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SOBRE AS INFLUÊNCIAS DE KELSEN PARA O CONTROLE DE

CONSTITUCIONALIDADE: DA TEORIA PURA DO DIREITO À IDÉIA DE


TRIBUNAL CONSTITUCIONAL E SUAS PERSPECTIVAS EM FACE DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO – UMA ANÁLISE

Mônia Clarissa Hennig Leal∗

RESUMO

Pretende-se, com este trabalho, fazer um enfrentamento da posição kelseniana de controle de


constitucionalidade, em face do Estado Democrático de Direito e da nova teoria
constitucional, demonstrando a insuficiência axiológica que se impõe na teoria do autor da
Teoria Pura do Direito.

PALAVRAS-CHAVE: TEORIA PURA DO DIREITO, CONTROLE DE


CONSTITUCIONALIDADE, ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

ABSTRACT

It’s the intent of this work make an analysis of the constitution control sistem in Kelsen in
face of the Democratic State of Law and the new constitutional theory, showing how
insuficient the Pure Theory of Law is in the axiological ambit.

KEYWORDS: PURE THEORY OF LAW, JUDICIAL REVIEW, DEMOCRATIC STATE.

Introdução

Hans Kelsen é, indubitavelmente, um dos grandes juristas deste século, apesar de ser
criticado por seu ferrenho positivismo. Mais do que nunca, portanto, interessante estudar as
posições do autor acerca de determinados aspectos de um tema de extrema relevância na
conjuntura jurídica hodierna, que é o do controle da constitucionalidade das leis.


Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, com pesquisa realizada junto à
Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, na Alemanha. Pesquisadora conveniada da cátedra de Direito Público e
do Estado da Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, em parceria com o Prof. Dr. Winfried Brugger. Professora
da disciplina de Jurisdição Constitucional do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e de Direito
Constitucional na Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional aberta”, vinculado e financiado pelo CNPq. Advogada.
2

Pretendemos, com este trabalho, demonstrar a contribuição deixada pelo jurista


austríaco a partir das colocações exaradas em sua obra Teoria Pura do Direito, para então
enfrentar sua postura com a da atual Teoria Constitucional, considerada sob o âmbito do
Estado Democrático de Direito.

Assim, no primeiro item, fazemos uma explanação da teoria kelseniana, usando como
referência a obra acima mencionada1, já ressaltando algumas questões de relevo para o ponto
seguinte, quando analisamos a noção do controle de constitucionalidade em Kelsen, para, em
seguida, fazer um enfrentamento de suas possibilidades em face do Estado Democrático de
Direito, demonstrando-se quais os principais avanços ocorridos e, especialmente, pontuando-
se quais as perspectivas e limitações da postura de Kelsen frente ao modelo de Estado
constitucional vigente no Brasil.

1 O controle de constitucionalidade em Kelsen

Para se trabalhar com a idéia de controle de constitucionalidade em Kelsen, mister é


que, primeiro, se proceda a uma revisão acerca de suas idéias sobre o que seja, efetivamente, a
própria Constituição e como ela se insere na estrutura jurídica.

Num primeiro momento, dentro de sua dinâmica jurídica2, o autor nos dá os


fundamentos para um controle formal da constitucionalidade, quando afirma, referindo a
particularidade que possui o Direito de regular sua própria criação3, existir uma estrutura
escalonada na ordem jurídica4, razão pela qual

uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma
determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma,
5
representando esta outra norma o fundamento de validade daquela.

1
Teoria Pura do Direito.
2
O autor, distingue, na Teoria Pura do Direito, a Estática Jurídica (que trabalha com o conteúdo do Direito) e a
Dinâmica Juridica, que trata, essencialmente, do fenômeno de produção das normas jurídicas, produção essa que
se dá, sempre, no âmbito do próprio sistema – ou seja, uma norma regula a produção de outra norma, que por sua
vez serve como fundamento de uma outra norma, e assim por diante.
3
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Babtista Machado. 6. ed. Coimbra: Armenio
Amado, 1984. p. 309.
4
Apresenta-se aqui a tradicional concepção piramidal das normas jurídicas. “A ordem jurídica não é um sistema
de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção
escalonada.” Ibidem, p. 310.
3

Ressalta o autor austríaco, ainda, existir uma distinção entre Constituição em sentido
formal e em sentido material, pois ela não só contém normas que regulam a produção de
normas gerais, mas também normas que se referem a outros assuntos politicamente
importantes, preceitos em razão dos quais as normas nela contidas não podem ser revogadas
ou alteradas pela mesma forma que as leis simples, mas somente através de processo especial,
submetido a requisitos mais severos:

Tudo isso sob o pressuposto de que a simples lei não tenha força para derrogar a lei
constitucional que determina a sua produção e o seu conteúdo. (...) Quer isto dizer
que a Constituição prescreve para a sua modificação ou supressão um processo mais
exigente, diferente do processo legislativo usual; que, além da forma legislativa,
6
existe uma específica forma constitucional.

