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Boletim Formação em Psicanálise

PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE

ISSN 1517-4506

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INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE
Departamento Formação em Psicanálise

COMISSÃO DE COORDENAÇÃO GERAL, GESTÃO 2013/2014


Armando Colognese Junior (coordenador), Lineu Matos Silveira (primeiro secretário),
Cecília Noemí Morrelli F. de Camargo (segunda secratária), Antônio Sérgio Gonçalves
(primeiro tesoureiro), Antônio Geraldo de Abreu Filho (segundo tesoureiro)

COMISSÃO DE PUBLICAÇÃO
Valesca Bragoto Bertanha (coordenadora)
Aline Choueke Turnowski (suplente)

Revista Boletim Formação em Psicanálise


EDITOR
José Carlos Garcia

COMISSÃO EDITORIAL
Aline Choueke Turnowski, Antonio Geraldo de Abreu Filho, José Carlos Garcia, Lucianne Sant’Anna de Menezes,
Margarida Azevedo Dupas, Maria Augusta Steffen Toniolo, Talita Minervino Pereira, Valesca Bragotto Bertanha

CONSELHO EDITORIAL
Cassandra Pereira França (Universidade Federal de Minas Gerais), Claudia Paula Leicand (Instituto Sedes Sapientiae), Durval Mazzei
Nogueira Filho (Instituto Sedes Sapientiae, GREA/Instituto de Psiquiatria da USP), Ede de Oliveira (Instituto Sedes Sapientiae,
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos), Eliane Michelini Marraccini (Instituto Sedes Sapientiae), Emir Tomazelli (Instituto
Sedes Sapientiae), Flávio Carvalho Ferraz (Instituto Sedes Sapientiae), Francisca Isabel Teixeira (Instituto Sedes Sapientiae, Socie-
dade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), Fuad Kyrillos Neto (Universidade Federal de São João Del Rei), José Carlos Garcia
(Instituto Sedes Sapientiae), José F. Miguel H. Bairrão (Universidade de São Paulo/Ribeirão Preto), Lineu Matos Silveira (Instituto
Sedes Sapientiae), Lucianne Sant’Anna de Menezes (Instituto Sedes Sapientiae, Universidade Federal de Uberlândia), Maria Bea-
triz Romano de Godoy (Instituto Sedes Sapientiae, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo), Maria Lúcia Castilho Romera
(Universidade Federal de Uberlândia), Marina Ferreira da Rosa Ribeiro (Instituto Sedes Sapientiae), Marly T. M. Goulart (Instituto
Sedes Sapientiae), Marta Cerruti (Instituto Sedes Sapientiae), Nora de Miguelez (Instituto Sedes Sapientiae), Sonia Maria Parente
(Instituto Sedes Sapientiae, Universidade Ibirapuera), Suzana Alves Viana (Instituto Sedes Sapientiae), Tiago H. Rodrigues Rocha
(Universidade Federal do Triângulo Mineiro) Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte (CIP)
Instituto Brasileiro de Informação em Ciências e Tecnologia
GRUPO DE DIVULGAÇÃO : Margaret Simas Ramos
Marques GRUPO DE ENTREVISTAS: Talita Nacif (coordenadora), Boletim formação em psicanálise / Instituto Sedes Sapientiae,
Departamento Formação em Psicanálise. – Vol. 1, no. 1 (maio/jun. 1992)
Marina Fibe de Cicco, Mariana Ali Mies GRUPO DE PUBLICAÇÃO
– . São Paulo: O Departamento, 1992-
DE LIVROS: Lucianne Sant’Anna de Menezes (coordenadora),
Ana Raquel Bueno Moraes Ribeiro, Luciana Bocayuva Ano XXI, v.21, (jan./dez. 2013)
Khair GRUPO DE RESENHAS: Emir Tomazelli, Mônica Salgado Anual
(coordenadora) GRUPO DE REVISÃO DE TRADUÇÃO: Maria Periodicidade bianual de 1992 a 1994; anual a partir desta data.
Julia Arantes (coordenadora), Nora de Miguelez OFICINA DE ISSN 1517-4506
TEXTOS: Lineu Matos Silveira JORNAL ACTO-FALHO: Luciana
Khair (coordenadora), Fernanda Zacharewicz, Talita Rodrigues 1. Psicanálise – Periódicos. 1. Instituto Sedes Sapientiae.
Departamento Formação em Psicanálise.
Marques REVISÃO PORTUGUÊS: Stella Regina Azevedo Alves dos
CDU 159.964.2 (05)
Anjos DIAGRAMAÇÃO: Wellington Carlos Leardini PROJETO
CAPA: Silvia Massaro PROJETO GRÁFICO: Esper Leon JORNALISTA
Indexação: Index Psi Periódicos (www.bvs-psi.org.br)
RESPONSÁVEL: Marcos Daniel Cézari – MTPS 11.193

INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE


Rua Ministro Godoy, 1484
05015-900, São Paulo, SP
(11) 3866-2730
www.sedes.org.br / sedes@sedes.org.br

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DEPARTAMENTO FORMAÇÃO
EM PSICANÁLISE

O Departamento Formação em Psicanálise tem por finalidade desenvolver


atividades de caráter formativo, científico, cultural e de pesquisa em psica-
nálise, de acordo com a Carta de Princípios do Instituto Sedes Sapientiae. Ele
tem como fundamento prover a formação continuada de seus membros, cons-
tituindo-se como um espaço de pertinência para alunos, ex-alunos e profes-
sores, propiciando interlocução com o Instituto Sedes e com a comunidade
psicanalítica em geral.
Oferece dois cursos regulares, abertos a psicólogos, médicos e profis-
sionais com formação universitária: Formação em Psicanálise e Fundamentos da
Psicanálise e sua Prática Clínica.
Além desses cursos, o Departamento promove cursos breves, pesqui-
sas, grupos de estudo, eventos científico-culturais, além de publicar a revista
Boletim Formação em Psicanálise e o jornal Acto Falho. Participa também da
Clínica Psicológica Social do Instituto Sedes Sapientiae.
Sua organização é realizada através do trabalho de comissões, eleitas
a cada dois anos entre seus membros. As comissões que compõem o Conse-
lho Deliberativo do Departamento são: Coordenação, Curso, Clínica, Eventos,
Divulgação, Publicação, Projetos e Pesquisa, e Alunos. Essas comissões têm
funções específicas e o objetivo de refletir, discutir entre seus pares e imple-
mentar projetos que possam garantir que as propostas do Departamento se-
jam colocadas em execução.

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CURSO FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE

Corpo Docente
Armando Colognese Júnior, Cecília Noemi Morelli de Camargo, Durval Mazzei
Nogueira Filho, Ede Oliveira Silva, Eliane Michelini Marraccini, Emir Tomazelli,
Ésio dos Reis Filho, Homero Vetorazzo Filho, José Carlos Garcia, Ligia Valdés
Gomez, Maria Beatriz Romano de Godoy, Maria Cristina Perdomo, Maria Helena
Saleme, Maria Luiza Scrosoppi Persicano, Maria Teresa Scandell Rocco, Nora
Susmanscky de Miguelez, Oscar Miguelez, Suzana Alves Viana, Vera Luíza
Horta Warchavchik.

Objetivos
Curso de especialização, que tem como objetivo a formação de psicanalis-
tas. Busca transmitir a Psicanálise em sua especificidade, com base nos três
elementos essenciais da formação: análise pessoal, supervisão e estudo crí-
tico da teoria psicanalítica a partir dos aportes das escolas francesa e inglesa.
Visa desenvolver a escuta transferencial, considerando o sujeito em sua sin-
gularidade. Trabalha a clínica psicanalítica, desde a descrição clássica feita
por Freud até as formas de sofrimento observadas na contemporaneidade.

Destinado a
Psicólogos, médicos e profissionais com formação universitária, com expe-
riência pessoal em análise individual e com percurso na teoria psicanalítica.

Conteúdo programático
1. Seminários teóricos: Formações do inconsciente, O inconsciente, Pulsões,
Narcisismo, As identificações, Neurose obsessiva e histeria, O Complexo de
Édipo em Freud, Angústia, Superego e Édipo Kleinianos, Teoria das Posi-
ções e Inveja em M. Klein, Perversão e Psicose em Freud e em M. Klein;
2. Seminários clínicos;
3. Supervisão individual (no 4º ano);
4. Monografia de conclusão de curso: com orientação individual, a ser realizada
após a finalização dos seminários teóricos e clínicos;

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5. Estágio opcional na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae, sujeito à
seleção e contando com supervisão específica;
6. Formação continuada: atividades extracurriculares e no Departamento;
7. Acompanhamento clínico: opcional para os alunos do 1o ano, no qual se tra-
balha em pequenos grupos a articulação da escuta clínica com os artigos
sobre o método psicanalítico;
8. Realização de análise pessoal: obrigatória durante o curso.

Duração
O curso regular tem duração de quatro anos.

Carga horária do curso


731 horas.

Horário/concentração
Quartas-feiras, com média de seis horas/aula semanais e mais uma hora e
meia de atividades.

Seleção
Duas entrevistas individuais. Apresentação de curriculum vitae (contendo foto)
em duas cópias e um breve texto, no qual justifique sua a busca por esta for-
mação (um para cada entrevistador).

FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE E SUA PRÁTICA CLÍNICA

Corpo docente
Antonio Geraldo de Abreu Filho, Berenice Neri Blanes, Celina Giacomelli, Ma-
ria Salete Abrão Nunes da Silva, Maria Tereza Viscarri Montserrat, Patrícia
Leirner Argelazi.

Objetivos
O curso propõe trabalhar os conceitos que fundamentam a Psicaná-
lise e que servem de alicerce à sua prática. Pretende, com isso, fornecer

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informação que preencha lacunas a quem já algo conheça e fundamentos
a quem desconhece, estimulando o interesse na continuidade do estudo,
permitindo que uma eventual formação sistemática no futuro se faça sobre
uma base mais sólida.

Destinado a
Àqueles que se interessam pela Psicanálise e que pretendam uma iniciação
ao seu estudo: médicos, psicólogos e profissionais com formação universitá-
ria em geral.

Conteúdo programático
1. Especificidade da Psicanálise: Psiquismo e corpo, Terapias medicamentosas,
Psicoterapias e Psicanálise;
2. A Divisão do Sujeito: Dois conceitos fundamentais: Inconsciente e Pulsão,
Aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente, o ponto de
vista tópico, O Recalque: Desejo, conflito e defesa. Pontos de vista dinâmico
e econômico, Discussão clínica;
3. Formações do Inconsciente: Atos falhos, sonhos e sintomas, Discussão clínica;
4. Ponto de vista estrutural: Complexo de Édipo / Identificações, Segunda Teo-
ria Tópica;
5. Neurose, Psicose e Perversão: Neurose, Psicose, Perversão, Uma introdução à
psicopatologia psicanalítica, Discussão de casos: um estudo comparativo,
6. Questões da Clínica: A situação analítica, Transferência e contratransferên-
cia, Resistência, A interpretação;
7. O Analista: Diferenças entre formação e informação.
8. O tripé da formação analítica: Análise do analista, supervisão e estudo da
teoria.

Duração
um ano.

Carga horária do curso


68 horas.

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Observação
O segundo ano é opcional e será oferecido para aqueles que cursaram o pri-
meiro ano, que tenham interesse na continuidade de seus estudos. Médicos e
psicólogos, que optem por dar continuidade ao curso, poderão se candidatar à
seleção de estágio na Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae.

Mais informações:
Secretaria do Instituto Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godói, 1484
05015-900 - Perdizes, São Paulo/SP
(11) 3866 2730
www.sedes.org.br / sedes@sedes.org.br

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EDITORIAL

É com muita satisfação que lançamos este número comemorativo dos


vinte anos de nossa revista. Procuramos recuperar uma parte da produção des-
tes anos de existência através de alguns textos de membros do Departamento
que abordavam a questão da técnica em psicanálise. Trata-se aqui, antes de
qualquer coisa, de compartilhar a experiência de ser analista e a implicação
que ela carrega de que cada sujeito segue a sina de revelar sua própria ver-
dade desejante e que sofre por isso de variadas formas, todas absolutamente
particulares desse sujeito. Freud nos legou um poderoso instrumento para a
escuta desse sujeito a partir do que ele chamou de manifestações do incons-
ciente. Sim por que o sujeito de que se trata aqui não é daquele que diz eu sou,
eu posso, eu penso, ou eu sinto, mas daquele sujeito que aparece fugazmente
na emergência de um ato falho por trás do que se pretendia ter dito: o sujeito
do inconsciente. O mesmo sujeito que terá, também, sua manifestação reve-
lada nos sonhos, nos esquecimentos, nos chistes e nos sintomas.
Os textos retratam o processo através do qual cada analista busca re-
conhecer-se diante de seus limites e suportar as vivências de impotência que
toda experiência analítica nos faz experimentar. Revelam ainda como cada
analista busca desenvolver um comprometimento ético para com a singulari-
dade do ser desejante de seu paciente afastando-se assim da armadilha narcí-
sica de situar-se como modelo para o mesmo. É claro que não estou falando de
nenhuma condição absoluta do ser analista o que implicaria inevitavelmente
numa compreensão distorcida e onipotente da posição do mesmo, já que ne-
nhum de nós pode se eximir de equívocos os quais, afinal, podem ser instru-
mentalmente úteis numa análise que se mantenha viva e criativa.
Percorre-se também nos artigos um certo liame das múltiplas apre-
ensões teóricas que formam parte do Departamento e, especialmente, dos
cursos do mesmo já que os autores deste número são, na quase totalidade,
professores do Departamento. Tem-se, portanto, uma oportunidade interes-
sante de acompanhar as elaborações teóricas que permitem aos autores pensar

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metapsicologicamente a sua experiência clínica a fim de poder elaborá-la e
continuar refletindo sobre tudo o que está implicado em seu ofício. É também
uma chance de estabelecer trocas com os colegas de forma a se enriquecer e
enriquecê-los especialmente diante da possibilidade de pensar diferente e dos
questionamentos salutares que isto traz.
A experiência de expor o pensamento clínico de um grupo é extrema-
mente rica, pois permite a interlocução entre analistas enquanto relatamos o
nosso próprio fazer analítico. Trata-se de um momento muito fértil, pois pode
nos franquear a oportunidade de escaparmos do recrudescimento de posições
meramente dogmáticas.
É importante que nos lembremos de que ser analista nos dias de hoje
implica fazer valer um discurso que está longe de ser o dominante. As cha-
madas neurociências e seus apadrinhados, por exemplo, as teorias cognitivo-
-comportamentais, ocupam um espaço bastante significativo no campo das
proposições terapêuticas. Recebendo amplo apoio midiático por conta dos in-
teresses a que atendem.
Nos tempos atuais, lidar consigo mesmo e com a realidade aponta ir-
refreavelmente para o imediato da urgência, e isto acaba gerando uma grande
intolerância para com o acolhimento do sujeito e suas necessidades; de forma
alguma capazes de atendimento instantâneo.
Poderíamos mesmo dizer, sem risco de exagero, que de certa forma o
sujeito do inconsciente e seus efeitos foram recolocados pelas neurociências
na mesma condição em que estavam antes dos trabalhos de Freud, ou seja,
voltaram a ser vistos como uma espécie de subproduto defeituoso da bioquí-
mica cerebral e que, portanto, nada tem a dizer ou revelar sobre a pessoa em
questão que pudesse ter sentido prático.
Qualquer sofrimento, portanto, precisa ser afastado pela intervenção
imediata e potente de um remédio que nos redima do mesmo, não importando
que isto possa significar o silenciamento do sujeito desejante e de sua verdade
singular por conta, única e exclusivamente, do arrefecimento dos sintomas
em questão. Por tudo isto, cabe a nós analistas estarmos sempre dispostos a
manter nosso discurso vivo em todas as frentes que comportem nosso traba-
lho e nossa intervenção.

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É a isto que a Revista Boletim tem procurado se manter atenta nes-
tes vinte anos de sua existência com a constante colaboração dos membros
do Departamento Formação em Psicanálise. Parabéns a todos pelo caminho
até aqui percorrido.

José Carlos Garcia


Editor

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NOTA EDITORIAL

Em 2013, comemoramos os 20 anos da revista Boletim Formação em


Psicanálise e, por esse motivo, pensamos em fazer algo especial: reeditamos o
número mais procurado da revista, que hoje encontra-se esgotado. Trata-se de
uma edição especial de artigos sobre técnica lançada em 2000.
Para esta edição comemorativa, pedimos àqueles autores que tecessem
um comentário atual sobre o tema de seus textos escritos há 13 anos. Sendo
assim, ao final de cada leitura ou artigo, encontra-se uma releitura do texto
feita pelo autor – com exceção de nosso querido colega Homero, que não se
encontra mais entre nós.
Além dos comentários, contamos com uma entrevista com Ede de O.
Silva, membro do departamento Formação em Psicanálise, que esteve presente
no início efervescente desta revista e pôde contar mais de perto sua história.
Ao final, encerramos este volume com uma nova sessão, a de citações,
que nesta edição teve como tema a formação do psicanalista e contou com
a contribuição de Estanislau Alves da Silva Filho, quem nos enviou as fases.
Trata-se de uma idéia sugerida por um membro do departamento, o que reflete
o espírito inovador e receptivo de nossa revista. Por esse motivo, é uma sessão
ainda em construção. É composto por um apanhado de citações sobre um tema
específico ou temas variados, que podem ser sugeridas e enviadas por quem
desejar e, após analise do corpo editorial, publicadas. Optamos, nessa primeira
edição da sessão, por organizar a referência não pela ordem alfabética, como
de costume,mas pela ordem em que aparecem as citações, de modo a deixar a
sessão toda mais “limpa” e parecida com algo como uma “gaveta de epígrafes”.

Boa Leitura!

Comissão Editorial

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SUMÁRIO
ARTIGOS
A interpretação
The interpretation
NORA BEATRIZ SUSMANSCKY DE MIGUELEZ 17

Acting out e a situação analítica


Acting out and analitic situation
ESIO DOS REIS FILHO 27

Amor de transferência
Transference love
OSCAR MIGUELEZ 41

A constituição do espaço ou campo psicanalítico


The constitution of the analytical field
HOMERO VETTORAZZO FILHO 53

Contratransferência e o corpo da analista


Counter-transference and the analist’s body
SUZANA ALVES VIANA 63

A importância do presente na clínica


psicanalítica freudiana: clínica das pulsões?
The importance of the present in freudian psychoanalytic clinic: clinic of drives?
EDE DE OLIVEIRA SILVA 85

O fim de análise em Melanie Klein


uma leitura desconstrutiva
The termination of a psychoanalysis in Melanie Klein’s
work: a desconstructive reading
LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO 113

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Sobre o alcance da intervenção analítica
On the reach of the psychoanalytic intervention
JOSÉ CARLOS GARCIA 137

Transferência – continência – holding – rêverie


Transference – containment – holding – rêverie
CECÍLIA NOEMÍ MORELLI F. DE CAMARGO 157

A atualidade do conceito construção


The currentness of the conception of Construction
MARIA HELENA SALEME 173

LEITURA
Sem memória e sem desejo:
o valor da reconstrução em análise
uma breve reflexão sobre questões técnicas
ARMANDO COLOGNESE JÚNIOR 189

ENTREVISTA
Entrevistado: Ede de Oliveira Silva
MARINA FIBE DE CICCO E TALITA NACIF 199

CITAÇÕES
Sobre formação 203

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 211

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Artigo
A interpretação
NORA BEATRIZ SUSMANSCKY DE MIGUELEZ

RESUMO: Este trabalho fala da interpretação como um dos instrumentos da


análise. Faz uma breve história dos sentidos que o conceito vai adquirindo na
teoria freudiana. Discute o problema de o quê interpretar. Compara a interpre-
tação e a construção e considera o problema das diferentes vias da construção
e a reconstrução do passado do analisando. Ocupa-se de diferentes tipos de in-
terpretação e do que seria uma “boa” interpretação.

