Direcionadoras e persuasivas
zadoras
Ações específicas para a popula- Conjunto de ações para a população, sujeito
Ações
ção enquanto beneficiária passiva de direitos ativos, nos territórios
Intersetorialidade Ações disciplinares e setoriais Ações interdisciplinares e intersetoriais
Envolve uma rede de questões de saúde am-
Incumbências Envolvem patologias específicas
biental e humana
Conduzida por técnicos especia-
Execução dos Conduzida por técnicos em diálogo com a
lizados, sem participação comu-
projetos comunidade
nitária
Operação e Feitas pelos técnicos ou pelos moradores
Feitas pelos técnicos
manutenção com a devida orientação e apoio técnico
Processos de formação e de educação em
Formação Treinamentos curtos e rápidos
saúde
Alvo População de alto risco Toda a população do território
Prioriza a informação individua- Prioriza a formação coletiva e a mobilização
Mobilização
lizada social educadora
Conhecimento De fora, estranho à comunidade Construído a partir do território
Além dos custos, pode gerar renda (apro-
Gera custos de implantação e de
Custos/benefícios veitamento e reuso de água, manejo de re-
manutenção
síduos 3R)
Instrumental e mecanicista. Substantiva e holística.
Paradigma Realiza intervenção fora de con- Realiza a intervenção no contexto da ha-
tecnológico texto. bitação, da comunidade e de suas relações
socioambientais
Propõe transformações socioambientais de
Objetivo Propõe mudança de comporta-
caráter emancipatório e construção de au-
pedagógico mento
tonomias coletivas
Abre processos de integração entre práticas
Relação com produtivas (saneamento e agroecologia);
Estanque e fragmentado. Relacio-
os sistemas de reuso da água; fortalecimento de práticas
na-se em um ciclo fechado com o
produção e geração coletivas de manejo de resíduos e produção
próprio sistema de saneamento
de renda artesanato (reciclagem, reuso e reutilização
de resíduos) etc.
Reconhece as especificidades culturais
Relação com os Não considera a diversidade so- (múltiplas identidades), incorpora as di-
sujeitos sociais ciocultural e territorial mensões de gênero, raça e geração de forma
interseccional.
É instrumental e atemporal, basea- É parte e expressão dos arranjos comunitá-
S
Relação com o
território da na solução técnica rios e se fortalece em redes sociais
Fonte: Os autores. Adaptado de Dias (2017).

675
SAÚ D E DA S P OPU L AÇ Õ E S D O C A M P O, DA F L O R E S TA E DA S ÁG UA S

SAÚDE DAS POPULAÇÕES DO CAMPO,


DA FLORESTA E DAS ÁGUAS
A lex a ndr e P essoa D ias
F er na ndo F er r eir a C ar neiro

O conceito de populações do cam- cumentos das 14ª e 15ª Conferências


po, da floresta e das águas (PCFA) é uma Nacionais de Saúde, nasceu no Grupo
elaboração popular que expressa a luta da Terra (Brasil, 2005), formado em
desses povos contra diversas violações de 2003, por meio de intensa mobilização e
direitos, dentre os quais o da saúde e suas organização, resultando como um espaço
determinações sociais. Suas potenciali- de interlocução com o Governo Federal
dades e desafios são apresentados neste cujo trabalho resultou na publicação
verbete, a partir de um contexto de luta da Política Nacional de Saúde Integral
por políticas públicas, por seus territó- das Populações do Campo e da Floresta
rios, pelo reconhecimento de seus modos ­( PNSIPCF); (Brasil, 2011). Posterior-
de vida e pela necessidade da articulação mente, o termo águas foi incorporado em
política contra a mercantilização da vida. 2014, com a atualização para a Política
Como dissemos em verbete anterior Nacional de Saúde Integral das Popula-
(Carneiro; Búrigo; Dias, 2012), o proces- ções do Campo e da Floresta e das Águas
so saúde-doença expressa historicamente (PNSIPCFA); (Brasil, 2014).
a luta coletiva e individual por conquis- O debate que se deu no grupo da
tas sociais de um determinado território Terra durante o processo de formulação
(Pinheiro et al., 2009). Isso pode ser da PNSIPCFA envolveu inicialmente a
determinado pelo modo como o homem agregação do termo “floresta” soman-
se apropria da natureza em um dado mo- do-se ao do “campo”, visto que os povos
mento, por meio do processo de trabalho indígenas e as populações extrativistas
relacionado ao desenvolvimento das da Amazônia não se reconheciam nessa
forças produtivas e das relações sociais categoria, pois para eles o campo estaria
de produção (Laurell, 1983). PCFA é um ligado à produção agropecuária. Eles
conceito contemporâneo dos movimen- vivem da floresta, e para sua existência,
tos sociais populares brasileiros e integra é preciso que ela esteja de pé e não seja
a luta contra a invisibilidade dessas po- derrubada para a expansão da produção.
pulações dentro da institucionalidade da Alguns anos depois, no processo de
saúde pública. Essa terminologia destaca aprovação da PNSIPCFA, o Movimento
que as práticas culturais, o modo de vida de Pescadoras e Pescadores também não
e de cuidados populares precisam ser re- se reconheceu nas categorias “campo” e
S conhecidos e considerados pelo Sistema “floresta”, afinal vivem das águas, sejam
Único de Saúde (SUS). continentais ou da orla marítima, e se
Esse conceito, já adotado a partir identificam como população das águas
de muitos debates nos relatórios e do- (Pessoa; Almeida; Carneiro, 2018).

676
S A Ú D E DA S P O P U L A Ç Õ E S D O CA M P O, DA F L O R E S TA E DA S Á G UA S

Rural ou Ruralidade? Programa Nacional de Saneamento


A PNSIPCFA, em contraponto à Rural (PNSR) apontaram a necessidade
categoria geral de população rural, revela de recategorização dos setores censitá-
que as políticas de saúde devem consi- rios, com ampliação da classificação da
derar a pluralidade, a singularidade, a população rural no Brasil. Com esta nova
diversidade e a heterogeneidade dessas proposta, a população rural do Brasil,
populações e a riqueza da cartografia que de acordo com o Censo de 2010 era
social (Acselrad, 2012) de um país con- de 29,54 milhões de habitantes (15,6%)
tinental como o Brasil. Compreendem (IBGE, 2010), passaria a ser de 39,73
os camponeses, agricultores familia- milhões (21,0%) que moravam em áreas
res, trabalhadores rurais assalariados tipicamente rurais do Brasil (Fundação
e temporários, que residam ou não no Nacional de Saúde, 2018).
campo, trabalhadores rurais assentados Países e organizações europeias uti-
e acampados, comunidades de quilom- lizam outros critérios na definição de
bos, populações que habitam ou usam áreas rurais e urbanas: tamanho da po-
reservas extrativistas, populações ribei- pulação, densidade demográfica, oferta
rinhas, caiçaras, populações atingidas de serviços, participação da agricultura,
por barragens, entre outras comunidades divisão administrativa, uso do solo, aglo-
tradicionais (Pessoa; Almeida; Carnei- meração habitacional e até a distância
ro, 2018). Os indígenas também fazem percorrida aos centros de serviços mais
parte dessa população, mas como eles próximos. Apesar da diversidade, não há
conquistaram um sistema e uma política país que possa prescindir dessa análise
de saúde específicos, em função de suas para elaborar diagnósticos socioeconô-
necessidades, não ficaram explicitamen- micos, bem como para desenvolver e
te expressos nessa política. estabelecer políticas públicas adequadas
O Brasil adota, para determinação às especificidades das PCFA (Pessoa;
de áreas rurais e urbanas, a divisão es- Almeida; Carneiro, 2018).
tabelecida em critérios legais ou políti- O conceito de ruralidade é neces-
co-administrativos, na qual os períme- sário para que as políticas públicas no
tros urbanos (e os rurais, por exclusão) país possam ser promotoras de saúde.
são delimitados por decisão legislativa A ruralidade, para além da antiga e
dos municípios, o que é influenciável estigmatizada visão do rural, enquanto
por questões tributárias tendendo a su­ espaço do atraso e da pobreza, tem sido
perestimar sua população urbana (Pes- designada para o estudo de fenômenos
soa; Almeida; Carneiro, 2018). Tanto é sociais que influenciam na construção
assim que, após a revisão da classificação de uma identidade nos territórios da
e caracterização dos espaços rurais e PCFA. Nesse contexto, precisa ser dis-
urbanos do Brasil, realizada pelo IBGE cutido à luz de antecedentes históricos,
em 2017, verificou-se que 60,4% dos em perspectiva ampla, capaz de conju-
municípios brasileiros foram considera- gar e confrontar as distintas dimensões
dos predominantemente rurais, sendo da realidade, modos de vida, as relações S
54,6% rurais adjacentes e 5,8% rurais ambientais e processos socioeconômi-
remotos (IBGE, 2017). Estudos demo- cos e culturais, as relações de inter-
gráficos realizados para elaboração do dependência com os centros urbanos

677
SAÚ D E DA S P OPU L AÇ Õ E S D O C A M P O, DA F L O R E S TA E DA S ÁG UA S

bem como evidenciar as contradições que denominamos hoje de Determinação


que estabelecem padrões de ocupação Social da Saúde [ver Determinação Social
distintos e geradores de desigualdades. da Saúde], afirmava à época que a questão
Reafirmamos a ruralidade como uma fundiária no modo de produção capitalista,
categoria pertinente para a compreen­são marcada pela concentração de terras e pela
das rupturas e continuidades espaciais e exploração era determinante para a com-
da diversidade social presentes na socie- preensão das endemias rurais. Segundo
dade brasileira. A ruralidade como valor ele, a resistência de latifundiários para a
da sociedade, entendendo-o como uma instalação de unidades de saúde em áreas
forma específica de vida social, caracte- sob seu domínio, sob a alegação de que
rizada pela predominância da natureza poderia desqualificar sua propriedade,
e das relações de interconhecimento trazia na verdade uma estratégia de ocul-
implicam no reconhecimento das formas tamento das doenças dos trabalhadores
de produção e trabalho, de natureza rurais causadas pelas péssimas condições
comunitária e/ou familiar, responsáveis de vida e de trabalho no campo (Bonfim;
pela vitalidade social dos espaços rurais Costa Filho, 1978).
(Miranda; Silva, 2013). O avanço no tempo e no espaço do
processo de modernização agrícola no
Saúde e modelo de desenvolvimento Brasil, caracterizado por concentração
Os estudos e posicionamentos polí- de terras, expansão de monocultivos, uso
ticos de Josué de Castro (2003), sobre a intensivo de equipamentos e modelo pro-
questão da fome no mundo resultou no dutivo químico-dependente de agrotó-
reconhecimento de seu trabalho nos ce- xicos e fertilizantes sintéticos (Gurgel et
nários brasileiro e internacional. Revelou al., 2018), vem induzindo processos de
as origens socioeconômicas e políticas desterritorialização do campesinato, de
da fome, denunciando que a apropriação insegurança alimentar e de impactos à
injusta e insustentável do meio ambiente saúde ambiental e humana (Pessoa, 2010).
estava nas raízes do subdesenvolvimento, Os diversos estudos sobre as condições
e por sua vez da fome e miséria humana. de saúde da PCFA evidenciam um perfil
Defendia a reforma agrária e afirmava mais precário quando comparados aos
que a agricultura familiar era a melhor da população urbana. No campo, ainda
forma de fixar o homem no campo e existem importantes limitações de acesso e
possibilitar sua alimentação. Fazia a crí- qualidade nos serviços de saúde, bem como
tica já em 1946, da orientação da política uma situação deficiente de saneamento
agrícola no Brasil por ter sido inicialmente ambiental. Essas populações sofrem com
direcionada pelos colonizadores europeus as doenças negligenciadas (Souza, 2010)
e depois pelo capital estrangeiro. Essa acrescidas às doenças do desenvolvimento
política enfatizou a produção para a ex- (Rigotto; Augusto, 2007).
portação, em vez de priorizar a agricultura O termo científico “negligenciado”
camponesa, capaz de garantir a soberania afirma a crítica referente à pouca atenção
S alimentar do povo brasileiro (Carneiro; ou mesmo descaso com que determi-
Búrigo; Dias, 2012). nadas doenças causadas por agentes
O parasitologista Samuel Pessoa, já infecciosos e parasitários que acometem
na década de 1940, na perspectiva do populações empobrecidas não recebem

678
S A Ú D E DA S P O P U L A Ç Õ E S D O CA M P O, DA F L O R E S TA E DA S Á G UA S

historicamente os recursos necessários vivos, enfim dos ecossistemas. Os confli-


para sua pesquisa e não tem o interesse tos gerados nesses territórios, em muitos
das indústrias farmacêuticas. Segundo casos, resultam em doenças psicossociais,
Morel (2006), a persistência das doenças aumento da violência, exploração sexual,
negligenciadas se dá por três tipos de doenças sexualmente transmissíveis etc.
falhas: da ciência, com conhecimentos A promoção da saúde nos territórios
insuficientes; do mercado com medi- dessas populações implica no enfren-
camentos ou vacinas inexistentes ou a tamento do atual modelo de desenvol-
um custo proibitivo; e de saúde pública, vimento, dos efeitos da globalização
havendo medicamentos baratos ou mes- (Santos, 2011), da sociedade do consumo
mo gratuitos, mas que não são utilizados geradora de doenças (Lefevre; Lefevre,
devido ao planejamento deficiente. 2004) e dos impactos socioambientais
Anterior ao tratamento de doenças, gerados pelos grandes empreendimentos
outras falhas nas políticas públicas de (Toledo et al., 2018).
saúde do campo são identificadas como o A sociedade de consumo e a mer-
acesso insuficiente às unidades e serviços cantilização da vida resultam na amplia-
de saúde, às informações e à escassez de ção da privatização das riquezas naturais
processos educativos pouco comprometi- (a exemplo das águas) e da vida, na
dos com a formação de sujeitos críticos que concentração das terras, na dissociação
possam atuar sobre as suas condições de entre o ser humano e a natureza, bem
saúde e sobre a discussão de seus determi- como no desequilíbrio ecológico. O
nantes sociais (Assis, 2016), promovendo movimento histórico do capital altera
iniquidades em saúde, que são desigualda- as condições da vida social, exacerba
des entre grupos populacionais que, além contradições e promove novas tragédias
de sistemáticas e relevantes, são também ambientais ao procurar expandir-se ilógi-
evitáveis, injustas e desnecessárias. ca e absurdamente (Fontes, 2010).
Dentre as doenças negligenciadas no
Brasil destacam-se a doença de chagas, Por uma saúde das populações do
sífilis congênita, hanseníase, filariose, campo, da floresta e das águas
malária, tétano neonatal, oncocercose, A longa experiência dos diversos
esquistossomose, helmintíases, tracoma movimentos sociais das PCFA em defesa
dentre outras. do direito à saúde permitiu ampliar o
As doenças do desenvolvimento, ten- leque de alianças e de ações multiesca-
do como força motriz o mercado e a sua lares, seja na elaboração das políticas pú-
divisão internacional do trabalho, também blicas seja em ações em seus territórios,
são produzidas no campo por grandes ampliando desta forma a sua capacidade
empreendimentos, com destaque para as de atuação política e organizativa.
commodities agrícolas e metálicas que ge- As PCFA, ao defender os seus terri-
ram diversos impactos à saúde ambiental e tórios, seus modos de vida, sua cultura,
humana, comprometendo em grande esca- suas técnicas e produção reafirmam
la as riquezas naturais e a biodiversidade do o controle de seus recursos diretos de S
país, seja pela sua exploração e esgotamen- existência. Desde as décadas de 1970 e
to, seja pelos processos de poluição hídrica, 1980, organizações não governamentais
atmosférica, edáfica (dos solos), dos seres (ONGs) e centros de formação em agri-

679
SAÚ D E DA S P OPU L AÇ Õ E S D O C A M P O, DA F L O R E S TA E DA S ÁG UA S

cultura alternativa vêm desenvolvendo tinção da área técnica responsável e o


e apoiando experiências de produção realocamento de técnicos para outros
saudável alternativas ao modelo de setores. As iniciativas bem-sucedidas de
agricultura da Revolução Verde em alguns municípios e ações de formação de
nosso país. nível médio, especialização e de residência
Como exemplos de políticas públicas representam ainda esforços emblemáticos
que tiveram a atuação dos movimentos que estão ameaçados de continuar em
sociais populares das PCFA, além da função desse contexto político. Como
PNSIPCFA, foram elaborados os Pla- alguns exemplos dessas ações que podem
nos Nacionais de Reforma Agrária e a ter sua sustentabilidade ameaçada estão
instituição do Plano Safra da Agricul- as unidades básicas de saúde fluviais,
tura Familiar em 2003; o Programa de os Centros de Referência em Saúde do
Aquisição de Alimentos em 2003 e a Trabalhador Rural (Cerest Rural) e um
inclusão de produtos orgânicos no Pro- repasse financeiro maior por parte do Mi-
grama Nacional de Alimentação Escolar; nistério da Saúde para as equipes de saúde
a Lei da Agricultura Familiar em 2006; da família que atuam em áreas rurais.
a institucionalização da Política Nacional A agroecologia [ver Agroecologia] foi
de Assistência Técnica e Extensão Rural incorporada à agenda de inúmeros movi-
e o Programa Nacional de Assistência mentos sociais, a exemplo daqueles que
Técnica e Extensão Rural na Agricultura fazem parte da Via Campesina, entre eles o
Familiar e Reforma Agrária em 2010; a Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Política Nacional de Desenvolvimento Terra (MST). Também deve-se destacar o
Sustentável dos Povos e Comunidades papel de vários sindicatos de trabalhadores
Tradicionais em 2007; a Política Nacional rurais e de organizações como a Articula-
de Agroecologia e Produção Orgânica de ção Nacional de Agroecologia (ANA) e
2012, a Política Nacional de Educação a Associação Brasileira de Agroecologia
Popular em Saúde de 2013, as Políticas (ABA), que reúne técnicos, professores,
de Promoção da Equidade em Saúde pesquisadores, estudantes e agricultores.
(Brasil, 2013) e o Programa Nacional de Nos processos formativos em agroecolo-
Saneamento Rural, em fase de elaboração gia, os agricultores e as agricultoras são
(Fundação Nacional de Saúde, 2018). considerados educadores e protagonistas.
A PNSIPCFA é um exemplo para- Entre essas experiências são relacio-
digmático de política pública que não nadas com as práticas e saberes em saúde
foi priorizada pelo Estado brasileiro e foi da população do campo [ver Práticas e
lento em sua criação, deixando de saldar Saberes em Saúde da População do Campo]
uma dívida histórica para com essa po- por meio da valorização dos cuidadores
pulação. Quando é finalmente aprovada populares em saúde e do trabalho de
em 2011 continuou sendo desconhecida raizeiros, parteiras e benzedeiras; dos
para a maioria dos municípios. Posterior- conhecimentos passados de geração em
mente, com o golpe de natureza política, geração; de remédios caseiros prepara-
S jurídica e midiática de 2016 e a posse do dos com ervas medicinais; e daqueles
governo Bolsonaro em 2019 essa política que cuidam da saúde das famílias e das
é desmontada no âmbito do Ministério comunidades e que conhecem os efeitos
da Saúde por meio de ações como a ex- positivos da alimentação saudável. Não

680
S A Ú D E DA S P O P U L A Ç Õ E S D O CA M P O, DA F L O R E S TA E DA S Á G UA S

se trata de negar a importância do acesso forma autônoma pelos trabalhadores


aos serviços públicos de saúde, mas de se rurais organizados, em conjunto com
afirmar a necessidade de diálogo entre trabalhadores e instituições públicas
as diferentes racionalidades de cuidados de saúde. (Carneiro; Búrigo; Dias,
2012, p. 695)
em saúde.
Na ampliação do que já tinha sido A agroecologia, as tecnologias sociais
observado no Dicionário da Educação do em saneamento [ver Tecnologias Sociais]
Campo, reafirmamos que: (Silva, 2018), a valorização de práticas e
O encontro crescente entre profissio- conhecimentos tradicionais, a defesa da
nais e pesquisadores de saúde – entre biodiversidade, as escolas do campo, as
eles os trabalhadores da Estratégia agroindústrias na forma de cooperativas
da Saúde da Família – com o movi- são exemplos de ações que têm levado
mento agroecológico, os educadores maior autonomia e organização popular
e cuidadores populares e os traba- nos territórios. O desafio está na am-
lhadores rurais organizados indica pliação das diversas formas de ações que
que a construção de um projeto de permita a melhoria das condições atuais
saúde do campo está em curso. Esse de vida e de trabalho das PCFA associa-
projeto está representado não só pelo
dos às táticas e estratégias da Reforma
aumento do número de pesquisas
sobre a saúde das PCFA, seja de
Agrária e da Reforma Sanitária no Brasil
denún­cia dos impactos do modelo (Dantas, 2017), incidindo desta forma
de produção agrícola dominante, seja sobre a determinação social da saúde, na
das alternativas em construção, mas perspectiva da saúde como direito e não
também de cursos protagonizados de como mercadoria.

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Para saber mais


Observatório de Saúde das Populações do Campo, Floresta e das Águas - Teia de Saberes e Práticas.
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SUS. Disponível em: https://www.unasus.gov.br/cursos/curso/45517.
Curso: Saúde das Populações do Campo, da Floresta e Águas (45 horas). AVASUS. Disponível em:
https://avasus.ufrn.br/local/avasplugin/cursos/curso.php?id=17.
Série Campos Águas e Floresta – Agravos à saúde da população ribeirinha. Vídeo Saúde Fiocruz.
Disponível em: https://portal.fiocruz.br/en/node/75003. Acesso em: 31 mar. 2021.

682
SEMENTES

SEMENTES

M aitê E dite S ousa M aronhas


A na C láudia de L ima S ilva
Fr ei S ergio G örgen

Breve histórico sobre domesticação dução de indivíduos com características


Pesquisas que buscaram datar a desejáveis, visando a perpetuação e/ou
prática do cultivo de alimentos pelos a intensificação dessas características, é
seres humanos identificaram que esta conhecida como seleção massal e foi a
surgiu há aproximadamente 10 mil anos. primeira forma do que hoje denominamos
Grupos de seres humanos nômades que melhoramento genético.
obtinham seus alimentos a partir da Embora aqui tenhamos optado por
caça e da coleta, em algum momento dedicar apenas uma rápida introdução
perceberam a possibilidade de domesti- sobre esse processo é importante regis-
car determinadas espécies e assim obter trar que ele não foi único nem rápido,
mais alimentos. ele ocorreu em diferentes lugares do
A introdução do cultivo de plantas planeta e em diferentes momentos, em
e da criação de animais a partir de sua alguns casos com milhares de anos entre
domesticação significou uma profunda os eventos.
mudança na relação do ser humano com
a natureza, com implicações nas mais Diversos tipos de sementes
diversas áreas (ver Box Agrobiodiversida- As sementes foram domesticadas,
de). Cultivar alimentos em vez de apenas selecionadas e melhoradas inicialmen-
caçá-los ou coletá-los implicou uma oferta te pelos/as próprios/as agricultores/as,
maior e mais estável destes, permitindo antes de estudos realizados na área de
o aumento das populações, de forma que melhoramento genético. As plantas
cada vez mais indivíduos podiam então eram selecionadas, entre outras, por suas
desenvolver habilidades específicas, em características produtivas, morfológicas
outras áreas que não a agropecuária. (formato da semente e porte da plan-
A seleção de plantas e animais que ta), aromáticas e gastronômicas (cores,
apresentavam características desejáveis aromas e sabor). Através da observação
para nós é um dos atributos intrínsecos de como essas plantas se comportavam
da agricultura e da pecuária. Foi a partir na natureza, a seleção resultava em ma-
dessa seleção de espécies selvagens, em teriais mais adaptados às condições
geral rústicas, pequenas e capazes de for- climáticas, físicas e sanitárias locais,
necer pouca energia que surgiu o conjunto atendendo à demanda gastronômica,
de alimentos que temos disponíveis hoje, cultural e produtiva. S
como milho, maçãs, bananas, galinhas, O melhoramento convencional,
porcos e outros. Essa primeira forma de com técnicas modernas, começou com
seleção, feita a partir da seleção e repro- a descoberta da genética, pesquisado-

683
SEMENTES

res referência desse tema são Charles dações ou realizar seu uso direto. O
Darwin e Gregory Mendel. Apenas no germoplasma é uma amostra de material
final do século XIX e início do século genético com a capacidade de manter
XX que os estudos relacionados com geração após geração a característica
o melhoramento vegetal passaram a de uma população. Exemplos de germo-
trabalhar o potencial genético associado plasma são as sementes, células, tecidos,
à produtividade das culturas agrícolas. antera, pólen, entre outros. Quando se
A principal diferença entre o melho- faz caracterização ou seleção de ger-
ramento tradicional e aquele realizado moplasmas, espera-se identificar um
com base científica é que: enquanto o material genético que expresse caracte-
primeiro selecionava as plantas com o rísticas desejadas, como produtividade,
potencial genético expressado no am- resistência a alguma doença, ou algum
biente local de seleção, buscando atender aspecto físico da planta diferente daque-
diferentes necessidades, o melhoramento la variedade que vem sendo utilizada.
convencional tinha como objetivo final, O desenvolvimento dos híbridos
materiais homogêneos com o potencial trouxe maior controle para as empresas
produtivo elevado e resistência a doen- que desenvolvem esse tipo de material
ças. O potencial produtivo almejado genético. Como é baseado no cruza-
pelo melhoramento convencional apenas mento de duas linhas puras, formando
pode ser alcançado através dos chama- um material heterozigoto, ou seja, que
dos pacotes tecnológicos, que incluem possui informações genéticas diferentes
fertilizantes químicos e agrotóxicos [ver para a mesma característica genética,
Revolução Verde]. as plantas são homogêneas no primeiro
Os primeiros métodos, como a se- plantio, mas a manutenção dessa se-
leção individual com teste de progênies mente na propriedade e nos seguintes
e seleção massal, começaram a ser utili- gera plantas diferentes entre elas. Dessa
zados no fim do século XIX e início do forma, o resultado é uma produção mais
século XX, em populações de plantas baixa do que a inicial, devido à perda
mantidas por camponeses, bem como do vigor.
povos e comunidades tradicionais. Mais recentemente, a introdução
A seleção massal foi o método pra- das sementes transgênicas reforçou o
ticado por agricultoras e agricultores no processo de expropriação das sementes
início da domesticação e melhoramento e dos saberes camponeses. As sementes
das plantas, quando eles realizavam a transgênicas podem ser definidas como
seleção visual, baseada em como a planta organismos geneticamente modificados
se expressava em determinado ambiente. cujo material genético recebeu genes
As sementes selecionadas comporiam os provenientes de outros organismos, po-
próximos plantios. Esse tipo de seleção dendo ser animais, bactérias ou outras
se baseia nas características que a planta espécies de plantas [ver Transgênicos].
demonstra em um determinado ambien-
S te, seu fenótipo. Sementes crioulas
Os dois principais objetivos desses Semente crioula é o conceito utili-
métodos eram introduzir germoplasma zado para identificar as partes reprodu-
como fonte de variabilidade em hibri- tivas de vegetais e animais, sejam estas

684
SEMENTES

sementes, caules, rizomas, tubérculos Sementes são um dos insumos mais im-
e no caso dos animais, eles próprios. portantes para a agricultura, sem estas,
O termo faz referência a uma grande assim como sem a água, esta atividade
diversidade de espécies que foram sele- não pode ser realizada.
cionadas, cuidadas, melhoradas e pre- A partir do Programa Sementes fo-
servadas pelos seres humanos e que hoje ram construídas e apoiadas cerca de 900
se encontram nas mãos de agricultoras e casas e bancos comunitários de semen-
agricultores camponeses, diversos povos tes em todo o Semiárido brasileiro com
indígenas e comunidades tradicionais, pelo menos 17.800 famílias envolvidas
como quilombolas, vazanteiros e outros, na ação de sementes da ASA.
que são também guardiãs e guardiões A principal estratégia do progra-
de sementes. ma é o estabelecimento de um nível
Muitas destas variedades têm raí­ adicional de segurança à conservação
zes profundas na história de uma co- de sementes crioulas, o primeiro nível
munidade ou família, remontando 30, é a guarda familiar, as sementes que são
50, 100 ou mesmo 150 anos. Outras armazenadas nas casas dos agricultores
são resultado do que se conhece como para o cultivo nos próximos anos, este
processo de acrioulamento, ou seja, nível pode falhar principalmente pela
passaram pelo melhoramento genético perda das sementes plantadas em um
em seu processo de pesquisa científica ano de seca e também pelo consumo
e retornaram para as mãos de agricul- dessas sementes como alimento, como
toras e agricultores que mantiveram resultado de safras frustradas e da im-
seu processo tradicional de melho- possibilidade de conseguir alimentos de
ramento, selecionando as melhores outras formas.
plantas e sementes. As casas e bancos comunitários
de sementes tem como objetivo ser um
Estratégia para a conservação de segundo nível de segurança, as mesmas
sementes crioulas no semiárido sementes armazenadas em casa, ou pelo
brasileiro menos aquelas mais cultivadas, podem
O Programa de Manejo de Agro- ser em parte levadas para estes espaços,
biodiversidade – Sementes do Semiá- sendo desta forma um local para as
rido é um dos programas integrantes famílias buscá-las em caso de perda do
do Programa de Formação e Mobili- estoque familiar. Também propiciam a
zação Social para Convivência com troca de sementes, uma vez que várias
oS­ emiárido da Articulação Semiá- famílias guardam neste espaço, permi-
rido Brasileiro (ASA). Este último é tindo que a comunidade conheça de
composto por 4 programas, são eles: forma mais aprofundada as sementes
Programa Um Milhão de Cisternas – que são ali cultivadas e provocando
P1MC, Programa Uma Terra e Duas o interesse em curiosidade em testar
Águas – P1+2, Programa Cisterna nas outras variedades.
Escolas e Programa Sementes. Um terceiro nível ainda deve exis- S
O Programa Sementes foi gestado tir, são as Casas Mães ou Bancos Re-
do seio do P1+2, a partir das percep- gionais, enquanto as casas e bancos
ções e demandas identificadas neste. comunitários em geral armazenam

685
SEMENTES

maiores quantidades de uma menor neses e das camponesas, e junto com elas
diversidade, as Casas Mães e os Bancos o conhecimento milenar sobre o processo
Regionais armazenam uma maior di- de cuidado e produção das sementes.
versidade em menor volume, sendo um Muitos resistiram, cuidaram e mul-
espaço onde pode-se recorrer quando tiplicaram as sementes crioulas. A vida
os dois anteriores, estoques familiares na roça é cheia de conhecimentos e o
e comunitários falharem. camponês e a camponesa conhecem as
Esses três níveis de segurança se sementes crioulas, conhecem seu ciclo,
referem à conservação conhecida como sabem a época de plantio, relacionam
on farm, ou seja, em campo, na roça, na com outros fatores da natureza, como
mão e manejo de quem se utiliza das a lua, estações do ano e com a tradição
sementes diretamente, agricultoras/es milenar e familiar. Eles e elas conhecem
e guardiões. Outras dimensões com- a terra, e a terra conhece as sementes
plementares de conservação são neces- e, as sementes, por favorecer o conhe-
sárias, como a conservação ex situ, em cimento e receber carinho e atenção
Bancos de Germoplasma (BAGs), como das pessoas e da terra, se adaptam e
os que no Brasil são administrados pela produzem qualidade e quantidade, o
Empresa Brasileira de Pesquisa Agro- que fortalece o vínculo do campesinato
pecuária (Embrapa). Essas diferentes e enche de orgulho e satisfação quem
dimensões da conservação são comple- as produz. Hoje é impossível viver na
mentares, devem e precisam coexistir roça com autonomia e liberdade sem
e colaborar umas com as outras (Box que os camponeses e as camponesas
Recursos Genéticos). conheçam e dominem o saber sobre a
produção de suas sementes. Elas são seu
Sementes Crioulas e Identidade maior patrimônio, são capazes de gerar
Camponesa vida saudável e tem um valor sagrado.
A identidade camponesa é o reco-
nhecimento do que os identifica, do que Conclusão
lhe é próprio, reconhecer a afinidade A semente é o principal insumo
própria com as pessoas e grupos. A para a agricultura, para a produção de
identidade camponesa é expressa pelo alimentos e para a Segurança e Sobera-
modo de vida, pelos hábitos alimentares nia Alimentar e Nutricional. Associado
e comidas típicas, pela cultura, pela às sementes enquanto material genético
música, pelas danças, pela mística e está a preservação do patrimônio e
religiosidade, pelo jeito de produzir e do conhecimento tradicional associa-
de cuidar da terra. Para o camponês do. A semente é essencial para que
e a camponesa, a terra é o lugar de as agricultoras e os agricultores sejam
reproduzir e cuidar da vida. autônomos e protagonistas de todo seu
As sementes crioulas são o elo entre o processo produtivo e cultural. O papel
camponês e a camponesa e sua identida- das guardiãs e guardiões de sementes é
S de. Como poderá sobreviver um campo- essencial para a manutenção da agro-
nês, uma camponesa e suas famílias sem biodiversidade e de sementes de quali-
possuir sementes? As sementes crioulas dade nas comunidades. Quando estes
foram arrancadas, roubadas dos campo- guardiões/guardiãs deixam de existir,

686
SEMENTES

a erosão genética passa a se tornar um O interesse das agricultoras e agri-


risco muito real, bem como a entrada cultores evidencia a importância em se
de sementes híbridas, melhoradas ou resgatar o uso das sementes crioulas for-
transgênicas nas comunidades. talecendo a cooperação dentro da comu-
A contaminação de sementes criou- nidade e estimulando a manutenção dos
las por sementes transgênicas tem sido conhecimentos e da cultura camponesa,
um grande desafio e ocasiona também através do resgate sementes e do conhe-
um atraso na adaptação das sementes cimento associado ao seu uso e manejo.
crioulas naquele ambiente e possível As três formas de conservação, in
erosão genética. A semente não deve situ, ex situ e on farm devem caminhar
ser privatizada, a luta para garantir a juntas pois são complementares. É neces-
agrobiodiversidade é permanente. sário que se realize a articulação entre as
As sementes crioulas estão sempre guardiãs e os guardiões da biodiversidade
se adaptando aos diferentes ambientes que realizam a conservação on farm e os
e manejos, ou seja, evoluindo perma- Bancos de Germoplasma – BAGs que
nentemente. Além de terem atividades realizam a conservação ex situ. As duas
associadas ao seu plantio, que contri- maneiras de se realizar essa conservação
buem para a coletividade nas comunida- possuem seus potenciais e fragilidades
des, como os mutirões que constituem e quando se integram enquanto ações
momentos importantes para a troca complementares garantem a conserva-
de experiências, af lições e ainda de ção dos recursos genéticos.
difusão e apropriação de tecnologias e O programa de melhoramento atual
conhecimentos. deve dar enfoque à realidade local do pú-
O armazenamento em boas con- blico a que se destina. Fornecendo maior
dições é um dos principais fatores de autonomia dos agentes comunitários
qualidade das sementes. A agricultura e agricultores/as no processo de siste-
familiar, povos e comunidades tradi- matização, avaliação e monitoramento
cionais organizados podem enfrentar os dos impactos do trabalho, bem como
desafios da dependência de sementes e na disseminação dessas informações.
romper com a lógica de grande investi- Tendo uma perspectiva mais inovadora
mento em insumos, para isso é preciso de intervenção no ponto de vista técni-
realizar um trabalho mais intenso na ca e menos convencional do ponto de
criação de Casas e Bancos Comunitários vista metodológico. Deve-se pautar no
de Sementes Crioulas, bem como de desenvolvimento local, potencializando
suas redes estaduais e nacionais, bem a irradiação dos acúmulos e experiências
como processos de formação focando a da agricultura familiar para as escalas
transição agroecológica e a valorização regionais, estaduais e nacionais.
da agrobiodiversidade. É necessário Projetos de pesquisa que possam
promover novos arranjos organizacionais convergir trabalhos realizados pela
e articular uma forma da comunidade comunidade científica de forma par-
produzir, manejar e armazenar as suas ticipativa à comunidade local poderão S
próprias sementes, garantindo a manu- contribuir para o estabelecimento de
tenção da biodiversidade e a segurança uma agricultura mais justa e com os
e soberania alimentar. princípios na sustentabilidade.

687
SEMENTES

Agrobiodiversidade
Natália Carolina de Almeida Silva
Flaviane Malaquias Costas

Em um primeiro sentido, a agrobiodiversidade ou a diversidade agrícola com­preende a


associação entre a agricultura, nas suas mais diversas expressões, e diversidade existente na
natureza. Como a agricultura foi e continua sendo uma construção humana regida não somente
por relações econômicas e ambientais, mas, também, por relações sociais, culturais e espirituais,
podemos afirmar que a agrobiodiversidade é o resultado da íntima interação humana com os
diferentes componentes dos sistemas agrícolas, como as plantas, os animais, os polinizadores,
as chamadas “pragas e doenças”, os microrganismos do solo etc. Isso quer dizer que do ponto de
vista da prática, a agrobiodiversidade existe desde o surgimento das agriculturas.
No âmbito técnico-científico, o termo agrobiodiversidade surgiu com forte ênfase após a
Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), em 1992, como um contraponto aos sistemas
agrícolas baseados em monoculturas, agrotóxicos, nas sementes ditas modernas, criticados por
sua agressividade ao meio ambiente. Nesta esfera, a agrobiodiversidade pode ser compreendida
como o componente da biodiversidade que é manejado pelos seres humanos, da qual depende
para obter alimentos, combustíveis, fibras e bem-estar, que vai desde a diversidade de genes à
diversidade de agroecossistemas e suas interações. Por isso, podemos afirmar que a agrobiodiver-
sidade está muito mais presente em nossas vidas do que a biodiversidade em si, pois está associada
à nossa alimentação cotidiana, à qualidade dos alimentos, à segurança alimentar e nutricional.
De forma complementar, pesquisadoras da área entendem a agrobiodiversidade como
resultado da interação de quatro níveis de complexidade: a) a diversidade entre espécies, como
mandioca, milho, feijão, tomate, abóbora, porco, galinha, cabra etc; b) a diversidade dentro das
espécies, também compreendida como diversidade genética, como por exemplo as diversas varie-
dades crioulas de milho (Palha Roxa, Oito Carreiras, Milho Alho, Macabu, Milho Massa, Jabatão
etc.) ou de porco (Moura, Piau, Monteiro etc.) conservadas pelos agricultores e agricultoras; c) a
diversidade de agroecossistemas ou sistemas agrícolas, como os sistemas agroflorestais, os quintais,
a roça de toco, os policultivos, sistemas de Fundo de Pasto, sistemas extrativistas etc. e; d) a
diversidade sociocultural, representada pela agricultura camponesa, indígena, quilombola, pelos
povos e comunidades tradicionais, pelos saberes, conhecimentos localmente construídos, tra-
dições, costumes, cosmovisões, modos de vida, cultura alimentar, práticas, inovações agrícolas.
É justamente o componente humano que diferencia a agrobiodiversidade da biodiversidade.
A definição de agrobiodiversidade, portanto, remete à união de competências que englobam
desde o biológico ao cultural, sendo que suas principais características residem nos seguintes
aspectos: a) é ativamente manejada pelos agricultores/as; b) muitos dos seus componentes não
sobrevivem sem a interferência humana; c) pode ser composta por plantas e animais nativos ou
exóticos; d) em função da intervenção humana, a sua conservação em sistemas de produção é
inerente ao seu uso sustentável; e e) sua conservação se dá nas mais variadas estratégias, como
as casas ou bancos comunitários de sementes, nos registros comunitários da agrobiodiversidade
local, no incentivo às redes de intercâmbio de sementes, na valorização dos guardiões e guardiãs
da agrobiodiversidade.
A conservação da agrobiodiversidade nos sistemas agrícolas tradicionais permite que
a evolução das espécies cultivadas e/ou domesticadas continue acontecendo no tempo e no
espaço, visto que se encontra submetida aos mais diversos processos evolutivos, promovendo o
desenvolvimento adaptativo das espécies quanto às variações climáticas e ambientais ao longo
do tempo. Desta forma, permite a ampliação contínua de diversidade via evolução em seu meio
natural, bem como a domesticação e o manejo em seu meio social e cultural.
A agrobiodiversidade possui caráter dinâmico, pois desde os primórdios da domesticação
de plantas, animais e paisagens, ela foi foi gerada, transformada, amplificada e também descar-
tada em função das necessidades, dos conhecimentos das comunidades e das transformações
ambientais e culturais. Tudo indica que, nesse processo, mesmo com as perdas naturais e/ou
S intencionais, nas seleções cotidianas e nos cruzamentos entre variedades e entre espécies, a
geração de diversidade foi intensa e se agregou de forma crescente aos agroecossistemas. É
justamente esta diversidade que permite a manutenção dos processos ecológicos nos sistemas
agrícolas possibilitando que as espécies cultivadas e/ou domesticadas se desenvolvam em am-
bientes heterogêneos e sob a ação humana. Nessa lógica, em função do seu dinamismo e da

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SEMENTES

interação entre os diferentes níveis de diversidade, a agrobiodiversidade constitui a base da


agroecologia por promover sistemas agrícolas mais resilientes e sustentáveis, menos vulneráveis
às mudanças climáticas, ambientais e políticas. É a partir dela que se promove a conservação
dos solos, da água, dos sistemas agroalimentares, da geração de conhecimentos, da promoção
de mercados solidários e do desenvolvimento de sistemas agrícolas diversificados e saudáveis,
proporcionando também uma sociedade mais saudável e uma dieta diversificada. Portanto,
podemos afirmar que sem a agrobiodiversidade não existe a agroecologia e, sem as sementes
crioulas não existe agrobiodiversidade, pois representam um dos pilares mais importantes da
sustentabilidade da agricultura camponesa.
Se as sementes foram a “porta de entrada” para a modernização da agricultura respaldada
pelo melhoramento genético convencional, elas também representam a “porta de saída” para
a agricultura familiar desse modelo de dependência, pelos seguintes aspectos: a) fazem parte
da identidade de um povo; b) representam a base da autonomia, da soberania e da segurança
alimentar e nutricional; c) possibilitam o resgate de hábitos alimentares; d) apresentam alta
variabilidade genética o que permite sua adaptação a diferentes agroecossistemas e manejo locais
e, por sua vez, tolerar e/ou resistir aos diferentes estresses ambientais; e) são chaves nos processos
de transição agroecológica; f) contribuem para a construção do conhecimento agroecológico;
g) são mobilizadoras de pessoas, processos, histórias. Ao circular uma semente crioula, circula
também conhecimentos, saberes e solidariedade; h) promovem relações de afeto, de cuidado,
conectando gerações; i) impulsionam o protagonismo das mulheres, aproximam os jovens e
restauram a autonomia das comunidades no manejo da agrobiodiversidade.
Não restam dúvidas de que a agricultura de base familiar organizada comunitariamente
tem sido a grande responsável pela conservação da agrobiodiversidade em todo o mundo. Esses
agricultores, ao manejarem plantas, animais, paisagens e interagirem entre si, com o ambiente
e o seu entorno, durante os processos sociais, de cultivo e de criação animal, geram e sustentam
um sistema próprio de conhecimentos, regido por princípios de justiça social, de direitos e res-
ponsabilidades compartilhadas em torno da conservação, uso e manejo da agrobiodiversidade
e das sementes crioulas.