Tem-se, portanto, já aqui, aberta a possibilidade de um sistema de controle de


constitucionalidade, com base na hierarquia superior da Constituição, inclusive com
fundamento em questões materiais, o que vai se revelar de extrema importância para nossa
análise posterior, dentro do contexto de um Estado Democrático de Direito.

Neste sentido, contudo, Kelsen, em seu extremado formalismo, cria um hiato entre a
essência (superior) da Constituição e a legislação ordinária, ao admitir a aplicação do
princípio lex posteriori derrogat priori, sustentando a existência de uma contradictio in
adjecto quando se diz ser uma lei válida contrária à Constituição, sob o argumento de que
uma lei somente pode ser válida com fundamento na Constituição. Em seu entendimento, se
uma lei é válida, o é com fundamento na Constituição; se contrária a ela, não pode sequer ser
tida como norma, eis que inválida e, portanto, juridicamente inexistente:

Quando se tem fundamento para aceitar a validade de uma lei, o fundamento da sua
validade tem de residir na Constituição. De uma lei inválida não se pode, porém,
afirmar que ela é contrária à Constituição, pois uma lei inválida não é sequer uma
7
lei.

Entende ele que o único sentido jurídico possível da inconstitucionalidade de uma lei é
o de que ela, de acordo com a Constituição, pode ser revogada (tanto por uma lei posterior
como por meio de um processo especial). Enquanto, porém, “não for revogada, tem de ser

5
KELSEN, loc. cit.
6
Ibidem, pp. 312-313 passim.
7
Ibidem, p. 367.
4

considerada como válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional.”8 Diante de tal
assertiva, retira ele da Constituição enquanto norma superior qualquer elemento político e
axiológico que reflita seu caráter de pacto constitutivo da sociedade. O procedimento
sobrepõe-se ao conteúdo.9

Prossegue o jurista, neste sentido, referindo que o legislador constitucional tem de ter
em conta que “as normas constitucionais não serão respeitadas sempre e totalmente”10. Daí
ser fundamental a existência de um órgão capaz e competente de julgar as hipóteses de
violação da Constituição, como forma de resguardá-la, cuja legitimidade deve ser dada por ela
própria: “Com efeito, nessa hipótese, a norma que lhes confere competência para estabelecer
estas normas é pressuposta como Constituição válida.”11

Uma vez postos os fundamentos teóricos para a existência de um controle de


constitucionalidade no pensamento de Kelsen, passaremos, agora, a discorrer sobre alguns
aspectos que constituem o sistema de controle idealizado pelo pensador austríaco e que viria a
ser um dos referenciais centrais da jurisdição constitucional atual, em sua vertente
concentrada.

2 A construção do sistema de constitucionalidade kelseniano

Visando a instrumentalizar as pretensões e exigências representadas pelo momento


histórico vivenciado no início do Século XX, Kelsen12 acaba sustentando a existência de um
órgão específico13, encarregado de executar a guarda da Constituição, posição que, conforme
já dissemos, acabou, enfim, prevalecendo como referência para a criação e operacionalização
dos Tribunais Constitucionais atuais.