PALAVRAS-CHAVE: Interpretação; Construção; Inconsciente; Recalque; Resistên-


cia; Repetição; Transferência; Neurose de transferência.

Psicanalista, Professora
A interpretação é um dos instrumentos da análise. Mas o analista não só in- do Departamento de
Formação em Psicanálise do
terpreta: também assinala, pergunta, comunica construções, fica em silêncio. Instituto Sedes Sapientiae,
O termo “interpretação” aparece em Freud no terreno da teorização Doutora em Psicologia
dos sonhos. Clínica pela PUC- SP,
autora de “Complexo
Trata-se de, a partir do conteúdo manifesto, descobrir o conteúdo la- de Édipo hoje”, Casa do
tente, ou seja, fazer aparecer o sentido do sonho, o conflito entre o desejo in- Psicólogo, 2007; “Otávio:
novas psicopatologias no
consciente que o anima e as defesas contra ele.
divã”, Trivium-ed. 1, 2009
Mais tarde, por extensão, o termo “interpretação” passa a designar as e diferentes artigos em
intervenções do analista que revelam o significado oculto, não só dos sonhos, revistas especializadas.
Co-autora de “Trauma,
mas também das outras produções do inconsciente, a partir das associações memória e transmissão”,
do paciente. Trata-se especialmente dos sintomas, mas também dos lapsos, Primavera Editorial, 2011.

BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21 – № 1 – JAN/DEZ 2013 17

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18 BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE
ARTIGO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– NORA BEATRIZ SUSMANSCKY DE MIGUELEZ

atos falhos, atos sintomáticos, brancos da memória. O objetivo, num primeiro


momento, é tornar consciente o inconsciente, é recuperar a própria história,
é preencher as lacunas da memória.
Mais tarde, ainda, trata-se também de interpretar as resistências que
se opõem à rememoração e determinam a deformação do sentido do material
do paciente. Talvez, ele mesmo consiga recuperar sua história se o analista
interpretar sistematicamente as autocríticas, a censura, que provavelmente
também não são conscientes. Finalmente, e no caminho da interpretação das
resistências, impõe-se a Freud como necessária a interpretação da transferên-
cia, em especial quando esta funciona como obstáculo na análise.
A interpretação transferencial será generalizada como parte indis-
pensável do tratamento com a elaboração do conceito de repetição. É, então,
na repetição transferencial, como atualização dos desejos inconscientes e das
resistências a eles, que a interpretação passa a incidir mais especificamente.
Recapitulando o que acabamos de expor: a interpretação, em Freud, passa
a ter sentidos diferentes que não se eliminam uns aos outros, mas, se sobrepõem:
- Interpretação do conteúdo latente do sonho.
- Interpretação do desejo que anima às outras produções do inconsciente.
- Interpretação das resistências.
- Interpretação da transferência como resistência e como repetição.
Esses sentidos dependem da existência de diferentes momentos na te-
oria freudiana. Interpreta-se a partir de uma determinada teoria do que seja
o funcionamento do psiquismo e suas alterações. As modificações nessa teo-
ria determinam modificações no sentido da interpretação, sua direção, alvo,
finalidade, conteúdo, função.
Obviamente, isso que é válido no interior das diferentes teorizações freu-
dianas, é válido também em relação às diversas escolas psicanalíticas. Assim, ha-
verá interpretações freudianas, kleinianas, lacanianas, etc., muito diferentes entre
si, tanto quanto as teorias em que se apoiam. Quando, quanto e o quê interpretar
dependem muito da teoria do analista, mesmo que não exclusivamente dela.
Voltando a Freud, vamos nos deter um pouco agora no tema “O quê in-
terpretar”. No começo do trabalho freudiano, não se colocava a necessidade de
interpretar. O importante era achar a cena traumática que tinha determinado a

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
ARTIGO – A INTERPRETAÇÃO 19
interrupção da continuidade tópica e econômica do aparelho psíquico e feito formar
um núcleo psíquico separado, patogênico, causa dos sintomas e que se deveria ab-
-rogar. E não era necessário interpretar porque o sujeito mesmo, sob hipnose, dava
a chave traduzida, fazendo o relato daquilo que tinha dado origem à sua doença.
Tratava-se de um ponto de vista realista: algo realmente acontecera. A
teoria traumática dava conta da patogenia.
O descarte da hipnose e a adoção do método de associação livre já in-
troduz a necessidade de interpretar.
Mais tarde, o desejo sexual infantil recalcado tomaria o lugar da cena
traumática. Esse desejo inconsciente deveria ser interpretado, extraído do es-
quecimento e da deformação produzidos pelo recalcamento. Assim, se abriria
o acesso à recuperação da própria história.
Trata-se de reintegrar um fragmento de realidade psíquica. Não se con-
sidera já a realidade material da cena traumática, mas nem por isso o ponto de
vista é menos realista. Existe uma parte da vida psíquica a ser resgatada pela
“decifração”, por exemplo, da amnésia infantil.
Viderman (1990) critica esse realismo de Freud. Para ele, o psicanalista
deveria se conduzir como todo cientista: ficar na escuta das associações, so-
nhos, lembranças, etc., mas provido de teorias sem as quais essa escuta não
faria sentido. A interpretação, a partir da teoria e recolhendo esses dados, será
inventiva, criativa. Cito Viderman (1990):

O que interessa é que o analista, sem consideração pela realidade, ajuste e


junte esses materiais para construir um todo coerente que não seja a repro-
dução de um fantasma preexistente no inconsciente do sujeito, mas que o
faça existir ao dizê-lo. (p.l37).

Laplanche (1996) comenta essa posição de Viderman. Ele diz que:

Viderman opõe um Freud a um outro Freud, um Freud historiador a um Freud


que se poderia dizer kantiano, já que postula categorias a priori, patrimônio
comum de todos os homens e que regulam sua apreensão, sua construção do
real. (p. 137, nota 6)

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20 BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE
ARTIGO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– NORA BEATRIZ SUSMANSCKY DE MIGUELEZ

Tratam-se das protofantasias ou fantasmas originários. É o caso do Ho-


mem dos Lobos, em que Freud se debate entre o realismo traumático da cena
primária e a consideração de tal cena como uma protofantasia universal.
Se voltarmos agora à pergunta inicial: O quê interpretar? Podemos
especificar as alternativas: seriam acontecimentos vivenciados e esquecidos
ou fantasias originárias, prévias a qualquer experiência e organizadoras da
mesma? Determinismo ou hermenêutica? Interpreta-se algo já acontecido ou
se constrói um fato que talvez nunca tenha acontecido?
Esta problemática é retomada por Freud, em 1937, em Construções em
análise. Ali, ele limita a extensão do conceito de interpretação de modo que
passa a designar o trabalho do analista com algum elemento simples do ma-
terial, como uma associação ou um ato falho. É agora a construção a que dá
conta da recomposição do passado. Trata-se de hipóteses que colocam para o
analisando fragmentos de sua história. A construção do analista nem sempre
acaba fazendo reaparecer as lembranças do paciente. Mesmo assim, pode pro-
duzir uma forte convicção da sua verdade e ter os mesmos efeitos terapêuticos
que uma lembrança recuperada do recalcamento. Trata-se de uma reconstrução
do ponto de vista freudiano, ou seja, da recuperação de algo que se supõe per-
dido. Viderman abre o sentido à possibilidade não de reencontrar, mas de criar.
Vamos nos referir agora a alguns dos tipos de interpretação que a lite-
ratura psicanalítica transformou, de certo modo, em clássicos, em objetos de
elaboração e de debate.
Em primeiro lugar, falaremos sobre a interpretação transferencial.
Como dissemos, esse tipo de interpretação apareceu tardiamente: inicialmente
o acento recaiu na interpretação do recalcado e, mais tarde, na interpretação
das resistências. No caso Dora (Fragmentos da análise de um caso de histeria,
1905/1982), Freud se preocupa pela questão e atribui parte do fracasso da aná-
lise ao descuido de sua parte na interpretação transferencial. Era o momento
em que ainda falava em “transferências” no plural, termo que tem o signifi-
cado de um deslocamento da ligação com figuras significativas da história do
paciente para a relação com o analista.
É especialmente a partir da análise do Homem dos Ratos que Freud
(1909/1982) começa a falar da transferência no singular e a considerar que esta

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estrutura a totalidade do tratamento. No caso citado será toda a problemática
infantil, edípica, do paciente com seu pai a que vai se aventurar pelo caminho
da transferência.
Aprofundando nessa direção, Freud propõe a ideia de organização, em
toda análise, de uma neurose de transferência que levará à repetição, no tra-
tamento, da neurose infantil a ser debelada, ligada às figuras parentais que fo-
ram significativas na infância.
A interpretação transferencial passa então a ocupar o primeiro plano
no trabalho do analista, plano que continua ocupando na atualidade. Qual o
seu limite? É interessante se colocar essa questão porque em muitos trabalhos
analíticos passa a ser o único tipo de interpretação que se utiliza, em detrimento
de todas as outras possibilidades que a escuta do paciente permite. Parece, às
vezes, que a interpretação transferencial se transforma numa espécie de chave
de leitura. A autorreferência do analista parece não ter fim, dando como resul-
tado a simplificação do trabalho analítico. Essa espécie de “transferencite” toma
a parte pelo todo, descuidando a escuta cuidadosa das expressões do paciente.
Descuida também do valor das transferências colaterais, sempre presentes e
que promovem actings outs. Descuida a história e descuida a situação atual.
Outro conceito interessante e talvez complementar ao anterior é o de
interpretação “completa”. Pichon Rivière descreve aquele tipo de interpreta-
ção que mostra a relação entre o que ocorre na transferência, o que acontece
na situação atual exterior à análise e o que aconteceu no passado. Ou seja, leva
em consideração o conflito transferencial, o conflito atual e o conflito infantil.
Trata-se de um conceito interessante porque recoloca no seu lugar os diferentes
âmbitos que abraça uma análise, sem descuidar de nenhum deles. Mas existe o
perigo de fazer da formulação desse tipo de interpretação uma exigência supe-
regoica do analista. Então, se transforma, como a “transferencite”, num dogma
que deforma o trabalho: “E é assim aqui, e com sua mulher e com sua mãe”,
vira uma caricatura do trabalho analítico. O analista não busca fazer interpre-
tações completas: encontra-as às vezes prontas em sua evidência, talvez depois
de muitas interpretações incompletas, umas atuais, outras históricas, outras
transferenciais. Então, uma “boa” interpretação não é necessariamente uma
“interpretação transferencial”, nem uma “interpretação completa”.

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ARTIGO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– NORA BEATRIZ SUSMANSCKY DE MIGUELEZ

Mas, será possível dizer o que seria uma “boa” interpretação? Acredito
que não, mas podemos fazer algumas reflexões a respeito daquilo que se apro-
xima à essa espécie de “interpretação ideal”.
Com certeza, não é uma exaustiva explicação, sobre o material do pa-
ciente, transferencial ou não.
Também não é um recurso a um fragmento de teoria, mesmo que per-
tinente ao material: aqui se trataria de uma interpretação selvagem.
Também não é o uso do jargão analítico: Por que “agressão” e não
“raiva”? Por que “excluído” e não “de fora”? Por que não retomar, se possível,
as próprias expressões do paciente? “Encanei”, “de bode”, “frescura”, mágoa”,
“birra”, “peripaque”, são palavras ricas para retomar.
Smirnoff (1995) disse que “a interpretação, liberada de qualquer acade-
micismo de escola, (...) depende da capacidade criadora do analista” (p. 68). Eu
não acredito que seja possível se libertar de todo academicismo, mas coincido
com ele em que a criatividade do analista está presente numa “boa” interpre-
tação. Não penso, como Beller (1995) que se trate do “que pertence ao domí-
nio da inspiração poética” (p. 119). Também não coincido com Le Guen (1995),
quando diz que “interpretar não é traduzir de uma língua a outra, e sim, ser o
instrumentista que interpreta uma obra musical” (p. 130). Música, poesia, escul-
tura, são boas metáforas, mas não penso que a única criatividade é a do artista.
Interpretar é criar sentido, é trazer à luz algo novo, mesmo que já esteja
implícito na fala do paciente. Penso que provavelmente, a “boa” interpretação
é breve, é simples, é criativa.

The interpretation

ABSTRACT: This paper considers interpretation as a psychoanalytical tool. A brief


history of the concept in Freudian theory is given. It raises the discussion of what
should be interpretated. A comparison is made on interpretation and construction.
Follows a consideration on the subject about the different paths through which the
analysands past is constructed and reconstructed. Different kinds of interpreta-
tion are considered and discussed what could be held as a “good’ interpretation.

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ARTIGO – A INTERPRETAÇÃO 23
KEYWORDS: Interpretation; Construction; Unconscious; Repression; Resistance;
Repetition; Transference; Transference neurosis.

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ção vem ao psicanalista. São Paulo: Escuta, 1995.
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Médicas, 1987.
FREUD, S. Obras Psicológicas Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1982.
KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996.
LAPLANCHE, J. La prioridad del otro en psicoanálisis. Buenos Aires: Amor-
rortu, 1996.
LAPLANCHE, J. & PONTALIS J.B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1992.
LE GUEN, C. Em toda lógica... In: MAJOR, R. Como a interpretação vem ao psi-
canalista. São Paulo: Escuta, 1995.
MANNONI, O. Isso não impede de existir. Campinas: Papirus, 1991.
______ . La outra escena. Buenos Aires: Amorrortu, 1973.
ROSOLATO, G. Ensayos sobre lo simbólico. Barcelona: Anagrama, 1974.
ROUDINESCO, E. & PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
SMIRNOFF, V. O modo interpretativo. In: MAJOR, R. Como a interpretação vem
ao psicanalista. São Paulo: Escuta, 1995.
STEIN, C. O psicanalista e seu ofício. São Paulo: Escuta, 1988.
VIDERMAN, S. A construção do espaço analítico. São Paulo: Escuta, 1990.

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ARTIGO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– NORA BEATRIZ SUSMANSCKY DE MIGUELEZ

Comentário
Os artigos que compõem o primeiro número do Boletim foram escritos em
circunstâncias bastante particulares da história de nosso Departamento. Tra-
tava-se de dar o empurrão inicial à revista e de ampliar o diálogo intra e extra
instituição. Dividimos entre todos os temas que achamos pertinentes, mesmo
que não fossem necessariamente aqueles que cada um estava pesquisando ou
que orientava as próprias questões clínicas e teóricas.
Relendo hoje esse artigo considero que ele é bastante informativo, ge-
ral e objetivo, com poucas colocações pessoais. Dele, sublinharia hoje algumas
direções aí já esboçadas.
A primeira delas: penso que uma interpretação é efeito da abertura da
escuta de analista e analisando aos múltiplos efeitos de sentido da trama das
falas no percurso da sessão. Associação livre e atenção flutuante costumam
ser as chaves que abrem a esses efeitos, quase sempre inesperados. É por isso
que o analista interpreta, mas também o paciente interpreta. Frases, palavras
avulsas, um riso, um suspiro, um trocadilho.
A segunda direção que desejo desenvolver um pouco mais está li-
gada ao enfadonho recurso às classificações e metodologias estratégicas
que percorrem muitos dos textos sobre teoria da técnica. Penso que elas
perturbam a criatividade do par analítico com um ranço super- egoico
que abafa o novo, o singular, o nunca pensado antes. Interpretação trans-
ferencial ou não? Completa ou incompleta? Exata ou inexata? Dentro ou
fora do timing? Da resistência ou do recalcado? Ninguém sabe enquanto a
sessão está se desenrolando e os sentidos abrem e fecham, ora no analista,
ora no analisando. E duvido que alguém saiba depois, na autopsia do “ca-
dáver esquisito” que alguma vez foi uma sessão. Algo bem diferente acon-
tece quando a gente lê ou escuta a alguém contando um historial ou um
fragmento vivo de sessão, aberto ainda a efeitos analíticos sobre quem faz
a leitura ou houve o relato. O Homem dos Ratos pulando do divã do Freud.
Um colega falando em polifonia. Algo interpela nesse “diálogo” em que
ninguém termina de dizer.

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– NORA BEATRIZ SUSMANSCKY DE MIGUELEZ

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Artigo
Acting out e a situação analítica
ESIO DOS REIS FILHO

RESUMO: Este trabalho discute as dificuldades e mesmo contradições na concei-


tuação de acting out na metapsicologia freudiana, articulando-a com a trans-
ferência e a compulsão à repetição. Traz um breve resumo sobre o enfoque de
outros autores a respeito dessa questão e propõe o acting out como uma via pos-
sível de acesso ao inconsciente que pode vir a ser, eventualmente, uma ajuda
ou um entrave ao trabalho analítico.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Técnica psicanalítica; Transferência; Acting out;


Atuação.

O PROBLEMA CONCEITUAL:
Dentre todos os conceitos psicanalíticos problemáticos e discutíveis, talvez o
que gere mais controvérsias, desencontros e dificuldades seja o de acting out.
Seja por se tratar de um daqueles conceitos que vão se ampliando sem parâ-
metros claros, ou pela forma pouco precisa e mesmo dúbia com que o con-
ceito foi inicialmente introduzido por Freud, o fato patente é que, hoje em dia, Psiquiatra e Psicanalista
Professor do Departamento
quando um analista fala em acting out, geralmente outro analista não sabe
Formação em Psicanálise,
exatamente a que fenômeno o primeiro está se referindo. do Instituto Sedes
O termo acting out, usado pelos ingleses para traduzir o agieren do ale- Sapientiae. Professor
do Instituto Paulista de
mão de Freud, é a substantivação do verbo to act out, sobre o qual podemos fa- Psicoterapia da infância
zer algumas considerações: relaciona-se com a ideia de representação teatral e Adolescência (IPPIA).

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e o advérbio out introduz o sentido de explicitar algo que está dentro, levando-
-o rapidamente para fora e a um fim. No francês, a expressão mais frequen-
temente utilizada para traduzi-lo é passage a l’acte, que introduz uma outra
dificuldade, por ser já classicamente usada em psiquiatria para atos impulsivos
violentos, como uma agressão sexual, um suicídio, um assassinato, etc. Outra
possibilidade no francês seria mise en acte. Em português, usa-se o termo in-
glês ou a forma traduzida “atuação”. Alguns psicanalistas passaram a usar de
forma incorreta acting in (atuar dentro da sessão) contrapondo-se a acting out
(atuar fora da sessão): tal distinção não tem sentido em inglês.
No Vocabulário de psicanálise (LAPLANCHE & PONTALIS, 1979), encon-
tramos a seguinte definição de acting out:

Termo usado em psicanálise para designar as ações que apresentam, a maior


parte das vezes, um caráter impulsivo, rompendo relativamente com os siste-
mas de motivação habituais do indivíduo, relativamente isolável no decurso de
suas atividades, e que toma muitas vezes uma forma auto ou hetero-agressiva.
No aparecimento do acting out vê o psicanalista a marca da emergência do re-
calcado. Quando aparece no decorrer de uma análise (na sessão ou fora dela),
o acting out tem de ser compreendido na sua conexão com a transferência e,
frequentemente, como uma tentativa para a desconhecer radicalmente (p. 27).

