A illlstração da capa da Convergência é uma cópia do painel daXVIII Assembléia Geral Ordinária da CRB (1998),
do autor Anderson S. Pereira, MSC. O painel chama a atenção para a importância da temática central da
AGO -Novo Milênio e Refwldação da Vida Religiosa,
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convergenCIa
~... .,~ Revista Mensal da
W' .'l Conferência dos Religiosos
<ll& do Brasil: CRB
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Pe. João Roque Rohr. SJ Pe. Cleto Caliman, sdb
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_BIBLIOTECA -
ITORIAL R. Mcinij~ t;d~la, 21-1.·
I~io - P.J
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Ano Novo, " Cara Nova "
•
MARIA CARMELITA DE FREITAS, FI
•
.f .\ começo de wn ano novo costwna ser wna experiência que toca fundo o sen-
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\ I Klmenta das pessoas, reavivando aspirações profundas do coração hwnano. Far-
1
o Compromisso específico da Revista da CRB neste horizonte maior, situa-se na linha
do serviço, Mudando para servir melhor, CONVERGÊNCIA reafirma a sua identidade:
Veículo de formaçao e infonnaçao para as Comunidades e as pessoas, espaço aberto
para a reflexão, a circulação de idéias, o questionamento, e o debate; subsídio, portanto,
na árdua tarefa das comunidades de chegarem a ser, em tempos de globaliutção
neoliberal e de pós-modernidade, autênticas comunidades de seguidores e seguidoras
de Jesus, aderidas radicalmente à sua pessoa e às suas práticas profético-libertadoras,
Ao longo deste ano de 1999, portanto, nossa Revista publicará textos que ajudem
a aprofundar a temática central da XVIII AGO e os compromissos ali assumidos.
Estarão em foco também os grandes eixos do Projeto Rumo ao Novo Milênio para
este ano, e assuntos sugeridos pelos leitores. Outra novidade importante é o espaço
aberto para o debate sobre questões de particular interesse no momento atual, e que
estréia neste número, com um debate sobre fonnação na Vida Religiosa.
O itinerário espiritual da Quaresma que começa este mês, oferece excelente oportuni-
dade para que se dêem passos concretos rumo à meta da refundação pretendida. A
Campanha da Fratemidade de 1999 focaliut a questão extremamente grave do desempre-
go e suas causas estruturais, questão que inquieta fortemente a consciência cristã neste
final de milênio. Como ser seguidores e seguidoras de Jesus sem comprometer-se a fundo
com a causa dos excluidos do mundo do trabalho? Sem conhecer de perto como o de-
semprego "mexe" com a vida e a dignidade de milhares de irmãos e irmãs nossos? Sem
somar-se solidariamente àqueles e àquelas que lutam na busca de alternativas yiáveis?
O artigo do Pe. Inácio Neutzling - "Sem emprego... Porquê? A CF-99 e a grande
transformação do mundo do trabalho" - abre um amplo horizonte de reflexão sobre
esse tema e oferece pistas concretas para um compromisso pessoal e coletivo no
campo das relações de trabalho na sociedade competitiva e excludente de signo
neoliberal, em que nos corresponde viver e ser profetas do Reino.
Em continuidade com essa temática, situa-se o artigo do Pe. José Comblin - "Os
cristãos e a solidariedode com os pobres"-. O surgimento dos novos pobres na déca-
da de noventa, a caracterização desse grupo social e o ingente desafio que tudo isso
representa para a consciência cristã sao as ptincipais questões que o autor desenvol-
ve com a sua conhecida competência. "O pecado da nossa sociedade é grande! E
quem de nós não participa na manutençao desta sociedade? Quem está sem pecado?
"Os artigos - "'Consideraçoes indignadas' sobre a Formação Religiosa Hoje", de Frei
Clodovis Bolf, e "Comentários às consideraçoes indignadas de Frei Clodovis Boff', de
Frei Prudente Nery, são publicados sob um título comum: "Fonnação em Debate"
u
c
Os dois autores, com respeitosa liberdade, apresentam seus pontos de vista e sua .iJ-
'u
siçao pessoal a respeito da candente problemática da fonnaçao. Pontos de .lsta e
posições pessoais, obviamente não coincidentes em muitos aspectos. :;'0 postas,
assim, as condições para o debate. Os artigos oferecem, portanto, ao s ..•80 critico dos
u leitores e leitoras, um rico e interessante material de reflexão, capk de fazer rever
> posições, repensar atitudes, práticas, espaços, planos, e a própria estrutura básica da
c fonnação nas nossas comunidades, provincias e congregaçoes. Esperamos que este
o seja o primeiro de uma série de "espaços abertos para o dei:)ate" na CONVERGÊNCIA,
u ao longo de 1999.
2
VRA DO PAPA
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3
senvolvimento econômico equilibrado, a progressiva superação das desigualdades
sociais, o respeito escrupuloso pela pessoa humana, o bom funcionamento das
estruturas democráticas. Indispensável é também aplicar tempestivas interven·
çôes corretivas do atual sistema econômico e financeiro, dominado e manipulado
pelos países industrializados, em prejuízo dos países em vias de desenvolvimento.
O fechamento das fronteiras, com efeito, muitas vezes não é motivado sim-
plesmente por uma diminuída ou terminada necessidade do contributo da mão-
de-obra imigrada, mas pela afirmação de um sistema produtivo elaborado sobre
a lógica da exploração do trabalho ..
3. Até recentemente a riqueza dos paises industrializados era produzida no lugar,
também com o contributo de numerosos imigrados. Com a deslocação do capital e
das atividades empresariais, grande parte daquela riqueza é produzida nos paises em
vias de desenvolvimento, onde a mão-de-obra é disponível a baixo preço. Deste modo
os países industrializados encontraram o modo de usufruir do contributo da mão-de-
obra a baixo preço, sem dever suportar o ônus da presença de imigrados. Assim, estes
trabalhadores correm o perigo de ser reduzidos a novos «servos da glebID>, vinculados
a um capital móvel que entre as tantas situações de pobreza, de vez em quando seleciona
aquelas cuja mao-de-obra tem um preço menor. É claro que esse sistema é inaceitável:
com efeito, nele a dimensão humana do trabalho é praticamente ignorada.
É preciso refletir seriamente sobre a geografia da fome no mundo, para que a
solidariedade prevaleça sobre a procura do lucro e aquelas leis de mercado, que não
têm em consideraçao a dignidade da pessoa humana e dos seus direitos inalienáveis.
Deve-se agir continuamente sobre as causas, dando início a uma cooperaçao inter-
nacional que tenha em vista promover a estabilidade política e remover o subdesen-
-
volvimento. E um desafio que deve ser acolhldo com a consciência de que está em
jogo a construçao de um mundo em que cada homem, sem exceção de raça, religião
e nacionalidade, possa viver uma vida plenamente humana, livre da escravidão sob
os outros homens e do pesadelo de ter que consumar a própria vida na indigência.
4. A imigraçao é uma questão complexa, que se refere não só às pessoas em
busca de condições de vida mais seguras e dignas, mas também à população dos
países de acolhimento. No mundo moderno, a opiniao pública constitui com fre-
qüência a principal norma que os dirigentes políticos e os legisladores aceitam
seguir. O perigo está no fato de a informação, filtrada só em função dos problemas
imediatos do país, se redllZir a aspectos absolutamente inadequados e muito distan-
tes de exprimir o dramático alcance da situação. «Não se pode certamente ignorar",
.- eu escrevia para o Dia do Migrante de 1996, «que o das migrações em geral, e dos
u
migrantes irregulares em particular, é um problema para cuja soluça0 desempe-
nha um papel relevante a atitude da sociedade aonde eles chegam. Nesta perspec-
tiva, é muito importante que a opinião pública seja bem informada sobre a real
condiçao em que vive o país de origem dos migrantes, sobre os dramas em que
eles estao envolvidos e sobre os perigos que comporta o retomar à pátria» (n. 4) .
"
> Tarefa da informação é, portanto, ajudar o cidadão a fazer um quadro adequa-
do da situação, a compreender e a respeitar os direitos fundamentais do outro,
o assim como a assumir a própria parte de responsabilidade na sociedade, também
u a nível de comunidade internacional.
4
5. Neste contexto, os cristãos sao convidados a assumir, com maior clareza e
determinaçao, as suas responsabilidades no seio da Igreja e da sociedade. Como
cidadãos de um país de imigração e conscientes das exigências da fé, os crentes
devem mostrar que o Evangelho de Cristo está a serviço do bem e da liberdade
de todos os filhos de Deus. Quer como individuos quer como paróquias, asso-
ciaçoes ou movimentos, eles não podem renunciar a tomar posição a favor das
pessoas marginalizadas ou abandonadas à sua impotência.
O da imigraçao constitui um dos debates que, jamais exaurido, é incessante-
mente relançado. Os cristãos devem estar nele presentes, apresentando propos-
tas orientadas para abrir perspectivas seguras a serem realizadas também no
plano político. A simples denúncia do racismo ou da xenofobia não é suficiente.
Além de se engajar em projetos de defesa e de promoçao dos direitos do mi-
grante, a Igreja tem o «dever de assumir de maneira cada vez mais integral o papel
do bom samaritano, tornando-se próxima de todos os excluídos» (cf. Mensagem
para o Dia Mundial do Migrante, (995)
6. 'fIs migraçoes no limiar do terceiro Milênio". A iminência do Jubileu convida-nos
a esperar o alvorecer de um novo dia para as migrações, invocando o "Sol da Justiça",
Jesus Cristo, para que ilumine as trevas que se adensam no horizonte dos países, de
onde muitas pessoas sao obrigadas a partir. Os cristaos dedicados à assistência e ao
cuidado dos migrantes encontram nesta esperança um ulterior motivo de empenho.
Quereria recordar aqui o que já tive ocasião de recomendar na Carta Apostólica
Tertio millennio adveniente: «No espírito do livro do Levitico (25, 8-(2), os cristaos
deverão fazer-se voz de todos os pobres do mundo, propondo o Jubileu como um
tempo oportuno para pensar, além do mais, numa consistente redução, se nao
mesmo no perdão total a dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas
nações» (n. 51). Sabe-se que essas nações coincidem precisamente com aquelas de
onde hoje movem os maiores e mais persistentes de fluxos migrantes.
O empenho pela justiça em um mundo como o nosso, marcado por desigual-
dades intoleráveis, é um aspecto qualificante da preparaçao para a celebraçao
do Jubileu. Resultaria certamente significativo um gesto para o qual a reconcilia-
ção, dimensao própria do Jubileu, encontrasse expressão numa forma de ato de
regularizaçao para uma larga camada daqueles imigrados que, mais do que os
outros, sofrem o drama da precariedade e da incerteza, isto é, os ilegais.
Este é o ano que, na preparação para o Grande Jubileu do Ano 2000, a Igreja
consagrou de modo particular ao Espírito Santo. Peçamos-Lhe que infunda em •
nós os mesmos sentimentos, desejos e anseios do coração de Cristo.
A Virgem Maria, cuja vicissitude humana foi marcada pelo tormento do exilio
e da migraçao, conforte e ajude aqueles que vivem longe da pátria e a todos
inspire sentimentos de solidariedade e de acolhimento em relação a eles.
'"'
Nesta perspectiva, caríssimos Irmaos e Irmãs, ao encorajar-vos a perseverar
no vosso precioso trabalho, concedo-vos, como penhor de afeto, uma especial
Bênção Apostólica que, de bom grado, faço extensiva a quantos vos são queridos. >
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ORME ORB
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RIO DE JANEIRO, 26 DE NOVEMBRO DE 1998
•
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Querida Irmã
Tenho diante de mim cartas recebidas das Congregaçoes que aceitaram, conosco,
o DESAFIO de levar adiante um projeto que foi anunciado às Congregaçoes exata-
m ente há dois anos: dezembro de 1996. Um itinerário, um caminho, muitas idas e
vindas, um propósito que só foi capaz de ser valorizado pelas Congregaçoes que
entraram nesse mutirão: 47 no Brasil e mais de 240 em toda a América Latina e
Caribe. Entre essas está a sua. Obrigada por ter aceitado o desafio e chegado ao final
da primeira etapa: o levantamento de dados através da pesquisa histórica.
Em outubro, em reuniao realizada no Rio, o grupo das 14 Irmãs e um Irmão que
constituíam a Equipe Dinamizadora do Projeto, pôde ver, com alegria e respeito re-
verente, todas as fichas que nos trazem muito da vida de sua Congregação, organizá-
-Ias por códigos e prepará-Ias para a fase da SISTEMATIZAÇÃO e da SíNTESE.
Sabemos avaliar o "preço " de todo esse trabalho: horas a fio sobre documen-
tos e arquivos, entrevistas e pesquisas de toda ordem. Os "Pontos de Ligaçao",
Irmãs indicadas ou solicitadas para realizar o trabalho em suas comunidades,
não mediram esforços para entender, interpretar, buscar, organizar os dados,
preparar as centenas de fichas que acompanhavam cada uma das partes do
.- Projeto. Como foi exigente e, ao mesmo tempo, compensador! A recompensa
o
desse esforço e trabalho, ficou gravada em sentimentos que assim manifestaram:
'~
participw;:ao de nossa Congregação entre as quarenta e sete adesões, veio em
nosso beneficio. Esse Projeto, com seus questionamentos e pesquisa, acordou-nos para
" reflexões, ajustes de definiçoes e postura, retomada de opçoes e posicionamento. Fa-
o voreceu o vasculhar em nossa hist6ria desde 1959 a 1998, reavivando nossa mem6ria
> e recobrando nossa identidade como Congregação feminina, hoje celebrando seu
Jubileu de 150 anos de Fundação: 1856-1999". "Acreditamos que a verdade sobre n6s
o mesmas fecundará nossa real identidade como Vida Religiosa Feminina num Conti-
o nente tiiD sofrido. No mutirao intercongregacional, à semelhança do Doutor CÚl Lei
que, ao tomar-se discípulo de Jesus, é capaz de "tirar do baú, coisas novas e velhas"
(Mt 15,52), como religiosas, retiramos do tesouro de nossa história, coisas novas e
velhas, renovando e dando novo sentido à nossa vida" ar. Helenita Sperotto, Irmãs
do Imaculado Coraçao de Maria).
"Mais do que uma pesquisa, é uma boa revisao de vida pessoal e comunitária".
(Ir. Adélia Monteiro, Congregação Missionária Filhas de Jesus Crucificado).
"Temos a lhe dizer que o trabalho foi muito árduo, mas ao mesmo tempo, é
fascinante! Agradecemos a chance de participar neste projeto valioso para nós e
para a futuro da Vida Religiosa Latina-Americana". (Ir. Cacilda Mercedes Sauthier,
Fraternidade Esperança).
"Quero dizer-lhe da alegria, embora "trabalhosa", de ter podido colaborar um
pouco, nesta tarefa tão bonita de tentar resgatar a figura da "mulher-religiosa'; em
nosso país, 'somando-se à realidade maior do Continente, na América Latina e no
Caribe". "Para mim foi providencial perceber pequenos passos da história, que é a
nossa e que, certamente, serão repetidas, acrescentados, somados a tantas outros
pequenas passos de outras tantas mulheres-religiosas, dispersas por cidades-capitais
e de interior.. . de favelas e subúrbios... de regiões rurais e de roças perdidas na imen-
sidão da continente-subcontinente ... " (Maria Helena L. de Oliveira, Filha de Jesus).
"Nós fazemos muito, marcamos ambientes eclesiais por onde passamos, influ-
enciamos a história das comunidades, mas pouco escrevemos. Mais ainda: ao
chegar o momento em que poderíamos fazê-lo, como é este oferecido pela CIAR,
-
encontra-nos tão ocupadas que deixamos a oportunidade passar. E uma espécie
de mal. Fico a torcer para que o trabalho árdua que vocês têm pela frente, seja
coroada de êxito, bem cama a desejar que as demais Congregaçoes tenham feita
trabalhos muito bons, de sorte que colocado tudo junto, resulte a história da
nossa Vida Religiosa. A nossa Congregaçao colabora com as "duas moedinhas da
viúva" do Evangelho. (Ir. Antonia Brustolin, Irmãs Pastorinhas).
"É a nossa História ... Agradecemos pela oportunidade de participar deste
mutirão da História da Mulher Consagrada, até porque nos preparamos para o I
Centenário de Fundaçao de nossa Congregação. Uma boa oportunidade para
fazermos a releitura de nossa própria história e, à luz da fé, acertar os passos,
para caminharmos firmes no seguimento de Cristo, ao lado do povo da América
•
Latina e da Africa, onde estamos tentando mostrar a face feminina de Deus" (Ir.
Du1cis Negrao Rodrigues, Irmãs Missionárias Capuchinhas) .
Muito válidas também as observações que algumas nos mandaram, acenan-
u
do para as dificuldades que estão contidas no mesmo Projeto:
• o limite muito curto de tempo para a pesquisa
• itens do questionário que poderiam ter sido eliminados ou transferidos para
outro bloco, ou que poderiam ter sido reunidos
• ausência de pontos importantes
• falta de referência a fenômenos religiosos não-ec1esiais significativos >
• roteiro em desarmonia com os objetivos do Projeto
• ausência da problemática das relaçoes de gênero no questionário o
• dificuldade de uma análise objetiva u
7
"-'J.CO.lV yU'lI 1l1UJ.\.U;:' UUlLa" VU;:)I;:õL VUyUc;.,:, lULUIH H::;1LUC) UU l..U1.H:';L UU \.J.auruuv. L",,"U
é bom sinal. Nosso Projeto, desde o começo, foi elaborado e vem sendo feito em
"mutirao", o que supoe a convivência com o diferente, com a diversidade, mes-
mo com mentalidades tao variadas. Isso não tira seu mérito: pelo contrário,
creio que é uma tentativa - bem nossa - de trabalhar com elementos concre-
. tos, dados reais e pessoas vivas, sujeitas a limites.
Antes de encetar a "nova etapa", certamente mais difícil e exigente do que a
anterior, quero lhe dizer, querida Irma, que valeu e já podemos contar com
elementos que asseguram o resultado final desse Processo. E- depois de cada
passo que percebemos o seguinte. Ritmo normal de uma caminhada encarnada
e condicionada pelo humano. Mas o bonito é saber, que mesmo no meio dos
desafios e dificuldades, quarenta e sete Congregaçoes integraram o Projeto no
início do 97, dando sua adesão, três desistiram, mas outras três tomaram o bastão,
uma delas já no final desta etapa ... e concluíram quarenta e sete. Sinal indicativo
de quê? Nao pode haver recuos ... sempre alguém assume o cajado!
Nossa contribuiçao - rica em si mesma e pelos elementos que oferece - é
uma pequena peça que vai entrar na confecção da "grande toalha de altar" que
servirá para a celebração de nossa Memória Histórica resgatada e anunciadora
de um futuro novo.
Os nomes de suas Congregações ficará gravado no livro que sairá como "pon-
to de chegada e de partida" num processo que nos dinamiza e ajuda a refundar
nossa vida religiosa como mulheres consagradas.
O passo que se seguirá é difícil e exigente. Reze pelas pessoas que vão se
dedicar a realizá-lo. Trabalho de organização e interpretação dos dados recebi-
dos. Você terá notícias do andamento do Projeto. É sua protagonista!
Faça chegar esta carta às suas irmãs. Será bom que todas saibam o quanto
lhes somos agradecidas - a CRB e a CLAR, a Vida Religiosa Feminina e a Mulher
Latipo-americana e Caribenha.
Sem abusar de sua dispoIÚbilidade, peço-lhe que nos mande, se ainda não o fez,
alguma avaliação ou apreciação sobre o Projeto e o que representou para sua Congre-
gação o estar participando dele. Isso nos ajudará para um futuro relatório que será
elaborado. Quanto mais dados, melhor. Obrigada também por essa contribuição.
Estamos às portas dó Natal. Uma Criança mais uma vez vai despertar a cons-
ciência e a vida da humanidade para a Solidariedade e a Paz.
·- Nosso Projeto é uma gestaçao. Passou por momentos dolorosos de ameaça e de
o extermínio. Conseguiu vencer essa borrasca e tantas outras que desafiam sua con -
cretização. Mas ele é "obra e graça do Espírito Santo" para a Vida Religiosa Femi-
'V nina, diante do processo de refundaçao a que o novo milênio está nos chamando.