8
Ibidem, p. 368.
9
Já no Estado Democrático de Direito, como assevera STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 218, “O juiz (e o operador jurídico lato sensu) somente está sujeito à lei
enquanto válida, quer dizer, coerente com o conteúdo material da Constituição.”
10
Ibidem, loc. cit.
11
Ibidem, p. 374.
12
Ver o texto “Wer soll der Hüter der Verfassung sein?” (“Quem deve ser o guardião da Constituição”),
publicado na revista Die Justiz, Heft 11-12, vol. VI, pp. 576-628.
13
A construção de Kelsen acerca da jurisdição constitucional é marcada pelo célebre debate travado com Carl
Schmitt acerca de quem deve ser o guardião da Constituição, sustentando a criação de um órgão autônomo a ser
encarregado da guarda da Constituição: o Tribunal Constitucional; já o segundo sustentava que caberia ao
Führer tal tarefa, por ser ela, eminentemente, de natureza política. Acerca desta questão, ver nossa obra LEAL,
Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição constitucional aberta. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
5

Tal sistema, ao adotar uma lógica concentrada de controle, difere, por sua vez, da
judicial review americana – de caráter difuso – em aspectos decisivos, pois confia a um único
tribunal, o Tribunal Constitucional, a tarefa de preservar a Constituição.

Esta variação esconde, todavia, uma profunda significação por detrás de sua simples
aparência prática: se a desconfiança com relação aos juízes levou à radicalização, na França,
do controle de constitucionalidade – onde o mesmo é feito em caráter preventivo, por um
tribunal de natureza política – essa mesma desconfiança levou, em outro nível, à exclusão dos
juízes ordinários na maioria dos países da Europa, através do estabelecimento de Tribunais
Constitucionais, que se localizam fora da estrutura do Poder Judiciário.

Assim, na Europa, nem sequer chegou a se colocar a opção entre um sistema


concentrado e o sistema difuso14; a decisão pelo primeiro deveu-se, portanto, muito mais a
questões de ordem política do que a aspectos técnicos (como a ausência do stare decisis, por
exemplo, que não permitiria a tais decisões a extensão do efeito erga omnes).

Em face da desconfiança com relação ao Poder Judiciário, Kelsen idealizou o controle


de constitucionalidade como uma função não propriamente judicial, senão de “legislação
negativa”, a partir do momento em que cabe, a este órgão, analisar tão-somente o problema
(puramente abstrato) de compatibilidade lógica entre a lei e a norma constitucional. Trata-se,
por conseguinte, de uma atividade que se aproxima da do legislador, porquanto não supõe
uma decisão singular e concreta (típica da atividade judicial). Neste sistema, a lei é
considerada válida até que se declare a sua inconstitucionalidade, de maneira que se trata,
mais notadamente, de uma anulabilidade – com efeitos erga omnes para o futuro – do que de
um vício de nulidade, retroativo (como pressupõe o controle difuso).

Além disso, ao incumbir o Poder Legislativo da indicação dos seus membros, buscou-se
construir, a partir do resgate da noção de volonté générale, uma legitimidade e legitimação
indiretas para este novo órgão15, adotando-se, assim, uma compreensão que destaca a

14
STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002. p. 305.
15
Registre-se que, na maioria dos países, a indicação dos integrantes do referido tribunal é feita pelo Parlamento,
constituindo-se de mandato fixo. Ver HAAS, Evelyn. La posición de los magistrados de la Corte Constitucional
6

supremacia da Constituição, porém sem comprometer a essência do mito da soberania


legislativa, tão caro ao direito continental europeu.16

Deste modo, o Tribunal Constitucional, de concorrente do Parlamento, acaba sendo


colocado como o seu complemento lógico, realizando não uma apreciação com relação ao
conteúdo da lei, mas tão-somente analisando a sua validade (daí se dizer que ele atua como
um “legislador negativo”).

Enfim, diante do exposto, pode-se concluir que, para Kelsen17, em seu sistema
idealizado, o poder legislativo se dividiu em dois órgãos distintos: o primeiro é o Parlamento,
titular da iniciativa política; o outro é o Tribunal Constitucional, que elimina, para manter a
coerência do sistema, as leis que não respeitam a Constituição.18

Nesta perspectiva, a invalidez da lei não aparece como efeito da Constituição, mas sim
da decisão do legislador negativo, de modo que não haveria, aí, qualquer conflito. Em meio a
este processo, a Constituição perde sua natureza judicial, ficando os órgãos judiciais afastados
dela e de sua força normativa e restando vinculados somente às leis e regulamentos que o
legislador negativo vai paulatinamente depurando.

Ficam estabelecidas por Kelsen, portanto, as bases para a existência de um controle de


constitucionalidade, que vai se aperfeiçoar ao longo do tempo, vindo a adquirir uma posição
de profunda relevância no sistema jurídico atual, onde seus horizontes se ampliam para dar
lugar a um sistema de controle mais amplo, lastreado, fundamentalmente, na materialidade da
Constituição.