O ponto nevrálgico dessa definição, que parece polarizar as controvér-


sias conceituais sobre acting out, é que o mesmo “tem de ser compreendido
na sua conexão com a transferência”. Tanto o acting out como a transferência
têm como base a ideia de retorno do reprimido e esta nos leva diretamente à
compulsão à repetição.

A COMPULSÃO À REPETIÇÃO:
Desde o início, a ideia de repetição está presente nas elaborações psi-
canalíticas feitas por Freud. O próprio sintoma histérico é entendido como
uma forma de reprodução de conflitos do passado. “As histéricas sofrem,
principalmente, de reminiscências”, disseram Freud e Breuer na Comunica-
ção preliminar (FREUD, 1893), já em 1893. Desde então, essa ideia de repetição

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ARTIGO – ACTING OUT E A SITUAÇÃO ANALÍTICA 29
foi sendo elaborada e articulada progressivamente, até atingir seu pleno
desenvolvimento no texto Além do princípio do prazer, de 1920. No decorrer
dessa elaboração, a compulsão à repetição chega a ser entendida como um
processo autônomo, proveniente do campo pulsional, irredutível a uma di-
nâmica conflitual, e ligado ao que há de mais “pulsional” nas pulsões: a sua
insistência conservadora. A pulsão, mesmo reprimida, não se esgota e insiste
em retornar. “Em uma análise, no entanto, uma coisa que não foi compre-
endida, inevitavelmente reaparece; como um fantasma inquieto, não pode
descansar até que o mistério tenha sido resolvido...” (FREUD, 1909). A com-
pulsão à repetição leva Freud a especular sobre os movimentos regressivos
da pulsão, chegando à postulação especulativa clássica do texto Além do prin-
cípio do prazer (1920), a da pulsão de morte: a regressão seria tão intensa que
a pulsão visaria a descarga total, chegando ao estado anterior à vida, ou seja,
à morte, ao inorgânico.
Seria, portanto, a partir dessa característica do que é inconsciente, a
compulsão à repetição, que o reprimido, de uma forma geral, procuraria re-
tornar ao presente, através das conhecidas formas de retorno do reprimido:
sonhos, atos falhos, sintomas e em especial para nosso tema, no momento, a
transferência e o acting out.

A TRANSFERÊNCIA E O ACTING OUT:


Freud introduz o conceito de transferência em 1905, no pós-escrito de
Dora. Ele já havia usado o termo antes, porém no plural e com sentido mais
generalizado (Estudos sobre histeria [1895], interpretação dos sonhos [1900]). Nesse
texto, enquanto fala sobre transferência, é que Freud usa pela primeira vez o
termo “atuação” (usando o alemão agieren):

Desse modo, a transferência apanhou-me desprevenido e, devido ao que ha-


via de desconhecido em mim que a fazia lembrar-se de Herr K, ela vingou-se
em mim como desejara vingar-se dele, abandonando-me do mesmo modo
como se sentira abandonada e enganada por ele. Assim ela atuou uma parte
essencial de suas lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-la no trata-
mento (FREUD, 1905).

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Estaria Freud, neste trecho, falando de transferência e usando o verbo


agieren apenas para explicá-la? Ou não, e poderíamos pensar que, estando
Dora numa relação transferencial com Freud, atualizaria muitos impulsos e
fantasias, inclusive o de se vingar de Herr K-Freud e que o seu acting out seria
a ação de interromper o tratamento como vingança e não a transferência do
impulso de vingança em si mesmo.
As coisas ficam discutíveis e essa falta de clareza tende a aumentar se
formos para o texto de 1914, Recordar, repetir e elaborar. Aqui, Freud trabalha
o conceito de transferência como derivada da compulsão à repetição, articu-
lando esses conceitos com as ideias de recordação e de resistência à recordação.
Diz ele: “... o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu,
mas expressa-o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como
lembrança, mas como ação; repete-o sem, naturalmente, saber que o está re-
petindo” (FREUD, 1914). Mais adiante ele diz: “Quanto maior a resistência,
mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar
...” (Ibid.).
Desde estes textos iniciais, passando por toda sua obra, até o final, Freud
mantém essa ambiguidade em relação aos conceitos de transferência e acting
out, às vezes identificando-os, às vezes contrapondo-os, às vezes confundindo-
-os. É muito curioso notarmos que no texto Esboço de psicanálise (1938-1940),
no final da obra, Freud diz:

Outra vantagem ainda da transferência é que, nela, o paciente produz perante


nós, com clareza plástica, uma parte importante da história da sua vida, da
qual, de outra maneira, ter-nos-ia provavelmente fornecido apenas um relato
insuficiente. Ele a representa (atua-agieren) diante de nós, por assim dizer, em
vez de apenas nos contar.

Neste momento, portanto, a lembrança atuada na transferência é mais


fidedigna do que aquela apenas recordada e contada. Isso inverte completa-
mente as colocações de 1914, o que nos deixa mais ainda no ar, uma vez que
este texto é considerado uma espécie de resumo que Freud faz de sua obra no
seu final.

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ARTIGO – ACTING OUT E A SITUAÇÃO ANALÍTICA 31
DESENVOLVIMENTOS DE OUTROS AUTORES:
Foram as dificuldades e os enigmas desses conceitos de transferência
e acting out, na obra freudiana, que abriram campo para que muitos autores
contemporâneos a Freud ou pós-freudianos procurassem trabalhar com eles,
buscando clarificações, diferentes compreensões, novos desenvolvimentos,
que foram progressivamente diluindo e/ou enriquecendo o conceito de acting
out, que continua marcadamente presente na linguagem dos psicanalistas.
Em seu livro Fundamentos da técnica psicanalítica (ETCHEGOYEN, 1987),
Horacio Etchegoyen faz uma interessante revisão bibliográfica sobre o assunto,
da qual retomaremos alguns pontos, não com o propósito de compreender o
pensamento de cada autor, mas apenas para termos um vislumbre dos cami-
nhos por onde têm seguido esses novos desenvolvimentos.
Melanie Klein ocupou-se pouco do acting out. Ela o vê como uma “forma
especial de transferência, que leva o paciente a se separar do analista, como
se separou dos objetos primários” (KLEIN, 1952, in As origens da transferência).
Rosenfeld torna equivalentes repetição, transferência e acting out, clas-
sificando o acting out em parcial (necessário e presente em toda análise) e ex-
cessivo (perigoso e destruidor para a análise), no seu livro Psychotic states.
Fenichel distingue transferência (onde predominam sentimentos) de
acting out (predomina a ação), aproximando-se este último do modelo ab-re-
ativo das neuroses traumáticas.
Phyllis Greenacre baseia-se em Fenichel, complementando e
desenvolvendo-o:

(...) quando se juntam perturbações dos primeiros meses de vida que incre-
mentam as pulsões orais, diminui a tolerância à frustração e aumenta o nar-
cisismo, com os conflitos do segundo ano (relativos à fala, à deambulação e ao
controle esfincteriano) estão dadas as condições para que apareça a tendência
ao acting out. O desenvolvimento da linguagem fica inibido e, paralelamente,
aumenta a tendência aloplástica para a descarga.(Psychoanalitic Quartely).

Anna Freud, relatora do simpósio O papel do acting out no processo psi-


canalítico, no XXV Congresso Internacional em Kopenhagen, em 1967, tratou

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ARTIGO – ESIO DOS REIS FILHO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

principalmente da delimitação do conceito de acting out, tentando esclarecer


as vacilações freudianas, relacionando-as com as reformulações nos enfoques
teóricos da análise em cada época; alguns conteúdos psíquicos só poderiam
ser recuperados revivendo-os na transferência: “O resultado será uma repeti-
ção do passado na conduta, repetição, porém, sobre a qual as regras analíticas
terão vigência.” Esse seria um acting out útil para o progresso da análise. Em
outras situações, quando “a força dos impulsos reprimidos supera os limites
impostos à ação muscular”, a aliança terapêutica corre perigo, o mesmo acon-
tecendo com a vida comum do paciente, ou seja, haveria tipos de acting out que
ajudam o tratamento e outros que o prejudicam.
Leon Grinberg, outro relator desse mesmo simpósio junto com Anna
Freud, liga o acting out às “experiências de separação e perda, que determinaram
lutos primitivos não elaborados”; a identificação projetiva com o analista seria o
mecanismo básico do acting out, ficando toda a questão localizada no interjogo
transferência-contratransferência, onde vai ser testado o limite de tolerância
do analista. Junto com Grinberg, muitos outros autores focaram a importân-
cia da participação contratransferencial do analista nos processos de acting out.
Horacio Etchegoyen se vale da teoria de Bion para explicar sua forma
de entender o acting out:

“Bion sustenta que o bebê nasce com uma pré-concepção do seio e quando se
encontra com o próprio seio (realização) se constitui uma concepção do seio. O
que determina o primeiro pensamento para Bion é a ausência do seio. Frente
a essa situação decisiva, o bebê tem duas alternativas: tolerar ou evitar a frus-
tração (ausência). Se o bebê evita a frustração, transforma o seio ausente em
seio mau presente e o expulsa como um elemento beta. Entretanto, quando é
capaz de refrear a ação e tolerar a frustração, reconhecendo o seio como au-
sente, construiu seu primeiro pensamento. O ato pelo qual, em vez de pensar
o seio bom como ausente, o expulsa como seio mau presente” é, para Etche-
goyen, o protótipo do acting out. (ETCHEGOYEN, 1987, p. 428)

Lacan, no seminário A Angústia (1962-63), diferencia ato, acting out e


passagem ao ato. “O ato seria sempre um ato significante que permite ao sujeito

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
ARTIGO – ACTING OUT E A SITUAÇÃO ANALÍTICA 33
transformar-se a posteriori. O acting out, ao contrário, não é um ato, mas uma
demanda de simbolização que se dirige a um outro. É um disparate destinado
a evitar a angústia. A passagem ao ato seria um “agir inconsciente”, um ato
não simbolizável pelo qual o sujeito descamba para uma situação de ruptura
integral, de alienação radical.” (ROUDINESCO ‘et al’, 1998)
Michel de M’Uzan distingue dois tipos de acting out: o direto, próprio
dos sujeitos que não desenvolvem uma verdadeira neurose de transferência,
tem uma falta de especificidade, possui um andamento mecânico, por vezes rít-
mico, mas geralmente desordenado e paroxístico, ocorre assim que a urgência
econômica se impõe e tem uma pobreza simbólica; “ficamos com a impressão
de que se trata de um tipo de degradação qualitativa de energia que, em busca
de vias de descarga mais diretas, parece obedecer unicamente ao princípio
do nirvana”, isto é, estando mais além do princípio do prazer, portanto, no do-
mínio da pulsão de morte. O outro tipo de acting out seria o indireto, que ocor-
reria quando o sujeito pode estabelecer uma neurose de transferência; seria
ainda uma defesa contra a rememoração através da repetição, porém “uma
repetição que visa ainda a realização de um desejo libidinal”, estando, portanto,
aquém do princípio do prazer. (M’UZAN, 1977)

UMA TENTATIVA DE CONCLUSÃO:


Por tudo o que vimos até agora podemos perceber o quanto o conceito
de acting out, como tantas outras questões em psicanálise, é passível de con-
trovérsias, necessitando ainda de muita elaboração. No entanto, trata-se de um
conceito de uso extremamente difundido entre os psicanalistas e importante
para a clínica, o que torna mais significativa a necessidade de estabelecermos
um mínimo de pontos básicos aceitos pela maioria dos psicanalistas, que per-
mita a continuidade das discussões e elaborações sobre esse tema.
Horacio Etchegoyen, no seu livro Fundamentos da técnica psicanalítica,
já citado, nos apresenta um trabalho competente, conciso e claro nessa li-
nha. Também Michel M’Uzan, em De l’art à la more, traz algumas ideias inte-
ressantes para se pensar o acting out. Retomaremos aqui alguns pontos do
pensamento desses autores, que podem nos ajudar a pensar o conceito de ac-
ting out, obviamente, sem a pretensão de esgotar o tema.

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O acting out é sempre parte da transferência, sendo ambos originários


da compulsão à repetição. A transferência, entretanto, é um conceito muito
mais amplo, abrangendo tudo o que o paciente pensa, diz ou faz por obra da
compulsão à repetição. Todo acting out é transferência, mas não o contrário.
O acting out estaria ligado basicamente à ideia de ação: o pensamento,
as lembranças, a comunicação e a palavra seriam substituídos por uma ação,
seguindo o caminho da esfera motora. Essa substituição do pensamento ou
da palavra pela ação pode ser uma forma de comunicação, ou exatamente o
contrário.
Em função dessa oposição, podemos distinguir dois tipos diferentes de
acting out: o acting out que seria uma forma de comunicar coisas que ocorre-
ram antes da linguagem verbal e que também se reproduzem na transferên-
cia, ou seja, um acting out que ajuda o processo analítico, de um outro tipo de
acting out, aquele que aparece ao invés da comunicação, do pensamento, da
lembrança. Enquanto a transferência seria uma forma de lembrar, é claro, sob
os efeitos da resistência, mas ainda assim lembrar, este acting out seria uma
forma de não lembrar, de atacar o processo analítico, inviabilizando-o, bloque-
ando, portanto, a hipótese de recordar através da transferência. A transferência
iria em direção ao objeto e este acting out visaria a separação do objeto. Ele se-
ria uma tentativa de impedir a tarefa básica de análise, a obtenção de insight,
mantendo o paciente em um narcisismo onipotente desintegrador. Seria um
acting out que colocaria a análise em cheque, gerando fortes conflitos contra-
transferenciais no analista, levando-o a sair de sua posição, obrigando-o a atuar
e, com isso, comprometendo a análise. Este segundo tipo de acting out, descrito
por Ecchegoyen, se aproxima muito do que M’Uzan descreve como acting out
direto, que seria uma descarga não simbolizada, já no campo da pulsão de morte.
Vimos, portanto, que existem acting out que podem ter um sentido,
constituindo-se numa possibilidade de um paciente comunicar algo que não
poderia ser feito de outra forma. Seriam então acting out que, em sendo inter-
pretados, eventualmente poderiam ajudar o trabalho analítico a progredir.
Existem, entretanto, acting out que nada tentam comunicar, transformando-
-se em verdadeiros ataques ao vínculo ou à análise (lembrando-nos de Bion) e
cuja resultante final é destruição, inviabilização do trabalho analítico.

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ARTIGO – ACTING OUT E A SITUAÇÃO ANALÍTICA 35
Tendo por base a experiência clínica, penso que numa análise trans-
correndo habitualmente, sem situações extremadas, não podemos, a priori,
saber de que forma de acting out se trata. Acredito que, sendo de um tipo ou
de outro, trata-se de um elemento a mais da relação transferencial e, como tal
deverá ser tomado, ou seja, interpretado. Estou mais de acordo com os textos
onde Freud confunde os conceitos de acting out e transferência (como vimos
acima), do que com aqueles em que ele os distingue.
Da mesma forma que transferência pressupõe uma série infindável
de ocorrências emocionais fantasiadas (amor de transferência, ciúmes, ódio,
afeto, colaboração, briga, admiração, inveja, empatia, vingança, etc.), incluiria
também o acting out, ou seja, algumas dessas ocorrências emocionais “atua-
das”, sob a forma de ações concretas e não apenas fantasiadas. Tanto quanto
as ocorrências fantasiadas, penso que as “atuadas” deveriam ser interpretadas.
Se essa interpretação permitirá ou não algum trabalho elaborativo, dependerá
de duas ordens de fatores: por um lado, do “engenho e arte” do analista e, por
outro, do tipo de acting out de que se trata e só saberemos disso a posteriori, ou
nem saberemos.
Será que teria sido possível a Freud evitar o acting out através do qual
Dora interrompeu seu tratamento? Ele nos diz que Dora transferira para ele o
seu desejo de se vingar de Herr K. Teria ele podido evitar que ela atuasse essa
vingança, se ele não tivesse “se descuidado” da transferência, como ele afirmou?
Buscando informações sobre a continuidade da vida de Dora, ficamos
sabendo que Felix Deucsch foi consultado por ela em 1922. Estava então ca-
sada, tinha um filho adulto jovem e era muito infeliz com os dois, marido e
filho. “Com lágrimas nos olhos, acusou os homens de serem egoístas e mes-
quinhos e se lamentou das inúmeras exigências que eles faziam.” (FLEM, 1988)
Vendo o quanto esse ódio aos homens era fundamental na estrutura
da personalidade de Dora, poderíamos questionar se mesmo interpretando
a transferência a tempo (isto é, apenas dentro de cerca de dois meses), teria
podido Freud evitar o ataque à análise? Ou estaríamos frente a um acting out
destrutivo, cuja meta irrefreável, a partir do intenso ódio inconsciente não
simbolizado voltado para os homens, seria a total e inapelável destruição do
vínculo analítico? Non liquet.

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ARTIGO – ESIO DOS REIS FILHO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

UMA SITUAÇÃO CLÍNICA:


Uma senhora de cerca de sessenta anos inicia análise manifestamente por
se sentir muito infeliz e angustiada com seu casamento de quarenta anos.
Com todas as características de uma histeria muito florida, ela relatava sua
insatisfação sexual devido à impotência do marido, já há cerca de três anos:
“Ele, que sempre fora um macho e tanto, já não dava mais no couro.” Ela
sentia-se sem saída, pois ele, “como um autêntico machão”, recusava-se a
falar sobre a questão; ela, imbuída dos valores próprios das respeitáveis fa-
mílias tradicionais, continuava amando e respeitando seu marido, sendo-lhe
impossível qualquer pensamento sobre traição ou separação. Num clima de
muita dramaticidade, relata os martírios de sua vida: era jovem e apaixo-
nada por um outro rapaz, que estava longe, quando seu pai começou a asse-
diá-la sexualmente; para fugir desse assédio, casou-se com o atual marido,
uma verdadeira réplica do seu pai, numa situação de impulso após realizar
um aborto. Nunca mais tinha visto o rapaz, só sabendo que ele vivia em ou-
tra cidade. Viveu seu casamento, sempre muito infeliz, criou seus filhos, que
já tinham saído de casa, e agora via-se ali, sem saída. Na medida em que de-
corriam os primeiros meses de análise, a situação transferencial ia se esta-
belecendo, com o progressivo apaixonamento da paciente pelo analista-pai.
Era com brutal resistência e grande sofrimento e repulsa que ela ia tendo
que entrar em contato com o fato de que era dela que partia o impulso para
o assédio e não do analista-pai, com todas as consequências dessa percep-
ção na rememoração reconstrutiva do seu passado. O trabalho analítico ia
prosseguindo com todas as turbulências próprias da análise de uma paciente
extremamente atuadora. Tal atuação era, no entanto, nada mais que estraté-
gia defensiva contra a dolorosa recordação e elaboração transferenciais. Es-
távamos lidando com resistência, porém dentro da relação transferencial e,
portanto, passível de trabalho analítico. Um dia, a paciente chega à sessão
e diz: “Não aguentei mais, liguei para o Antonio (o rapaz do apaixonamento
juvenil) e retomei minha paixão interrompida; ele também se manteve apai-
xonado por mim esses anos todos, etc., etc.”, o que poderia ser ouvido assim:

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
ARTIGO – ACTING OUT E A SITUAÇÃO ANALÍTICA 37
“Não aguentei mais a situação analítica e fiz um acting out destrutivo para o
nosso trabalho de análise.” A partir daí, estabeleceu-se a seguinte situação:
a paciente não podia ligar para ele (por causa da conta), nem receber telefo-
nemas em casa; então ela combinou com ele que, em todos os dias de sessão
de análise, ela chegaria cerca de uma hora antes do horário da sessão, fica-
ria no carro, no estacionamento do prédio do analista e aguardaria a liga-
ção dele. Já há muitas sessões ela chega todas as vezes após haver “curtido a
sua paixão, sentindo-se pisando nas nuvens, renascendo pela força do amor
puro, eterno, etc., etc.”. Apesar das tentativas de Antonio, a paciente recusa-
-se a um encontro pessoal, mantendo “seu caso” apenas por telefone e, ex-
clusivamente, antes dos horários de sessão. Desde então, mesmo com todas
as inúmeras e diversificadas tentativas de interpretação dessa atuação, tal
comportamento se mantém absolutamente inalterado, nada parecendo ter
força suficiente para modificá-lo. Com isso, esvaziou-se o trabalho analítico
transferencial, interrompeu-se o processo de rememoração na transferência
e a análise encontra-se num impasse. Talvez o acting out destruidor, que se
contrapõe ao trabalho analítico, esteja próximo de atingir a sua finalidade.