Recursos genéticos
Patrícia Goulart Bustamante

A variabilidade que encontramos nas plantas, animais e microrganismos dentro de uma


mesma espécie (intraespecífica) ou entre espécies (interespecífica) é denominada de biodiversidade.
Se considerarmos a parte da biodiversidade que tem valor atual ou potencial para alimentação e
agricultura teremos os recursos genéticos.
Esse conceito de recursos genéticos foi utilizado pela primeira vez em 1970 no livro Genetic
Resources in Plants. Seus autores, Otto Frankel (australiano) e Erna Bennet (irlandesa), tiveram
papel fundamental nas conferências da Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO) realizadas entre 1961, 1967 e 1973, que alertaram para o risco da erosão
genética (diminuição da variabilidade genética), em consequência da expansão de modelos
agrícolas em que sementes uniformes, obtidas por meio de programas de melhoramento, são
associadas a uma série de outros produtos e recomendações denominadas de “pacotes tecno-
lógicos”, que prometem maior produtividade mas promovem a dependência do agricultor e a
uniformização dos cultivos.
Com a expressão recursos genéticos, enfatiza-se que os genes e as informações nele contidas
têm valor estratégico, social e econômico e por isso devem ser tratados como “recursos”. Para os
melhoristas de plantas e animais e também para os pesquisadores de instituições científicas, os
recursos genéticos representam matéria-prima essencial para os programas de melhoramento.
A diversidade genética precisa estar protegida para garantir a segurança alimentar da huma-
nidade, tanto no presente como no futuro. São muitos os exemplos históricos que evidenciaram e
S
comprovaram o risco dos cultivos uniformes para a segurança alimentar. O evento mais conhecido
é a “Grande Fome da Batata” (An Gorta Mór, em irlandês) que aconteceu na Irlanda entre 1845
e 1849. Naquela época, um único clone de batata, proveniente da América Latina, foi plantado

689
SEMENTES

na região. A batata era o principal alimento dos irlandeses. Nesse período, um fungo denominado
Phytophtora infestans contaminou os campos de batata. A falta de variabilidade genética fez com
que o impacto nos cultivos fosse de proporções catastróficas. Na ocasião, cerca de 1 milhão de
irlandeses morreram de fome e pelo menos a mesma quantidade de pessoas teve de emigrar. Existe
um monumento em Dublin, capital do país, que relembra a fome e a desesperança pela ausência
de diversidade na cultura da batata.
Conservação de recursos genéticos – ex situ, in situ e on farm (na roça)
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) desde a sua criação
reconhece a importância da diversidade das plantas cultivadas (recursos fitogenéticos) bem como
de animais e microrganismos para a segurança alimentar e nutricional. Na conferência sobre o
tema em 1967 um caloroso debate sobre como/quais os métodos que deveriam ser utilizados para
conservação de recursos fitogenéticos aconteceu entre os cientistas Erna Bennet e Otto Frankel,
já citados por terem sido os primeiros a utilizar esse termo/conceito.
Otto Frankel era partidário que a FAO adotasse como modelo padrão para o mundo todo a
conservação ex situ. Erna Bennett, que era irlandesa, liderava um grupo de cientistas que concor-
davam com a necessidade de se adotar formas de conservação ex situ, devido à alarmante erosão
genética no campo, no entanto também alertava que a conservação ex situ, caso se tornasse domi-
nante, poderia levar as variedades locais a perderem a sua capacidade de adaptação. Erna chegou
a afirmar que a forma “estática” de se conservar sementes, armazenando-as em refrigeradores, se
baseava em “conceitos museológicos” e que “o objetivo da conservação não deveria ser captar o
momento presente na linha evolutiva pois não há nenhuma virtude especial nisso, mas conservar
o material para que ele pudesse continuar a evoluir”. Erna não citou a importância da comple-
mentaridade entre as diferentes formas de conservação, mas lançou as bases para os conceitos de
conservação in situ/on farm. A conservação in situ, para a conservação dos recursos genéticos, no
campo, em sua própria região de origem e a conservação on farm para a conservação de recursos
genéticos realizada pelos agricultores em suas roças.
A terceira reunião da FAO, realizada em 1973, teve o objetivo de definir a estratégia para a
ampla conservação ex situ ao redor do mundo. Nessa mesma época estava sendo criada no Brasil a
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Em novembro de 1974 era criado, no âm-
bito da Embrapa, o Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen), com a missão de “viabilizar
soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação em recursos genéticos para a sustentabilidade
da agricultura brasileira”. Atualmente, a Embrapa, por meio do Sistema de Curadoria de Germo-
plasma, mantém mais de 200 mil acessos de plantas conservadas em seus bancos de germoplasma.
Na trajetória da conservação de recursos genéticos, iniciada nas conferências organizadas
pela FAO, instrumentos internacionais como a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e o
Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura (Tirfaa) evi-
denciaram a importância do manejo realizado pelos agricultores e dos conhecimentos de povos e
comunidades tradicionais para a conservação dos recursos genéticos. Tais instrumentos, embora
não tenham gerado ainda políticas específicas para o reconhecimento do papel dos agricultores
para a conservação dos recursos genéticos no Brasil, forneceram subsídios para programas e polí-
ticas que estimularam a conservação on farm, como o Plano Nacional de Agroecologia (Planapo),
Sementes do Semiárido e o Programa de Aquisição de Alimentos destinado à compra e distribuição
de sementes crioulas – o PAA Sementes.
O professor Paulo Kageyama (1945-2016), que foi diretor do Programa Nacional de Conserva-
ção da Biodiversidade, Secretaria de Biodiversidade e Florestas, do Ministério do Meio Ambiente
– Professor titular da ESALQ/USP, sempre defendeu que a tradução do termo conservação on
farm fosse a “conservação na roça”.

Guardiões da Agrobiodiversidade
Em seu artigo 9º o Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos para Alimentação e
Agricultura, assinado (2001) e ratificado (2006) pelo Brasil, portanto com força de lei, afirma:
As partes contratantes reconhecem a enorme contribuição que foi aportada e seguem apor-
S tando as comunidades locais e indígenas e os agricultores de todas as regiões do mundo, em
particular os dos centros de origem e diversidade das plantas cultivadas, para a conservação
e desenvolvimento dos recursos fitogenéticos que constituem a base da produção alimentar
e agrícola em todo o mundo.

690
SEMENTES

A maior parte das plantas que cultivamos e das quais nos alimentamos foi domesticada pelos
agricultores ao longo da história. Há plantas como, por exemplo o milho, que só existem devido
a interação entre o seu ancestral silvestre, o teosinte, e os agricultores que viviam no México há
cerca de 12 mil anos, mostrando a importância dessa relação para a nossa alimentação atual,
conservação de recursos genéticos e ampliação da diversidade genética.
Uma das iniciativas de conservação on farm (na roça) que merece destaque pela repercussão
e inspiração que trouxe para as ações de conservação realizada pelos agricultores no Brasil, foi
lançada pela Bioversity Internacional em 2009 e visava prestar um tributo aos guardiões da biodi-
versidade de diferentes cultivos em diversas regiões do mundo (Bioversity International, 2009). No
Brasil, a iniciativa de valorizar agricultores biodiversos, denominando-os de guardiãs e guardiões
da agrobiodiversidade repercutiu de tal forma que agricultores guardiões da Agrobiodiversidade
fazem parte do Comitê Estratégico do sistema de curadoria de germoplasma, que tem entre seus
objetivos “Promover e estimular a interface da conservação de RG com a sociedade, contribuindo
para definição dos direcionamentos do sistema de curadoria de germoplasma ao nível técnico e
estratégico”.
A iniciativa de reconhecer guardiões significou a valorização de indivíduos, famílias e co-
munidades que conservam os recursos genéticos “na roça”. As feiras de sementes e os encontros
de guardiões, ao promoverem a troca de sementes, promovem também a ampliação da diversidade
e a segurança alimentar. O trabalho dos guardiões, entretanto, ainda está muito focado na con-
servação em bancos locais de sementes, que mesmo promovendo a autonomia dos agricultores,
reforçam conceitos próprios da conservação ex situ, como técnicas de armazenamento, cuidados
com embalagens, inventário, além da necessidade de regeneração periódica dos acessos.
O desafio agora é ampliar o olhar para além das sementes e vislumbrar a conservação dos siste-
mas agrícolas que as produzem, suas práticas, tradições, conhecimentos e festas (rituais) associados.

Soberania Genética
Frei Sérgio Görgen

É a capacidade de um povo, de uma Nação, de controlar, deter e dispor de uma base genética
de seres vivos (sementes, mudas, raças animais e microrganismos de interesse) para as necessidades
do povo – alimentação, medicina, energia, insumos agrícolas, produtos veterinários, construções
etc. – e para o equilíbrio de seus biomas e ecossistemas. O controle nacional desta base genética
é questão essencial para a soberania política de uma nação. O controle desta base genética por
empresas multinacionais, como acontece hoje, vai na contramão da soberania e é um risco presente
e futuro para a soberania alimentar do povo e para a disponibilidade de medicamentos necessários
à saúde humana e animal.
O Plano Camponês do MPA-Brasil visa colocar em prática o princípio da soberania genética.
Para tanto propõe a recuperação da soberania genética do Brasil a partir das famílias, das comu-
nidades camponesas e dos territórios. As ações prioritárias nessa linha são:
• recuperar nossas sementes, raças e mudas, em suas variedades, em sua diversidade e em
quantidades significativas;
• buscar e desenvolver técnicas populares e replicáveis para recuperação, armazenagem,
conservação e melhoramento desta base genética;
• buscar e garantir autonomia científica e tecnológica na produção e melhoramento de
sementes e material genético, bem como das pesquisas e dos conhecimentos científicos
necessários;
• divulgar as experiências existentes visando construir e reconstruir uma cultura de resgate,
cuidado, conservação, melhoramento e multiplicação de sementes, raças e mudas sob
controle popular camponês.

691
SEMENTES

Referência
BIOVERSITY INTERNATIONAL. Disponível em: (https://www.bioversityinternational.org/
fileadmin/_migrated/uploads/tx_news/Geneflow_2009_1351.pdf. Acesso em: 31 mar. 2021.

Para saber mais


ALMEIDA, V. E. S. et al. Uso de sementes geneticamente modificadas e agrotóxicos no Brasil:
cultivando perigos. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 10, p. 3.333-3.339, out. 2017.
DIAMOND, J. Armas, Germes e Aço: os destinos das sociedades humanas. 15. ed. Rio de Janeiro
|São Paulo: Record, 2013. 317 p. Tradução de Silvia de Souza Costa Cynthia Cortes Paulo Soares.
Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/622169/mod_resource/content/1/Diamon-
d%2C%20Jared%2C%20Armas%2C%20Germes%20e%20A%C3%A7o.pdf. Acesso: 12 dez. 2018.
MELETTI, L. M. M. et al. Melhoramento genético do maracujá: passado e futuro. In: FALEIRO,
F. G.; JUNQUEIRA, N. T. V.; BRAGA, M. F. (eds.) Maracujá: germoplasma e melhoramento
genético. Planaltina, DF: Embrapa Cerrados, 2005. p. 54 - 78.
PIGNATI, W. A. et al. Distribuição espacial do uso de agrotóxicos no Brasil: uma ferramenta para
a Vigilância em Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 10, p. 3281-3293, out. 2017.

Materiais didáticos complementares


Série Sementes da Vida disponível no canal do YouTube da Articulação Semiárido Brasileiro:
https://www.youtube.com/user/asabrasil1/featured
Canal da ASPTA no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCfRvRTdz58FkPVese6Oz-
QmA
BioNatur Sementes Agroecológicas: https://www.bionatursementes.bio.br/
Site da ANA
A nova legislação de sementes e mudas no brasil e seus impactos sobre a agricultura familiar: http://
www.agroecologia.org.br/files/importedmedia/a-nova-legislacao-de-sementes-e-mudas-no-brasil.pdf
As Sementes da Paixão e as Políticas de Distribuição das Sementes na Paraíba: http://www.
agroecologia.org.br/files/importedmedia/as-sementes-da-paixao-e-as-politicas-de-distribuicao-
-das-sementes-na-paraiba.pdf
As sementes tradicionais dos Krahô: uma experiência de integração das estratégias on farm e ex
situ de conservação de recursos genéticos: http://www.agroecologia.org.br/files/importedmedia/
as-sementes-tradicionais-dos-kraho-uma-experiencia-de-integracao-das-estrategias-on-farm-e-
-ex-situ-de-conservacao-de-recursos-geneticos.pdf
A Associação Biodinâmica e o Desafio da Produção de Sementes de Hortaliças: http://www.
agroecologia.org.br/files/importedmedia/a-associacao-biodinamica-e-o-desafio-da-producao-de-
-sementes-de-hortalicas.pdf
A Produção de Sementes Registradas na nova legislação brasileira de sementes e mudas: http://
www.agroecologia.org.br/files/importedmedia/cartilha-sobre-sementes-crioulas.pdf
Semente Crioula é Legal: a nova legislação brasileira de sementes e mudas: http://www.agroecologia.
org.br/files/2012/03/Semente-Crioula-e-Legal.pdf
Sugestão de leitura – Sementes e Agrobiodiversidade no site da ASA Brasil: http://www.asabrasil.
org.br/sugestao-de-leitura?cat_show=138#categoria_img
Um lugar de vida para as sementes do Semiárido: a história de uma comunidade que cuida de suas
sementes: http://www.asabrasil.org.br/acervo/publicacoes?artigo_id=9564

692
SISTEMAS AGRÁRIOS

SISTEMAS AGRÁRIOS

A r aê L ombar di
P edro Iva n C hr istoffoli

A necessidade de analisar e descre- não acontece de forma isolada. Ela se


ver uma determinada realidade agrária realiza em uma complexa trama de ações
complexa, seja para processos educativos, internas em uma relação direta com
organizativos ou mesmo acadêmicos o que a circunda [ver Agricultura]. A
pode influenciar determinadas formas leitura histórica de um território ou
de pensar e agir em um determinado sistema agrário deve considerar tudo
território. O desafio está na utilização isso ao buscar conhecer como se dá (e
de um ferramental teórico-metodoló- se deu) a circulação de mercadorias (no
gico que possibilite uma compreensão agroecossistema, território e sociedade),
adequada dos fenômenos complexos que ou as mudanças na estrutura de poder
influenciam essa realidade agrária. O e/ou legislações e quais suas possíveis
presente verbete busca discutir a teoria influências na realidade dentre muitas
dos sistemas agrários, bem como o méto- outras questões, buscando compreender
do de Análise-Diagnóstico de Sistemas o quadro atual de correlação de forças
Agrários (ADSA) como um ponto de entre as classes sociais.
partida interessante. Para Deffontaines e Brossier (2000),
Veremos que essa análise-diagnóstico os sistemas agrários podem ser com­
servirá tanto para as Ciências Agrárias, preendidos como um objeto de análise
quanto para a Geografia, Biologia, Econo- e observação, produto de relações his-
mia, e outras, mas também para técnicos e tóricas, em um dado momento e em um
agricultores que incidam sobre determina- dado território, de uma sociedade rural
do território. Na França, essa abordagem com seu meio. Miguel (2009) cita que
começou a ser utilizada de maneira efetiva Mazoyer (1986) propõe uma definição
nas Ciências Agrárias nos anos 1950 e de sistema agrário como sendo “um modo
1960 pelo professor-pesquisador do Ins- de exploração do meio historicamente
tituto Nacional Agronômico (INA-PG) constituído e durável, um conjunto de
René Dumont (Miguel, 2009, p. 21). forças de produção adaptado às condições
A teoria dos sistemas agrários busca, bioclimáticas de um espaço definido e que
no exercício de leitura de territórios e sua responde às condições e às necessidades
realidade agrária, um método de análise sociais do momento” (p. 11), ou seja as
que permita entender e perceber, em relações sociais estabelecidas a partir da
grandes linhas, as transformações his- produção e sua ligação (em contradição
S
tóricas e a diversidade socioeconômica ou não) com as forças produtivas inseridas
e geográfica das agriculturas (Mazoyer; no território e/ou fora dele e em interação
Roudart, 2010, p. 44). A agricultura direta com a natureza.

693
SISTEMAS AGRÁRIOS

Sendo assim, é importante destacar como um todo”, em “uma combinação de


alguns pontos principais na teoria dos funções interdependentes e complemen-
sistemas agrários e consequentemente seu tares, que asseguram a circulação interna
método de análise: a questão histórica, a e as mudanças com o exterior” (p. 72).
geográfica e a leitura de sistemas. Para Petersen (2017) “sistema” deve
Como vimos, as mudanças (ou es- ser concebido, “simultaneamente, como
tabilidades) nos territórios estão carre- uma unidade do contexto e como uma
gadas de história, sendo assim, sofrem diferença em relação a esse contexto” (p.
influências da forma de ser dos modos de 32). Ou seja, compreendemos que um
vida anteriores. Por isso compreendê-la é agroecossistema ou um território estipu-
uma condição para a análise dos sistemas lado para o estudo (unidade, conforme o
agrários, onde não se quer tirar uma foto autor) terá suas características próprias
do momento estudado e isolá-lo, mas (seja do trabalho familiar, seja do que
sim compreender como historicamente cultiva, da forma que cultiva e cria ani-
aquele momento se consolidou a partir mais, forma de comercialização, reservas
de interações com as forças socioeco- ambientais etc.) que o diferencia dentro
nômicas e naturais, dentro e fora do de uma outra organização (socioeconômi-
território delimitado. ca e ambiental) que pode ser uma cidade,
Para isso, Mazoyer e Miguel irão uma comunidade ou um território maior.
dizer que a Essa unidade faz parte dessa organização
[...] compreensão das dinâmicas agrí- social e se diferencia dentro dela ao mes-
colas e agrárias passa, necessariamen- mo tempo. E essa relação terá influência
te, por um conhecimento aprofunda- de um para o outro.
do e sistemático do processo evolutivo Sendo assim, como operacionalizar e
e do contexto histórico onde operam organizar a síntese de um sistema agrário?
e se articulam as sociedades agrárias Como conhecer as formas de produção
[...] a compreensão do processo de do território, tais como quem produz,
formatação de uma agricultura exi- como produz e onde se relacionam no e
ge uma considerável apreensão das
com o agroecossistema estudado e outros
particularidades relacionadas a seus
sistemas agrários, territórios etc.?
aspectos intrínsecos ou internos [...]
e externos. (Mazoyer; Miguel, 2009, Essa operacionalização é realizada
p. 20). através da Análise-Diagnóstico de Siste-
mas Agrários (ADSA) (Miguel, 2009). O
Isso quer dizer que a evolução de autor esclarece que
cada tipo de produtor e de cada sistema
de produção é determinada por um con- o método se baseia em passos progres-
sivos, partindo do geral para o parti-
junto complexo de fatores ecológicos,
cular. Ele começa pelos fenômenos e
técnicos, sociais e econômicos que se pelos níveis de análises mais gerais
relacionam entre si (Incra/FAO, p. 10) (mundo, país, região etc.), termi-
historicamente. nando nos níveis mais específicos
S Para a leitura de sistemas, Mazoyer e (município, assentamento e unidade
Roudart (2010) irão dizer que implica em de produção) e nos fenômenos parti-
“traçar uma fronteira virtual entre esse culares (cultivos, criação etc.). (p. 11,
objeto e o resto do mundo e considerá-lo grifos do autor)

694
SISTEMAS AGRÁRIOS

Muitas vezes nos deparamos com (2010) sugerem decompor esses siste-
políticas de desenvolvimento rural que mas de agricultura em dois subsistemas
pouco ou nada revelam sobre a realida- principais: o ecossistema cultivado e o
de do território São pacotes fechados, sistema social produtivo.
generalistas, propondo a mesma análise O ecossistema cultivado pode se
e soluções para todas as realidades. Mas igualar ao que a agroecologia trabalha
a pergunta é: será que esses projetos per- como agroecossistema e sua leitura se
mitem explorar o potencial da região? dá ao decompor as áreas de produção
Há, nas unidades de produção, recursos em subsistemas como a horta, criação
para implementá-los? A mão de obra é de animais, o entorno da casa, a área
suficiente? Os recursos financeiros, os florestada, cada um com sua história,
equipamentos e os conhecimentos são usos, particularidade e interações. Nesse
suficientes? E os sistemas de produção sentido, os ecossistemas cultivados são
preconizados, existem na região? Quais fruto da história, da ação – passada e
foram os resultados alcançados com presente – das sociedades agrárias que os
estes sistemas por outros agricultores? ocuparam (Instituto Nacional de Colo-
(Instituto Nacional de Colonização nização e Reforma Agrária; Organização
e Reforma Agrária; Organização das das Nações Unidas para Agricultura e
Nações Unidas para Agricultura e Ali- Alimentação, s.d. p. 9) mas também das
mentação, s. d. p. 5). interações com seu entorno.
Ao se falar em diagnóstico da realida- A análise do sistema social produtivo
de histórica esses e muitos outros fatores busca conhecer as condições materiais da
devem ser levados em consideração, bem vida social e seus movimentos, que são
como a comercialização, as formas de caracterizados pelo sistema de produção
organização no território, as lutas sociais que eles praticam, e pela categoria social
históricas e atuais no território e suas a qual eles pertencem (Mazoyer; Roudart,
influências. 2010, p. 73), assim como pelas relações
Sendo assim, deve-se estabelecer cla- sociais de produção nas e com as quais
ramente os objetivos desse diagnóstico e se articulam. É nesse momento que se
delimitar o espaço geográfico. Qual a área busca compreender as relações históri-
de estudo: uma grande região, uma pe- cas na sociedade em questão, elucidar
quena região, um município, um distrito, como em um mesmo território grandes
um assentamento ou um agroecossistema? projetos (de agricultura, mineração e,
Existe algum sistema de produção ou até mesmo Unidades de Conservação)
algum aspecto da realidade que se deseja são implantados. Como a existência de
particularmente enfocar? (Instituto Na- camponeses, assentamentos de reforma
cional de Colonização e Reforma Agrária; agrária, comunidades tradicionais defi-
Organização das Nações Unidas para nem e coexistem em distintas formas de
Agricultura e Alimentação, s. d.). organizar o trabalho e a produção, muitas
Considerando que cada sistema vezes disputando territórios e espaços de
agrário é a expressão teórica de um tipo poder com projetos (territorialidades) de S
de agricultura historicamente consti­ empresas capitalistas ou de latifundiários.
tuído e geograficamente localizado (Mi- O sistema de produção seria, portanto,
guel, 2009, p. 31), Mazoyer e Roudart fruto da interação entre as atividades

695
SIST EM AS AGR Á R IOS

produtivas e os meios de produção. A Mais uma vez cabe reforçar a im-


primeira parte diz respeito à dimensão portância da análise histórica desses
histórica do sistema de produção, ou seja: processos, da sociedade, dos territórios
• como ele se alterou ao longo do e produtores a serem estudados. Sabemos
tempo (necessidade de desmate, que essa organização não surgiu de forma
mudanças de local da produção, espontânea, de uma hora para outra, mas
o que era produzido antes no sim é fruto de processos históricos em
local); que uma realidade será influenciada com
• as técnicas utilizadas (uso de a forma de ser dos processos ou modelos
agrotóxicos ou não, uso de ma- anteriormente existentes.
quinários ou não, formas de con- O que se propõe é buscar analisar
dução de rebanhos e etc.); e relacionar, por exemplo, como os
• identificar os meios (instrumen- projetos de colonização alteraram as
tos, ferramentas, mão de obra, realidades, seja com a escravidão e o
instalações, energia) utilizados extrativismo, passando por processos
para produzir e circular merca- de imigração ou migração que alteraram
dorias e energia; as relações sociais e com a natureza.
• o itinerário técnico, que quer Também, como as relações modernas
dizer cada etapa sequencial da entre governos locais (Estado) e os
produção, desde o preparo da fazendeiros ou grandes empresários
área, quantidade de aplicações influenciam no estabelecimento de po-
de adubos ou outros insumos, líticas públicas agrícolas ou ambientais
vacinações de rebanho etc. e; nos territórios, onde se insere a luta pela
• a relação com a natureza (conhe- terra por camponeses despossuídos, por
cimentos, relação de destruição comunidades tradicionais e seu modo
ou de reconstrução ecológica). de reprodução social, em detrimento
O próximo passo é buscar desvendar de grilagem de terras e especulação
as relações sociais de produção. Conhe- imobiliária, pelo estabelecimento de
cer as estruturas de poder envolvidas assentamentos rurais e as alterações que
no território que se apresentarão nas isso causam na realidade do território,
formas de organizações sociais, privadas nos municípios etc. Elucida-se o aspecto
e/ou públicas, como o Estado – que tem chave do controle da terra e do territó-
papel preponderante na dinamização de rio (e as territorialidades em disputa).1
classes no território – e como as associa- Se pensarmos na questão da agroeco­
ções, cooperativas, movimentos sociais, logia [ver Agroecologia], há o risco de,
sindicatos, grupos culturais etc. Tudo no momento da análise, focar apenas
isso se articula à estrutura de classes, por nos sistemas de produção, onde podemos
exemplo, na atuação do Estado para be- ter estudos e diagnósticos aprofundados
nefício de determinado setor latifundiário sobre as práticas utilizadas, porém se não
ou capitalista, na dinâmica e estruturas for feito um recorte histórico e social
S produtivas e políticas do agronegócio, na do processo não será possível visualizar
mineração e na disputa pela terra, ou no barreiras ou oportunidades históricas
setor industrial e a exploração de traba- ao seu avanço, tanto no âmbito político,
lhadores e camponeses. quanto social e econômico.

696
SISTEMAS AGRÁRIOS

Ao se cumprir essa etapa da leitura, da colonização, o sistema agrário das Ses-


de distinguir as diferentes formas de orga- marias, posteriormente o sistema agrário
nização produtiva, a proposta da ADSA do ciclo do charque e assim por diante.
para analisá-las é estabelecer uma classi- Já Moura e Lombardi (2010) utiliza o
ficação, uma tipologia de sua inserção no método ADSA para analisar os sistemas
sistema agrário: agrários presentes em um território es-
Reagrupando e classificando as uni- tabelecido, um pré-assentamento rural,
dades de produção agrícolas confor- onde se diferenciam sistemas de produção
me o sistema de produção praticado e manejo da agrobiodiversidade em rela-
por elas, em seguida classificando as ção à diferenciação nas forças produtivas
unidades de produção agrícolas que das famílias dentro do pré-assentamento.
praticam um mesmo sistema de pro- Para finalizar, como afirmamos no
dução por categoria social, o sistema começo, a opção pela teoria e método de
social produtivo de um sistema agrá- análise dos sistemas agrários se dá prin-
rio aparece como uma combinação
cipalmente por sua capacidade de análise
particular de um número limitado
histórica, de separar as condições sociais
de tipos de estabelecimentos definidos
técnica, econômica e socialmente [...] de produção, agrupar as particularidades
condicionado pela divisão do tra- existentes, destrinchá-las em subsistemas
balho que predomina na sociedade para conhecer a fundo seu funcionamento
da época. (Mazoyer; Roudart, 2010, (unidades), bem como ler a interação
p. 74 e 76) com o meio que levou àquele momento
A metodologia ADSA parte do pres- e àquelas decisões dentro do agroecos-
suposto que a realidade regional não é sistema na sua relação no território e/ou
formada por uma infinidade de sistemas sociedade (totalidade). E que sempre se
únicos, diversos e isolados. Ao contrário, deve atentar a não deixar a análise muito
existem configurações de unidades pro- descritiva e pouco analítica na relação
dutivas que, por uma série de forças es- dos agroecossistemas com os territórios e
truturadoras e dinamizadoras, direcionam suas demais inserções e interações. Não
um sentido de evolução ou delimitação basta apenas analisar as relações internas
entre e dentro dos sistemas agrários. Esses de uma porção delimitada de território.
sistemas produtivos, que se repetem várias Assim, teríamos um processo de
vezes, ainda que com algumas variações análise do sistema agrário que parte de
menores, podem ser agrupados em uma uma visão ampla e busca conceituar
tipologia que permite, de uma forma diferentes tipologias verificadas ao nível
simples, porém não simplista, resumir a de cada unidade de produção com os
complexidade da realidade territorial. elementos internos e externos, conjun-
Exemplos disso podem ser vistos em turais e estruturais, aglutinadores e des-
Miguel (2009), em que o autor faz uma trutivos etc. O método permite, melhor
análise histórica da evolução e diferencia- do que muitos outros, incorporar uma
ção dos sistemas agrários do Rio Grande leitura relacionando as singularidades,
particularidades com a totalidade dos S
do Sul, onde visualiza que no mesmo
território sistemas agrários indígenas sistemas agrários no permanente e dialé-
coexistiam (e coexistem) com a chegada tico movimento presente na realidade
histórico-material das regiões agrárias.

697
SIST EM AS AGR Á R IOS

Por isso também permitiria a proposição agrária, ela apresenta limitações que
de políticas de desenvolvimento rural possibilitariam e mesmo exigiriam uma
mais consistente com uma estratégia de complementação com outros elementos
construção agroecológica. teórico-metodológicos.
A Figura 16 (ver, adiante, p. 796) Uma tentativa nesse sentido foi
busca ilustrar um pouco todos esses pro- desenvolvida no Brasil pela Articulação
cessos e passos metodológicos na leitura Nacional de Agroecologia (Petersen et
de um sistema agrário: al. 2017). Neste livro, os autores irão
• o ecossistema cultivado que é descrever um método de análise eco-
onde o trabalho com a natureza lógico-econômica de agroecossistemas
é realizado. Onde se conhecem buscando colocar “a centralidade do
os subsistemas (sistema produti- trabalho nos processos de produção e
vo 1, 2...x) e já os relaciona na reprodução social” (p. 23) dos “proces-
produção, distribuição e troca sos de intercâmbio de matéria e energia
de mercadorias e energia com o entre a esfera natural e a esfera social
sistema social produtivo em ques- [...] por meio de fluxos econômico-eco-
tão, a sociedade que o circunda; lógicos” (p. 29).
• na relação do ecossistema culti- Outra vertente possível foi aplicada
vado com o sistema social pro- na análise de assentamentos e também
dutivo surgirão as tipologias dos na Região do Vale do Ribeira paulista
sistemas produtivos; (Lombardi, 2016; Lombardi; Moura,
• o sistema social produtivo irá 2013). Estes últimos buscam aplicar a
delimitar ou expandir, as relações ADSA em um pré-assentamento rural,
(produção, distribuição e tro- tomando a análise de fluxos nos agroe-
ca) destas unidades de produção cossistemas como forma de compreender
com a sociedade que a circunda, as contradições internas e externas em
principalmente em sua relação de sua relação no metabolismo social na
classe; produção e seu controle, bem como
• essas relações de produção que buscar demais contradições como na
estão em ligação e contradição relação com o consumo e circulação da
com as forças sociais e de classe produção. Lombardi (2016) utilizou a
presentes no território (forças ADSA como método de compreender
produtivas) permitirão relacionar as relações históricas na formação do
a unidade de produção delimita- território do Vale do Ribeira em sua
da com o território e a sociedade porção paulista.
que a circunda. Para os limites deste verbete, é con-
veniente chamar a atenção para o fato
Alguns limites do método usual da de que a metodologia de Análise Diag-
Análise-Diagnóstico dos Sistemas nóstico dos Sistemas Agrários não incor-
Agrários (ADSA) pora adequadamente uma perspectiva
S Ainda que a metodologia da Aná- dialética de análise da realidade agrária
lise-Diagnóstico dos Sistemas Agrários regional. Contudo, sua abordagem não
(ADSA) contribua para uma leitura é incompatível, no sentido de poder ser
mais complexa e histórica da realidade complementada, ou melhor, reformu-

698
SISTEMAS AGRÁRIOS

lada, de forma a assegurar uma leitura orientado para expansão e impulsionado


dinâmica dessa totalidade, inserindo-se pela acumulação. Esse será o princípio
as contradições de classe, e os projetos delineado para a consolidação/formação
antagônicos que demarcam os projetos de um território. Harvey (2005) irá com-
socioeconômicos e produtivos nos terri- pletar esse pensamento, dizendo que
tórios rurais. [...] a acumulação e a expansão, além
Sem isso, pode-se correr o risco de da necessidade de produzir e absorver
apenas classificar formas de agricultura excedentes de força de trabalho e
como sistemas agrários, como debatido capital produzem pressões em uma
anteriormente, sem recorte histórico e região [...] A capacidade tanto do
de classe, o que se resumiria a apenas capital como da força de trabalho de
sistematizar e/ou classificar formas de se moverem, rapidamente e a baixo
agricultura específicas não levando em custo, de lugar para lugar depende
da criação de infraestruturas físicas
consideração os movimentos, as contra-
e sociais fixas, seguras e, em grande
dições e as tensões do funcionamento
medida, inalteráveis. A capacidade de
de um território e de uma sociedade, dominar o espaço implica na produ-
composta por classes sociais antagônicas ção de espaço. (p. 145-147)
em um devir de lutas e contradições,
socioeconômicas e ambientais. Essa expansão constante que re­
Como forma de compreender essa troalimenta o modo de produção e ocu-
movimentação (unidade e totalidade), pação do território implica na alteração/
Netto (2011) sugere que as condições ma- produção de espaços que permitam esse
teriais da vida social não envolvem apenas movimento acontecer, como novas ativi-
a produção, mas articulam ainda a dis- dades e tecnologias e infraestruturas fixas
tribuição, a troca (e a circulação, que é (de transportes, fabris, energéticas etc.).
“a troca considerada em sua totalidade”) Isso quer dizer que as forças produtivas
e o consumo, em que “estes momentos irão se alocar de forma a forjar e garantir
(produção, distribuição, troca, consumo) espaços de expansão e acúmulo (Lom-
não são idênticos, mas todos são elemen- bardi, 2016, p. 17). A sua identificação é,
tos de uma totalidade, diferenças dentro portanto, um imperativo para se poder
de uma mesma unidade” (Netto, 2011, p. conhecer a fundo as determinações que
39). Harvey (2005) irá dizer que “Marx impulsionam as diversas unidades produ-
observa a produção, a distribuição, o tivas e de vida social num determinado
consumo e o reinvestimento como fases território.
(ou momentos) separadas na totalidade Essa estratégia do capital e das classes
do processo capitalista de produção” sociais a ele associadas em geral implica
(Harvey, 2005, p. 43). E a compreensão também na apropriação de espaços e
das diferenciações das unidades na tota- posições dentro do Estado burguês, o que
lidade é um dos desafios ao se fazer uma resulta em acesso a benesses e favoreci-
leitura da realidade. mentos legais e extralegais, econômicos e
Ao estudarmos a formação/realiza- sociais, que contribuem para ampliar a es- S
ção do processo capitalista de produção cala de acumulação econômica, sem que
nos territórios há que se considerar que, isso necessariamente signifique superio-
como diria Mészáros (1999), o capital está ridade técnico-econômica dos segmentos

699
SIST EM AS AGR Á R IOS

dominantes (em especial do agronegócio) realização, bem como o funcionamento de


presentes no território. cada sistema agrário enquanto elementos
Sendo assim, se focarmos na leitura de uma totalidade. Totalidade essa com
das condições criadas no território para condicionantes históricos que constroem
realização da produção, distribuição e e destroem essas relações anteriormente
consumo de mercadorias e em um nú- descritas. Sendo assim, podemos definir
mero limitado de tipos de estabelecimentos que cada sistema agrário é a expressão
definidos técnica, econômica e socialmente, teórica de um tipo de agricultura histo-
poderemos nos aproximar mais da realida- ricamente construído e geograficamente
de na análise de sistemas agrários. localizado (Mazoyer; Roudart, 2010, p.
E é neste movimento histórico que 75) inseridos num devir histórico mar-
é necessário aprofundar a leitura. No cado pela luta de classes e pela dinâmica
funcionamento da sociedade e suas clas- de acumulação de capitais, que vão con-
ses, a divisão do trabalho, suas formas de formando territorialidades em disputa.
Referências
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FOSTER, J. B. A Ecologia de Marx – Materialismo e Natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

700
SISTEMA DE CERTIFICAÇÃO AGROECOLÓGICA

Nota
1
O conceito de territorialidade busca expressar as relações de poder que se estabelecem sobre o
espaço. Por relações de poder podemos entender as narrativas, os projetos, as afirmações históricas,
as iniciativas econômicas das diversas classes sociais e grupos em disputa. Um grupo quilombola
em luta pelo reconhecimento de uma área, busca afirmar sua territorialidade, contra o território do
agronegócio que expulsou essa comunidade, por exemplo. Uma cooperativa agroecológica camponesa
afirma uma territorialidade em disputa contra o modelo produtivo, de exploração e de dominação
política do agronegócio.

SISTEMA DE CERTIFICAÇÃO AGROECOLÓGICA

K at ya I saguir r e
Naiar a B ittencourt

A preocupação em comprovar a ori- produtores/as voltados/as ao mercado


gem da produção surgiu pela exigência da de exportações, os quais defendiam a
União Europeia e a reformulação de sua criação de certificadoras externas as
política de importação, que se deu pela quais realizariam as inspeções por meio
publicação, no ano de 1991, da Council de auditoria. A segunda proposta surgia
Regulation (CEE 2092). Essa regulamen- das entidades e sujeitos do movimento
tação estabeleceu padrões de produção, agroecológico, o qual evidenciava a ne-
medidas de inspeção e determinou a cessidade do reconhecimento das estra-
certificação para a importação, o que tégias de certificação realizadas por meio
influenciou o início dessas discussões da participação direta das agricultoras e
nos países exportadores. Posteriormente, agricultores. Também defendiam a não
a normativa da União Europeia de n. obrigatoriedade da certificação para
45011, do ano de 1995, reconheceu que abastecimento dos mercados locais uma
a avaliação da conformidade orgânica vez que nesses espaços a confiança é ge-
seria prestada por um sistema de certifi- rada pela proximidade entre agricultores/
cadoras denominado de “terceira parte”, as e consumidores/as.
composto por empresas privadas ou au- Os debates e as práticas sociais dos
toridades públicas que se encarregariam sujeitos do movimento agroecológico
de vistoriar as propriedades e a produção resultaram no reconhecimento pela lei
mediante auditoria. dos Sistemas Participativos de Garantia
A iniciativa europeia pressionou os (SPGs) para comprovação da origem e
países exportadores a elaborarem suas da conformidade da produção. A tra-
normativas. Nos debates iniciados no jetória do movimento agroecológico
S
Brasil, a partir de 1994, destacavam- nacional é importante não apenas pela
-se duas posições distintas. A primeira institucionalização da certificação parti-
envolvia instituições e organizações de cipativa, mas sim, por estar integrado nas

701
SIST EM A DE CERT I F ICAÇÃO AGROECOLÓ GICA

mobilizações sociais “que enfrentaram pela Certificação por Auditoria (art.


tendências históricas de marginalização 29, § 2º). A identificação se dá com o
e precarização das condições de vida dos uso de um selo que é válido para todo
trabalhadores e das trabalhadoras rurais” o território nacional (art. 30). O selo
(Londres; Monteiro, 2017, p. 80). Suas permite identificar qual foi o sistema de
contribuições, continuam os autores, verificação utilizado.
“demonstram o grande potencial da A certificação por auditoria é aquela
agroecologia para a construção de um forma pela qual se contrata uma empresa
projeto de desenvolvimento alternativo certificadora externa ao processo de
aos padrões predatórios hoje dominantes produção, pública ou privada, a qual
de ocupação dos territórios” (Londres; se encarregará de todo o processo. E a
Monteiro, 2017, p. 80). certificação via Sistemas Participativos
A Lei n.. 10.831, de 24 de dezembro de Garantia, é aquela na qual o proces-
de 2003, definiu os sistemas orgânicos so é desenvolvido coletivamente pelas
de produção agropecuária (art. 1º) e famílias agricultoras, em conjunto com
reconheceu os diferentes sistemas de as entidades de assessoria, os quais se
certificação existentes no país (art. 3º, § reúnem em torno de uma pessoa jurídica,
2.o) (Brasil, 2003). Essa lei foi a primeira a criada para esse fim, que é o Organismo
tratar da agroecologia como um sistema Participativo de Avaliação da Confor-
orgânico de produção. O reconhecimen- midade (Opac). A norma excepciona a
to da agroecologia como política pública certificação para os casos de venda direta
nacional aconteceu posteriormente, com (conforme o artigo 28 do Decreto n.
a publicação do decreto n. 7.794, de 20 6.323/2007) (Brasil, 2007) e determina
agosto de 2012, que estabeleceu a Políti- o cadastro e a formalização via uma
ca Nacional de Agroecologia e Produção Organização de Controle Social (OCS).1
Orgânica (Pnapo) (Brasil, 2012). Em Assim, os SPGs são aqueles siste-
complementação à Lei n. 10.831/2003 mas de certificação agroecológica que
foi publicado o decreto n. 6.323, de 27 de seguem as regras do Sisorg e do Mapa.
dezembro de 2007 (Brasil, 2007), o qual No entanto, o significado dos sistemas de
criou o Sistema Brasileiro de Avaliação certificação agroecológica é mais amplo
da Conformidade Orgânica (Sisorg), do que os SPGs. Isso porque os sistemas
de responsabilidade do Ministério da de certificação agroecológica acolhem
Agricultura, Pecuária e Abastecimento os processos e metodologias para criação
(Mapa) (Brasil, 2016). de redes de reciprocidade e credibilidade
A lei n. 10.831/2003, em seu artigo das agriculturas familiar e camponesa,
3º, estabelece que a comercialização de independentemente de estarem esses
produtos orgânicos e agroecológicos procedimentos já organizados de acordo
deve seguir uma metodologia de certifi- com o que determina a lei.
cação (Brasil, 2003). O Sistema Sisorg, Um dos casos pioneiros da certifica-
criado pelo Decreto 6.323/200 (Brasil, ção agroecológica no país é o desenvolvi-
S 2007), estabelece que a verificação da do pela Rede Ecovida de Agroecologia.
conformidade da produção pode ser Sua metodologia é referência e nasceu
feita através Sistemas Participativos de da reação à proposta de certificação pela
Garantia da Qualidade Orgânica ou terceira parte do final dos anos 1990. Seu

702
SISTEMA DE CERTIFICAÇÃO AGROECOLÓGICA

selo foi desenvolvido antes da criação do Nesses debates, a agroecologia é pensada


selo federal do Sisorg. Interessante obser- em sua multidimensionalidade, ou seja,
var que na descrição da certificação, a enquanto ciência, técnica e política para
Rede Ecovida adverte que o uso do seu a produção de alimentos saudáveis em
selo ressalta “a preocupação com o meio uma concepção que vai além da mera
ambiente para além das exigências le- rentabilidade ou lucratividade.
gais, estímulo à organização das famílias E assim os sistemas de certificação
produtoras, incentivo à transformação agroecológica tem em sua essência a
comunitária dos alimentos, prioridade defesa de um projeto participativo, de
aos circuitos curtos de comercialização” geração de credibilidade, de trocas de
(Rede de Agroecologia Ecovida, 2020). experiências e saberes locais e tradi-
Desse exemplo se colhe que os sis- cionais, que pensam a alimentação
temas de certificação agroecológica saudável como integrada a um processo
seguirão as diretrizes para a agricultu- de reprodução sociocultural. Os siste-
ra “orgânica” previstas no Decreto n. mas de certificação agroecológica que
6.323/2007 (Brasil, 2007) e as diretrizes surgem do projeto de reforma agrária
mais recentes do artigo 3º do Decreto popular, por exemplo, procuram valo-
n. 7.794/2012 (Brasil, 2012), que trata rizar experiências de auto-organização
da Política Nacional de Agroecologia desenvolvidas por agricultoras, agricul-
e Produção Orgânica. No entanto, os tores, povos originários e tradicionais
grupos têm a liberdade para comple- cujas agriculturas não estão restritas à
mentar, ressaltar ou até mesmo criar concepção da agroecologia como um
suas diretrizes. Isso porque os sistemas nicho de mercado. Como se lê da Carta
de certificação agroecológica surgem política do IV Encontro Nacional de
do agir social e não estão limitados ao Agroecologia (2018)
que dispõem as normas do Estado. Por São experiências que resgatam as
exemplo, dentre as finalidades descritas identidades alimentares regionais e
no estatuto da Associação Ecovida de reforçam a noção de comida como
Certificação Participativa se encontra a patrimônio biocultural e alimentar.
preocupação em “promover a igualdade Os sistemas alimentares que quere-
de oportunidades e direitos entre ho- mos são aqueles que produzem comi-
mens e mulheres” (Centro Paranaense da de verdade no campo e na cidade,
de Referência em Agroecologia, 2018, que valorizam a agrobiodiversidade,
os alimentos in natura e regionais,
p. 2), em complementação ao que esta-
com o protagonismo das mulheres,
belece o inciso VII ao art. 3º, da Pnapo
o respeito à ancestralidade negra,
(Brasil, 2012). indígena e às tradições de todos os
Essa observação é relevante para povos e comunidades tradicionais,
recordar que as diretrizes de um sistema além do resgate das identidades,
de certificação seguem a proposta agro- memórias e culturas alimentares
ecológica, a qual é construída no debate próprias da população brasileira.
coletivo e popular das entidades de asses- Comida de verdade não mata nem S
soria à agricultura familiar e camponesa, por veneno, nem por conflito. (p.11)
dos movimentos sociais e das organiza- O reconhecimento pela lei dos sis-
ções da sociedade civil, dentre outros. temas de produção agroecológica foi

703
SIST EM A DE CERT I F ICAÇÃO AGROECOLÓ GICA

importante, pois demonstrou a força da da agrobiodiversidade. Ou seja, experi-


ação popular. O desafio dos Sistemas ências que sejam capazes de reconectar
Participativos de Garantia, que são os gentes, natureza e culturas.
sistemas de certificação agroecológica A segunda característica é o diálogo
autorizados pelo Sisorg, é manter a es- de saberes. Nas visitas técnicas que são
sência do projeto agroecológico, isto é, feitas para verificar a regularidade das
de entender a produção de um alimento áreas agroecológicas, por exemplo, há
saudável como um processo socialmente uma preocupação em garantir efetivas
justo e respeitoso dos ciclos da natu- condições de participação para todas e
reza e do bem-estar animal, capaz de todos os envolvidos. É, portanto, uma
evidenciar as contradições do modelo construção coletiva, na qual o saber
hegemônico de produção agroalimentar técnico e os saberes populares se en-
vigente. O pensar agroecológico procura contram, sem prevalência de um sobre
restabelecer a conexão com a terra, com o outro, mas sim, que procura valorizar
a vida, denunciando todas as violências a experiência da troca de conhecimentos
que o modelo hegemônico de produção para sua multiplicação e continuidade.
exportadora promove aos humanos, não A terceira característica consiste na
humanos, florestas, campos e águas. É promoção das redes de credibilidade,
pensar na alimentação saudável como isto é, de criar laços de confiança en-
um princípio que resguarda os projetos tre as famílias agricultoras e os grupos
de vida dos/as agricultores/as e, com consumidores, buscando alternativas de
isso, transmite conhecimento, que se comercialização que aproximem campo-
representa na conservação da agrobio- -cidade tais como os circuitos curtos, as
diversidade, das sementes, das culturas. vendas de cestas, as feiras e a participa-
Para isso, é preciso entender que os ção nos programas de compras públicas
sistemas de certificação agroecológica [ver C onstrução S ocial de M ercados ;
são dinâmicos, se constroem e se recons- Compras Públicas de Alimentos].
troem cotidianamente, pois nascem da Por essas características se pode
troca, da confiança e do diálogo entre dizer que o sistema de certificação agroe-
sujeitos. Nesse entendimento os sistemas cológica é um processo comunicacional,
de certificação agroecológica possuem que estabelece no diálogo de saberes a
três características. A primeira decorre aprendizagem que dá condições à exe-
da afirmação de que o seu objetivo não cução de projetos de vida. Seu sentido
é apenas fornecer produtos saudáveis é o de estimular a autonomia. Para falar
para o mercado, mas sim, incentivar a de autonomia vale recordar os ensina-
autossuficiência e o respeito aos ecossis- mentos de Paulo Freire, para o qual a
temas. A autossuficiência busca garantir prática educativa-crítica é aquela que se
a qualidade de vida das famílias e a maior preocupa com a construção da liberda-
independência do mercado. O respeito de, a qual irá preencher o espaço antes
ao ecossistema consiste em valorizar o ocupado pela dependência e, que nos
S manejo e o uso de técnicas que articulem dá a condição de viver a experiência de
agricultura e florestas, por exemplo, ou nos assumirmos como seres pensantes e
que incentivem expe­riências de menor transformadores, criadores e realizadores
impacto ambiental e de conservação de sonhos (Freire, 1996, p. 19).