3 O Estado Democrático de Direito e suas perspectivas de controle da Constituição

Federal alemana y su significado para la vida jurídica y la sociedad. In: Anuario de Derecho Constitucional
Latinoamericano. 10ª edición. Montevideo: Konrad Adenauer, 2004. p. 104.
16
Tal fato ganha destaque, sobretudo, na percepção de Enterría, ao se ter presente o risco que representava a
adoção de um sistema de controle de constitucionalidade das leis, especialmente na Alemanha, onde as posições
românticas da Escola Livre do Direito alimentavam uma revolta dos juízes contra a lei. Cf. ENTERRÍA,
Eduardo García de. La constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1985. p. 58.
17
KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Tradução de Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.
124.
18
Enterría, op. cit., p. 59.
7

Dentro do contexto de uma ordem democrática19, a questão do controle de


constitucionalidade adquire profunda relevância, principalmente se se considerar que, no
âmbito jurídico, “a grande ‘descoberta’ do pensamento moderno está nas Cartas
Constitucionais, entendidas como lex superior”20, cuja grande inovação não se encontra na
idéia em si mesma, mas no caráter universal por ela assumido neste período, principalmente a
partir da Constituição norte-americana de 1787.

Esta norma constitucional, por sua vez, dá estrutura (organização) ao Estado, estabelece
a forma de elaboração das outras normas e fixa os direitos e as responsabilidades
fundamentais dos indivíduos. Por tudo isto, ela passa a ser reconhecida como Lei
Fundamental21, por ser a base de todo o direito positivo da comunidade que a adota, em
especial naqueles países que possuem um sistema jurídico baseado na lei escrita, sobrepondo-
se aos demais atos normativos por estar situada no vértice da pirâmide jurídica22 que
representa idealmente o conjunto de normas jurídicas vigentes em determinado espaço
territorial.

Em face de tais argumentos, é possível dizer que a Constituição é o complexo de


normas fundamentais de um dado ordenamento jurídico, ou a ordem jurídica fundamental da
comunidade – como diz Konrad Hesse23 – acrescentando, ainda, que ela estabelece os
pressupostos de criação, de vigência e de execução das normas do resto do ordenamento
jurídico, determinando amplamente seu conteúdo, bem como se converte em elemento de
unidade do ordenamento jurídico da comunidade em seu conjunto, no seio do qual vem a
impedir tanto o isolamento do Direito Constitucional de outras parcelas do Direito como a
existência isolada dessas parcelas do Direito entre si.24

19
Aqui tendo como referência disposições normativas, tais como a estabelecida pelo art. 1º da Constituição de
1988.
20
CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito Comparado. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1992. p. 10. Segundo o autor, esta descoberta não pode ser considerada em
sentido absoluto, pois a idéia já apresentava alguns precedentes antigos de supremacia de algumas leis tidas
como ‘fundamentais’ sobre outras, com na Grécia, por exemplo, onde o nómos (lei em sentido estrito), quando
em contraste com um pséfisma (decreto), prevalecia sobre este último.
21
Sobre o conceito de Constituição e sua evolução histórica, ver nossa obra LEAL, Mônia Clarissa Hennig. A
Constituição como princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. São Paulo: Manole, 2003.
22
Note-se que, apesar de se fazer presente aqui a idéia kelseniana de superioridade hierárquica da Constituição
dentro da estrutura escalonada da ordem jurídica, esta perspectiva se amplia, assumindo um caráter mais
substancial, de caráter eminentemente político.
23
HESSE, Konrad. Die normative Kraft der Verfassung. Freiburger Antrittsvorlesung. Tübingen: Mohr, 1959.
24
Idem. Escritos de Derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1996, p.167.
8

Justamente por ser a Constituição, vista aqui no seu conteúdo normativo, aquele
complexo de normas jurídicas fundamentais, escritas ou não, capaz de traçar as linhas mestras
do mesmo ordenamento, é que se dá a ela a denominação de Lei Fundamental, porque nela é
que estão exarados os pressupostos jurídicos básicos e necessários à organização do Estado,
além da previsão das regras asseguradoras de inúmeros direitos aos cidadãos, colocando-se
ela, em razão disso, como base, como ponto de partida e como fundamento de validade de
todo o ordenamento jurídico.25