Você acredita na força do pequeno e da fragilidade. Você acreditou no Projeto. Você
está dando sua parte. Sua alegria será ainda maior neste Natal. E- o que peço ao Pai, nesta
Ano do Espírito, em que a Esperança foi o grande dínamo de nossa vida evangélica.
>
Com Maria, modelo da Mulher Consagrada, meu abraço,
o IR. ELZA RIBEIRO
o Assessora da Diretoria
8
2. XXXI Junta Diretiva da CLAR
MENSAGEM FINAL
Queridos innãos e Innãs: Desta casa de retiros "El Buen Pastor" em Caguas (Porto
Rico) enviamo-lhes nossas saudações fraternas. Vivemos com intensidade a presença
de Deus em nossa XXXI Junta Diretiva da ClAR com o tema "Nova Eclesialidade".
Como representantes da Vida Religiosa de nossos países. compartilhamos a respos-
ta que no seguimento de Jesus e no acompanhamento de nossos povos vaí se realizan-
do de muitas e diferentes maneiras. Compartilhar as diferentes experiências foi uma
graça que se manifestou em cada momento da Assembléia: paínéis. exposições. grupos
de trabalho. convivências.... e que criativamente se expressou na oração e na Eucaristia.
Experimentamos a comunhao eclesial com a presença do Delegado Apostó-
lico de Sua Santidade. Mons. François Backué. que presidiu a Eucaristia de aber-
tura da Assembléia. e de Mons. Ifiald Mallona. CP. bispo de Arecibo e presidente
da comissao mista bispos-religiosos. que em sua homilia nos ajudou a repensar
a presença do Espírito na Igreja e no dinamismo que vai imprimindo. apesar das
nossas resistências. Também nos acompanhou o Pe. Eusébio Hernández. OAR.
vindo de Roma como delegado pessoal do Cardo Eduardo Martínez Somalo.
Prefeito da Congregaçao para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de
Vida Apostólica. e a Inna Susana Echeverri. TC. do DEVIC-CELAM.
As mil delicadezas que recebemos desde a nossa chegada a essa "Ilha do En-
canto". nos ajudaram a viver a comunhão intercongregacional. Tanto a COR. como
as Irmas Missionárias do Bom Pastor que administram a casa de retiros. nos fize-
ram sentir à vontade e como na nossa própria casa. A contribuição da Equipe de
teólogos assessores da ClAR ajudou-nos a orientar e esclarecer nossas reflexões.
Entendemos a eclesialidade como encarnação do mistério da Igreja na histó-
ria. A nova eclesialidade deve crescer em diferentes contextos e fraguar-se em
diferentes formas. mas em todas as suas presenças há de partir da renovada
opção pelos pobres. buscando o encontro e a reciprocidade. Estamos chamados
a promover a integração das dimensões masculina e feminina em cada um e
cada uma de nós. nas comunidades e na vida da Igreja em geral.
Essa nova edesialidade poderá crescer e fortalecer-se na medida em que
saibamos acolher os jovens para com eles poder renovar o seguimento de Cristo
na época em que nos toca viver. A alma de toda essa novidade que queremos é
uma espiritualidade que se escandaliza diante do sofrimento dos excluídos e
sabe alegrar-se na esperança fundada na excessiva bondade de Deus. É uma
espiritualidade que nasce da escuta. cresce no silêncio e se nutre da Palavra de <u
Deus e se compromete com o Deus da Vida.
Sentimo-nos convidados pelo Espírito de Jesus a viver essa nova eclesialidade
e continuamos buscando caminhos para levar a cabo a refundação que tanto
desejamos. Demo-nos conta de que tudo depende da mais antiga e da mais
nova das atitudes: necessitamos estar abertos ao Espírito; deixar que nos mova
e nos remova porque desejamos deixar que Deus seja Deus. porque sabemos o
que Jesus é o Senhor da história.
9
Para ser fiéis aos excluídos, para escutar o Senhor que se revela no fundo da
história, para deixar-nos conduzir pelo seu Espírito que vem semeando solidarie-
dades, necessitaremos dar mais espaço à oração pessoal e partilhada para que em
nossas comunidades possa nascer algo novo. Sabemos que a refundaçao vem pela
mão de comunidades mais fraternas, profundamente dialogantes, simples e soli-
dárias. Sem estar, como irmaos, à escuta do Senhor que se revela na carne mais
humilhada da nossa história, não encontraremos caminhos para refundar-nos e
fazer-nos novos; não poderemos ser agentes de nova ecIesialidade, nem aprende-
remos a depositar a esperança no Deus que faz novas todas as coisas.
Como Junta Diretiva da CIAR saudamos com carinho a nossos irmãos e irmas
de Porto Rico, fazemo-nos solidários com suas buscas e seu caminhar e os acom-
panhamos em suas aspiraçoes de liberdade e autodeterminação. Queremos fazer
uma especial mençao à comunidade paroquial de Santo Antônio de Pádua em
Barranquitas e a seu vigário, Mons. Miguel Mendoza, pela acolhida que nos ofere-
ceram por ocasião da Assembléia aberta da Conferência de Religiosos de Porto Rico.
Convidamos a todos e todas, os religiosos e religiosas da América Latina e do
Caribe, a continuar construindo a civilização do amor, com sensibilidade parti-
cular para com os nossos irmaos e irmas mais necessitados. Como Igreja que
peregrina nestas terras, sentimo -nos comprometidos com a Igreja universal em
sua caminhada rumo ao terceiro milênio. Buscamos juntos, sinais e atitudes que
sejam significativos e nos façam mais solidários para que o Reino de Deus se
estabeleça em nossos países e no coração de cada um dos seus habitantes.
Invocamos a presença maternal de Maria, Virgem da Providência, padroeira
desta Ilha. Que ela sustente nossos esforços e ilumine nossas opçoes, para que sob
sua inspiraçao a Vida Religiosa latino-americana e caribenha contribua eficazmen te
para a construçao de relaçoes mais justas, honestas e fraternas entre nossos povos.
Queremos olhar o futuro com esperança, apoiados na presença fiel do Senhor Jesus
e confortados por tantos irmaos e irmas nossos que dia a dia oferecem sua existên-
cia no serviço humilde, silencioso e simples a tantos homens e mulheres do nosso
Continente.
SAN JUAN DE PUERTO RICO, 20 DE NOVEMBRO DE 1998
<o
o
o
TIGOS
,
do Trabalho
PE. INÁCIO NEUTZLlNG, SI
"o
.. , 1 Sem Trabalho ... Por quê? Texto-base. CF-99, Editora Salesiana Dom Bosco. São Paulo, 199B.
2 Sem Trabalho ... Por Quê?, op. cit., p. 7-8. u
11
"Há uma crise ecanômica mundial que Igreja, o desemprego nao é alga natural,
atingiu a Brasil e calacau em risco a mae- necessária. O desemprega não é unica-
da nacianal. Temas que defender a estabi- mente conjuntural. Ele é fruto de um tipo.
lidade ecanômica. Para isto. é necessária a de organização sócio-econômica e palítica
sacrifício. de tadas"3. "Sacrifício. de tadas" da sociedade. Há uma arquitetura sócia-
significa milhares e milhares de pessaas -econômica do desemprego. É esta arqui-
jagadas na desemprega em name da esta- tetura, o nealiberalismo, que precisa ser
bilidade manetária. E a saciedade, prisia- deslegitimada e desmontada.
neira da círculo. de giz da racianalidade Para isto. é necessário entender que o
ecanômica, aceita e justifica a desemprega neoliberalismo é mais do que uma mera
cama alga necessária e natural. Temas, as- construção. sócio-ecanômica. Ele é, antes
sim, uma saciedade marfinizada que já de tudo, uma construçao ideológica-cultu-
naa mais cansegue reagir à chaga da de- ral. Como apontou a 3' Semana Social Bra-
semprega'. Por isso. é fundamental e in- sileiraS, a discursa neoliberal cansiste, fun-
trinsecamente necessária para que a sacie- damentalmente, na instauraçao da princí-
dade reaja ao. desemprega que ela seja sen- pío da co.mpetitividade cama organizadar
sibilizada. Sem a sensibilização. para a pro- da vida sacial, ecanômica e palítica da so-
blemática da desemprega, a indigoaçãa ciedade. Instaura a evangelho. da co.mpeti-
ética, que precede tada agir ética, naa é tividade: fora da campetiçãa, não. há salva-
capaz de emergir. çao. Avida sócio-ecanômica é uma guerra.
. O segundo objetivo da CF-99 é "a de- Uma guerra onde o mais campetente, o
núncia da neoliberalismo que causa o de- mais farte, a mais capaz vence. "Nao há
semprego quer estrutural quer não estru- espaça para segundas lugares. Quem não.
tural, estimula padrões de consumo insa- faz paeira, come paeira"'. O núcleo da pen-
ciável e exacerba a competição e o indivi- samento nealiberal cansiste em romper
dualismo." Ou seja, a segunda objetivo da cam tada e qualquer tipo de relaçãa'. Ele
campanha é a denúncia do neoliberalismo quebra as relações da pessaa humana cam
como causa do desemprego juntamente as autras pessaas, com a natureza e a cas-
com o seu padrão. de consumo, que erige mas. O pensamento. nealiberal se fecha à
camo medida da qualidade de vida das interpelação. da alteridade. Esse discurso
pessaas. A CF-99 nao quer ser uma cam- implica na renúncia à passibilidade de se
panha meramente assistencialista. Para a canstruir a vida ecanômica-sacial, a partir
3 Um exemplo típico desta impostação é o discurso de Fernando Henrique Cardoso antes das eleições
do dia 4 de outubro de 1998, assumindo publicamente, pela primeira vez, que o País vivia uma grave
crise econômica e apelando para a necessidade do sacrifício. O conceito de sacrifício ê de origem
bíblico-teológica. É interessante anotar como a economia, ciência que quer primar pela objetividade
oU
e racionalidade, paradigma da ciência moderna, apela, em momentos de crise, para conceitos teoló-
gicos. que. normalmente são considerados pré-modernos. arcaicos por esta mesma ciência.
4 A expressão é de João Paulo II na Laborem Exercens n° 8.
S NEUTZUNG. Inácio - GODOY. Manoel de. "Síntese Final" em: Momento Nacional - Memória- 3a
Semana Social Brasileira, Brasília, 1998, p. 36-37.
6 IOSCHPE, Gustavo, "Os últimos serão os últimos", Folha de São Paulo 3-8-98, Caderno Teen,
7 Cf. BOURDIEU, Pierre, "Le néo-libéralisme, utopie (en voie de réalisation) d'une exploitation sans
limites", em Contre-Feux. Propos pour servir à la résistance contre l'invasion néo-liberale, Liber-
o Raisons d'agir, Paris, 1998, p. 108-119. Este artigo, na versão portuguesa, pode ser encontrado em
CEPAT Informa n" 39/1998, p. 11-19.
12
do princípio da solúlariedade. E, por isso, serviços. A produção do consumidor pre-
significa o fim da ética e da política. cede à produção dos bens a serem consu-
O discurso ideológico neoliberal conse- midos. O desejo toma-se ilimitado. O con-
guiu a grande proeza teórica, que consiste sumo perde, assim, a autonomia e cria,
numa verdadeira revoluçao epistemo- dentro das pessoas, um novo estado que
lógica, de transformar tudo em coisa, em atua como mecanismo compensatório.
objeto, enfim, em mercadoria. Inclusive a Converte-se em veículo do narcisismo, tor-
terra, o trabalho e a pessoa humana foram nando-se um fundamentalismo da pior
reduzidos a uma mera mercadoria. Tudo espécie. "Esquece" de compreender a pes-
é mercadoria. Isto significa que o trabalho soa humana como um ser que tem neces-
nao tem direito. Como explicar, mesmo sidades básicas a serem satisfeitas. Assim,
economicamente, que tenhamos no Brasil entende a desigualdade social e o desem-
o menor salário mínimo da América Lati- prego como algo natural. Aqui está o nú-
na? Considerar a pessoa humana como cleo duro do darwinismo social.
mercadoria, significa que ela vale enquan- A vúla sócio-política, na compreensao
to é útil, eficiente e produtiva. Mais ainda: neoliberal da sociedade, reduz-se, funda-
a pessoa humana passa a valer pelas coisas menmlmente, ao econômico. E, no final do
que tem. São elas que dao identidade à século XX, especificamente, ao econômico-
pessoa. Mas não basta, porém, ter as coi- -financeiro. O econômico se autonomiza
sas. É preciso parecer. Guy Deborde o ex- do social e do político, passando a subordi-
pressa com muita pertinência: "A primeira ná-los. Aeconomia, de servidora da socie-
fase da dominação da economia sobre a dade, passa a ser a senhora, à qual tudo é
vida social acarretou, no modo de definir submetido e subordinado. A redução da
toda a realização humana, uma evidente vida sócio-política da sociedade à econo-
degradação do ser para o ter. A fase atual, mia significa que tudo pode ser quantifi-
em que a vida social está totalmente toma- cado. Aprodutividade, a eficiência e a eficá-
da pelos resultados acumulados da econo- cia erigidos como únicos critérios, excluem
mia, leva a um deslizamento generalizado ' a possibilidade da gratuidade, do relacional
do ter para o parecer, do qual todo "ter" e do sonho. "Na nossa sociedade, o novo in-
efetivo deve extrair seu prestígio imediato terdito no que diz respeito ao amor e aos
e sua função última"·. Enfim, as pessoas prazeres, sintetiza -se numa só palavra: gra-
vivem sob o império dos objetos, das mer- tuidade. Oquenao é pago, toma-se suspeito'~.
cadorias. À medida em que as pessoas são À medida em que tudo é transformado
consumidoras, tomam-se cidadãs. em mercadoria, o cidadão é aquele que é
A concepçao antropológica do pensa- capaz de consumir e se instaura o princí- .-
mento neoliberal nega que o ser humano pio da guerra como organizador e dinami- u
13
dorlO, o medo de ser assaltado, enfim, o go". Daí emerge a necessidade de romper
medo da outra pessoa. a esfera escravirnnte de uma economia ru-
Assim, a denúncia do neoliberalismo pertrofiada e a ruptura da esfera redutiva
significa entender que hoje, a primeira ta- do trabalho remunerado. Pois, já "não é
refa, inadiável, é a deslegitimaçao teórica mais possível fazer depender a renda dos
e ideológica do discurso neoliberal. cidadaos apenas da quantidade de traba-
O terceiro objetivo da campanha é o de lho de que a economia necessita"".
"anWlciaruma sociedade baseada em no- Para isto é necessário mudar a ordem
vos paradigmas, onde o ser humano seja do dia Quem fixa, hoje, a ordem do dia dos
o centro, a vida não se subordine à lógica problemas a serem resolvidos, dos desafios
econômica idolátrica e o trabalho não se a serem superados, das prioridades a se-
red•• rn à mera sobrevivência, mas promo- rem executadas, dos meios a serem utilirn-
va a vida, em todas as suas dimensões". A dos é o poder econômico e financeiro pri-
deslegitimação teórica e ideológica do neo- vado. O desafio é recuperar nossa capaci-
liberalismo implica no anúncio da possi- dade de fazer com que os poderes públicos
bilidade de construir um outro tipo de or- restabeleçam a prioridade do "político" e
ganirnçao sócio-econômica onde o princí- do bem comum sobre o "financeiro", o
pio da solidariedade, da sobriedade e da "econômico" e o bem privado. Como in-
subsidiariedade seja possível". Este anún- verter as prioridades? Como colocar na
cio traz consigo a necessidade da produ- pauta nacional as grandes questoes sociais:
çao de um novo discurso. O discurso hege- reforma agrária, o desemprego, a fome, a
mônico não permite o debate ideológico e educação, a saúde e a moradia?
desclassifica o pensamento que se lhe opõe, Um quarto objetivo da CF-99 é "abrir
baseado nos dogmas e na leitura funda- perspectivas sobres novas relações e no-
men/alis/a de seus princípios. A CF-99, vas formas de trabalho prenunciadas pa-
com o tema do desemprego, nos desafia a ra o Novo Milênio". Agrande transforma-
colocar nas nossas agendas o debate ideo- ção do mundo do trabalho, como vere-
lógico, o fazer político. Trata-se de discutir, mos mais adiante, traz consigo tanto pro-
com coragem e ousadia, que pais quere- messas quanto ameaças. A CF-99 aposta
mos. Isto requer a "mobilirnção da socie- na possibilidade e viabilidade da realirn-
dade brasileira para fo~ar um novo proje- ção das promessas. Assim, o texto-base
to de Brasil", uma "profunda reviravolta insistirá nas possibilidades de uma econo-
•
na concepção de trabalho", "uma atenta e mia solidária, do terceiro setor, da auto e
acurada revisão das causas do desempre- co-gestão.
·- 2" CHAVE DE LEI1URA: O DESEMPREGO É UM PROBLEMA POÚfICO A
c DISTRIBUIÇÃO DA PRODUTIVIDADE
Ê interessante observar que quando or- mos em chamar algum economista. Por-
ganizarnos um debate para discutir a ques- que, para nós, o problema do desemprego
tao do desemprego, imediatamente pensa- é, primeiramente, um problema econômi-
>
c
10 "Numa sociedade que vive em guerra consigo mesma, ser o perdedor é o veredicto definitivo" escre ve
Gustavo Ioschpe, no anlgo acima citado. Ser desempregado(a) nesta sociedade significa ser um loser.
o 11 Cf. Sem Trabalho ... Por Quê? op. cit. p . 66.
u 12 Sem Trabalho ... Por Quê?, op.tit., p . 70-71 . .
1.1
co. Lá vêm os economistas e explicam que desde 1955, o volume anual compleXlvo
a causa do desemprego é a recessão eco- de trabalho diminuiu em 30%. Na França,
nômica apontando a retomada da taxa hls- diminuiu 15%, em 30 anos, e 10% no espa-
tórica brasileira de crescimento econômi- ço de 6 anos. Ou seja, a máquina libera a
co, ao redor dos 6 a 7% ao ano, como a espécie humana das tarefas produtoras: há
grande saída. Outros, na mesma perspec- 150 anos, um operário fornecia anualmen-
tiva, insistirao na necessidade da mudan- te 5 mil horas de trabalho. Há um século,
ça da polltica cambial para que se dinami- 3_200 horas. Nos anos 70, eram 1.900 horas
zem as exportações. E outros, ainda, insis- e, atualmente, são 1.520 horas. Ou seja, o
tirao na necessidade da mudança da legis- tempo de trabalho representava, em 1850,
laça0 social possibilitando a flexibilização 70% da vida de uma pessoa. Em 1900, 43%.
(palavra mágica que indica modernidade, Em 1980, representava somente 18% e hoje
mas para o trabalho significa demissão) das representa 14%. Ao mesmo tempo, a rique-
relações de trabalho, na linha do contrato za produzida aumentou. De 1960 a 1990, a
temporário de trabalho e da demissao tem- produção mundial por habitante, a despei-
porária. E vão por aí a fora. A crença, de to do crescimento demográfico, multipli-
fundo, é que o desemprego é uma ques- cou-se por 2,5. A produção alimentar pas-
tao meramente econômica. sou de 2.300 quilo-calorias cotidianas, por
A CF-99 dá uma importante contribui- individuo, para 2.700 quilo-calorias, ou
çao para a discussao do desemprego no seja, respectivamente, 90 e 109% das ne-
mundo e no Brasil, na medida em que su- cessidades fundamentais".
pera uma visão economicista. Nas quinhentas maiores empresas
Hoje, para prodllzir a riqueza, já não é americanas a proporção dos empregos per-
maís tão necessário o trabalho. Os fatos manentes e de tempo integral representa
cada vez maís evidenciam isto. No conjun- somente 10% do totaI. Um estudo da Fede-
to dos países capitalistas europeus a pro- raçao Internacional dos Metalúrgicos, prevê
dução da riqueza quase que quadruplicou que dentro de 30 anos, menos de 2% da
em trinta e cinco anos. No entanto, isto não atual força de trabalho em todo o mundo
significou a necessidade de quadruplicar "será suficiente para prodoozirtodos os bens
o trabalho. Pelo contrário. Na Alemanha, necessários para atender a demanda totaI"".-
13 Há uma literatura imensa sobre este fenômeno. Aqui nos baseamos, entre outros. em: GORZ, André.
Capitalismo, Socialismo, Eoologja. Disorientamenti, Manifeslolibri Roma, 1992; GORZ, André, "Saindo da
Sociedade do Trabalho". São Paulo em Perspectiva 9(3) 1995. p. 135-144; GORZ, André, Misêres du Présent.