Acting out and analitic situation

ABSTRACT: This article tells about the problems and contradictions in the accep-
tion of “acting out” at freudian metapsychology, articulating it with the concep-
tion of “transfer” and “compulsion to repeat”. It has a brief resume on the other
authors’ point of view about this subject and offers the “acting out” as a possi-
ble way to the unconscious, that can be either a help or sometimes after to the
psychoanalytic work.

KEYWORDS: Psychoanalysis; Psychoanalytic technique; Transference; Acting out;


Acting.

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ARTIGO – ESIO DOS REIS FILHO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

REFERÊNCIAS
ETCHEGOYEN, R. H. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1987, 428 p.
FLEM, L. A vida cotidiana de Freud e seus pacientes. Porto Alegre: L&PM, 1988,
p. 45.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1969.
(1893). Comunicação preliminar, v.2.
(1905 [1901]). Fragmentos da análise de um caso de histeria, v.7.
(1909). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, v.10.
(1914). Recordar, repetir e elaborar, v.12.
(1920). Além do princípio do prazer, v.28.
(1940 [1938]). Esboço de psicanálise, v.23.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B.: Vocabulário de psicanálise. 2a ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1979, p. 27.
M’UZAN, M. De l’art à la mort. Paris: Gallimard, 1977 (Tradução livre).
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998, p. 5-6.

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ARTIGO – ACTING OUT E A SITUAÇÃO ANALÍTICA 39
Comentário
A pedido da Comissão de Publicação do Departamento Formação em Psicaná-
lise, reli o texto que escrevi  em 2000, Acting Out e a Situação Analítica, publi-
cado no Boletim Nº 2/1 de Janeiro/Junho de 2 000.
Penso que o trabalho de  pesquisa e de articulação sobre o tema está
concebido como um todo e não vejo razão suficiente para fazer acréscimos,
correções, adendos, etc. etc.
Se for o caso, oportunamente, posso tentar tratar do tema em um novo texto.
Agradeço pela oportunidade.

Esio dos Reis Filho


End.: Av. Angélica, 1814, cj. 1403
(11) 3661 8350
esioreisfilho@gmail.com

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ARTIGO – ESIO DOS REIS FILHO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

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Artigo
Amor de transferência[1]
OSCAR MIGUELEZ

RESUMO: Tomando como ponto de partida o texto de Freud, Amor de transferên-


cia, o trabalho discute questões ligadas ao manejo da transferência erótica no
contexto da constante exigência de renovação e atualização da psicanálise de-
pois de 100 anos de existência.

PALAVRAS-CHAVE: Manejo e realidade da transferência; Transferência erótica;


Plasticidade; Sedução transferencial.

Em 1915 Freud publica Observações sobre o amor de transferência. Passados quase


cem anos de sua publicação, a releitura desse magnífico texto continua sendo
rica em sugestões e no assinalamento de problemas de difícil solução. Contraria-
mente ao espírito de uma certa noção de cientificidade, ligada à ideia de constante
progresso, os psicanalistas continuamos vasculhando as obras de Freud para en-
contrar inspiração na solução de problemas que a clínica nos coloca no presente.
Sem querer discutir a cientificidade da psicanálise – sempre salientada
pelo mestre de Viena – e deixando de lado alguns exageros talmudistas na lei-
Mestre e Doutor em
tura da obra de Freud – sempre preocupantes – sabemos que seus textos foram
Psicologia Clínica.
Membro e professor do
Departamento Formação
1. Texto originalmente destinado ao “Ciclo de seminários sobre técnica” do Departamento Forma- em Psicanálise do Instituto
ção em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e publicado em Revista Boletim, Ano VIII/IX, n. Sedes Sapientiae. Autor de
2,1 Jan/Jun 2000 Narcisismos, Ed. Escuta.

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ARTIGO – OSCAR MIGUELEZ
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

referência permanente das diferentes correntes psicanalíticas que o sucederam


e, com isso, objeto constante de interpretações, de leituras, que se recriam cada
vez que revisitamos suas obras. Essa assimilação, um tanto antropofágica, deu
lugar a certo apagamento da literalidade do texto, chegando ao limite de não
ser fácil, as vezes, reconstruir a lógica interna de seus escritos – tal o atravessa-
mento daqueles que têm sido seus leitores. Esse fenômeno chega a envolver as
traduções, o que fez frequente a utilização de alguns termos em alemão. Pode-
-se dizer que existem vários Freud: o kleinian, o lacaniano, etc.
Outro motivo faz pertinente retomar o trabalho de 1915. A formação dos
analistas repete muitas vezes a própria história da psicanálise, história essa
que, como bem tem apontado O. Manonni (1982), é a historia do vencimento
das resistências mais do que o da ignorância.
No começo dessa história vemos Freud preocupado com o que ele con-
cebia como falsa conexão. O ponto central da sua técnica consistia no desman-
telamento dessa falsa ligação que o traumatismo tinha ocasionado. Os recursos
terapêuticos mobilizados tinham como objetivo desfazer o engano e, assim,
assegurar a continuidade da vida mental.
Assistimos, nesse percurso, a uma sucessão de técnicas: hipnose,
sugestão até chegar à livre associação, que se transformou em sinônimo de
psicanálise. A preocupação pela descoberta da verdade inconsciente marca
a técnica nessas épocas pioneiras. No cumprimento da tarefa mor, recorre
não só a uma leitura dos indícios, senão, também, a informações obtidas
das mais diferentes fontes. Nesse modo de proceder, o conceito de resistên-
cia cumpre um papel fundamental. A «verdade» deve ser como arrancada
do paciente devido ao fato de seu eu resistir-se a admitir o que poderia li-
bertá-lo. Essa postura, um tanto detetivesca – Sherlock Holmes na procura
do desvendamento do crime, seguindo a proposta de Carlo Ginsburg (1991)
no seu delicioso trabalho Chaves do mistério: Morelli, Freud, e Sherlock Hol-
mes – caracteriza não só uma época. Ela reaparece nos começos da formação
e marca, às vezes demasiadamente, o estilo em que alguns analistas conce-
bem a sua prática. É verdade que certa desconfiança faz parte do savoir faire
de todo analista, entretanto, esses traços assumem, em alguns, matizes fran-
camente persecutórios.

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A transferência é uma descoberta demorada. Embora o conceito fora
usado no contexto da Interpretação dos sonhos como sinônimo de deslocamento
ou transporte, seu papel fundamental na prática da psicanálise foi incorporado
lentamente. Acostumamo-nos a pensar a transferência associada à resistên-
cia, a mais poderosa resistência no campo da psicanálise. A qualificamos de
positiva ou negativa, segundo seja carinhosa ou hostil.
Os conceitos de transferência e resistência tornam mais complexo o
trabalho do detetive-psicanalista. Não se trata só de uma leitura de indícios. Sua
presença faz dele próprio uma pista. A sua leitura é por sua vez assimilada pelo
paciente e variará segundo o lugar aonde o analista é colocado. Lugar materno,
paterno, fraterno, lugares clássicos que a psicanálise pesquisou como os lugares
da repetição transferencial. Repetição que faz obstáculo e permite ao mesmo
tempo a elaboração na transferência. A ideia de uma contratransferência con-
comitante complica mais o processo. Quer seja na sua versão de transferên-
cia do analista, quer naquela outra, sentimentos do analista provocados pelas
identificações projetivas do paciente, a que nos acostumou a escola inglesa, a
contratransferência ocupou o cenário da psicanálise gerando controvérsias.
A interpretação e a análise mesma mudou a partir da introdução do
conceito de transferência. Conceitos como o de neurose de transferência as-
sim o testemunham. A prática da psicanálise se centrou na análise da trans-
ferência. Freud sustentou que a neurose deve ser substituída por uma neurose
artificial gerada no setting analítico.
Contudo, analisar a transferência não deve confundir-se com autor-
referência. Nem sequer nas orientações que entendem a transferência como
abarcando a totalidade da relação analisando-analista, que comungam com o
que, no final dos anos 1960, ficou denominado técnica de tradução simultânea,
analisar a transferência significou transpor as associações do paciente simples-
mente para a pessoa do analista. Mais ainda, a interpretação da transferência
não supõe necessariamente uma referência explícita à pessoa do analista. Te-
mos nos familiarizado com diferenciações tais como «interpretação DA trans-
ferência» e «interpretação NA transferência» (LAGACHE, 1980) que auxiliam
a conter excessos, às vezes frequentes, no início da formação, decorrentes da
obediência cega e literal das orientações doutrinárias.

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ARTIGO – OSCAR MIGUELEZ
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Gosto particularmente do texto sobre o amor de transferência. O tema


central do artigo, a transferência erótica, em si mesmo instigante, é alternado
com assuntos aparentemente laterais, embora marquem modos diferentes de
conceber a prática analítica. Já no primeiro parágrafo surge uma interessante
questão. Freud (1915/1976, p. 163) afirma:

Todo principiante em psicanálise provavelmente se sente alarmado, de início,


pelas dificuldades que lhe estão reservadas quando vier a «interpretar» as as-
sociações do paciente e lidar com a reprodução do reprimido. Quando chega
a ocasião, contudo, logo aprende a encarar estas dificuldades como insigni-
ficantes e, ao invés, fica convencido de que as únicas dificuldades realmente
sérias que tem de enfrentar residem no «manejo» da transferência.

Interpretar as associações é confrontado com manejar a transferência. O


manejo da transferência parece não só algo mais difícil, também algo mais amplo
que a interpretação, de uma natureza diferente. Quando se compara a interpretar
parece simples, nos diz Freud. Efetivamente, quando um paciente declara aber-
tamente estar enamorado de seu analista, a interpretação torna-se insuficiente.
Cria-se uma situação que requer manejo. A insistência em interpretar pode ter
valor de rechaço. As palavras perdem seu poder evocativo, metafórico, e são li-
das como indicadoras de aceitação ou rejeição. Sabemos que foi por isso mesmo
que o amor de transferência foi pensado como transferência negativa, como re-
sistência. Mais ainda, a subjetividade do analista está aqui particularmente em
jogo. Supondo que ele próprio não se veja envolvido, é no mínimo exigido dele
uma resposta comprometida na qual a isenção parece encontrar seus limites.
Ora, é essa uma situação de exceção? A tão mencionada neutralidade
do analista exclui o compromisso? Acreditamos que não.
Nestes mais de 100 anos de psicanálise a aplicação da psicanálise além
das fronteiras da neurose, o trabalho com psiquismos não atravessados pela
simbolização, o descobrimento de novas patologias, o tratamento dos chama-
dos casos difíceis obrigaram os psicanalistas a ampliar seus recursos e a rever
muitos dos procedimentos clássicos.

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ARTIGO – AMOR DE TRANSFERÊNCIA 45
Muito se discutem hoje as fronteiras da psicanálise. Não há encontro
de psicanalistas no qual não surja a questão do que é e do que não é psicaná-
lise. Essas discussões têm frequentemente um caráter meramente narcisista,
o sempre comentado narcisismo dos analistas. Trata-se de afirmar que o que
«eu» faço é análise e o que o «outro» faz não o é. Entretanto, o desafio continua
sendo o de dar conta de uma clínica cada vez mais complexa.
Gosto muito de uma metáfora que Silvia Bleichmar utiliza para pensar
essas fronteiras: quando há inconsciente constituído, sintoma, atravessamento
da linguagem, estamos na Manhattan da psicanálise; em muitas psicanálises,
contudo, não saímos do Bronx.
É nesse sentido que acho o texto de Freud Observações sobre o amor de
transferência (1915/1976) exemplar. Não só ele nos coloca frente aos limites do
interpretável, frente àquilo que requer manejo, condução – intervenção vai a
preferir Lacan – como faz do vivido transferencial um tratamento surpreen-
dente. Apesar dos argumentos em prol de uma teoria da repetição do infantil,
o vivido transferencial, embora repetição, é visto como tendo o mesmo status
de realidade que qualquer outra vivência. O amor transferencial é tão subs-
titutivo quanto qualquer outra escolha erótica da vida psíquica do paciente e
nesse sentido não é menos real.
Diz Freud (1915/1976, p 171):

Em outras palavras: podemos verdadeiramente dizer que o estado de enamo-


ramento que se manifesta no tratamento analítico não é real?
É verdade que o amor consiste em novas adições de antigas características e
que ele repete reações infantis. Mas este é o caráter essencial de todo estado
amoroso. Não existe estado deste tipo que não reproduza protótipos infan-
tis. (...) Resumamos, portanto. Não temos o direito de contestar que o estado
amoroso que faz seu aparecimento no decurso do tratamento analítico tenha
o caráter de um amor ‘genuíno’. Se parece tão desprovido de normalidade,
isto é suficientemente explicado pelo fato de que estar enamorado na vida
comum, fora da análise, é também mais semelhante aos fenômenos mentais
anormais que aos normais.

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ARTIGO – OSCAR MIGUELEZ
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É justamente nesse realismo da transferência que ela encontra seu


poder na cura. É por esse realismo também que a transferência é lugar de ne-
ogênese e transformação.
Ainda uma questão em relação à regra de abstinência. Nada do que es-
tamos falando significa que apoiamos o que ficou chamado a tentação feren-
cziana. Sabemos que Ferenczi (1993) propôs nos anos 1920 modificações na
técnica. A chamada técnica ativa foi proposta no artigo, Dificuldades técnicas
de uma análise de histeria, hoje um clássico, seguido depois pela proposta da
chamada análise mútua. Sem desmerecer a coragem, a inteligência e a criati-
vidade desse autor, o rebelde da psicanálise pioneira, é minha opinião que há
uma diferença fundamental entre sair de Manhattan para entrar no Bronx e
sair de Manhattan para afundar no rio Hudson. Faço minhas as palavras de
Freud na célebre carta que em 1931 enviou a Ferenczi:

Até o presente nos temos mantido, na nossa técnica, fiéis ao princípio de que
aos pacientes deve-se lhes negar toda gratificação erótica. Você sabe também,
que aí onde não existe a possibilidade de gratificações mais intensas, estas
são facilmente substituídas por carícias menos íntimas, tal como acontece
em determinado momento, no curso de uma aventura amorosa ou como no
caso do cenário teatral, etc.
Agora bem, imagine você que resultado pode ter comunicar publicamente
sua técnica. Não há revolucionário que, no seu momento, não seja deslo-
cado a sua vez por um outro mais radical que ele. Seriam muitos os franco-
-atiradores em matéria de técnica que diriam a si mesmos: Por que vamos
deter-nos no beijo? Certamente não poderá conseguir-se mais se recor-
rendo ao manuseio, que depois de tudo não vai gerar criança alguma. Mais
tarde chegaram outros, mais audaciosos, que estenderam essas liberdades
ao olhar e mostrar... e pronto veremos a aceitação, na técnica psicanalí-
tica de todas as formas de jogos vigentes no mundo da semi-virgindade
e as carícias, isso tudo conduziria a um incremento enorme do interesse
pela psicanálise tanto por parte dos analistas como dos pacientes. (JO-
NES, 1970 p 200)

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ARTIGO – AMOR DE TRANSFERÊNCIA 47
Ora, negar aos pacientes toda gratificação erótica também não deve
confundir-se com assumir uma posição inatingível. Há momentos de uma
análise – para não dizer que em toda análise há esses momentos – nos quais
a interpretação discursiva não basta. O paciente precisa perceber que está na
presença de um outro humano, comprometido, limitado pela sua subjetivi-
dade. A interpretação encarnada do analista tem valor de alteridade e a trans-
ferência valor de experiência mutativa.
Recentemente comentei com um colega o rascunho deste trabalho. Fa-
lei-lhe que pretendia acentuar esses dois aspetos do texto de Freud: manejo da
transferência e realidade da transferência. Ele me escreveu então o seguinte:
«...gostaria que você me esclarecesse ao que você se refere com a palavra ma-
nejo que você opõe a interpretação. Está você aludindo ao que Lacan chama
ato analítico, entendido como uma ação, que pode ser de palavra, que produz
um efeito de corte no real, e por isso a temática que você quer abordar é a re-
alidade da transferência?»
Achei que meu colega estava me perguntando em última instância se
eu tinha virado lacaniano. Sem entrar no mérito dos patrulhamentos, laca-
nianos ou antilacanianos, achei sua pergunta interessante. Em primeiro lu-
gar, devo reconhecer que é verdade que devemos a Lacan e a sua obra muito
mais que à escola lacaniana, a preocupação por revisar certos modos de con-
ceber nossa prática. Essa preocupação foi particularmente fecunda em relação
ao conceito de transferência. Foi o texto de Freud, Observações sobre o amor de
transferência (1915/1976), inspiração central do seu seminário VIII dedicado à
transferência. O viés que Lacan adotou nesse seminário – a análise do amor,
o amor cortês, o amor divino – pouco tem a ver com o que me propunha a
trabalhar. Mesmo assim, o conceito de ato analítico, sua crítica a uma psica-
nálise puramente hermenêutica e nesse sentido meramente interpretativa,
formam parte do repertório de recursos que a psicanálise acumulou nestes
100 anos de existência.
O problema com Lacan é que é difícil pensar seus pensamentos. Não
só porque é um autor difícil, mas também porque uma espécie de aparelho de
influência toma conta de nosso pensar e anula o nosso pensamento. É curioso

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ARTIGO – OSCAR MIGUELEZ
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

observar o fenômeno do lacanismo. Ele é próximo dos fanatismos religiosos


tão em moda nesse nosso mundo pós-moderno. Temos muito a aprender com
ele se conseguirmos brecar o efeito sugestivo, sim da sugestão transferencial,
que ele próprio denunciou como presente em toda transferência.
Feito esse rodeio retomemos o texto de Freud e o assunto central: a
transferência erótica. Parece evidente que são histéricas, na maioria, as pa-
cientes que Freud imagina como capazes de erotizar a transferência.
Ele afirma que na sua reivindicação amorosa as pacientes procuram:

(...) certificar-se de sua irresistibilidade


(...) destruir a autoridade do médico rebaixando-o ao nível de amante
(...) fazendo uso de uma declaração de amor como meio de colocar à prova a
severidade do analista, de maneira que, se ele mostra sinais de complacência,
pode esperar ser chamado à ordem por isso. (FREUD 1915/1976, p. 166)