704
SISTEMA DE CERTIFICAÇÃO AGROECOLÓGICA

O objetivo de um sistema de certifi- Em resumo, os sistemas de certifi-


cação agroecológico é o de demonstrar cação agroecológica são estratégias de
que a produção de um alimento saudável aprendizagem comunicacional em defesa
não está restrita a mera adaptação dos da agrobiodiversidade e da vida, que es-
espaços de produção das áreas rurais ao timulam a reflexão acerca do que, como
que determinam os padrões de controle e para quem produzir. Por fim, o selo de
das instruções normativas, isto é, ele um sistema participativo que comprova
estimula repensar a área rural como a origem agroecológica é muito mais do
um todo. Nessa linha de raciocínio, é que um produto livre de agrotóxicos, seu
possível dizer que suas práticas pensam a núcleo reside na transformação socioam-
transição agroecológica como uma forma biental da política agroalimentar, na defesa
de atender ao argumento constitucional da reforma agrária popular, na promoção
da função social, que aqui se concentra da soberania e da segurança alimentar e
na terra e não na forma abstrata da nutricional e do respeito ao direito humano
propriedade, seguindo o pensamento de e fundamental à alimentação adequada e
Carlos Frederico Marés (2003). culturalmente adaptada.
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Para saber mais
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705
SIS T E M AT I Z AÇ ÃO DE E X PER I Ê NCI A S AGROE C OL Ó GIC A S

ISAGUIRRE-TORRES, K. R. Sistemas participativos de garantia: os sujeitos da ruralidade e seus direitos


na sustentabilidade socioambiental. 269 f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento).
Setor de Ciências da Terra, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. Disponível em: https://
www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/27440/R+-+T+-+ISAGUIRRE-TORRES,+KA-
TYA+REGINA.pdf?sequence=1. Acesso em: 3 set. 2019.

Nota
1
“Para o cadastro da OCS, ela deve estar ativa, possuir formas de controle e registro de informações
que sejam capazes de assegurar a qualidade orgânica dos produtos e identificar claramente que
produtor é responsável por cada produto. Além disso, devem estar descritas as formas de controle
social que serão adotadas pelo grupo. Os produtores assinam um Termo de Compromisso juntos,
comprometendo-se a atender à Lei n. 10.831/03 (Brasil, 2007), ao Decreto n. 6.323/07 (Brasil, 2007)
e aos demais regulamentos da produção orgânica em vigor. Como grupo, todos se responsabilizam
por todos. Após o cadastramento da Organização de Controle Social (OCS), o produtor será inserido
no Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos e receberá uma Declaração de Cadastro de Produtor
vinculado a OC” (Brasil, 2016).

SISTEMATIZAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS
AGROECOLÓGICAS
C r isthia ne O liveir a da G r aça A mâ ncio
Natália A lmeida S ouza

A Educação Popular recorre à siste- para a alimentação, não separam o ser


matização de experiências como recurso humano e a natureza. Sob este viés as
pedagógico para a construção da autono- relações entre práticas biológicas e prá-
mia e das capacidades de contraposição ticas sociais, capacidade de adaptação
à condição de exclusão e opressão que as e resiliência. São diferentes trajetórias,
classes populares vivenciam cotidiana- estratégias e percursos que resistem e se
mente. Tendo isso em vista, este verbete contrapõem a práticas de ordenamento
tratará da sistematização de experiências social e econômico excludente que,
em agroecologia. seja na cidade seja no campo, prevalece
No Brasil são inúmeras as expe­ em diferentes contextos. As iniciativas
riências protagonizadas por agriculto- em marcha tecem grande diversidade
res, agricultoras, povos das águas e das de práticas pedagógicas formais e não
florestas cuja relação com a natureza e formais compondo um rico quadro a
suas formas de produção de alimento partir do qual a agricultura vem sendo
S tecem a história biocultural de nosso ressignificada no cotidiano de múltiplas
povo. Em uma perspectiva biocultural, práticas nas quais o alimento é o ponto
cabe entender que as atividades de trans- de encontro para inúmeras camadas de
formação da natureza, especialmente diálogos, reflexões e ações possíveis.

706
SIS T E M AT I Z AÇ ÃO DE E X PER I Ê NCI A S AGROE C OL Ó GIC A S

Ao compreender que estas experiên- tem se empenhado em aprender com o


cias são singulares nas suas expressões, processo vivido nas experiências experi-
surge então a necessidade de, em um mentadas e reconhecer a multiplicidade
processo de análise e acúmulos com e de vozes e percepções sobre elas. Ou seja,
a partir delas, recontá-las de maneira a romper com a forma convencional de
aprender a partir de sua trajetória, suas síntese das experiências em que diferen-
singularidades e semelhanças, sem per- tes visões são apenas reunidas em uma
der de vista suas estratégias criativas e os percepção geral, comumente retratada
desafios ainda a transpor. Recuperar me- pela fala dominante no grupo, e olhar a
mórias vividas a partir da fala daquelas/ partir do interior da experiência, gerando
es que a experienciaram consiste então condições pedagógicas que permitam
em uma abordagem sensível de interação a análise e a apreensão da r­ ealidade e
entre os sujeitos, implica ainda em orga- a construção de capacidade de ação
nizar de maneira gráfica (escrita ou não) para transformá-la. A este processo
os processos relacionados à experiência social chamamos de Sistematização de
em uma dinâmica de produção coleti- Experiências. As primeiras rodas de sis-
va de conhecimentos. Portanto, não é tematização na perspectiva da educação
possível sistematizar sem a presença e popular foram registradas na década de
participação ativa de quem vivenciou 1960, em países Latino-Americanos,
as histórias, pois sem a prática social inspirados em uma práxis da experiência
da vivência não há sentido na práxis,1 popular de construção do conhecimento.
e é somente nela que a aprendizagem No Brasil, ela toma corpo em 1972, no
se constrói, é nela que os sujeitos se Seminário Latino-Americano de Serviço
constituem. Social. Nos últimos 20 anos, podemos
citar vários sujeitos inspiradores desta
A sistematização de experiências – proposta, entre elas temos Elza Falkem-
quando o corpo se transforma em bach, João Francisco Souza, a dedicação
corpo percebedor na práxis da Confederação Nacional
Na América Latina, com o enraiza- dos Trabalhadores na Agricultura entre
mento de práticas populares de educação outras experiências de movimentos so-
pautadas na participação ativa dos sujei- ciais ligados à agroecologia e agricultura
tos, na contextualização da percepção de familiar como a Articulação Nacional de
mundo, na valorização das práticas con- Agroecologia [ver Articulação Nacional
cretas dos povos, de seus conhecimentos, de Agroecologia].
de suas culturas e de seus saberes, em Assim, é pré-condição para a sis-
grande parte possíveis pela oralidade, tematização de experiências que as/os
foram se consolidando práticas pedagó- envolvidas/os nas atividades sistemati-
gicas da práxis, da autonomia e da pers- zadoras tenham participado dela e com-
pectiva da ação crítica sobre a realidade. preendam que os resultados identificados
Ao considerarem a complexidade das e percebidos são legítimos e devem ser
experiências interculturais vivenciadas, considerados, reconhecidos e respeitados S
um grupo de educadores populares com- independente dos interesses específicos
prometidos com uma rede de educação que estejam em jogo. Ou seja, sistematizar
popular na América Latina e Caribe experiências envolve uma análise crítica

707
SIS T E M AT I Z AÇ ÃO DE E X PER I Ê NCI A S AGROE C OL Ó GIC A S

e sensível das próprias práticas e, apesar Portanto, sistematizar experiências a


de, em grande medida, tratar de acertos, partir das abordagens populares assume
ela também aponta limites e fragilidades pelo menos quatro dimensões, sendo
que merecem ser percebidas e acolhidas elas: epistemológica, pois há produção do
por suas/seus protagonistas. A sistemati- conhecimento gerada por quem viven-
zação de experiências desempenha um ciou o processo (pluriepistemologias);
papel objetivo de provocar o exercício da ética, pois o instrumento de investigação
reflexão sobre a ação refletida de maneira é utilizado por quem também viveu
que, para além da avaliação, ela permita a experiência para, enfim, gerar co-
o desenvolvimento de capacidades e de nhecimento identitário que requer do
fortalecimento identitário nos sujeitos das outro o respeito e a legitimidade das
histórias. Dito isto, sistematizar experiên- múltiplas vozes; política, pois oportuniza
cias à luz da educação popular estabelece com os sujeitos envolvidos espaços de
processos de animação e de facilitação comunicação e diálogo, e a partir deles
orientado por sujeitos. aprender; pedagógica, pois é pelo processo
Para que a sistematização de expe- percorrido pelos sujeitos da experiência,
riências tenha legitimidade e contribua confrontando lógicas e interpretações di-
com o desenvolvimento da capacidade ferenciadas, que a apropriação acontece
crítica dos sujeitos recomenda-se que (Jara, 1994).
facilitadores e participantes pactuem Acrescentamos ainda a dimensão
compromissos éticos e estéticos que en- êmica própria da práxis da educação
volvem a escuta profunda, a empatia, o popular,2 onde a sistematização de ex-
respeito à diversidade, a autorreflexão, a periências contribui para o processo de
autocrítica e a disponibilidade à mudança. valorização, afirmação e, muitas vezes,
Além dessas dimensões, a confiança é de ressignificação da cultura em um dado
fator preponderante. Narrativas de fatos, território. Pois, entre suas estratégias e
sentimentos, reações que no processo de objetivos se propõe a produzir narrativas,
sistematização de experiências podem valorizar linguagens e sentidos pelas/pelos
emergir em um grupo nem sempre são participantes ativas/os das experiências.
objetivados, esperados, pois, o “recontar Assim, a sistematização de experiências
de uma experiência” se dá na externali- ocorre em um ambiente de contato/com
zação do que ela significou para quem a tato e de desconforto pedagógico, pois é,
viveu, na polissemia dos acontecimentos e justamente, nas contradições, nas incom-
valores atribuídos a ela. O ato de produzir pletudes e nas ausências que a consciência
e dar sentido ao que foi vivido acontece se abre para o novo e rompe.
dentro das categorias analíticas, temáticas Experiências radicais de ser, carre-
ou perguntas geradoras compartilhadas gadas de sabedoria e lida, precisam
por um determinado grupo social. Dito virar letra, palavra e página para
de outra maneira é importante reforçar compor história. Para não se perde-
que a sistematização não pode ser con- rem em cacos – de mim, de nós, de
S fundida com uma síntese descritiva ou vida –, precisam ser registradas. Para
mesmo etnográfica, sem demérito algum se constituírem em cenário humano
destas outras formas de visibilização de e rumo, significando o estar no mun-
do. (Falkembach, 1995b)
experiências.

708
S I S T E M AT I Z A Ç Ã O D E E X P E R I Ê N C I A S AG R O E C O L Ó G I CA S

Neste sentido, a sistematização diz intencionalmente planejada há a neces-


respeito a um conjunto de processos sidade de ruptura reflexiva tanto com
pedagógicos e não se limita à realização o senso comum (agarra-se ao objeto
de uma metodologia em relação a outra. percebido) quanto com o conhecimen-
Portanto, é importante ter claro qual to da ciência (apropriar-se do objeto/
será o recorte da experiência que será construído).
objeto de análise a ser sistematizado, se A sistematização de experiências,
existem referenciais teóricos ou práticas então, pode ser entendida também como
populares que sejam pontos de partida, um processo de pesquisa e investigação
dados secundários ou informações de aplicada ao processo de mudanças sociais
apoio sobre o objeto da sistematização, (Veronese, 1998). Falkembach (1995a)
definir questões geradoras e princípios nos provoca a pensar a sistematização
nos quais seja possível navegar pelo rio como uma possibilidade, uma ferramenta
de histórias (Ghiso, 1998). apropriada e apropriável para a recupe-
Para auxiliar no exercício metodoló- ração e reflexão do viver compartilhado.
gico da sistematização, orientamos como Aprofundar as conexões e reflexões crí-
procedimento alguns passos em comple- ticas sobre o processo de sistematização
mento aos pressupostos já enunciados: 1) comprometido com a realidade parece
definição objetiva sobre o que sistemati- ser o maior alicerce dessas ações pedagó-
zar; 2) a construção de um roteiro com gicas orientadas pela educação popular,
as perguntas que permitam aprender entende-se que pesquisar, sistematizar e
sobre o processo vivido; 3) recuperar/ avaliar são três pilares sustentadores do
rememorar/recontar o processo vivido a processo de autonomia e de liberdade.
partir das múltiplas narrativas e escutas; Ou seja, a sistematização diz respeito a
4) provocar a dúvida circunstancial, por histórias e casos, mas implica entender
que aquilo aconteceu daquela forma? o processo de construção dos aconteci-
Quando aconteceu? Onde aconteceu? mentos, os tempos envolvidos, as rela-
Como me/nos senti/sentimos com o/os ções entre pessoas e fatos, as influências
fato/s?; 5) onde chegamos?; 6) quais os dos ambientes, dos territórios e externo a
caminhos possíveis para continuidade eles, identificar o fio condutor da expe­
daquilo que foi considerado como positi- riência, os elos que uniram seus viventes
vo para o grupo? (Jara, 1990; 1994; 2012) e a partir desta percepção estrutural tirar
Por ser um processo que privilegia lições para desafios vindouros bem como
as subjetividades e suas expressões, o dividir com outros grupos seus resultados
cuidado metodológico torna-se um di- sempre com o compromisso popular da
ferencial para a qualidade do resultado. ampliação das capacidades dos sujeitos
A interpretação exige esforço da equipe do campo, das águas, das florestas e das
de facilitação, em que a leitura tende a cidades.
apresentar diferentes pontos de vista sob
um mesmo objeto (objeto/real, objeto/ Sistematização de experiências
percebido, objeto construído). Assim, agroecológicas S
por entender que a sistematização de No Brasil, a sistematização é uma
experiências enquanto estratégia de prática presente no movimento agroeco­
construção coletiva do conhecimento lógico, da economia solidária, no mo-

709
SIS T E M AT I Z AÇ ÃO DE E X PER I Ê NCI A S AGROE C OL Ó GIC A S

vimento feminista e nos coletivos de Meio Ambiente com ênfase em Saúde


educação popular, e vem sendo, cada vez Ambiental das Populações do Campo
mais, incorporada como prática de orga- (CTMA) realizado pela Escola Politécni-
nização, reflexão crítica e apontamento ca de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV)
de ações que possam redirecionar estra- (2017) em parceria com a Universidade
tegicamente projetos, programas e ações, Federal do Ceará e o Movimento dos
no âmbito das organizações sociais ou do Trabalhadores Rurais Sem Terra, tendo
governo. Foram muitas as experiências como horizonte, além de todo o processo
de sistematização realizadas nas últimas formativo de jovens rurais, incidir sobre
duas décadas, contudo, gostaríamos de a implementação da Política Nacional
compartilhar algumas iniciativas recen- de Saúde Integral das Populações do
tes de sistematização que nos ajudam a Campo, da Floresta e das Águas. O
compreender os processos participativos curso foi realizado entre 2012 e 2013 e
em curso nos territórios que desenvol- o processo de sistematização foi gestado
vem a agroecologia. Dentre as diversas durante 2014 a 2017 gerando publicações
possibilidades, apresentamos cinco dessas e desdobramentos importantes para as
iniciativas, a primeira visa dar visibilidade organizações que participaram.
a resultados da sistematização e as demais 3) Sistematização intercâmbio de co-
a experiências de sistematização em si que nhecimentos em sistemas agroflorestais:
apostaram no caminho metodológico par- Realizado pela Empresa Brasileira de
ticipativo para refletir sobre suas práticas Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com
em diferentes contextos, e trabalhando objetivo de sistematizar e promover o in-
sob diferentes processos e intencionalida- tercâmbio de conhecimentos sobre o uso
des, para ilustrar os elos entre o método da atual de Sistemas Agroflorestais (SAF)
sistematização e a agroecologia e registrar por agricultores familiares no bioma
esses importantes afluentes na história da Mata Atlântica das regiões Sul e Sudeste
construção do conhecimento agroecoló- (Brasil, 2019). O projeto – realizado entre
gico, sendo elas: 2016 e 2019 – busca construir uma rede
1) Revista Agriculturas: a revista – de intercâmbio de conhecimentos em
lançada em 2011 – está articulada a uma SAFs, disponibilizar um conjunto de
rede internacional (AgriCultures Network informações e dados sobre os principais
– a rede possui membros no Brasil, China, gargalos enfrentados pelos agricultores
Índia, Quênia, Holanda, Peru e Senegal) e e algumas soluções e/ou experiências
procura identificar, a partir de chamadas exitosas, oferecer subsídios para melho-
temáticas, experiências de agroecologia e rias na legislação e políticas públicas e
a incentivar a sistematização destas expe- indicar temas prioritários e abordagens
riências a partir de publicação de artigos metodológicas participativas para novos
pequenos ilustrados e em linguagem sim- programas e projetos.
ples, mantendo, contudo, a profundidade 4) Sistematização de redes de agroecolo-
da temática. gia do Programa Ecoforte: Com o objetivo
S 2) Sistematização da experiência de percorrer 28 redes aprovadas pelo Edital
pedagógica de formação de jovens em realizado pela Fundação Banco do Brasil
Meio Ambiente e Saúde: a experiência e pelo BNDES, o projeto – também em
de sistematização do Curso Técnico em desenvolvimento – busca caracterizar

710
S I S T E M AT I Z A Ç Ã O D E E X P E R I Ê N C I A S AG R O E C O L Ó G I CA S

e compreender as dinâmicas das redes aperfeiçoamento das chamadas públicas


territoriais construídas com a proposta de projetos de fomento à agroecologia
de intensificação das práticas de manejo e, enfim, para o aprimoramento e a am-
sustentável de produtos da sociobiodiver- pliação da agroecologia no país. Como
sidade e de sistemas produtivos orgânicos produtos dessa sistematização, foram
e de base agroecológica nas cinco regiões produzidos vídeos, uma biblioteca virtual
do país. A sistematização é organizada em (Associação Brasileira de A­ groecologia,
três níveis que, imersos nas diversas expe- 2021), uma edição especial da Revista
riências, buscam, entre outros resultados, Brasileira de Agroecologia (Cardoso et
identificar a incidência das políticas públi- al., 2018), e um Caderno de Metodolo-
cas nos territórios onde os projetos foram gias (Biazoti; Almeida; Tavares, 2017),
executados e articulação entre as políticas inspirado nas ações dos NEAs.
públicas. Até 2019, como parte do processo Em complemento, ainda que sejam de
de sistematização, a Articulação Nacional natureza e construções políticas distintas
de Agroecologia (ANA) havia publicado e diversas, as Jornadas de Agroecologia
22 números dos Boletins sobre Tecnologias realizadas no Paraná, os Encontros Na-
Sociais em Agroecologia, que formam a cionais de Agroecologia e os Congressos
Coleção Teia Agroecológica (2019). Fru- Brasileiros de Agroecologia são ambientes
to dos processos sistematizadores que o potenciais de sistematização de expe­
projeto promoveu, mediados por círculos riências. Tendo em vista todas as ressalvas
de cultura, rodas de conversa e resgate apresentadas acima, a publicação dos
histórico do processo inovativo da geração/ anais, suas cartilhas e demais materiais
adaptação das tecnologias, obteve-se a de apoio não implicam, por si, processos
síntese materializada na forma de boletins. de sistematização, mas representam ter-
5) Sistematização dos núcleos de renos férteis para que análises, estudos e
agroecologia no Brasil: O projeto “Siste- processos participativos de sistematização
matização de experiências, construção, sejam realizadas dado a riqueza de suas
socialização de conhecimentos e práticas articulações e da produção coletiva de
relacionados à Agroecologia – O prota- seus conteúdos preparatórios e resultantes
gonismo dos Núcleos e Rede de Núcleos de suas dinâmicas.
de Estudo em Agroecologia (NEA e Por fim, a Sistematização de Expe-
R-NEAS) das universidades públicas riências é mais um recurso da educação
brasileiras”. O projeto foi desenvolvido popular que complementa o percurso pe-
pela Associação Brasileira de Agroeco- dagógico de conscientização preconizado
logia (ABA-Agroecologia) entre os anos por Freire (1979; 1999; 2011), importante
de 2015 e 2017 e se propôs a analisar estratégia para construção de autono-
criticamente as práticas dos Núcleos mia, desenvolvimento da faculdade críti-
e Redes de Núcleos de Agroecologia ca e percepção estrutural com os sujeitos
(NEAs e R-NEAs) a partir do processo da ação para que com ela seja possível
de sistematização participativa de suas promover mudança social e ruptura da
experiências e extrair lições que apon- cultura do silêncio em um contexto em S
tem para a proposição e reformulação que as classes populares encontram-se
de políticas públicas de construção do desprovida de vozes, reconhecimento e
conhecimento agroecológico, para o capacidades de reprodução social.

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Referências
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em: 2 abr. 2021.

S
Notas
1
Práxis não significa prática. A prática é o conjunto de ações que desempenhamos na vida e a práxis
é o processo pelo qual desenvolvemos nossa consciência e, por consequência, nossa relação com
a prática. A práxis só é possível por meio da relação entre nossa reflexão crítica sobre a prática e a

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S O B E R A N I A E S E G U R A N Ç A A L I M E N TA R E N U T R I C I O N A L

conversão em ações mais conscientes e renovadas. A isso temos a máxima freireana de compor
um círculo virtuoso de prática-teoria-prática ou ação-reflexão-ação (Freire, 1979; 1980; 1996).
2
Categoria de análise da filosofia e da antropologia que se refere ao estudo da cultura ou da visão
interna, própria de um grupo de acordo com o olhar daquele que o vivenciou. Os aspectos êmicos
da prática da educação popular e metodologias participativas desempenham o papel de dar voz
às vozes que não apenas a dos mediadores ou agentes animadores da intervenção e, mais que dar
voz, aprender com elas e a partir delas estabelecer estratégias de superação de desafios vividos
(Amâncio, 2019 – comunicação oral).

SOBERANIA E SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL
I sla ndia B ezer r a

Historicamente, o tema da alimen- elementos para a definição da Soberania


tação (sobre ela e em torno dela) mobiliza e Segurança Alimentar e Nutricional
disputas nas distintas esferas da sociedade (SSAN), estabelecendo, portanto, um
(atores sociais e agentes econômicos) diálogo com outras dimensões da vida em
(Maluf, 2015), além do campo da produ- sociedade, considerando especialmente a
ção do conhecimento. Estes movimentos natureza como parte indissociável desse
de disputas vêm, ao longo dos anos, pro- processo. É importante considerar, na
movendo transformações importantes no trajetória dos sistemas agroalimentares,
sistema agroalimentar – desde a produção o papel dos agentes econômicos e/ou
até o consumo. Isso porque os alimentos grandes corporações que, de forma muito
(e/ou preparações), com todos os seus direta, interferem e ditam as “normas” de
nutrientes, mas também com todos seus funcionamento desde a produção, proces-
simbolismos, são considerados energia samento, distribuição (logística, trans-
“vital” para o crescimento e o desenvol- porte, armazenamento), comercialização,
vimento humano. acesso e consumo, até o aproveitamento
Tal energia é extremamente necessá- biológico e fisiológico dos nutrientes. Sua
ria para atender às distintas necessidades atuação no sistema global é fazer com
fisiológicas, por exemplo, em termos de que a sociedade atribua aos alimentos
macro e micronutrientes, mas “vital” a compreensão de que são, meramente,
também pela sua capacidade de atuar no mercadorias. Desse modo, só se come
campo psicológico, com suas representa- se existe a possibilidade do pagamento.
ções simbólicas no cotidiano da vida em A questão discutida aqui é atribuir ao S
sociedade. alimento a sua função vital básica, que
É a partir dessa compreensão do diz respeito à sobrevivência humana,
alimento [ver Alimento] que este texto traz portanto, se trata de um direito.

713
S O B E R A N I A E S E G U R A N Ç A A L I M E N TA R E N U T R I C IO NA L

A soberania alimentar: diálogos e alimentícios inócuos, nutritivos e


convergências em construção ecologicamente sustentáveis. (Via
A soberania alimentar é uma de- Campesina Internacional, 2001)
finição que se originou no movimento Posteriormente, em 2007, na Decla-
da Via Campesina (Via Campesina ração de Nyéléni, documento final do Fó-
Internacional, 2001) [ver L a Via Campe­ rum Mundial pela Soberania Alimentar,
sina], mais especificamente em 1996, e realizado em Mali, tem-se uma comple-
foi referendada no Fórum Mundial de mentação “[...] a soberania alimentar é um
Soberania Alimentar, em 2001. A sua direito dos povos a alimentos nutritivos e
proposta nasceu como uma estratégia de culturalmente adequados, acessíveis, pro-
enfrentamento às políticas neoliberais, duzidos de forma sustentável e ecológica,
nas quais predomina o poder decisório e seu direito de decidir seu próprio sistema
das grandes corporações do sistema alimentar e produtivo” (Fórum Mundial
agroalimentar mundial, que, por sua vez, pela Soberania Alimentar, 2007). As
impõem aos países uma série de medidas inserções evidenciam fortemente o pa-
que fragilizam (e muitas vezes acabam pel das famílias camponesas frente aos
com) a autossuficiência dos povos. Atre- desafios de dar concretude à soberania
lado a isso, essas políticas também atuam alimentar nas práticas cotidianas, uma
para a diminuição do papel regulador do vez que se atribui uma valorização à di-
Estado. A Via Campesina possibilita o mensão da cultura alimentar. Do mesmo
debate da soberania alimentar, em âmbi- modo, enfatizam a responsabilidade de
to global, como legítimo e necessário. No produzir de forma sustentável e ecológica.
contexto neoliberal, essas macropolíticas McMichael (2016) afirma que a
destroem a natureza, dizimam e expro- Via Campesina, ao pautar a soberania
priam povos originários, comunidades alimentar como uma das suas bandeiras
tradicionais e comunidades pesqueiras de luta, “defende a reterritorialização
dos seus territórios e também comuni- de Estados por meio da revitalização
dades rurais. Esses resultados, por sua das ecologias alimentares locais e do
vez, reverberam nas cidades, nos médios reconhecimento dos direitos das pes-
e grandes centros urbanos, e influenciam soas à terra” (p. 86). A agroecologia [ver
diretamente as práticas de produção e o Agroecologia], então, assume um prota-
consumo de alimentos. gonismo nessas estratégias de enfrenta-
A Soberania Alimentar é o direito mento ao modelo que prioriza as políticas
dos povos de definir suas próprias neoliberais e garante, neste cenário, uma
políticas agropecuárias e de alimen- atuação mais democrática e com repre-
tação, bem como de proteger e regu- sentatividade de gênero, proporcionando
lamentar a produção agropecuária às mulheres o reconhecimento por sua
e o mercado nacional objetivando atuação nesse campo.
alcançar o desenvolvimento susten- Para além da construção e concepção
tável. [...] a soberania alimentar não
de um conceito, para os movimentos do
S nega o comércio internacional, porém
defende a opção de formular políticas
campo (e alguns da cidade) a soberania
e fomentar práticas comerciais que alimentar passa a ser um princípio capaz
sirvam aos direitos das populações, de materializar a produção, o acesso e o
disponibilizando métodos e produtos consumo de alimentos saudáveis e nutriti-

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vos, estando na sua essência a autonomia também de fortalecer os laços até então
dos povos em decidir o que plantar e como construídos.
plantar, fazendo com que – no seu terri- Outro aspecto também discutido
tório – sejam desenvolvidas estratégias na declaração diz respeito à necessidade
que, em alguma medida, desestruturem de ocupar espaços de poder (decisórios),
a atual “ordem” do sistema capitalista, tais quais o legislativo e o judiciário. Não
que reproduz a lógica do alimento como apenas para denunciar o seu uso em prol
mera fonte de lucro. dos interesses das grandes corporações in-
Tais práticas não são restritas aos ternacionais do setor agroalimentar, mas
componentes da agricultura e pecuária, também para anunciar (e assim promover,
passam também por estabelecer outras criar e implementar) políticas públicas,
lógicas comerciais, fomentando assim a leis e decretos capazes de impulsionar os
construção social dos mercados [ver Cons­ processos de transição agroecológica [ver
trução S ocial dos Mercados]. Ao trazer Transição Agroecológica] e/ou potencia-
esta dimensão para o debate, se possibilita lizar as estratégias já em curso, tais como
incentivar e proteger mercados locais, os processos educativos que ocorrem em
regionais e nacionais, que por sua vez distintas áreas e níveis de conhecimento,
fomentam o dinamismo econômico me- e assim promover a soberania alimentar.
diante, também, a geração de trabalho Ao ocupar esses espaços, é possível, tam-
e renda. Desse modo, o acesso a uma bém, criar medidas de proteção e amparo
alimentação culturalmente referenciada e legal que prezem pela autonomia e não
baseada em práticas alimentares promoto- pela criminalização dos movimentos e
ras da saúde (da sociedade e da natureza) organizações sociais que por sua vez vêm
passa a ser uma realidade. E, além disso, sofrendo perseguições e repressões. A
são estabelecidas relações equilibradas declaração traz ainda outros elementos
com a natureza, reiterando a agroecologia centrais para materializar a soberania
como ciência, prática e/em movimento. alimentar com base no buen vivir, ou bem
viver [ver Cosmovisões], a saber:
A Soberania Alimentar [...] o bem viver – proposto por dife-
e outras dimensões rentes etnias dos povos originários –,
Em sua Declaración final de la cumbre o ecofeminismo, o ecossocialismo e
de los pueblos – “Fuera OMC, construyendo práticas concretas como a soberania
soberanía”, a Coordinadora Latinoameri- energética, a agroecologia e a perma-
cana de Organizaciones del Campo (Cloc) cultura, que podem se transformar em
(2017) afirma que é necessário formar alternativas sistêmicas ao capitalismo,
uma frente internacional para confrontar são aplicadas não de maneira indivi-
dual, mas como uma política geral.
o poder corporativo, sobretudo como me-
(Coordinadora Latinoamericana de
canismo de defesa nos (e dos) territórios,
Organizaciones del Campo, 2017)
que por sua vez são violados, explorados,
saqueados e, em alguma medida, dizima- A partir dessa construção, a com-
dos. Desse modo, a declaração afirma a preensão de soberania alimentar assume S
importância do compromisso dos mo- outros papéis, considerando a realidade
vimentos camponeses nos processos de objetiva. O elemento analítico e utilitário
globalizar as lutas nos enfrentamentos e do “bem viver” permite referenciar o ato

715
S O B E R A N I A E S E G U R A N Ç A A L I M E N TA R E N U T R I C IO NA L

cotidiano de alimentar (a si mesmo e aos (SAN). Não é apenas a falta de comida


demais); este – por si só –, é imbricado a [ver F ome] que leva a uma situação de
outras práticas, desde o produzir até o nu- vulnerabilidade; na verdade, essa é a sua
trir, como afirmam as autoras Giordani, mais grave e extrema manifestação social
Bezerra e Anjos (2017): e biológica. Mas a insegurança alimentar
A produção do alimento agroecológi- também está diretamente relacionada
co aciona diferentes redes de sentido, ao ambiente, ou seja, à forma pela qual
como a integração e a dependência esse alimento é produzido/processado.
com o espaço; e o conceito ampliado Nesses termos, o uso de agrotóxicos e/
de saúde, que envolve um bem-estar ou de tecnologias que não consideram
que se completa na tomada de cons- o princípio da precaução (como Orga-
ciência em relação à necessidade de nismos Geneticamente Modificados/
integração sociedade-natureza. São OGM, transgenia e, mais recentemente,
discussões em que o alimento é refe-
os alimentos “biofortificados”) afetam a
rido como comida de verdade, poten-
saúde (humana e da natureza).
cialmente produtiva de significados
que extrapolam a função biológica e É necessário lembrar que a fome
nutricional. É nessa perspectiva que segue presente nos diferentes cenários de
o conceito do bem viver e seus des- debate (políticos, econômicos e tecnológi-
dobramentos imediatos são trazidos, cos), onde a narrativa que predomina é o
como o bem e bom comer. (p. 434) “combate à fome”. No entanto, vale des-
tacar que o atual sistema agroalimentar é
Segurança e Insegurança Alimentar o mesmo modelo que vem reproduzindo
A definição de Segurança Alimentar (e fortalecendo) a situação de vulnerabi-
para a Organização das Nações Unidas lidade onde fome/subnutrição caminham
para Agricultura e Alimentação (FAO) de mãos dadas com sobrepeso/obesidade
limita-se aos determinantes sociais (aces- e suas comorbidades. Perpetua-se a ideia
so à educação e saúde) e econômicos de que alimento é mercadoria, e fome é
(trabalho e renda), e permite pouca (ou um negócio.
nenhuma) correlação sobre a determi- No Brasil, a concepção que se tem
nação social (Breilh, 2006).1 A crítica a de Segurança Alimentar e Nutricional
essa definição de Segurança Alimentar (SAN) se distingue daquela defendida
(SA) estabelecida pela FAO diz respeito, pela FAO. Sua institucionalização se deu
essencialmente, à sua não problematiza- mediante a criação da Lei n. 11.346, de
ção sobre o tipo de alimento que deve 15 de setembro de 2006 (Brasil, 2006),
ser acessado. De onde vêm e como são e consiste:
produzidos os alimentos consumidos?
[...] na realização do direito de todos
Esse questionamento oportunizou o
ao acesso regular e permanente a ali-
debate em vários campos do conhecimen- mentos de qualidade, em quantidade
to e em diferentes espaços (gestão pública, suficiente, sem comprometer o acesso
universidades, organizações da sociedade a outras necessidades essenciais, ten-
S civil, entre outros). Assim, foi considerado do como base práticas alimentares
que o modelo de produção e consumo de promotoras de saúde que respeitem
alimentos é fundamental para a garantia a diversidade cultural e que sejam
da Segurança Alimentar e Nutricional ambiental, cultural, econômica e
socialmente sustentáveis.

716
S O B E R A N I A E S E G U R A N Ç A A L I M E N TA R E N U T R I C I O N A L

É importante reiterar os princípios A cada conferência se reitera a con-


que orientam a SAN:2 1) direito humano cepção de que a alimentação é direito,
à alimentação adequada (DHAA) e 2) não mercadoria. A partir dessa afirmação,
soberania alimentar. Para Maluf (2015, cabe questionar: como é possível atender
p. 259), “[...] ambos fundados em direitos, a demanda social (e política) da SSAN,
que devem orientar os programas e as pautada em um sistema que se baseia na
ações públicas voltadas para promover orientação e estímulo ao consumo pela
a segurança alimentar e nutricional”. eficiência e pelo mercado?
Trata-se portanto, como refere o autor, de De acordo com a Carta Política
uma “[...] ‘armação analítica’ com reper- da V Consan (Conselho Nacional de
cussões em termos de políticas públicas Segurança Alimentar e Nutricional,
que pretende demarcar um campo social 2016), cujo lema foi “Comida de verdade
e político” (p. 59).3 no campo e na cidade: por direitos e
soberania alimentar”, firmou-se que a
Soberania e segurança alimentar e concretização da SSAN demanda ações
nutricional: aportes para o debate intersetoriais (de ordem social e políti-
A construção da noção de sobera- ca) que só ocorrerão mediante a mobili-
nia e segurança alimentar e nutricional zação social que gere os enfrentamentos
(SSAN) segue ocorrendo de modo pro- necessários. O acesso à terra urbana
cessual e de forma coletiva, sendo as e rural é fundante para concretizar a
Conferências Nacionais de Segurança SSAN. Nesses termos, a reforma agrária
Alimentar e Nutricional (CNSAN) as ex- [ver Reforma Agrária] precisa voltar ao
pressões máximas dessa construção. Mas debate/ação. De maneira análoga, são
foi na III Conferência (em Fortaleza/Cea- fundamentais a manutenção dos ter-
rá), sob o lema “por um Desenvolvimento ritórios que possibilitem o acesso aos
Sustentável com Soberania e Segurança bens da natureza, incluindo as sementes
Alimentar e Nutricional”, que se priorizou (preservação e resgate das variedades
discutir o modelo de desenvolvimen- crioulas), a garantia de acesso à água
to nacional e sua relação com a SAN. para consumo e para a produção de
Nessa conferência, os debates conside- alimentos, e, ainda, o acesso às políticas
raram que, para se alcançar a Soberania públicas de crédito.
e a Segurança Alimentar e Nutricional A garantia de serviços públicos ade-
(SSAN), seria estratégico pautar uma quados de saúde, educação e transporte
construção distinta do modelo econô- também são mencionados como essen-
mico vigente, já que este segue sendo o ciais. Com o intuito de incorporar as
modelo que promove a concentração de questões que pautam, de forma específi-
riquezas, graves desigualdades sociais e ca, a soberania alimentar dos povos em
ainda reproduz e perpetua um sistema territórios específicos, foram igualmente
agroalimentar estruturado nos interesses mencionadas na referida carta política
privados das corporações do setor, geran- elementos como a proteção dos sistemas
do assim problemas sociais e ambientais, agroextrativistas, ações específicas para S
cujos prejuízos são imensuráveis (Conse- os povos originários (indígenas), popula-
lho Nacional de Segurança Alimentar e ções quilombolas e povos e comunidades
Nutricional, 2007). tradicionais.

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S O B E R A N I A E S E G U R A N Ç A A L I M E N TA R E N U T R I C IO NA L

Também foram referenciadas as exercício da democracia. Trata-se de


dimensões socioculturais da SSAN para um direito essencial, já que envolve o
uma melhor compreensão sobre a rela- acesso à cidadania, e encontra-se nos
ção entre a produção e o consumo de alicerces das faculdades humanas de
alimentos; a necessidade de estabelecer existir em sociedade. No art. 6o da Cons-
pontes entre o urbano e o rural; bem tituição Federal de 1988, a alimentação
como valorizar a agrobiodiversidade, os faz parte, também, do rol dos direitos
alimentos in natura e regionais, o respeito fundamentais sociais: “[...] alimentação
à ancestralidade negra e indígena, o é parte vital para a existência digna da
resgate das identidades, memórias e cul- população e, por isso, em seu núcleo se
turas alimentares próprias da população incluem as discussões referentes ao aces-
brasileira, considerando, sobretudo, o so e à suficiência de um país na geração
protagonismo das mulheres. de alimentos” (Brasil, 2013; Brasil, 1988).
Para termos efetivamente materia-
lizadas as ações de SSAN, é urgente Soberania e segurança
considerar o cenário de exploração e alimentar e nutricional
uso (da natureza e das pessoas) que A partir dessas concepções, com-
vem contribuindo, cada vez mais, para preende-se que soberania e segurança
o surgimento de uma sociedade enfer- alimentar e nutricional (SSAN) é o
ma e de um ambiente insalubre. Esse direito dos povos – mulheres, homens
quadro reverbera nas elevadas taxas de e jovens – de incidirem nas ações pú-
prevalência e incidência (casos novos) blicas (programas, políticas) e/ou em
de doenças relacionadas à má-alimen- estratégias territoriais sustentáveis de
tação, como: sobrepeso, obesidade, produção, distribuição, comercializa-
doenças crônicas não transmissíveis, ção, acesso e consumo de alimentos. As
como hipertensão, diabetes, cardiopa- populações rurais e urbanas devem, por-
tias, cânceres, alergias e intolerâncias, tanto, protagonizar atitudes individuais
entre outras, e, ainda, as doenças que e coletivas para materializar a SSAN
têm relação direta com o modelo de mediante o apoio social e político e,
produção (uso intensivo de agrotóxicos, ainda, acessando os recursos necessá-
práticas de degradação e depredação rios. O acesso regular e permanente,
do solo, das matas, da biodiversidade à luz do direito humano à alimentação
e das águas). adequada e saudável para todos e todas,
Na contramão desses processos, sem comprometer o acesso a outras
temos muitos avanços que merecem necessidades essenciais para a produção
ser destacados, tal como a institucio- e a reprodução da vida, é a essência da
nalização da alimentação como direito. SSAN. Esta deve ser pautada nos sis-
Bezerra e Isaguirre (2014) citam que, temas agroalimentares agroecológicos
na Declaração Universal dos Direitos que priorizem os processos e técnicas
Humanos (DUDH) (Organização das que não violem os direitos humanos e
S Nações Unidas, 1948), o Direito Huma- da natureza, bem como deve resgatar,
no à Alimentação Adequada (DHAA) manter e/ou orientar as práticas – de
é trazido como imprescindível à capa- produção e consumo – dos povos das
cidade das pessoas de participarem do águas, das florestas, dos campos e das

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cidades. Tais práticas devem, ainda, ser A perspectiva de análise feminista


promotoras da saúde, e nesse contexto torna-se, portanto, fundamental para
a agroecologia como ciência, prática e problematizar e analisar as dimensões
movimento alinha-se aos princípios da da SSAN (sociais, culturais e econômi-
SSAN. Esta deve ainda trazer no seu cas) e, assim, viabilizar os processos de
cerne um projeto de sociedade que preze reconhecimento, inclusão e fortaleci-
pela justiça social, cultural, ambiental e mento das mulheres nos sistemas agro-
alimentar (Bezerra, 2010).4 alimentares mais justos e soberanos.
Referências
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Acesso em: 2 abr. 2021

Notas
1
Determinação social: teoria para repensar a civilização e entender seu rico movimento e suas relações
dialéticas como parte de uma estrutura de poder. (Breilh, 2006) S
2
O entendimento que se construiu no Brasil articula duas dimensões bem definidas: a alimentar e a
nutricional. A primeira dimensão se refere aos processos de disponibilidade (produção, distribuição,
comercialização e acesso) que, em essência, possibilitam pensar/agir de forma mais direcionada
no campo das macropolíticas. A segunda dimensão, por sua vez, diz respeito mais diretamente às

719
SOLOS

escolhas, ao preparo, bem como às formas de consumo (como se come, com quem se come, por que
se come) e tem uma relação direta com as práticas de saúde, já que estas incidem diretamente na
utilização biológica/fisiológica dos alimentos (macro e micronutrientes).
3
É importante registrar, ainda, que o termo Segurança Alimentar e Nutricional ganha força no Brasil
após o processo preparatório para a Cúpula Mundial de Alimentação, de 1996. Posteriormente, seu
amadurecimento deve-se, em grande medida, à criação do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar
e Nutricional (FBSAN), em 1998, conforme registraram Burity e colaboradores (2010).
4
Definição inicialmente trabalhada pela autora em Bezerra, 2010.