Richesses du Possible, Galilée, Paris, 1997; AZNAR, GUYI Traballiar Menos para Trabalharem todos, Scrirta,
São Paulo, 1995; RIFKlN, Jererny, O Fim dos Empregos. O Oeclinio Inevitável dos Níveis dos Empregos e
a Redução da Força Global de Trabalho, Makron Books. São Pau10 1995; BEAUD, Miche1, Le Basculement .-
du Monde. De la Terre, des hommes et du capitalisme, La Découverte, Paris. 1997; UPIETZ, Alain, La u
Soclété en Sablier. Le Partage du Travail contre la Déchirure Sociale, La Découverte, Paris, 1997; SUE,
Roger, La Richesse des Hommes. Vers L'Économie Quatemaire, Odile Jacob, Paris. 1997.
14 RIFKlN, J., op. cito p. 9; Jeremy RiJkin, em artigo publicado na revista Utne Reader, dos EUA, descreve a
sociedade do trabalho na primeira metade do século 21: "Nós estamos em 2045. Para a maioria dos america-
nos, a vida de hoje não tem muito a ver com a vida decinqôenta anos atIás. A mudança mais visível é. talvez.
o esfacelamento do mercado nas atividades correntes. Na era da infonnação, a maior parte dos bens e ser-
viços do planeta é produzida nas fábricas que quase não têm mais necessidade de mão-de-obra e distribuída >
por empresas virtuais geridas por pequenas equipes de adJninjstradores e de quadros altamente qualifica- c
dos. Calculadoras eletrônicas dotadas de grande capacidade de memória, robôs e sistemas de telecomuni-
cação de úlUma gernção substituíram o "operário" da era indusoial. Menos de 20% da popu1ação adulta o
trabalha em tempo integral." A íntegra do amgo traduzido está em CEPAT Infonna n° 291]997, p. 2-3. u
15
No Brasil, observa-se o mesmo teno- nao Slgrunca maIS, necessanameme, am-
meno tanto no setor secundário quanto pliar a área cultivável ou trabalhar mais. ~
no terciário. Na indústria automobilística, aumentar, sim, a produtividade. Isto signi-
por exemplo, há um aumento da produção fica uma importante economia de maté-
de automóveis, (mais de dois milhões, em rias, energia e fontes necessárias por unida-
1997) com uma clara tendência de dimi- de de produto nacional.
nuiçao dos trabalhadores empregados. Assim, por exemplo, o texto da CF-99
Estudos prevêem que, nos próximos anos, mostra como houve um crescimento eco-
o número de empregos na indústria auto- nômico na América Latina, na primeira
mobilística poderá cair entre 20 e 30%. No metade dos anos 90, ao mesmo tempo que
setor bancário houve, nos últimos anos, o desemprego atingiu, no mesmo período,
uma drástica reduçao de pessoas emprega- o seu nível mais alto. Na mesma linha, o
das. E a redução das pessoas que traba- texto constata que "desde a implantação
lham não significa uma queda de produti- do Plano Real, em lo de julho de 1994, o
vidade. Pelo contrário. Há um aumento de Brasil já perdeu 755.379 empregos for-
produtividade. Ou seja, para o crescimen- mais". No mesmo período, .no entanto,
to da produtividade nao é mais necessário houve um aumento de produtividade, na
que todas as pessoas estejam empregadas. indústria, de 34%, isto é, 10,2% ao ano".
Aagricultura é um exemplo contunden- Tendo presente estas mudanças fun-
te deste processo. Um agricultor que ali- damentais, a CF-99 desmistifica o que ela
mentava quatro pessoas no fim da última denomina de "ilusão da teoria economi-
guerra, trinta anos mais tarde nutria 36, Na cista" e aflnna que "a úníca forma de cres-
França, de 1946 a 1996, houve um aumento cimento sustentável que tem um sentido
de 110% na produção agrícola acom- é a que repousa numa amplificaçao e me-
panhada de uma redução de 6 milhões de lhor redistribuiçao do trabalho. O desafio
hectares cultivados". No Brasil, constata-se consiste na construção de um modelo de
o mesmo fenômeno. A safra agrícola bra- sociedade que não tenha como úníco obje-
sileira, de 1994/1995, foi recordista: 81,2 mi- tivo a produção de mercadorias, mas que
lhões de toneladas de graos. Dez anos antes, seja capaz de converter os ganhos de pro-
ou seja, na safra de 1985/1986, foram colhi- dutividade em beneficio qualitativo de to-
dos 53,9 milhões de toneladas de graos. Em dos. Em outras palavras, uma sociedade
dez anos, a produçao brasileira de grãos que não tenha como prioridade a produ-
cresceu 51%. Aárea plantada, por sua vez, çao de valores de troca para um mercado
caiu, entre 1985 e 1995, quase 10%, ou seja, segmentado e excludente, mas seja capaz
de 42,5 milhões/ha na safra de 1985/86, de criar um consenso sobre a prioridade
.- para 39 milhões/ha, na safra de 1994/95, da produção de valores de uso socialmen-
o
Portanto, o aumento de produção está di- te necessários"".
retamente vinculado com o aumento da A partir desta impostaçao se exclui a
'u
produtividade das lavouras que cresceu, possibilidade de apostar na flexibilização
em dez anos, 64%". Aumentar a produção e precarização das relações de trabalho
> 15 PASSET, René, "As promessas das tecnologias do imaterial", Le Monde Diplomatique, julho 1997. Este
artigo foI traduzido e está publicado no CEPAT Informa n 3111 997, p. 2·9.
D
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te não é aceita a tese do alto custo do tra- "flexibilidade", fixando os salários dos me-
balho, no Brasil, como causa do desem- nos qualificados em níveis mediocres, al-
prego". "O desemprego não é um proble- cançaria o pleno emprego. Enfim, quando
ma meramente econômico mas, sobretu- a produçao se toma um fenômeno coleti-
do, poUtico e ideológico" - constata, per- vo, ele afirma a necessidade da imposição
tinentemente, o texto-base da CF-99'O. de urna única lógica: a lógica da empresa
O discurso da economia não consegue privada e do lucro individual como crité-
dar conta da grande transformação que rios universais de capacidade de iniciativa,
ocorre no final do século xx. Trata-se de de eficácia, enfim, de racionalidade.
um discurso defasado. Ele diz "transforma- O limite do discurso econômico se esta·
çao", "mudança", "revolução" e entende belece, como afirma René Passet, a partir
"conjuntura"". Só consegue ver o lado mo- do momento em que a economia deixa de
netário dos fenômenos - taxas de juro, ser servidora da sociedade, tendo como fim
equihbrio das contas - como se os deter- a satisfação das necessidades básicas das
minantes de curto prazo fossem os de longo pessoas, e transforma a busca da eficácia
prazo, como se a moeda refletisse neces- em sua própria finalidade, entendendo a
sariamente o real, como se ela fosse a con- produtividade como produtivismo. Esta
trapartida do real, sendo o seu espelho. Co- defasagem se expressa, de maneira clara e
mo se um dos problemas centrais a ser evidente, no fenômeno da financeirização
resolvido pela economia nao é, precisa- do millldo".
mente, a arbitragem entre as exigências, Alguns poderiam, talvez, objetar que a
às vezes contraditórias, deste e daquela. CF-99 aposta numa redução da produtivi-
O discurso econômico toma-se um dade propiciada pela revolução tecnoló·
contra-senso. Enquanto o alargamento do gica, especialmente, a microeletrônica, a
campo da economia faz surgir a questao informática, a robótica. "Não se trata de
da ética e dos valores sócio·culturais, ele redllzir a produtividade, mas de redistri-
reduz o político e o social ao econômico e buir os seus beneficios" - afirma, peremp-
o econômico ao financeiro e este ao mone- toriamente, o texto·base da CF-99. Aques-
tário. No momento em que os mercados tão central é a seguinte: "quem tem direito
perdem sua função reguladora e se tor- aos ganhos de produtividade? Quais os cri-
nam amplificadores de desequihbrios, este térios para se apossar dos frutos do desen-
discurso nos fala da desregulação do mer- volvimento econômico? Como garantir os
cada e da generalização do livre-comér- direitos aos padroes vitais minimos, atra·
cio. Ao mesmo tempo em que a produti- vés da redistribuição dos bens socialmente •
vidade de um fator, tomado isoladamen- produzidos?"23. O desafio que emerge da
te, perde toda significação, este discurso grande transformação no final do século o
19 Sem Trabalho ... Por Quê? op.dt., p. 39-41. Sobre esta mesma problemática cr. NEUTZLING, Inácio, "O <o
Trauma do Desemprego", Convergência n° 292, maio de 1996; NEUTZUNG, Inácio - KREIN, Dari, "A
Mundialização do Capital e o Mundo do Trabalho Algumas observações (I) " - Convergência n° 302,
março de 1997, p. 247-260; liA Mundialização do Capital e o Mundo do Trabalho (11) . Os (as)
u
Trabalhadores(as) Brasileiros(as) e a Inserção do Brasil na mundializacão do capital ~ - Convergência n°
305. junho de 1997. p. 312·325. >
20 Sem Trabalho ... Por Quê?, op.cit, p. 70.
21 Aqui seguimos PASSET, René, art. cit., p. 4-5.
o
22 Cf. Sem Trabalho ... Por Quê?, op. clt .• p. 29·34.
23 Sem Trabalho ... Por Quê?, op.cit., p. 37-38. o
17
xx é: "como deve se comportar a socieda- sejam para o proveito de todos"!"' hnllm,
de para que o crescimento da produtivi- "quais são as prioridades não econômicas
dade e a economia do tempo de trabalho desta sociedade?"",
18
COIupeLerlClas ~UClaunCIJLe UeWllUdti yue Ui1lUIi1lct:; U cau l,;UUl U ~UUl uu u:::u l\.u~nu.
27 Para uma visão crítica do que aqui apresentamos, ver o interessante artigo de CASTEL, Robert, "O Fim
do Tmbalho. um mito desmobilizador", publicado no Le Monde Diplomatique de setembro de 1998.
p. 24-25 e traduzido no CEPAT Informa n° 44/1996, p.21.27. o
28 ARENDT, Hannah, A Condição Humana, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1991 , 5a edição, p. 12-13. u
19
que a realizaçao do desejo de se libertar mente, hoje, com os computadores e ou-
do fardo do trabalho, "como sucede nos tros meios de comunicaçao que fazem
contos de fadas, chega num instante em com que os seres humanos trabalhem em
que só pode ser contraproducente. Asocie- tempo integral e em qualquer parte. Um
dade que está para se libertar dos grilhoes simbolo desse fenômeno da extensao do
do trabalho é uma sociedade de trabalha- trabalho sao os telefones celulares e os 'pa-
dores, uma sociedade que já nao conhece gers'. Apequena peça negra pendurada na
aquelas outras atividades superiores e mais cintura significa que a pessoa está sempre
importantes em benefício das quais vale- disponivel. Ela nao precisa estar na fábri-
ria a pena conquistar essa liberdade. Den- ca, na empresa, marcando o ponto, como
tro desta sociedade, que é igualitária por- na organizaçao fordista30 do trabalho. O
que é próprio do trabalho nivelar os ho- 'trabalho' tomou conta de todas as dimen-
mens, já nao existem nem uma aristocra- sões da vida da pessoa. Basta analisar os
cia de natureza política ou espiritual da programas de qualidade e produtividade'l.
qual pudesse ressurgir a restauraçao das Como constata um trabalhador: "A triste
outras capacidades do homem. Até mes- verdade é que meu emprego me devoral".
mo presidentes, reis e primeiro-ministros Por isso o desemprego é um trauma. O
concebem seus cargos como tarefas neces- choque do desemprego tem, segundo os
sárias à vida da sociedade; e entre os inte- psicólogos especializados no tratamento
lectuais, somente alguns individuas isola- do trauma do desemprego, o mesmo efeito
dos consideram ainda o que fazem em ter- da morte de um parente. São conhecidos
mos de trabalho, e não como meio de ga- inúmeros casos de depressão e inclusive
nhar seu próprio sustento". E a grande filó- de suicídio por causa das demissões. No
sofa conclui: "O que se nos depara, portan- Brasil, basta lembrar a série de suicídios
to, é a possibilidade de uma sociedade de acontecidos no setor financeiro". Nos EUA,
trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a "uma série de estudos acompanhados no
única atividade que lhes resta. Certamente transcorrer da última década descobriu
nada poderia ser pior"" . uma clara correlação entre o crescente de-
E por que nada poderia ser pior? Por- semprego tecnológico e maiores IÚveis de
que o trabalho entendido como emprego, depressao e morbidez psicótica". Os desem-
como mercadoria, é o que dá identidade pregados tomam-se "descartáveis, depois
social à pessoa. O 'trabalho' toma-se um irrelevantes e, finalmente, invisíveis no
fim em si para as pessoas. Ele é a resposta novo mundo high-tech do comércio glo-
às questoes sobre a identidade e o sentido bal" As mesmas pesquisas descobriram
<
da vida das pessoas. Para um número cada que, nos EUA, um aumento de 1% no de-
.- vez maior de homens e mulheres o lugar semprego resulta no aumento de 6,7% nos
u de trabalho se constituiu no centro vital homicídios, 3,4% em crimes violentos e de
da sua existência. E isto se toma mais pre- 2,4% em crimes contra a propriedade".
<o
29 ARENDT, Hannah, op. cit.
30 Sobre a organização fordi,sca cf. NEUTZLING. Inácio - KREIN, José Dari, "Reestrururação Produtiva",
in: ENDERLE, Georges e outros, Dicionário de atica Econômica, op. cit., p. 713-717; Sem Trabalho ...
o
Por Quê?, op.cit., p. 34 -36.
31 Ha uma literatura imensa sobre o assunto. Um livro recente sobre o assunto é: REQUlÃO MUNOZ DA
ROCHA, Renato, O Caso INEPAR. Por que deu certo, Gente, São Paulo, 1998.
32 CBPAT Informa n" 12/1995, p. 15; Cf. NEUTZLING, Inácio, "O Trauma do Desemprego ", Convergência
o
n° 292, maio de 1996.
u 33 As citações são de RIFKlN, J" op. cit., respectivamente p. 216, 218 e 23 1.
'11\
Numa sociedade onde o trabalho "não nonsense econômico. A noção de salário,
é apenas objetivamente amorfo, mas tam- em seguida a do salário mensal, foi uma
bém está se tornando subjetivamente idéia interessante que correspondeu a
periférico"", nao é mais possível conti- uma certa civi1iwção industrial. Mas a no-
nuar a fazer do trabalho remunerado a va civilização informati72da pede que se
fonte principal da identidade e do sentido invente um novo conceito para assegurar
da vida de cada pessoa35 • Querer conti- a redistribuição das riquews produzidas
nuar enquadrado pela lei do século passa- coletivamente, com cada vez menos pes-
do (trabalho/produçao/salário) é um soas empregadas.
e melhor, recebendo por inteiro a sua par- to-base, "a reduçao da jornada de traba-
te da riqueza socialmente produzida. lho aponta para um novo tipo de socieda- <o
34 OFFE, Claus, "Trabalho: A Categoria Sociológica Chave?" in: OFFE, Claus, Capitalismo Desorganizado.
Transformações Contemporâneas do Trabalho e da PoHtica, Brasiliense, São Paulo, 1985. p. 194. o
35 GORZ, A, 3rt. cito p. 57, >
36 Sem Trabalho •.. Por Quê1, op.cit., p. 42.
37 GORZ, A., art. cito p. 57: No mesmo sentido ver: RIFK1N, J. quando fala da economia social capaz de
dar um novo sentido ao trabalho que não visa unicamente a produção de mercadorias, mas que seja o
socialmente útil. RIFKIN, J., op. cito 240 SS.j cf. Sem Trabalho ... Por quê?, op. cito 5] 453. o
21
de. Sem esta visao mais ampla, a redução que correspondeu a uma certa civilização
da jornada de trabalho toma-se uma mera industrial. 'A nova civilizaçao informati-
medida pontual para resolver o problema zada pede que se invente um conceito no-
do desemprego"". vo para assegurar a redistribuiçao das ri-
quezas produzidas coletivamente"'''.
Universalização do Direito a um Assinl, todos(as) cidadaos(as) têm direi-
Minirno Vital independente do trabalho to, pelo fato de pertencerem a esta socieda-
Mas nao basta apostar na redução da de, a um minímo vital, independentemen-
jornada de trabalho. Juntamente com a jor- te do trabalho que realizaram, realizam ou
nada de trabalho é preciso apostar na uni- realizarão. Nao cabe, m<ús, portanto, o
versalização do direito a um minirno vi- princípio "a cada um segundo o seu tra-
tal. O que significa isto? Há um crescente balho". Este princípio caducou. Já Marx,
aunlento da produtividade. Esta produti- em 1857, escreveu que "a distribuiçao dos
vidade nao pode mais ser distribuída tendo meios de pagamento deverá corresponder
como único critério o ter um emprego, uma ao volume das riquezas produzidas e não
carteira assinada. A produtividade, como ao volume do trabalho realiZildo"". Eo eco-
vimos acinla, pertence a toda a sociedade. nomista russo, radicado nos EUA, Nobel
E ela aumenta sem necessitar do emprego de Economia de 1973, W. LeontielI afirma:
de todos(as). "A produtividade gigantesca "quando a criação de riquezas não depen-
que a tecnociência confere ao trabalho hu- de mais do trabalho dos homens, estes
mano tem por conseqüência fazer da ma- morrerao de fome às portas do Paraíso
ximização do tempo disponível e não mais caso não se tiver uma nova política de ren-
da maximização da produção, o sentido e da capaz de responder à nova situação téc-
o fim inlanente da razão econômica"". Ou nica"". Ou seja, continuar advogando que
seja, como afirmava K. Marx; "A verdadei- quem nao trabalha não come é assunlir
ra economia - aquela que economiza - uma postura conservadora que não con-
é a economia do tempo de trabalho"". segue entender a grande transformação
O texto-base da CF-99 constata que há que estamos vivendo e que joga a grande
uma drástica ruptura do vínculo mecânico maioria das pessoas na total segregação.
entre tempo de trabalho produtivo e produ-
ção. Assinl, "não é mais possível valorizar A Economia Solidária
com precisa0 a produtividade do trabalho Juntamente com a necessária reduçao
em oficinas flexíveis, com fabricaçao assis- da jornada de trabalho e a garantia de um
tida por computador que só requer alguns minimo vital para todos(as) independente
supervisores. Em termos econômicos, que- do trabalho realirado ou a ser rt'.alirado,
.- rer continuar enquadrado pela lei do emerge o que se tem chamado de econo-
u
século passado - a do trabalho/produção mia solidária ou terceiro ou quarto setor.
/salário mensal, foi uma idéia interessante A economia moderna vem reconhecendo
38 Sem Trabalho ... Por Quê?, op.cit., p. 43 e também a nota no. 50.
39 GORZ. André. Mi,~res du Pré,enl. op. dI .. p. 15l.
40 MARX, Karl, Grundrisse, 1857, citado em GORZ. André, Misêres du Présent, p. 15l.
> 41 Sem Trabalho Por Quê?, ap.eit., p. 34 citando AZNAR, G" op. dt. p. 107·108.
0.0
42 MARX, Karl, Grudrisse, 1857, cílado em GORZ, André, Misêres du Présent, Richesse du PossibJe,
Galilée. Pari,. 1997, p. 147.
o 43 Wassi1y Leontieff, "La dlstribution du travail et du rcvenu", Pour Ja Science, 61 , avriJ 1982, citado em
u André Corz, Misêres du Présent. Richesse du Posslblc. p. 146·147.
n
hoje um "Terceiro" Setor, também deno- A Reforma Agrária
minado por alguns autores de "setor qua- Para um País como o Brasil, a reforma
ternário", para não confundi-lo com o se- agrária é outra saída possível, de curto e
tor terciário que é o setor de serviços. Ou- médio prazo, para o desemprego. Trata-se
tros autores, ainda, o denominam de "eco- de uma saída, relativamente, barata. Nesta
nomia solidária". constatação coincidem muitos analistas".