Ou seja, todos os ingredientes de um bom quadro de histeria: uma po-


sição reivindicadora assentada no complexo de castração, uma sexualização
das figuras paternais, ligada à insatisfação edipiana, uma rivalidade fálica com
os homens e, por último, uma inocência de consequências castradoras. Esse
conjunto de fenômenos não oferece hoje as mesmas dificuldades de manejo
criadas aos pioneiros. Há uma farta literatura de apoio, entretanto, a cautela e
a prudência – o tato – são sempre necessários.
Outro tipo de pacientes, evocadas e não diferenciadas das primeiras no
texto, seriam as mulheres de paixões poderosas (...), que não toleram substi-
tutos. São filhas da natureza que se recusam a aceitar o psíquico em lugar do
material e que, nas palavras do poeta, são acessíveis apenas à “lógica da sopa,
com bolinhos por argumentos”.
Continuamos aqui dentro do campo da estrutura histérica mas, em
uma modalidade que poderíamos chamar mais atuadora, com tendência maior
ao acting out e uma também maior dificuldade de simbolização.
Agora bem, sabemos quão frágeis são as fronteiras que separam esse
tipo de pacientes de algumas modalidades da paranoia, em especial de algumas
formas da erotomania, assim como do desafio perverso. Com que facilidade a

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ARTIGO – AMOR DE TRANSFERÊNCIA 49
reivindicação fálica se tinge de nuanças persecutórias. Que difícil pode resultar
em alguns casos discriminar o desejo de vingança derivado da humilhação de-
corrente da abstinência do analista de uma vingança produto de uma atividade
delirante em estruturação. Como custa, em algumas circunstâncias, separar
o ressentimento neurótico de algumas das formas do rancor paranoico. Sabe-
mos que não estar atentos a essas diferenças, não calcular adequadamente os
perigos envolvidos, pode ter o preço de uma vida, às vezes a do analista. Quem
está familiarizado com o ambiente psicanalítico paulista sabe que não estou
falando metaforicamente. É conveniente quando abordamos as questões da
paixão amorosa não banalizar. É esse um terreno de bordas imprecisas e de
consequências a miúdo devastadoras.
Queria referir-me, para terminar, a algumas formas de transferência me-
nos graves, mas não por isso menos dramáticas, nas quais a presença do analista
é recoberta por uma tensão que ameaça o faz de conta da análise. Tudo acon-
tece como se um plus de realismo tivesse que ser a todo momento neutralizado.
Como se o dispositivo analítico perdesse sua artificialidade e ficasse impregnado
de uma exagerada substância. Não se trata, porém, de pacientes com defeitos na
sua simbolização, mas sim com carências precoces: orfandades, afastamentos
bruscos das figuras parentais na mais terna infância. A transferência oferece já
não um lugar para o re-ordenamento do vivido, senão do nunca experimentado.
Surge então um erotismo, um «não basta dizer», uma necessidade de ir além das
palavras. Suponho que esse tipo de pacientes, pela sua qualidade afetiva, pelo seu
desamparo, desperte mais que outros a tentação ferencziana.
Vivemos épocas duras. A psicanálise perdeu parte do seu prestígio social
e do seu charme. Cabe a pergunta de se isso não é também algo bom. Os psica-
nalistas nos acomodamos nesse prestígio e descansamos demais deixando de
fazer trabalhar a própria psicanálise. A ortodoxia está em baixa. Parece que so-
mos agora obrigados a inovar. Frente à arrogância analítica transformada em
maltrato do paciente, parece que não fica outra alternativa que re-flutuar velhas
técnicas de maternagem. Hoje está na moda confessar pecados e/ou fazer deles
prova de plasticidade. É necessário mais do que nunca separar a procura do novo
da reedição da velha sedução transferencial que tanto preocupava Freud quando
escreveu este artigo. É entre outras coisas por isso que ele parece tão atual.

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ARTIGO – OSCAR MIGUELEZ
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

Transference love

ABSTRACT: Taking Freud’s text Transference Love as a starting point, this paper
discusses issues related to the handling of the erotic transference in the context
of the constant demands in the psychoanalysis renovation and updating after
100 years of its existence.

KEYWORDS: Transference handling and reality; Erotic transference; Plasticity;


Seduction transference.

REFERÊNCIAS
BLEICHMAR, S. En los orígenes del sujeto. Buenos Aires: Amorrortu, 1986.
______ . A fundação do inconsciente. Porto Alegre: Artes médicas, 1994.
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GINSBURG, C. Chaves do mistério: Morelli, Freud, e Sherlock Holmes. In: ECO,
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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
ARTIGO – AMOR DE TRANSFERÊNCIA 51
Comentário
Passados quase 15 anos da versão original deste trabalho, eu continuo concor-
dando com as ideias nele expressas, por esse motivo, foi incluído no meu livro
Narcisismos (Editora Escuta, 2007), do qual procede a atual versão publicada
pelo Boletim. Contudo, um esclarecimento seja talvez necessário. No final do
milênio viviam-se momentos de grande ebulição na psicanálise. Por inicia-
tiva de René Mayor fora feito um chamado aos Estados Gerais da Psicanálise.
Essa convocatória teve ampla difusão em São Paulo e trabalhos preparatórios
foram realizados com grande participação de psicanalistas das mais variadas
tendências e inserções institucionais. O tema “do que fica e do que muda” na
psicanálise depois de 100 anos de existência estava no âmago das discussões.
Esse contexto ajuda a compreender o acalorado preâmbulo colocado como re-
sumo no Boletim, que reproduz o parágrafo final do trabalho.
Apesar do movimento dos Estados Gerais da Psicanálise ter abortado
em 2003, não tendo continuidade hoje, as perguntas nele levantadas conti-
nuam vigentes, porém, confinadas a redutos institucionais está.

Oscar Miguelez
Capote Valente 439, cj. 113
05409-001, São Paulo, SP
(11) 3081 1829
oscarmig@uol.com.br

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ARTIGO – OSCAR MIGUELEZ
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

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Artigo
A constituição do espaço
ou campo psicanalítico
HOMERO VETTORAZZO FILHO

RESUMO: O autor discute a constituição do campo analítico sob o vértice da me-


tapsicologia da prática analítica. Toma questões enfrentadas pela psicanálise no
momento atual como ponto de reflexão, que pensado metapsicologicamente
pode propiciar uma abertura no campo analítico em função de uma escuta
mais eficaz ao sofrimento das subjetividades contemporâneas.

PALAVRAS-CHAVE: Campo analítico; Metapsicologia da técnica analítica; Técnica


analítica; Escuta analítica; Prática analítica.

Uma reflexão sobre a constituição do campo analítico nos leva de imediato à


questão da metapsicologia da prática analítica que, a nosso ver, é onde reside
nosso campo de pesquisa e de contínuo levantamento de questões contem-
porâneas, a serem pensadas e desenvolvidas dentro da especificidade da psi-
canálise e da singularidade do seu objeto de estudo. Penso ser somente nesse
contexto que podemos prosseguir desenvolvendo a metapsicologia psicana-
lítica e manter a psicanálise viva dentro das atuais demandas do sofrimento
humano na sociedade contemporânea. Médico, Mestre em
A psicanálise, em função de um enclausuramento dogmático por parte Medicina, Psicanalista e
Professor do Departamento
dos analistas e das instituições psicanalíticas, tem perdido sua escuta séria e Formação em Psicanálise do
inquietante sobre o “estranho” que nos habita, deixando assim que o caráter Instituto Sedes Sapientiae.

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ARTIGO – HOMERO VETTORAZZO FILHO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

revolucionário e inovador de sua origem se acomodasse num enrijecido sis-


tema explicativo, que tem se mostrado fora de compasso, ineficiente e distante
frente ao tipo de demanda, oriunda da forma imediatista que a cultura atual
tem desenvolvido no sentido de se lidar com a dor, o prazer e o gozo. Não creio
que a questão seja colocarmos uma roupa mais moderna no estilo das terapias
que estejam tendo maior procura. Penso que a questão se trata mais de sair-
mos do lugar de um saber defensivo e somente interpretativo e voltarmos a
pesquisar e nos interessarmos pelo o que está acontecendo conosco analistas
e com nossa prática clínica. Podermos voltar a pensar, criar, fazer teoria e pes-
quisar a partir de nosso próprio trabalho clínico, tendo sempre em mente em
nossa pesquisa o momento cultural em que estamos inseridos e que é gerador
de sexualidade e de inconsciente. O encontro analítico é um ato vivo, pulsio-
nal e não uma conversa explicativa e dogmatizante.
Birman (1999), em O Mal-estar na atualidade, levanta questões muito
interessantes nesse sentido, ao tratar da situação atual da psicanálise e dos
psicanalistas. Diz ele que, apesar de termos crescido muito, tanto em número
de analistas quanto de instituições psicanalíticas, parece ter se produzido “um
vasto contingente de individualidades homogeneizadas, que não se apresen-
tam com marcas singularizantes e estilo próprio de existência”. Esta homo-
geneidade, destruidora de singularidades, tem acarretado, na visão do autor,
um grande prejuízo nas discussões entre os analistas, já que estas acabam se
transformando em confrontos pasteurizados de diferenças de filiação teórica.
Tal situação, além de muito pouco contribuir no desenvolvimento da teoriza-
ção psicanal1tica, colabora negativamente na dogmatização e engessamento
de conceitos originalmente criativos e inspiradores.
O reflexo disso se faz de imediato presente também na clínica (e por-
tanto na pesquisa clínica), onde o analisando corre o risco de ser doutrinado
e também homogeneizado, dentro dos padrões conceituais analíticos, no pro-
tótipo do que seria uma pessoa analisada, portanto, reflexiva, que pensa an-
tes de agir, mais introspectiva, menos angustiada, que considera e repara o
objeto e conhece tudo sobre seu édipo, seu sadomasoquismo, sua inveja e sua
culpa persecutória. Assim precisamos, segundo Birman (1999), considerar
nossa responsabilidade quando, ao sermos hoje em dia procurados para uma

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análise, o pretendente já de saída nos advertir que deseja uma análise mais
viva, efetiva e menos “ortodoxa”.
Com tudo isso, notamos que estamos enfrentando uma situação onde
a psicanálise como projeto não mais se coaduna com os imperativos sociais
da atualidade.
Retomo, nesse sentido, outras considerações feitas por Birman (1998),
em que discute o crescente desinteresse das pessoas na atualidade pela realiza-
ção de análise, ao lado de um interesse significativo por outras modalidades
de psicoterapias e tratamento com psicofármacos. Está existindo, no dizer do
autor, uma busca preferencial das subjetividades em sofrimento no “mercado
de bens de salvação”, seja ele representado pela religião propriamente dita,
mas também por formas de psicoterapias que prometem a cura rápida. Grande
ainda é o alívio procurado na droga adição. Isto parece ir ao encontro do que
se observa na sociedade contemporânea, onde os valores individuais têm se
figurado no culto ao narcisismo e os valores sociais numa cultura de espetá-
culo. O importante dessa situação nos parece ser a proposta-conclusão de Bir-
man: “Estas novas modalidades de inserção das subjetividades no mundo da
atualidade impõem que repensemos, com urgência, os fundamentos de nossa
leitura das subjetividades.”
Fica claro que a psicanálise precisa deixar-se penetrar pelo momento
social que vivemos, para encontrar, na especificidade de seus fundamentos,
ressonâncias que permitam transformações e desenvolvimentos em sua me-
tapsicologia, tanto no que diz respeito a sua conceitualização teórica como na
metapsicologia de sua prática clínica.
O que percebemos hoje em nossos consultórios é que temos cada vez
mais nos defrontado com um sofrimento que não pode ser pensado. Não pa-
rece ser o caso de ficarmos classificando estas subjetividades como não-ana-
lisáveis, mas sim de procurarmos, dentro da metapsicologia, fundamentos
para pensarmos a questão. Birman (1999), de certa forma, aborda o problema,
quando alerta para o esquecimento progressivo na prática clínica da presença
do corpo na experiência do sujeito. Assim, diz ele, esqueceu-se de que a subjeti-
vidade tem um corpo e que é justamente neste que a dor literalmente se enra-
íza. Ressalta, ainda, que este campo na atualidade foi entregue pelos analistas

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ARTIGO – HOMERO VETTORAZZO FILHO
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e, por outro lado, assumido pela medicina, pela psiquiatria e pelas terapias
corporais. Isso na prática clínica psicanalítica traz consequências imediatas;
primeiro denuncia a surdez em relação ao corpo entre nós analistas e conse-
quentemente grande parte do mal-estar na atualidade ficaria fora da modali-
dade psicanalítica de escuta.
Outra consequência disto, no que diz respeito à constituição do campo
analítico, é que com efeito conferir ao corpo e ao afeto um lugar crucial na lei-
tura da subjetividade, é também considerar que a prática analítica não é ape-
nas uma escuta do psiquismo, mas uma modalidade de ação - o que Freud já
tinha denominado, no início de sua obra, de ato psicanalítico.
A cura psicanalítica implica, portanto, numa teoria de ação (não de
atuação), com a necessidade de se retomar e desenvolver uma articulação me-
tapsicológica entre a ação analítica e o estatuto corpo-sujeito em psicanálise.
Na verdade esta proposta resume-se no que, a nosso ver, no trabalho
clínico figuraria a constituição de um campo analítico.
O analista no encontro com o analisando ocupa um lugar onde sua in-
tuição analítica, fruto de sua apropriação da teoria psicanalítica e de sua própria
experiência de análise pessoal e de intimidade com sua turbulência pulsio-
nal, torna-o mais suscetível de ser penetrado e contaminado pela fala do ana-
lisando, podendo assim experimentá-la como “palavra encarnada”. A intuição
analítica, utilizada a serviço de um saber pré-estabelecido sobre o analisando,
pode repelir defensivamente qualquer penetração pela fala deste (dita ou não
dita) e com isto cooperar para uma homogeneidade e burocratização do campo.
Propomos nos atermos então a alguns desenvolvimentos teóricos, que
pensamos terem contribuído na direção acima proposta, proporcionando im-
portantes implicações clínicas na constituição do campo analítico.
Retomamos neste sentido a origem da sexualidade humana como ad-
vinda do encontro com um Outro. Do apoio nos cuidados autoconservativos se
constitui a sexualidade humana e a erotização de um corpo, que sempre será
um corpo erógeno pulsional e jamais um corpo biológico. Sobre a existência
desse último com suas funções não discordamos, mas que toda sua represen-
tação seja sempre pulsional ou erógena parece inevitável, pois a representação
é a tradução ou o registro psíquico da pulsão.

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Laplanche (1993) desenvolve uma interessante metapsicologia do
processo analítico a partir dessa dissimetria onde o sexual, o pulsional
nasce do apoio no autoconservativo diferenciando-se, entretanto, total-
mente desse último.
Na clínica trabalha essa questão em termos do adaptativo e do sexual
presentes e se “constituindo” no encontro analítico.
O autor vai marcar pontos dessa dissimetria original, a serem reto-
mados na clínica, que muitas vezes se encontram, a seu ver, sobrepostos nas
postulações freudianas. Marca, também, a discriminação de autoerotismo e
narcisismo, às vezes sobrepostos por Freud, cuja diferenciação tem importân-
cia já que se apresentam como distintas formas de expressão e de figuração
do sexual que se constitui no encontro analítico.
Isso nos parece importante no sentido de se reintroduzir, na sessão, a
escuta do corpo e da palavra encarnada.
Laplanche (1993) postula metapsicologicamente o encontro analítico
segundo o modelo da Tina[1], onde toma a Tina dentro do modelo de produção
de sonhos e transferências e, portanto, produção de um sexual com necessi-
dade de traduções.
Esse modelo da Tina é para Laplanche uma maneira de realçar os pon-
tos de tangência entre o sexual e o autoconservativo, de onde se produziu o
sexual. Com isto, o autor alerta para o erro epistemológico que pode acontecer
na sobreposição dos dois planos; onde o sexual poderia ser tratado numa ses-
são analítica como o “modo de se falar”, perdendo-se totalmente de vista a re-
lação de articulação e gênese dos dois planos. O sexual não reveste ou dá cor
ao adaptativo, forma-se em seu apoio mas gera um outro campo totalmente
distinto - o da pulsão.

1. Laplanche postula a origem do sexual e do inconsciente no encontro com o outro humano sexu-
alizado, que ao cuidar também sexualiza. Através do modelo da Tina propõe que, no encontro ana-
lítico, a reprodução da situação originária se dá em cada sessão, onde um campo sexual é gerado,
a partir de sua derivação tangencial no adaptativo presente no setting e na fala manifesta do ana-
lisando. O campo sexual, reprodução desse originário com seus significantes enigmáticos e cons-
tituído novamente a cada encontro, procura continuamente traduções através das transferências.

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Isto abre caminho para importantes questões a serem tratadas na cons-


tituição do espaço analítico, as quais faremos apenas breves considerações; a
saber a relação entre informação e comunicação.
Bleichmar (2000) enfatiza que qualquer informação não pode ser consi-
derada a não ser no contexto de informação libidinal, já que todo ato de repre-
sentação é co-extensivo a um ato de catexização, e que todo ato de catexização
se origina na tendência psíquica de preservar ou reencontrar uma experiên-
cia de prazer. Isso traz à tona a questão de que estamos continuamente conde-
nados a investir (e, portanto, a gerar inconsciente); mas mais do que investir
estamos condenados a representar nossos investimentos. Nisso reside o trau-
mático da sexualidade constituída no encontro com o Outro, onde o montante
de excitação gerado não se acompanha de uma possibilidade equivalente de
traduções ou derivações representacionais. Entretanto, é também nesse “con-
denado a representar” que o indivíduo vai poder engendrar novas representa-
ções e possibilidades de traduções pulsionais.
Fica claro que precisamos não sobrepor o pulsional da informação ao
conteúdo intelectual da comunicação, ou ainda, dito de outra forma, no ato
analítico existe um “in-forme” que não é linguagem comunicacional.
Abriríamos, ainda por associação, duas outras questões: a da signifi-
cância contida na fala do analisando e sua possibilidade de figuração a partir
da escuta analítica; e a condição interpretante do analista em lugar de uma
postura interpretativa ou de interprete decifrador.
É nesse sentido que, no encontro analítico, a abertura do campo guarda
relação com a possibilidade de, através de pontes ou aproximações simbólicas,
colocarmos a fala do analisando (dita ou não) em ressonância com os signos ou
elementos significantes nela contidos, permitindo-nos assim transformarmos
estes signos em mensagens a serem significadas e enunciadas.
Em íntima relação com o acima exposto encontramos importantes
desenvolvimentos metapsicológicos como a função do holding trabalhada por
Winnicott (1990), e a conceituação do rêverie, desenvolvida por Bion (1988).
Em associação ao rêverie, lembramos que rêve vem do francês signifi-
cando sonho, apontando para a questão da capacidade de sonho do analista du-
rante o encontro analítico. Entenda-se esse sonhar no sentido metapsicológico