Enquanto norma reguladora, por sua vez, a Constituição Federal é composta de


princípios e de regras, sendo ambos, na concepção de Alexy26, espécies do gênero norma
jurídica e, portanto, dotados de normatividade. Não há distinção entre princípios e normas. As
normas compreendem regras e princípios, de modo que a distinção relevante não é, como nos
primórdios da doutrina, entre princípios e normas, mas entre regras e princípios:

tanto las reglas como los principios son normas porque ambos dicen lo que debe ser.
Ambos pueden ser formulados con la ayuda de las expresiones deónticas básicas del
mandato, la permisión y la prohibición. Los princípios, al igual que las reglas, son
razones para juicios concretos de deber ser, aun cuando sean razones de un tipo muy
diferente. La distinción entre reglas y principios es pues una distinción entre dos
tipos de normas.

Para Canotilho27, ainda,

se a Constituição vale como lei, se o Direito Constitucional é Direito Positivo, então


as regras e princípios constitucionais devem obter normatividade, regulando jurídica
e especificamente as relações da vida, dirigindo as condutas e dando segurança a
expectativas de comportamento.

Prosseguindo em sua análise, afirma o autor português que às normas programáticas28 é


reconhecido um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da

25
Conforme reflexão de HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.
Porto Alegre: Fabris, 1997.
26
ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Versión de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro
de Estudios Constitucionales, 1997. p. 83.
27
CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1995. p. 156.
28
É preciso ressaltar que nos referimos, aqui, à posição original do autor português, representada, dentre outras,
pela obra supra citada, e não sua revisão crítica intitulada “Rever ou romper com a Constituição Dirigente?
Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo” (publicada nos Cadernos de Direito Constitucional e
Ciência Política, n. 15, pp. 7-17), onde afirma que “mesmo que as Constituições continuem a ser
simbolicamente a magna carta de identidade nacional, a sua força normativa terá parcialmente de ceder perante
novos fenótipos político-organizatórios, e adequar-se, no plano político e no plano normativo, aos esquemas
regulativos das novas ‘associações abertas de Estados nacionais abertos’.” Propõe ele, por conseguinte, a
9

Constituição, pois, uma vez sendo o Direito Constitucional positivo, é possível falar em
“Constituição como norma” ou em “força normativa da Constituição”, de modo que suas
normas vinculam, necessariamente, o legislador, os órgãos de concretização e os poderes
públicos.

Corroborando este entendimento, as palavras de Paulo Bonavides29, para quem

a corrente de idéias mais idôneas do Direito Constitucional contemporâneo parece


ser indubitavelmente aquela que, em matéria de Constituição rígida, perfilha ou
reconhece a eficácia vinculante das normas programáticas, pois sem este
reconhecimento, jamais será possível proclamar a natureza jurídica da
Constituição, ocorrendo em conseqüência a quebra de sua unidade normativa, visto
que se deve ter em vista as palavras de Rui Barbosa, que acentuam que “Não há
numa Constituição, proposições ociosas, sem força cogente.

E continua, classificando esta concepção como pós-positivista, assim caracterizada:

nesta fase, os princípios passam ser tratados como Direito, acentuando nas novas
constituições a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal
normativo sobre o qual se assenta todo o edifício dos novos sistemas
30
constitucionais.

Isto significa dizer que eles valem diretamente contra a lei, quando esta estabelece
restrições em desconformidade com seus preceitos, implicando na inconstitucionalidade de
todos os dispositivos legais contrários31, inclusive de ordem constitucional.32

Segundo Marcic33, a remissão expressa do texto constitucional a alguns princípios de


direito suprapositivo, como a proteção da dignidade humana, a defesa da igualdade como

substituição de um direito autoritariamente dirigente, mas ineficaz, por outras fórmulas (como os contratos) que
permitam completar o projeto da modernidade nas condições da pós-modernidade.
A tentativa de explicação da idéia de “morte” da Constituição dirigente aparece, aliás, em resposta às inúmeras
críticas tecidas – principalmente por parte do constitucionalismo brasileiro, como Canotilho refere
expressamente no texto – em um artigo intitulado “O Estado adjetivado e a Teoria da Constituição”, onde o
autor justifica que o que morreu é a “Constituição metanarrativa”, entendida, com base na condição pós-moderna
de Lyotard, como aquela “omnicompreensiva” e “totalizante”, que confere à história um significado certo e
unívoco. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Estado adjetivado e a Teoria da Constituição. In: Revista
Interesse Público 17, vol. 5, jan/fev de 2003. p. 20.
O que importa, aqui, contudo, independentemente dos desdobramentos teóricos posteriores, é que o referido
autor português exerceu enorme influência no meio constitucional brasileiro exatamente com base na defesa da
Constituição Dirigente.
29
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 211.
30
Ibidem, p. 224.
31
Canotilho, op. cit., p. 186.
32
BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Tradução de José Manuel M. Cardoso da Costa.
Coimbra: Almedina, 1994. pp. 27-28.
10