SOLOS

I r ene C ar doso
Da niel M a ncio

“O segredo da vida é o solo, sua importância para o campesinato,


porque do solo dependem as plan- enquanto classe que necessita disputar
tas, a água, o clima e a nossa vida. o modelo de produção no campo.
Tudo está interligado. Não existe O uso do solo pelas sociedades re-
ser humano sadio se o solo não for monta à própria existência dos seres
sadio e as plantas, nutridas” humanos, que ao longo do tempo se
Primavesi; Primavesi, 2018 desenvolveram em uma relação direta
com a natureza. Nestes quase 12 mil anos
O solo é como um organismo vivo. de história da agricultura [ver Agricultu­
É a base para a agroecologia, com seus ra], os solos foram tratados como parte
princípios que contribuem para os cam- integrante e importante da vida desses
poneses resistirem e enfrentarem o povos. A partir do momento em que o ser
avanço do capital e, ao mesmo tempo, humano deixou de ser nômade, a terra
construírem novas relação com a natu- deixou de ser vista apenas como forne-
reza. O solo, enquanto organismo vivo, cedora de pigmentos e de matéria-prima
está presente em relações e inter-rela- para a confecção de objetos e passou a
ções (biológicas, sociais, econômicas e desempenhar um importante papel no
políticas) complexas que precisam ser cultivo dos alimentos (Mazoyer, 2010).
compreendidas para seu manejo sadio Muitas das primeiras aglomerações
e para o desenvolvimento da agricultu- se formaram em locais de terras férteis,
S
ra camponesa. Este verbete tem como com disponibilidade de água e pouco
objetivo trazer elementos que possam sujeitas à ação da erosão, como as pla-
auxiliar na reflexão sobre as funções nícies aluviais, também conhecidas por
dos solos na manutenção da vida e na várzeas. As planícies aluviais são áreas

720
SOLOS

inundáveis afetadas pelas cheias dos rios, parte do ciclo das rochas. Para formar os
que recebem sedimentos depositados às solos e as rochas são necessários tempos
suas margens. Esses sedimentos contri- geológicos muito longos (contados em
buem para a fertilização dos solos. Ao milhões ou bilhões de anos). Entretanto,
escolher estes locais para cultivar, muito é possível se destruir os solos muito rapi-
provavelmente o ser humano lançou damente. Um dos principais processos de
mão de um conhecimento que foi sendo destruição dos solos é a erosão antrópica,
adquirido a partir de sua experiência e ou seja, aquela provocada pelos seres
relação com a natureza e em uma relação humanos, que acelera os processos de
dialética de trabalho com o solo (Lepsch, carreamento das partículas em direção
2002). aos rios e ao mar.
Os solos são a camada externa Os fatores e os processos de forma-
da crosta terrestre. É neles, e a partir ção diferem de acordo com a comple-
deles, que produzimos alimentos, que xidade natural dos ecossistemas. Isso
­construímos nossas casas, que geramos leva a grandes diferenças entre os solos
vida e conhecimentos. Ao realizar a de regiões distintas e em uma mesma
interface entre a litosfera e a biosfera, região. Por exemplo, os solos de clima
os solos são o ambiente onde proces- temperado, como em países da Europa
sos biogeoquímicos transformam água, e da América do Norte, diferem dos
nutrientes e radiação solar em vida. A solos de clima tropicais, como os do
litosfera é composta pelas rochas que Brasil (Costa, 2015). No caso brasileiro,
estão abaixo dos solos e que lhes dão os ecossistemas da Amazônia, da Mata
origem. A biosfera é formada pelos orga- Atlântica, da Caatinga, do Cerrado, dos
nismos que vivem no solo e acima dele Pampas, do Pantanal, das restingas e dos
(Cardoso, 2008). mangues possuem clima, relevo, vegeta-
Os solos são formados ao longo de ção e solos com características próprias.
milhares de anos pelos fatores e pro- Os solos diferem em suas propriedades
cessos de formação do solo. O material físicas, químicas e biológicas. As pro-
de origem (principalmente as rochas) é priedades biológicas dizem respeito à
intemperizado (“apodrecido”) a partir da vida do solo. As propriedades físicas e
ação do clima (água e temperatura) e dos químicas dizem respeito ao pH, aos teo-
organismos, em um dado relevo ao longo res de matéria orgânica e de nutrientes,
do tempo. A vida é, assim, um dos fatores à cor, à textura, à estrutura, à umidade,
de formação dos solos e fundamental para à porosidade, à temperatura e ao cheiro,
muitos processos que neles ocorrem. O dentre outras.
solo formado pode ser transportado (por Dessa forma, não podemos falar em
exemplo, pela ação das chuvas e vento) e solo no geral, mas sim em solos (no plu-
depositado em outros locais que não o de ral), pois esses diferem de acordo com a
sua formação. O transporte das partículas complexidade dos ecossistemas em que
é denominado erosão natural. Com o são formados. Independentemente das
tempo, o solo pode ser transportado para diferenças entre os solos, estes possuem S
o mar, onde, a partir de pressão e tempera- funções que garantem a vida no planeta
tura, pode novamente se transformar em Terra. Essas funções são a produção de
rocha, formando um grande ciclo que faz alimentos, de plantas medicinais, de fi-

721
SOLOS

bras e energias; a purificação da água e a viver, de cuidar e criar os filhos. Lugar


degradação de contaminantes; a ciclagem de sua reprodução social enquanto classe
de nutrientes; o sequestro de carbono; camponesa que detém a tarefa de pro-
o fornecimento de recursos genéticos e duzir alimentos, sustentabilidade e vida.
farmacêuticos; a regulação de enchentes Para isso, como camponeses de todo o
e do clima; o fornecimento de habitat para mundo dizem, “a terra tem que funcio-
os organismos; o fornecimento de base nar”, e os camponeses sabem o que têm
para as construções de infraestruturas que fazer para que a terra funcione. Sua
humanas e de materiais de construção; e funcionalidade está relacionada à vida,
a herança cultural [ver Agroecossistema]. responsável pela saúde da terra ou do
O manejo do solo interfere em mui- solo! Os camponeses percebem que uma
tas de suas propriedades e funções, e planta que cresce em um solo saudável
podem levar à perda de sua qualidade. é mais saudável. Eles vivem da terra,
Por isso, o manejo precisa garantir a mas também vivem na terra. Seus filhos
qualidade dos solos, para que eles con- herdarão o solo com a qualidade que eles
tinuem gerando vida e sendo gerados deixarem. Por isso, a herança cultural é
pela vida. As propriedades e funções também uma das funções dos solos. Já
dos solos podem ser utilizadas como que o solo e a terra têm funções, nós pre-
indicadoras de sua qualidade. cisamos também fazer com que a função
Muitas vezes, trata-se solo como ter- social, política, econômica, ambiental da
ra, e vice-versa. Solo é um termo mais terra sejam cumpridas.
científico, enquanto terra traz consigo O saber camponês sobre a “terra” é
uma abordagem mais integradora, articu- elemento central para a concepção dos
lada a debates políticos e sociais em torno solos enquanto organismo vivo. Entre-
de questões como acesso, propriedade e tanto, com o advento do capitalismo
controle. Para os/as camponeses/as, solo é no campo houve a implantação de uma
terra, enquanto para os cientistas e técni- lógica industrial de agricultura, conhe-
cos, terra é solo. De imediato percebemos cida como modernização da agricultura,
uma diferença: terra é feminina e solo é e que tem levado à morte dos solos. A
masculino. A terra é considerada pelos agricultura industrial é a expressão do
indígenas e pelos camponeses como sa- avanço do capital na agricultura como
grada, como mãe e como vida. Enquanto mecanismo para criar um novo ciclo de
os cientistas, comumente, referem-se aos acumulação capitalista e um cenário
nossos solos tropicais como ácidos, pobres promissor para a indústria atuar no
e ruins. Será nossa mãe-terra ácida, pobre campo [ver Revolução Verde].
e ruim? A luta por reforma agrária se dá Nos trópicos, a chamada moderni-
em torno da questão da concentração da zação da agricultura ocorreu a partir da
terra e não do solo! E os solos (ou a terra) implantação das tecnologias da Revolu-
são fundamentais para que os assenta- ção Verde (expressão da modernização
mentos, e demais áreas da agricultura da agricultura no campo), cujo pacote
S camponesa, cumpram sua função social. tecnológico foi introduzido inicialmente
Para as famílias camponesas, a terra, no Brasil durante o período da ditadura
ou o solo, não é apenas local de cultivo civil-militar, que durou de 1964 a 1985.
e de produção, mas também lugar de O governo civil-militar apoiou a adoção

722
SOLOS

dessas tecnologias, promovendo a alte- funcionalidade do solo [ver Agrotóxicos].


ração dos currículos universitários e a As perdas por erosão foram acentuadas,
reorganização dos serviços de pesquisa houve compactação dos solos e perda
e de extensão, dentre outras políticas da vida, ou seja, da biodiversidade, do
públicas. O pacote da Revolução Verde solo. Muitos destes impactos ocorreram
incluiu o uso de agrotóxicos, de fertili- com a agricultura utilizada ao longo
zantes e corretivos, a moto-mecanização da história das civilizações, entretanto
intensiva, a irrigação e as sementes híbri- muitos deles foram ampliados e outros,
das e, mais recentemente, os organismos como aqueles relacionados aos agrotóxi-
geneticamente modificados (OGMs) [ver cos, foram introduzidos e intensificados
Transgênicos]. Tudo isso serviu de apoio à com as tecnologias da Revolução Verde
produção em monoculturas incentivadas (Mazoyer; Roldart, 2010).
pelos bancos que ofereceram aos agricul- Um outro impacto importante da
tores crédito a juros baixos para investir Revolução Industrial foi a perda do saber
nessas tecnologias. camponês. Para a implementação do
A agricultura industrial, com seu pacote da Revolução Verde, os serviços
pacote tecnológico, submeteu o campe- de extensão, de pesquisa e as universi-
sinato à lógica de acumulação do capital, dades passaram a ter o papel de dizer
concentrou e centralizou as riquezas e a aos agricultores o que fazer. Para isso, os
renda, excluiu e expulsou os/as campone- saberes camponeses sobre a agricultura
ses/as do campo e degradou o meio am- em geral e sobre os solos em particular,
biente. A agricultura moderna criou força construídos através de gerações, foram
política importante que recolocou a luta desprezados pela chamada “moderni-
de classes no campo em outros patamares zação” que priorizou somente o conhe-
[ver Agricultura Orgânica]. A expulsão do cimento científico. Com isso, muito
campo proletarizou os camponeses, pois destes saberes se perderam ou foram
muitos mudaram para as periferias das esquecidos (Freire, 2015). Estes saberes
cidades para se transformar em mão de precisam ser reavivados e articulados
obra barata para as indústrias e muitos com aqueles conhecimentos científicos
dos que ficaram no campo perderam sua que contribuam para superar os desafios
autonomia e passaram a trabalhar tam- impostos pela agricultura industrial e
bém para as indústrias, pois ficaram de- para a construção da agroecologia, o
pendentes de seus produtos ou de cadeias que exige um outro manejo dos solos
de produção (por exemplo: fumo, frango (Sosa et al., 2012; Zanelli et al., 2015). O
ou soja). A proletarização camponesa foi, entrelaçamento de saberes populares e
assim, marcadamente um objetivo e uma científicos se torna imprescindível para
consequência da agricultura industrial. a construção da agroecologia enquanto
A agricultura moderna ou indus- contraponto ao modelo convencional
trial levou também a muita degradação que degrada os solos e a vida.
ambiental, causada, dentre outros, pela
perda da biodiversidade com os mono- Manejo dos solos S
cultivos, pelo envenenamento da natu- A agricultura industrial não é apro-
reza (incluindo aí os seres humanos) com priada aos agricultores familiares. Na
o uso dos agrotóxicos e pela perda da agricultura industrial, o solo é conside-

723
SOLOS

rado um mero substrato onde adubos os organismos possam lá viver; uma boa
químicos e corretivos são adicionados cobertura; um ambiente limpo sem o
e sementes melhoradas ou transgênicas uso de agrotóxicos, plásticos e outros
são plantadas (Cardoso et al., 2018). Na contaminantes; água e ar suficientes e de
agroecologia, ao contrário, o manejo que qualidade (que ficam nos poros do solo)
garanta solo saudável é muito importante e alimento em quantidade e qualidade
e isso exige cuidados para além do aporte para os organismos do solo. Em síntese,
de fertilizantes e corretivos. Solo saudá- tudo que ameaça à vida do solo, como
vel é a base para o desenvolvimento da agrotóxico, fogo, excesso de sol, lixo,
agroecologia (Altieri; Nicholls, 2000; muito sal (adubo químico), preparo ex-
Gliessman, 2015) e o manejo agroe- cessivo do solo com aração e gradagem
cológico garante a saúde do solo [ver ameaçam a qualidade do solo.
Ciclagem de Nutrientes]. Os organismos do solo, assim como
O manejo agroecológico dos solos nós, se alimentam de matéria orgânica.
favorece os processos naturais e as in- No solo temos a matéria orgânica morta,
terações biológicas, e possibilita que a composta de húmus, e a matéria orgânica
biodiversidade subsidie a fertilidade dos viva, composta pelos organismos. Para se
solos e a proteção dos cultivos contra alimentar, os organismos transformam
doenças e pragas (Cardoso, 2008). Com os restos orgânicos em húmus. O uso da
o solo biologicamente ativo, sobretudo matéria orgânica na agricultura não é
os solos tropicais, as perdas de solo e novidade. Desde primórdios, o ser huma-
de água são reduzidas, o processo de no procurou por terras ricas em matéria
ciclagem de nutrientes é potencializado, orgânica para seus cultivos. Entretanto,
minimiza-se a necessidade de insumos a matéria orgânica no solo se decompõe
externos (Primavesi, 2006) e melhora-se muito rápido nas regiões tropicais, por
a qualidade dos nossos alimentos. isso precisamos sempre adicioná-la ao
Precisamos cuidar bem dos solos solo. Isto faz com que os sistemas agro-
se queremos ter comida saudável. Nós florestais sejam muito interessantes, pois
somos o que comemos e o que comemos com eles as árvores que são consorciadas
depende do solo. Solo morto, comida com os cultivos produzem muitas folhas,
morta! Solo tem que ter qualidade. Um galhos, frutos e flores que, ao caírem ou
solo vivo e saudável é necessário para que serem podadas, servem de alimentos
as plantas e as pessoas sejam saudáveis. para a vida no solo. A integração com
Todos querem solos saudáveis, mas pou- os animais também é importante, para
cos se preocupam com o que degrada o gerar esterco que pode ser utilizado como
solo. A verdadeira causa da degradação adubo orgânico e alimentar a vida no
é a forma como temos tratado o solo. solo [ver Teia Alimentar].
A vida no solo precisa ser cuidada, A matéria orgânica é também, com
assim como a vida acima do solo. Para a vegetação, responsável pela cobertura
manter o solo vivo, precisamos entender do solo. O sol em excesso não é bom
S que a vida do solo precisa dos mesmos para a vida do solo, por isso o solo pre-
cuidados que os seres humanos: uma cisa sempre estar coberto. A matéria
casa, que no solo significa solo bem orgânica é em grande parte responsável
grumoso (com boa estrutura), para que também pela agregação do solo, que leva

724
SOLOS

à formação da estrutura (torrões) do solo. precisamos de biodiversidade, portanto,


Um solo vivo pressupõe a presença de va- de sistemas diversificados, como os
riadas formas de organismos interagindo sistemas agroflorestais. As árvores nos
entre si, e com os componentes minerais sistemas agroflorestais exploram bem o
(nutrientes) e orgânicos do solo. Essa solo profundo com suas raízes e apro-
dinâmica biológica exerce uma função veitam bem a luz solar com suas copas
essencial na agregação e na porosidade frondosas [ver Agrofloresta – Sistemas
do solo, de modo a torná-lo grumoso e Agroflorestais].
permeável para o ar, para a água e para Os camponeses precisam trabalhar
as raízes e para os próprios organismos, com a biodiversidade dos agroecossiste-
que vivem nos poros dos solos. Os orga- mas, não há outro caminho. Isso porque,
nismos contribuem para a mobilização de forma geral, a biodiversidade é impor-
dos nutrientes e sua disponibilização tante para a qualidade dos solos, pois
para as plantas, através do processo de sustenta a vida e subsidia a fertilidade
ciclagem de nutrientes (Primavesi, 2006; e proteção dos cultivos contra doenças
Primavesi, 2008). O preparo excessivo e pragas, ou seja, é importante para um
do solo, com o emprego de maquinário solo vivo e saudável (Cardoso et al.,
pesado, destrói a estrutura (os torrões) 2018). Em um solo saudável, com vida,
do solo (Costa, 2015), destrói a casa dos os organismos exercem várias funções.
organismos do solo. Portanto, precisamos Alguns deles fixam nitrogênio, outros
evitar arar os solos para não destruir a decompõem os materiais orgânicos, al-
casa dos organismos dos solos. guns aeram o solo e assim por diante. Há
Com boa qualidade do solo e maté- um grupo de fungos do solo, denominado
ria orgânica suficiente, pode-se diminuir micorrizas. Este grupo de organismo é
ou abolir o uso de fertilizantes químicos. muito importante para a dinâmica do
E, mesmo se fertilizantes químicos forem fósforo, um nutriente importante para
utilizados, a matéria orgânica continua as plantas, no solo [ver Interações Ecoló­
sendo necessária para alimentar os solos. gicas]. O fósforo é um elemento escasso
Fertilizantes químicos (sais) nutrem as na terra. Alguns autores apontam que
plantas, mas não alimentam os solos, em 30 anos poderemos ter escassez deste
pois seus organismos se alimentam de elemento para a fabricação de adubo.
matéria orgânica, e não de sais. Além As micorrizas podem ser consideradas
disso, os adubos químicos diminuem a o “Facebook” do solo. Elas detêm in-
resistência de plantas às doenças (Berg; formações sobre o solo e estão constan-
Koskella, 2018). Portanto, o uso de adubo temente envolvidas em trocas com as
químico, como já foi dito pelos(as) cam- raízes das plantas e ajudam as plantas
poneses(as), é incentivo ao uso de agrotó- a utilizar melhor o fósforo presente no
xicos [ver Trofobiose]. Se alimentarmos o solo. Precisamos cuidar das redes de
solo, podemos alimentar o mundo. organismos do solo, precisamos tratá-los
Para reduzir a necessidade de adu- como parceiros de uma agricultura lim-
bos químicos, nossos solos profundos pa, sem veneno, com pouca ou nenhuma S
precisam ser melhor explorados pela aração. Portanto, temos de cuidar não só
vida do solo, para que os nutrientes de nossas redes acima do solo, mas das
se tornem mais disponíveis. Para isso, redes do solo.

725
SOLOS

Além disso, precisamos procurar depende da importação de sua base


ciclar todos os resíduos. Resíduos or- atual de produção, o N-P-K (Cardoso
gânicos não podem ser considerados et al., 2018).
“lixo não reciclável”, como comumente Solo com vida, com boa qualidade,
observamos nas cidades. Bagaço de cana dá autonomia aos agricultores, além de
e casca de café não podem ser utilizados resiliência e produtividade no longo
para a produção de energia, mas devem prazo. Portanto, o solo saudável é im-
retornar ao solo. Pós de rochas e urina portante para os agricultores familiares,
e fezes humanas precisam ser melhor mas as famílias agricultoras também
estudadas para seu uso na agricultura são importantes para os solos, porque
[ver Ciclagem de Nutrientes]. a formação e a manutenção de solos
O uso de sistemas diversificados e saudáveis exigem dedicação e trabalho
o melhor uso dos resíduos favorecem – exatamente o que os camponeses e
também a balança comercial brasileira. as camponesas fazem. Afinal, o solo é a
Atualmente, o Brasil importa 75% do comunidade dos seres escondidos, não
nitrogênio (N), 56% do fósforo (P) e podemos fazer com a comunidade destes
92% do potássio (K). Portanto, nossa seres o que não queremos que façam com
agricultura não é sustentável, já que a sua comunidade.

Referências
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Nações Unidas para o Meio Ambiente, 2000.
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_______ et al. Ressignificar nossas percepções sobre o solo: atitude essencial para manejar agroecos-
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Embrapa, 2018. 373 p.
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LEPSCH, I. F. Formação e conservação dos solos. São Paulo: Oficina de Textos, 2002. 177 p.
MAZOYER, M.; ROLDART, L. História das agriculturas no mundo. São Paulo/Brasília: Ed. Unesp/
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PRIMAVESI, A. Agroecologia e manejo do solo. In: Manejo sadio dos solos. Rev. Agriculturas, v. 5, n.
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_______. Manejo ecológico do solo. 18. ed. São Paulo: Nobel, 2006.
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nutrição e produção vegetal. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
SOSA, M. B. et al. Revolução agroecológica: o movimento camponês a camponês da ANAP em Cuba.
1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
ZANELLI, F. V. et al. Intercâmbios agroecológicos: aprendizado coletivo. Informe Agropecuário, v. 36,
n. 287, p. 104-113, 2015.

S Para saber mais


ÁGUA BOA. Curta agroecológica. Direção: Cecília Figueiredo. Uma produção da Articulação Nacional
de Agroecologia (ANA) com o apoio do CTA ZM. Duração: 6 min. 50 seg., junho de 2012. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=zbW4qhSi3jU
KIEHL, E. J. Fertilizantes orgânicos. São Paulo: Ceres, 1985.
CARDOSO, I. M. et al. A vida no solo: a comunidade dos seres escondidos. Viçosa: UFV, 2010.

726
T
TECNOLOGIAS SOCIAIS

P edro Iva n C hr istoffoli

Este verbete discute o conceito de Logo, essa ação é mediada pelo que co-
tecnologias sociais em uma perspectiva nhecemos como artefatos e tecnologias.
histórica, no contexto das ações hu- Entretanto, em sociedades divididas em
manas visando transformar a natureza classes sociais, as definições do sentido
de forma a possibilitar a melhoria das do desenvolvimento das tecnologias são
condições de vida social. O ser humano determinadas pela sua utilização en-
estabelece com a natureza uma relação quanto forma de dominação e extração
de oposição e luta, mas também de de mais-valia.1
complementação e de cooperação. Essa
relação homem-natureza é mediada Papel da tecnologia como ação
pelo trabalho. O trabalho é, portanto, humana para a produção das
o esforço consciente do ser humano, ele condições de vida
mesmo parte da natureza para trans- O conceito de tecnologia vem mui-
formá-la em vista das necessidades tas vezes conectado à ideia de técnica
próprias da espécie humana. A relação e de ciência. Segundo o Dicionário
homem-natureza é também mediada Michaelis, a tecnologia seria o “conjun-
por relações que os seres humanos es- to de processos, métodos, técnicas e
tabelecem entre si. Esse assunto é me- ferramentas relativos à arte, indústria,
lhor discutido nos verbetes cooperação educação etc.; Conhecimento técni-
agrícola e trabalho [ver C ooper ação co e científico e suas aplicações a um
Agrícola ; Trabalho]. campo particular; [...]; Aplicação dos
Como ação humana, o trabalho conhecimentos científicos à produção
visa transformar o ambiente em vista da em geral” (Tecnologia, 2018). Já Álvaro
produção e da reprodução das condições Vieira Pinto entende a técnica como
de vida da espécie. Ao transformar uma ação especificamente humana,
a natureza, o ser humano também se como ato produtivo intencional, a par-
transforma, adquire capacidades, habi- tir de sua capacidade de apreensão das
lidades, destrezas e desenvolve artefatos propriedades objetivas das coisas. A
e conhecimentos que facilitem sua ação. tecnologia seria a ciência que estuda
TECNOLOGIAS SOCIAIS

a técnica, enquanto fato concreto e mento da produção proporciona, di-


objeto de investigação epistemológica ferentemente, os instrumentos para
(Pinto, 2008). a conquista teórica da natureza. [...]
Quanto à ciência, esta é descrita, A ciên­cia logra o reconhecimento
na perspectiva das classes dominantes de ser um meio para produzir ri-
“como um empreendimento autônomo, queza, um meio de enriquecimento.
Deste modo, os processos produti-
objetivo e neutro baseado na aplicação
vos se apresentam pela primeira vez
de um código de racionalidade alheio como problemas práticos, que só se
a qualquer tipo de interferência ex- podem resolver cientificamente. A
terna” (Silveira; Bazzo, 2005, p. 3). experiência e a observação (e as
Isso seria garantido pela adoção de necessidades do processo produti-
um método científico que asseguraria vo) alcançam assim pela primeira
a objetividade e a neutralidade. Para vez um nível que permite e torna
a Unesco, ciência é “o conjunto de indispensável o emprego da ciência.
conhecimentos organizados sobre os (Marx, 1980)
mecanismos de causalidade dos fatos Entretanto, apesar de reconhecer
observáveis, obtidos através do estudo o domínio capitalista sobre o proces-
objetivo dos fenômenos empíricos” so de inovação e da definição sobre
(Silveira; Bazzo, p. 3). Essas definições quais tecnologias aplicar e quais rejeitar
carregam uma visão da ciência como (Katz, 1996), pelo fato da aplicação
algo neutro. Entretanto, elas devem ser eventualmente contrariar interesses do-
necessariamente questionadas, visto minantes, ainda permanece um debate
que a Ciência e Tecnologia (C&T) aberto no campo marxista a respeito
que se desenvolvem no capitalismo da teleologia, da direcionalidade das
não visam assegurar a compreensão tecnologias e da possibilidade de sua
dos fenômenos naturais e sociais, pau- utilização em condições não tipica-
tando-se pela visão utilitarista, que mente capitalistas (por exemplo, em
compreende a subordinação aos inte- situações produtivas autogestionárias,
resses de dominação e de ampliação inseridas em sociedades capitalistas,
dos lucros capitalistas. A visão de como é o caso de cooperativas coletivas
ciência como não sendo um elemento de trabalhadores).
neutro parte do pressuposto de que ela
se converte em força produtiva,2 e que A emergência das
a massa dos trabalhadores cientistas Tecnologias Sociais (TS)
se converte em trabalhadores para o A percepção de que a tecnologia
capital. O capitalismo, por sua vez, pro- é neutra foi dominante durante muito
picia o desenvolvimento tecnológico tempo e ainda segue presente, entre
dos instrumentos científicos e assegura estudiosos da questão. A ideia conti-
os recursos financeiros para que os da nessas interpretações indica que o
cientistas desenvolvam suas pesquisas. problema está centrado no uso e na
O modo capitalista de produção apropriação das tecnologias disponíveis
é o primeiro a colocar as ciências pelas forças social e economicamente
T naturais a serviço direto do processo dominantes. Por exemplo, um trator
de produção, quando o desenvolvi- em si não teria ideologia ou política,

728
TECNOLOGIAS SOCIAIS

a questão é quem se apropria dele e a de maneira diferente sujeitos sociais


quem a tecnologia serve. distintos. As tecnologias em si “demar-
[A] máquina, triunfo do ser huma- cam posições e condutas dos atores;
no sobre as forças naturais, conver- condicionam estruturas de distribuição
te-se, nas mãos dos capitalistas, em social; custos de produção, acesso a bens
instrumento de servidão de seres e serviços; geram problemas sociais e
humanos a estas mesmas forças ambientais; facilitam ou dificultam sua
[...]; a máquina, meio infalível para resolução” (Thomas, 2009, p. 2). Por
encurtar o trabalho cotidiano, o pro- isso, vivemos em sistemas sociotécnicos:
longa, nas mãos do capitalista [...]; “as tecnologias são construções sociais
a máquina, varinha de condão para
tanto como as sociedades são constru-
aumentar a riqueza do produtor, o
ções tecnológicas” (Thomas, 2009, p. 2).
empobrece, em mãos do capitalista.
(Marx apud Paris, 2002, p. 235) Essa é a base da crítica que leva
à constituição do que emerge como o
Ora, caso a tecnologia seja de fato campo das Tecnologias Sociais (TS). As
neutra, o problema decorrente de seu TSs seriam uma forma de “desenhar,
uso reside apenas e tão somente em desenvolver, implementar e gerir tecno-
quem se apropria dessa tecnologia e dos logias orientadas a resolver problemas
resultados que ela traz. Então, o pro- sociais e ambientais, gerando dinâmicas
blema estaria no plano da necessidade sociais e econômicas de inclusão so-
da socialização dos meios de produção, cial e de desenvolvimento sustentável”
que resolveria por si só essa questão. (Thomas, 2009, p. 2). As TSs podem
Um trator servindo a um latifundiário ainda ser definidas como “método ou
veria seus benefícios serem apropriados instrumento capaz de solucionar algum
por este. Esse mesmo trator, a serviço tipo de problema social e que atenda aos
de uma cooperativa camponesa, seria quesitos de simplicidade, baixo custo,
socialmente muito mais útil e resultaria fácil aplicabilidade e geração de impacto
em distribuição de seus benefícios para social (RAE, 2011, p. 109).
mais pessoas. No campo da esquer- O aspecto central das tecnologias
da marxista, um grupo significativo sociais não é apenas atender a proble-
de pensadores compartilha essa visão mas sociais, considerados secundários
(Germer, 2009). pelos mercados e pelas instituições do-
Contudo, essa visão secundariza minantes, mas sim porque se constroem
certas questões imbricadas na concep- com a participação dos atores sociais a
ção, no desenvolvimento e nas esco- serem beneficiados com a tecnologia. E
lhas próprias ao uso (ou não uso) das esse não é um elemento coadjuvante.
tecnologias. A tecnologia contempla, a A simples replicação restrita de uma
partir das condições em que é gerada, TS pode resultar em um processo até
um condicionamento de ordem política, mesmo de redução do grau de autono-
ou ao menos certas restrições. Toda mia e de organização dos seus futuros
tecnologia incorpora a política, por beneficiários, a não ser que os envolva
pressupor escolhas em sua concepção em processos de ressignificação do pro-
e desenvolvimento, consequentemente blema e da tecnologia, que necessita ser T
os resultados dessas escolhas afetam (re)apropriada pelo grupo social.

729
TECNOLOGIAS SOCIAIS

As discussões sobre os processos O trabalho consiste na ação do ser


de transição socialista também con- humano sobre os materiais naturais
templaram essa questão tecnológica. que o circundam, a fim de obter
A edificação da sociedade socialista, deles as coisas de que necessita. Ao
agir sobre tais materiais, começa
obviamente, se dá sobre as bases her-
a conhecê-los, familiariza-se com
dadas do período capitalista. Com o
suas propriedades, e à medida que o
tempo, contudo, tecnologias com dire- trabalho se repete continuamente, o
cionamento em outra base de relações conhecimento adquirido amplia-se
sociais devem ser geradas, tomando em e reage sobre o processo de trabalho,
conta as necessidades sociais gerais, aperfeiçoando-o gradualmente.
e não do capital em si (Christoffoli, (Germer, 2009, p. 80)
2017). Em experiências como na Re- Contudo, é com o advento do capi-
volução Cultural Chinesa tentou-se talismo que as inovações se aceleram e
até mesmo promover uma reinvenção vão sendo estendidas à agricultura. O
das tecnologias cotidianas, com re- crescimento da demanda de produtos
sultados duvidosos, posteriormente agrícolas para suprir necessidades in-
abandonando-se essa linha teórica, dustriais e o desenvolvimento das ciên-
pela adoção das técnicas capitalistas cias, agora já como forças produtivas do
como motor de desenvolvimento das capital, leva a um aumento no número
forças produtivas do país. de inovações voltadas a superar alguns
dos limites fundamentais da produção
A evolução das técnicas produtivas agrícola, como por exemplo a questão
na agricultura e as TS da reposição da fertilidade natural
A agricultura não foi desde sempre dos solos, bem como a proteção dos
uma atividade sob domínio da espécie cultivos contra pragas e doenças, que
humana. De início, os antropoides, limitavam os rendimentos agrícolas
nossos ancestrais, proviam suas neces- e impediam uma maior expansão da
sidades mediante atividades de caça, população mundial.
pesca e coleta. Ou seja, buscavam se As inovações surgidas nos labora-
apropriar daquilo que a natureza ofere- tórios são levadas ao campo: primeiro
cia, diretamente, sem a transformação máquinas e equipamentos, depois ino-
da natureza para produzir alimentos. vações químicas (final do séc. XIX) e,
O embrião da agricultura como forma por último, os avanços da genética (iní-
especificamente humana de produção cio do séc. XX). Posteriormente, ondas
surge no período Neolítico (cerca de 10 sucessivas de inovações foram sendo
mil anos atrás), com o domínio humano incorporadas, promovendo melhorias
sobre o processo produtivo e reprodu- na produtividade desses insumos in-
tivo de plantas e animais, que passam dustriais voltados à agricultura, até que,
a ser controlados de forma a assegurar finalmente, até o início dos anos 1980,
o fornecimento contínuo de alimentos praticamente o grosso da produção agrí-
às comunidades ancestrais (Mazoyer; cola mundial estivesse sob o comando
Roudart, 2010). O processo continuado do capital e sob um modelo tecnológico
T de trabalho forma a base do desenvol- e produtivo conhecido como Revolução
vimento humano.

730
TECNOLOGIAS SOCIAIS

Verde (Mazoyer; Roudart, 2010) [ver Ainda nos anos 1980, como parte da
Revolução Verde]. contestação que se começa a generalizar
Contudo, os estudos realizados sobre o modelo produtivista dominante,
entre 1920/1930, destacando-se as con- que reúne os movimentos hippie, ecolo-
tribuições de Albert Howard, Rudolf gista e uma parcela dos movimentos so-
Steiner, somados às contribuições de cial e estudantil, emerge o que será então
Ana Primavesi, José Lutzemberger, Ste- conhecido como agricultura alternativa.
phen Gliessman e Francis Chaboussou Esse movimento buscava questionar
realizados entre os anos 1970/1980, o uso dos agrotóxicos, a utilização de
motivaram movimentos de inspiração insumos modernos industrializados e
ecológica que buscavam questionar o as relações de dominação e exploração
modelo dominante de produção im- presentes no meio rural. Mas ainda era
posto pelo industrialismo capitalis- dividido em inúmeras correntes filosófi-
ta. Diversos autores publicaram obras cas e políticas com propostas críticas ao
críticas de grande impacto e passa- sistema dominante (agricultura biológi-
ram a influenciar gerações de leitores ca, natural, biodinâmica, permacultura
que engrossariam as fileiras críticas ao etc.). No final dessa década, o movimen-
produtivismo agrícola (Carson, 1962; to se firma assumindo a denominação ge-
Schumacher, 1973). nérica de agroecologia [ver Agroecologia],
No Brasil, a história do movimento como a alternativa para se organizar a
da Tecnologia Social se liga com a dis- produção frente à dominação tecnoló-
cussão sobre Tecnologias Apropriadas gica e econômica do capital.
(TA), originado ainda nos anos 1960. Nessa mesma década, um importan-
Composto por uma comunidade mul- te movimento que articula inicialmente
tifacetada e bastante heterogênea, esse setores estudantis e profissionais de
movimento construiu um conceito que agronomia e, posteriormente, de forma
compreende “produtos, técnicas e/ou crescente, de agricultores, se congrega
metodologias reaplicáveis, desenvolvi- nos Encontros Brasileiros de Agricultura
das na interação com a comunidade Alternativa (EBAA). Durante essa dé-
e que representem efetivas soluções cada foram realizados quatro encontros
de transformação social” (RTS, apud nacionais massivos, que afirmaram as ba-
Dagnino, 2010, p. 11). Entretanto, esse ses para a expansão de uma visão crítica
conceito genérico traz limitações im- em relação à agricultura convencional e
portantes por sua fragilidade analíti- ao capitalismo (Luzzi, 2008). Em alguns
co-conceitual, derivadas da falta de estados, entidades governamentais e
unidade ideológica de classe, refletindo não governamentais (principalmente
uma correlação de forças enfraquecida, ligadas à Rede PTA)3 implementam, no
dos setores populares, num conjunto início do período da redemocratização,
ideologicamente heterogêneo de atores iniciativas no campo das Tecnologias So-
envolvidos com a TS. Somente nos cialmente Apropriadas (Carvalho, 1982).
anos 2000 o movimento por tecnologias Em 2003 surge a Rede de Tecnolo-
alternativas à tecnologia convencional gia Social (RTS) que buscou articular
passa a se denominar como de Tecno- atores sociais e cientistas em busca T
logia Social (Dagnino, 2010). da geração e disseminação de TS. No

731
TECNOLOGIAS SOCIAIS

entanto, a ausência de atores-chave politizar a tecnologia, de deixar claro que a


que demandassem e se envolvessem no questão tecnológica – ainda mais na esfera
processo de geração das TS e a omissão da agroecologia – subordina-se às relações
do Estado nessa articulação a enfra- de poder e da luta entre as classes sociais
queceram. A comunidade científica, que permeiam o conjunto da sociedade e
refém das dinâmicas das tecnologias da questão agrária em particular.
convencionais (TC), não se engajara no Muitas vezes, ativistas da produção
movimento da TS. A RTS identificou orgânica enxergam apenas a perspecti-
o movimento da economia solidária va tecnológica. Reduzem a questão da
e, em particular, os empreendimentos ­agroecologia a essa esfera, desconside-
econômicos solidários (EES) como rando os elementos políticos, ideológicos
elementos centrais do que se poderia e, por que não, pedagógicos. A questão
constituir como movimento da TS no de fundo para o estabelecimento de uma
Brasil (Dagnino, 2010). De início, a forma de desenvolvimento sustentável
concepção da TS se deu em oposição à seria a evolução técnica, descontextua-
tecnologia convencional (TC). lizando-a dos aspectos socioeconômicos
Como é (ou deveria ser) a TS? Adap- e políticos. Essa perspectiva se aproxima
tada a pequeno tamanho; liberadora do determinismo tecnológico, que consi-
do potencial físico e financeiro; e da dera a tecnologia como força autônoma
criatividade do produtor direto; não frente às relações sociais e, portanto, das
discriminatória (patrão × empre- relações de poder e de classe na sociedade.
gado); capaz de viabilizar economi- Essa concepção se articula muitas vezes
camente os empreendimentos auto- com a ideia de que estaríamos na era do
gestionários e as pequenas empresas; conhecimento, de que o trabalho perdeu
orientada para o mercado interno
relevância e que, portanto, pode-se supe-
de massa; ela deve ser adaptada ao
rar a sociedade de classes pelo acesso ao
reduzido tamanho físico e finan-
ceiro. Resumindo, deve ser capaz conhecimento, sem acabar com o sistema
de viabilizar economicamente os de domínio do capital (Frigotto, 2009).
empreendimentos autogestionários. A agroecologia surge justamente pela
(Dagnino, 2014) junção da crítica científica e tecnológica
ao modelo produtivo, com a perspectiva
Ainda que inicialmente construído
de transformação das relações sociais
por negação e exclusão, esse conceito
vigentes no campo brasileiro. Não se pode
contribuiu para o movimento e construiu
limitá-la apenas a um questionamento de
uma referência sobre os elementos e prin-
ordem técnica, pois esteve umbilicalmen-
cípios que deveriam ser considerados para
te ligada à perspectiva de transformação
a construção das TS.
societária, ao enfrentamento do domínio
do latifúndio, da exploração capitalista
O potencial trazido pelo conceito de
sobre as pessoas e sobre a natureza, pelos
Tecnologias Sociais para o avanço da
riscos ao futuro da humanidade.
agroecologia
A agroecologia tem se baseado for-
Ao trazer a discussão das tecnologias
temente na interação entre agricultores
sociais para a esfera da agroecologia, a
T e técnicos, em uma perspectiva comu-
enriquecemos com a perspectiva de se
nicativa horizontal, onde se estabelece o

732
TECNOLOGIAS SOCIAIS

diálogo de saberes: o técnico-científico e trabalho e pelos objetos de trabalho,


o saber popular. Ainda que não tenhamos ou seja, pelo “conjunto dos materiais
avançado mais nesse campo, há aqui naturais que o ser humano transforma
um enorme potencial de cooperação, para seu uso, dos instrumentos e demais
na medida em que se entende que cada materiais e instalações que o auxiliam
camponês é também um sujeito potencial, no trabalho, e do próprio conhecimento
capaz de produzir conhecimento válido. acumulado e da aptidão adquirida para
Em vez de algumas centenas ou milhares o trabalho” (Germer, 2009, p. 80). Logo,
de pesquisadores da agroecologia, teremos as tecnologias fazem parte das forças pro-
milhões de agricultores-experimentado- dutivas de uma determinada sociedade, e
res, em diálogo com a academia, mediante poderíamos também afirmar que a uma
processos dialógicos. sociedade baseada em relações ecológicas
Em relação aos aspectos econômicos de mediação com a natureza correspon-
das tecnologias, cabe ressaltar que, no ca- deria, fundamental e necessariamente, o
pitalismo, uma tecnologia somente passa a estabelecimento de tecnologias também
ser adotada pelos agentes econômicos, em amigáveis ambientalmente.
larga escala, caso a inovação represente Na perspectiva de avançar na com-
redução real dos preços de produção. preensão dos limites atuais para o avanço
No caso da agroecologia isso não é tão da agroecologia, apresentamos um es-
claro. Na maioria das vezes o processo quema demonstrativo das interações a
de transição leva a um aumento real dos serem desenvolvidas na perspectiva do
preços de produção, caso se desconsidere desenvolvimento da agroecologia como
os benefícios socioambientais contidos tecnologia social para a construção de
nessa nova prática produtiva. Apesar novas relações em um possível futuro
disso, nas condições de economia de modo de produção social agroecológico.
mercado, a agroecologia necessariamente O esquema (ver Figura 17, adian-
irá se enfrentar com essa lei tendencial e te, p. 797) procura explicitar diferentes
com as consequências dela decorrente. componentes do que poderia se configu-
rar como forças produtivas e as relações
A agroecologia e as tecnologias sociais de produção em uma perspectiva
sociais na perspectiva do agroecológica. O sentido da explicitação
materialismo histórico das relações de produção agroecológicas
Ora, se a tecnologia e o conheci- aponta para a necessidade de repensar
mento são frutos do trabalho humano as estratégias de construção da agroeco-
historicamente construído, e se a tec- logia. Em certo sentido, muito do vasto
nologia não possui autonomia frente às esforço que tem sido despendido para a
condições sociais nas quais é gerada, promoção da agroecologia se embasa em
se coloca a questão de como podemos uma concepção filosófica idealista, que
analisar o papel da tecnologia agroeco- centra as ações no convencimento, na
lógica enquanto tecnologia social, e sua geração de conscientização, acerca da
contribuição para a superação do modo necessidade da agroecologia, desconsi-
capitalista de produção. derando as condições materiais para sua
As forças produtivas são compostas realização. Obviamente a conscientização T
pelos meios de produção, pela força de é um aspecto essencial do problema, mas

733
TECNOLOGIAS SOCIAIS

não está dissociada de outras relações e Na perspectiva proposta (ver Figura


da totalidade social. 18, adiante, p. 798), busca-se articular a
Necessita-se discutir o conjunto das visão dos três elementos em combinação.
condições para a emergência de um novo Parte-se da materialidade objetiva dos
modo de produção que combine relações elementos, de como se dá a reprodução das
sociais de produção cooperativas e forças condições de vida, de como se articulam
produtivas agroecológicas combinadas. as forças produtivas (o domínio de tecno-
Para tanto, entendemos ser metodologica- logias agroecológicas, por exemplo) em seu
mente necessário partir da materialidade desenvolvimento histórico. Num segundo
dos processos produtivos e organizativos eixo de articulação estão o movimento da
em cada situação real-concreta. Nessa realidade histórica e suas contradições, o
perspectiva, a ênfase idealista apresenta que caracteriza as forças em disputa, os ele-
limitações insuperáveis. Ao contrário, a mentos que necessitam ser compreendidos
abordagem do materialismo histórico e e superados no real concreto, para poder
dialético pode propiciar elementos que ala- avançar. A base fundamental é, então, a
vanquem a massificação da agroecologia. materialidade vivenciada pelos sujeitos
Sendo assim, caberia identificar, em sociais envolvidos nos processos de geração
cada situação, em que ponto situa-se o e validação das tecnologias sociais e como
desenvolvimento das forças produtivas tais, a agroecologia.
materiais da agroecologia e em que pontos Há, portanto, um desafio que deve
localizam-se as contradições principais ser trazido aos processos de cooperação,
e secundárias que impedem o desen- que seria a geração de tecnologias com
volvimento da produção agroecológica. perspectiva social, mediante estratégias
É fundamental, para tanto, uma ação articuladas e combinadas, como a da
planejada, partindo das necessidades geração descentralizada de conhecimento
concretas com base em um processo que agroecológico, combinado a processos
combine a organização de base (voltada de sistematização, mas também via a
para as atividades produtivas concretas articulação de pesquisas científicas e
já desenvolvidas pelos agricultores) e que tecnológicas por entidades como univer-
estabeleça processos de planejamento sidades e centros tecnológicos. Tudo isso
efetivamente participativos, que resultem vinculado aos processos de lutas sociais
em gradual compreensão das questões visando a superação do trabalho alienado
envolvidas, do empoderamento real dos e explorado, como forma dominante de
indivíduos em relação entre si e com o organização societária. Experiências mas-
ambiente natural e social. sivas de transição agroecológica como as
Por isso sugerimos uma articulação do arroz ecológico nos assentamentos do
em três polos do desenvolvimento das Rio Grande do Sul, do Pastoreio Rotativo
tecnologias sociais e do conjunto da prá- Racional Voisin (PRV), dos Agricultores
xis agroecológica: as dimensões da mate- Experimentadores no Semiárido Brasilei-
rialidade, da história e do movimento. O ro (Freire; Falcão, 2013) e do Sistema de
processo de articulação entre esses polos Plantio Direto de Hortaliças em Santa
permitiria a construção de estratégias Catarina (Fayad; Comin; Bertol, 2016)
T participativas envolvendo agricultores, contêm pistas importantes de como se po-
técnicos e cientistas. deriam articular esses diversos aspectos.