Trata-se, enfim, de um setor ao lado Um recente estudo do BNDES mostra que
do Mercado e do Estado. As atividades dos dez setores que, potencialmente, asse-
características deste setor respondem a guram mais demanda de mão-de-obra, se-
necessidades que nao são rentáveis para te se referem ao setor agrícola. O texto mos-
a economia de mercado. Ou seja, são ati- tra, ainda, que para cada R$ 1 milhao apli-
vidades que não visam primeiramente a cados na agropecuária, são gerados 144 em-
produção de bens, mas de laços. São ati- pregos diretos e 38 indiretos. Na indústria
vidades que se caracterizam pela proxi- de automóveis, ônibus e caminhoes, o mes-
midade com a vida e entre as pessoas. mo investimento gera quatro empregos
Elas têm o objetivo de cuidar do bem- diretos e 24 indiretos. Um outro exemplo:
estar da comunidade, especialmente dos o Sindicato e a Organização das Coopera-
mais abandonados como os idosos, por- tivas do Paraná - OCEPAR - prevê, até o
tadores de deficiência físicas, de preser- ano 2000, o investimento de R$ 728 milhoes
var o meio ambiente, de cuidar da edu- na implantaçao ou expansão de plantas
caça0, etc. Ou seja, "as novas ocupações industriais. Com isso gerarão 23.118 em-
enquadradas no Terceiro Setor indicam pregos diretos. Isto representa 31 empre-
que a sociedade pode tomar-se mais hu- gos por um milhão de reais investidos.
mana e mais capaz de futuro, à medida Este investimento pode ser comparado ao
que valoriza, inclusive financeiramente, da Audi/Volkswagen, que está investindo
independentemente do trabalho assala- R$ 750 milhões na implantação da sua
riado, as oportunidades de sustento, os fábrica de automóveis, em Sao José dos
contatos sociais e de desenvolvimento Pinhais, no Paraná. Só que investindo pra-
pessoal. Trabalho nao falta. É preciso, ticamente o mesmo valor, a montadora
porém, encontrar meios e caminhos para gerará 3 mil empregos diretos".
financiá -lo, redistribuindo a riqueza so- Por isso a CF-99 insistirá na necessi-
cial. E- inegável que nossa sociedade tem dade das "comurtidades e movimentos
imensa necessidade de trabalho no setor eclesiais se comprometerem com a causa
da preservação do meio ambiente e do da Reforma Agrária". Ela aposta na urgên- .~
território, dos serviços familiares, do CLÚ- cia de uma "política agrícola que favoreça o
dado com as crianças, dos tóxico-depen- o trabalhador rural por meio de uma infra-
dentes, dos idosos, do cuidado das ci- estrutura adequada, financiamentos, ga-
dades, as pequenas reparaçoes"". rantia de preços minirnos e escoamento
o
44 Sem Trabalho Por Quê'?, op. cit., p. 51 -52.
o ••
>
45 O texto da CF-99 cita longamente Ignacy Sachs. Cf. Sem Trabalho ... Por Quê'?, op. cit., p. 44-45.
46 Cf. CEPAT Informa n° 40/1998, p. 28-31. "Paraná: Novos Investimentos e a Mudança do Perfil
o
Socioeconômico. Uma pequena contribuição para entender o Paraná", CEPAT Informa - Edição Es-
pecial, agosto-19gB, p. 32-34. o
23
dos produtos". Ela postula o apoio à "agri- todo o trabalhO socialmente útil, de modo
cultura farniliar que produz alimentos para que todos possam trabalhar, mas trabalhar
o mercado interno e que gera muito mais menos e melhor recebendo parte das rique-
empregos do que a lavoura mecanizada e zas socialmente produzidas?
tecnicamente avançada"". Em sintese, o desafio é: como ultrapas-
Enfim, a questão do desemprego no sar a esfera da economia, ou seja, o que é
final do século vinte levanta o seguinte o mesmo, como romper a esfera do traba-
desafio: lho assalariado numa sociedade em que
Como deve ser uma sociedade na qual não há este tipo trabalho para todos e to-
o trabalho de tempo integral de todos os das. É necessário que forjemos um novo
cidadãos não é mais necessário nem eco- paradigma civili72cional em que o traba-
nomicamente útil? Quais são as prioridades lho remunerado nao mais seja o único e
não econômicas, desta sociedade? Como exclusivo meio de acesso à distribuiçao da
deve se comportar a sociedade para que o produtividade. Esta é, talvez, a contribui-
crescimenúJ da produtividade ea economia ção mais importante e decisiva da CF-99
do tempo de trabalho sejam para o proveiúJ para a construçao de "um novo milênio
de todos? Como se pode redistribuir melhor sem exclusao"".
,-
u
>
o
47 Sem Trabalho Por Quê?, op. cit., p. 109.
0.0
1.1
N
Os Cristaos e a Solidariedade
com os pobres
PE. JOSÉ COMBUN
1. OS NOVOS POBRES
Até há poucos anos atrás, quando se poderia vencer essa pobreza e dar acesso
fala em pobres na América latina, refere- a uma condição humana a todos os "sub-
se a herança social e econômica do siste- desenvolvidos". Os mais radicais achavam
ma colonial, que não foi superado e sim que tal desenvolvimento exigiria uma revo-
renovado nos primeiros 150 anos da inde- lução prévia porque as classes dirigentes
••
pendência. Os "antigos" pobres são os nunca promoveriam as reformas necessá- o
camponeses submissos ao latifúndio ou os rias a um verdadeiro desenvolvimento. De
camponeses que fugiram ou foram expul- todas as maneiras achava-se que com polí- <o
sos da terra e se refugiaram nas cidades. ticas adequadas se poderia superar o pro-
Esses pobres nunca foram ricos, nunca blema da pobre:m. Bastaria definir e aplicar
estiveram numa situação realmente huma- uma boa política social. A educação seria o
na. Os seus pais, avós e antepassados sem- um dos grandes instrumentos da elevaçao
pre foram pobres: sao os subdesenvolvidos. social dos pobres.
Nos últimos 40 anos a opinião comum Políticos, trabalhadores sociais, sindica- o
25
antropólogos pensavam que com todos os têm acesso a um emprego estável e sabem
recursos que estavam à sua dispO$içao, eles que para eles nunca haverá "futuro". Nas-
ou elas poderiam libertar os pobres da sua ceram numa família que podia viver de-
miséria e dar-lhes a possibilidade de uma centemente, mas estão condenados à que-
vida verdadeiramente humana. da sem fim.
Passaram 40 anos. Não somente os an- Todas as promessas dos políticos são
tigos pobres ainda estão aí, mas a eles se puro blá-blá-blá: o número de desempre-
juntaram os novos pobres. A própria exis- gados vai aumentar e o número de jovens
tência dos novos pobres põe em discussao sem esperança de emprego vai aumentar
todas as teorias antigas sobre desenvolvi- também. Não se produz nenhuma inver-
mento, libertaçao dos pobres, eliminação são do processo que provoca o desemprego..
da pobreza. Esta pobreza não é exclusiva do Brasil.
As próprias doutrinas sociaís da Igreja Existe em primeiro lugar nos Estados
tinham adotado as teorias comuns do tem- Unidos onde vai crescendo a cada ano.
po: os pastores exortaram os cristaos a co- Existe na Europa e ali também vai crescen-
laborarem com as obras ou as politicas de do sem parar. Cresceu espantosamente
"desenvolvimento" econômico, social, cul- nos países asiáticos que entraram no mo-
tural, integral, tudo com a convicção de que delo neoliberal: Coréia do Sul, Tailândia,
os agentes sociais poderiam resolver o pro- Malásia, Indonésia. Está em todos os paí-
blema da pobreza graças aos seus conhe- ses latino-americanos que adotaram o mo-
cimentos científicos e técnicos, graças aos delo: por exemplo no México que teve uma
recursos dos governos e da caridade cris- queda tenivel em 1994. Vai crescendo no
tã. Achavam que obras como Carifas, Mi- Brasil também: o Brasil nao está fora do
sereor e outras poderiam realmente con- mundo, não vai escapar das conseqüên-
tribuir para superar o desafio da pobreza cias do modelo.
na América Latina. Hoje em dia tudo isso O desemprego gera a "miséria". Ora, é
caiu por terra. Nao somente a antiga po- diferente a miséria de quem nunca conhe-
breza não foi superada, mas uma nova ceu outra coisa e a miséria de quem já teve
pobreza surgiu ao lado dela, uma nova po- emprego, vida organizada, esperanças pa-
breza que se revela mais aguda, mais triste, ra o futuro, confiança na melhoria da con-
mais profunda do que a antiga. diçao no futuro.
Quais são os novos pobres? São as viti- Os camponeses pobres do interior po-
mas do novo sistema econômico e social dem viver muito pobremente, ser material-
que desde os Estados Unidos se está im- mente miseráveis; mas nunca conheceram
.- plantando no mundo inteiro. Este sistema outra coisa: estao felizes, mais felizes do
o entrou no Brasil em 1994. Ainda nao está que o povo da cidade. Comem feijão e fa-
completo, mas tudo indica que será im- rinha, bebem a água que o carro-pipa vem
plantado completamente porque as forças trazer todos os dias e agradecem a Deus
financeiras dominantes o impõem. porque podem comer e beber.
u Os novos pobres são os desemprega- Na cidade é diferente. Os novos pobres
> dos: os que perderam o emprego e nunca já conheceram outra coisa. Por isso, a sua
mais o poderão recuperar. Terao que viver condição é pior. Um morador da rua em
o de biscates, de pequenos comércios legais Sao Paulo pode até comer melhor do que
o ou ilegais. São também os jovens que nao um camponês sem terra no sertao da Pa-
raíba. Porém, a miséria moral é muito pleta, a talta de recurso moral, a ruína do
maior. O pobre do campo não se sente de- sentimento de responsabilidade.
gradado, excluido, rejeitado. O desempre- Quem já viveu numa casinha decente,
gado da cidade sente tudo isso. se desespera quando deve mudar-se para
Os novos pobres caem numa degra- uma favela, ou, pior, se sente condenado a
dação humana imensa. Perdem o senti- morar na rua Apopulação das favelas cres-
mento da sua dignidade. Sofrem uma hu- ce. Não é somente pela chegada de campo-
milhação sem limite pelo fato de ter que neses que fogem do campo. Trata-se de
depender de esmolas, depender dos país pessoas que já tiveram emprego, já tive-
e da aposentadoria tão fraca que o País ram casa, já tiveram algum conforto mate-
lhes deixa. Perdem a esperança, o respeito rial e viviam respeitados pela vizinhança.
de si próprios. Os pobres antigos eram ale-
A miséria moral é um flagelo que não
gres. Os novos pobres sao tristes, ressenti-
existia antes. Quantos sacerdotes, religio-
dos, violentos, destrutores de si próprios e
de todo o seu ambiente. sas e religiosos descobriram a alegria, a
calma, a paz, as virtudes cristãs no meio
Recentemente a editora Vozes publi- dos pobres! Entrar no meio dos pobres
cou uma tradução do livro publicado em era tomar um banho de evangelho. Eram
francês sob a direçao de Pierre Bourdieu: os antigos pobres. Entre os novos pobres,
A miséria do mundo. Este livro é uma co-
o que se acha é angústia, raiva, sentimen-
leção de entrevistas com diversas pesso- to de impotência diante de um destino
as que são os novos pobres na França. implacável.
São milhoes na França. Os brasileiros que
visitam a França, não sabem nada. Mes- Muitos entre os novos pobres tornam-
mo os religiosos voltam com uma visão se vítimas de males piores ainda do que a
de turistas. Vêem o que mostram as agên- pobreza.
cias de turismo e não sabem como é a Muitos caem numa depressao psicoló-
vida de muitos milhoes de franceses. O gica. Um dia um psicólogo social dizia-me
que se lê ali sobre os novos pobres na que no Recife a terceira parte da popula-
França, vale também para o Brasil. ção sofre de depressão. Bem pode ser que
Os novos pobres assistem impotentes essa proporção nao seja exagerada. Pes-
à desintegraçao da sua família. A família soas angustiadas, perseguidas pelas con-
era o refUgio e o sustento dos antigos po- tas que nao podem pagar, desmoralizadas
bres. No seio da família, alimentavam a pelas brigas entre marido e mulher, com
esperança, a confiança em si próprios, o os filhos adolescentes, com os vizinhos,
respeito a si próprios. com a polícia, perseguidos pelo medo aos .-
Entre os novos pobres, a familia morre. narcotraficantes que governam o bairro ou u
Cresce a violência do homem contra a mu- a favela, ou pela polícia porque, muitas c
27
Entre os Jovens o roubo é uma msOtuJ.- querem saber. Cnam ruinas rrreparávelS,
ção. É parte do sistema e os comerciantes Destroem milhões de vidas humanas que
sabem qual é a porcentagem de mercado- nunca serão recuperadas e condenam as
ria que devem considerar como perdida novas geraçoes a uma sobrevivência sem
Sempre houve roubos, sempre houve de- esperança. Pois quem não tem acesso a
linqüência. Mas hoje em dia o roubo nos um trabalho, a uma funçao social, nao
supermercados, na rua, o assalto é uma existe, está excluido da existência huma-
instituiçao. Ninguém poderá extirpar esta na, não tem dignidade nenhuma e sabe
instituiçao. E-o meio de viver de um mun- que não tem.
do extenso, Impossível colocar um policial Os antigos mendigos tinham a sua dig-
ao lado de cada adolescente. nidade porque eram uma das funçoes
A violência é para os rapazes, a prosti- sociais previstas no quadro social. Na so-
tuição para as moças. Para ambos trata-se ciedade cristã, os mendigos têm o seu lu-
de sobreviver. O ponto final é a AIDS que gar previsto. Os novos pobres não têm
ameaça todo o mundo dos novos pobres. lugar nenhum. Não deveriam existir. Asua
Antigamente os trabalhadores sociais existência já incomoda a sociedade.
ofereciam os sindicatos, as associações de Os dirigentes da sociedade ainda têm
moradores, associações de mulheres, as- o atrevimento e a falta de vergonha de re-
sociações esportivas como forças para ven- petir que o desenvolvimento do sistema no
cer a pobreza. Hoje em dia tudo isso está fim vai salvar os pobres e que o crescimen-
em pleno recesso. Os sindicatos estão em to seria para todos: o enriquecimento dos
desintegração no mundo inteiro, as asso- ricos seria o caminho de salvação para os
ciações morrem, a convivência e a partici- pobres. Como o modelo neoliberal poderia
pação tomam-se impossíveis dadas as reduzir a pobreza se todos os dias fabrica
condiçoes morais em que vivem as pesso- novos pobres? O próprio sistema gera po-
as. A sobrevivência no imediato é a única breza. Como imaginar que um dia iria res-
preocupação. Nao há mais espaço nem tituir trabalho e dignidade a esses homens
liberdade mental para pensar em outra
e essas mulheres que excllÚu?
coisa. Suscitar associações populares su-
poe muitas etapas prévias de recuperação Nos Estados Unidos os defensores do
humana num povo que sofreu a humilha- sistema exaltam os novos empregos: 30
çao de uma degradação total. milhões de novos empregos! Mesmo as-
sim, ainda há uma cifra grande de desem-
Afamíl.ia já foi a salvação dos pobres. A
associaçao já foi a esperança dos pobres. pregados cujo número nao se sabe por-
Já foi, já foi. Hoje em dia, nao há salvação que as estatísticas são sistematicamente
para os novos pobres, Todos os caminhos falsificadas. A maior parte dos desempre-
estão fechados porque a sociedade em que gados não cabem na nomenclatura que
vivem é de um egoísmo total, ilimitado, define o desemprego oficial nos Estados
'u Unidos.
sem piedade alguma. O sistema gera cons-
tantemente novas levas de novos pobres. Ora, os novos empregos são precários,
Os que despedem trabalhadores, não sa- sem nenhuma garantia de continuidade.
> bem o desastre humano que provocam. Sao a tempo parcial. Não conferem direi-
Não querem saber e invocam as leis do tos sociais. A maioria consiste em vender
o sistema. Os que introduzem ou mantêm o conúda ou bebida ou pequenos objetos de
sistema, não sabem o que fazem ou não consumo. Acategoria que mais cresce nos
28
Estados Unidos sao as policias privadas. modelo de sociedade que se está prepa-
Os policiais particulares são muito mais rando. Os dirigentes não se importam:
numerosos do que os policiais públicos. A nunca ganharam tanto dinheiro e, gra-
segurança é função privada nos Estados ças à especulação global, nunca foi pos-
Unidos. Os ricos têm todos os seus guar- sível ganhar tanto dinheiro sem fazer
da-costas. Por sinal, no Brasil também a nada e tao depressa.
categoria que mais cresce é a profissao de No Brasil também existem os novos
segurança particular. empregos: empregos de guardas, camelô,
Já que o roubo e o assalto se toma- guardas de automóveis, carregadores, vi-
ram institucionais, também asegurança gias e assaltantes. Tais empregos não re-
virou instituição indispensável. No futu- solvem o problema dos novos pobres: nao
ro, de cada dois cidadãos, um será la- libertam da pobreza. Mantêm a inseguran-
dra0 e o outro guarda policial. Este é o ça, a humilbação, a impotência.
2. QUE SOIlDARIEDADE?
O nó do problema é o emprego. Sem de para sempre ou sempre encontra um
emprego todo o resto é paliativo. Ora, o em- emprego inferior ou se contenta com o "in-
prego depende do modelo de sociedade formai", isto é, a miséria. O sistema destrói
escolhido. O Brasil escolheu o modelo que milhoes de vidas humanas.
gera desemprego. O Japão escolheu outro O que podemos fazer nós? Podemos
modelo. Cada um sofre as conseqüências mudar o sistema? Não podemos. Solidarie-
das decisões tomadas livremente. O Brasil dade seria mudar o sistema. Porém, não
não tinha obrigação de escolher o modelo está ao nosso alcance. Os 30 milhões de
que escolheu. Não tinha obrigação de mo- brasileiros que têm tudo não querem
derniwr as indústrias sacrificando o em- mudar. O milhão de brasileiros que con-
prego para o lucro da empresa e, por con- centra todos os poderes, não sacrificará
seguinte, o enriquecimento dos acionistas nenhum dos seus privilégios. Diante des·
e, sobretudo, dos executivos. Nada disso é se muro de resistência, nós nao podemos
imposição de "leis" do mercado. Cada um nada.
escolhe as leis da sua preferência. O Brasil
podia ter escolhido um modelo de indús- Os novos pobres estao perdidos. Essa
tria menos tecnicizada, um modelo de co- nova juventude está perdida. Nunca terá
mércio mais atrasado, um sistema de acesso a uma vida digna. Entao a questao
comunicações menos custoso. Qual é a é: como nós seremos solidários de um
vantagem que têm a maioria dos brasilei- povo condenado, prisioneiro de um siste-
ros se podem ver a TV de 100 emissoras ma social fechado? .-
u
diferentes e daqui a pouco do mundo in- Para a maioria desses excluidos, a úni-
teiro, se somente entendem português? ca coisa que podemos fazer, é estar presen-
Qual é a vantagem que têm se podem con- te, estar com eles, manifestar compreen-
sultar por Internet a biblioteca do Congres- sao, simpatia, ajuda às escondidas. Trata-
so dos Estados Unidos? Quantos vao apro- se dos aidéticos, dos drogados, dos mora- o
veitar? Ora, para fazer tudo isso é preciso dores da rua, as crianças da rua, as prosti- >
sacrificar o emprego e levar milhões de tutas, os favelados, os habitantes dos cor-
pessoas a uma vida de desespero. Pois, tiços, os profissionais do assalto, os ven- o
quem perde emprego, quase sempre per- dedores de drogas, os ilegais, os foragidos. u
29
Todos esses são vítimas do desemprego. favela ou o seu rincao debaixo da ponte.