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do sonho, e não como uma anátise “zen”. O sonhar, na sessão, diz respeito à
constituição do espaço analítico, onde o sexual pulsional produzido no encon-
tro procura, como no sonho, a possibilidade de derivações e transferências.
Assim, o sonhar na sessão estaria a serviço da recuperação da signifi-
cância das palavras, encarnando-as, e de fornecer “ao vivo” pontes simbólicas
que permitam ao analisando significar a vivência emocional (sexual) em curso.
Neste sentido, ressaltamos a condição do analista mais como interpre-
tante, possibilitador de uma trama simbólica a ser constituída pelo analisando,
do que como a de um interprete de significados. Não que esta função tenha se
perdido, mas deve se ter cuidado para não se obturar o campo analítico atra-
vés dela. Piera Aulagnier (1990) figura esta questão com extrema sutileza ao
nomear dois de seus livros de Um intérprete em busca de sentidos, ou seja, se o
analista os busca é porque ele não os tem e precisa constituí-los.
Pensamos já poder introduzir outra contribuição significativa no que
diz respeito à escuta analítica e à constituição do espaço analítico, que é tra-
zida por Fédida (1998) e que guarda ressonâncias com a questão do sonhar do
analista na sessão que, por sua vez, associa-se à atenção flutuante proposta
por Freud (1912/1969).
Fédida (1988) trabalha metapsicologicamente sua proposição partindo
da retomada da significância da palavra. Para isso, afirma o autor, que a epis-
temologia própria à teoria psicanalítica não é de forma alguma dissociável da
experiência de análise e, neste sentido, de sua técnica, ou seja, da condição de
linguagem do trabalho analítico.
Fédida propõe uma ampliação no campo de escuta da fala, conside-
rando-a para além do tempo da narrativa dos acontecimentos, ressaltando
um tempo interno da fala, ou seja, o da memória da língua. Este é o terreno
metapsicológico que o autor nos propõe, e que na prática clínica traduz-se pela
ênfase que coloca nas ressonâncias provocadas pela fala do analisando no ana-
lista e vice-versa durante o ato analítico. A memória da língua seria assim ou-
tra condição do sonhar do analista.
Ainda no sentido de propiciar a condição de sonho, pensado no sentido
metapsicológico, Fédida (1992) reforça a importância da negativação da pessoa
do analista, que saindo do campo perceptivo imediato do analisando, permite

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a projeção do sonho. Ressalta, ainda, a dificuldade na escuta de pacientes que


insistentemente fazem referência à “pessoa” do analista, voltando a atenção
deste para sua realidade material.
Lembramos, neste sentido da presentificação, que as transferências,
apesar de atuais no espaço analítico, não são com a “pessoa” do analista, erro
comum quando ao se chamar a transferência para “si” no “aqui agora” da ses-
são acaba-se por esvaziá-la e por atribuir-lhe, assim, estatuto de realidade ex-
terna e não de “insight”.
Esta presentificação pode estar sendo atuada não só pelo analisando.
Neste sentido Laplanche (1993) alerta para o perigo do uso do setting
pelo analista, que se sentindo dono dele pode sacralizá-lo ou manipulá-lo.
Lembra ainda aos analistas para o abandono das representações, meta de sua
escuta, ou seja, abandonar assim o desejo de cura, de perseguir sintomas; por-
tanto, de uma desaprendizagem do adaptativo.
Estas considerações nos levam a outra reflexão que é o descentramento
das subjetividades numa perspectiva de uma abertura da escuta analítica.
Estamos aí frente a um ponto delicado a ser considerado. Freud propôs
pelo menos dois grandes descentramentos das subjetividades: inicialmente o
da consciência (e, portanto, do ego) em relação ao inconsciente e do sujeito em
relação ao seu mundo pulsional, que é constituído no encontro com o Outro.
Este último descentramento original foi minimizado e mesmo esque-
cido por certos movimentos psicanalíticos, nos quais se defendeu uma sepa-
ração muito precisa entre mundo interno e externo, colocando-se onde temos
um limite borrado e impreciso (o lugar do originário da pulsão), um limite
pretensamente nítido (interno-externo; eu-outro; subjetividade-cultura).
Esta situação foi levada ao extremo pela tradição americana da psico-
logia do ego e análise do ego, tendência que cooperou para o enrijecimento e a
burocratização da prática analítica, pelo exercício de uma psicanálise aplicada
com suas nefastas consequências tanto para a pesquisa clínica como para a
perda da singularidade da análise.
A vitalização da psicanálise está, a nosso ver, em retomarmos nossa
experiência clínica como viva, pulsional, não adaptativa. Fédida (1992), neste

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sentido, enfatiza que psicanálise não é humanismo, marcando o risco da “fami-
liaridade” poder tomar conta do encontro analítico quando este se estabelece
sob a égide dos sentimentos de compreensão humanitária. O autor ressalta,
em contraposição à “familiaridade”, que a possibilidade da escuta do “estran-
geiro”, do “não-familiar”, do “informe” é o que propicia o acesso ao “íntimo”,
e alerta assim, como numa análise a “familiaridade” pode opor-se à “intimi-
dade”. Estas são questões a serem consideradas no sentido do analista poder
ampliar sua escuta, para permitir a identificação e a nomeação do pulsional,
que não pode ser identificado, pois não encontra lugar de expressão no sistema
interpretativo que o ego constituiu de si mesmo.
Para encerrar, julgamos necessário fazer breves comentários sobre a
implicação do analista na constituição do espaço analítico.
A questão da formação do analista, de sua análise pessoal e da análise
de supervisão postulada por Fédida (1992), numa inspiração ferencziana, são
condições propiciadoras da escuta analítica.
A experiência da própria análise é fundamental, especialmente se
essa não é vivida como “normatizante”, mas ao contrário como propiciadora
de uma escuta íntima da própria turbulência pulsional que nos habita, pois
aí também reside nossa singularidade e vitalidade. A turbulência pede tra-
dução, figuração, transferências, mas tem que ser identificada como o pul-
sional a procura de representação. Nesse sentido, a cura psicanalítica difere
muito das psicoterapias de ego, das terapias breves ou da cura psiquiátrica,
mas, nem por isso é menos viva e exitosa ou vai menos de encontro ao que
o paciente procura. Cabe a nós podermos ouvir o sexual-pulsional na de-
manda manifesta.
Ainda em relação à possibilidade de escuta e, portanto, de constitui-
ção do campo analítico, ao lado da formação institucional e da análise pessoal,
preconiza-se a higiene mental do analista que deve proporcionar a si mesmo
experiências em outras áreas: da estética, literatura, das ciências, etc., que for-
neçam elementos (restos diurnos) que o ajude em sua escuta, possibilitando
a tessitura de pontes simbólicas para o pulsional (capacidade de sonho) que
constitui o campo analítico.

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ARTIGO – HOMERO VETTORAZZO FILHO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

The constitution of the analytical field

ABSTRACT: The author discusses the constitution of the analytical field through the
metapsychology of the anlytical practice. He deals with issues currently faced by
Psychoanalysis as a point of reflection. The fact of thinking of that in a metap-
sychological way can allow the analytical field to be broadened by listening to the
suffering of the contemporary subjectivities more effective

KEYWORDS: Analytical field; Metapsychology of the analytical technic; Analytical


technic; Analytical listening and practice.

REFERÊNCIAS
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Alegre: Artes Médicas, 1990.

Homero Vettorazzo Filho


Foi médico, psicanalista, professor e supervisor, cuja presença
abrilhantou o curso do Departamento Formação em Psicanálise do
Instituto Sedes Sapientiae. Deixou enorme saudade. (1950 - 2011).

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Artigo
Contratransferência e o
corpo da analista
SUZANA ALVES VIANA

RESUMO: Este trabalho lida com as relações que podemos pensar existir entre
a contratransferência, o corpo do analista e as manifestações do feminino.
Trata-se de uma primeira incursão na hipótese de que o gênero do corpo do
analista provoca ressonâncias no trabalho analítico e contribui para a estru-
turação do seu discurso.

PALAVRAS-CHAVE: Contratransferência; Corpo do analista; Feminino.

Este artigo, além de teorizar sobre a técnica psicanalítica, representa também


a primeira reflexão escrita sobre um tema com o qual tenho me envolvido nos
últimos tempos, qual seja, o lugar e o sentido que o corpo do analista ocupa no
movimento transferencial.
Junto a esta questão surge uma outra ligada ao sexo deste corpo. Per-
gunto se é possível buscar ressonâncias, provocadas pelo gênero do corpo do
analista, que marquem de modo especial a constituição da sua fala.
Psicanalista e Professora do
A questão é ainda mais específica. Trata de pensar sobre o feminino,
Departamento Formação
desfazendo a equação equivocada de que mulher e feminino se equivalem, o em Psicanálise do
mesmo acontecendo entre homem e masculino, sem, entretanto, perder de Instituto Sedes Sapientiae.
Doutora em Psicologia
vista a especificidade que a anatomia determina. Clínica pelo Instituto
de Psicologia da USP.

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A feminilidade pode ser considerada como uma modalidade do psiquismo da


mulher. Modalidade essencial se se admite que a anatomia é o determinante
do sentimento do corpo, através do qual somos entregues ao nosso destino
sexual. (ANZIEU, 1991, p.13)

Pensar sobre a primeira questão me tem sido mais familiar, porque


ela representa uma consequência do meu trabalho sobre a contratransferên-
cia. Tenho sido levada a pensar que, quando o corpo do analista é usado para
comunicação do paciente, o analista está em contato com uma comunicação
que não pode se organizar ao nível da linguagem verbal, por ser portadora de
um material mais regredido, que se constitui da matéria arcaica das posições
pré-genitais, que, entretanto, elaborada nas ressonâncias contratransferências,
conduz a iluminar a análise, feito um buraco no teto de uma caverna escura
por onde penetra, então, o raio de sol.
Mais difícil tem sido teorizar sobre a constituição da fala analítica, le-
vando em conta que é fala constituída no e pelo corpo de uma mulher.
Como uma primeira incursão é um texto aberto, essencialmente pene-
trável, como deveria ser um texto feminino.
É um texto que procura trazer algumas ideias, estando longe de tê-
-las completado.
Vou começar trazendo fragmentos[1] de sessões de uma paciente e, atra-
vés deles, recortarei a questão da qual me ocupo.

FRAGMENTO 1
O 1° fragmento é apenas uma sensação, uma vivência corporal de para-
lisação que vai tomando conta de mim, na medida em que a sessão transcorre,
sem que eu possa colocar em palavras algo que fizesse sentido.
Também não me é possível recordar as falas desta sessão, mesmo por-
que a sensação corporal é a fala emudecida na paralisia da analista.
Termino a sessão exausta pela sensação de mente vazia.

1. Tais fragmentos estão longe de traduzir todos os movimentos que ocorrem no encontro analista-
-paciente, aqui trago um material condensado do caminho que segui em minhas associações.

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FRAGMENTO 2
Trata-se de uma sessão que ocorre às vésperas de uma entrevista im-
portante para sua carreira profissional.
Vem muito angustiada e fala-me da sua tentativa de decorar uma apre-
sentação para a entrevista, mas quando está treinando vem o vazio, parece que
não vai se lembrar de mais nada.
Sua fala me provoca uma irritação. O que me irrita é a busca de domí-
nio, de controle absoluto, do rigor com que tratava uma falha sua, negando a
dificuldade natural que a situação trazia.
Digo algo, onde aponto que o esforço pela compreensão cognitiva não ia
dar conta disto.
Destaco a palavra cognitiva porque, logo após pronunciá-la, sinto como
se tivesse esmurrado minha paciente.
Ela silencia, nada mais fala no decorrer da sessão, mas, ao longo dela,
vai como que se desmanchando na minha frente.
Seus olhos se avermelham e sua expressão me causa esta impressão:
a de estar se desmanchando.
Não tinha nada para lhe dizer. Perguntava-me se estava sendo uma
analista fria e cruel, mas não me ocorria nada de verdadeiro que pudesse
lhe apontar.
Resolvi suportar, ficar nesse lugar (mesmo sem saber qual era ele),
porque tinha como convicção que estava agindo determinada por uma força
maior do que podia compreender.
Na sessão seguinte, após essa entrevista, chega 25 minutos depois
de seu horário.
É necessário assinalar que ela nunca atrasa ou falta sem me avisar.
Vem com a mesma expressão: um choro que não sai, impressão de
desmanche, como uma massa colocada em água, informe.
A única coisa que me diz é que eu não a compreendi.
Nesse momento experimento a sensação de compreender.
Quando esta paciente ainda era um bebê, seus pais costumavam dei-
xar, junto dela, um cartaz que tinha o contorno e o desenho de uma figura
humana; na sessão chamávamos de babá de papel.

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A hipótese que fiz naquele momento foi a seguinte: para minha pa-
ciente, o compreender[2] garante o desamparo; se não há compreensão, há co-
lisão, como demonstra a sessão.
Num segundo momento, também, pensei: a babá de papel, que é a au-
sência da pessoa e da experiência emocional, não colide.
Seria este seu objetivo: sendo humana, pretendia viver apagando os
vestígios de sê-lo? Ocupava na relação transferencial comigo o lugar babá,
enquanto eu ocupava o lugar que um dia fora o dela: o de quem experi-
menta a irritação por se ver frente a alguém indiferente que não responde
emocionalmente? Era eu, ao mesmo tempo a criança e a babá?
É possível identificar seu esforço cognitivo a um domínio fálico da si-
tuação? A falicidade estando a serviço da necessidade de controlar um perigo,
que colocava em risco toda uma organização que tinha estruturado.
Digo então que ela teve uma experiência real comigo, através da coli-
são; ali eu estivera presente (como pessoa e como analista), e por isto ela fora
ao encontro de uma experiência profundamente perturbadora, porque, ao
experimentar a colisão, sentira muito ódio de mim. Entretanto, esse ódio foi
logo costurado para dentro dela mesma, tão profundamente, que ela perdera
o contato real com ele e, consequentemente, com ela e comigo.
Esta interpretação se fundamentou num sonho que tivera. No sonho,
vê-se costurando uma espécie de túnica (mortalha) sobre corpos, com os quais
uma das associações que tem é com as múmias que visitara, durante uma via-
gem. Mais especificamente, ela costurava para dentro dos corpos uma bomba
à altura dos pés e outra bomba à altura do peito. Seu pai estava ao seu lado,
mas de forma indistinta.
O que lhe chama a atenção é a bomba que, colocada no peito e tam-
bém na altura dos pés, funcionando como um peso, afundaria este corpo, caso
fosse lançado ao mar, ou ao rio; o que procurava descrever era a ideia de que
este corpo seria “enterrado” sob a água.
Através destes fragmentos, gostaria de falar de como teorizo a téc-
nica que se desenvolve na sessão. Mas não estou falando de técnica no

2. Compreender, para ela, representava o trabalho mental sem colisão.

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sentido de um aprendizado que se automatizou e perdeu o contato com
sua origem.
Falo de téchnè, segundo o pensamento aristotélico, onde um fa-
zer comunica-se com um dizer, que é também um pensar. (Apud FÉDIDA,
1986, p. 615)
Começo assinalando que respeito profundamente, quase ao nível
do insuportável, pensamentos e sentimentos que me ocorrem na sessão,
ou, no caso, aqueles que não me ocorrem, como no momento em que opto
por permanecer em silêncio, seja quando me sinto paralisada, seja quando
me sinto uma figura cruel e fria por não compreendê-la. Isto é sustentado
pela minha concepção de que o inédito da análise ocorre num solo que
envolve a transferência (T) do analista para com seu paciente, ou a con-
tratransferência (CT).
O longo tempo de análise com esta paciente sugere-me que temos uma
repressão acentuada, representada pictoricamente no sonho por amarrar o
peso aos pés e, assim, fazer submergir o corpo (de mulher?) e com ele a his-
tória. Uma repressão e não uma falha, no sentido de uma “falta básica”. (BA-
LINT apud KHAN, 1984)
Segundo Balint, a força originada da “falta básica” não tem a forma de
um conflito. Em sua experiência clínica, Khan (1984, p. 219) a descreve como
um estado em que duas pessoas, que podiam estar vivas e reagindo uma à ou-
tra, tivessem sido congeladas e petrificadas uma pela outra.
Aqui, portanto, estou sustentando a ideia de que a CT é a T do analista,
suscitada nele por seu paciente. O paciente estimula os “restos não analisa-
dos” do analista que se atualizam ali, no aqui e agora da sessão, sob uma forma
enigmática que requer então o trabalho da análise.
Em texto anterior (VIANA, 1993), ocupo-me da discussão do que vou
compreender como CT, partindo de dois referenciais teóricos que se opõem:
de um lado, com Freud, considerando a CT como a patologia do analista, que
atrapalha o processo analítico, de outro, uma compreensão, que tem formal-
mente seu ponto de partida com Paula Heimann; com ela temos a CT como
elemento importante para a compreensão do processo analítico.
Aqui não vou me deter nesta discussão.

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Tomo como pronto que uma análise se processa no solo das transferên-
cias, ou seja, o pathei-mathos de uma análise é o tempo dos desdobramentos e
da elaboração das transferências: a do analisando e a do analista.
Ferro, refletindo sobre os modelos teóricos que temos para a aná-
lise, coloca o pensamento de Bion a respeito de como compreende a fun-
ção do analista.

Na sessão estão em jogo emoções, ou melhor, estados de espírito muito pri-


mitivos, que não tiveram ainda acesso à possibilidade de serem pensados e
que estão aguardando que o analista e o paciente, usando de todos os meios
disponíveis, saibam recolhê-los, e não permaneçam neles submersos, e pos-
sam narrá-los um ao outro.
No fundo, o par analítico (e as grupalidades que ativa) está substancialmente
buscando comunicar (verbalmente, mas não só verbalmente) as emoções que
o invadem: frequentemente os personagens são criados ali, no encontro e do
encontro das mentes; são um dos meios possíveis de compartilhar, narrar e
transformar, graças às funções psicanalíticas da mente do analista, estes es-
tados primitivos da mente. (FERRO, 1995, p.16)

O sentido de Psicopatologia, visto da perspectiva que proponho, con-


tém a dimensão do “resto não analisado” do analista, ideia cara a Ferenczi
(1928), que começa assim uma nova concepção de Técnica, porque introduz
o analista e seus processos psíquicos, como sendo fundamentais no pro-
cesso da análise.
Fédida (1986) considera que Ferenczi aproxima-se da tradição esqui-
liana de pathei-mathos, conferindo ao psicopatológico a significação de uma
experiência psíquica, formada no conhecimento da noite humana.
Opõe assim o conhecimento humano, adquirido na noite, graças ao
sonho que ele abriga à exterioridade diurna do conhecimento adquirido por
meio da reflexão (compreender com colisão e sem colisão).
Na tradição lógica-grega do poeta Ésquilo, psicopatológico é a ex-
periência íntima (mathos), constituída pelo sofrimento/paixão (pathos) no
ensino de si.

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– CONTRATRANSFERÊNCIA E O CORPO DA ANALISTA 69
Assim, psicopatológico literalmente quer dizer: um sofrimento que
porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno. O sofrimento
é paixão e não pode ensinar nada, conduzindo inclusive à morte se não for ou-
vida por alguém. Aí está o analista.
Pensemos, agora, por que a CT, ou seja, as vivências afetivas que ocor-
rem no analista têm a ver com o corpo?
O modelo que tenho em mente é o da identificação projetiva.
Se pensarmos com Ferro (1995) que o modelo de Freud se caracteriza
por um alto índice de referenciabilidade histórica, sugiro que o modelo klei-
niano recupera a história do corpo: a arqueologia viva do corpo.
Klein, ouvindo as crianças, se deu conta da importância que têm para
elas os espaços no interior do corpo, seja o corpo da mãe, seja o seu próprio corpo.
A mente se torna um lugar onde existem presenças e acontecem fatos. Segundo
Meltzer (apud FERRO, 1995) o uso de uma imaginação prevalentemente visual
permite a formação de um modelo teatral da mente. No modelo kleiniano a
concepção da atualidade[3] da relação analista-paciente, esclarecida pela com-
preensão das identificações projetivas, enriquece o uso da CT.
A identificação projetiva é compreendida, fundamentalmente, como me-
canismo destinado a livrar a mente de angústias, evacuando-as para fora ou para
dentro do outro, que assim se torna um receptor involuntário desse processo.
Em texto anterior (VIANA, 1993, p. 62) sugeriu que, ao não encontrar
palavras à sua disposição, a angústia contratransferencial usará o corpo do
analista para falar.
Isto está pressuposto por Klein, em Inveja e Gratididão (1974), onde
afirma em nota de rodapé:

Tudo isto é sentido pelo bebê de maneiras por demais primitivas para que a
linguagem possa expressá-las. Quando estas emoções e fantasias pré-verbais
são revividas na situação transferencial, aparecem como “lembranças em

3. Atualidade: este conceito faz referência ao “aqui e agora” da sessão, mas, do meu ponto de vista,
envolve também uma referência à pessoa do analista, em especial ao seu corpo, lugar da recep-
ção sensorial no contato com o outro e, ao mesmo tempo, aquilo que será a matéria-prima do seu
pensamento analítico. A babá de papel é o corte de toda sensorialidade no contato com o outro.