734
TECNOLOGIAS SOCIAIS

Referências
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Para saber mais


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ROSENBERG, N. Abrindo a caixa preta. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.

735
T E I A A L I M E N TA R

Notas
1
Uma discussão mais aprofundada acerca do papel das tecnologias no processo de exploração capi-
talista e na luta pela construção socialista pode ser encontrado em Christoffoli (2017).
2
Força produtiva é a capacidade real de trabalhar dos homens vivos: a capacidade de produzir por
meio do seu trabalho e com a utilização de determinados meios materiais de produção e em uma
forma de cooperação determinada por eles, os meios materiais para a satisfação das necessidades
sociais da vida, o que quer dizer, em condições capitalistas, a capacidade de produzir “mercadorias”
(Korsch, 2018).
3
No início dos anos 1980, o Projeto Tecnologias Alternativas foi abrigado pela Federação de Órgãos
para a Assistência Social e Educacional (Fase). Ao se expandir, articulou diversas ONGs engajadas
na produção e divulgação de tecnologias alternativas com uma perspectiva de educação popular.
Posteriormente se organiza em rede, a Rede PTA.

TEIA ALIMENTAR

Fábio dal S oglio

Para que se possa manejar correta- se alimentar. Forma-se, assim, uma


mente um agroecossistema, é necessário cadeia de interações ecológicas com
compreender como as diferentes espé- base na alimentação, a cadeia alimentar
cies que o habitam, nativas ou introdu- ou cadeia trófica (do grego “trophe”, que
zidas, conseguem seus alimentos. Todos significa alimento ou nutrição).
os seres vivos precisam de energia e de Evidentemente, as interações ali-
materiais para seu crescimento e desen- mentares entre as espécies não ocor-
volvimento, para produzir as estruturas rem de forma linear, com plantas sendo
e compostos que precisam, a matéria consumidas por herbívoros, caçados por
orgânica viva, e para manter seus sis- predadores que, ao morrerem, são pro-
temas de suporte à vida funcionando. cessados por decompositores. Temos, por
Essa energia e os nutrientes necessários exemplo, predadores que podem atacar
à vida são obtidos dos alimentos. Mas, outros predadores para se alimentar, ou
enquanto algumas espécies produzem fungos que no solo são decompositores
seus próprios alimentos, utilizando da matéria orgânica morta, mas que,
energia livre disponível e moléculas se tiverem a oportunidade, tornam-se
inorgânicas, outros não possuem essa patógenos de plantas, passando a ser
habilidade e dependem de alimentos consumidores. Assim, as interações
já sintetizados. Em função disso, em alimentares são, na verdade, complexas,
cada ecossistema se estabelece uma formando uma rede de cadeias alimenta-
relação de dependência, em diferentes res, a rede alimentar, também conhecida
níveis (os níveis tróficos), entre espécies como teia alimentar ou teia trófica, que é
T que produzem seus alimentos e as que como o conceito será tratado neste texto.
dependem de outros organismos para Mas, por ser um conceito mais difundido,

736
T E I A A L I M E N TA R

e de aplicação mais fácil, o termo cadeia açúcar, liberando oxigênio (O2). Outros
alimentar ainda tem sido aplicado. organismos autotróficos aproveitam a
energia liberada por reações químicas
Os níveis tróficos e o fluxo de de oxirredução, através da quimiossíntese,
energia na teia alimentar em que o resultado final também é a
As diferentes espécies encontradas síntese de açúcares. São exemplos de or-
em um ecossistema podem ser agrupadas ganismos que realizam a quimiossíntese:
por níveis tróficos, que são caracteri- as ferrobactérias, que oxidam compos-
zados pelas habilidades dessas espécies tos de ferro (Fe); as sulfobactérias, ou
em produzir e/ou consumir alimentos. tiobactérias, que oxidam compostos de
Esses níveis tróficos são: produtores, que enxofre, principalmente ácido sulfídrico
são as espécies capazes de sintetizar seus (H2S); e as nitrobactérias, ou bactérias
próprios alimentos; consumidores, que se nitrificantes, que oxidam amônia (NH3)
alimentam de outros organismos, vivos ou nitrito (NO2), produzindo nitrato
ou mortos; e decompositores, que, ao (NO3), que é fonte de nitrogênio para
decompor formas complexas de matéria as plantas.
orgânica morta, liberam nutrientes de Os açúcares produzidos na fotos-
volta ao ambiente. Ao longo da rede síntese e na quimiossíntese servem de
alimentar, desde os produtores primá- reserva primária de energia que, sendo
rios até os decompositores, ocorre uma necessária, pode ser liberada por reações
transferência de energia e de nutrientes de oxidação. Em alguns organismos,
entre os níveis tróficos, ou seja, um fluxo os aeróbios ou aeróbicos, essa oxidação
de energia e um fluxo de materiais [ver acontece na respiração, que ocorre na
C iclagem de N utrientes]. Um esquema presença de oxigênio (O2); a quebra dos
representando as interações entre esses açúcares libera energia química, CO2 e
diferentes níveis tróficos e o fluxo de H2O. Em alguns organismos, os anaeró-
energia é apresentado na Figura 19 (ver, bios ou anaeróbicos, a quebra dos açúcares
adiante, p. 799). é realizada na ausência de oxigênio, por
Os produtores primários são or- outros compostos, como alguns compos-
ganismos autotróficos, ou seja, são ca- tos nitrogenados ou derivados do enxo-
pazes de sintetizar moléculas orgâni- fre, e através da fermentação, uma reação
cas complexas, como açúcares, lipídios em que os açúcares não são quebrados
e aminoácidos, a partir de moléculas completamente, produzindo compostos
inorgânicas e uma fonte de energia. As mais simples, como o álcool (Lehninger;
principais moléculas inorgânicas que Nelson; Cox, 1993). Alguns organismos,
utilizam são as que servem de fonte de como certos fungos e bactérias, podem
carbono, oxigênio e hidrogênio, como atuar tanto como aeróbicos ou anaeróbi-
o gás carbônico (CO2) e a água (H2O). cos, dependendo do ambiente em que se
Os organismos autotróficos que possuem encontram. A energia liberada na quebra
clorofila, como as plantas e algumas dos açúcares permite aos organismos
algas e bactérias, realizam a fotossíntese, sintetizar as demais moléculas orgânicas
utilizando a luz do sol como fonte de que necessitam ou realizar trabalho. A
energia e transformando as moléculas energia, assim, vai sendo transferida T
de CO2 e H 2O em glicose, que é um para as novas moléculas formadas, ou

737
T E I A A L I M E N TA R

sendo perdida, na forma de trabalho ou contramos associações de espécies que,


de calor. mesmo estando em diferentes níveis
Entre os organismos consumido- tróficos, se beneficiam mutuamente [ver
res, denominados heterotróficos por não I nterações E cológicas]. Temos como
sintetizarem seus alimentos, existem exemplos, citados por Moreira e Si-
diversas formas de obtenção e proces- queira (2006), as bactérias fixadoras de
samento dos alimentos para conseguir a nitrogênio, dos gêneros Rhizobium e Bra-
energia e os nutrientes que precisam para dyrhizobium, que formam associações
viver. Existem consumidores aeróbicos simbióticas com plantas leguminosas,
obrigatórios, anaeróbicos obrigatórios e os fungos micorrízicos, que vivem em
e os que sobrevivem na presença ou na mutualismo (simbiose obrigatória) com
ausência de oxigênio. Os consumidores grande parte das plantas. Em ambos os
primários se alimentam apenas dos pro- casos, os microrganismos fornecem nu-
dutores primários ou de parte desses. É trientes às plantas, e delas recebem açú-
o caso dos herbívoros, como os animais cares. Odum (1983) também cita como
ruminantes, que consomem exclusi- exemplo o caso de líquenes, simbioses
vamente vegetais. Outros organismos entre fungos e algas ou cianofíceas (bac-
se alimentam de outros consumidores, térias fotossintetizadoras), muitas vezes
podendo ser conhecidos como consumi- conhecidos por serem colonizadores
dores secundários, quando se alimentam primários, habitando ambientes pouco
de consumidores primários, como os intemperizados, em que a associação
carrapatos parasitando bovinos, ou pe- benéfica entre os organismos envolvi-
quenos predadores se alimentando de dos é de tal ordem que eles sempre se
coelhos, ou como consumidores terciários, reproduzem juntos. Nesse caso, as algas
como os superpredadores, predadores de ou as cianofíceas realizam fotossíntese,
outros predadores, como as águias que se e, portanto, são os produtores primários,
alimentam de cobras, e os hiperparasitas, enquanto os fungos lhes fornecem água
parasitas de outros parasitas, como fun- e proteção, recebendo em troca o ali-
gos do gênero Trichoderma que atacam mento sintetizado.
fungos parasitas de plantas. Alguns organismos, os mixotróficos,
Embora muitas espécies sejam es- são produtores e consumidores. É o caso
pecializadas em um determinado nível das plantas carnívoras, que, embora fa-
trófico, algumas espécies são mais ge- çam fotossíntese, também se alimentam
neralistas, ocupando diferentes níveis de insetos que ficam presos em suas
tróficos, dependendo do ambiente ou da armadilhas, e de algumas algas, como
fase de vida em que se encontram. Nos as do gênero Euglena, que tanto podem
sirfídeos, que são pequenas moscas, por realizar fotossíntese como se alimen-
exemplo, os adultos consomem néctar e tar de diferentes compostos orgânicos
pólen, sendo consumidores primários, através de fagocitose (Schmidt; Raven;
enquanto as larvas são predadores de Paungfoo-Lonhienne, 2013).
pulgões em plantas, ou seja, consumido- Ao final da rede alimentar existem os
res secundários (Silva et al., 2013). organismos decompositores, que reciclam a
T Em algumas interações ecológicas, matéria orgânica morta. Os decomposito-
como a simbiose e o mutualismo, en- res, em geral microrganismos, adquirem

738
T E I A A L I M E N TA R

energia quebrando compostos orgânicos e, ao longo da cadeia alimentar, essa


mais complexos, como açúcares, proteí- energia vai sendo consumida e perdida.
nas, ácidos nucleicos e lipídios, e liberan- Assim, os produtores primários adquirem
do nutrientes na forma de compostos mais a energia de uma fonte de alto valor
simples que ficam assim disponíveis aos energético, como a luz do sol, e a acu-
produtores primários, reiniciando a rede mulam nos alimentos que sintetizam e
alimentar. No processo de decomposição, que serão a base da rede alimentar. Esses
diversos organismos podem se suceder, alimentos são utilizados em parte pelos
sendo cada um mais adaptado às diferen- produtores, e depois pelos consumidores
tes condições ecológicas ou especializado e decompositores, e a energia inicial vai
na quebra de determinados compostos sendo consumida para produzir trabalho
orgânicos. Alguns organismos podem ou sendo perdida na forma de calor, até
atuar como decompositores de matéria um sumidouro final. Pela rede alimentar,
orgânica, em determinadas condições de as perdas energéticas a cada nível trófico
ambiente, passando a ser consumidores são consideráveis, podendo chegar a 90%
se essas condições forem modificadas. É o (Odum, 1983). Assim, os produtores acu-
caso de vários microrganismos encontra- mulam, por massa, mais energia que os
dos normalmente como decompositores consumidores primários, e esses, por sua
de matéria orgânica no solo, e que podem vez, mais energia que os consumidores
passar a atuar como patógenos caso haja secundários, e assim sucessivamente. Isso
a oportunidade. explica por que podemos considerar a
Alguns organismos podem se ali- produção vegetal mais eficiente, do pon-
mentar de uma maior diversidade de to de vista energético, que a produção
fontes de alimento, tanto produtores animal, e porque não temos criações de
como consumidores e mesmo decom- animais carnívoros.
positores, sendo chamados de polífagos
ou onívoros. É o caso dos humanos, que A Teia alimentar e o manejo dos
podem processar uma gama de alimen- agroecossistemas
tos, tendo para isso um sistema digestivo Como visto, as redes alimentares
adaptado. Em contrapartida, assim como estão conectadas ao fluxo de energia e
ocorre nos humanos, muitos organismos à produtividade, em termos de biomassa,
não se alimentam apenas de fontes de de um ecossistema. Isso significa que o
carbono e de minerais, mas requerem manejo correto de um agroecossistema
também fontes de alguns compostos direciona o fluxo de energia para fun-
complexos que não conseguem sintetizar, ções ecológicas desejadas, beneficiando
como vitaminas ou aminoácidos, que espécies e interações prioritárias para a
precisam ser obtidos pela alimentação. agricultura. Embora regras gerais possam
Assim, mesmo um organismo onívoro, ser úteis, estabelecendo a conservação do
que pode utilizar uma ampla gama de solo, da água e da biodiversidade, para
alimentos, pode requerer alguma fonte o manejo correto dos agroecossistemas,
nutritiva específica para completar seu é necessário entender as tendências na-
desenvolvimento de forma satisfatória. turais das redes tróficas, considerando
Segundo Odum (1983), o fluxo de as condições ecológicas locais e como T
energia ocorre em uma única direção diferentes práticas as afetam.

739
T E I A A L I M E N TA R

Muitas práticas de manejo, comuns de quebra-ventos, que alteram o micro-


na agricultura convencional, como a clima no agroecossistema, interferem
aração, a incorporação de restos cultu- na distribuição de insetos ou patógenos
rais ao solo, a aplicação de agrotóxicos especializados, ou seja, que atacam ape-
e os monocultivos, prejudicam o fluxo nas determinadas plantas, contribuindo
de energia e de matéria orgânica no também com a regulação biótica, ao ser-
sistema. Em um solo tropical, a aração, vir de reservatório de agentes de controle
que provoca compactação, e a incorpo- biológico, como predadores, por exemplo
ração profunda de matéria orgânica não aranhas e vespas, ou parasitas, como
decomposta, por exemplo, incrementa microrganismos que ataquem outros
a atividade anaeróbica no solo e, ao microrganismos ou causem doenças nos
contrário de liberar CO2, libera metano insetos prejudiciais [ver Agrofloresta –
(CH4), que é tóxico (Primavesi, 2012). sistemas agroflorestais].
O metano também tem, proporcional-
mente, maior potencial que o CO2 como Conclusão
causa do efeito estufa (Forster, 2007). Diversas são as possibilidades de
Os monocultivos reduzem a disponibi- manejarmos as redes alimentares nos
lidade de alimentos para a manutenção agroecossistemas e, com isso, atin-
dos diferentes grupos funcionais, como, gir maiores níveis de produtividade
por exemplo, os agentes de controle na agricultura. No entanto, para de-
biológico, aumentando a população de senvolvermos agroecossistemas mais
organismos não desejados (Nichols, sustentáveis, além da produtividade,
2006). Os agrotóxicos, químicos ou devemos levar em consideração as de-
biológicos, afetam as redes alimentares, mais propriedades destes, como a sus-
pois alteram a biodiversidade funcional, tentabilidade ambiental, a autonomia,
por vezes de forma não intencional, tanto a equidade e a estabilidade. Como a
diretamente, em espécies suscetíveis aos rede de interações alimentares em cada
ingredientes ativos, como indiretamente, ecossistema tem suas especificidades,
quando elimina da rede alimentar uma sendo condicionada por características
espécie que é chave para a sobrevivência físicas e ecológicas que variam conside-
de outras espécies. ravelmente no tempo, ao longo dos dias
Em contrapartida, existem práticas e das estações, e de acordo com as con-
que são benéficas aos agroecossistemas, dições climáticas, para cada ambiente
favorecendo a captação de energia no e para cada situação existem respostas
sistema e a acumulação de biomassa. É o diferentes do comportamento das redes
caso dos sistemas agroflorestais, onde as alimentares. Regras gerais de manejo
árvores, além de aumentarem a biodiver- do solo, da água e da biodiversidade, e
sidade funcional, fornecendo alimentos e de como poderemos melhorar o fluxo
proteção para diversas espécies, também de energia e biomassa, manejando as
aumentam a interceptação de luz no redes alimentares, podem ser utilizadas,
sistema e a acumulação de biomassa, mas a experiência e o conhecimento
com efeitos positivos na estrutura e na acumulados em cada ecossistema pre-
T fertilidade dos solos (Coelho, 2012). cisam ser levados em conta, adaptando
Também o uso de barreiras vegetadas e os manejos aos contextos locais. Além

740
TERRAS INDÍGENAS

disso, em decorrência das interações beneficiem espécies nativas, tanto da


ecológicas entre espécies, em geral mais biodiversidade manejada como da bio-
eficientes na conservação de energia diversidade associada, o que em geral
e na produção de biomassa, resulta resulta no estabelecimento de redes ali-
um longo período de coevolução, no mentares mais eficientes na acumulação
qual se deve priorizar os manejos que de energia e na produção de biomassa.

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TERRAS INDÍGENAS

R osa ne Fr eir e L acer da


Saulo F er r eir a F eitosa

O presente verbete trata da temática depois situar o seu tratamento constitu-


das Terras Indígenas no Brasil. Par­ cional e infraconstitucional, bem como
tindo­de aspectos conceituais, aponta os ataques que tais direitos vêm sofren-
a confusão com o conceito de “reservas do. Conclui enfatizando a importância
indígenas”, traz breves informações sobre das terras indígenas para a garantia da
o desenvolvimento histórico dos direitos existência desses povos e da proteção T
indígenas à terra desde a Colônia, para ambiental, e indicando a necessidade

741
TERR AS INDÍGENAS

urgente de defesa das conquistas alcan- guerras, tinham suas terras totalmente
çadas no texto constitucional de 1988 espoliadas (Perrone-Moisés, 1992).
(Brasil, 1988). No século XIX, tratamentos deste
tipo foram cedendo espaço a instru-
Conceito mentos mais “racionais” de apropriação
É comum as pessoas usarem a ex- daquelas terras. Tal iniciativa, sentida
pressão “reservas” para se referirem aos mais no Nordeste e Sudeste do país, teve
locais onde vivem os povos indígenas. O como ferramentas principais o Decreto
termo traz a ideia de que estas terras são n. 426 de 24 de julho de 1845 (Brasil,
espaços para eles separados, criados pelo 1845), que autorizou o arrendamento das
Estado como nichos de sobrevivência terras à revelia dos indígenas, e a Lei de
no processo de liberação à apropriação Terras de 1850 (Brasil, 1850), que serviu
colonial. Seriam espaços de contenção de pretexto a que as terras indígenas
dos indígenas, evitando a perturbação fossem tidas como “devolutas”.
da estrutura agrária consolidada com a Com a Lei de Terras, a Decisão n.
colonização. 172, de 21 de outubro de 1850, do Mi-
Já o conceito de “terras indígenas” nistério dos Negócios do Império (Brasil,
traz a ideia de território [ver Território], 1850), incorporou aos bens públicos as
de espaço dotado de sentidos de histo- terras dos indígenas “dispersos e con-
ricidade, pertencimento, identidade, na fundidos na massa da população civiliza-
perspectiva dos próprios indígenas. São da”. Várias províncias então declararam
espaços de representação e reprodução extintos os aldeamentos cujos indígenas
cíclica das cosmovisões de cada povo [ver estivessem naquelas condições. Embora
Cosmovisões], e seu referencial na relação os aldeamentos fossem unidades adminis-
com os não indígenas. trativas e a extinção fosse deles e não dos
indígenas, as terras foram transferidas ao
Breve histórico Império e daí às províncias, municípios e
Desde o final do século XV, em todo particulares (Moreira Neto, 2005), geran-
o continente americano, a trajetória do conflitos até hoje existentes.
histórica das terras indígenas confun- Nas décadas de 1940 e 1950, novos
de-se com o avanço do projeto colonial impactos sobre as terras indígenas viriam
e do capitalismo sobre os seus limites: com a expansão das fronteiras agrícolas
uma história de espoliação, genocídio na “Marcha para o Oeste” (Goiás e Mato
e resistência. Grosso). Nas décadas de 1960 e 1970,
No Brasil, desde a legislação colonial os impactos deslocaram-se para a região
(sobretudo o Alvará Régio de 1º de abril Norte, com a abertura de grandes rodo-
de 1680), a tradição jurídica sempre re- vias sobre inúmeras terras, no bojo do
conheceu como congênitos os direitos dos Plano de Integração Nacional (PIN), do
índios às suas terras, dado que “primários governo militar. Tais projetos deixaram
e naturais senhores delas”. Era o instituto um enorme custo em vidas de indígenas
do Indigenato (Mendes Júnior, 1912, p. até então sem contato com o mundo ex-
58; Silva, 2017, p. 875), só não aplicado terior. Aldeias inteiras foram removidas
T aos indígenas considerados hostis ao e dizimadas por epidemias levadas com
projeto colonial: aqueles, punidos em o contato (Davis, 1978; Leonel, 1992).

742
TERRAS INDÍGENAS

As terras indígenas no Brasil che- manter os conceitos abertos das Cartas


garam ao século XXI ocupando apenas anteriores (“terras que habitam” e “terras
cerca de 12% do território que ocupavam habitadas”), introduziu-se elementos que
no século XVI, mesmo assim objeto de podem ser alheios à lógica territorial indí-
todas as formas de invasão. O fato de gena. Para outros, a delimitação elimina
ainda existirem deve-se à ferrenha e dúvidas quanto à territorialidade daquelas
contínua resistência indígena. terras, protegendo-as de reducionismos do
tipo “reservas”. Seja como for, o conceito
Tratamento constitucional está amarrado à ideia de “usos, costumes
Apesar do silêncio inicial da Cons- e tradições” indígenas e não a critérios de
tituição do Império (Brasil, 1824), os in- conveniência do Estado.
dígenas passariam a tema constitucional Como medidas protetivas contra
através da Lei n. 16, de 12 de agosto de os interesses do capital, a Constituição
1834 (Brasil, 1834), que, aditando aquela Federal de 1988 (Brasil, 1988) conside-
Carta, determinou (art.11, §5º) que o rou-as “inalienáveis e indisponíveis” (art.
governo central compartilhasse com as 231, § 4º), isto é, não sujeitas à venda ou
Assembleias Legislativas das Províncias a quaisquer outras formas de destinação
a sua “catequese e civilização”. a terceiros.
A atenção constitucional específica Aos indígenas, a CF/88 (Brasil,
só viria com a Carta de 1934 (Brasil, 1988) reconheceu os direitos de “posse
1934), que ordenou o respeito à “posse de permanente” e “usufruto exclusivo”
terras de silvícolas” que nelas se achas- (CF/88 art. 231, §2º) sobre essas terras,
sem “permanentemente localizados” excluindo o de propriedade, que pertence
(art. 127), texto repetido com algumas à União (art. 20, XI). Reafirmando o
variações nas Cartas de 1937 (Brasil, indigenato, declarou posse e usufruto
1937), 1946 (Brasil, 1946), 1967 (Brasil, como direitos “originários” e “impres-
1967) e Emenda Constitucional (EC) de critíveis” (art. 231, caput e § 4º), porque
1969 (Brasil, 1969). preexistentes à colonização e sem prazo
Na Carta de 1988, elas passam a de vigência.
receber a denominação de “tradicional- A CF/88 (Brasil, 1988) proíbe ao
mente ocupadas” cujo conceito é dado poder público a remoção (definitiva) dos
do seguinte modo: grupos indígenas (art. 231, § 5º), e só
são terras tradicionalmente ocupa- admite o seu deslocamento (temporário)
das pelos índios as por eles habitadas para protegê-los de “catástrofe ou epide-
em caráter permanente, as utilizadas mia que ponha em risco sua população”,
para suas atividades produtivas, as ou no “interesse da soberania do país”,
imprescindíveis à preservação dos garantido “o retorno imediato logo que
recursos ambientais necessários a cesse o risco”. Nas duas hipóteses, a me-
seu bem-estar e as necessárias à sua dida só pode ser adotada se referendada
reprodução física e cultural, segun- ou deliberada pelo Congresso.
do seus usos, costumes e tradições.
Os direitos de posse e usufruto têm
(Brasil, 1988, art. 231, §1º)
sido fundamentais para a os povos indí-
Para alguns, essa delimitação con- genas e suas lutas, sendo previstos como T
ceitual é problemática, pois ao não se a única destinação legítima dada àquelas

743
TERR AS INDÍGENAS

terras, excluindo-se de qualquer preten- 1988) têm constituído importante rede


são a própria União Federal (CF/88 art. protetiva, concretizada nas demarcações
231, §2º) (Brasil, 1988). desde então realizadas e no grau de con-
No entanto, as ofensivas do setor tenção contra o avanço do latifúndio e
minerário durante a Assembleia Nacio- das mineradoras.
nal Constituinte (ANC) de 1987-1988 Mas o centro das tensões con-
(Brasil, 1988) limitaram o usufruto ex- tinua na demarcação que, apesar de
clusivo indígena às riquezas do “solo, rios obrigação da União (art. 231, caput),
e lagos” (art. 231, § 6º). As localizadas continua ausente em 40,86% das Ter-
no “subsolo” foram excluídas, tornan- ras Indígenas (Conselho Indigenista
do-se exploráveis pelos setores mineral Missionário, 2019).
e hidrelétrico.
No caso da mineração e lavra, Legislação e demarcação
dependem de aprovação de lei federal Após três décadas da Constituição
(ainda inexistente), que deve estabele- de 1988 (Brasil, 1988), continua ainda
cer as “condições específicas” para essa vigente a Lei n. 6.001 de 1973 (Brasil,
atividade naquelas terras (art. 176, §1º), 1973), o “Estatuto do Índio”, que prevê
o modo como as comunidades afetadas três tipos de terras indígenas: as “ocupa-
devem ser ouvidas a respeito, e tratar da das”, as “reservadas” e as de “domínio”
sua participação nos resultados da lavra (art.17).
(art. 231, §3º). As “ocupadas” predominam em todo
A CF/88 determina que tanto um o país. Correspondem às previstas na
quanto outro tipo de exploração eco- Carta de 1988 (tradicionalmente ocu-
nômica precisam de autorização do padas). São as mais relevantes, porque
Congresso Nacional (art. 231, §3º). dotadas do sentido de territorialidade.
Desde a promulgação da Constituição, Sua demarcação pela União é obrigató-
tais exigências suspenderam os projetos ria, em ato que não cria, só reconhece a
minerários nas Terras Indígenas. Con- ocupação sob o critério dos usos, costu-
tudo estas continuam a sofrer os efeitos mes e tradições indígenas.
de hidrelétricas que, embora situadas Já as “reservadas” são criadas pelo
fora daqueles limites territoriais, têm poder público via desapropriação por
gerado fortes impactos sociais e am- interesse social, para abrigar comuni-
bientais no seu interior. dades que por alguma razão (barragens
A Carta protege as terras indígenas hidrelétricas, conflitos internos etc.)
com a invalidade dos atos que perturbem perderam ou deixaram suas terras. Se-
aquela ocupação e posse, e o domínio da gundo o Conselho Indigenista Missio-
União (art. 231, § 6º), mas diz que serão nário (Cimi), apenas 2,93% das Terras
válidos havendo “relevante interesse Indígenas enquadram-se nessa categoria.
público da União”, a ser regulado em lei Quanto às “de domínio”, pertencem às
complementar. próprias comunidades, adquiridas pelas
De modo geral, apesar das ofensivas formas previstas no direito civil (com-
do capital sobre os territórios dos povos pradas etc.). Chegam a apenas 1,62%
T e comunidades tradicionais, os direitos e do total no país (Conselho Indigenista
garantias conquistados na CF/88 (Brasil, Missionário, 2019).

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TERRAS INDÍGENAS

Por suas características distintas, interessados, com base nos princípios


nem as reservas nem as terras dominiais constitucionais do contraditório e da
indígenas possuem os atributos constitu- ampla defesa, o direito de contestar admi-
cionais das terras tradicionalmente ocu- nistrativamente os processos demarcató-
padas, nem são alcançadas pela mesma rios. Apesar disso, o Decreto mostrou-se
proteção que é conferida àquelas terras, incapaz de satisfazer plenamente aos inte-
sendo, porém, objeto de outras formas de resses do capital naquelas terras. Agora a
proteção pela Lei 6.001/73 (Brasil, 1973). “bancada ruralista” no Congresso investe
Por se chocarem com a Carta de para alterar a própria Constituição, para
1988, dispositivos da Lei 6.001/73 (Bra- impedir as demarcações e liberar aquelas
sil, 1973) perderam validade, como o art. terras à exploração sem limites.
20, que previa a remoção dos indígenas
via decreto por “imposição da segurança As ameaças
nacional”, “obras públicas” e “exploração As Terras Indígenas são hoje alvo
do subsolo”. Outros continuam vigentes, de uma onda de ataques de proporções
como o que determina a demarcação nunca imaginadas, que têm como objetivo
administrativa (art. 19, caput), e os que sua total abertura às mais variadas formas
proíbem que sejam arrendadas, ou que de exploração econômica pelo capital,
terceiros possam nelas caçar, pescar, contrariando as medidas de proteção
coletar frutos ou praticar atividades previstas pela CF/88 (Brasil, 1988).
agropecuárias ou extrativas (art. 18, As ameaças mais preocupantes vêm
caput e § 1º). de Propostas de Emenda Constitucional
Ao optar pela demarcação na via (PECs), quase todas apresentadas pela
administrativa, e não judicial, o Esta- Bancada Ruralista. As mais numerosas
tuto acatou a lógica da Carta de 1967 modificam a competência para a demar-
(Brasil, 1967), de que tais terras já são cação, transferindo-a para o Congresso
bens da União pelo próprio fato de serem Nacional, PEC 133/92 (Brasil, 1992b);
indígenas. Já pertencendo à União, não 215/2000 (Brasil, 2000); 579/2002 (Bra-
haveria que se desapropriar, mas apenas sil, 2002); 275 (Brasil, 2004b) e 319/2004
que reconhecer a ocorrência e os limites (Brasil, 2004c); 37/2007 (Brasil, 2007b)
geográficos daquela posse e ocupação. ou para as Assembleias Legislativas Es-
Em 1973, o Estatuto havia determi- taduais, PEC 257/2004 (Brasil, 2004a).
nado que a demarcação deveria ocorrer Outras propõem que as demarcações
“por iniciativa e sob orientação” do órgão sejam feitas por lei e não administrati-
indigenista oficial, a Fundação Nacional vamente: PEC 117/2007 (Brasil, 2007c);
do Índio (Funai), e de acordo com “pro- 37/2007 (Brasil, 2007b) e 161/2007 (Bra-
cesso estabelecido em decreto do Poder sil, 2007d) e 411/2009 (Brasil, 2009).
Executivo” (art. 19, caput). Desde então, Entre as PECs, uma proíbe a demar-
cinco decretos se sucederam,1 todos cação de terras indígenas em faixa de
preocupados em reduzir o papel do órgão fronteira PEC 133/1992 (Brasil, 1992b)
e possibilitar a interferência de setores e outra,2 a revisão das demarcações já
contrários às demarcações. efetuadas (PEC 215/2000, Brasil, 2000).
Em 1996, o Decreto n. 1.775 (Brasil, Há também as que confundem demar- T
1996a) (ainda vigente) deu a terceiros cação com criação de reservas – PEC

745
TERR AS INDÍGENAS

133/1992 (Brasil, 1992b); PEC 37/2007 Outro tema preocupante é a explo-


(Brasil, 2007b) –, e que descaracterizam ração mineral, represada desde 1988.
a ocupação tradicional e o indigenato, Em levantamento de 2013, só na terra
condicionando à demarcação as garan- indígena Xikrin do Cateté (PA) haveria
tias da inalienabilidade e da indisponi- 120 requerimentos de pesquisa, compro-
bilidade das terras e a imprescritibilidade metendo 100% de sua superfície (Rolla;
dos direitos de posse e usufruto – PEC Ricardo, 2013, p. 9). Mais recentemente,
215/2000 (Brasil, 2000); PEC 161/2007 o Instituto Socioambiental (ISA) detec-
(Brasil, 2007d). tou a existência de 4.181 requerimentos
Alterações através de leis ordiná- incidentes nas terras indígenas na região
rias também têm sido tentadas para (Almeida et al., 2016).
se dificultar as demarcações. É o caso, Com as pressões do setor minerário,
por exemplo, do Projeto de Lei (PL) ao menos 24 Projetos de Lei (PLs) tratam
490/2007 (Brasil, 2007a), que modifica o do assunto. Nos anos de 1991 e 1992,
art. 19 do Estatuto do Índio para que as quando da apresentação de propostas
terras indígenas “sejam demarcadas por para a revisão da lei indigenista,3 o mo-
lei”. A medida se justificaria, conforme o vimento indígena e aliados defenderam
projeto, porque tais demarcações atingi- o novo “Estatuto” como lugar estratégico
riam “interesses diversos” (Miotto, 2018). para a questão. No entanto, em 1996,
Outra preocupação vem do PL o PL 1.610 (Brasil, 1996b) do Senador
6.818/2013 (Brasil, 2013a), que não só Romero Jucá (PFL/RR) tornou-se o car-
submete os procedimentos demarcató- ro-chefe das propostas das mineradoras.
rios aos interesses de estados, municípios Mas o Legislativo não tem sido a única
e particulares, como limita o conceito preocupação. Desde julho de 2017 vigora
de ocupação tradicional às terras onde na Advocacia Geral da União (AGU) o
estivessem “na data da promulgação Parecer Normativo n. 001, que determina
da Constituição de 1988”. Afirmando- o cumprimento de todas as condicionantes
-se inspirado na decisão do Supremo fixadas pelo STF no caso Raposa/Serra
Tribunal Federal (STF), no histórico do Sol (Brasil, 2017), o que reforça a tese
julgamento do caso Raposa/Serra do Sol do marco temporal (Liebgott, 2018). Em
(PET 3.388/RR) (Brasil, 2013b), o PL diversas ocasiões o Judiciário tem decidido
substitui o indigenato pela chamada “tese de modo contrário ao parecer, e recente-
do marco temporal”, que só reconhece mente a Procuradoria-Geral da República
como indígenas as terras que eles estives- manifestou-se contrária à tese, tema ainda
sem ocupando em 6 de outubro de 1988. em aberto no STF.
Propostas como estas submetem as
demarcações aos interesses não indíge- Importância e perspectivas
nas locais e desconsideram os processos Apesar de todo o processo de
históricos de espoliação territorial viven- ­degradação e espoliação que tem sofri-
ciados quando da própria Constituinte do ao longo dos últimos cinco séculos,
em 1987 e 1988. A tese do marco tem- as terras indígenas mantêm sua impor-
poral convalida o esbulho então denun- tância como elemento fundamental
T ciado por aqueles povos, quando a Carta na existência dos povos indígenas e,
de 1988 foi promulgada. com eles, sua diversidade étnico-cul-

746
TERRAS INDÍGENAS

tural expressa em antigos e diferentes próximo de forte impacto do capital,


saberes e visões de mudo. Além disso, com recrudescimento de conf litos e
cumprem relevante papel como uma aumento de violências contra aqueles
das últimas e mais eficazes barreiras povos. Mas apontam também para a
de proteção (Instituto de Pesquisa Am- intensificação e ampliação das suas
biental da Amazônia, 2015) contra a formas de resistência.
degradação ambiental promovida pelas Mais do que nunca, o momento
formas mais predatórias de exploração histórico exigirá dos povos indígenas
capitalista. e de seus aliados a articulação solidá-
Por tais razões, as terras indígenas ria com outros setores populares mais
estão sob um ataque que projeta, com próximos e vítimas do mesmo projeto,
o retrocesso de direitos, a tentativa de a capacitação para o enfrentamento à
se retomar a imposição de modelos de guerra contemporânea da comunicação,
expansão econômica tragicamente vi- e a disposição para estimular nas novas
venciados pelos indígenas em passado gerações a necessidade de reflexão sobre
recente (Dias, 2019). Neste contexto, as o papel de todos em relação ao futuro do
perspectivas apontam para um período país, da região e do planeta.

Referências
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TERR AS INDÍGENAS

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nhecimento das áreas remanescentes das comunidades dos quilombos deverão ser feitos por lei. 2007d.
_______. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 215 de 28 de março de 2000.
Autoria de Almir Sá (PPB/RR). Acrescenta o inciso XVIII ao art. 49; modifica o § 4º e acrescenta o §
8º ambos no art. 231, da Constituição Federal. Inclui dentre as competências exclusivas do Congresso
Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação
das demarcações já homologadas; estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão
regulamentados por lei. 2000. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetra-
mitacao?idProposicao=14562. Acesso em: 5 abr. 2021.
_______. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 257 de 7 de abril de 2004.
Autoria de Carlos Souza (PL/AM) e outros. Dá nova redação ao § 1º art. 231 da Constituição Federal,
devendo a demarcação de terras indígenas ser submetida à audiência das Assembleias Legislativas dos
estados em cujos territórios incidam. 2004a. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/
fichadetramitacao?idProposicao=182202. Acesso em: 5 abr. 2021.
_______. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 275 de 13 de maio de
2004. Autoria de Lindberg Farias (PT/RJ) e outros. Dá nova redação aos arts. 49, XVI e 231, caput, da
Constituição Federal, submetendo ao Congresso Nacional a demarcação de terras indígenas. 2004b.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=253493.
Acesso em: 5 abr. 2021.
_______. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 319 de 6 de outubro de
2004. Autoria de Zequinha Marinho (PSC/PA) e outros. Dá nova redação ao art. 231 da Constituição
Federal, submetendo a demarcação de terras indígenas à aprovação do Congresso Nacional. 2004c.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=265999.
Acesso em: 5 abr. 2021.
_______. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 411 de 29 de setembro de
T 2009. Autoria de Abelardo do Lupion (DEM/PR). Acrescenta §8º ao art. 231. Estabelece a competência
do Executivo para iniciativa de lei sobre demarcação de terras indígenas. 2009. Disponível em: https://
www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=453046. Acesso em: 5 abr. 2021.

748
TERRAS INDÍGENAS

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do Congresso Nacional. 2002. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetra-
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pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para organizar um
regime e democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e
econômico, decretamos e promulgamos o seguinte. 1934. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
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tados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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Deus, decreta e promulga a seguinte Constituição do Brasil. 1967. Disponível em: http://www.planalto.
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constituicao67.htm. Acesso em: 5 abr. 2021.
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agosto de 1834. Faz algumas alterações e adições á Constituição Politica do Imperio, nos termos da Lei
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de setembro de 1850. Dispõe sobre as terras devolutas do Império. 1850. Disponível em: http://www.
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749
TERRITÓRIO

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Notas
1
Foram os decretos n. 76.999, de 8 de janeiro de 1976 (Brasil, 1976); n. 88.118, de 23 de fevereiro de
1983 (Brasil, 1983); n. 94.945, de 23 de setembro de 1987 (Brasil, 1987); n. 22, de 4 de fevereiro de
1991 (Brasil, 1991a), e n. 1.775, de 8 de janeiro de 1996 (Brasil, 1996a), este ainda em vigor.
2
Trata-se da faixa de até 150km de largura ao longo das fronteiras terrestres com outros países, que
a Constituição Federal de 1988 diz ser “fundamental para defesa do território nacional”, e a ter sua
“ocupação e utilização” regulados em lei, CF/88, art. 20, §2º (Brasil, 1988).
3
O Processo de revisão da Lei 6.001/73 (Brasil, 1973), iniciado pelo Executivo com a apresentação
do PL 2.160/91 (Brasil, 1991c) que dispunha sobre o “Estatuto do Índio”, contou também com a
apresentação do PL 2.057/91 (Brasil, 1991b), do Dep. Aloízio Mercadante e outros – dispondo sobre
o “Estatuto das Sociedades Indígenas” –, e do PL 2.619/92 (Brasil, 1992a), do Dep. Tuga Angerami,
relativo ao “Estatuto dos Povos Indígenas”.