Ou quase todos. O remédio seria empre- Todos lutam, mas muitos lutam cada vez
go. Porém, nao temos emprego para to- menos. Os crentes comUlÚcam energia.
dos, somente para alguns poucos. Dão coragem até para lutar contra os
Para a maioria somente é possível o vícios: o crente consegue vencer o álcool,
apostolado de madre Teresa de Calcutá. a droga, a fomicação, a violência. A reli-
Nunca se pensou que o Brasil chegaria a gião dos crentes mobiliza todas as energi-
esse ponto. Sempre se disse: madre Tere- as para a pessoa se levantar, rejeitar as ten-
sa não salva os pobres da sua miséria, não taçoes. É uma religião de esperança para
tem vísao política, não oferece solução. Eis os excllÚdos. É muito simples. Nao tem
que chegamos a esse ponto: não temos teorias complicadas. Não ensina dogmas
solução para oferecer. Tudo o que se faz incompreensíveis, nao separa o clero do
no País gera mais pobreza. O Brasil che- povo, pois os pastores sao da mesma cul-
gou ao IÚvel da Índia. Nao somente o Bra- tura, da mesma raça, da mesma cor.
sil, mas todos os países que escolheram o Aluta dos pobres é simples: melhorar a
novo modelo de sociedade, que deram pri- casinha, melhorar o caminho, melhorar a
oridade à tecnologia, ao desenvolvímento comida, conquistar água, se possível em
A •
30
cada vez mais facilidades, cada vez mais ram mais eficazes do que as outras, e, às
objetos úteis. Têm um modo de viver cada vezes, menos.
vez mais sofisticado e tomam-se escravos No entanto, nos 30 anos que vão de
do seu modo de viver. Descer da sua mon- 1960 a 1990, muitos pobres do campo con-
tanha para ir ao encontro dos pobres é seguiram subir. Foram para a cidade, acha-
cada vez mais dificil. Chegamos ao mo- ram emprego, trabalharam, construiram
mento em que para muitos é coisa iropos- sua casa, fizeram com que os filhos estu-
sível: já nao há mais contato possível, já dassem. Naquele tempo um filho de cam-
nao há mais comunicação. São dois mun- ponês pobre podia montar uma empresa
dos separados. Pois a cultura nova é cada de pequeno porte em São Paulo ou qual-
vez mais seletiva, mais absorvente: trans- quer outra cidade iroportante. Podia pro-
forma a personalidade de tal modo que é mover-se socialmente, tomar-se presi-
iropossível a pessoa sair do invólucro cul- dente do clube local de futebol. Asua mu-
tural em que se tomou prisioneira. Os bur- lher podia ser presidente da associação
gueses de hoje, inclusive as classes médias de moradores ou da associaçao de pais e
são de tal modo prisioneiros da sua cultu- mestres.
ra que não agüentam mais nem o contato
fisico com o mundo popular. Para os novos pobres, tudo isso é iro-
possível. A distância é grande demais
Mas entao, nao é mais possível ajudar
entre o abismo de iropotência em que se
os pobres a sair da sua pobreza? Para que
servem entao todas as obras do desenvol- acha o pobre e a altura cultural das orga-
vimento? nizações atuais.
Quanto às obras de desenvolvimen- Dezoito por cento (18%) dos franceses
to, por experiência sabemos que nao fo- não sabem ler nem escrever. Sabem dese-
ram muito eficientes. Quantos milhões fo- nhar algumas letras e decifrar algumas le-
ram doados pelas agências de ajuda ao de- tras. Sabem reconhecer o roteiro do ôni-
senvolvimento e se perderam? No Nordes- bus. Mas nao sabem entender, nem res-
te podemos dizer que praticamente hou- ponder a um formulário enviado pela pre-
ve milhares de projetos de desenvolvimen- feitura. Como poderiam entrar no mundo
to e todos fracassaram. Deram emprego a dos computadores? Certamente a metade
alguns técnicos, a alguns agentes de desen- dos brasileiros está na mesma condição.
volvimento ou assistentes sociais e mais Ora, a pertença à sociedade que está em
nada. Duraram 2 ou 5 ou 10 anos e depois marcha supõe cada vez mais condiçoes.
.desapareceram. Deixam como lembranças Uma criança que nasce na favela, já está
velhos papéis, ferramentas enferrujadas, al- condenada. Nunca sairá da pobreza, nun-
~s móveis de escritório estragados e pro- ca será uma pessoa realiUlda como pessoa. .-
vavelmente inscrições na contabilidade das O pecado da nossa sociedade é gran- u
agências de financiamento, como relató- de! E quem de nós não participa na ma-
rios cheios de otimismo e entusiasmo nos nutenção desta sociedade? Quem está sem .0
31
rea1i711r: suprimir a pobre711. Os seus suces- A escola de Frankfurt já tinha explica-
sores no FMI, no Banco Mundial e no go- do isso há 50 anos atrás. Todos os pós-
verno brasileiro continuam prometendo a modernos deram inúmeras explicações
mesma coisa. Até agora, o resultado é ne- sobre os diversos aspectos desse destino
gativo. Ao invés, a modernidade criou da ciência e da tecnologia moderna.
novas formas de pobre711 e aumentou a Ciência e tecnologia são cada vez mais
distância entre ricos e pobres. Nunca, no financiadas por entidades econômicas po-
entanto, chegamos ao extremo dos tem- derosas, ou entao nao se desenvolvem por
pos presentes. Quem ainda pode acredi- falta de recursos, o que é o caso muito fre-
tar nas promessas da ciência e da técnica? qüente na América Latina. Entram a ser-
Ciência é poder. Tecnologia é poder. viço dos poderes econômicos que os fi-
Os antigos já sabiam disso e todas as civi- nanciam. Os pobres não podem financiar
lizações souberam disso e por isso sabiam nada: a ciência nao é feita para eles, nem
conter e disciplinar os depositários dos co- a tecnologia.
nhecimentos superiores. Sabiam que a Os progressos da tecnologia tendem a
ciência pode ser útil, mas que é, em pri- aumentar a rique711 das grandes empresas
meiro lugar, perigosa. a fim de aumentar os capitais disponiveis
A ilusão veio com a modernidade. para a especulação.
Diante do progresso extraordinário, total- Além disso, ciência e tecnologia estão
mente inédito, das ciências e das tecno- também a serviço do poder político. Ame-
logias, imaginaram que tinham descober-
tade da investigação cientifica e tecnológi-
to a chave da salvação da humanidade. As
ca está a serviço da indústria de armamen-
capacidades da inteligência humana pa-
tos dos Estados Unidos e também, ainda
reciam sem limites: logo mais descobririam
que com muito menos possibilidades, das
os meios de responder a todas as necessi- ,
potências secundárias.
dades humanas: no horizonte está o para-
íso para todos. A ciência criaria abundân- Os progressos nas tecnologias de co-
cia para todos. De fato criou abundância, municação servem ou às multinacionais
mas não para todos. Poderiam criar duas ou ao poder militar.
vezes, dez vezes mais abundância, mas fal- Como adaptar estas tecnologias à con-
tam consumidores. Essa abundância não dição das massas pobres? Quem poderia
é para todos. financiar tal tipo de investigaçao? Ainda
A indústria mundial trabalha a 60% da vale o que dizia naquele tempo Delfim
sua capacidade. Há capitais suficientes pa- Neto: um cruzeiro aplicado em São Paulo
ra multiplicar as indústrias. Mas os capi- rende; um cruzeiro aplicado no Nordeste
,- tais nao são para o beneficio de todos. é um cruzeiro perdido.
Lembremo-nos: a primeira finalidade A década dos 90 assistiu a um imenso
<. do poder é o próprio poder, mais poder. O desenvolvimento cientifico e tecnológico.
poder da ciência não anda nos ares, livre Também assistiu a um enriquecimento fa-
de donos. A ciência tem dono, a técnica buloso de uma pequena minoria e a um
tem dono. Sempre aparece alguém para empobrecimento das classes baixas nos
> comprá-la, sujeitá-la ao seu próprio póder. Estados Unidos, na Europa, na América
Ciência e tecnologia são meios para au- Latina. Todo o produto do enriquecimento '
o mentar o poder dos que lhes fornecem enorme das economias foi para 0& privile-
meios e condições. giados. Ai está a confirmação de que o pro-
32
gresso cientílico e tecnologlco esta essen- rraoamaaores. l\!:i U!CIlH...:a::; ~t::!j~UVUIV~Ul
cialmente em função das satisfaçoes dos se em funçao disso. A sociologia fornece
privilegiados. ferramentas para controlar os movimentos
Por isso, quem entra nessa área da ciên- sociais. A pedagogia pretende obrigar as
cia e da tecnologia, que se cuide, porque crianças a se submeterem à disciplina da
vai trabalhar a serviço de uma minoria escola. Pois a escola existe fundamental-
pequena. mente para ensinar às crianças a submis-
são a uma disciplina: trata-se de formar
Outrora, os engenheiros e construtores cidadãos tranqiiilizados, acalmados, con-
trabalhavam a serviço dos reis e dos prin- formados, dispostos a aceitar tudo o que
cipes, ou então do Papa e dos bispos ou disserem os poderosos. O resto daquilo
dos abades. Hoje em dia trabalham a servi- que se aprende na escola, se esquece ime-
ço do governo ou das multinacionais, o diatamente: a disciplina fica. Quem nao se
que é quase a mesma coisa. Cada um pode sub mete, toma-se "excIIII'd" o.
fazer um exame sério do seu trabalho:
quem aproveita? Qual é o resultado final Poucos são os psicólogos, sociólo-
da sua pesquisa, da sua engenhosidade gos, pedagogos que remam contra a cor-
rente: nunca terao lugar importante na
técnica?
sociedade.
Qualquer progresso científico ou tecno-
O que poderiam fazer ciências e tecno-
lógico aumenta a distância entre ricos e logias que fosse útil para os pobres? Precisa
pobres, porque os ricos aproveitam esses saber que a pesquisa científica, a invenção
progressos para melhorar mais ainda a sua tecnológica útil aos pobres não rende.
condição e os pobres permanecem sem- Quem vai dedicar-se a uma atividade que
pre no mesmo nível ou conhecem um não rende? Quem sabe se aqui haveria lu-
crescimento muito mais lento. gar para alguns religiosos?
Desta forma, separam-se duas cultu- Os pedagogos poderiam inventar
ras, dois povos, dois mundos no mesmo uma pedagogia para os maus alunos, os
território. Um mundo é praticamente que sempre fracassam, uma pedagogia
analfabeto, outro mundo comunica por que mudasse a disposição desses alunos
Internet. Um mundo come arroz com fei- em relaçao ao estudo. Poderiam inventar
jão; outro mundo come alimentos impor- uma educação para jovens que nunca fa-
tados. Um mundo trabalha no computa- larão inglês, nunca praticarão matemá-
dor; outro mundo vende roupas impor- ticas, nunca farão experiências de fisica
tadas do Paraguai ou da China na rua. nem de química, uma educaçao que aju-
Qual é a tecnologia que ajudará o vende- dasse a viver uma vida de vendedor no
dor de rua? comércio informal, enfim uma pedago- .-
u
As ciências humanas são também pro- gia que prepara os jovens para a vida que
fundamente comprometidas com a estru- eles terao e não para uma vida que nun- <u
tura da sociedade tal como ela é. As ciên- ca a1cançarao.
cias humanas estao a serviço dos que Os psicólogos poderiam inventar técni-
mandam e a serviço da ordem tradicional. cas de tratamento para mulheres de mari-
A psicologia está sendo usada intensi- dos alcoólatras, maridos desempregados, >
vamente pela indústria para dissolver to- meninos de rua, favelados que vivem no
das as raízes de descontentamento, para barulho a vida toda, cortiços em que as bri- o
33
pessoas a asswnirem uma vida vivida em se referem a eles. Todos procuram uma
condições terríveis. Estas sao as pessoas medicina alternativa, comidas, roupas
que mais precisam de ajuda. mais baratas, um trabalho de formigueiro,
Os sociólogos poderiam inventar méto- pouco aparente, pouco visível.
dos para facilitar a formação de grupos, No passado freqüentemente foram os
associações, trabalhos comunitários entre técnicos que vieram com planejamento
pessoas socialmente desarticuladas. Pode- feito para convencer os pobres de que as
riam buscar métodos para dar peso políti- necessidades deles eram aquelas do plane-
co a pessoas que a sociedade separa. jamento. VInham com idéias preconcebi-
No Chile, o "Hogar de Cristo" já cons- das sobre os caminhos do desenvolvimen-
!ruiu um milhao de casinhas de madeira to. De modo geral, as obras de desenvolvi-
que nao custam quase nada e que eles in- mento eram feitas sem consultar os inte-
ventaram como refúgio de emergência ressados, como se a agência de desenvolvi-
para famílias sem teto. Excelente tecnolo- mento soubesse melhor do que eles o que
gia, modelo para os inventores. Há muito lhes convém.
espaço para a criatividade com a condição Acabo de ler no número 1517 de ISTO
de não querer ganhar dinheiro. É, na página 92, a seguiote notícia: Mídia
Está claro que tudo isso é paliativo e . Alternativa - Voz que vem do morro -
não resolve o problema fundamental da Rádio pirata montada em favela de BH já
foi até premiada pela ONU. "Você está na
pobreza. Porém, o problema fundamental Favela'; anuncia a vinheta. Bem no meio
é emprego. Nenhuma nação do mundo
ocidental, muito menos o Brasil, está dis- do Aglomerado da Serra, um conjunto de
11 favelas encravado na zona sul de Belo
posta a fazer os sacrificios necessários para Horizonte, a sua fatia mais nobre, está
dar emprego a todos. Seria necessária uma instalada aFavelaFM 004,5). Fundada por
redistribuição do produto nacional. Impos- um grupo de 50 amigos há 17 anos, é hoje
sível! Jamais as classes privilegiadas vão uma experiência inédita _ menos por sua
aceitar sacrificar parte dos seus privilégios. longevidade, mais pelo trabalho social de-
Por conseguiote, o problema real são os senvolvido nas áreas pobres da cidade. Foi
paliativos. Ciência e tecnologia devem in- dessa forma que as paredes mal-acabadas
ventar paliativos para tomar a existência do barraco onde a rádio funciona ganha-
dos pobres mais suportável. ram, de um ano para cá, dois prêmios da
A ajuda dos técnicos torna-se útil se ONU em reconhecimento às campanhas
vem para fortalecer o trabalho dos pobres. feitas contra as drogas. Embora ilegal -
Pois, os pobres trabalham incessantemen- tem apenas alvará para atuação como ve-
.- te para sobreviver e melhorar a sua sorte. ículo comunitário -, a Favela bem que
o
Os favelados trabalham para melhorar a merece mais. "Pregamos a auto-estima e a
<" sua favela, para conquistar o direito de pro- consciência política'; explica MisaelAvelino
priedade, para melhorar os serviços públi- dos Santos, 38 anos, diretor de programa-
coso Os desempregados procuram biscates, çao, nascido e criado no morro. "Dizemos
" os vendedores de rua procuram melhores que política niW é só construir viaduto". No
> espaços e melhor acesso à freguesia, os último mês de agosto, Misael esteve na ltá-
meninos de rua procuram melhores luga- lia como representante do Brasil no VII En-
o res para cuidar dos carros. Todos procu- contra Mundial de Rádios Comunitárias.
o ram entender o que significam as leis que "Foi difícil aquele pessoal me entender",
34
... v,~ ........ ~"' '"'""' JIoC-~V , .. ..", .. pv. ~""'b""""""J '''''''1 v
favelês mesmo. "(...J Durante todo o dia, trução do cemitério e todos aceitaram com
entre vinhetas do tipo "essa rádio é uma entusiasmo. Depois do cemitério vieram a
merda'; recebem, ao vivo, mais de 500 tele- escola e o dispensário. Mas nao adiantava
fonenias. A maioria éde moradores do querer impor uma ordem de necessida-
morro que usam a estaçãn para falar com des que não correspondesse ao que estava
a família. Dessa forma, é comum ouvir que . na mente do povo.
um tal "seu José avisa que vai fazer hora Podemos contribuir poderosamente
extra". '11 rádio é a Internet do favelado'; dando a ajuda que eles mesmos desejam
resume MisaeL (. ..) e não aquela que nós achamos mais
Excelente exemplo de tecnologia a ser- urgente. Ora, é muito dificil realizar esta
viço dos pobres! conversão.
Hoje em dia entramos numa época Antigamente dizia-se: a solução está no
mais realista. Nao adianta querer forçar os crescimento da economia. Quando a eco-
pobres a entrarem num caminho que não nomia crescer será mais fácil distribuir en-
traçaram eles mesmos. É preciso acompa- tre os pobres o excedente produzido sem
nhar com paciência, caminhar mais deva- tocar no adquirido pelos ricos. Na prática,
gar, pensando que eles sabem melhor do não funcionou. Todo o excedente produ-
que nós o que é mais urgente para eles. zido vai para os privilegiados. Se a econo-
Foi o que sempre ensinou Paulo Freire sem mia crescer, todo o crescimento será con-
convencer sempre os seus ouvintes que se fiscado pelos que já têm tudo. Por isso, so-
esqueciam dos seus ensinamentos na hora mente soluçoes provisórias são possíveis.
da prática. Nesta década dos 90 apagou-se o grito
Paulo Freire contava a história do padre dos oprimidos. A própria Igreja deixou de
que vindo de fora chegou a uma paróquia gritar. Talvez um dia as multidoes apren-
do sertão pernambucano há uns tempos dam de novo a gritar. No momento, são
atrás. O padre logo descobriu tremendas prisioneiras de uma suposta democracia
necessidades e quis mobilizar o povo para que é sistema feito para cortar-lhes a pala-
dar-lhes remédio. Um domingo procurou vra. Sistema feito para enrolar os povos
convencer os paroquianos da necessidade porque lhes dá a impressão de poder parti-
de se ter unIa escola porque os meninos cipar e na realidade é pura ilusao. Nao par-
não recebiam preparação para a vida adul- ticipam em nada. Todos os jogos já foram
ta. Porém, ninguém aceitou a proposta do feitos e as eleiçoes sao farsa. Um terço dos
padre. No domingo seguinte o padre pro- eleitores já percebeu isso, o que mostra
pôs a construção de um dispensário pelo menos que muitos pobres sao inteli- .-
porque as necessidades de saúde eram gentes e descobriram o truque. u
c
imensas. Ninguém reagiu. Então um an- Os povos vao aprender a gritar de no-
da0 aproximou-se do padre e lhe disse:
"senhor padre, o sr. não vai conseguir nada
vo se houver bastante gente no meio deles
para lhes restituir a esperança de que vale ..
se não der satisfação primeiro aos desejos a pena.
deles. Padre, eles querem um cemitério! Sobre a opção pelos pobres no quadro >
Porque o maior problema era o medo de da vida religiosa, não se poderia falar me- c
que animais viessem desenterrá-los de noi- lhor do que o padre Geral da Companhia o
te uma vez que eram enterrados em cam- de Jesus, padre Peter-Hans Kolvenbach, na u
35
conferência promll1ciada na semana so- Así, pues, la opción por los pobres,
cial de Caracas, no dia 2 de fevereiro de como alianza con los perdedores de la his-
1998, A conferência foi publicada pela re- toria (que son tambien sus víctirnas) es
vista Páginas, de lima, no, 151, junho de siempre en cierto modo perder la vida. Esse
1998, Cito as seguintes palavras (p. 67): es su precio tremendo. Por eso se la tiende
"La opción por los pobres no tiene a silenciar o a desnaturalizar, de modo que
tampoco como objetivo direto, inrnediato; ya no sea una relación, sino solo una con-
la superación de la pobreza, sino la huma- tribución econ6mica, pero que no com-
nización de los pobres, su personaliza- prometa a la persona. Y, sin embargo, solo
ción. Este resultado no es una meta exter- esa relaci6n vital salva ai pobre y a quien
na, sino el ténnino ai que tiende la diná- la entabla, AI pobre lo salva de su minus-
mica de la opción. Porque la opción por valia, y el que opta es liberado de su alie-
los pobres es ante todo una relación, una nación. Lo que salva es la trascendencia
alianza, un jugarse con ellos la suerte. Y que implica la relación: salir de si y llegar
hay que decir que esta suerte, desde el respetuosamente ai outro, yen esa doble
punto vista de la cultura dominante, será trascendencia, la trascendencia mayor de
siempre mala suerte, porque mientras dejar actuar ai Espiritu, de reconocer a
dure la história siempre habrá pobres On Jesús en el pobre, y de obrar el designio
12,8; DI 15,4.7.11). dei Padre".
'u
o
>
36
Com o publK:açOO dOS
dois ortigos que
seguem com um título
gerol comum -
A Formação em Debate A FORMAÇÃO EM DEBATE:
- o Revista
CONVERGÊN:::lA abre
um espaço novo: um
espaço poro o debate .' ',', L "C ons ide raçõe s Indignadas"
enlre autores, sobre
queslões de porticukll sobre a Formação Religiosa hoje
interesse
e atuolidade no FR. CWDOVlS M. BOFF, OSM
Vida Religiosa.