concretização do princípio de justiça material, demonstra que a Constituição limitou-se aqui a


incorporar postulados jurídicos superiores. Tais princípios superiores restringem a própria
soberania do Constituinte e, fundamentalmente, a do legislador infraconstitucional.

Tem-se, por conseguinte, a partir da teoria constitucional contemporânea, uma


ampliação da concepção de Constituição, no sentido de se incorporarem a ela, à sua força
normativa, elementos essencialmente axiológicos, positivados e expressos na forma da
normas-princípio, estendendo-se, conseqüentemente, o limite das possibilidades do controle
de constitucionalidade em relação ao admitido por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito.

Esta concepção, que se afasta de um conceito de Constituição puramente formal,


também é reconhecida atualmente em sede jurisprudencial, principalmente por parte dos
Tribunais Constitucionais alemães, como se pode depreender do seguinte julgado, proferido
pelo Verfassungsgerichtshof da Baviera já em 195034:

A nulidade inclusivamente de uma disposição constitucional não está a priori e por


definição excluída pelo facto de tal disposição, ela própria, ser parte integrante da
Constituição. Há princípios constitucionais tão elementares, que obrigam o próprio
legislador constitucional e que, por infracção deles, outras disposições da
35
Constituição sem a mesma dignidade podem ser nulas.

Diante do exposto, é possível concluir que, segundo esta nova perspectiva da teoria
constitucional, uma vez sendo os princípios constitucionais portadores de valor normativo,
seu conteúdo, necessariamente, deve servir como referencial axiológico ao controle de
constitucionalidade, impondo-se a declaração de inconstitucionalidade em face de princípio,
por parte dos Tribunais competentes, seja no âmbito da legislação infraconstitucional, seja no
âmbito da legislação constitucional.36

Neste sentido, em nível de Brasil, tem o Supremo Tribunal Federal tido um


comportamento um tanto quanto paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que reconhece a

33
MARCIC, René. Vom Gesetzesstaat zum Richterstaat. Viena: [s.n.], 1957. p. 130.
34
In MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 115.
35
Posição esta ratificada em inúmeros julgados posteriores, como se pode ver em Bachof, 1994, p. 30 et seq.
36
Como no caso das Emendas Constitucionais, por exemplo.
11

inconstitucionalidade de Emenda Constitucional37, sequer conhece do recurso extraordinário


interposto com fundamento na violação de princípio constitucional.38

É possível concluir, daí, que grande parte da doutrina constitucional brasileira ainda não
incorporou, de forma efetiva, a vinculação aos princípios constitucionais, adotando uma
postura conservadora perante a nova realidade posta pela nova ordem constitucional.
Colocam-se com propriedade, aqui, as palavras de Barroso39, para quem

Não se escapou, aqui, de uma das patologias crônicas da hermenêutica


constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura
interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique
tão parecido quanto possível com o antigo.

Assim, em face dos novos elementos de teoria constitucional, impõe-se uma teoria
constitucional mais ampla, lastreada em princípios (vinculantes), que conduzem a uma efetiva
implementação do Estado Democrático de Direito:

Como topos hermenêutico, o texto constitucional deve ser visto em sua


substancialidade, com toda principiologia que assegura o Estado Social e o plus
normativo que é o Estado Democrático de Direito, que aparece já no artigo primeiro
40
de seu texto.

Enfim, pode-se concluir que, dentro deste novo contexto, o controle de


constitucionalidade passa a ser um dos mais importantes mecanismos de implementação da
força normativa da Constituição, para o que se exige seja ele feito à luz de seus valores
principiológicos, eis que

a interpretação conforme a Constituição é mais do que princípio, é um princípio


imanente da Constituição, até porque não há nada mais imanente a uma Constituição
do que a obrigação de que todas as normas do sistema sejam de acordo com ela
interpretadas. Desse modo, em sendo um princípio (imanente), os juizes e tribunais
41
não podem sonegar a sua aplicação, sob pena de violação da própria Constituição.