TERRITÓRIO

Paulo A lenteja no
L uiza C huva

Território é um conceito de uso designar políticas públicas e também


T generalizado em muitas ciências, uma uma expressão crescentemente utilizada
palavra cada vez mais empregada para por movimentos sociais nas suas reivin-

750
TERRITÓRIO

dicações por espaços que assegurem as Essa concepção de território remete


condições materiais de reprodução da também à ideia de coesão social, se-
vida e a afirmação de suas identidades. gundo a qual o território seria capaz de
Não temos pretensão neste verbete estabelecer a coesão, uma vez que seria
de dar conta de todo o rico e extenso abrigo para a nação e para o Estado,
debate sobre este conceito/palavra, tarefa assim como fonte de recursos para este
à qual foram dedicados vários livros. Nos (Ratzel, 2011).
limitaremos a uma síntese de alguns de- A concepção de território como
bates que consideramos essenciais para limite territorial de um Estado-nação e,
compreender algumas polêmicas que portanto, como fundamento absoluto da
envolvem este conceito/palavra, assim soberania política, embora amplamente
como seu uso na designação de políticas difundida, considera apenas o Estado
e movimentos sociais. como núcleo de poder. O Estado terri-
torial é visto como elemento organizador
O conceito de território da ordem internacional, estruturando
A origem do conceito de território as estratégias políticas, econômicas e
remonta a estudos das ciências naturais, sociais. Portanto, a crise dos Estados-
no século XVIII, referindo-se ao domínio -nação representa também a crise do
de espécies vegetais ou animais sobre de- próprio território.
terminadas áreas da superfície terrestre. A partir de 1990, diante de uma
O positivismo, já no século XIX, incor- nova ordem política mundial, o debate da
pora as características deste território desterritorialização passa a ser bastante
natural para explicar o comportamento pautado pelas ciências sociais em geral.
humano. É neste contexto, em meio à A afirmação fundamental é de que o
formação dos Estados-nacionais alemão mundo estaria deixando de se organizar
e italiano, que Friedrich Ratzel, através de forma territorial. A obra de Badie
de uma perspectiva geográfica, associa (1996), O fim dos territórios, um marco
o conceito de território ao espaço do- neste debate, afirma a emergência de
minado por uma comunidade ou por um uma sociedade em rede em detrimento
Estado (Ratzel, 2011). da sociedade territorial, associada, nesta
Segundo esta concepção, o Estado concepção, a uma ideia de estabilidade
não seria concebível sem um território e enraizamento em oposição aos fluxos
e fronteiras, e sua função seria proteger e mobilidade das redes.
o solo contra ataques que buscassem Acrescenta-se a esta ideia o con-
diminuir o território. Assim, a perda texto de enfraquecimento dos Esta-
de território indicava a decadência da dos-nação, que corresponde a uma
sociedade e o progresso desta requeria crise do papel regulador do Estado e,
o aumento do território, uma vez que consequentemente, a uma crescente
este representava a própria existência desterritorialização, uma vez que há
da sociedade. Disso deriva o conceito uma perda de controle dos processos
de espaço vital, entendido como o di- sociais através do espaço. Além disso,
reito natural da sociedade a um espaço, a desterritorialização é associada ao do-
uma articulação da visão naturalista mínio da imaterialidade, o ciberespaço, T
com a perspectiva jurídico-política. em oposição à materialidade do territó-

751
TERRITÓRIO

rio; assim como a uma mundialização “espaço definido e delimitado por e a


de grandes corporações, que ao estarem partir de relações de poder” (Souza,
em diversos lugares, não estariam em 1995, p. 78).
território algum (Haesbaert, 2006). Todas essas concepções ampliam
Haesbaert vai desenvolver uma crí- a compreensão de poder para além do
tica a esta perspectiva, afirmando que a poder estatal, referem-se “tanto ao poder
desterritorialização deve ser entendida no sentido mais concreto, de domina-
como um movimento que, ção, quanto ao poder no sentido mais
[...] longe de estar fazendo desapa- simbólico, de apropriação” (Haesbaert,
recer os territórios, ou mesmo de 2006, p. 1), e “pode ser concebido a par-
correr ‘paralelo’ a um movimento tir da imbricação de múltiplas relações
territorializador, geralmente mais de poder, do poder mais material das
tradicional, deve ser interpretado relações econômico-políticas ao poder
com um processo relacional, des-re- mais simbólico das relações de ordem
-territorializador, no qual o próprio mais estritamente cultural” (Haesbaert,
território se torna mais complexo, 2006, p. 79).
por um lado mais híbrido e flexível,
Assim, considerar múltiplas esca-
mergulhado que está nos sistemas
las espaciais e temporais, para além da
em rede, multi-escalares, das novas
tecnologias da informação e, por escala do Estado-nação, é considerar
outro, mais inflexível, marcado pelos também outras concepções de poder, que
muros que separam ricos e pobres, operam em diferentes escalas e se dão
‘mais’ e ‘menos’ seguros. (Haesbaert, entre variados atores/agentes, e colocar
2002, p. 34-35). o conflito como elemento constitutivo
Assim como Haesbaert, outros au- do território.
tores contribuíram para a crítica a esta É nesse sentido que Haesbaert
noção de território associada direta- (2006) propõe substituir a noção de
mente ao Estado, apontando para o desterritorialização pela tríade territo-
caráter multidimensional e multiescalar rialização-desterritorialização-reterri-
do território. torialização (TDR), considerando que
Raffestin (1993), enfatizando o aos processos de desterritorialização
caráter político da noção de território, segue-se sempre um novo processo de
vai apontar para as múltiplas escalas em territorialização, mesmo que precário.
que se desdobram as relações de poder Para Haesbaert, o processo de TDR não
constitutivas dos territórios, sustentan- se dá da mesma forma para os diferentes
do que a imagem territorial projetada grupos, comunidades e classes sociais.
por um ator social não é equivalente ao Para uns, a TDR é, também, ex-
território real, pois este é a conjugação clusão socioespacial, como ocorre com
de distintos projetos territoriais em dis- os processos de expropriação da terra
puta. Milton Santos (2006) vai propor a ou de deslocamento compulsório em
noção de território usado, definindo-o razão de guerras ou desastres ambien-
ao mesmo tempo como recurso para os tais, que resultam em formas precárias
dominantes e abrigo para os dominados. e temporárias de reterritorialização,
T Souza (1995) concebe o território como como os acampamentos de sem-terra
ou de refugiados.

752
TERRITÓRIO

Para outros, a TDR representa a tenha sido nas políticas de desenvolvi-


multiterritorialidade, isto é a possibi- mento rural que esta perspectiva tenha
lidade da vivência de diversos territó- se enraizado mais fortemente, inicial-
rios, como no caso da grande burguesia mente com a perspectiva dos Territórios
mundial, dos altos executivos de trans- Rurais e posteriormente com a política de
nacionais ou turistas de alta renda que Territórios da Cidadania, criada em 2008.
circulam pelo mundo incessantemente A origem dessa virada territorial
e chegam, em alguns casos, a manter das políticas de desenvolvimento rural
várias residências em diferentes partes encontra-se no documento Agricultura
do mundo. familiar, reforma agrária e desenvolvi-
Assim, consideramos que podemos mento local para um novo mundo rural,
definir território como um determinado publicado em 1999 pelo governo federal
domínio espacial sobre o qual os diferen- (Brasil, 2009), no qual, embora a pala-
tes atores sociais afirmam um controle vra território ainda não apareça com
político, que significa na realidade uma força, lançou as bases das políticas de
forma de ordenamento territorial que matriz territorial.
propõe um determinado modo de organi- Essa perspectiva territorial do
zação das relações sociais e de apropria- ­d esenvolvimento rural se baseia em
ção da natureza. O território seria, desta duas ideias-força: a de pensar políticas
forma, uma parcela do espaço sobre a que não se atenham à dimensão setorial,
qual incide uma dominação, econômica, mas abarquem diferentes setores da eco-
política, ideológica. Pode ser contínuo nomia, não se limitando, portanto, no
ou descontínuo, traduzir-se em lugar ou caso do meio rural, a políticas agrícolas;
região, estar ou não articulado em rede. a de que é possível criar coesão espacial
Porém, como vivemos em uma so- para alavancar o desenvolvimento, a
ciedade de classes, não há um único partir da mobilização de capital social.
projeto de ordenamento territorial, mas A noção de capital social desenvol-
uma constante disputa de projetos, rela- vida por Robert Putnam ganha centrali-
cionada à luta de classes. Tais disputas dade nessa perspectiva e serviu de base
refletem tanto as relações sociais como para a formulação da noção de capital
a apropriação da natureza, assim como social dos territórios (Abramovay, 1999).
as diferentes escalas nas quais os atores O cerne dessa noção está na ideia de que a
sociais atuam. Por isto, o território é cooperação entre os diversos atores sociais
multidimensional e multiescalar, mas, organizados em espaços de concertação,
sobretudo, atravessado por conflitos. como os Conselhos Municipais de Desen-
volvimento Rural e mais tarde os Conse-
Políticas de desenvolvimento lhos Territoriais, gera sinergias positivas
territorial rural para todos e alavanca o desenvolvimento
A partir dos anos 1990 desenvolveu- dos territórios rurais, com benefícios para
-se no Brasil a tendência de caracterizar o conjunto dos moradores das áreas rurais
como territoriais políticas aplicadas a e urbanas, independentemente de sua
diferentes segmentos da realidade. Surgi- condição social.
ram assim políticas territoriais na Saúde, Esta concepção será duramente cri- T
na Cultura, na Economia. Mas talvez ticada por reduzir o território à condição

753
TERRITÓRIO

de instrumento técnico de planejamento, ser destacada pela maioria dos pesqui-


esvaziando o conceito da dimensão do sadores que se debruçam sobre o tema
conflito (Montenegro-Goméz, 2006). e os movimentos sociais passaram eles
Segundo este autor, a noção de território mesmos a incorporar de forma crescente
por trás do desenvolvimento territorial a palavra território no seu vocabulário
rural aplaina os conflitos entre grupos, e a designar as áreas que reivindicavam
entre classes, substituindo-os por uma como “territórios indígenas”, “territórios
suposta comunhão de interesses, que quilombolas” e “territórios camponeses”.
tem no desafio do desenvolvimento Para estes movimentos, se trata de
seu principal elemento aglutinador. O afirmar que a terra para eles é mais do
desenvolvimento do território (seja um que meramente um bem material, mas
município, uma região, um estado ou até condição de vida, espaço identitário e
a nação) vira objetivo comum a todos, que comporta uma relação diferenciada
superando as divergências entre grupos com a natureza. Este giro ecoterritorial
e classes. Essa é a utopia do desenvol- (Svampa, 2016) das lutas e movimentos
vimento territorial: uma sociedade afi- sociais será marcante em toda a América
nada com seu território, sem conflitos Latina, associando-se a debates sobre o
essenciais entre os grupos que a formam, Bem Viver [ver Cosmovisões], os Direitos
que se proponha dotar esse território de da Natureza e o Ecossocialismo.
qualidades insuperáveis, para concorrer Porém, a forma como a expressão
no mercado com outros territórios (Mon- territórios dos movimentos sociais tem
tenegro-Goméz, 2006). sido usada, por alguns movimentos e
Esta concepção, evidentemente, por diversos intelectuais, envolve um
não dá conta da realidade agrária de um risco, que é o de criar a ilusão de uma
país como o Brasil, no qual os conflitos autonomia, como se esses territórios
pela terra são cotidianos e a violência fossem ilhas dentro da sociedade capi-
contra os camponeses, indígenas, qui- talista, onde as relações capitalistas não
lombolas e outros povos do campo segue estivessem presentes. Isso não passa de
sendo brutal. ilusão, pois a todo momento vemos ter-
ritórios indígenas serem invadidos por
Território e movimento sociais madeireiros, garimpeiros, mineradoras,
Também no âmbito dos movimentos latifundiários; territórios quilombolas
sociais o uso da palavra território se ge- serem ameaçados pela expansão do agro-
neralizou nas últimas décadas. A ideia de negócio ou da especulação imobiliária;
que os movimentos lutam por territórios territórios camponeses serem alvo de
se difundiu largamente, assim como a ações expropriatórias ou que os subor-
expressão movimentos socioterritoriais, dinam à lógica de produção capitalista.
para designar, em especial, os movimen- Assim, é fundamental considerar
tos sociais do campo (Fernandes, 2000). a dimensão conf lituosa que envolve
Para além das polêmicas acerca des- o território. Em uma sociedade ca-
sa última expressão, utilizada por muitos pitalista, os territórios camponeses,
pesquisadores e rejeitada por outros indígenas, quilombolas e de tantos
T tantos, é fato que a dimensão territorial outros grupos sociais estarão sempre
das lutas e movimentos sociais passou a expostos aos movimentos expansivos

754
TERRITÓRIO

e espoliativos do capital. Somente na de sociabilidade e de relação com a


sociedade dos produtores associados natureza. Mas enquanto a nova so-
sonhada por Marx no século XIX será ciedade não chega, os movimentos
possível termos, na plenitude, terri- seguem lutando e construindo hoje os
tórios que representem novas formas territórios do amanhã.
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TRABALHO

A ntonio Thomaz Jr .

Este verbete trata do trabalho em contemporânea, vinculando trabalho


dois diferentes níveis de abstração. O e agroecologia.
primeiro, mais genérico, enquanto uma O processo de produção dos bens, dos
categoria central da vida e existência do alimentos e das mercadorias expressa-se
homem e das sociedades humanas, em sobre os territórios e é protagonizado por
todos os tempos e lugares. O segundo sujeitos históricos, herdeiros de práticas e
nível ganha maior espaço e, sob a pers- ações de trabalho, previamente planeja-
pectiva sócio-histórica, busca delimitar dos. O ser humano, sob a dupla condição
seus contornos e implicações, espe- de ser – ser da natureza e ser social –, ao T
cificamente na sociedade capitalista, agir sobre a natureza, retira o sustento

755
TRABALHO

para sua a manutenção, se humaniza, Ao longo dos séculos, há mudanças


edificando conhecimentos, produzindo a significativas no trabalho, e muitas delas
existência e redefinindo, historicamente, ocultam as estruturas de dominação e
formas distintas de sociabilidade. Seria controle. No século XXI em particular, há
o mesmo que dizer, como o fez Marx uma redefinição da geração de mais-valia,
(1982), que o trabalho é expressão do na ampliação e crescimento da proletari-
intercâmbio orgânico entre o homem e zação, com a privatização crescente de
a natureza, processo esse que, por sua atividades até então desenvolvidas na
própria ação, medeia, regula e controla seara dos serviços públicos. Este processo
seu metabolismo. Ou, ainda, “não tem evidencia-se com o desmonte das estru-
outro sentido senão que a natureza está turas formais produtivas, com a dissemi-
interligada consigo mesma, pois o homem nação da terceirização, a qual divide os
é parte da natureza” (Marx, 1982, p. 188). trabalhadores, o movimento sindical e
O homem é um animal que se fez operário, e altera a própria composição
homem através do trabalho. Esse proces- da classe trabalhadora
so não se circunscreve apenas à produ- Está-se diante da desespecialização e
ção propriamente dita, mas tem conse­ da polivalência dos operários qualificados,
quências que interferem em sua atividade dimensões do intemperismo do trabalho
vital, ou seja, a partir da sua relação com (Thomaz Junior, 2011) que os transformam
a natureza, o homem a transforma, e, em trabalhadores multifuncionais e in-
ao fazê-lo, transforma-se a si mesmo em fluem na superqualificação/desqualificação
um processo dialético que constitui o ser do trabalho. Evidenciam-se os ajustes do
social e determina a sua sociabilidade, controle taylorista/fordista, seguidos da
forjando formas de convívio social me- intensificação da exploração do trabalho,
diadas pela cultura, pela linguagem, pelo com horas-extras, extermínio das comis-
domínio sobre os meios de produção. sões de fábrica, impondo, em seu lugar, o
Com o estabelecimento da proprie- círculo de controle de qualidade (CCQ),
dade privada, o trabalho, em sua forma associado à participação nos lucros e nos
ontológica de constituição do ser hu- resultados (PLR), como garantia para
mano em ser social, é tomado de assalto emplacar as novas prerrogativas das exi-
pela intencionalidade da produção de gências do mercado e do capital.
mercadorias. Na interação metabólica Os espaços, locus desses processos,
homem-natureza, o trabalho concreto, são expressões concretas, materiais, cul-
destinado à produção de valores de uso turais de subjetividades, desprendimento
para a satisfação de necessidades huma- e ações de luta dos trabalhadores, sob
nas, foi sendo substituído pelo trabalho diferentes formas de exploração, subor-
abstrato, realizado na busca incessante dinação/sujeição e controle do capital,
de produção de mercadorias e acumu- e de distintos setores da burguesia local,
lação de capital. Para Mészáros (2007), nacional, internacional, (agro)industrial,
a passagem das mediações de primeira comercial, financeira.
para as de segunda ordem marca a his- Assim, seja nos campos, seja nas
tória da extração de trabalho excedente cidades, no norte ou no sul, em qual-
T ou da apropriação do produto social, de quer escala planetária, os homens e
forma privada. as mulheres, de todas as idades, estão

756
TRABALHO

submetidos ao império destrutivo do disputas territoriais e dos reais significa-


capital. As práticas de trabalho sob o dos de classe. Essas marcas do atraso so-
metabolismo do capital, sejam heterô- cial, em pleno século XXI, em ambiente
nomas, sejam portadoras de relativa au- de crise estrutural e mundializada do
tonomia, como no caso das camponesas, capital e de privatização do Estado
não isentam os trabalhadores de serem neoliberal, são expressões do sucesso
explorados, dominados, subordinados econômico dos grandes conglomerados
ou controlados (Thomaz Junior, 2018a) (agro)industriais.
[ver Campesinato]. A sintonia desse processo se fun-
Seguindo essa linha de argumenta- damenta, inicialmente, no tradicional
ção, a agroecologia, que pode se fazer caráter exportador da agropecuária,
presente nas práticas educativas, críti- no Brasil, e à escala de subordinação
cas à estrutura social que subordina e que impõe atendimento aos processos
controla as diferentes formas de traba- internacionalizados da reestruturação
lho, nos permitirá abordar a práxis social produtiva do capital, os quais subordi-
camponesa, como aprendizados histo- nam o circuito agroindustrial como um
ricamente construídos, em diferentes todo, na produção, na circulação, na
tempos, ou como produto da sapiência distribuição e no consumo de merca-
e da criatividade da humanidade, o dorias agrícolas, de insumos mecânicos,
qual, no século XXI, ainda correspon- químico-biológico-mecânico-informa-
de a centenas de milhares de famílias cionais e cada vez mais informacionais,
abnegadas a produzir alimentos. Tais na era digital (Antunes, 2018).
trabalhadores estão crescentemente Essa rede de relações torna ainda
condenados à desertificação, aos solos mais complexas as escalas de dependên-
de pior qualidade ou degradados, e cia e de dominação, porque se sustenta e
são alvo da contaminação ambiental se redefine guiada pelos referenciais dos
­oriunda da pulverização de agrotóxicos conglomerados transnacionais, fixados na
nos latifúndios monocultores. ciranda financeira ou no capital fictício
A manutenção e a ampliação dos e nas estratégias e interesses do sistema
territórios da agroecologia requerem as manipulatório (Thomaz Junior, 2015).
nossas atenções, já que está em questão Assim, há uma determinação de
a saúde dos trabalhadores, individual ou negação a ser considerada. Toda ordem
coletivamente (Thomaz Junior; Leão; de impedimentos legais, institucionais,
Pignatti, 2016). A produção de alimen- políticos e ideológicos à produção de
tos está exposta a elevados e crescentes alimentos para o consumo humano,
volumes de agrotóxicos, uma vez que há muito tempo sob a incumbência da
o efeito deriva, ou o deslocamento das agricultura familiar, impõe pensar que
partículas pelo vento socializa livremente as rígidas barreiras para a inclusão de
a condenação da produção camponesa, a praticamente metade da humanidade às
contaminação ambiental e qualidade de condições dignas de vida estão associa-
vida dos trabalhadores e da sociedade. das à negação do livre acesso aos meios
Sabemos de antemão que a agroeco­ de produção.
logia não é a salvação da lavoura, ainda Essa rígida estrutura social é garan- T
mais se vista fora do contexto social, das tidora da exposição dessas populações

757
TRABALHO

às doenças oriundas da poluição am- Trabalho, sociometabolismo e


biental encimada no modelo químico- identidade de classe
-dependente, protagonista da produção Esses sintomas, menos visíveis ou
de commodities, da seletividade dos muito mais invisíveis, nos requerem aten-
investimentos públicos e da desproteção ção especial à busca e construção social
institucional quanto ao exercício do tra- da identidade de classe da classe traba-
balho, o que põe em risco, diariamente, lhadora, processo esse oriundo das lutas
a vida de 3,5 bilhões de seres humanos. de resistência, da formação continuada
Desse contingente expressivo, 1,2 e da busca de conhecimentos renovados
bilhão da população mundial é despri- e comprometidos com a prevalência da
vilegiado das políticas públicas e está autonomia e da emancipação de classe.
condenado à indigência, à fome crôni- De um lado, coloca-se a dimensão
ca, às doenças veiculares, endêmicas quantitativa, pois, ao mesmo tempo que
e infectocontagiosas, as quais, por sua diminuem drasticamente os trabalhado-
vez, se superpõem ao analfabetismo, à res com vínculo direto e registros formais
privação do acesso à água e esgoto tra- às empresas-mãe, aumenta o contingen-
tados, obrigando a um relacionamento te de trabalhadores terceirizados, que
também precário com o mercado de tra- permanecem por algum tempo ou de
balho. Desempregados/subempregados, forma recorrente vinculados ao sistema
descartados, condenados à intermitência produtivo, acentuadamente precarizado,
salarial – recebem somente quando tra- fazendo do ex-operário um vendedor
balham – e aos rendimentos decrescentes de serviço terceirizado, pejotizado, um
para garantir a sobrevivência. Sabemos “cibertariado”, como o denomina Ursula
que, na agricultura, o trabalho avulso é Huws (2017).
o principal exemplo, e sua versão oficial De outro lado, devemos atender às
está na figura do trabalho intermitente dimensões qualitativas ou às implica-
(ou just in time), sob a falsa garantia do ções dessas ações na subjetividade do
contrato, como previsto pela Reforma trabalhador, e sua captura pelo capital é
Trabalhista aprovada pelo Congresso a garantia primeira da descoletivização
Nacional, em 2017. das relações salariais, da prevalência do
Relegados ao trato das terras com individualismo, em detrimento da me-
as mãos, ou por meio de instrumentos mória pública do movimento operário e
rudimentares, e à constância das amea- da dissolução/eliminação da consciência
ças e demais formas de violência, não se de classe e da luta de classe.
limitando à expulsão/expropriação, mas O capital transmuta a identidade
também à marginalização, perseguição, operária na figura do colaborador. A
submissão à escravidão e condições de dimensão coletiva e de classe se perde
cativeiro, e eliminação física, ainda assim nas disputas restritas ao regramento do
os camponeses ocupam protagonismo na trabalho estranhado, aprisionado ao
preservação ambiental das nascentes, circuito da valorização/acumulação de
das matas nativas, empenhados na pro- capital. Isso se dá por meio da destruição
dução de alimentos e, enquanto sujeitos dos coletivos do trabalho e da construção
T sociais em luta, na resistência ao ordena- dos coletivos colaboracionistas, artefatos
mento territorial excludente do capital. explosivos da dessocialização de classe,

758
TRABALHO

do trabalho, ou da negação da consciên- Faz-se necessário repensar os fun-


cia em disputa, na perspectiva da classe damentos que reconhecem os papéis
trabalhadora. O homem social restringe- dos sujeitos sociais e suas identidades
-se à criação do capital, ou seria o mesmo de classe, em meio a toda ordem dos
que a desefetivação do Ser Genérico do conflitos territoriais, pois é sabido, com
Homem, como ser social, limitando-se a apoio em Thompson (2009), que a “teo­
tempo de trabalho estranhado, à esfera ria não pode prescindir da realidade do
meramente mercantil. conflito de classe” ou da práxis, já que as
A permeabilidade desses processos ações de resistência e oposição ao capital
que constituem a degradação sistêmica não se limitam às formas de trabalho
do trabalho põe em leito único e con- estranhado, tipicamente capitalista. Ou
traditório o movimento dialético entre seja, o leito preferencial para navegarmos
trabalho, ambiente e saúde do trabalha- nas águas turbulentas da sociedade de
dor, as mediações que se estabelecem e classes demanda a organização dos tra-
se impõem enquanto pilhagem territorial balhadores na atualidade, num contex-
(Perpétua, 2016) ou nas práticas preda- to de heterogeneização, fragmentação
tórias, violentas, fraudulentas, como a e precarização, a partir das respostas
flexibilização dos contratos. concretas oriundas da materialidade/
Essa trama complexa de relações nos subjetividade, a qual acompanha a
exige refletir a conectividade geográfica história recente dos conflitos que ex-
desse processo. Isto é, as identidades e pressam os antagonismos de interesse
significados territoriais dos processos de de classe entre capital e trabalho.
trabalho no campo (as formas de produ- É imperioso considerar o argumen-
zir alimentos), os impactos ambientais, a to de que a “necessidade” de enquadrar
soberania alimentar e a educação são de- uma massa de homens e de mulheres en-
terminantes sociais indissociáveis para a quanto classe trabalhadora, nos estrei-
defesa da emancipação [ver Emancipação tos marcos da exclusividade da venda
humana] do novo homem e da nova mu- de força de trabalho, não está de acordo
lher que irrompem com a nova sociedade com Marx, tampouco com a tradição
(Thomaz Junior, 2016). marxista – e aqui me somo a Lukács
A práxis agroecológica tem na pro- (2013), o qual defende que a teoria tem
dução de alimentos a dimensão primor- de ser renovada/oxigenada e vinculada
dial dos desafios que fundam a temática à realidade da classe trabalhadora,
da saúde como prerrogativa das lutas de com vistas à práxis transformadora e
resistência no campo, rumo à emanci- revolucionária da sociedade. A título de
pação. Trata-se do protagonismo das exemplo: o campesinato, o proletariado,
organizações coletivas que edifica os assim como as demais formas de expres-
caminhos e os constructos da socieda- são do trabalho, não são um a priori,
de liberta das amarras e imposições da mas expressões vivas das contradições
agricultura convencional. Outra face dos da luta de classes e exemplos reais da
desafios também nos remete a pensar a plasticidade do trabalho (Thomaz Ju-
práxis agroecológica no âmbito da rela- nior, 2006). É necessário enxergar o
ção sujeito-objeto, ou seja, quem cabe no trabalho no seu movimento dialético T
conceito de classe trabalhadora? de (des)realizações, deslocamentos/

759
TRABALHO

mobilidades, de lutas, de resistência à busca de alternativas que contemplem


(Thomaz Junior, 2018b). acúmulos, ensinamentos e conhecimen-
De olho na totalidade viva do tra- tos populares e científicos, fidelizados às
balho ou nas diferentes formas contradi- práticas emancipatórias da classe traba-
tórias de expressão é que nos propomos lhadora, oriundos dos debates sediados
a compreender a abrangência e o signi- em distintas instâncias: nos assenta-
ficado da centralidade do trabalho, ou mentos; nas comunidades (camponesas,
suas potencialidades emancipadoras e extrativistas, ribeirinhas, indígenas,
revolucionárias. É fato que o trabalho garimpeiras, vazanteiras, fundo e fecho
não acabou, mas o que está em questão de pasto); nos faxinais; nos quilombos;
é a diminuição do emprego (formal, com nos territórios atingidos por barragens e
registro em carteira, com direitos) e as mineração; ou nos laboratórios instala-
ações que tentam destruir as formas au- dos nas Universidades, órgãos públicos
tônomas de vida/trabalho, por exemplo, de pesquisa equipados e conduzidos pelas
o trabalho familiar e camponês, envolvi- metodologias científicas.
do na produção de alimentos. As novas formas de luta, de or-
Nossa responsabilidade com a trans- ganização e de resistência ao capital,
cendência do trabalho, enquanto sujeito fundadas na sustentabilidade substan-
de classe e potencialmente emancipador, tiva, como nos indica Mészáros (2015),
requer que assumamos a sua centralida- se expressam na práxis das organiza-
de, com a prerrogativa de componente ções alternativas dos trabalhadores,
ineliminável da dialética, da história e da tais como a Via Campesina, a Liga dos
negação crítica e radical da exploração Camponeses Pobres (LOC), o MST, o
e do controle do capital. Desse modo, MTST, o MAM, o MAB, o MCP, a Teia
de que nos valemos para percorrer esse dos Povos do Maranhão, alguns sindi-
percurso de reflexão, a fim de associar catos fidelizados já existentes, os que
trabalho, sociometabolismo e identi- foram criados no processo e as Centrais
dade de classe, com vistas a defender Sindicais combativas, além de outros
os vínculos entre práxis e produção de movimentos sociais que reivindicam
alimentos em bases agroecológicas e seus vínculos à classe trabalhadora.
classe trabalhadora? Tais instâncias de organização/
representação dos trabalhadores ques-
Considerações finais tionam a propriedade dos meios de
Levando em conta as tentativas de produção, a riqueza social apropriada
aligeirarmos a compreensão de trabalho, pelo capital, base da recorrência das
de qualificá-la sob os referenciais da prá- lutas de resistência, reivindicatórias e
xis agroecológica com vistas à sociedade de enfrentamentos de classe, as quais,
que se pretende emancipar da estrutura ao longo dos anos, ultrapassam os li-
de dominação e controle do capital, mites territoriais originais e demarcam
não cabe insistirmos nos enunciados novos campos de disputas na escala da
polissêmicos, porém, apostarmos nos totalidade viva do trabalho. Ou seja, as
referenciais teóricos oferecidos. práticas transformadoras potenciadas
T Não basta abordarmos somente os por esse espectro de disputas (terra,
problemas. É necessário nos lançarmos água, emprego, moradia, dignidade),

760
TRABALHO

associadas aos conhecimentos secula- Essas diferentes formas de conhe-


res e renovados nesse escopo popular, cimento serão estimuladoras de novas
nos ofertarão, por meio da reeducação formas de consciência da classe traba-
dos novos papéis sociais do sujeito lhadora, sublinhando a importância
coletivo, os fundamentos necessários do resgate da dimensão ontológica da
para que as práticas agroecológicas, autonomia do trabalho na produção dos
enquanto superação das contradições bens necessários para a satisfação das ne-
sociais, conduzam às novas práxis do cessidades dos trabalhadores, da justiça
trabalho. ambiental, da sociedade emancipada.

Referências
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HUWS, U. A formação do cibertariado. Campinas: Editora da Unicamp, 2017.
LUKÁCS, J. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.
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XXIII). São Paulo: Difel, 1982. p. 712-827.
MÉSZÁROS, I. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
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PERPÉTUA, G. M. Pilhagem territorial, precarização do trabalho e degradação do sujeito que trabalha: a
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THOMAZ JUNIOR, A. Se camponês, se operário! Limites e perspectivas para a compreensão da
classe trabalhadora. In: THOMAZ JUNIOR, A.; CARVALHAL, M. D.; BRUMATTI CARVALHAL,
Terezinha. (Org.). Geografia e trabalho no século XXI. 1. ed. Presidente Prudente: Centelha, 2006. v.
2, p. 130-167.
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ritoriais Contemporâneas). Revista da ANPEGE, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 307-329, 2011.
_______. O trabalho como elemento fundante para a compreensão do campo no Brasil. In: NOVAES, H.;
MAZIN, A. D.; SANTOS, L. (Org.). Questão agrária, cooperação e agroecologia. (Parte 4 Mundialização,
trabalho, gênero e juventude do Campo). São Paulo: Outras Expressões, 2015. p. 323-340.
_______. Dinâmica geográfica do trabalho e saúde dos trabalhadores no ambiente dos conflitos territoriais
pelo acesso à terra e a água. In: LOURENÇO, E. A de S. (Org.). Saúde do trabalhador e da trabalhadora
e serviço social: estudos da relação trabalho e saúde no capitalismo contemporâneo. 1. ed. Campinas:
Papel Social, 2016. p. 67-83.
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_______. Movimento Territorial do Trabalho e Desterreação do Sujeito/Classe. In: Geografia e Trabalho
no século XXI (n. 9). Presidente Prudente: Centelha, 2018b. p.32-74.
THOMAZ JUNIOR, A.; LEÃO, L. H. da C.; PIGNATI, W. A. Trabalho Rural, Degradação Ambien-
tal e Contaminação por Agrotóxicos. In: Avesso do Trabalho IV. São Paulo: Expressão Popular, 2016.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Para saber mais


BRUMATTI CARVALHAL, T. (org.). Geografia e trabalho no século XXI. 1. ed. Presidente Prudente:
Centelha, 2006. v. 2, p. 130-167.

761
TRANSGÊNICOS

TRANSGÊNICOS

Gabr iel F er na ndes


Hugh L acey
L eonar do M elgar ejo

As sementes transgênicas foram dos consumidores. Por esses motivos,


inicialmente introduzidas na agricultura que serão aprofundados neste verbete,
nos Estados Unidos em meados da déca­ entende-se que as sementes transgênicas
da de 1990. No Brasil, sua introdução se e o modelo agrícola a que elas pertencem
deu logo em seguida, no início dos anos impedem o atendimento do pressuposto
2000. Também chamadas de geneti- da soberania alimentar.
camente modificadas, essas sementes
atendem a interesses de mercado, são Os transgênicos e sua origem na
recomendadas por especialistas muitas pesquisa científica
vezes ligados a grandes multinacionais As plantas geneticamente modi-
do agronegócio e impulsionadas por ficadas são inovações tecnocientíficas
políticas governamentais de fomento à que crescem e produzem, por exemplo,
exportação de commodities. Sua rápida grãos que serão colhidos, processados
expansão tornou-se elemento central do e consumidos. Outras aplicações de
modelo hegemônico de produção, pro- OGMs envolvem insetos, animais e mi-
cessamento e distribuição de alimentos crorganismos. São produtos da pesquisa
e das estratégias das grandes corporações científica que descobriu que o genoma
de controlar todas as etapas do siste- dos seres vivos contém sequências de
ma agroalimentar global. As sementes DNA que se separam e se recombinam,
transgênicas são protegidas por patentes conformando a base dos processos bioló-
reconhecidas por leis nacionais e inter- gicos de reprodução. O desenvolvimento
nacionais, fato que garante direitos e pro- das técnicas da engenharia genética
priedade que favorecem a consolidação ampliou as possibilidades de manipu-
de monopólios associando os mercados lação do DNA, inclusive entre espécies
de sementes e de agrotóxicos. Nesse sen- não relacionadas. Como produto dessas
tido, aprofundam a dependência criada recombinações artificiais, os transgêni-
anteriormente com relação às sementes cos não poderiam ter sido criados pelos
híbridas. Mais recentemente, a evolução mecanismos de seleção natural ou pelos
das técnicas de manipulação genética cruzamentos realizados tradicionalmente
tem permitido o desenvolvimento de por agricultores e melhoristas de plantas.
novos organismos geneticamente modi- Diz-se inovações tecnocientíficas ou
ficados (OGMs) que tendem a substituir produtos da tecnociência por causa de
as sementes transgênicas utilizadas até sua origem nas técnicas de engenharia
T então, que apresentam rápida obsoles- genética. Assim, tanto as sementes em si
cência e crescente rejeição por parte como as técnicas envolvidas na sua cria-

762
TRANSGÊNICOS

ção podem ser incorporadas em regimes à aplicação de um ou mais herbicidas.


de proteção industrial e de propriedade Novos eventos de modificação gené-
intelectual, dando origem a patentes, tica e a combinação desses diferentes
no geral controladas pelas empresas do eventos numa mesma planta (para re-
agronegócio, que impedem que os agri- sistência a diferentes insetos e/ou tipos
cultores salvem essas sementes de um ano de herbicidas) são lançados no mercado
para o outro. em resposta ao desenvolvimento de
As plantas transgênicas foram ge- resistência em populações de insetos e
neticamente modificadas para expressar de plantas espontâneas massivamente
novas caraterísticas, especialmente resis- expostas aos mecanismos de controle
tência a herbicidas e produção de toxinas presentes nas plantas transgênicas. O
letais a alguns tipos de insetos, como uso continuado de herbicidas e a pre-
lagartas (Tabela 1). Embora seja essa a sença permanente das toxinas inseticidas
realidade das sementes transgênicas até no campo aceleram processos de seleção
hoje comercializadas, seus proponentes natural que provocam o surgimento e a
há tempos prometem novas gerações de multiplicação de populações de plantas
sementes mais nutritivas, resistentes à e de insetos resistentes. Atualmente,
seca e a solos salinizados, entre outras. essa obsolescência tecnológica ocorre
A Tabela 1 mostra o domínio de cerca de cinco anos após a introdução
empresas multinacionais produtoras de de uma dada semente transgênica. Esse
agrotóxicos sobre o desenvolvimento de processo constitui oportunidade de mer-
sementes transgênicas. Mostra também cado cativo para as empresas lançarem
que, no Brasil, 67 das 81 variedades novas sementes transgênicas, associadas
transgênicas liberadas (83%) foram ge- a agrotóxicos mais potentes e perigosos
neticamente modificadas para resistir (Melgarejo, 2017).

Tabela 1 – Espécies modificadas, características (eventos) GM inseridos e empresas


proponentes de sementes transgênicas autorizadas para plantio comercial no Brasil
Espécie Característica GM Empresa proponente
modificada TH RI TH/RI AV RV
Soja 10 1 3 Monsanto, BASF-Embrapa, Bayer, Dow, DuPont
Milho 8 7 31 Monsanto, Bayer, Syngenta, DuPont-Dow, Mon-
santo-Dow
Algodão 7 3 8 Monsanto, Bayer, Dow
Eucalipto 1 Futuragene
Cana-de- 1 CTC
-açúcar
Feijão 1 Embrapa
Fonte: Elaborado pelos autores com dados da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) (2018)
Legenda: TH: tolerante a herbicidas; RI: resistente a insetos: TH/RI: tolerante a herbicidas e resistente a
insetos (piramidado); AV: aumento de volume da madeira; RV: resistente a vírus. Os números na coluna
Característica GM indicam a quantidade de eventos de modificação genética liberados para cada uma
das características. O feijão GM da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), embora
autorizado pela CTNBio, nunca chegou a ser comercializado (Fernandes, 2011). A tabela não considera T
as fusões entre Bayer-Monsanto, ChemChina-Syngenta e Dow-DuPont (Moldenhauer; Hirtz, 2018).

763
TRANSGÊNICOS

Os transgênicos são, em geral, cul- confirmados por pesquisas independentes


tivados em monoculturas mecanizadas (Benbrook, 2009; Conselho Nacional de
intensivamente, cujo desempenho de- Segurança Alimentar e Nutricional, 2014;
pende de elevadas doses de insumos ex- Almeida et al., 2017).
ternos como agrotóxicos e fertilizantes
químicos. Os efeitos desse tipo de produ- Biossegurança e avaliação de riscos
ção e do consumo de seus produtos por dos transgênicos
seres humanos e animais não podem ser Os produtos derivados de transgê-
adequadamente avaliados pelos mesmos nicos têm sido amplamente consumidos
projetos de pesquisa em biologia molecu- desde a introdução dessas sementes na
lar e biotecnologia que geram os transgê- agricultura. Isso tem levado a uma longa
nicos. Esses tendem a ser orientados por e não resolvida controvérsia sobre a se-
interesses comerciais e realizados a partir gurança do consumo desses produtos. As
de metodologias descontextualizadas, empresas do setor, as agências regulatórias
ou seja, sem os conceitos necessários e os demais proponentes dos transgênicos
para avaliar as condições e os efeitos sustentam que o consumo desses produtos
ambientais, sociais e econômicos de sua – cuja produção foi aprovada por órgãos
produção e de seu consumo. Por terem competentes – é seguro e não apresenta
essas características, as pesquisas em bio- potencial de causar danos significativos à
tecnologia não consideram alternativas saúde humana ou animal. Os proponentes
como a agroecologia nem podem avaliar dos transgênicos chegam a defender a
adequadamente os potenciais riscos dos existência de consenso científico com
transgênicos (Lacey, 2006). relação à segurança desses produtos.
Apesar disso, esse consenso não existe
Potenciais benefícios dos transgênicos (Ferment et al., 2015; Conselho Nacional
A adoção de sementes transgênicas de Segurança Alimentar e Nutricional,
deveria ser acompanhada por uma série 2014; Hilbeck et al., 2015).
de benefícios para a agricultura con- Há de fato muitos estudos que busca-
vencional, segundo seus proponentes. ram investigar os riscos dos transgênicos.
Entre eles, pode-se citar aumento da Seus resultados no geral confirmam a
produtividade, menor uso de herbicidas inocuidade desses produtos – ou, mais
e inseticidas e menores gastos com má- precisamente, confirmam que o consu-
quinas e tratores. Tudo isso resultaria mo de transgênicos é tão seguro quanto
numa agricultura com menores impac- o consumo de produtos convencionais
tos ambientais. Outros benefícios são (que são tomados como ponto de refe-
maiores lucros para as multinacionais do rência). Apesar disso, a grande maioria
agronegócio e para as grandes fazendas, desses estudos foi realizada ou financiada
controle crescente dessas empresas sobre por empresas do setor ou aponta algum
o mer­cado de sementes pelo mundo e, em indício de conflito de interesses (Guille-
alguns países, crescimento econômico a maud; Lombaert e Bouguet, 2016). Em
partir da geração de divisas pela exporta- contrapartida, pesquisas que não foram
ção de commodities agrícolas. Benefícios financiadas por agentes ligados aos in-
T alegados como ganhos de rendimento e teresses do agronegócio costumam gerar
redução de riscos toxicológicos não são evidências de que o consumo de alguns

764
TRANSGÊNICOS

produtos transgênicos usados comercial- tes. Sendo assim, não é de se des-


mente apresenta riscos à saúde humana e cartar a possibilidade de conflitos
animal, como, por exemplo, deficiências de interesses nessas pesquisas;
crônicas hepato-renais (Séralini et al., c) as sementes transgênicas avalia-
2014). Esse cenário indica que mais pes- das em experimentos controlados
quisas são necessárias para que se possa não são representativas daquelas
compreender a seriedade desses riscos e que serão colhidas em milhões de
a probabilidade de que eles aconteçam. hectares de cultivos comerciais:
Apesar disso, em vez de se engajarem os testes padrão com sementes
nesse tipo de pesquisa, os proponentes resistentes a herbicidas não ava-
dos transgênicos tendem a menosprezar liam, por exemplo, se os grãos
os estudos que apresentaram evidências colhidos e os alimentos/rações
de riscos alegando que são insuficientes com eles preparados contêm re-
ou mal-conduzidas. síduos de agrotóxicos e de seus
A grande maioria das liberações metabólitos (no caso do Roundup,
comerciais de sementes transgênicas o Ampa, seu principal metabóli-
emitidas por órgãos reguladores (como to, é ainda mais tóxico que seu
a Comissão Técnica Nacional de Biosse- ingrediente ativo glifosato);
gurança (CTNBio), no Brasil) apoia-se d) os testes realizados antes da libe-
nos resultados de pesquisas realizadas sob ração comercial de uma semente
influência dos interesses do agronegócio transgênica não são complemen-
e desconsidera as pesquisas críticas (Fer- tados por monitoramento ade-
ment et al., 2015). Consequentemente, quado de seus efeitos na prática.
a credibilidade dessas decisões tem sido Tal falha no processo regula-
contestada (Barcelos, 2018). Os críticos tório é de especial relevância,
sustentam que essas pesquisas apresentam dado que os impactos do uso
diferentes tipos de falhas, entre elas: de transgênicos em larga esca-
a) as evidências contrárias à segu- la não podem ser identificados
rança dos transgênicos são des- nos ensaios prévios à liberação
cartadas pelos órgãos reguladores comercial e, dessa forma, po-
em vez de serem estudadas em dem ficar mascarados até que
maior profundidade – ou ainda, sejam implementados processos
de acordo com o Princípio de adequados de monitoramento
Precaução, a liberação do deter- pós-comercialização (Melgarejo,
minado transgênico deveria ser Fernandes e Ramos, 2013). O
suspensa até que essas pesquisas monitoramento do impacto em
fossem realizadas; escala dos transgênicos deveria
b) pesquisas financiadas por em- incluir estudos epidemiológicos
presas do setor tendem a ser dos efeitos de seu consumo, mas
confidenciais visando proteger isso só pode ocorrer nos países
a propriedade intelectual e os onde há leis estabelecendo a
interesses comerciais, mas tal fato rotulagem de produtos trans-
impede seu exame e replicação gênicos. Ou seja, a ausência de T
por pesquisadores independen- evidências de impactos negativos