. ,
37
assim, é?" - pensarao eles. "Ai daquele sagradas da fé alegando motivos tao ba-
do qual vem o escândalo!" (Mt 18,7). nais como: "Não tive coragem de falar
Como explicar uma coisa dessas? Ha- antes", "Tive vergonha de decepcionar".
via algo de grave ou gravíssimo que justi- Mas, desfaçatez para deixar a todos com
ficasse um teatro desses? O terror, a forca, "cara de bobo" não faltou. E nao faltou
a morte? Para quê essa deslealdade, essa também o cinismo de decepcionar ainda
covardia, para nao dizer outra coisa, em mais dolorosamente seus confrades do que
"bom brasileiro"? Só uma leviandade ex- se tivesse a honradez de sair em tempo
trema pode comprometer as coisas mais com relativa honra.
39
nhecemos nossos jovens e aquilo de que falar agora de algumas evidências, que sao,
são capazes? na verdade, antigas, mas que precisam ser
Pondo-me a mim mesmo em questão relembradas e novamente postas em seu
e tentando responder ao desafio, quero lugar de honra,
41
É preciso aqui ter clareza teológica. A Mas se se põe toda a esperança da VR
comunidade é importante, é vital. Mas na Comunidade ou Fraternidade, corre-
guardemos a "hierarquia dos valores". A se risco de criar falsas esperanças e dar
Comunidade nao é e nem pode ser a base com decepções dolorosas. Como aconte-
da VR. É antes um valor fundado e não ceu com aquele frade que acompanhei
fundante. Nao é valor originário, mas deri- em seu caminho formativo e que saiu um
-
vado. E galho ou fruto, não raiz. Foi tam- ano depois: sua alegaçao era: "A Comu-
bém a ilusao das revoluções modernas, que nidade não me apoiou. O Provincial me
quiseram fundar um "mundo de irmaos", abandonou". Se pomos a Comunidade
prescindindo de um Pai. Vê se pode! como valor máximo, criamos frades ima-
Desse fundamentalismo as vitimas pri- turos, dependentes dos outros e que vi-
vilegiadas são aqueles jovens que entram vem frustrados porque não encontraram
na VR alimentando no coração o "roman- a "árvore de ouro" de seus sonhos - a
ce da comunidade". Pois quem tem alguns fraternidade.
anos de VR sabe das virtudes e dos limites Não se vê que o "eis como é bom e
da vida comunitária. A comunidade é e agradável viverem unidos os irmaos" e o
deve ser um apoio, mas às vezes também "vede como eles se amam" tem na base
é um desafio e uma prova. E nisso mesmo algo de mais profundo que a simples sim-
ela nos é útil e nos forma. João da Cruz patia humana, que o simples sonho de "to-
dizia que o religioso deve ver em cada com- dos se amarem". É uma vida, em primeiro
panheiro de comunidade alguém manda- lugar, voltada para a "único necessário".
do por Deus para experimentá-lo, lapidá- Depois, é uma vida feita sobretudo de ser-
lo, melliorá-Io. Do realissimo mas unilate- viço humilde, de renúncia ao próprio ego-
ral mote (se nao me engano, de S. João ísmo, da busca do interesse do outro an-
Berlanans): "Comunidade - minha má- tes do próprio, do seguimento de Cristo e
xima penitência", passou-se ao outro ex- de amor ao Evangellio. E voltamos aqui a
tremo: "A comunidade: meu idílio e meu reencontrar a vida espiritual: "Buscai em
sonho." A Comunidade é "uma" razão da primeiro lugar o Reino de Deus e de sua
VR, mas não fia" Razão. justiça" (Mt 6,33).
43
MATURIDADE EMOCIONAL E VIGOR ESPIRITUAL
Longe de mim fazer, nesse campo, pouco adianta rezar durante a própria cri-
qualquer concessao ao machismo, jogan- se (e nem vai conseguir fazê-lo), se esta o
do toda culpa na mulher. Além de ser uma encontra com profunda anemia espiritual;
injustiça e um erro grosseiro, no qual inci- isto é, se antes o frade não se tiver acostu-
diu a vellia moral da castidade, seria sinal mado a medir-se com Deus, como Jacó
de ingratidão com as anúgas que tenho e com o anjo (cf. Gn 32,23-33).
às quais devo tanto. A questão principal Essa é a crise mais difícil, porque, por
está no frade mesmo, que devia, mas não sua natureza, é em geral vivida em grande
soube, se haver corretamente com essa solidao moral. Quem encontra um cora-
relação importante. Isso por falta de matu- ção amigo, bastante maduro e espiritual,
ridade psicológica e espiritual. (Repito: isso para discernir situações assim delicadas?
vale, muJatis mutandis, para a mulher re- Quando você se frustra na Missão, quan-
Iigiosa em relação ao varão). do, por exemplo, o povo o decepciona,
E não me venham com essa de que você sempre pode encontrar na Comuni-
esta é uma visao superficial; de que o fra- dade um apoio, ou pelo menos uma
de já antes estava em crise; que a mulher compensação. Igualmente, quando você
-
só veio depois, como conseqüência. E ver- se frustra com a Comunidade ou com a
dade. Mas nao pelas razoes que se adu- Congregação, o trabalho com o Povo e
zem: que o frade não estava bem na Co- sua amizade podem ser de grande ajuda
munidade e em seu trabalho com o Povo. para superar aquela frustraçao. Mas quan-
Mas é justamente pelo fato de que o frade do você se envolve afetivamente e mes-
se encontrava enfraquecido em sua co- mo sexualmente com uma mulher, aí nao
munhão com Deus. Pois uma crise afetiva tem Comunidade ou Povo que valham.
só derruba um frade se o encontra já no Muitas vezes podem e devem ajudar, mas
chão em sua vida espiritual. Tirando os tantas outras aparecem como obstáculos
casos de falta evidente de vocaçao para o e não apoios. Aqui só tem uma relação
celibato (mas para saber isso não precisa que garanta o êxito da operação: a radica-
de anos e anos de VR), na maioria dos lizaçao da relação teologal.
casos, não digo todos, quando alguém Você pode achar isso muito místico ou
pensa em largar a VR e o celibato, é por- espiritualista. Mas é que talvez se é igno-
que já abandonou o cultivo da espiritua- rante do que vale o Espirito de Deus e do
!idade, a vida de oraçao. Se um frade nao que é capaz. Será que não é isso mesmo
tem um grande amor a JC e ao seu Reino, que prova a vida dos santos e santas, como
•• o amor de qualquer mulher facilmente llie Paulo, Francisco, Teresinha, Maria de
o
roubará o coração. Agostinho confessa: Mágdala e, mais ainda, a outra Maria - a
Não ignoro o quanto pode sobre o cora- de Nazaré? Seria isso excessivo idealismo?
çao de um homem o amor de uma mu- Mas o Religioso nao faz profissão de bus-
llier, mas sei também que pode infinita- car a santidade, a perfeição do amor? Que
o mente mais o amor de Deus e sua graça. digo: o Religioso? Mas isso vale para todo
> Estou convencido de que particular- e qualquer cristao, como relembrou o
mente para essas crises vale o que Jesus Vaticano lI, no belo e esquecido capo V da
o disse uma vez de certos espiritos: Que só, Lumen Gentium, intitulado justamente:
o se vencem "com a oração" (Mc 9,29). Mas "W.pcação . universal à santidade".
44
TRABALHO SÉRIO: FORMA DE POBREZA
Mas, nessa revisão geral da formação próprio trabalho. Frades parasitas são os da
para a VR, há ainda dois ou três pontos pior espécie, que o manso Francisco en-
para colocar. O primeiro é sobre o traba- xotava da comunidade, aos gritos de "Ir-
lho. Será que se formam frades para o tra- mão Mosca". Incrível: o frade que não se
balho, entendido como empenho, como empenhava em nada na Comunidade ou
ocupação que se leva a sério? Ou se cria na Paróquia, quando sai, tem que pegar
gente acomodada, ociosa? E- isto que pre- firme no batente: a vida obriga, quando
ocupa: formam-se frades que, uma vez de- não é a mulher e os filhos que arrumou.
finitivamente integrados na Ordem, encos- Nesse ponto, a Vida Religiosa e a Vida Pas-
tam-se na Comunidade e, "com a comida toral têm ambas uma particularidade em
e a roupa passada", vao tocando uma relação à vida "no mundo": elas nao con-
vidinha absolutamente pequeno-burgue- tam com constrangimentos sociais e eco-
sa e medíocre. nômicos, mas só com estímulos morais e
Quando falo de uma "formação para o espirituais. Agora, se um frade é religiosa-
trabalho" nao entendo necessariamente o mente remisso, se não tem convicçao pes-
trabalho produtivo. Nem ainda de ganhar soal e se não encontra uma Comunidade
a vida com uma profissão remunerada. ou um Superior que lhe sirva de aguílhão,
Tudo isso é opçao particular, seja do indí- entao se afunda no aburguesamento mais
viduo, seja de uma família religiosa. Falo, parasitário.
mais fundamentalmente, de "profissiona- Sabe-se que a formação hoje se centra
lismo", de ser o que se é, de levar a sério a no estudo, sobrando pouco tempo para o
própria profissão religiosa. É isso que pre- trabalho (dentro ou fora da comunidade).
cisa inculcar no formando: um mínimo de Gasta-se um rio de dinheiro para a forma-
"consciência profissional". ção, sobretudo quando se trata de frades
Ora, um religioso é wn verdadeiro "pro- clérigos. (Meu ecônomo provincial calcu-
fissional": em primeiro lugar, um "profissio- la que a formação, desde o 2° grau, de um
nal do Evangelho".É isso que se tem o direi- frade de votos solenes vem a custar perto
to de esperar dele. É a obrigaçao de quem de 100 mil dólares.) E o pior é que o frade,
fez "profissao" religiosa: a de viver coeren- sustentado assim de modo tão patemalis-
temente seus votos. Tem que viver realmen- tico, cresce com uma mentalidade quase
te empenhado nisso, com toda a "compe- infantil a respeito da vida e do que cus-
tência". Portanto, antes de tudo, que viva ta em termos de trabalho e ganha-pao. E
como frade, que reze e dê exemplo de depois de todo esse investimento, quando
evangelismo. Depois, e mais concretamen- se espera que o frade enfim pronto, vá
te, é um profissional de uma atividade que ajudar a "carregar o peso e o ardor do dia", .-
u
seja útil e produtiva. O tipo de trabalho eis que se manda, deixando os trabalha-
pode variar: pode ser trabalho intelectual dores das primeiras horas com todo o ser- <u
ou artístico, trabalho pastoral ou entao tra- viço. Pior: com uma petulância incrível e
balho manual, nao importa. O importante uma exigência initada, pede ainda um "di-
é que se ocupe, que se dedíque a qualquer nheiro inicial" - e nao é pouco - para u
coisa de útil, que se aplique deveras a uma recomeçar a vida ...
atividade que sirva aos irmãos. Mas nao tem qualquer coisa de errado
Essa é também a primeira forma de po- em tudo isso? Não se teria que mudar esse o
breza: viver trabalhando e, se possível, do percurso? Se os efeitos são esses (certo, não u
4')
sao só esses), qual é a saída? Quem sabe? ção às atividades comunitárias, pastorais
O certo é que essa que está aí não parece ou culturais, como medida formativa e
adequada, a ver os frutos que produz. Não como forma de contribuição à "reprodu-
se deveria exigir, na formação, um empe- ção ampliada" (para falar como certos eco-
nho moraI mais sério e exigente em rela- nomistas) do próprio Instituto.
A EXIGÊNCIA DA DISCIPLINA
Por fim, não teríamos que repensar o tivos, para ver se "agüentam o tirão"? Mas
conceito de disciplina na formação? Será parece que temos pena deles: Para quê,
que não temos sido vítimas do "permissi- coitadinhos? E a correçao? A mínima pos-
vismo pedagógico" de nosso tempo e que sível, que é para não criar Religiosos
está sendo seriamente revisado, em vista recalcados ...
dos efeitos contraproducentes que está
-
produzindo? E só ver as famílias, como
Às vezes me pergunto, brincando, se
não faz falta aqui a velha "pedagogia do
educam os filhos: fazem -lhes todos os chinelo", com que as boas mães antigas
gostos. - .
entao tomam-se trranetes criaram - e muito bem - seus filhos e
de seus país. Dessa matriz pedagógica filhas. Aliás, muitas manhas ou "frescuras",
saem cidadãos egoístas e pouco sociáveis, como se diz hoje, eram corrigidas com
pessoas problemáticas e dependentes, aqueles métodos simples e sábios, mas que
gente sem um caráter forte e com uma se mostraram tanto eficazes. Não se trata
subjetividade tremendamente fraca, que se de voltar ao antiquado "método do bas-
abala diante da primeira crise. E ei-Ios cor- tão". Penso aqui apenas no "chinelo" -
rendo para o colo da mamãe e para o bolso um instrumento mais humilde, domésti-
do papai ... co e matemo. Exatamente na linha do
Nao é um pouco (ou muito) disso que povo que sabe quando diz: "Patada de cho-
está sucedendo nas nossas casas de for- ca não mata ..." Mas o certo é que esse
mação? Faz-se de tudo para "segurar" os método criava "caráter", o que a pedago-
meninos no convento. Tanto mais que as gia moderna nao sabe nem o que é, para
vocações rareiam ... Mas não se deveria pôr dar valor somente à "liberdade", sem sa-
os jovens à prova, como faziam os antigos ber que está assim pagando pesado ágio
Mestres, sobretudo antes dos votos defini- ideológico ao malfadado liberalismo.
OBEDIÊNCIA E DISPONIBILIDADE
E nem falo ainda do frade que, apesar . -
E- certo que preclsanamos restaurar o
de seu voto de obediência, quer viver como valor espiritual da obediência, além de sua
o
e onde bem lhe apraz e vê o espantalho do importância funcional, que é a de fazer
<o
autoritarismo em qualquer intervençao do andar qualquer instituiçao que queira
Superior. Mas quando um frade desses manter seu sentido de corpo, realiwr sua
deixa a VR, ei-Io feito um cordeirinho, todo missão a contento e garantir seu futuro.
submisso ao patrao, no trabalho, e à mu- Todos sabem como é dificil hoje encon-
> lher, em casa. Aliás, aconteceu que, um trar quem aceite ser superior. Pois seu
frade, que superior nenhum podia aman- cargo parece ter-se reduzido à míserável
o sar, foi amansado, e muito bem, por uma funçao de "descascar abacaxis" ou de fa-
o mulher. Deus sabe o que faz ... zer de "guarda de trânsito". E quando quer
tomar alguma meruaa maIS TOrre, encon- 1amuem russo a slluaçao se apresema
tra-se com as mãos amarradas pela anômala e não pode continuar muito tem-
"indisponibilidade" moral dos frades. po sem exigir alguma mudança.
CONCLUINDO
Essas sao algumas considerações gue) meu mestre S. Tomás, que nao te-
que me vieram à mente, movidas em nha falado ex passione, mas sim cum
parte pelas saídas decepcionantes de passione. Isso sim. E nao tinha razão?
alguns jovens frades. Sem dúvida, estão Julgue você. Mas, o que mais importa
marcadas pelo pathos do momento, aqui é centrar a discussao no tema e nao
mas espero, como recomenda (e distin- nas pessoas. Disse.
-
----------------------~-----------------------
tempo depois da emissao dos votos ou da ro, os olhos nunca vêem muito longe. Dis-
ordenação sacerdotal. O problema é grave sipada, porém, a borrasca, cessadas e seca-
1 Dedico este artigo a meu innão Lúcio. Ele foi religioso e sacerdote. Sua bondade para com as pessoas, >
sobretudo as crianças, sua alegria de viver e gratidão para com Deus e sua simplicidade testemu-
nham-me: ele não é apenas o esposo de Aparecida, o pai de Joãozinho e Mariama. mas um innão para
o
muitos c, sobretudo. um homem que continua amando Jesus Cristo: de todo coração.
2 Kahlil Gibran, Para além das palavras, Paulinas, São Paulo, 1995, p. 48. u
47
das as lágrimas, o olhar alcança distâncias Consiiieraçóes zrulzgruutas sobre a Jor-
maiores e vislumbra detalhes antes imper- rnaflio para a Vuia Religiosa hoje é um
cebidos. Eis porque nos ensina a sabedo- texto provocador e nao é um escrito qual-
ria que devemos dar tempo ao tempo, pois quer, pois traz a assinatura de Frei Clodo-
no turbilhão das emoções só muito rara- vis Bofi', o que, pela incomum competência
mente conseguimos a serenidade de espí- desse teólogo, lhe empresta, por si só e de
rito que as grandes decisões exigem. Isto antemao, um alto percentual de credibi-
vale não apenas para a vida, mas igualmen- lidade. Eis aí a razão dessa primeira rea-
te para o pensar. Nos instantes de muita ção pública ao artigo de Frei Clodovis Bofi',
dor, sabemo-lo, nunca o espírito é longâni- que tive como professor de Teologia e do
me, o bastante, para ir fundo, o necessário, qual aprendi, entre tantas outras coisas,
às raízes do próprio mal-estar. Hoje é mui- que os discursos teológicos tanto valem
to possível que estejamos precisando mais quanto provam, ou só podem ser acei-
de conhecimento que de sentimento, mais tos, se evidenciam aquilo que afirmam.
de análise que dejulgamento, mais de cabe- De resto, a mais alta homenagem que se
ça quede coração...' É para este terreno fir- pode fazer a um pensador é pensar os
me que devemos, agora, carregar o debate. seus pensamentos.
mais humanos. dos, sinais que apontam para Deus. Pois é >
o
7 Mt 6. 6-8.
8 lo 3, 10. u
49
isso, com certeza, o que os homens buscam, Deus, e de cabeça erguida, isto é, dando-
quando se acercam dos ministros da Igreja se conta da vastidão infinita a que somos
e dos religiosos: não tanto pessoas que lhes chamados.
ensinem, infalivelmente, isto ou aquilo, mas Não é demais recordar que foi, exata-
que os ouçam e os compreendam, lá onde mente, esta religiosidade formal e exterior
eles mesmos já nao se entendem nem se o objeto das mais duras críticas de Jesus
suportam mais; pessoas que os ajudem a Cristo. Num combate aberto, destemido e
reencOntrar o sentido de sua própria vida e quase rude, que ao final lhe custou a pró-
o absoluto sentido de todas as coisas; sabe- pria vida, Jesus parece nao ter visto, em
doria do alto, nao preceitos humanos'; evo- Israel, outro mal mais grave do que este: a
caçoes da graça, não ritos e rituais; não depravação da fé a um amontoado de dou-
ventos que racham as montanhas e tem- trinas e rituais assimiláveis e administráveis
pestades que partem as rochas, mas a sua- correta e burocraticamente, mas sem ne-
vidade da brisa da tardelO. nhuma auto-implicação. Sepulcros caia-
Aliás, este tem sido um dos mais graves dos: por fora, de bela aparência, por dentro,
equívocos da formação cristã, na catequese replelXJS de putrefaçao e impurezas de to-
que se oferece aos leigos, como na teolo- das as espécies"; cegos, hipócritas, raça de
gia que prepara para a vida religiosa e para IlÍboras; filhos do demônio'2; piores do que
o sacerdócio: supor que a fé se instala no os coletores de impostos e as prostitutas".
coraçao dos homens na exata proporçao Depositários infiéis, ou guardiães inverti-
em que eles assimilam doutrinas religio- dos, assemelhados a cachorros, que se dei-
sas. Ora, formação espiritual nao é aprendi- tam no cocho dos bois; não comem o capim
zado de informações nem apropriação de nem deixam que os bois comam". O que
tradições e costumes cristãos, assim como terá levado Jesus a tais hostilidades verbais
fé não é primariamente um conjunto de contra os le-gítimos representantes de
ritos e doutrinas, mas uma relação de inti- Deus entre os homens, justamente aque-
midade, reverência e afeição para com o les que, dia após dia, tanto se empenhavam
Mistério da Vida que chamamos Deus e, a no diligente estudo, na meticulosa inter-
partir desta relaçao, um viver e conviver pretação, no vigoroso anúncio, na ciosa tu-
neste mundo sob outras luzes e numa ou- tela da Palavra de Deus e do depositum
tra perspectiva. A fé pode e, usualmente, filiEI? Com certeza, o problema desse grupo
costuma se expressar em comunicações nao era de ordem doutrinal. O próprio Je-
verbais, às vezes, minuciosamente regra- sus concede que seus en-sinamentos eram
das. Entre a fé e seus enunciados, porém, corretos, impecavelmente ortodoxos". Boa
há nao apenas uma diferença, mas um vontade não era igualmente o que lhes fuI-
longo caminho que requer ser percorrido tava. Eles eram de um ardor missionário
u a pés descalços, isto é, suportando a poeira admirável, capazes de percorrer milhas e
e os percalços dos estreitos caminhos para milhas para granjear um só prosélito'6.