37
Cf. BARROSO, Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 152, no domínio das
relações entre os Poderes, o STF exerceu a competência de declarar a inconstitucionalidade de emenda
constitucional, votada pelo Congresso, sob o fundamento de que o poder constituinte derivado é subordinado à
Constituição originária, não podendo violar claúsulas pétreas.
38
Nas palavras de STRECK, Lênio Luiz. Os meios de acesso do cidadão à jurisdição constitucional: os
paradoxos da inefetividade do sistema jurídico brasileiro. In: SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de (org.).
Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. pp. 249-294, “cabe registrar que o
Supremo Tribunal Federal não admite a interposição de recurso extraordinário por violação de princípio...”
39
Barroso, op. cit., p. 160.
40
Streck, op. cit., p. 16.
41
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 221.
12

Tem-se, conseguintemente, como claro que as perspectivas do controle de


constitucionalidade são inerentes ao modelo de Estado vigente em cada momento histórico,
exigindo uma grande ampliação no Estado Democrático de Direito, onde a concepção
positivista kelseniana não se afigura como suficiente, pois desprovida do caráter
principiológico necessário à sua implementação.

Conclusão

A partir do estudo realizado em Hans Kelsen, na obra Teoria Pura do Direito, percebe-
se claramente a grande contribuição do autor para a justificação jurídica da existência do
controle de constitucionalidade, a partir da supremacia da Constituição dentro da estrutura
escalonada do ordenamento jurídico.

O autor trabalha, neste aspecto, tanto com o pressuposto de uma Constituição formal
como com o de uma Constituição material, conforme já referimos; mas, ao inserir o tema no
capítulo da dinâmica jurídica, que trata essencialmente da produção e reprodução das normas
jurídicas pelo próprio sistema jurídico (lembre-se que o autor assinala a peculiaridade que
possui o Direito de regular a sua própria produção), deixa ele evidente a supremacia do
aspecto formal, deixando em segundo plano a questão material e desconsiderando, por
completo, a dimensão axiológica42, o que se justifica, essencialmente, em razão de sua opção
epistemológica de se dedicar ao estudo da Ciência do Direito, e não ao Direito43. Não tinha
ele, dentro deste contexto, qualquer preocupação com o conteúdo da Constituição, com seu
elemento político, pois “Estas determinações representam a forma da Constituição que, como
forma, pode assumir qualquer conteúdo.”44

Já no contexto do Estado Democrático de Direito, a ‘essência da Constituição’ afigura-


se como imprescindível ao controle de constitucionalidade, que pressupõe o alargamento das
bases constitucionais no sentido de incluir, em sua referência, os princípios constitucionais e

42
Refere ele que dentro destas normas cabe qualquer conteúdo, seja ele bom ou mau.
43
Este sim, o Direito, foi tratado na obra Teoria Geral das Normas, ao contrário da Teoria Pura do Direito, que
versa sobre a Ciência do Direito.
44
Kelsen, op. cit., p. 311.
13

as normas tidas por programáticas45, estabelecendo novos paradigmas para a implementação e


a concretização constitucional.

Apesar, pois, de suas contribuições para a Ciência do Direito, o controle de


constitucionalidade kelseniano apresenta-se como insuficiente, uma vez que privilegia o
aspecto formal, sendo que o Estado Democrático de Direito reclama uma extremada
valorização da materialidade da Constituição, como forma de assegurar a implementação de
suas diretrizes e preceitos. A Constituição não é meramente forma, mas essencialmente
conteúdo, um “pacto de civilidade, produto da volonté générale de um povo”46 e como tal
deve ser considerada enquanto critério de validade das demais normas.

Referências

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45
Normas estas que, nas palavras de CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional. 4. ed.
Coimbra: Almedina, 1989. p. 132, não são programáticas, porque “Todos os dispositivos constitucionais são
vinculativos e têm eficácia, podendo-se afirmar que hoje não há mais normas programáticas. As assim
denominadas ‘normas programáticas’ não são o que lhes assinalava a doutrina tradicional (...); às normas
programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da
Constituição.”
46
Nas palavras de STRECK, Lênio Luiz., em aula proferida no segundo trimestre de 2000 no Curso de Mestrado
em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC.
14

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito


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