765
TRANSGÊNICOS

vem sendo usada indevidamente Impactos ambientais e sociais


como evidência da ausência de causados por alguns tipos de
impactos dos transgênicos; transgênicos
e) mesmo no caso do Brasil, onde Como mostrado até aqui, o uso de
a rotulagem de transgênicos é transgênicos é responsável pela geração
obrigatória, a realização de estu- e manutenção de impactos negativos,
dos epidemiológicos encontraria uma vez que desempenha papel central
sérias barreiras. Estima-se que o no modelo agrícola dominante. Além
consumo de produtos derivados disso, há ainda repercussões negativas
de transgênicos alcance cerca de sobre a saúde e o ambiente que vêm sendo
64,5% da quantidade per capita ocasionadas pelo cultivo de certos tipos
média dos alimentos mais consu- de transgênicos em agroecossistemas
midos pela população brasileira, específicos. É o caso por exemplo dos
e que apenas 3% destes estejam cultivos resistentes a herbicidas ou com
devidamente identificados (Cor- toxinas inseticidas, que com o tempo
tese, 2018); pressionam pela geração de resistência
f) a CTNBio avalia os aspectos de nas plantas espontâneas e nos insetos. É
biossegurança relacionados exclu- ainda de se destacar a contaminação de
sivamente à modificação genética parentes silvestres de espécies cultivadas
introduzida no organismo modifi- e de sementes crioulas pelas sementes
cado e alega ser responsabilidade transgênicas, sobretudo no caso de plan-
da Anvisa avaliar a segurança dos tas de polinização aberta, como o milho.
agrotóxicos aplicados sobre essas O uso de sementes transgênicas
plantas transgênicas. Dessa ma- resistentes ao glifosato é altamente con-
neira, lidam com um tipo abstrato troverso. Cerca de 90% da soja cultivada
de transgênico que não é aquele no Brasil (e mais parte significativa
presente nas condições reais de do milho e do algodão geneticamente
cultivo; e modificados) é resistente a produtos
g) os testes comumente aceitos formulados à base do ingrediente ativo
comparam riscos das lavouras glifosato. Este produto foi classificado
transgênicas com os riscos da pela Agência Internacional de Pesquisa
agricultura convencional. Como sobre Câncer, da Organização Mundial
visto anteriormente, além de es- da Saúde (Iarc/OMS), como provável
tarem muitas vezes sob in­f luência cancerígeno para os seres humanos. Ou-
de interesses comerciais, essas tras agências internacionais, assim como
pesquisas são no geral realizadas os fabricantes do Roundup, questionaram
em laboratórios ou em peque- a OMS e saíram em defesa da segurança
na escala, e não em condições do produto. Inúmeras pesquisas mostram
reais de cultivo ou a partir de que a exposição ao glifosato tem causado
amostras obtidas em lavouras sérios problemas de saúde nas popula-
comerciais. A comparação dos ções expostas ao produto (Paganelli et
produtos transgênicos com os al., 2010; Pignati; Machado, 2011). Os
T orgânicos e agroecológicos não herbicidas à base de glifosato, usados nas
é sequer levada em consideração. lavouras transgênicas, respondem por

766
TRANSGÊNICOS

cerca de 30% de todo agrotóxico usado A liberação de 1998 pegou a socie-


na agricultura brasileira. dade civil de surpresa, que em resposta
O 2,4-D, que também é empregado organizou a Campanha por um Brasil
em lavouras transgênicas, terceiro agrotó- Livre de Transgênicos. A Campanha deu
xico mais usado no Brasil, foi igualmente seguimento à frente de atuação jurídica,
incluído na lista da Iarc. O produto é mas passou também a investir na produ-
classificado pela Anvisa como extrema- ção de informações e na articulação com
mente tóxico, mas pode ser aplicado sobre diferentes setores da sociedade. Foram
três variedades de soja e cinco de milho produzidas mais de 680 edições do bo-
transgênico autorizadas pela CTNBio. letim Por um Brasil Livre de Transgênicos
e Agrotóxicos, além de cartilhas, vídeos
A resistência contra os e documentos diversos. Os movimentos
transgênicos no Brasil sociais se juntaram à Campanha, confe-
Em 1998, o governo brasileiro au- rindo-a maior peso político e capilaridade
torizou a liberação comercial da soja e também realizando suas ações diretas
transgênica, da empresa Monsanto. Foi de grande repercussão. Em 2001, no ano
a primeira liberação de um OGM no de estreia do Fórum Social Mundial,
país, numa época em que o assunto era em Porto Alegre, militantes do MST,
desconhecido da grande maioria da po- acompanhados do agricultor francês José
pulação. Logo na sequência, o Institu- Bové, destruíram uma lavoura de soja
to Brasileiro de Defesa do Consumidor transgênica em área da multinacional
(Idec), com apoio da ONG Greenpeace, Monsanto, em Não-me-Toque, também
entrou na Justiça e conseguiu suspender Rio Grande do Sul.
a liberação. Esse fato desencadeou longa Em 2005, com a aprovação da nova
batalha judicial só encerrada em 2005, lei e implantação de uma comissão téc-
quando o Congresso Nacional aprovou nica com amplos poderes, algumas orga-
uma nova lei de biossegurança, a Lei nizações entenderam que a luta estava
11.105/2005 (Brasil, 2005). Sob pressão perdida. A Campanha sofreu um revés,
do fato consumado de plantios ilegais que mas reorientou suas estratégias e passou
se multiplicavam no sul do país desde o a monitorar a atuação da CTNBio, lu-
início dos anos 2000 – talvez até antes tando pelo rigor técnico de suas decisões
–, esta lei liberou oficialmente a soja e pela transparência de seus atos. Esse
transgênica no Brasil. Não foi, portanto, movimento permitiu o encontro de pes-
nenhum órgão técnico que finalmente quisadores independentes comprometidos
autorizou essa nova semente, mas sim com o meio ambiente e a sociedade.
uma decisão política do Congresso. A Em 2006, Curitiba recebeu a oitava
necessidade de estudos prévios de impacto Conferência da Convenção sobre Diver-
ambiental, que fundamentou o pedido sidade Biológica da ONU e a terceira edi-
vitorioso do Idec, nunca foi concretizada ção do encontro das Partes do Protocolo
no caso da soja resistente ao glifosato. De de Cartagena de Biossegurança (COP8/
quebra, a bancada ruralista do Congresso MOP3). Pela primeira vez os diplomatas
emplacou artigo na Lei estabelecendo que e representantes dos quase 200 países que
esses estudos só seriam realizados quando integram a Convenção viram as ruas em T
solicitados pela própria CTNBio. frente ao local da Convenção tomadas de

767
TRANSGÊNICOS

gente e manifestações diárias. Uma das sobretudo os agroecológicos, passaram a


ações promovidas pelo MST e pela Via sentir cada vez mais seus efeitos. Além da
Campesina buscava denunciar a presença escassez de sementes convencionais no
irregular de uma unidade experimental mercado, os agricultores passaram a ser
de transgênicos da multinacional suíça afetados pelo aumento das pulverizações
Syngenta em zona de amortecimento de de agrotóxicos e a contaminação genética
uma unidade de conservação ambiental de suas sementes, sobretudo no caso do
no oeste do Paraná. A área foi ocupada milho. Em 2012, por ocasião da Cúpula
durante a COP/MOP e nela foi organi- dos Povos, realizada no Rio de Janeiro no
zado o Acampamento Terra Livre. Oito contexto da Rio+20, os pesquisadores
meses após a denúncia internacional, o críticos ampliaram sua rede e lançaram
acampamento foi invadido por milícia o Movimento Ciência Cidadã Magda Za-
contratada pela empresa e ruralistas da noni, que alguns anos depois se articulou
região. Valmir Mota de Oliveira, o Keno, com a Unión de Científicos Comprometidos
agricultor ligado ao MST, foi assassinado a con la Naturaleza y la Sociedad de América
tiros. A Syngenta foi condenada pela Jus- Latina – UCCSNAL.
tiça do Paraná e a área foi desapropriada Os transgênicos são hoje muito mais
pelo governo do estado, dando lugar a um conhecidos que no final da ­década de
Centro de Agroecologia. 1990, sendo que a imagem desses produ-
Com a CTNBio instalada, as libe- tos perante a sociedade não corresponde
rações comerciais de OGMs ganharam às expectativas nem aos imensos investi-
ritmo e os transgênicos cada vez mais mentos em propaganda feitos pelas gran-
passaram a fazer parte da agricultura e da des empresas do setor. A luta contra os
alimentação no país. Essas liberações não transgênicos, depois de duas décadas, faz
aconteceram sem fortes embates dentro parte de lutas mais amplas pelos direitos
da Comissão, polarização na mídia, au- dos agricultores, pela Agroecologia, pela
diências públicas, ações diretas e novas soberania alimentar, pelo direito humano
demandas judiciais. Mais de uma vez à alimentação adequada, pela justiça am-
suas reuniões foram interrompidas por biental, pela economia solidária, pelo livre
manifestações organizadas pelo MST e uso da agrobiodiversidade e das sementes
pela Via Campesina, buscando denunciar crioulas e está enraizada nas ações dos
para a sociedade como um todo a libera- inúmeros grupos, redes e movimentos que
ção comercial de produtos como o milho carregaram essas bandeiras.
e o eucalipto transgênico, que estavam
para ser votados pela CTNBio. A luta foi Transgênicos e soberania
ganhando repercussão em outros setores e segurança alimentar
da sociedade, que passaram a se engajar, O combate à fome foi usado como
como o Ministério Público Federal, o argumento para adoção da agricultura
Conselho Federal de Nutrição, o Conse- industrial, dos agrotóxicos e também
lho Nacional de Segurança Alimentar, a dos transgênicos, mas esse sistema não
Associação Brasileira de Saúde Coletiva, foi capaz de garantir segurança alimentar
entre outros. Além disso, a realidade no para todos. E isso era de se esperar, consi-
T campo estava se transformando com o derando que os mecanismos desse sistema
avanço dessas sementes, e os agricultores, funcionam para manter sua tendência de

768
TRANSGÊNICOS

expansão, para eliminar alternativas e novos transgênicos tenham utilidade fora


para incorporar cada vez mais etapas da do sistema hegemônico de produção. Dessa
produção, da distribuição e do consumo forma, essas tecnologias continuarão sendo
de alimentos. Esses mecanismos derivam causadoras dos impactos aqui descritos.
da tendência de o sistema priorizar lucros Os potenciais benefícios dos trans-
em vez de direitos e bem-estar, e muitas gênicos antes mencionados são consi-
vezes às custas destes. Eles incentivam derados tão significativos por seus pro-
que a comida se torne uma mercadoria ponentes que compensariam quaisquer
não acessível a uma parcela dos mais po- efeitos colaterais ocasionados pelo seu
bres e que outra camada da população se uso. Essa visão pode soar plausível desde
torne vulnerável a desabastecimentos ou a a perspectiva dos valores do capital e do
preços elevados causados por decisões de mercado que perfazem o sistema hege-
mercado – por exemplo, exportar em vez mônico. Mas não são plausíveis para os
de vender localmente ou destinar terras valores incorporados pela agroecologia
para a produção de agrocombustíveis e pelas aspirações das organizações po-
ou para fins especulativos no lugar da pulares – que são os valores da justiça
produção de alimentos. social, da participação democrática e da
O sistema hegemônico também causa sustentabilidade ambiental.
impactos sociais e ambientais. Ele causa Mesmo assim, os proponentes dos
destruição das florestas e perda da biodi- transgênicos insistem que seus benefícios
versidade. Rompe tradições e comunidades incluem “alimentar o mundo” e que
rurais, eliminando progressivamente as sem os transgênicos não será possível
condições para práticas de solidariedade produzir de forma sustentável alimento
e de intercâmbios na agricultura, assim suficiente para uma população crescente.
como os valores culturais que sustentam Defendem, assim, que não há alternativa
esses modos de vida e o conhecimento fora dos transgênicos, e que risco maior
tradicional que lhes deu origem. O sistema seria não adotar essas sementes. Esses
hegemônico também elimina, dessa forma, argumentos acabam exercendo forte
as condições requeridas para a promoção influência sobre as agendas da pesquisa
da agroecologia. Esse aspecto é especial- e da política agrícola, embora não este-
mente sério, pois significa que, além de não jam baseados em evidências empíricas
garantir segurança alimentar para todos, o nem sejam resultado da comparação
sistema hegemônico bloqueia as condições entre diferentes modelos. Esses argu-
para o avanço da soberania alimentar (da mentos ainda não consideram que levar
qual a agroecologia é parte integral), que é as sementes transgênicas para as áreas
condição indispensável para se generalizar mais pobres significa levar junto todo o
a segurança alimentar. modelo industrial de agricultura, e que
As sementes transgênicas desenvol- este não garante a realização do direito
vidas até hoje não apresentam utilidade humano à alimentação.
fora do sistema convencional de produção. Por fim, defender os transgênicos
Além disso, considerando o controle que como único caminho viável significa
o agronegócio exerce sobre a pesquisa, ignorar as vantagens da agroecologia e
desenvolvimento e uso das sementes trans- sobretudo seu papel para a promoção T
gênicas, também não se deve esperar que da segurança e da soberania alimentar

769
TRANSGÊNICOS

nas regiões mais pobres, conforme vem alternativa” é um argumento sem base
sendo recomendado por um número cada científica. Mais ainda, as crescentes evi-
vez maior de órgãos internacionais (De dências das vantagens da agroecologia in-
Schutter, 2014). Defender que “não há dicam que é mesmo um argumento falso.

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(OGM e seus derivados), cria o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), reestrutura a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio), dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança (PNB), revoga a Lei
n. 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória n. 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5º, 6º,
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770
TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

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TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

M ar ília C ar la de M ello Gaia


M arcelos J oão A lves

A transição agroecológica, em artificiais vindos de fora do sistema


aspectos gerais, envolve o processo de produção agrícola, maneja pragas
de construção de sistemas produtivos e doenças através de mecanismos
sustentáveis e abundantes em biodi- reguladores internos e é capaz de se
recuperar de perturbações causadas
versidade. Para tanto, considera-se
pelo manejo e colheita. (Gliessman,
a agroecologia como ciência e como
2001, p. 565)
prática social aplicada à realidade de
cada agroecossistema [ver A groecos ­ Diversos termos são utilizados na
sistema]. Em termos teóricos, este pro- definição deste processo de construção de
cesso transitório, planejado pela ação um campo baseado na agroecologia [ver
humana, culminaria em um agroecos- Agroecologia], por exemplo: transição
sistema sustentável, ou seja, aquele agroecológica, conversão agroecológica e
que mantém ruptura agroecológica. Apesar de cami-
nharem para um resultado final comum,
a base de recursos do qual depende, T
conta com uso mínimo de insumos
a diferença em um ou outro termo, na

771
T R A NSIÇÃO AGROECOLÓ GICA

concepção apresentada neste texto, se permanente. Do ponto de vista da uni-


baseia, principalmente, na forma como dade familiar de produção, por exemplo,
este processo se dá, com base em mu- é possível iniciar por algumas partes da
danças imediatas e/ou mudanças mais unidade, por alguns setores ou produtos;
complexas que envolvem não apenas as de forma a avançar aos poucos na produ-
esferas produtivas, mas também aspectos ção agropecuária, à medida que alguns
filosóficos, éticos, sociais, entre outros. resultados são observados, que práticas
Neste texto, para fins didáticos, vamos de manejo são alteradas e adaptadas e
utilizar o termo “transição a­ groecológica”. que há domínio de determinados pro-
A transição para a agroecologia, para cessos ecológicos e produtivos.
que seja duradoura e bem-sucedida, se Porém, a transição para a agroecolo-
ancora no conhecimento teórico-cientí- gia, hoje limitada a envolver apenas uma
fico e nas ações práticas, assume caráter cultura, uma unidade produtiva ou um
de “ruptura” ao estabelecer a negação território, deve alcançar todo o planeta,
do estado anterior, rompendo com uma de forma a ser capaz de responder às
condição anteriormente estabelecida necessidades alimentares da população
(Machado-Filho et al., 2010). mundial (Machado-Filho et al., 2010).
A transição agroecológica não se
trata de “conversão para a agricultura Níveis e escalas da transição
orgânica”, pois não se limita a fazer apenas agroecológica
a substituição de insumos sintéticos por O processo da transição agroeco-
orgânicos, e sim engloba tanto mudanças lógica é construído de forma gradual
nos princípios de manejo, realçando e com mudanças quantitativas e/ou em
utilizando processos ecológicos, quanto saltos com mudanças de qualidade, e tem
mudanças de postura dos sujeitos e de como princípio a observação e o respeito
concepção do trabalho, da produção e da às peculiaridades dos distintos biomas,
relação ser humano-natureza. dos territórios, das unidades familiares,
A transformação do agroecossistema das atividades produtivas manejadas e
no sentido da agroecologia é uma negação dos sujeitos envolvidos. É importante
à simplificação da natureza, construída contemplar múltiplas possibilidades de
pela agricultura, sobretudo a convencio- construção da agroecologia, agregando
nal/industrial. Esta simplificação resulta componentes materiais e imateriais ao
em “um ecossistema artificial que exige processo de transição. É possível também
constante intervenção humana”, e, “na trabalhar em diferentes escalas de tran-
maioria dos casos, essa intervenção se dá sição agroecológica, ampliando estas ao
na forma de insumos agroquímicos que, longo do tempo.
embora elevem a produtividade [no curto Dependendo do contexto, conside-
prazo], acarretam vários custos ambientais rando a diversidade regional brasileira, a
e sociais indesejáveis” (Altieri, 2012, p. 23). transição não advém apenas de sistemas
Em muitas experiências, o processo convencionais/industriais de produção,
de transição parte de algumas práticas mas também pode ser construída para a
ou atividades em andamento, as quais transformação de sistemas tradicionais e/
T podem ser potencializadas no sentido ou extrativistas, que podem ser aperfei­
de uma transformação mais ampla e çoados a partir do enfoque agroecológico.

772
TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

Caporal e Costabeber, (2004) enfati- partir da necessidade de cada parcela


zam que o processo de transição agroeco­ de terra.
lógica adquire enorme complexidade, Outro nível de transição seria a
tanto tecnológica como metodológica “substituição de insumos e práticas con-
e organizacional, dependendo dos ob- vencionais”, intensivas em capital, conta-
jetivos e das metas estabelecidas, assim minantes e degradantes do ambiente, por
como do “nível” de sustentabilidade que outras menos impactantes sob o ponto de
se deseja alcançar. Ao estimular o não vista ecológico. Por exemplo, a implan-
uso de adubos de síntese química de alta tação no sistema de plantas fixadoras
solubilidade e agrotóxicos, ao favorecer o de nitrogênio, de cultivos de cobertura,
incremento da matéria orgânica no solo, plantios diretos e controle biológico de
a adoção de sistemas biodiversos e o uso espécies espontâneas. Neste nível, a es-
sustentável dos recursos naturais pelo trutura básica do agroecossistema seria
conjunto social, promove-se uma ruptura pouco alterada, podendo ocorrer, então,
da lógica convencional, fomentando o problemas similares aos dos sistemas
incremento da produção, da oferta e do convencionais. Os processos de certifi-
consumo de alimentos mais saudáveis e cação de produtos em orgânicos algumas
agrobiodiversos. vezes se limitam a esse nível de transição,
Com Gliessman (2001) e Gliessman assim como uma boa parte das pesquisas
e Rosemeyer (2010) podemos distinguir acadêmicas da área.
quatro níveis fundamentais no processo Um pouco mais complexo é o nível
de transição para agroecossistemas sus- da transição representado pelo “rede-
tentáveis: i) a racionalidade no uso dos senho dos agroecossistemas”, para que
recursos, ii) a substituição de insumos, estes funcionem com base em novos
iii) o redesenho do sistema produtivo e conjuntos de processos ecológicos. Nesse
iv) o estabelecimento de vínculos entre caso, busca-se eliminar as causas dos
produtores e consumidores. problemas não resolvidos nos dois níveis
A “racionalidade no uso dos re- anteriores, ampliando a diversificação
cursos” diz respeito ao incremento da na produção e nas formas de manejo. A
eficiência das práticas convencionais implantação de sistema agroflorestal é
para reduzir o uso e consumo de insu- um exemplo de uma prática que permite
mos externos caros, escassos e danosos redesenhar espacial e temporalmente
ao ambiente. Esta tem sido a principal uma determinada unidade produtiva
ênfase da investigação agrícola conven- em busca de melhor autorregulação,
cional, com vistas a reduzir os impactos diversidade e eficiência energética.
negativos desta. Porém, vale destacar e Por fim, o quarto nível trata de
fazer a crítica de que esta perspectiva estabelecer, ou restabelecer, vínculos
resultou em tecnologias e práticas pou- diretos entre os/as trabalhadores/as do
co acessíveis às famílias camponesas, campo, que produzem os alimentos, e
de custo elevado e de intensificação da os/as moradores/as e trabalhadores/as das
agricultura convencional, por meio da cidades, para além de uma relação sim-
agricultura de precisão, entre outras, plista de produtores/as e consumidores/
que possibilita a aplicação direcionada as, na perspectiva da “construção de um T
de adubos e outros agroquímicos a sistema agroalimentar”.

773
T R A NSIÇÃO AGROECOLÓ GICA

Análise do agroecossistema para a A renda em um agroecossistema pode ser:


transição agroecológica i) renda agrícola monetária (renda pro-
A construção de um agroecossistema veniente dos produtos comercializados),
sustentável pode parecer algo abstrato em ii) renda agrícola não monetária (pro-
termos teóricos. É preciso olhar para os dução para o autoconsumo da família,
agroecossistemas reais e buscar parâme- trocas, doações e estoques) e iii) renda
tros que permitam propor e acompanhar não agrícola (proveniente de atividades
as mudanças necessárias. Para tanto, a não ligadas à agricultura, tais como bene-
análise do agroecossistema familiar ou fícios de programas e de políticas públicas,
de outras tipologias presentes em uma trabalho assalariado ou serviços prestados
mesma comunidade ou área de Reforma fora da propriedade etc.).
Agrária pode favorecer o planejamento O processo de transição deve permi-
do processo de transição (Movimento tir que a família potencialize a dinâmica
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; interna por meio de: i) diversificação da
ASPTA; Mutuando, 2005). produção, tornando o agroecossistema
Analisar o agroecossistema por meio biodiverso, aumentando o número de sub-
de sua estrutura e funcionamento é uma sistemas e, consequentemente, aumen-
possibilidade de levar para o concreto o iní- tando a diversidade de produtos, seja para
cio da transição agroecológica. A estrutura o consumo ou para a comercialização;
de um agroecossistema corresponde aos ii) produção de mais insumos na própria
subsistemas que o compõem, por exemplo, unidade familiar/lote, diminuindo ou eli-
a roça de milho consorciado com feijão, o minando a dependência do mercado para
pasto, o galinheiro, a horta, o pomar de aquisição de insumos; iii) organização
frutíferas, o açude de criação de peixes, a justa do trabalho e das tomadas de deci-
capineira, o SAF (sistema agroflorestal), são, levando em consideração, inclusive e
a roça de café etc. E o funcionamento do sobretudo, aspectos de gênero e geração;
agroecossistema diz respeito à dinâmica iv) diversificação da renda, de forma a não
que se estabelece em relação aos insumos, estar exclusivamente dependente de uma
produtos, trabalho e renda. única mercadoria (que pode ser mais ou
Os insumos são os elementos neces- menos valorizada em uma determinada
sários para produzir, tais como: semen- safra ou ser acometida por intempéries
tes, mudas, adubo, esterco, entre outros, ambientais) e potencialização da renda
provenientes dos subsistemas familiares agrícola não monetária, ou seja, produzir
(resíduos orgânicos da horta que vão mais itens para a alimentação da família.
para a composteira, por exemplo) ou do Entretanto, além da dinâmica inter-
mercado (por exemplo, mudas adquiridas na de transição, a qual necessita extra-
na casa agropecuária). Os produtos são polar o lote ou a unidade familiar, há de
aqueles que servem para o consumo da se destacar que o avanço da agroecologia
família e também aqueles destinados à co- não se dará de forma isolada, mas no
mercialização. A organização do trabalho âmbito do território, necessitando então
retrata a forma como a família se divide alterar as dinâmicas nas áreas de Reforma
nas funções na propriedade, e também a Agrária, nas comunidades tradicionais e
T existência de trabalhadores/as de fora do camponesas etc., de forma mais ampla,
núcleo familiar e atividades cooperadas. com apoio e envolvimento de movimen-

774
TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

tos sociais, ambientais, sindicatos, entre “ambientes socioculturais propícios à


outros, como expressão da luta política e produção e à circulação de informações
da materialização das práticas agroeco­ pertinentes às questões do desenvolvi-
lógicas na construção de um outro sistema mento local”, por meio de encontros de
agrário, baseado na cooperação [ver Coo­ agricultores/as experimentadores/as [ver
peração] e na construção coletiva. box em Metodologias Emancipatórias], de
visitas de intercâmbio e outros espaços de
Elementos que favorecem e troca que favoreçam a comunicação oral,
enriquecem a transição agroecológica a auto-organização, a Educação Popular
Não há um modelo único a ser se- [ver Educação Popular em Agroecologia]
guido para a transição, mas inspirações, e a “circulação local dos conhecimentos
experiências e trocas de saberes úteis. Não gerados nos processos de experimenta-
há um pacote tecnológico da transição ção” (Petersen, 2006).
agroecológica. Porém, é indispensável que Muito se diz da aproximação da agri-
a transição trabalhe a fertilidade do solo cultura camponesa com a agroecologia.
[ver Solo]. Destaca-se aqui, com base nos Ampliando esse entendimento, podemos
ensinamentos de Ana Primavesi (2002), compreender também a aproximação das
a necessidade de selecionar, experimen- camponesas e dos camponeses aos proces-
tar e ajustar práticas condizentes com as sos de transição, muito mais do que nas
características de nossos solos tropicais e propriedades dominadas pelo agronegócio
subtropicais, que permitam a manutenção [ver Agronegócio]. A partir de Camargo
da cobertura do solo, a reposição constante (2007) destacamos que se faz necessário
da matéria orgânica e o não revolvimento utilizar a racionalidade do campesinato
destes. Ou ainda, práticas que dialoguem [ver Campesinato] na construção da tran-
e aproximem o agroecossistema ao funcio- sição agroecológica, olhando para a forma
namento de um ecossistema natural, com como os camponeses e as camponesas
base na sucessão ecológica, na biodiversi- tradicionalmente se relacionam com a
dade e na ciclagem de nutrientes. terra. Do contrário, corre-se o risco de
Como exemplos de algumas técnicas um “agronegócio orgânico”, igualmente
e práticas que podem contribuir na con- predatório e antiecológico, direcionado
dução da transição agroecológica para a um nicho de mercado elitizado.
a produção vegetal e animal, citamos: As famílias camponesas encaram
sistemas de policutivos, compostagem, a “terra, o trabalho e a família” como
cultivos de cobertura, sistemas agroflo- “valores morais e categorias nuclean-
restais [ver Agrofloresta – Sistemas Agro­ tes”, se preocupam “com o autoconsu-
florestais], homeopatia [ver Homeopatia], mo e segurança alimentar da família”,
Pastoreio Racional Voisin, rotação de estabelecem “relações de vizinhança e
culturas, manejo ecológico de espécies reciprocidade entre famílias produtoras”
espontâneas, sistemas agrosilvopastoris, por meio das quais trocam produtos,
biofertilizantes, adubação verde, quebra conhecimentos, maquinários e força
ventos, entre outras. de trabalho, e organizam o “espaço
Considerando os muitos conheci- rural também tendo como premissa a
mentos e saberes, científicos e populares importância de promover a interação T
que circulam no campo, há de se criar das atividades produtivas, num modelo

775
T R A NSIÇÃO AGROECOLÓ GICA

em que o resíduo ou produto é insumo químicos sintéticos para orgânicos, de téc-


para outra atividade” (Camargo, 2007). nicas e práticas de manejo convencional
Tais características evidenciam a dos solos para um manejo ecológico, ou
possibilidade da transição agroecoló- da manutenção de práticas capitalistas de
gica se processar e se fortalecer desde produção (tais como: produtos orgânicos
a agricultura camponesa e tradicional, voltados para um nicho de mercado eli-
tendo ali fragmentos ou germes do que tizado, empobrecimento dos solos, explo-
pode vir a ser um campo organizado com ração do trabalho, monocultivos etc.). É
base na agroecologia. É com base nessa necessária uma transição que modifique
perspectiva que a agricultura vem sendo de fato as relações dos seres humanos
desenvolvida há mais de 10 mil anos; não com a natureza e entre si, mudanças nas
podemos esquecer que o pacote tecnoló- relações sociais, trabalhistas, produtivas,
gico da Revolução Verde [ver Revolução ambientais, culturais, de gênero, de gera-
Verde] é recente em comparação ao tempo ção, de identidades, de classe.
que o ser humano desenvolve agricultura. Conforme Sevilla-Guzmán (2011),
as perspectivas ecológico-produtiva,
Para finalizar (e iniciar)... socioeconômica e cultural e a transfor-
É importante destacar que a transi- mação social precisam ser consideradas
ção nas relações sociais e produtivas ca- nos processos de transição à agroecolo-
pitalistas não se realiza em sua amplitude, gia, com potencial para promover mu-
pois confronta a sociedade de consumo e, danças mais significativas no campo e
portanto, só se efetivará quando outras na sociedade, visando à transformação
esferas da organização econômico-social do modo de produção, e não apenas do
forem modificadas. Não basta apenas uma agroecossistema, visando à construção
transição por substituição de insumos de um sistema agrário.
Referências
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Janeiro: Expressão Popular/AS-PTA, 2012.
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São Paulo, n. 7, p. 156-181, 2007.
CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A. Agroecologia: alguns conceitos e princípios. 24p. Brasília: MDA/
SAF/DATER – IICA, 2004.
GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. 2. ed., Porto Alegre:
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_______; ROSEMEYER, M. The conversion to sustainable agriculture: principles, processes, and practices.
CR Press, 2010.
MACHADO-FILHO, L. C. P. et al. Transição para uma agropecuária agroecológica. In: II Simpósio
Brasileiro de Agropecuária Sustentável, 2010, Viçosa: Arka Editora, 2010, p. 243-258.
MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA; ASPTA; Mutuando. Agroecologia:
notas introdutórias e análise de agroecossistemas. Apostila do Curso de Agroecologia e Biossegurança.
Mimeo. 2005.
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PRIMAVESI, A. Manejo ecológico do solo: a agricultura em regiões tropicais. São Paulo: Nobel, 2002.
SEVILLA-GUZMÁN, E. Sobre los orígenes de la agroecología en el pensamiento marxista y libertario. La Paz:
AGRUCO/Plural Editores/CDE/NCCR, 2011.
Para saber mais
T REVISTA AGRICULTURAS. Rio de Janeiro: AS-PTA. Agriculturas: experiência em agrologia. Disponível
em: aspta.org.br/revista-agriculturas/. Acesso em: 24 abr. 2019.

776
TROFOBIOSE

ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL (ATER) PARA A TRANSIÇÃO AGROECOLÓ-


GICA. SERTA. 2018. Direção e roteiro: Henrique Lee. Agência Pavão 1 vídeo (25 min). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=sBQ_3mPerBw. Acesso: 5 set. 2019.
AGROECOLOGIA COMIDA DE VERDADE NO CAMPO E NA CIDADE. Curta Agroecologia.
Articulação Nacional de Agroecologia. 2018. 1 vídeo (25 min). Canal Saúde Fiocruz. 5/4/2019. Disponível
em: https://portal.fiocruz.br/video/comida-de-verdade-curta-agroecologia. Acesso em: 6 abr. 2021.
MUTUANDO, Instituto Giramundo. A Cartilha Agroecológica. Botucatu, SP: Editora Criação Ltda, 2005.
SAUER, S.; BALESTRO, M. S. (org.). Agroecologia e os desafios da transição ecológica. 2. ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2013. 328p.

TROFOBIOSE

M ar ia J osé G uazzelli

A trofobiose é uma área de conhecimen- elos constituindo uma corrente. As


to que nos permite entender que pragas espécies de pragas e doenças têm uma
e doenças não atacam qualquer planta variedade muito pequena de enzimas
aleatoriamente, mas apenas aquelas que digestivas, que são as ferramentas ne-
servem como alimento adequado àquela cessárias para quebrar as cadeias de
determinada praga ou doença. Esta teoria, aminoácidos. Isso reduz a possibilidade
desenvolvida pelo pesquisador francês de aproveitar completamente moléculas
Francis Chaboussou (2006), é uma abor- grandes (complexas) como as proteínas.
dagem que busca compreender como a No que se refere às proteínas, o me-
própria planta consegue se defender a tabolismo de uma planta tem dois pro-
partir do seu metabolismo. O controle das cessos opostos: a síntese (proteossíntese)
chamadas pragas e doenças é um desafio e a decomposição (proteólise). Quando
para a produção agrícola e a trofobiose é uma planta está em proteossíntese, ela
uma das diferentes estratégias complemen- está unindo aminoácidos que estão cir-
tares para se conseguir cultivos saudáveis. culando na sua seiva e formando pro-
A palavra trofobiose significa ali- teínas e, portanto, há menos alimento
mento (trofo), para um modo de vida disponível para as pragas e doenças.
(biose). Dizendo de outra forma, para Ao contrário, quando em proteólise,
uma planta ser atacada ela deve ter, na há um aumento dos aminoácidos livres
sua seiva, exatamente o alimento neces- circulando na seiva da planta, ou seja, há
sário para um inseto, ácaro, nematoide mais comida disponível para ser aprovei-
ou microrganismos (fungos ou bactérias). tada por pragas e doenças. Quanto mais
Este alimento é constituído basicamente intensa for a proteossíntese, menor será
por aminoácidos, que são substâncias a sobra de aminoácidos livres, açúcares
simples, de fácil absorção. e minerais solúveis. Além disso, a for-
Os aminoácidos, quando unidos, mação eficiente de proteínas aumenta o T
constituem proteínas, como se fossem nível de respiração e de fotossíntese da

777
TROFOBIOSE

planta, melhorando todo seu funciona- para que possam se deslocar e formar
mento [ver Teia Alimentar]. brotações e f lores. É um período em
Assim, a chave para reduzir a opor- que, naturalmente, a planta está mais
tunidade de uma planta ser atacada por sensível e frágil, pois a carga de nutrien-
pragas e doenças é conseguir o máxi- tes que ela recebe é muito grande, e a
mo de proteossíntese e o mínimo de capacidade para aproveitar a energia
pro­t eólise. Para tanto, é importante que chega ainda é insuficiente, acumu-
conhecer quais fatores interferem no lando substâncias solúveis que servem
metabolismo da planta, favorecendo de alimento a pragas e doenças. Em
ou dificultando ambos os processos. A contrapartida, nas folhas velhas tam-
partir disto, é possível fazer escolhas bém ocorre uma decomposição normal
visando otimizar aquilo que aumenta a das proteínas, para que os produtos e
resistência da planta. minerais possam se deslocar e ser rea-
Fatores importantes que interferem proveitados para as folhas mais novas.
na resistência da planta são: 1) espécie ou Consequentemente, folhas velhas são
variedade da planta (genética); 2) idade mais atacadas que as maduras.
da planta ou idade da parte da planta; 3) Solo: a boa fertilidade de um
3) solo; 4) clima (luz, temperatura, umi- solo, que é dada por condições físicas
dade, vento); 5) adubos orgânicos; 6) adequadas (solo solto), boa diversi­dade
adubos minerais de baixa solubilidade; de nutrientes e muita atividade dos mi-
7) tratamentos nutricionais; 8) tratos crorganismos, aumenta o poder de ab-
culturais (capina, poda); 9) enxertia; sorção e de escolha de alimentos pelas
10) adubos químicos (NPK); e 11) agro- plantas, favorecendo a proteossíntese.
tóxicos. A seguir, uma breve definição Ao contrário, solos fracos, muito tra-
de cada um desses fatores. balhados, gastos, compactados, des-
1) Espécie ou variedade da planta: a cobertos, diminuem a capacidade das
adaptação genética da planta ao local do plantas de poder escolher e de absorver
cultivo aumenta a sua capacidade de pro- nutrientes, prejudicando a proteossíntese
teossíntese, como no caso das sementes e facilitando o acúmulo de substâncias
crioulas. A maior adaptação determina solúveis [ver Solos].
melhor capacidade de absorção de nu- 4) Clima: os fatores climáticos afe-
trientes pelas raízes e maior capacidade tam o metabolismo das plantas de várias
de fotossíntese das folhas, por exemplo. formas. Entre estes fatores temos a lumi-
Ao contrário, se a espécie ou variedade nosidade, pois a falta de sol diminui a
não for bem adaptada, o funcionamento atividade de fotossíntese, prejudicando
da planta é prejudicado, o que favorece a síntese de proteínas. Portanto, quando
a proteólise. há vários dias nublados, é de se esperar
2) Idade da planta ou da parte da que apareçam problemas com insetos ou
planta: a proteólise é mais intensa na enfermidades nas plantas. Outro fator é
fase de brotação e floração. Qualquer a umidade, já que sua falta ou excesso
planta armazena reservas para os pe- causa desequilíbrios nas plantas, quer
ríodos de necessidade, como é o caso dizer, pioram seu funcionamento, dimi-
T da época de reprodução. Nessa fase, as nuindo a proteossíntese ou provocando
proteínas armazenadas são decompostas a proteólise. A água é um dos fatores

778
TROFOBIOSE

que propicia a entrada de nutrientes são os fosfatos naturais, o calcário e pós


nas plantas. E o excesso de água no solo de rochas, usados em quantidades mode-
pode diminuir a disponibilidade de ar radas [ver Nutrição Vegetal].
(oxigênio) para as raízes, prejudicando, 7) Tratamentos nutricionais: subs-
assim, a absorção de nutrientes. tâncias orgânicas e diversidade de mi-
5) Adubos orgânicos: a matéria cronutrientes são fundamentais para
orgânica aplicada ao solo aumenta a o melhor equilíbrio fisiológico e, con-
proteossíntese nas plantas, pelos seus sequentemente, a maior sanidade das
compostos orgânicos e pela sua diver- plantas. Exemplos de tratamentos nutri-
sidade em macro e micronutrientes. É cionais são o uso de cinzas, biofertilizan-
plenamente conhecido que plantas em tes enriquecidos com ervas espontâneas
solos ricos em matéria orgânica e que ou micronutrientes específicos, e soro
recebem adubação orgânica complemen- de leite, pois todos exercem uma ação
tar são bem menos atacadas por insetos benéfica sobre o metabolismo das plan-
e doenças. A matéria orgânica melhora tas, aumentando a proteossíntese [ver
a resistência das plantas porque, além Interações Ecológicas].
de melhorar a estrutura física do solo, 8) Tratos Culturais: capinas, lavra-
possui, na sua constituição, os macro ções, gradeações, com corte de raízes, e
e micronutrientes em quantidades bem podas malfeitas, prejudicam o metabolis-
equilibradas, que as plantas absorvem mo normal das plantas, pois provocam
conforme sua necessidade, escolhendo ferimentos que têm que ser curados e,
a qualidade e a quantidade, aumentan- como no caso da brotação e floração, a
do assim o nível de proteossíntese. Os planta tem que decompor suas reservas,
micronutrientes são fundamentais para levar até o ferimento e refazer as estru-
a proteossíntese, tanto por fazerem parte turas que foram danificadas pelos tratos
das enzimas quanto por serem ativadores culturais, o que aumenta a proteólise.
delas, e as enzimas são as ferramentas 9) Enxertia: onde o porta-enxerto e
que regulam o metabolismo da planta. o enxerto se encostam, naturalmente se
A matéria orgânica também melhora a forma um filtro para os nutrientes que
resistência das plantas porque existem estão na seiva da planta, e nem tudo o
nela substâncias de crescimento, que que a raiz absorve consegue chegar até a
aumentam a respiração e a fotossíntese copa. Em plantas enxertadas, nem sem-
nas plantas (os fito-hormônios) [ver pre basta o solo estar em ótimas condi-
Ciclagem de Nutrientes]. ções e, em muitos casos, será necessário
6) Adubos minerais de baixa solubi- compensar a presença desse filtro com
lidade: esses adubos se tornam gradativa- pulverizações foliares periódicas (com
mente disponíveis para a absorção pelas biofertilizantes, água de cinzas, soro ou
raízes e estimulam o seu crescimento, leite, por exemplo) para assegurar uma
aumentando sua capacidade de buscar melhor capacidade de proteossíntese.
água e nutrientes do solo, além de não 10) Adubos químicos (NPK): estes
prejudicarem a macro e microvida do solo, produtos diminuem a proteossíntese
ao contrário dos adubos químicos solúveis porque alteram o funcionamento das
concentrados, otimizando a relação prote- plantas. Os componentes desses adubos T
ossíntese/proteólise nas plantas. Exemplos acabam sendo tóxicos devido à alta

779
TROFOBIOSE

solubilidade, pois acabam sendo absor- seja, não agem apenas matando os in-
vidos muito rapidamente pelas plantas, e setos, ácaros, nematoides, patógenos ou
também pelas concentrações exageradas plantas (no caso de herbicidas), também
de nutrientes que apresentam, o que têm alto potencial de intoxicar os culti-
causa problemas no crescimento das vos. Eles podem diminuir a respiração, a
plantas. Os adubos químicos solúveis, transpiração e a fotossíntese da planta,
que são ácidos e salinos, ainda destroem afetando a proteossíntese, prejudicando a
a vida útil do solo, prejudicando todos resistência das plantas. Da mesma forma
os processos de retirada de nutrien- que os adubos químicos, os agrotóxicos
tes tais como fósforo, cálcio, potássio, também destroem a vida útil do solo,
nitrogênio e outros. Também acabam prejudicando a disponibilidade de nu-
com a fixação do nitrogênio do ar, que trientes para as plantas [ver Agrotóxicos].
é feita pelas bactérias das raízes das Uma planta saudável, bem alimen-
leguminosas (feijão, soja, trevo, vagem, tada, com um bom manejo e adaptada
ervilha etc.) ou por outros organismos ao local, dificilmente será atacado por
que estão livres no solo. E atrapalham a insetos ou doenças, pois as ditas pra-
liberação de fósforo e de muitos outros gas e doenças morrem de fome numa
minerais, feita pelas micorrizas, que são planta sadia, já que não têm do que se
fungos benéficos associados às raízes das alimentar. Assim, insetos, ácaros, ne-
plantas. Assim, a ureia, NPK, cloreto de matoides, fungos, bactérias e vírus são
potássio e superfosfatos prejudicam di- a consequência de termos plantas não
reta e indiretamente o metabolismo das saudáveis, não são a causa do problema.
plantas, tornando-as menos resistentes. Na prática, são indicadores biológicos
11) Agrotóxicos: a aplicação de de que alguma coisa no manejo não está
agrotóxicos afeta negativamente a pro- feita de forma adequada.
teossíntese de duas formas principais. Aprender a identificar o que estes
A primeira, de forma direta, pelo seu indicadores nos dizem facilita decidir
efeito sobre a planta. A segunda, de o que fazer para poder controlar os
forma indireta, pelo seu efeito sobre o problemas. Entender a trofobiose nos dá
solo. Todos os agrotóxicos são capazes uma ferramenta objetiva, especialmente
de entrar na planta pelas folhas, raízes, importante no período de transição
frutos, sementes, galhos ou troncos. Ou agroecológica.

Referência
CHABOUSSOU, F. Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos. São Paulo: Editora Expressão Popular.
2006, 320 p.

Para saber mais


MEIRELLES, L.; VENTURIN, L.; GUAZZELLI, M. J. Agricultura ecológica: alguns princípios básicos.
Ipê/RS: Centro Ecológico, 2016. 74 p. Disponível em: http://www.centroecologico.org.br/cartilhas/
PrincipiosBasicosAgriculturaEcologica.pdf Acesso em 29 set. 2018.

780
VERBETES POR EIXO
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Metabolismo socioecológico: questão agrária, sociedade e natureza


Agricultura Economia Feminista
Agricultura urbana Economia Solidária
Agroecologia Empates
Agronegócio Financeirização da Economia
Agrotóxicos Fome
Água Impérios Alimentares
Alimento Justiça Ambiental
Antropoceno Mineração
Bioma Amazônia Mudanças Climáticas
Bioma Caatinga Novas Biotecnologias
Bioma Cerrado Povos e Comunidades Tradicionais
Biomas Costeiros Questão Agrária
Bioma Mata Atlântica Reforma Agrária Popular
Bioma Pampa Revolução Verde
Bioma Pantanal Ruptura do Metabolismo Socioecoló-
Campesinato gico
Capitalismo Verde Sistemas Agrários
Ciclo da Água Soberania e Segurança Alimentar e
Convivência com o Semiárido Nutricional
Cosmovisões Território
Desertificação Trabalho
Desertos Verdes Transgênicos
Ecologia Transição Agroecológica

Agroecologia e bases ecológicas da agricultura


Agricultura Biodinâmica Permacultura
Agricultura Orgânica Plantas Medicinais e Fitoterápicos
Agroecossistemas na Saúde Pública
Agrofloresta – Sistemas Florestais Saneamento Ecológico
Agroflorestais Sementes
Ciclagem de Nutrientes Solo
Homeopatia Tecnologia Social
Interações Ecológicas Teia Alimentar
Nutrição Vegetal Trofobiose

782
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Poder Popular, agroecologia e Estado


Acampamentos e Assentamentos Feminismo Camponês e Popular
Agroecologia no Contexto La Via Campesina
das Nações Unidas Movimento Agroecológico
Agroindustria e beneficamento Política Agrária
Articulação do Semi-árido Política Agrícola
Articulação Nacional de Agroecologia Política Ambiental
Bens Comuns Política Social
Código Florestal Políticas Públicas para Agroecologia
Compras Públicas de Alimentos Povos e Comunidades Tradicionais
Construção Social dos Mercados Renda da Terra
Cooperação Agrícola Sistemas de Certificação
Emancipação Humana Agroecológica
Estado Terras Indígenas

Educação, saúde, cultura e agroecologia


Complexos de Estudos Institutos Latinoamericanos
Conhecimento Agroecológico de Agroecologia (IALAs)
Cultura e Agroecologia Medicina Tradicional Brasileira
Determinação Social da Saúde Metodologias Emancipatórias
Diversidade Sexual e de Gênero Pedagogia do Capital
Educação Ambiental Pedagogia do Trabalho
Educação Básica e Agroecologia Práticas e Saberes em Educação e
Educação do Campo e Agroecologia Saúde da População do Campo
Educação em Agroecologia Produção, Ambiente e Saúde
Educação Politécnica e Agroecologia Saúde das Populações do
Educação Popular em Agroecologia Campo, das Florestas e das Águas
Epistemologia da Agroecologia Sistematização de Experiências
Formação em Alternância Agroecológicas

783
AGROECOSSISTEMAS

Figura 1 – Banquete público agroecológico realizado durante o IV Encontro Nacional de Agroecologia.