9 Mt 15, 9.
10 IR, 19, 11-1 2.
11 Mt 23, 27.
> 12 lo 8, 44.
13 Mt 21,3 1.
14 Jesus de Nazaré, Evangelium Thomae COptiCUfll. 102.
o 15 Mt 23, 3.
u 16 Mt 23, 15.
50
Menos ainda eram seu problema a mOIscl- aesvlO aa re. lIel:uruu Ü4W, ue lllellluwl,
pUna e o cumprimento daquilo que eles uma dessas histórias.
consideravam ser um mandamento de Certa vez, passeando pela China, um
Deus. Milimetricamente meticulosa era jovem estudante europeu conheceu uma
sua observância legal. Mas em tudo isso, menina de rara beleza. Foi um encanta-
Jesus via um desacerto ftmdamental: eles mento mútuo e silencioso, uma vez que
transformavam os meios em fins. Ora, toda um desconhecia o idioma do outro. Isto,
religião, enquanto sistema de expressões porém, não impedira que se tocassem em
sacramentais, rituais, cultuais, verbais e sua alma. O estudante regressa a seu país,
doutrinais, jamais tem sentido em si mes- prometendo, mais a si mesmo do que a
ma. AraZRo última de ser de tudo isso é que ela, retornar um dia, para viver em defini-
os homens, no transcurso dos ritos, no dor- tivo sob as luzes daquele amor. De volta a
so das palavras e nas asas do silêncio re- ('lisa, a ansiosa espera de que o carteiro
ligioso, sejam transportados e colocados lhe trouxesse um primeiro sinal de sua
diante de Deus, experimentando, em si amada. Teria ela, em igual intensidade, se
mesmos, sua graça que conforta, sua força afeiçoado a ele? Tê-lo-ia, quem sabe, es-
que revigora, sua presença que encanta e quecido? Mais alguns dias e chega a pri-
seu mistério que fascina. Aos olhos de Jesus meira carta. O regozijo mal lhe cabe no
Cristo, só é de Deus a religião que for para peito. Os signos ali inscritos, ainda que
os homens: alimento que fortalece a sua completamente ininteligiveis, são como
fragilidade, luz que ilumina o escuro de sua um tesouro inestimável, pois &uardam em
vida e uma senda que os leve a si mesmos si o coração de sua amada. As carreiras,
e a Deus. ele procura um tradutor. Quer saber tudo.
Não há de ter sido por acaso que o O significado ordinário de cada ideograma
evangelista Marcos descreveu como pri- e o seu possível velado sentido. Quem sabe
meiro milagre de Jesus um exorcismo nu- nao estaria ali, cravada no proftmdo de um
ma sinagoga da Galiléia'? De se esperar daqueles sinais, uma declaração de amor.
seria que não existissem demônios e en- Imediatamente, ele responde a carta, di-
demoniados justamente no espaço deste zendo a ela de sua afeiçao e saudade. Car-
tas vêm e vão, até que o jovem começa a
mundo reservado para Deus. Mas existem.
sentir um certo incômodo no fato de ter
E mais assustador ainda se configura o fato
que recorrer sempre a um tradutor. Estaria
de se tratar, na descriçao de Marcos, de
ele descrevendo, com fidelidade, a largueza
um demônio teologicamente erudito e, ao
e a proftmdidade de seu amor? O jovem
que parece, proftmdamente ortodoxo. Ele
começa a estudar chinês. As mensagens
chega a proferir, publicamente, que Jesus
é o Santo de Deus. Da proximidade com
da amada continuam chegando às suas
mãos. Mas a fim de que suas próprias res-
.-
u
Deus, corpo a corpo, porém, e face a face, postas fossem precisas em estilo, beleza e c
ele só quer distância. Significativo. entretons semânticos, ele protela sempre <o
Stiren Aabye Kierkegaard (1813-1855), de novo suas cartas. Os anos se vao. Os es-
filósofo e teólogo dinamarquês, um dos úl- tudos multiplicam-se, acuram-se e culmi-
timos grandes profetas do Cristianismo, nam numa brilhante tese sobre a diversida-
nao se cansou de apontar, em inúmeras e de dialetal da língua chinesa, fazendo da- >
expressivas parábolas, para este nefasto quele jovem um renomado perito em sino- c
o
17 Me I, 21ss. u
51
logia. As leições da amada, porém, submer- repente, somos controntados com tatos
gem na obscuridade de uma vaga lem- . antes insuspeitáveis. Que atrás, por exem-
brança. Vez por outra, sobressaltavam-no plo, da fachada nobre e suntuosa, dissimu-
ainda uma doce saudade e o ligeiro desejo lava-se uma alma em escombros; ou que,
de voltar àquele país, mas os compromis- sob a aparência impoluta e as feições ili-
sos acadêmicos e a idade avançada já não badas, encobria-se um abismo de devassi-
permitiam mais uma tal aventura. Era o dao; ou que, detrás dos gestos majestáti-
triste fim de uma história repleta de pro- cos, apenas disfarçavam-se a invídia, a as-
messas de felicidade: ele domInava agora, túcia, o exibicionismo, a vontade de domi-
notavelmente, a fala da amada, escapara- nio, a vaidade, a cupidez e a vileza de uma
lhe, porém, falar com ela, de coraçao a co- alma'·; ou que, nos subterrâneos dos mo-
raçao, a ponto de perdê-la. Ele aprendeu rallsmos e rigorismos exacerbados, oculta-
por amor e desaprendeu a amar. vam-se abismos de lasávia e volúpia Indus-
Assemelhada a isto é a situação de nao triosos administradores, sentioelas vivazes
poucos sacerdotes e religiosos. Um dia, no da sa doutrina, versadissimos em negócios
passado, nós ainda tremiamos e nos emo- eclesiásticos, in punem hurr/ilnitatis, porém,
cionávamos ao ler, por exemplo, o Sennao pântanos obscuros, no fundo dos quais sapos
da Montanha. Aquilo não era apenas um coaxam melancólicas canções", incapazes
poema galilaico, mas uma convocaçao de posturas humanas elementares, como:
celestial a nos posicionarmos, neste mun- a veracidade humilde, a delicadeza abnega-
do, de uma outra forma e a vermos todas da, as lágrimas sinceras, a límpida castidade,
as coisas a partir de uma outra perspecti- a ternura desprendida, a amizade desinte-
va: não das baixuras e nas penumbras, mas ressada, a pureza de coraçao.
na claridade e das alturas. Um convite à Esta suspensao da subjetividade é o mal
simplicidade da alma e do corpo, à bran- estrutural não apenas da formação, mas
dura nos juíws, nas palavras e nos gestos, maximamente da própria vida religiosa e
à confiança cordial em Deus e nos homens. do sacerdócio. Mais e mais, eles se transfor-
E nós intuíamos que a nossa vida, no se- mam ora em sutis doutores nas coisas reli-
guimento daqueles sagrados apelos, seria giosas, ora em insignes hermeneutas das
infinitamente mais bela, mais rica, mais Sagradas Escrituras, ou ainda em hábeis
feliz e o nosso mundo, um vestIbulo dos arautos das verdades de fé ... para os outros.
céus. Mas na longa marcha a caminho da Eles domInam uma, duas ou três linguas
Montanha, muitos se perderam: uns, no mortas, mas nao sabem decifrar nemmes-
emaranhado de suas análises filológicas, mo a escrita interior, de si mesmos e dos
outros na apropriação dos enunciados da outros vivos. Uma vida - assim lhes foi
.- fé, outros ainda nas informaçoes de como ensinado, na linguagem tipicamente gran-
u
deveria ser a vida para ser verdadeiramen- diloqüente dos ambientes eclesiásticos! -
te religiosa, sem nunca vivê-la realmente. de total doaçao, inteiramente dedicada ao
'0
Também eles se empenharam por amor e anúncio da Palavra de Deus, à ministra-
se esqueceram de amar. ção dos sacramentos, ao cuidado do culto
Todos teríamos nossas histórias para e às atuações caritativas... para os outros.
contar. Convivemos aí, um ano, dois anos, Não surpreende, por isso, que tais seres-
> dez anos, com religiosos e sacerdotes e, de para-os-outros, treinados para saírem de
o 18 cf. Me 7. 21-22.
u 19 Nietzsche, F., Assim falou Zaratustra. p. 96.
2
si mesmos, tenninem lá, para onde loram sacramento da ordem quallhca ontOlOgi-
direcionados: completamente
, . fora-de-si,. camente aquele que o recebe, isto é, o cris-
sem pensamentos propnos, sem sentI- tão é, pela recepçao desse sacramento,
mentos próprios, sem posições próprias, qualificado no seu ser e nao apenas no seu
sem substância própria, verdadeiras cen- fazer. Desse modo, a graça ministerial nao
trifugadoras: um vácuo, cercado por um é algo que dá ao ministro uma função na
amontoado de coisas de todos os lados. comunidade apenas por conveniência ou
Tem razão Nietzsche, em mais uma de necessidade pastoral, mas é um sentir-se
suas mordazes ironias: Para me fazerem chamado por Deus e um ser por Ele agra-
acreditar no seu Salvador, necessário seria ciado. Eisso significa: o cristão, tendo expe-
que cantassem melhores cânticos... neces- rimentado, em sua própria vida, a graça re-
sário seria que eles tivessem um pouco mais dentora de Deus, se dispoe a ser, também
o aspecto de haverem sido, eles mesmos, ele, pastor do Mistério, um arauto de sua
salvoS"'. bondade, um aceno para Deus. O ministé-
O Cristianismo, ao contrário de tudo rio, assim, não é algo exterior ao ser do mi-
isso, quis, desde sua primeira origem, que nistro, uma função para os outros, mas
seus ministros jamais fossem fimcionários quase como uma defluência de sua expe-
e que o sacerdócio, no seu interior, nunca riência existencial da salvação realizada por
mais fosse tradicionado como um ollcio Deus em sua vida e pessoa. O que signifi-
hereditário tribal ou familiar. Em sua dog- ca agora ser ministro e pastor do Mistério
mática, a Igreja sempre entendeu que o entre os homens?
53
exemplo, o dever ou privilégio de rezar o Deus e um deixar cair no regaço de sua
oficio em nome de todo o povo de Deus? ln- bondade nossas lágrimas de tristeza ou ale-
tercessória ou vicariamente? Nao basta gria, resta que também a oração assim dita
dizer que é este o sentido e nao aquele, ou comunitária só tem sentido religioso se for,
que é isto e aquilo. É preciso demonstrá- também ela, profundamente pessoal. Caso
-lo. Caso contrário, a afirmação permane- contrário, ela nao será muito diferente dos
cerá opaca, inevidente ou vazia, corno, nohres saraus líricos da passagem do sé-
aliás, costumam ser não poucas assertivas culo, apenas que, em vez de Cervantes e
que circulam em ambientes religiosos. A Carnões, são lidos poemas egipcios e pa-
inevidências, sahemo·lo, é possível até su- lestinos. Coisas belíssimas, sem dúvidas ...
bordinar-se em suhmissao, mas a elas para quem as aprecia. Mas exigir ou espe-
jamais se entregam, em liberdade, a rar que todos os clérigos e religiosos te-
mente e o coração. Uma oraçao interces- nham sempre, em todos os momentos de
sória compreende-se sem problemas. seu itinerário religioso, todos os dias de sua
Mas o que seria uma oração vicária? For- vida e no badalar das mesmas horas, a
mal e juridicamente, isso é ainda possí- mesma têmpera espiritual para rezar,
vel. Mas como substituir, por exemplo, devotamente, os mesmos salmos, hinos e
um filho 'diante de seu pai? Se cada pes- antífonas, é ter entendido muito pouco do
soa é única e irrepetível, um absoluta- que significa oração e sua essencial impor-
mente outro, nunca será possível colo- tância para os caminhos sombrios e es-
car-se no seu lugar. treitos que nos levam a Deus. Definitiva-
Ou ainda: com persistência, afirma-se mente, não é possível regular com medi-
que o oficio divino é a expressão fraterna das disciplinares as coisas do espírito.
da oração. Isto deve ter algum sentido. Duplicidade23 ou hipocrisia é o que se co-
Qual, porém? Se a vida religiosa se carac- lhe, quando se insiste em arrancar dos
teriza não por suas relações laterais, mas homens aquilo que não brota da verdade
por sua referência a Deus e se a finalidade dos corações. Mas se não for devota, de
da oração não é a coesao fraterna, mas um que vale uma oraçao? O que significa, ago-
recostar os ouvidos da alma no coração de ra, oração comunitária? Como fazê-la?
5. DOS VOTOS OU: NÃO JUREIS DE MODO ALGUM, NEM PELO CÉU NEM
. PELA TERRiL MAS SEJA O VOSSO FALAR: SIM, SIM, NÃO, NÃO.....
Por votos, usualmente, se entende aqui- plicitamente, que não devemos jurar, de for-
lo que Frei Clodovis insinua no seu texto: ma alguma, jamais? Teríamos nós o direito
uma consagraçaoe um solene juramento de anular um mandamento tão inequivo-
·-
u
feitos a Deus, prestados com a mão estendi- camente pronunciado por Jesus, em favor
da sobre os santos evangelhos. Não é possível de nossas tradições, ainda que milenares?
aqui percorrer todas as nuances desta com- As Escrituras Cristãs, entretanto, não
.. preensão, mas talvez seja de alguma ajuda
para o debate colocar uma questao funda-
devem ser usadas corno urna a1java de
flechas e o recurso a elas não nos dispensa
u menta!, a saber: como jurar solenemente o pensar. Por isso é importante ainda uma
sobre o evangelho, no qua! está escrito, ex- segw1da questão. Quais terao sido as ra-
o
23 Na forma como diziam 05 antigos: duplicilas cordis esc aJiud ostendere et aliud intendere.
u 24 Mt 5. 33.37.
54
z.u~ ut:: Jt:;~u;:, pcU<1 l..U1Ul.<ll ;:)UU UlLv1UlLV, .Ll.lV;' .lLo.lIIUIUUV.;J, \,.VUll"141VJ ULo 'iu..... V VVl.V
de forma tao categórica, este costume é uma consagração que se faz a Deus dire-
constitutivo de quase todas as instituições tamente e a mais nínguém. E de Jesus
sociais, o juramento? É como se ele quises- Cristo deveriamos ter aprendido que Deus
se, desta forma, nos convocar à sincerida- não é um deus morto de mortos", mas o
de, em todas as circunstâncias. Que fôsse- Deus vivo dos mortais e que jamais pode-
mos diáfanos, íntegros, desarmados e sim- remos fixá-lo para sempre a partir das ex-
ples e aprendêssemos a fazer da verdade a periências do passado. O que há é um sol-
ambiência e a constância do nosso viver e tar-se corajosamente para dentro deste fas-
não apenas a excepcionalidade de uma cinante experimento chamado vida, no
permanente mentira Eassim não precisás- qual a única segurança é essa: que o encon-
semos mais de convocar Deus ou as Sagra- traremos junto de nós, sempre, lá onde ne-
das Escrituras como uma espécie de garan- le confiarmos e nos lançarmos nos seus
tia sagrada da confiabilidade de nossas afir- braços. Toda deterrnínaçao da essência de
mações ou como uma instância punidora Deus a partir apenas do passado faz deste
para o caso de uma inobservância do que ínefável mistério um objeto de museu e da
dizemos, mas que aquilo que disséssemos fé um tradicionalismo apenas. Se tudo isso
fosse uma destemida expressa0 de nosso que estamos ponderando tem alguma
ser. Para aprender a verdade e mantermo- aceitabilidade, então é possível que ho-
nos na sua proximidade, para isto, sim, pre- mens, de novo, se decidam e rompam um
cisamos muito de Deus e de seu Evangelho. juramento, mesmo se feito a Deus e na
Assim entendido, o voto, que podemos melhor das intenções, porque agora perce-
emitir, está muito mais perto do desejo e bem que, por amor ao próprio Deus e à
da oração do que da promessa e do jura- imprevisibilidade da própria vida, nunca
mento. Uma prece que nasce do mais fun- deveriam tê-lo feito. Verdadeiramente: a
do de nossa própria indigência: que aqui- cada dia, basta o seu cuidado!"
lo que ora experimentamos como supre- Em 1875, Emile Zola publicou uma
ma alegria e graça, a fraternidade dos ho- obra que acabou inscrita no índice dos li-
mens e a proximidade de Deus, perdure vros proibidos pela Igreja Católica: Ocrime
todas as horas de nossos dias, todos os dias de Padre Mouret. Aí, Zola conta a história
de nossa vida, eternidade adentro. Caso de Padre Sérgio Mouret, pároco de uma
contrário, estariamos fazendo do voto uma pequena aldeia no sopé das montanhas
clausura em que alguém se recolhe, por de Paradou, que, no empenho rigoroso de
exemplo, aos vinte e cinco anos de idade, seguir o Crucificado e a VIrgem Maria, ar-
afiançando estar ali, et pereat mundus, ruínara quase a sua saúde. Seu médico lhe
também aos setenta e cinco anos ou mais, prescreve um longo repouso no alto das .-
como se todo o resto de sua vida fosse montanhas e o entrega aos cuidados da u
o
25 Cf. Me 12, 27.
26 Mt 6, 34e. u
55
curado de seus males, vOlta para sua VIla e aenaçao. t'eJmmqueeucuorurmnrtujrul!-
retoma a rotina de sua vida paroquial. To- te com um ci/[eio, que eu me prostre a vos-
do seu esforço se concentra, agora, em es- sos pés e que fique aí imóvel até que a morte
quecer as montanhas e seus encantos. É me apodreça. A terra já não existirá, o sol
Albina que, depois de semanas, vai à aldeia, ter-se-á apagado. Eu nao verei mais, não
entra na Igreja e aí o encontra, prostrado ouvirei mais, não sentirei mais. Nada deste
aos pés de Cristo. Pousando-lhe a mão no mundo miserável virá desviar a minha
ombro, ela diz: Sérgio, vim te buscar. Eu te alma da vossa adoração. E voltando-se
esperei todas as manhãs, todas as tardes, para Albina, diz: Tu tens razão, isto é uma
contei os dias, depois deixei de contá-los, tumba, a morte está aqui, é a morte que eu
passaram-se semanas. Então, quando sou- quero, a morte que liberta, que salva de to-
be que tu nao irias, eu vim. Disse de mim das as perdições. Ouve, eu nego a vida, re-
para mim: leuá-lo-ei comigo. Dá-meas tuas cuso-a. As tuas flores cheiram mal, o teu sol
mãos, vamo-nos embora. Decide-te. Nao há cega, o teu jardim é uma abominaçao. Tu
necessidade de tantas reflexões. Levo-te co- mentes quando falas de amor, de luz, de
migo. Por Deus, é simples. O caminho até vida bem-aventurada, no fundo do teu pa-
as montanhas não é cômodo, mas eu vim /ácio de verdura. Ali só há trevas. Tu vés,
sozinha por ele. Auxiliar-nas-emas quan- esta igreja é bem pequena, mas é maior do
do formos dois. Estaremos ali como em que o teu jardim, do que o vale, do que a
nossa casa. Vamos, avia-te que eu espero. terra inteira. A morte é o que eu quero,
Lentamente, Padre Mouret se levanta, en- a mor-te de tudo, com o céu ávido para re-
costa-se no altar e diz; Nao, tu te enganas, ceber as nossas almas, por cima das ruínas
eu pertenço a Deus. Saiamos daqui. A nos- do mundo. Com a voz embargada, Padre
sa presença neste lugar é um escándalo. Mouret empurra Albina para fora da Igre-
Estamos na casa de Deus. Ferida, Albina ja. No limiar das portas sagradas, ela se
grita: De Deus? Não conheço o teu Deus volta e lhe diz: Todos os dias, ao pôr do sol,
nem o quero conhecer, se ele te rouba de eu irei até o fundo do jardim e lá te espera-
mim, que nenhum mal lhe fiz. Que Deus é rei. Padre Mouretvolta para a capela e con-
esse que faz os homens chorarem? Cresci templa o Crucificado. Desta vez, a face de
feliz. Olhava para os ninhos, sem tocar nos Jesus parecia esboçar um ligeiro sorriso de
ovos. Nao colhia flores, receosa de fazer benevolência. Pela primeira vez em sua
sangrar as plantas. Bem sabes que nunca vida, Padre Mouret conversa com o seu
peguei num inseto, com medo de o ator- Senhor, de coração a coração. Descreve-
mentar. Então por que se encolerizaria Deus Lhe então Albina, sua bondade, sua bele-
contra mim? Lembra-te de Paradou, as za e confessa Àquele que conhece o mais
grandes roseiras, as abelhas, as borboletas secreto recanto da alma de cada um: Eu a
.- e quando tu murmuravas: como a vida é amo, eu a amo. Sede bom, Senhor, restituí-
o
boa. A vida eram as ervas, as árvores, as ma! Partido ao meio, Padre Mouret adoe-
águas, o céu, o sol que banhava de luz os ce mais uma vez. E desespera-se ao saber
nossos corpos. A vida era Paradou. Aqui, que Albina esperava dele wna criança, fi-
estás numa tumba. Vem, amar-nos-emos lha dos encantos da última primavera, no
o no amor de todas as coisas. Padre Mouret alto de Paradou. Ele sobe às montanhas,
> afasta-se de Albina e retira-se para a cape- decidido a colocar fim a wn possível es-
la dos mortos e, aí de joelhos, reza: Jesus, cândalo, se necessário fosse entregando-
o que morrestes por nós, dizei a ela o nosso se à morte, junto com Albina. Eu me sinto,
o nada. Dizei-lhe que somos pó, lama, con- Albina, confessa-lhe Padre Mouret, como
56
os santos ae peara nos ntcnos ae mmna aefernam aona el, uomme, ef 1UX: perpetua
igreja: saturados de incenso até às entra- luceat eiP
nhas. Eu sou como um deles. Tenho incen- É agora de se perguntar e responder:
so até na última dobra de minha alma. É qual terá sido a infâmia, o pecado de Pa-
esse embalsamamento que constitui a mi-
-
nha serenidade. E a morte que eu desejo, é
dre Mouret? Que ele tenha sido infiel, en- .