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sensações”, como eu as chamaria, e são reconstruídas e postas em palavras


com o auxílio do analista. (KLEIN, 1974, p. 32)

Bion avança a concepção da identificação projetiva, que até então


fora tratada predominantemente como mecanismo evacuatório de angús-
tia impensável. E o faz conferindo à Identificação Projetiva uma função de
comunicação. Além disto, e exatamente por isto, Bion implica o analista no
processo da análise.
Assim, estas lembranças em sensações serão reconstruídas pelo analista,
graças ao fato de que, sendo ele o continente das identificações projetivas, as
vai experimentar como contratransferências. Quando o analista contém e,
portanto, não dá um destino evacuatório ou mesmo projetivo aos seus senti-
mentos (caso em que estaria se defendendo e não contendo) é possível pensar
sua função como sendo a de um lugar para pensar. O exercício desta função re-
sultará na construção de um lugar dentro do paciente, graças ao desenvolvi-
mento da introjeção.
Quando apresentei o Fragmento l, tive a intenção de apresentá-lo como
exemplar desta teorização. Refiro-me ao momento da paralisia. A contenção é
a estrutura destinada a ser um lugar para pensar, mesmo que este lugar só dê
espaço para as associações muito lentamente.
Esta técnica é sustentada por supor que o analista experimenta a con-
tratransferência como “memória” que será vivida em seu corpo, memória
afetiva, arcaica, que só pode tocar o corpo, porque é dessa matéria que se cons-
tituiu: corpo sem sentido no momento do acontecido, corpo sem história, me-
lhor corpo que não pode ter uma história, porque faltou alguém para ouvi-la,
ou porque foi ouvida por uma babá de papel.
Agora é preciso fazer falar o corpo. Sua história, na paciente que trouxe,
sugere uma violência contida e um desejo voraz, porque, permanentemente,
negado. Pictoricamente, o sonho dá-nos a ver que, junto ao afundamento do
corpo, é também submersa a bomba, situada ao nível do peito, região que cos-
tuma representar os sentimentos. Essa paciente exprimia tais sentimentos pela
sensação do sufocamento, angústia que não tomava forma, porque não podia ser
exteriorizada. Era retida para dentro dela, implodia nela como ressentimento.

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Os corpos lembravam múmias, corpos ressequidos, onde a sexualidade
secara; sexualidade que não podia banhar eroticamente um encontro, ainda
que ele viesse sob a forma da colisão.
Esta paciente supôs poder contornar a questão apelando para o suporte
intelectual, como forma de proteção.
Sua angústia fazia-me pensar que ela sentia que precisava deste su-
porte intelectual, feito casca protetora de um vazio, um buraco aberto, sem
fechamento, não um espaço, um continente.
Para a psicanálise, sendo o corpo sempre representação do corpo é pos-
sível pensar com Breen (1998) que a feminilidade inclua tanto a representação
de uma falta quanto a representação de um espaço interior e de uma atração
heterossexual, ligada à realidade biológica e anatômica.
Entretanto, em minha experiência clínica, diria que o vazio como re-
presentação de um espaço interior é uma experiência a ser recuperada, a ser
reencontrada, num clima angustiante, onde a certeza da falta equivale fre-
quentemente a estar enlouquecendo e, por isto, a defesa fálica é muitas vezes
rapidamente acionada.
No caso da minha paciente, procurar decorar uma apresentação para a
entrevista à qual devia se submeter representava uma tentativa fálica, à qual
respondi contratransferencialmente.
Tenho podido trabalhar durante muitos anos com algumas mulheres;
essas análises foram, ao longo deste tempo, despertando em mim o desejo de
me aprofundar na questão do feminino.
Por feminino estou entendendo, aqui em particular, as emanações do corpo,
marcado por sua anatomia, mas nem por isto um corpo apenas biológico, emana-
ções estas que começam a se organizar antes da linguagem propriamente verbal.
São manifestações marcadas pelo feminino em constituição, formas
psíquicas que se fazem representar, usando uma matéria mais bruta, mais pri-
mitiva, mas nem por isto menos simbólica. Corresponde a área das experiên-
cias pré-discursivas e não exclui a situação triangular, uma vez que o pai está
sempre presente para a mãe.
Minhas pacientes ensinaram-me sobremaneira dois tipos de defesa,
extremamente acirradas, quando a análise tratava de avançar para uma fase

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mais primitiva, a da relação com a mãe; falo da relação mais primitiva com a
mãe e falo também de uma mãe mais primitiva.
Uma das formas é a demonstrada por uma paciente encantadora. Desde
o início senti grande atração por fazer sua análise, havia um efeito mágico na
sessão. Acolhi-a com entusiasmo e observava, em muitas sessões, que havia
uma sensação sutil de que eu daria conta dela, onde as outras figuras repre-
sentativas de sua vida haviam falhado.
Esta paciente sentia uma angústia que frequentemente estava à beira
do pânico. Isto fazia, fui percebendo, com que estivesse permanentemente
junto a ela para acalmá-la deste pânico, mas nem sempre conseguia fazê-lo
através de interpretações. Minha fala, muitas vezes, precisava conter um ca-
ráter assegurador, onde dizia a ela que iria protegê-la.
Quando não estava em pânico, constituía comigo uma dupla invencí-
vel frente ao mundo lá fora, o mundo dos homens e das mulheres.
Ia do terror à loucura, à certeza da invencibilidade.
Mergulhar nas raízes da feminilidade suscita angústias relacionadas à
estranheza da interioridade e implicam na renúncia ao domínio pelo visual,
projetivo e mental.
O homoerotismo é fálico. Faz alusão à fase do amor dual, onde ambas,
mãe e filha, entregam-se ao prazer de se suporem completas e onde o pai se
faz representar pela exclusão.
Um outro tipo de defesa aparece, através de imagens que lembram a
tumba, onde estão guardadas lembranças que foram varridas do acesso, e que
são fortemente trancadas pelo silêncio e imobilidade, sinais de uma compe-
tição velada.
A paciente que me leva a isto fazia silêncio e dormia frequentemente
nas sessões; fui percebendo que isto acontecia justamente nos momentos em
que, como analista, me sentia mais criativa.
Um dia me contava sobre a concepção do seu filho; usou a expressão
que arrancara este filho do marido, porque este não desejava ter filhos. Naquela
sessão já havia emergido uma referência direta à minha pessoa, através da qual
dizia que uma colega de trabalho não podia conceber a ideia de que ela pudesse
ter boas “tiradas” numa conversa, atribuindo isto ao que ela aprendia comigo.

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Esta paciente tinha uma enorme dificuldade para reconhecer que eu
entrava com alguma parte quando ela concebia. Ali ficava explícito que não
podia haver troca entre nós, ou era eu a inteligente e ela deficiente ou ela era
viva, inteligente, bem humorada, mas isto não fora alimentado também pelo
trabalho da análise. Esta defesa, facilmente, se expressa na “inveja do pênis”.
(ABRAHAM e TOROK, 1995)
Mas, percebo nas entrelinhas, uma espécie de paixão não correspondida,
está atada à Mãe, figura primordial, dotada de poderes que a submetem e aos quais
gostaria de se submeter não fosse a noção trágica de que ela não será a escolhida.
Para Torok (1995) a “inveja do pênis”, correlato muitas vezes da de-
fesa fálica, encontra seu sentido no complexo discurso que a menina dirige à
imago materna.
Neste discurso a menina dirá à mãe que renunciará ao próprio corpo
e ao gozo que o pênis lhe proporcionaria, quando da elaboração do seu projeto
genital, inscrito desde sempre em seu corpo de mulher, para aplacar esta per-
seguidora de rosto anônimo. Em função das fantasias projetivas e introjetivas
de domínio, experienciadas em particular no controle esfincteriano, a menina
supõe que seu corpo e seu gozo a ela pertençam. Por isso desloca seu desejo
para um objeto inacessível - o pênis idealizado (o pênis desejado é sempre o
pênis idealizado), que lhe é interditado pela “própria natureza”.
Torok conclui:

Em síntese, a designação de uma coisa inacessível como objeto de uma cobiça acusa
a existência no sujeito de um desejo refratado sobre uma barreira intransponível.
... ...
A mulher insiste em ignorar em si própria a instância responsável pelo recal-
camento, esse perseguidor de rosto anônimo; desmascará-lo exigiria o afron-
tamento das regiões obscuras em que se checam ódio e agressividade contra
o Objeto que não poderíamos deixar de amar. (ABRAHAM e TOROK, 1995)

Por isto penso que a “inveja do pênis” é a melancolia do feminino.


Novamente estou defrontada com esta relação. Penso que ela deve
ter uma característica peculiar por eu ser uma mulher. Meu corpo guarda

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características singulares que, acredito, marcam diferentemente minha es-


cuta e também estimula em meus pacientes, e neste momento porque estou
falando delas, e em minhas pacientes, uma trama especialmente feminina.
Chausseguet-Smirguel (1998, p. 53) aponta para a contradição que existe
entre os analistas quando discutem a relevância do sexo do analista para uma
análise. Fazer uma transferência materna sobre um homem ou paterna sobre
uma mulher é uma experiência tão comum que a discussão a esse respeito
só pode ser compreendida se levarmos em conta que a contratransferência do
analista é que se supõe diferente nos dois sexos.
Para dar um exemplo seleciono um dos pontos destacados pela autora.
Este ponto refere-se à capacidade de esperar e ver se desenvolver uma relação,
interpretando dia a dia. Analistas dos dois sexos têm, às vezes, uma compreen-
são brilhante e rápida, mas fracassam no lento e paciente trabalho cotidiano
que é requerido do analista.
Chausseguet-Smirguel (1988) ressalta que a própria essência do desen-
volvimento da menina é dominada pela espera. Relaciona este fato às afirma-
ções de Melanie Klein, quando esta psicanalista chama atenção para o quanto
a menina precisa esperar para certificar-se de sua fertilidade, ao contrário do
menino, cuja esperança de potência sexual é afirmada pela ilusão da posse de
um pênis comparável ao pênis paterno, ilusão esta muitas vezes alimentada
pela mãe e/ou não impedida pelo pai.
A perspicácia clínica de Chasseguet-Smirguel permite-lhe afirmar que
a compressão de tempo pode ser realizada pelo menino, que neste caso torna-se
um perverso, enquanto que a psicossexualidade da menina é marcada pela
contemporização.
Termino este texto com uma longa citação de Annie Anzieu que, em-
bora às vezes de difícil compreensão, fala do que procuro trazer neste trabalho,
o feminino encarnado no verbo, quando ele exige um trabalho interior, um
trabalho de gestação para dar origem à criação.

Mas, o que acontece comigo? Analista, é verdade, mas nem por isto menos
mulher. E, exatamente por isto: mãe também pela minha própria substân-
cia. Mais que outros realmente? Meu destino de mulher me predispõe para

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esta espécie de gestação infraverbal que favorece a construção, o apoio nar-
císico do paciente? Disposição para a maternidade que também no homem
se encontra alicerçada, na fantasia da criança, na bissexualidade originária
da psique de que ele dispõe no seu funcionamento de analista. Ligada tam-
bém à falicidade pelo uso da palavra entre essa criança paciente e eu própria.
Sempre palavra de pai. Exatamente como os afetos violentos, ligados com a
intrusão, com a perseguição, podem ser igualmente compartilhados entre
masculino e feminino.
Entretanto, alguma nuança específica se sobressai na emoção sentida: a vio-
lação. Generalizada, a intrusão mais precoce (grifo meu) assume um aspecto
feminino e define o sexo na sua diferença. O orifício vaginal dá forma à ter-
ceira orelha, sensível ao aspecto sexual estritamente feminino da intrusão,
àquele aspecto de boca aberta desesperada pela necessidade narcísica e de-
pois pelo desejo sexual. Orifício aberto a todas as sevícias como a orelha à
palavra destruidora, à interpretação selvagem, à violação verbal. As imagens
de terror como aquelas da palavra posta à disposição da onipotência materna.
Mulher-analista, encontro-me pois defrontada com as emoções antigas,
mal integradas de meus pacientes, certamente de maneira mais direta
que um homem....
... As fantasias de incorporação recíproca são inerentes à feminilidade. A ma-
téria feminina é constituída para ser incorporada pelo bebê ao mamar e para
incorporar o sexo masculino no ato sexual.
Todas as representações de prazer e de violência, de criação e de aniquila-
mento, decorrem dessa realidade primeira. A mulher é essencialmente pene-
trável. Procriação e destruição estão intimamente ligadas na fantasmática
feminina e, na cura, devem lentamente diferenciar-se da estrita sexualidade
para tornar-se prazer e desprazer suportáveis. Lentamente, pacientemente,
sem coerção possível, como uma gravidez bem nutrida, cujos riscos de aborto
são incansavelmente elaborados para conservar a criança com vida.
A essência especificamente interior da mulher da qual decorrem talvez sua
sensibilidade narcísica e sua necessidade de amor (na perspectiva de B. Grun-
berg) parecem-me poder fornecer ao paciente um lugar de trabalho perfeita-
mente natural para seus defeitos narcísicos, para as lacunas mais essenciais,

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ARTIGO – SUZANA ALVES VIANA
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para a problemática da separação e dos movimentos depressivos, para os rein-


vestimentos indispensáveis. Não que este estado feminino não possa existir
no homem. Entretanto, no homem analista, é graças ao alargamento de suas
capacidades identificadoras que ele pode se pôr em contato com as partes
femininas de sua sexualidade. Exatamente como um bom número de mu-
lheres-analistas são capazes de reencontrar suas identificações fálicas pater-
nas em determinados processos contratransferenciais. (ANZIEU, 1991, p.119)

Counter-transference and the analist’s body

ABSTRACT: This work is about the relations that we can think between counter-
-transference, the body of the analyst and the feminine manifestations. It deals
about a first incursion into a hypothesis (or into a question) that how the gen-
der of the analyst’s body provoques resonance in the analytical work and builds
up the structure of his speech.

KEYWORDS: Counter-transference, Analist’s Body and Feminine.

REFERÊNCIAS
ABRAHAN, N. e TOROK, M. A casca e o núcleo, São Paulo: Escuta, 1995.
ANZIEU, A. A mulher sem qualidade: Estudo psicanalítico da feminilidade. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 1991.
BALINT, M. A falha básica - Aspectos terapêuticos da regressão. Porto Alegre: Ar-
tes Médicas, 1993.
BREEN,D. O enigma dos sexos - Perspectivas psicanalíticas contemporâneas da fe-
minilidade e da masculinidade. São Paulo: Imago, 1998.
CHASSEGUET-SMIRGUEL (1988). As duas árvores do jardim. Porto Alegre: Ar-
tes Médicas, 1988.
FÉDIDA, P. Introdução a uma metapsicologia da contratransfirência. In: Rev.
Bras. de Psicanal., 20(4): 613-29, 1986.

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ARTIGO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– CONTRATRANSFERÊNCIA E O CORPO DA ANALISTA 77
FERENCZI, S. (1928). A elasticidade da técnica psicanalítica. In: Escritos Psica-
nalíticos 1909-1933. Rio de Janeiro: Taurus, s.d.
FERRO, A. A técnica na análise infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
KHAN, M. Psicanálise: Teoria, técnica e casos clínicos. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1984.
KLEIN, M. (1957). Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
VIANA, A. S. Contratransferência: A questão fundamental do psicanalista. São
Paulo: Escuta, 1993.

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Comentário
Ao me ser solicitado uma espécie de olhar a posteriori sobre o artigo acima ci-
tado, lembrei-me de imediato de Fédida quando nos traz o aoristo como con-
dição do tempo na situação analítica.
O aoristo é o tempo de Epos; nele o acontecimento vem do passado para
o presente, revivido na transferência. Não há passado, na verdade, o acontecido
impregna a transferência dessa qualidade de passado-presente trazendo a cena
viva, reconstituída na análise. “Não se estaria muito longe de pensar então que
o aoristo que qualifica o acontecimento é engendrado pela escuta da fala pronun-
ciada.” (Grifo meu.) (FÉDIDA, 1996, p.81)
Talvez a lembrança tenha vindo, porque a sabia impregnada pelas ques-
tões que desde lá continuaram a ser meu interesse de trabalho com a psicaná-
lise: a contratransferência e o feminino.
Estando impregnada pela transferência com o tema que tem sido ob-
jeto de minhas procuras[1] em psicanálise, achei que valia a pena tomar esse
caminho.
Parto de uma afirmação enigmática com a qual me vi às voltas quando
construía minha tese sobre contratransferência.
A contratransferência é o feminino na análise.
Esta frase retornou nesse momento e por isto talvez seja o momento
de enfrentá-la.
Fédida, no artigo O epos - o sítio, escreve que “as transferências são es-
tas potências hipnóticas de apelo das imagens nas quais aguardam em silên-
cio os nomes dos mortos perdidos. Estas transferências foram “outrora” ações
guerreiras - hostis - hoje estranhamente pacificadas”. (FÉDIDA, 1996, p.75)
Potências hipnóticas como o são todas as transferências em estado
bruto, antes de poderem revelar a que vieram. Os nomes dos mortos perdidos, ao
serem pronunciados, quebram o encantamento, desfazendo-se a relação hip-
nótica. Quando os mortos não podem ser contados (nomeados), a ação guer-
reira não respeitou o adversário, houve um assassinato em massa. Os mortos

1. Procura tem o sentido de Pesquisa.

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ARTIGO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– CONTRATRANSFERÊNCIA E O CORPO DA ANALISTA 79
não tiveram direito a serem velados pela comunidade e, assim, respeitados
pela sua coragem guerreira.

A vingança dos mortos dirige-se aos que mataram desconhecendo a virtude


do espírito da guerra e para quem a guerra estava desprovida da linguagem de
epos. Pois só o epos pode nomear e enumerar, contando quem forjou a arma
que matou aquele cuja morte sobreveio com distinção. (Ibidem, p.76)

Se a morte é distinta, o morto tem um nome, é singular.


Estas reflexões, inspiradas na Odisséia, permitem-nos compreen-
der o sentido mais longinquo de epos, memória distante a ser alcançada pela
transferência.
Ulisses é o estrangeiro mítico dessa guerra que, na última etapa da sua
viagem desce ao mundo de Hades e vai reconhecer a sombra errante dos mortos.
(ADORNO e HORKHEIMER, 1985)
“É este retorno rumo à linguagem que junta os mortos aos nomes for-
mados a partir das suas aparências.” (Ibidem, p.78)
Fédida, neste artigo, teoriza o tempo aoristo das transferências (aquele
que conduz o acontecimento épico a ser desvelado na escuta analitica) e aborda
sua contraposição ao espírito consciente.
Afirma ainda que o que poderia salvar a linguagem e a guerra seria o
riso da feminilidade.
Afirmação tão enigmática quanto a frase: a contratransferência é o fe-
minino na análise. Entretanto, tão a gosto daquilo que nutre a transferência.
Continuemos com o pensamento de Fédida:
O Unterwelt é o mundo de baixo, mundo da força do espírito inconsciente.
Na linguagem, é a potência ctônica que guarda o nome do morto; a palavra dessa
linguagem traz nela a memória da guerra, a memória de epos.
Quando a linguagem é uma lei racional de luz sem sombra (alusão ao
esclarecimento[2]), ela é estranha à linguagem na análise, porque ela se ilumina
para escapar da sombra e se nomeia espírito consciente. O espírito consciente

2. ADORNO, T. W. e HORHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, 1985.

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entra em conflito com o poder de singularização da lei divina e diviniza o Uni-


versal estrangeiro, desapropriando a linguagem de sua potência guerreira. O
universal estrangeiro contrapõe-se ao herói mítico, que é singular porque en-
frenta a guerra que lhe é própria.