Foto: Cecília Figueiredo

785
AGROECOSSISTEMAS
Figuras 2 e 3 – Desenhos utilizados pela AS-PTA e pelo Polo da Borborema, organizações atuantes no
agreste da Paraíba, que mostram as transformações nos agroecossistemas promovidas pelas redes de
agricultores/as experimentadores/as.

786
AGROFLORESTA – SISTEMAS AGROFLORESTAIS

Figura 4 – Dinâmica de sucessão em ecossistemas naturais, agroecossistemas


e agroflorestas (Baseado no Triângulo da Vida de Ernst Gotsch)

Desenho: Elisa Ferrari

787
AGROFLORESTA – SISTEMAS AGROFLORESTAIS
Figura 5 – Estratificação vertical de uma agrofloresta

Desenho: Elisa Ferrari

788
AGROFLORESTA – SISTEMAS AGROFLORESTAIS

Figura 6 – Relações solo-planta e aspectos ecológicos positivos da árvore em agroflorestas comparando


com uma floresta e uma monocultura (Baseado em Alrik Copijn)

Desenho: Elisa Ferrari

789
ANTROPOCENO
Figura 7 – Datação relativa das rochas

Fonte: Comissão Internacional de Estratigrafia

790
BIOMA PAMPA
Figura 8 – Delimitação do bioma Pampa

Fonte: Adaptado de IBGE – MMA SCP/DEPLAN 2007

COMPLEXOS DE ESTUDO
Figura 9 – Esboço dos elementos que compõem no Plano de Estudos do MST/PR,
incluindo os Complexos de Estudo

Fonte: organizado pelos autores a partir de MST (2013)

791
DESERTIFICAÇÃO
Figura 10 – Distribuição das terras secas do planeta

Fonte: Adaptado de FAO (2007)

792
DESERTIFICAÇÃO
Figura 11 – Perdas de solo por erosão em diversos sistemas de uso da terra

793
PERMACULTURA

Figura 12 – Diagrama de setores


Fonte: Organizado pelos autores

Figura 13 – Possibilidades de conexões entre os elementos


Fonte: Organizado pelos autores

794
PRODUÇÃO, AMBIENTE E SAÚDE
Figura 14 – Matriz FPSEEA para a Saúde e Ambiente

Fonte: Organizado pelos autores

Figura 15

Fonte: Santos e Rigotto, 2010

795
SISTEMAS AGRÁRIOS

Figura 16 – Metodologia completa baseada nos Sistemas Agrários

Fonte: Elaboração dos autores

796
TECNOLOGIA SOCIAL
Figura 17 – Esquema conceitual – Forças produtivas e relações sociais de produção agroecológicas

Fonte: Christoffoli, 2018

797
TECNOLOGIA SOCIAL
Figura 18 – Forças produtivas e as relações sociais de produção em uma perspectiva agroecológica

Fonte: Elaboração dos autores

798
TEIA ALIMENTAR

Figura 19 – Esquema geral da teia alimentar, mostrando interações


alimentares e fluxo da energia no ecossistema.

Fonte: Elaboração do autor

799
AUTORES (AS)

Ada Cristina Pontes Aguiar é professora da Universidade Federal do Cariri (UFCA),


doutoranda em Saúde Pública.
Adalberto Flores Greco Martins é agrônomo, formado na Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS-Dourados), especialista em Agroecologia pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Ciências Sociais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutor em Geografia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É militante do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desde 1990 e atualmente é membro da direção
estadual do MST do Rio Grande do Sul pelo Setor de Produção.
Adriano da Costa Valadão é doutor em Sociologia e membro da Incubadora de Em-
preendimentos Solidários da Universidade Estadual de Ponta Grossa (IESol–UEPG).
Aldrin Martin Perez-Marin é pesquisador do Núcleo de Desertificação e Agro-
ecologia do Instituto Nacional do Semiárido (INSA) e professor permanente do
Programa de Pós-Graduação em Ciência do Solo da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB campus Areia).
Alexandre Henrique Bezerra Pires é educador e coordenador geral do Centro Sabiá,
coordenador executivo da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e mestre em
Extensão Rural e Desenvolvimento Local.
Alexandre Pessoa Dias é engenheiro civil com ênfase em Engenharia Sanitária pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj, 1996). Doutor em Medicina Tropical
pelo Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz (2017). Mestre em Engenharia Ambiental pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj, 2003). Professor-pesquisador do
Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde da Escola Politécnica
de Saúde Joaquim Venâncio (LAVSA/EPSJV).
Alexandro Solórzano é professor adjunto do Departamento de Geografia e Meio
Ambiente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ge-
ógrafo com mestrado em Botânica e doutorado em Ecologia pela Universidade de
Brasília (UnB). Investiga a interação sociedade/natureza a partir de uma perspectiva
de sistemas socioecológicos, com uma abordagem que permeie Geografia, História e
Ecologia. Se interessa pelo processo de transformação da paisagem e pela produção
de novos ecossistemas.
Altair Sales Barbosa é doutor em Antropologia e Geociências pelo Smithsonian
Institution, Washington DC. Pesquisador do CNPQ, membro titular do Instituto
Histórico e Geográfico de Goiás e professor titular em diversas universidades.
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Ana Cláudia de Lima Silva é doutora em Agricultura pela Universidade Estadual


Paulista (Unesp), assessora técnica do Programa Sementes do Semiárido na Arti-
culação do Semiárido Brasileiro (ASA).
Ana Terra Reis é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
bolsista Fapesp (2017/14.976-0), pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Universidade Estadual Paulista (FCT/Unesp – campus Presidente
Prudente).
Anakeila de Barros Stauffer é formada em Pedagogia e mestre em Educação pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Doutora em Ciências Humanas e
Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Pro-
fessora pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) e
professora do Ensino Fundamental I da Secretaria Municipal de Duque de Caxias.
Anamaria Testa Tambellini é médica, doutora em Ciências, professora aposentada
da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz
e do Instituto de Estudos de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
André Monteiro Costa é engenheiro de Saúde Pública e pesquisador titular do
Departamento de Saúde Coletiva/Instituto Aggeu Magalhães/Fiocruz, doutor em
Saúde Pública (Ensp/Fiocruz).
André Ruoppolo Biazoti é educador ambiental e coordenador de projetos socio-
ambientais no Grupo de Estudos em Agricultura Urbana do Instituto de Estudos
Avançados (IEA–USP), membro do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana
(CNAU) e mestrando em Ecologia Aplicada (EA–USP).
Andrei Cornetta é doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo
(USP), pós-doutorando pelo Instituto de Geociências da Universidade Estadual de
Campinas (IG/Unicamp).
Antonio Gomes Barbosa é coordenador do Programa Uma Terra e Duas Águas
(P1+2)/ASA e do Programa Sementes do Semiárido, especialista em Extensão Rural
para o Desenvolvimento Sustentável.
Antonio Thomaz Junior é professor titular de Geografia do Trabalho. Docente dos
Cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Geografia na Universidade Estadual
Paulista (FCT/Unesp); membro dos Programas de Pós-Graduação em Geografia
(IPPRI/Unesp/ENFF); pesquisador PQ-1/CNPq; coordenador do Grupo de Pesquisa
“Centro de Estudos de Geografia Do Trabalho” (CEGeT) e do Coletivo CETAS de
Pesquisadores (Centro de Estudos do Trabalho, Ambiente e Saúde).
Araê Claudinei Lombardi é engenheiro agrônomo pela Universidade Estadual de
São Paulo (Unesp campus Botucatu), master em Agroecologia pela Universidade
Internacional de Andaluzia (UNIA/Espanha) e especialista em Agricultura Bioló-
gico-Dinâmica pela Unioeste/Instituto Elo. Mestre em Desenvolvimento Territorial
na América Latina e Caribe pelo IPPRI/Unesp e militante do Movimento pela
Soberania Popular na Mineracao (MAM).
Armando Bartra Verges é professor da Universidade Autónoma Metropolitana
de Xochimilco, no México. Foi professor da Universidad Nacional Autónoma de
México (Unam) e da Escuela Nacional de Antropología e Historia. Formou-se

802
SOBRE OS AUTORES (AS)

em Filosofia (Unam), foi diretor do Instituto de Estudios para el Desarrollo Rural


Maya e, em 2011, recebeu o doutorado Honoris Causa da Universidad Nacional de
Córdoba, na Argentina.
Ary Carvalho de Miranda é médico, doutor em Ciências, professor do Centro de
Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.
Atamis Antonio Foschiera é doutor em Geografia, professor do curso de Geografia
da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Porto Nacional).
Camila Moreno é membra do Grupo Carta de Belém e doutora pelo Programa de
Pós-Gradução de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Carlos Armênio Khatounian é PhD em Agricultura Sustentável pela Universidade
do Estado de Iowa, mestre em Agricultura Ecológica pela Universidade Agrícola de
Wageningen, professor do Departamento de Produção Vegetal da Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz.
Carlos Renilton Freitas Cruz é professor da Universidade Federal do Pará (UFPR
campus Castanhal). Doutor em Educação.
Carlos W. Barrientos Aragón é secretário executivo do Comitê de Unidade Cam-
ponesa da Guatemala. Economista, graduado em História.
Caroline Bahniuk é doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa
Catarina e pós-doutora em Serviço Social pela mesma universidade. Professora da
Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB).
Caroline Siqueira Gomide é geóloga, mestre em Geologia e doutora em Geoquímica
pela Universidade de Brasília. Professora Adjunta da UnB campus Planaltina e atua
nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) e Licenciatura em
Ciências Naturais. Professora do Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente e
Desenvolvimento Rural (PPG-Mader) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Agrários
(Neagri) no Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados (Ceam/UnB).
Cátia Grisa é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS).
Ceres Luisa Antunes Hadich é militante do Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra, assentada no Assentamento Maria Lara, no Paraná. É engenheira
agrônoma pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), mestre em Agroecologia e
Agricultura Sustentável pela Unah (Universidad Agraria de La Habana).
Cristhiane Oliveira da Graça Amâncio é pesquisadora em Sociologia e Desen-
volvimento Rural da Embrapa Agrobiologia, doutora em Ciências Sociais com
ênfase em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Foi uma
das coordenadoras do projeto de Sistematização de Experiências dos Núcleos de
Agroecologia pela ABA-Agroecologia. Coordena e integra projetos de Inovação
Social, Agroecologia, avaliação de impacto e metodologias de intervenção social
com foco na participação e construção de autonomias.
Daniel Mancio integra a coordenação do Setor de Produção Cooperação e Meio
Ambiente do MST. Doutor em Produção Vegetal e professor do Departamento de
Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal do Espírito Santo no curso

803
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

de Educação do Campo. Ministra disciplinas de questão agrária, economia política,


agroecologia e desenvolvimento rural.
Daniela da Silva Egger é professora de Geografia do Laboratório de Formação Geral
da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da FioCruz. Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Desenvolvimento, Agricultura
e Sociedade (CPDA-UFRRJ).
Danielle Cerri é professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Pública
Joaquim Venâncio/Fiocruz. Mestre em Ciências, Museologia e Patrimônio.
Débora Nunes Lino da Silva é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra, atuando no setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente. Graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
Denis Monteiro é agrônomo, secretário executivo da Articulação Nacional de Agro-
ecologia e doutorando na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Dilma Maria de Brito Melo Trovão possui graduação em Agronomia (1990) e
mestrado em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB,
1994), doutorado em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG, 2004) e pós-doutorado em Ecologia e Recursos Naturais pela
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar, 2018). Professora da Universidade
Estadual da Paraíba.
Diogo de Carvalho Cabral é geógrafo da Coordenação de Geografia do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística. Atualmente é Newton International Fellow
da British Academy na Universidade de Londres, Reino Unido. Bacharel em
Geografia, mestre em História Social e doutor em Geografia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estuda as relações entre as sociedades humanas
e o restante da biosfera no período pré-industrial da história do Brasil.
Dionara Soares Ribeiro é licenciada em Educação do Campo pela Universidade
de Brasília (UNB, 2011), especialista em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais
pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV, 2015) e mestranda em
Educação do Campo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB,
2019), além de educadora da Escola de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto.
Dominique Michèle Perioto Guhur é agrônoma, mestra em Educação pela Univer-
sidade Estadual de Maringá (UEM). Atuou em assentamentos de Reforma Agrária
e na coordenação político-pedagógica da Escola Milton Santos de Agroecologia.
Educadora popular, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
e tradutora.
Elder Andrade de Paula é professor associado IV do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Acre. Doutor em Ciências Sociais pelo Progra-
ma de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), com estágios pós-doutorais na
Universidad Nacional Autonoma de Mexico (Unam) e CPDA/UFRRJ.
Elisiani Vitória Tiepolo é formada em Letras e mestre em Letras pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC-PR). Professora na UFPR, setor Litoral.

804
SOBRE OS AUTORES (AS)

Érico Demari e Silva é veterinário e agroflorestor na Rede Plantar Para a Vida,


em Sergipe.
Erivan Camelo da Silva é licenciado em Ciências Sociais, mestrando em Geografia
e membro da Coordenação Nacional do Movimento pela Soberania Popular na
Mineração (MAM).
Etel Matielo é nutricionista e mestra em saúde pública. Tutora do Programa de
Residência Multiprofissional em Saúde da Família com Ênfase na População do
Campo, Fiocruz Brasília. Colaboradora do Coletivo de Saúde do MST, doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da ENSP/Fiocruz.
Eugênio Alvarenga Ferrari é professor assistente no Curso de Licenciatura em Edu-
cação do Campo na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Mestre em Extensão Ru-
ral (UFV), doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Fábio Kessler Dal Soglio é professor de Agroecologia na Faculdade de Agronomia
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e Ph.D em Fitopatologia.
Fabrício Vassalli Zanelli é professor do curso de Licenciatura em Educação do
Campo, Departamento de Educação da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Mestre em Educação.
Fernanda Tubenchlak é mestre em Ecologia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Graduada em Ciências Biológicas, bacharel em Ecologia pela mesma
universidade. Foi bolsista de graduação sanduíche pelo programa Ciência sem Fron-
teiras na University of East Anglia (UEA-UK), no curso de Ciências Ambientais.
Atualmente trabalha como assistente de pesquisas no Instituto Internacional para
Sustentabilidade.
Fernando Campos Costa é bioconstrutor e permacultor educando de arquitetura
e urbanismo, presidente do Amigos da Terra Brasil.
Fernando Ferreira Carneiro é biólogo, pesquisador da área de Saúde e Ambiente
da Fiocruz Ceará e membro do Observatório de Saúde das Populações do Campo,
Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas – Obteia. Doutor em Epidemiologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutor em Sociologia
pelo CES (Universidade de Coimbra).
Fernando Michelotti é doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Instituto de Estudos
do Desenvolvimento Agrário e Regional da Universidade Federal do Sul e Sudeste
do Pará (Unifesspa), membro do Núcleo de Agroecologia e Educação do Campo.
Fernando Silveira Franco é engenheiro florestal e doutor em Ciência Florestal
pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), na Área de Sistemas Agroflorestais,
na Agricultura Familiar. Membro da diretoria da Associação Brasileira de Agricul-
tura Biodinâmica e da Associação Brasileira de Agroecologia. Professor associado
na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar campus Sorocaba), nos cursos de
Engenharia Florestal, Biologia e Pós-Graduação em Agroecologia. Coordenador do
Núcleo de Agroecologia Apetê-Caapuã.
Flaviane Malaquias Costa é doutoranda em Genética e Melhoramento de Plantas
pela Universidade de São Paulo (USP), mestra em Recursos Genéticos Vegetais

805
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora do Grupo


Interdisciplinar de Estudos em Agrobiodiversidade (InterABio).
Francileia Paula de Castro é mestra em Saúde Pública, engenheira agrônoma,
educadora popular da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
(Fase/MT).
Frei Sérgio Görgen é frade franciscano da Ordem dos Frades Menores do Rio Gran-
de do Sul. Pertence à Fraternidade Pe. Josimo e reside no Assentamento Conquista
da Fronteira em Hulha Negra/RS. Atua há mais de 35 anos junto aos movimentos
camponeses. Atualmente participa do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
e contribui com a Via Campesina Brasil. Coordena o Instituto Cultural Pe. Josimo.
Gabriel Bianconi Fernandes é agrônomo pela Escola Superior de Agricultura “Luiz de
Queiroz” da Universidade de São Paulo (Esalq/USP) e doutorando em História das Ci-
ências e das Técnicas e Epistemologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
com especialização em Biossegurança de OGMs pelo Genok/Universidade de Tromso
(Noruega). É membro do GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia.
Gaudêncio Frigotto é graduado em Filosofia e Pedagogia. Mestre e doutor em
Educação. Professor titular aposentado em Economia Política da Educação na Uni-
versidade Federal Fluminense (UFF) e, atualmente, professor associado ao Programa
de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Geraldo José Gasparin é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra no setor de formação. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM). Mestre em Desenvolvimento Territorial na América Latina
e Caribe pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Gilmar dos Santos Andrade é militante da Pastoral da Juventude Rural (PJR), mo-
nitor da Escola Família Agrícola do Sertão (Efase), tecnólogo em Agroecologia pela
Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA) e Instituto Federal do Paraná
(IFPR), mestre em Educação do Campo pela Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB).
Grazianne Alessandra Simões-Ramos é mestra em Agroecossistemas (UFSC),
doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR).
Guilherme Costa Delgado é pesquisador do Ipea (aposentado) e atual participante
da coordenação da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
Henrique Tahan Novaes é docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Uni-
versidade Estadual Paulista (Unesp campus Marília). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Educação. Coordenador do Curso Técnico em Agropecuária
integrado ao Ensino Médio, com ênfase em Agroecologia e Agrofloresta, parceria
Universidade Estadual Paulista (Unesp)/Centro Paula Souza/Movimentos Sociais
do Campo.
Hugh Lacey é PhD em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Indiana
(EUA), scheuer family professor de Filosofia Emeritus no Swarthmore College, Pen-
silvânia (EUA) e membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia, História e Sociologia
da Ciência e da Tecnologia do Instituto de Estudos Avançados da USP, onde foi
professor visitante em 2016.

806
SOBRE OS AUTORES (AS)

Igor Da Mata Oliveira é engenheiro de pesca, doutor em Oceanografia. Professor


da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Ines Claudete Burg é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa
Maria (1986) e em Engenharia Agronômica pela mesma universidade (1993), possui
mestrado em Agroecossistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005)
e doutorado em Recursos Genéticos Vegetais pela mesma universidade (UFSC).
Docente do Curso de Agronomia – Ênfase em Agroecologia da Universidade Federal
da Fronteira Sul (UFFS– campus Chapecó). Integrante dos Grupos de Trabalho de
Educação em Agroecologia, Gênero e Biodiversidade da Associação Brasileira de
Agroecologia (Aba).
Iracema Ferreira de Moura é analista técnica de políticas sociais na Coordenação
Geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Sáude. Professora colaboradora
da Universidade de Brasília, doutora em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agro-
pecuária na sub-área de políticas públicas comparadas.
Irene Maria Cardoso é membra do Núcleo de Educação do Campo e Agroecologia
(edital 21/2016/CNPq). PhD em Ciências Ambientais, professora do Departamento
de Solos da Universidade Federal de Viçosa, ministra as disciplinas de Gênese do
Solo e Agroecologia.
Iridiani Graciele Seibert é militante do Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC). Engenheira agrônoma, mestre em Estudos Latino-Americanos da Univer-
sidade de Brasília.
Islandia Bezerra é nutricionista, com mestrado e doutorado em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pós-doutorado na
Universidad Autónoma de Chapingo (UACh), México. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa Mongaru (Alimentar): Agroecologia, Soberania e Segurança Alimentar
e Nutricional. Educadora colaboradora na Escola Latino-Americana de Agroeco-
logia (ELAA). Professora adjunta do Departamento de Nutrição e professora dos
Programas de Pós-Graduação de Alimentação e Nutrição (PPGAN) e de Sociologia
(PGSOCIO) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vice-Presidenta Nacional
da Associação Brasileira de Agroecologia/Aba (2018-2019).
Itelvina Maria Masioli é camponesa e pedagoga, membra da direção estadual do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra de Mato Grosso (MST-MT) e da
coordenação do coletivo de formação da Coordinadora Latinoamericana de Orga-
nizaciones del Campo (Cloc-VC-SUDAMÉRICA).
Iuri Assunção é graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB), mestre em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e doutorando no
Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA). É associado ao Instituto de Pesquisa, Direitos e
Movimentos Sociais (IPDMS).
Jade Percassi é bacharel em Ciências Sociais, licenciada em Sociologia, mestra e
doutora em Educação e integrante do Coletivo de Cultura do Movimento dos Tra-
balhadores Rurais Sem Terra (MST).

807
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Jairo Antônio Bosa é mestre em Agroecossistemas pela Universidade Federal de


Santa Catarina (UFSC), doutorando em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Jaqueline Evangelista Dias é graduada em Engenharia Agronômica, doutoranda
em Desenvolvimento Rural.
João Carlos de Campos é pedagogo (2008) e mestre em Educação (2014) pela Uni-
versidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Membro do coletivo de direção
do Setor de Educação do MST/Paraná.
João Dagoberto dos Santos é engenheiro florestal, mestre e doutor em Recursos
Florestais com ênfase em Genética e Conservação da Biodiversidade. Pesquisador
do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão da Escola Superior de Agricultura “Luiz
de Queiroz”, da Universidade de São Paulo (NACE-ESALQ-USP), membro do
Movimento Ciência Cidadã e da CTNBIO.
João Pedro Stedile é economista pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, pós-graduado em Economia Política pela Universidade Nacional Autônoma
do México (Unam) e militante social da Reforma Agrária.
Jorge Enrique Montalván Rabanal é agrônomo do Núcleo Operativo da Rede
Sergipana de Agroecologia. É graduado em Engenharia Agronômica pela Univer-
sidade Federal de Sergipe (UFS, 2006), possui especialização em Agroecologia pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2009) e mestrado em Geografia
pela Universidade Federal de Sergipe (UFS, 2015). Assessora os Movimentos Sociais
do Campo na construção do modelo agroecológico de produção e da organização
camponesa.
José Jonas Duarte da Costa é professor do Departamento de História da Univer-
sidade Federal da Paraíba (UFPB) e pesquisador visitante do Instituto Nacional do
Semiárido (INSA).
José Maria Tardin é técnico agropecuário, militante do Movimento dos Traba-
lhadores Rurais Sem Terra (MST), integrante do Setor de Produção, Cooperação e
Meio Ambiente/Frente Nacional de Agroecologia.
Julian Perez-Cassarino é doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor do Programa de Pós-Graduação
em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável (PPGADR) da Universi-
dade Federal da Fronteira Sul (UFFS campus Laranjeiras do Sul), coordenador do
Núcleo de Estudos Avançados em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
(NEA-SSAN Karu Porã). Membro do Fórum Estadual de Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional (FBSSAN) e Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional (RBPSSAN).
Juliana Bonassa é licenciada em História da Arte, mestre em Artes Visuais e
integrante do Coletivo de Cultura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST)
Juliana Torquato Luiz é cientista política, doutora pelo programa Democracia no
Século XXI do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra; asso-
ciada ao Cepagro, membro do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU).

808
SOBRE OS AUTORES (AS)

Julianna Malerba é assessora da Federação de Órgãos para Assistência Social e


Educacional (FASE) e doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR–UFRJ).
Karen Friedrich é doutora em Saúde Pública, tecnologista em saúde pública da
Fiocruz e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, membra
do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco).
Karla Emmanuela Ribeiro Hora é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO, 2001), mestre em Geografia
pela Universidade Federal de Goiás (UFG, 2003) e doutora em Meio Ambiente e
Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná (UFPR, 2009). É professora
associada I na Escola de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade Federal de
Goiás.
Katya Regina Isaguirre é advogada e mestra em direito empresarial e cidadania.
Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Professora do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito
da mesma universidade.
Kelli Mafort integra a coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). É mestra e doutora em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp campus Araraquara).
Ladislau Dowbor é economista, professor titular da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP) e consultor de várias agências da Organização das Nações
Unidas (Onu).
Larissa Ambrosano Packer é advogada popular, mestre em Filosofia do Direito
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Faz parte da equipe da Grain para
América Latina e é membra do Grupo Carta de Belém.
Laura Barroso Gomes é técnica em Agroecologia da Rede de Intercâmbio de
Tecnologias Alternativas, e graduada em Ciências Biológicas.
Leandro Feijó Fagundes é geógrafo pela Universidade Estadual Paulista (Unesp),
especialista em Agricultura Familiar Camponesa e Educação do Campo pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contribui, junto à Cooperativa de
Trabalho em Serviços Técnicos (Coptec), na área técnica e educacional, desde 1997,
com os movimentos sociais do campo. Sócio-fundador do Instituto de Permacultura
e Ecovilas da Pampa (Ipep). Atua hoje na Associação Sulina de Crédito e Assistên-
cia Rural/Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e
Extensão Rural (Ascar/Emater–RS).
Leonardo Boff é doutor em Teologia pela Universidade de Munique e um dos fun-
dadores da Teologia da Libertação. Professor emérito da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (Uerj).
Leonardo Melgarejo é engenheiro agrônomo e mestre em Economia Rural pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), doutor em Engenharia de
Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro da Asso-
ciação Brasileira de Agroecologia, do Movimento Ciência Cidadã e colaborador da
Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

809
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Leonardo Nogueira Alves é assistente social graduado pela Universidade Federal


dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), mestre em Serviço Social pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorando em Serviço Social
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professor do Departamento
de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Leonel Wohlfahrt é pós-graduado em Uso de Recursos Naturais Renováveis, licen-
ciado em Ciência Exatas e Econômicas, educador popular da Federação de Órgãos
para Assistência Social e Educacional (Fase/MT).
Leonilde Servolo de Medeiros é professora do Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Leyza Paloschi de Oliveira é doutora em Produção Vegetal pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (Udesc), professora e pesquisadora da Universidade Alto
Vale do Rio do Peixe (Uniarp).
Lizandra Guedes integra o setor de gênero do Movimento dos Trabalhadores Ru-
rais Sem Terra (MST), é mestra e doutora em Educação pela Universidade de São
Paulo (USP).
Lourdes Cardozo Laureano é graduada em Farmácia, coordenadora executiva da
Articulação Pacari.
Lúcia Marina dos Santos é assistente social formada pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), mestranda em Desenvolvimento Territorial da América
Latina e Caribe pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), membra da
Direção Nacional do MST e do Coletivo Internacional de Terra, Água e Território
da Via Campesina
Luis Felipe Ulloa Forero é educador popular e pesquisador independente sobre
reflexão e ação transdisciplinar, professor convidado do mestrado de Antropologia
e liderazgo da Universidade Nacional Autônoma de Nicarágua (Unan-Managua).
Trabalhou no Instituto Nacional do Semiarido (INSA).
Luiz Henrique Gomes de Moura é militante do MST em Goiás e integra o Setor de
Produção, Cooperação e Meio Ambiente. É engenheiro florestal pela Universidade
de Brasília (UnB), especialista em Agroecologia e mestre em Agroecossistemas
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), doutor em Geografia pela
Universidade Federal de Goiás (UFG).
Luiza Chuva Ferrari Leite é professora da Rede Municipal do Rio de Janeiro. Mestre
em Geografia.
Maitê Edite Sousa Maronhas é mestranda em Ciências Ambientais pela Univer-
sidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e foi assessora da coordenação do
Programa de Manejo da Agrobiodiversidade – Sementes do Semiárido da Articulação
do Semiárido Brasileiro (ASA).
Manoel Baltasar Baptista da Costa é engenheiro agrônomo pela Escola Superior
de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ/USP, 1964). Entre os anos 1970 e 1980
participou do Movimento de Agricultura Alternativa, e a partir dos anos 1990, do
Movimento de Agroecologia. Trabalhou na área de planejamento nos anos 1970, em
meados dos anos 1980 ingressou no Estado (CNPq, CPRN/SP, IAPAR), em meados

810
SOBRE OS AUTORES (AS)

dos anos 1990 ingressou na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde foi
o responsável pela criação do curso de Agroecologia em Araras.
Marcelo Durão Fernandes D’Oliveira é engenheiro agrônomo formado pela Uni-
versidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) com Especialização em Estudos
Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Mestrado
em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Fiocruz).
Militante do MST, contribuiu com o debate da Agroecologia, com a organização
de assentamentos e com a organização e coordenação de cursos de formação. Atu-
almente compõe a Brigada Internacionalista em Cuba.
Marcelo Firpo de Souza Porto é graduado em Engenharia de Produção e em Psico-
logia, doutor em Engenharia de Produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Coppe/UFRJ, 1994), possui pós-doutorado pela Universidade de Frankfurt (2001-
2003) e pela Universidade de Coimbra (2016-2017). É coordenador e pesquisador
do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes/
ENSP/Fiocruz). Membro do GT Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco). Trabalha na interface de três campos do conhecimento: saúde
coletiva, ecologia política e as epistemologias do Sul.
Marcelo Silva Pedroso é médico veterinário, possui especialização em Homeopa-
tia pela Fundação Benoit Müre, vinculada à Associação Catarinense de Medicina
(ACM), é extensionista Rural pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão
Rural de Santa Catarina (Epagri).
Marcelos João Alves é pesquisador do Laboratório de Educação do Campo e Estudos
da Reforma Agrária (LECERA) do Centro de Ciências Agrárias da Universidade
Federal de Santa Catarina (CCA-UFSC). É mestre em Geografia.
Márcio Gomes da Silva é professor assistente no Curso de Licenciatura em Edu-
cação do Campo da Universidade Federal de Viçosa (UFV). É mestre em Extensão
Rural (UFV) e doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Maria Consolación Fernandez Villafane Udry é pesquisadora da Empresa Brasileira
de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), mestra em Administração Pública e Governo
pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora em Desenvolvimento Sustentável
pela Universidade de Brasília (UnB).
Maria Cristina Vargas é formada em Pedagogia, especialista em Educação do
Campo e educadora. Militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Maria Emília Lisboa Pacheco é antropóloga, assessora da Federação de Órgãos
para Assistência Social e Educacional (Fase).
Maria Isabel Antunes-Rocha é doutora em Educação pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), e professora associada na Faculdade de Educação da
mesma universidade. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação
do Campo (NEPCampo). Participa da Rede Mineira de Educação do Campo e da
Comissão Permanente de Educação do Campo do Estado de Minas Gerais.
Maria José Guazzelli é engenheira agrônoma, co-fundadora do Centro Ecológico/
RS, trabalhando com agricultura ecológica desde os anos 1970.
Marilia Andrade Fontes é engenheira florestal, mestra em Agroecossistemas e
doutora em Geografia Agrária.

811
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Marilia Carla de Mello Gaia é professora adjunta e coordenadora do Laboratório de


Educação do Campo e Estudos da Reforma Agrária (Lecera) do Centro de Ciências
Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (CCA-UFSC). Militante do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-SC). Doutora em Educação.
Marlene Lucia Siebert Sapelli é integrante do Setor Estadual de Educação do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST-PR), docente aposentada da
Universidade Estadual do Centro-Oeste (Guarapuava/PR) e doutora em Educação.
Maureen Santos é ecologista, mestre em Ciências Políticas pela Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) e bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade Estácio de Sá (Unesa). Atualmente é coordenadora do Grupo Nacio-
nal de Assessoria da Fase, professora do Departamento de Relações Internacionais
(IRI) da PUC-Rio e coordena a Plataforma Socioambiental do think tank Brics
Policy Center, que pertence ao IRI. Apresenta o programa Ecoinspiração do canal
da Midia Ninja no youtube. Ao longo dos últimos quinze anos vem acompanhando
e incidindo, por meio de representação de redes, articulações e organizações da
sociedade civil, em negociações de comércio internacional, integração regional e
mudanças climáticas. Desde 2008 atua no tema florestas e agricultura, com base
na perspectiva da justiça ambiental e climática, da soberania alimentar e da crítica
à financeirização da natureza.
Mercedes Queiroz Zuliani é terapeuta ocupacional e acupunturista, mestranda em
Política Social do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade
Federaldo Espírito Santo (Ufes). Integrante do Coletivo de Saúde do MST.
Miriam Nobre integra a equipe da Sempreviva Organização Feminista (SOF),
ativista da Marcha Mundial das Mulheres. É agrônoma e mestra pelo Programa de
Pós-Graduação Integração da América Latina (Prolam-USP).
Monica Celeida Rabelo Nogueira é doutora em Antropologia Social, professora da
Universidade de Brasília campus Planaltina e coordenadora do Mestrado Profissional
em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT) da mesma
universidade. Dedica-se aos estudos e à ação no campo socioambiental, na defesa
de autonomias, povos e territórios tradicionais e à educação para interculturalidade
e sustentabilidade.
Murilo Mendonça Oliveira de Souza é doutor em Geografia pela Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), educador do Curso de Geografia e dos programas de
Pós-Graduação em Geografia (PPGEO) e Recursos Naturais do Cerrado (RENAC)
da Universidade Estadual de Goiás (UEG), pesquisador do Núcleo de Agroecologia
e Educação do Campo (GWATÁ).
Naiara Andreoli Bittencourt é advogada popular na organização de direitos hu-
manos Terra de Direitos, no eixo de biodiversidade e soberania alimentar. Mestra
e doutoranda em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR), onde também integra o Núcleo de Estudos Filosóficos (Nefil) e o
EKOA: direito, movimentos sociais e natureza. Integrante do Grupo de Trabalho
em Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia e da Campanha Per-
manente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida.

812
SOBRE OS AUTORES (AS)

Naidson Quintela Baptista é assessor do Movimento de Organização Comunitária


(MOC), coordenador executivo da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e
mestre em Teologia Litúrgica.
Natália Almeida Souza é doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Es-
tadual de Campinas (IFCH/Unicamp), mestra pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e bacharel em Gestão Ambiental pela Universidade
de São Paulo (USP). Foi bolsista do projeto de Sistematização de Experiências dos
Núcleos de Agroecologia animado pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)
e atualmente compõe a equipe de renovação da plataforma do Agroecologia em Rede
(ANA, ABA e Fiocruz). Estuda e participa de projetos com foco em metodologias
participativas, cultura e educação populares.
Natália Carolina de Almeida Silva é doutora em Recursos Genéticos Vegetais pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestre em Ciências Agrárias com
Ênfase em Agroecologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pes-
quisadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos em Agrobiodiversidade (InterABio).
Nívia Regina da Silva é agrônoma pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ), possui especialização em Agroecologia e mestrado em Agroecossistema
pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Militante do MST, trabalhou
nos assentamentos, na Campanha Permanente contra Agrotóxicos e pela Vida, na
formação e coordenação cursos de especialização e mestrado em parcerias com a
UFRRJ e Fiocruz, além de compor a brigada internacionalista em Cuba.
Patricia Constante Jaime é nutricionista, professora da Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo e doutora em Saúde Pública.
Patrícia Dias Tavares é doutora em Ciências Ambientais e Florestais pela Univer-
sidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), professora do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) e pesquisadora do Núcleo de Estudo
e Pesquisa em Agroecologia e Agroecossistema (Nepaa).
Patrícia Goulart Bustamante é agrônoma com doutorado em Genética/Bioquímica
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutorado em Patrimônios
Locais pelo Institute de Recherche pour le Deveplopment (IRD). Pesquisadora A
da Embrapa Alimentos e Territórios (Maceió/AL), Membro do Comitê Científico
do Programa GIAHS (Globally Important Agriculture Heritage Systems) da Orga-
nização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Páulea Zaquini é tecnologista em Saúde Pública da Escola Politécnica de Saúde
Pública Joaquim Venâncio/Fiocruz. Mestre em Saúde Pública.
Paulo André Niederle é doutor em Ciências Sociais, professor dos Programas de
Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) e Desenvolvimento Rural (PGDR) da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul.
Paulo Brack é professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Ecologia e
Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Paulo F. Petersen é agrônomo, doutor em Estudos Ambientais pela Universidade
Pablo de Olavide (Espanha). Coordenador Executivo da AS-PTA e Membro do
Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia.

813
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

Paulo Roberto Raposo Alentejano é professor do Departamento de Geografia da


Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj). Doutor em Ciências Sociais.
Pedro Boff é doutor em Ecologia da Produção e Conservação de Recursos Naturais
pela Universidade de Wageningen (Holanda); pesquisador da Empresa de Pesquisa
Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), alocado no Laboratório
de Homeopatia e Saúde Vegetal (EELages/SC), professor colaborador no Programa de
Pós-Graduação em Produção Vegetal (Udesc-Lages/SC) e no Programa de Pós-Gra-
duação Interdisciplinar Ambiente e Saúde da Universidade do Planalto Catarinense
(Uniplac-Lages/SC).
Pedro Ivan Christoffoli é engenheiro agrônomo pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC, 1986), especialista em Cooperativismo pela Universidade do Vale
do Rio dos Sinos (Unisinos, 1996), mestre em Administração pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR, 2000) e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela
Universidade de Brasília (Unb, 2009). Professor da Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS). Coordenador do Núcleo de Estudos em Cooperação (Necoop/UFFS).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural
Sustentável (UFFS) e do Mestrado em Desenvolvimento Territorial da América
Latina da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).
Pedro Jovchlevich é graduado em Engenharia Agronômica pela Escola Superior
de Agricultura “Luiz de Queiroz (ESALQ-USP,1993), possui MBA em Agricultura
Biológico-Dinâmica pela Universidade de Uberaba (UNIUBE/Instituto ELO, 2006),
mestrado em horticultura pela Universidade Estadual de São Paulo (FCA–Unesp,
2007) e doutorado pela mesma universidade em 2011. Docente no curso de especia-
lização lato sensu em agricultura Biodinâmica da Associação Elo e Uniube.
Raquel Maria Rigotto é professora titular aposentada da Universidade Federal do
Ceará, doutora em Sociologia.
Renata Couto Moreira integra o Setor de Formação do MST/ES. Doutora em Eco-
nomia Aplicada e professora do Departamento de Economia e da Pós-Graduação
em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo. Coordena o Grupo do
CNPq de Estudos Marxistas da Dependência – Coletivo Anatália de Melo.
Rita Zanotto é militante do MST e da Via Campesina. Possui graduação em Ciên-
cias Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS),
especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina e
Caribe, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Rodrigo de A. C. Lamosa é professor da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ), credenciado no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contex-
tos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) e coordenador do grupo de
pesquisa Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (Liepe). Bacharel
e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre e
doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

814
SOBRE OS AUTORES (AS)

Romier da Paixão Sousa é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e


Tecnologia do Pará, membro do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Rural e Gestão de Empreendimentos Agroalimentares – Castanhal (PA), Brasil.
Doutor em Estudos sobre o Meio Ambiente.
Ronaldo Travassos, pedagogo, professor-pesquisador do Laboratório de Atenção à
Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz.
Rosane Freire Lacerda é advogada indigenista, professora adjunta do curso de Me-
dicina do campus Agreste da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutora
em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
Roseli Salete Caldart é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Participa do Setor de Educação do MST e do Fórum Nacional de
Educação do Campo.
Rosmeri Witcel é militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,
atuando como coordenação pedagógica da Escola Nacional Florestan Fernandes
(ENFF). Possui graduação em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB,
2008), especialização em Residência Agrária pela Faculdade Unb Planaltina, mestra-
do em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Salomão Mufarrej Hage é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), professor do Instituto de Ciências da Educação
da Universidade Federal do Pará, coordenador do Grupo de Estudo e Pesquisa em
Educação do Campo na Amazônia (Geperuaz) e integra a coordenação do Fórum
Paraense de Educação do Campo.
Sandra Luciana Dalmagro é doutora em Educação pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e pós-doutora pela Universidade de Lisboa. É professora no
Centro de Ciências da Educação da UFSC.
Saulo Ferreira Feitosa é professor adjunto do curso de Medicina do campus Agreste
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutor em Bioética pela Univer-
sidade de Brasília (UnB).
Silvana dos Santos Moreira é docente de Agroecologia no Instituto Federal do
Paraná, doutoranda em Ciências Sociais Aplicadas.
Sílvia Ribeiro é pesquisadora e coordenadora de programas do Grupo ETC (Mé-
xico). Jornalista e ativista ambiental, membro da comissão editorial da Revista
Latino-Americana Biodiversidad, sustento y culturas e do jornal espanhol Ecología
Política, entre outros.
Silvio Gomes Almeida é economista e mestre em Economia da Agricultura e da
Alimentação pela Universidade de Paris-Sorbonne. Coordenador Executivo da
AS-PTA.
Silvio Isoppo Porto é professor e pesquisador da Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB).
Silvio Simione da Silva é professor associado do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal do Acre. Doutor em Geografia pela Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (FCT/Unesp); com Estágio

815
DICIONÁRIO DE AGROECOLOGIA E EDUCAÇÃO

de Pós-doutor pelo Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal


de Goiás (IESA/UFG).
Simone Aparecida Rezende é pedagoga pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (Unioeste, 2008), mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR, 2018), membra da Coordenação Pedagógica da Escola Latino-Americana
de Agroecologia (ELAA).
Sonia Regina de Mendonça integra o Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, é doutora em História e Pesquisadora I do CNPq.
Sylviane Guilherme é licenciada e bacharel em Dança, licenciada em Educação
Física, especialista em Educação pela Arte e em Educação em Linguagens nas Es-
colas do Campo, mestre em Desenvolvimento Territorial e integrante do Coletivo
de Cultura do MST.
Thaís Terezinha Paz é graduada em História pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), especialista em estudos latino-americanos pela Escola Nacional
Florestan Fernandes (ENFF) em parceria com a Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF) e mestranda em História na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ticiano Rodrigo Almeida Oliveira é engenheiro de esca, mestre em Ecologia
Humana e Gestão Socioambiental (UNEB) e doutorando em Desenvolvimento e
Meio Ambiente (Prodema-UFS). Atua com programas e projetos de pesquisa-ação
referentes ao desenvolvimento sustentável de povos e comunidades tradicionais, em
especial pescadores artesanais.
Uschi Cristina Silva é mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro do Coletivo
Nacional de Agricultura Urbana (CNAU) e do Núcleo de Educação, Pesquisa e
Práticas em Geografia Ayni (Geografia/UFPE).
Valéria Pereira Santos é mestre em Demandas Populares e Dinâmicas Regionais,
articuladora da Comissão Pastoral da Terra (CPT–Cerrado).
Valter de Jesus Leite é membro do Setor de Educação do MST, mestre e doutorando
em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Bolsista CNPq.
Vicente Eduardo Soares de Almeida é mestre em Planejamento e Gestão Ambien-
tal, pesquisador em Impactos Ambientais.
Virgínia Fontes é historiadora. Docente da Pós-Graduação de História (UFF), do
Programa de Pós-Graduação da EPSJV-Fiocruz, da Escola Nacional Florestan Fer-
nandes/MST e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas Sobre
Marx e o Marxismo (NIEP-Marx/UFF).
Viviana Rojas Flores (Biby) é amazônica, feminista, equatoriana, intenacionalista,
comunicadora popular, militante de La Vía Campesina, licenciada em Comunicación
Social mención Desarrollo pela Universidad Salesiana (Quito, Ecuador).
Willer Araujo Barbosa é professor do Departamento de Educação da Universidade
Federal de Viçosa (UFV).

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