tregando-se ao amor de uma mulher ou
a paz do não viver que eu quero. Permane- que ele tenha sido inescrupulosamente
cerei frio, rígido, com o sorriso sem fim dos cruel, a ponto de matar não apenas o amor,
meus lábios de granito, impotente para des- mas também a própria amada? O que é
cer para o meio dos homens. Tal é o meu pior: o perjúrio e a perfídia contra um voto
desejo. Com a face lívida de terror, perple- ou a injúria e a insídia contra a vida? Não
xa com o que ouve, Albina sussurra: O que será também culpa e pecado, observar ri-
estás dizendo, Sérgio? Acaso vieste para di- gorosa e inflexivelmente um juramento, ao
zer-me adeus? Do alto da montanha, ela preço da própria vida? Não poderia alguém
aponta para os vales e diz: Vê, Paradou não tomar-se também culpado por não querer
morreu. E o que foi que fizemos que deves- ser outra coisa senão apenas fiel, fixado,
se agora ser expiodo com a morte? Do jar- obcecado, completamente entregue à roti-
dim' dos prados, da floresta, das grandes na de uma rigida moral, fazendo tudo mui-
rochas, do vasto céu, acenava-lhes, como to corretamente na exterioridade, enquan-
numa última chance, a oferenda da feli- to na interioridade tudo vai se desorgani-
cidade. Padre Mouret chora. Albina sente- zando? Esta inquietante possibilidade, nao
lhe no olhar a sua alma já morta e, num será também ela possível?
derradeiro esforço para devolver-lhe a vida,
ela fita longamente o seu vulto. Padre Claro que existem pessoas que se tor-
Mouret nada mais tem senão uma face pe- nam culpadas por romperem juramentos
trificada e as palavras: Deixa-me, Albina! e propósitos, mas o contrário também po-
Em voz baixa, ela lhe diz: Vai, Sérgio, vai de ser verdade: que nos tomemos irrepa-
embora. Tu não estás morto, tu és a morte. ravelmente culpados por nao termos tido
Sem se voltar uma única vez, Padre Mouret jamais a coragem de transgredir preceitos e
desce as montanhas. A noite caia, trans- normas, na improvável ou frágil esperança
formando o jardim de Paradou num gran- de que, do outro lado dessa transgressão,
de túmulo de sombras. Albina se despede seríamos, quem sabe, mais humildes e mais
das flores e das árvores, dos vales e dos humanos e estaríamos mais perto de Deus,
céus e se mata, levando consigo o seu pró- por termos experimentado - ao menos
prio filho. Horas depois, lá estavam eles: isto! - a largueza de sua misericórdia'" e
Albina e seu filho nao nascido, mortos, e percebido, finalmente, finalmente, que, se .-
Padre Sérgio Mouret, no exercício de suas vivemos ainda, não é por virtude de nossos u
sagradas funções, sereno e frio como uma méritos ou pelo mérito de nossas virtudes,
estátua de granito, impassível como a pró- mas por pura graça. Nunca será demais <u
pria morte, piedoso e solene como só os recordar: ao final de nossa vida, ensinava-
eclesiarcas sabem sê-lo, rezando: Requiem noslesus Cristo", seremos perguntados não
u
57
pelas tantas nounas que observamos ou amamos, E agora, o que significa, diante de
transgredimos, mas pelo muito ou nada que Deus, um voto?
u 30 Mt 7, 23b.
licadeza, de uma castidade que brote da aquilo que ela realmente é: um sacramen-
abundância da cordialidade e não de me- to de Deus? Isto seria, com certeza, a su-
dos, de infantilismos ou de uma aversao blimidade e a harmonia da própria con-
ao mundo e às criaturas, a mesma, aliás, cupiscência. Mas para isto é necessário,
de Jesus Cristo. E o primeiro passo para metafraseando o que diz Frei Clodovis, que
isto seria considerar aquilo que Ele mes- tenhamos a coragem de chercher la femme,
mo nos diz num passo aparentemente isto é, buscar e tomar em nossos braços a
enigmático, mas de uma extraordinária anima, a delicadeza e a sensibilidade•
de
clarividência humana: Cuidado com os de- nós mesmos e de todas as coisas. E preci-
mônios que se vão para o deserto. Eles so, de fato, termos, primeiramente, uma
nunco ficam lá. E, se ao vagarem, encon- grande alma, para tratarmos, adequada-
trarem a sua morada de origem desocupa- mente, das coisas do corpo.
da, bem varrida e ordenada, eles volUlm e, O interesse pela coisa em causa obrigar-
sete vezes piores do que eram, ali se insUl- nos-ia ainda a refletir numa outra direção,
Iam". É preciso, portanto, em primeiro que não podemos, agora, senão apenas
lugar, acolher junto a si tudo aquilo que mencionar. Trata-se de averiguar também
este daimon, a sexualidade, significa. a outra parte: e os que permanecem na
Numa linguagem, quiçá, menos alusiva e vida religiosa e no sacerdócio, move-os
mais direta, como propõe Frei Clodovis: é sempre a fidelidade a Deus e os sagrados
claro que, para o varao, o corpo de uma propósitos que, um dia, indubitavelmente,
mulher jamais deixará de ser um objeto para ali os condllziram? Sob as vestimentas
de desejos e de volúpia. Mas ele pode da firme constância, nao poderia simular-
também ser um lugar, em que experimen- -se tibieza ou, quem sabe, apenas medo e
tamos uma proximidade sincera de cora- o despreparo para um novo recomeço? E
çoes. E que tal se aprendêssemos a con- serão os intactos, aqueles que, austera e
templar uma mulher não como um ins- escrupulosamente, jamais adulteraranl,
trumentum diabol~ que rouba para si co- sempre castos? O que dizer de todos aque-
raçoes consagrados a Cristo", mas como les religiosos de pensamentos túrgidos, de
31 Mt 12, 43·45.
32 Frei Clodovis afirma: Se um frade não tem um gra"de amor a Jesus Cristo e ao seu Reino. o amor de
qualquer mulher facilmente lhe roubará o coração. Se bem entendo, está aqui uma variante da reflexão
clássica sobre a virgindade consagrada e o celibato, ·segundo a qual os ministros católicos e os religi-
osos e rel igiosas não se casam, para servir a Deus tato corde ou corde indiviso. Sobre isso, já escreve-
mos noutro lugar: O motivo do coração indiviso, não por acaso alicerçado no obscuro capítulo 7 da
primeira carta de Paulo aos Corfntios, é uma imprecisão antropológica e uma inverdade teológica.
Pois o coração humano, quando verdadeiramente tal, nunca é divisível. Ou ele ama a todos, homens
e Deus, ou não ama ninguém. Além disso, Deus e homem - assim crê e confessa o cristianismo! -
não são grandezas antagônicas e concorrenciais, de tal sorte que, para amar a Deus de todo o coração,
.-
preci sássemos deixar de fora do âmbito de nossa cordialidade os homens; ou quanto mais amássemos
um a pessoa em concreto, menos espaço restaria em n ós para o amor de Deus, Bem ao contrário, o c
que estreita o coração é a incurvação em si mesmo, a mediocridade e o legalismo . O amor, nunca.-Pois
quanto mais amamos, mais se alarga o nosso coração. em todas as direções. E quanto mais amável
nos é qualquer coisa deste mundo, mais translúcidos nos tomamos para Deus, nós e toda a realidade,
'...
e mais junto d'Ele nos sentimos. Quando amamos uma pessoa e com ela partilhamos nossa vida, de
corpo e alma, nunca ela nos será um entrave no caminho para Deus, Antes, sua presença em nossa
vida é como uma janela aberta, através da qual podemos, do recolhimento de nossa morada, contem- >
plar o céu, Os que, um dia, amaram alguém, ou ainda amam, sabem disso: quando, em paz, estamos c
nos braços do amor, tudo é, então, como se os céus, suavemente, descessem à terra e nos envolvessem
com suas bênçãos, ou como se a terra, alada de leveza, se transfigurasse numa parcela do céu e o
fôssemos beijados pelo infinito .
omares aevassos, ae palavras lITeverenres pouco ae lUZ e umplOeZ! l\illoa que sejam
e levianas e de espíritos tenebrosos, .inca- abstinentes nos seus corpos, serao eles
pazes de olhar para alguém com um puros de coração?
33 Me 9, SOco I
o 34 Não será esta a origem das palavras assustadoras ouvidas por Frei Clodovis: Não tive coragem de falar
antes? Que atmosfera é esta e o que a produz?
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aa ale L.,CllIlUIl, para se aVISlaf (;U[[1 U L.afIUS us rrurtrtus erurunflID, "UiS que eu, lwre-
VII, O Oauphin. Carlos não acredita no que mente, abjure às minhas visões e diga sim
ouve. Como entregar o seu exército, que já às vossas insinuações, vós nao podereis, ja-
fora uma vez humilhantemente derrotado mais. Sempre surgirá, aprendei, em algum
pela supremacia dos ingleses, aos sonhos lugar deste mundn, alguém que haverá de
de uma menina? Eu nan posso fazer isso, ter a coragem de dizer: nan! Mesmo se um
eu tenho medo, confessa-lhe Carlos. Ótimo, dia a fé ficar pesada como chumbo e já nao
Carlos, que tu tenhas medo, revida-Ihe mais existir quem consiga suportá-la, ha-
Joana, isto prova que és um jovem inteligen- verá sempre, nalgum lugar, um resto de co-
te. Imagina todos os motivos de teu medo, ragem e alguém que dirá: não. No dia 30
tudo. Imaginou? Atravessa-os agora! No de maio de 1431, JoanaO'Arc é excomun-
momento em que tiveres traspassado todns gada pela Igreja e entregue, como bruxa, à
os teus medns, serás forte. Ouve, eu não es- execução na fogueira, por causa de sua in-
tou aqui para oferecer crendices, loucuras e subordinação e desobediência aos seus su-
bruxarias. Mas este é o meu segredo: do ou- periores eclesiásticos. A lenda conta que,
tro lado de nossos medos, aguarda-nos enquanto subiam aos céus as últimas nu-
Deus, de braços abertos. Nossos adversários vens de fumaça de seu corpo cremado, um
é que, então, terão medo e irao, com certeza, dos soldados de Joana, gargalhando à face
recuar diante de nossa coragem. Por um dos algozes da Pucelle, a Donzela, como
instante, a fé vence todos os temores e Car- ela mesma costumava se chamar, gritou:
los confia à menina Joana o seu exército. Esses idiotas! Eles acreditam poder queimar
Em apenas dois meses, ela expulsa os in- Joana, transformar em cinzas Joana Dflrc.
gleses de Orleans e conduz Carlos VII à Todns os anos, na primavera, erguem-sedns
Catedral de Reims para ser coroado rei dos campos da França, rumo ao céu, milhares
franceses. Multo breve, porém, começam de andorinhas e cantam lá do alto as can-
as intrigas. Joana é traída, entregue aos in- tigas de sua liberdade. Pode custar séculos,
gleses e encarcerada numa prisão em mas, um dia, alguém escutará o seu canto
Rouen. As acusações se concentram na de- e se levantará, dns campos da França, na
núncia de bruxaria: ela teria conseguido busca de sua liberdade. Sempre será possí-
suas vitórias por um pacto com o demô- vel sacrificar o corpo de uma menina, mas
nio. O bispo de Beauvais, Peter Cauchon, queimar numa fogueira, para sempre, os
conduz os processos. Eu me submeto a to- sonhos humanos de liberdade, com certe-
• •
das as leis da Igreja e me subordino a todas za, JamaIs.
as suas dnutrinas, exclama aos seus inquisi- Vmte e cinco anos depois da tragédia,
dores a indefesa e soberana Joana O'Arc, em 1431, a Igreja anula o processo contra
mas de meus sonhos e ações eu nao me dis- Joana O'Arc, considerando-o injusto. .-
tancio um só instante. Lembrai-vos de Pro- Em 16 de maio de 1920, isto é, 489 anos o
meteu: acorrentadn a uma rocha, seus olhos depois daquele assassinato, a Igreja decla-
ficaram até o fim fixos no céu, a suprema ra como santa aquela que ela'mesma ha-
verdade de sua vida, mesmo quando os via condenado à morte, irreparavelmente,
abutres lhe deooravam as vísceras. Vós po- como bruxa. Se esta canonizaçao foi um
deis fazer de mim o que quiserdes. Podeis pouco mais do que apenas um gesto di-
torturar-me, arrancar-medns lábios todn e plomático da Igreja Católica para com a >
qualquer tipo de confissão, extorquir-me França, então deveria a Igreja publicamen- c
insanas afirmaçoes, forçar -me às mais per- te declarar e penitentemente confessar que o
versas contradiçoes, revirar, como abutres, ela errou de forma dramática, ao ajuizar o
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4.ue UIS !jUllHU::; t:; u:; lt:;llU~ Ué14Ut::lcl. Ult;UlllQ J.<lYcl.U • .L:.ri:lLv c; V.lU6aJ. \;OUI \.j,U .... L.I .... u.:J upu...... u ...
eram diabólicos apenas porque eles esta- falar-nos suas palavras, ãs vezes arcaicas,
vam em desacordo com as ordens, as dis- às vezes novas: no profundo das dores e
posiçoes e os interesses dos administra- alegrias nossas e dos outros, no percurso
dores eclesiásticos. Então ela deveria, co- das sinceras buscas e nos trâmites da pró-
rajosamente, afirmar que obediência, en- pria biografia, nas experiências e nos pro-
quanto caminho para a santidade e para cessos que nos tornam mais humanos e
Deus, é, sim, obediência aos irmãos e ir- nos embalos da história de todos nós. E o
mãs, mas, pelo menos em igual medida, que significam, agora, obediência e disci-
obediência também à voz do próprio co- plina no seio da Igreja de Jesus Cristo?
35 Mt 5. 41.
o
36 Me 5. 1-20.
u 37 lo 3, 8.
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l.1wsesse Ueus que tosse assun tambem mwtos casos, se tornou a Vl<la reuglOsa.
conosco, ao sobrevir a noite de nossas vi- Ao final, porém, ficará sempre uma brecha
das: que voássemos todos para uni mes- por onde muitos passarão, nas asas da sua
mo lugar e nos reencontrássemos, provin- inaprisionávelliberdade, acatemos ou nao
dos de todos os cantos do mundo, de to- as suas razões. A nós, os que ficamos, resta
das as aventuras e desventuras, os perdi- varrer, todas as tardes, com o olhar de nos-
dos e os santos, os corretos e os tortuosos, sa saudade os horiwntes do mundo: quem
e nos recolhêssemos à sombra protetora sabe, eles voltem, um dia, para nos saudar
da Grande árvore e todos contássemos as e dizer que nunca deixamos de ser irmãos,
nossas histórias e, finalmente, percebês- pois houve, em seu caminhar, um perma-
semos que, em todas as errâncias e acer- necer junto a nós, assim como bem pode-
tos, o que buscávamos era o mesmo que ria haver, em nosso permanecer, um cami-
todos: o Sumo Bem. nhar junto deles38•
Nao "cabe a nós reter os que querem ir, No cristianismo, sempre foi vista como
precoce ou tardiamente; menos ainda ajui- uma obra de misericórdia cobrir os nus,
zar em caráter definitivo sobre a qualida- isto é, recobrir o opróbrio de uma indigên-
de de sua decisão. A última palavra sobre cia e proteger, em recato, a intimidade de
os homens é mesmo de Deus apenas. cada um. É o que poderíamos fazer com
Todas as nossas considerações serao sem- todos os que erram: cobri-los com o leve
pre penúltimas e .parciais. Dentro desses manto do perdao, a fim de que, um dia,
limites, podemos e devemos analisar, por sejamos, com misericórdia, acolhidos por
exemplo, as possíveis insuficiências e defi- aquele que conhece a cada um de nós, in-
ciências do processo formativo para a vida finitamente melhor do que nós mesmos.
religiosa e para o sacerdócio. É necessário Pois todos somos pobres, miseráveis e dig-
apontar, sim, para a superficialidade da- nos de uma piedade tão vasta, profunda e
queles que pensam que o sagrado é lun infinita quando o céu que nos envolve. Mas
parque de diversões. É indispensável tam- podemos ser grandes ou, com certeza,
bém lançar um olhar crítico sobre as pró- maiores do que nos prescrevem nossas
prias instituiçoes religiosas, que, impeni- próprias mediocridades e as estreitezas de
tentemente, não raro, se recusam a admi- nosso cotidiano ou do que nós mesmos
tir a sua própria parcela de culpa na deser- arnscamos crer.
çao de nao poucos e insistem em qua1ifi- As atas do Concílio de Basel (1432) re-
car, indiscriminadamente, as desistências gistraram uma prece feita por Nicolaus
da vida religiosa como um problema pri- Cusanus (140l-1464), canonista, matemá- .-
vado dos individuos e da sua incapacida- tico, filósofo, teólogo, bispo e cardeal, um
de de corresponder aos ideais da vida cris- homem de densa espiritualidade e de uma c
belos a aventura e o risco nas sendas da aponta nao apenas para o que deveria ser o
esperança do que as certeLlls e seguranças a formação para a vida religiosa e o sacer- >
num UlÚverso frio e inumano, como, em dócio, mas como é o próprio itinerário de c
o
38 Lc 15.11·32.
63
wna atIna vara ueu~ . .c.1 1a;
4
.1 U, Jt:fLft,VI '1uu,IUM.J t.u u:; LUI"'~C:;;LC:;;I t;;.)", u IIH;;.:llUV, c;;. "fIM:
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64
linhas inspiradoras:
1) Espiritualidade integradora de diversas dimensões
da vida e geradora de compromisso;
2) Experiência de discipulado no processo formativo;
3) Dialogo com os diferentes sujeitos ClJlturais;
4) Inculturação do ser e da missão da Vida Religiosa;
5) Solidariedade cristã nas questões de gênero, etnia,
exclusão e meio ambiente;
6) Solidariedade profética e qualificada;
7) Vida comunitária personalizada e participativa;
8) Juventude e futuro.