O mundo de baixo é o reino dos mortos, cuja existência liga-se aos nomes que
eles têm, secretos como essas armas. Reencontrar a guerra é a obra daquele
que, no seu sonho da noite, deverá nomear os mortos... O retorno nascente do
sonho é, para sonhador, sua última chance de conhecer a guerra e de restituir
à linguagem a coragem de seus mortos.
A efetividade da lei racional da comunidade humana - aquela que se exprime
em nome da virilidade e do governo de um logos - age de encontro ao espírito
da comunidade, cuja potência ctônica é o das sombras do mundo de baixo. ...A
guerra torna-se objeto retórico de um discurso no momento em que se identi-
fica aos valores da “virilidade” e a linguagem é novamente perdida.
O que poderia salvar a guerra e a linguagem é o riso da feminilidade - esta
“eterna ironia”, segundo Hegel - que torna a feminilidade inafetável pela morte.
Com isso ela atinge o universal da comunidade racional, lembrando pelo corpo
do seu sexo que a guerra é uma exigência sem concessão nem compromisso,
como deveria ser a morte quando ela se dá a entender. A potência feminina das
sombras do mundo de baixo é temível a ponto da linguagem não se permitir
marcar por elas para dar-lhes nome. Mas a linguagem não domesticará a po-
tência sexual das mulheres. (Grifos meus.) (Ibidem, p.77)
E Ulisses encontra a figura da Mãe em sua descida ao mundo de Hades.
As figuras que o aventureiro enxerga na primeira nekya[3] são, antes de mais
nada, as imagens matriarcais, banidas pela religião da luz: depois da própria
mãe, diante de quem Ulisses se força a assumir a atitude patriarcal de uma con-
veniente dureza, vem as heroínas antiquíssimas. Contudo a imagem da mãe
é impotente, cega e muda, a imagem da alucinação como a própria narrativa
épica nos momentos em que abandona a linguagem à imagem. (ADORNO e
HORKHEIMER, 1985, p.77)

3. Sacrifício aos mortos (N. do T.), p.248

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– CONTRATRANSFERÊNCIA E O CORPO DA ANALISTA 81
Portanto, a guerra pessoal de Ulisses é resistir à aparência, escapar da
sedução da imagem para devolver à linguagem sua potência ctônica e com
essa ação, que é mais uma resistência, ele reconhece os nomes dos mortos.
Passo agora a analisar, deste vértice, o caso apresentado no artigo que
inspirou este trabalho.
Após a experiência de colisão com minha analisanda que, à luz do que
escrevi acima, chamaria de uma ação guerreira que devolveu sangue[4] à ima-
gem do compreender, tornando-a sensação de compreender, a babá de papel me
vem como lembrança. Traz a memória épica e acrescenta a dimensão da inte-
rioridade à imagem do compreender.
Babá de papel é uma expressão que ganhou a dimensão simbólica. Creio
que ela se equipara ao sentido que a figura da múmia ganha no sonho.
Explico.
A múmia guarda a memória do ritual, onde o morto é enterrado, mas
de forma a conservar suas características num processo de auto-conservação.
Auto-conservação sem Eros, a múmia é memória onde se arquivam os mor-
tos sem nome, portanto, sem sentido. Para que ela ganhe vida é preciso ser
ouvida por alguém.
A visão da múmia no sonho se oferece feito as primeiras imagens
atormentadoras no mito de Ulisses. Sendo sós imagens, ofuscam o cami-
nhante que se lhes precisa resistir visualmente para poder ouvi-las (sítio do
analista); para devolver-lhes as sombras do mundo ctônico e assim retornar
ao mundo dos vivos.
A recordação do sonho da minha analisanda é já uma fase do processo
que se iniciara, do meu ponto de vista, com o movimento contratransferencial.
Ele me toma no momento em que lhe digo (irritada) que o esforço cog-
nitivo não ia dar conta da questão. (O que acontecera na sessão anterior, da
qual não me lembro nada, talvez tivesse a ver com esse vazio da palavra dema-
siado iluminada, mas sem vida, de modo que ressoou em mim como palavra

4. “É preciso do sangue sacrificado como penhor de uma lembrança viva para dar fala à imagem, para
que esta, ainda que em vão e efemeramente, se arranque à mudez mítica.” (ADORNO e HORKHEI-
MER, 1985, p.77)

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morta. Ouso pensar que talvez fosse além. Palavra vampirizadora, aquela que
levou os pensamentos vivos.)
Segue-se um longo silêncio, onde tal como Ulisses ao ver a imagem da
mãe - impotente, cega e muda - preciso resistir a me tomar como uma analista cruel.
A sessão que se segue é, ao contrário, extremamente rica: sou recom-
pensada, volto ao mundo dos vivos pela sensação de compreender e pelas asso-
ciações que me vêm, através do sonho.
Múmia é palavra do gênero feminino, mas é ambígua, pode-se referir
a um homem como a uma mulher, dispensa o sexo porque seu sentido está
em ser invólucro.
Mas, justamente por isto, creio poder interpretar a múmia do sonho
como referência a um processo de mumificação da mulher. Ela é representa-
ção de uma interioridade sem vida (imagificação da mulher).
Sugiro que minha analisanda, na travessia pela fase da feminilidade
primária, tenha negado o desejo de intrusão e apropriação do interior do ven-
tre materno.
Na fase da feminilidade primária ou feminino primário trava-se uma luta
da menina pelos objetos desejados do interior do corpo materno. Nesse pro-
cesso de roubo, ataque, perseguição e reparação, a menina começa a construir
sua feminilidade. (KLEIN, 1996 e GUIGNARD, 2002)
Em minha analisanda, a violência do ódio faria sangue na relação. Mas
o sangue foi substituído por um processo pálido, a identificação. Mas isto a tor-
nava cópia e não original.
O ódio aparece em mim, sob a forma da irritação, talvez a irritação por
vê-la negar a minha potência como analista, que não a preparara para enfren-
tar a entrevista.
Por outro lado, esta reação contratransferencial atuou como um sinal
da sutileza do mecanismo que enterra a memória épica no corpo da múmia,
quando costura uma bomba no interior da mesma. Ao implodir, não seria ou-
vida por estar enterrada sob as águas.
Mas se fez ouvir na contratransferência. E sua travessia para criar um
útero propício à gestação da palavra, que aqui veio através do sonho, penso que
equivale à construção da feminilidade.

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– CONTRATRANSFERÊNCIA E O CORPO DA ANALISTA 83
Aquilo que era prenhe de sentido poderia ficar para sempre enterrado
no corpo-múmia, se a sutileza da ironia feminina, seu desdém, o riso irônico
e sardônico sobre o vencido (aqui veio através de um choro silencioso, olhos
avermelhados que sugerem vingança) não tocasse a analista. Ainda que sem
compreender, não poderia competir com esse triunfo sem aumentar a recusa
em minha analisanda, recusa em abrir-se para uma outra compreensão. Esta-
ria eu aqui defrontada com o enigmático rochedo da castração?
Penso que sim, se o vejo equivalente à sedução das imagens que ga-
rantiriam o domínio e o controle absoluto sobre os sentimentos, mas que, no
entanto, se revelaram vazios: o branco de uma memória sem sangue.

REFERÊNCIAS
ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Excurso I: Ulisses ou Mito e Esclarecimento.
In: Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.53- 80.
FÉDIDA, P. O epos – o sítio. In: O sítio do estrangeiro: A situação analítica. São
Paulo: Escuta, 1996, p.75 – 88.
GUIGNARD, F. Tornar-se homem. O papel das identificações maternas e fe-
mininas no vir a ser do masculino no menino. In: Cartas ao objeto.
Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.133-151.
KLEIN, M. Estágios iniciais do conflito edipiano. In: Amor, culpa e reparação. Rio
de Janeiro: Imago, 1996, p.214 - 227.

Suzana Alves Viana


Rua Pedroso Alvarenga, 706
(11) 3078 7235
suzanaviana@gmail.com

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Artigo
A importância do presente na
clínica psicanalítica freudiana:
clínica das pulsões?
EDE DE OLIVEIRA SILVA

RESUMO: O autor faz uma reflexão sobre a importância do passado e do pre-


sente na prática psicanalítica. Faz um percurso em alguns trabalhos técnicos
e metapsicológicos freudianos onde esta importância é apontada. O passado
corresponderia à história libidinal do paciente já inscrito no psiquismo e passí-
vel de ser transferido para o analista (transferência) e o presente nos fatos que
se desenrolam durante o processo e referido diretamente à pessoa do analista
(referência) e, portanto, a serem simbolizados. Aquele diz respeito aos repre-
sentantes pulsionais, enquanto este tem a ver com a própria pulsão. O analista
tem de navegar nestes dois momentos do processo resgatando símbolos (arque-
ólogo) e construindo símbolos (construtor), aportando com isto ferramentas
que vão enriquecer a rede simbólica e assim propiciar ao paciente melhores
condições para lidar melhor com a coisa pulsional.

PALAVRAS-CHAVE: Elaboração psíquica; Falsa ligação; Pulsão de morte; Remi-


niscência; Representação psíquica; Transferência; Rede simbólica; Símbolos.
Médico com Formação
Psicanalítica no
Departamento de Formação
A psicanálise no seu começo estava muito mais voltada ao passado histórico em Psicanálise do Instituto
dos pacientes, ao tentar resgatar lembranças que se haviam tornado lesivas Sedes Sapientiae.

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ARTIGO – EDE DE OLIVEIRA SILVA
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

para os mesmos. Extirpar estas lembranças e torná-las conscientes era a prin-


cipal função do analista. Resgatar e dar importância ao presente e ao atual, no
trabalho analítico ainda iria demorar algumas décadas.
Se considerarmos a análise de Anna O. como o primeiro caso onde as pro-
duções psíquicas foram tratadas com seriedade e importância, verificaremos que
Breuer ficou fixado nas lembranças de traumas experimentados por sua paciente
e deixou passar o conflito atual que se infiltrou e não foi por ele percebido. Um
tratamento inusitado de dezoito meses foi realizado, com sessões praticamente
diárias e muitas vezes até duas, e mesmo assim teve um desfecho tão contun-
dente para ambas as partes que ficou incompreensível para Breuer. Um método
novo de utilização da hipnose fora usado, que tinha como objetivo principal ex-
pandir a consciência e com isto possibilitar o aparecimento de sintomas e ideias
patológicas. Se Anna O. era um rio caudaloso de sintomas, Breuer foi também
um pescador incansável, pelo menos por dezoito meses. Apesar de todo o seu es-
forço, não conseguiu fisgar o peixe-sintoma mais importante do seu trabalho,
isto é, o sintoma (transtorno) que se formou e cresceu durante todo o processo
terapêutico e que não tinha relação com os sintomas-lembranças do passado. O
presente, o atual da relação não foi levado em consideração.
Ao contar este caso para o seu grande amigo Freud (fracasso só se conta
a amigos), em novembro de 1882, alguns meses após seu desfecho, deixou plan-
tada neste essa experiência que iria germinar muito mais tarde e dar como
fruto a psicanálise. Freud foi fecundado por esta informação, ficou marcado
de tal maneira que a levou para a França quando do seu estágio com Charcot
e por ironia do destino este não a levou em consideração.
Ao voltar da França e iniciar sua clínica, Freud se deparou com dificul-
dades para tratar este tipo de paciente, pois utilizava os métodos empregados
naquela época (massagem, choques, repouso em estação de água e principal-
mente hipnose clássica) e isto fez com que ele resgatasse de suas lembranças
aquela experiência extraordinária vivida por seu grande amigo. Começou a
empregar aquele mesmo método que tinha sido empregado originalmente em
Anna O., e que mais tarde foi nomeado de método catártico.
A descoberta, posteriormente, de uma defesa contra as reminiscências
traumáticas, a dificuldade de hipnotizar e a grande sensibilidade de Freud para

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– A IMPORTÂNCIA DO PRESENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA FREUDIANA: CLÍNICA DAS PULSÕES? 87
aprender com as dificuldades, fizeram com que o caminho de Freud e Breuer
começasse a divergir gradativamente. A importância crescente da sexuali-
dade dada por Freud em seu trabalho com os pacientes histéricos veio selar
esta separação. O fantasma de uma sexualidade que se infiltrou na relação de
Breuer com Anna O., como Freud interpretou mais tarde, cegou aquele defini-
tivamente, de maneira que, ao escrever sobre sua experiência para publicação,
afirmou que a sua paciente era assexuada. Freud sempre esteve aberto para
novas experiências e via nisso um verdadeiro desafio a ser transposto. Isso o
transformou num eterno renovador da sua própria descoberta, a psicanálise.
A nosso ver, esse trabalho, que se descortinava em sua frente como possibili-
dade, mostrava um potencial que o deixou perplexo.
A impossibilidade de empregar plenamente o método descoberto por
Breuer fez com que Freud ficasse atento para outras possibilidades que se ade-
quassem à sua capacidade, mas mesmo assim os métodos empregados tinham
como objetivo exclusivo resgatar as lembranças do passado que se tornaram
núcleos patógenos.
Onde poderíamos ver neste momento o presente emergindo como o
atual dentro das cinzas do passado? Se fizermos uma leitura mais atenta já po-
demos ver indícios deste novo olhar que emerge como ponto de ruptura deste
passado que está aí desde sempre. Podemos tomar como exemplo as situações
vividas por Freud com Emmy Von N., onde esta pede ao próprio Freud que fi-
que em silêncio e deixe-a falar livremente, ou quando Elizabeth Von R. tenta
beijá-lo. Não acreditamos que, nesse momento, num plano mais profundo,
Freud seja a encarnação do passado presentificado na relação. Achamos sim,
que nesse momento ele era um obstáculo real e atual à associação livre de Emy
ou que era o homem desejado por Elizabeth. A valorização desses fatos como
pertencentes ao presente ainda ia demorar muitos anos.
A prática e a teoria freudianas, na maioria das vezes, correram em para-
lelo com os conceitos clínicos e, frequentemente, estes se antecipavam às cons-
truções teóricas, mostrando a profunda articulação que Freud fazia entre ambos.
Os primeiros indícios de que este novo começava a ganhar importância
na teoria e na prática clínica vemos na parte final do capítulo IV dos Estudos so-
bre a histeria (FREUD, 1895/1969). Neste texto vemos os obstáculos encontrados

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pelo autor que não tinham só relação com as defesas contra o passado esque-
cido. O atual da relação começou a ser percebido mesmo sem adquirir, claro, a
consideração que teria mais tarde. Isto fica evidente nesta colocação:

Finalmente tenho de examinar outro assunto, que desempenha papel inde-


sejavelmente grande na execução de análises catárticas como estas. Já admiti
a possibilidade de a técnica de pressão falhar, de não extrair nenhuma re-
miniscência apesar de toda garantia e insistência. (Ibid, p. 358) (grifo nosso).

O indesejável era um passado inacessível, um passado inexistente,


criando assim ou um acréscimo de trabalho ou uma impossibilidade de tra-
balhar. Freud trabalha com três possibilidades, neste momento, para explicar
este algo indesejável:

(...) ou no ponto em que estamos investigando nada há realmente a ser encon-


trado - e isto podemos reconhecer pela calma da expressão facial do paciente
ou nos defrontamos com uma resistência que só pode ser superada depois (...).
Mas existe ainda uma terceira possibilidade que é também um obstáculo, mas
um obstáculo externo, e que não é inerente ao material. Isso acontece quando
a relação entre o paciente e o médico é perturbada, construindo o maior obstá-
culo que podemos encontrar. Podemos contudo esperar encontrá-lo em toda
análise relativamente sério. (Ibid, p. 359) (grifo nosso).

A primeira e terceira situações são de especial interesse para o nosso


escudo. A terceira possibilidade se reveste de grande importância porque está
levando em consideração a relação analítica propriamente dita, pois é “um obs-
táculo externo, e que não é inerente ao material” das reminiscências. A primeira
dificuldade estaria relacionada a um passado tão estranho que não pôde ou nunca
teve acesso à consciência, como se existisse um passado tão longínquo que o
tornasse inacessível como lembranças. Mas uma coisa é certa, este algo novo
começa a ganhar corpo mesmo tendo o caráter de obstáculo (pelo menos neste
momento), mas é algo que surge em “toda análise relativamente séria”. Esta si-
tuação ocorreu com a Anna O. e não foi percebida pelo Breuer. Mesmo que neste

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– A IMPORTÂNCIA DO PRESENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA FREUDIANA: CLÍNICA DAS PULSÕES? 89
momento, estas situações sejam vistas por Freud como algo periférico do qual
o analista tem de se desvencilhar, percebemos, nas entrelinhas, a importância
que começa a ser atribuída a este “corpo estranho” que surge “em toda análise
relativamente séria”. Então não há como evitar esta situação e a maneira de li-
dar com ela está ainda muito aquém do desejado. O aparecimento desta situa-
ção inevitável cria uma área de tensão na relação do médico com o paciente, de
tal maneira que “a cooperação se torna um sacrifício pessoal” (Ibid, p. 359). Estas
áreas de tensão não eram percebidas pelo paciente e apareciam como queixas
diretas ou veladas da relação terapêutica e que não eram trabalhadas interpreta-
tivamente, por serem consideradas sem importância e, portanto, dispensáveis.
O médico tentava compensar o esforço e o sacrifício do paciente presenteando-
-o “por algum substituto do amor. A preocupação do médico e sua amizade tem
que ser tal substituto” (Ibid, p.359). Com o emprego da associação livre este es-
forço e sacrifício, que o paciente era obrigado a fazer para buscar lembranças, fo-
ram amenizados e o presente a ser recebido seria o trabalho analítico. As tensões
eróticas e hostis, que o trabalho cria e mobiliza, seriam alvo de análise somente
duas décadas mais tarde. Neste momento, a situação era tratada no sentido de
evitar que elas surgissem ou colocá-las em “panos frios” caso aparecessem. Isto
pode ser visto quando pouco depois da citação acima Freud afirma:

Se esta relação entre o paciente e o médico for perturbada, a cooperação dela


também falha. Quando o médico tenta investigar a ideia patológica seguinte,
a paciente fica presa pela consciência das queixas contra o médico que se vi-
nham acumulando. (Ibid, p. 359).

Existia, portanto, algo do presente na relação que perturbava o anda-


mento do processo. Queixas do presente dirigidas à pessoa do analista iam se
acumulando de tal maneira que perturbavam o resgate de lembranças do pas-
sado. Passado e presente se encontram e se cruzam num jogo complexo, onde
o analista, além de encarnar um passado do analisando travestido de presente,
é também a expressão do presente presentificado na relação. Então o presente
e o passado, na pessoa do analista, contaminam de tal maneira o processo que
podem paralisá-lo se não forem trabalhados.

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As puras reminiscências como tais começam a perder sua importân-


cia principal no processo analítico, dando lugar às associações livres onde o
analista está inserido como atual ou como substituto do passado. Há, portanto,
um ligeiro descentramento do objetivo da psicanálise pelo aparecimento desta
força perturbadora que está inevitavelmente presente neste processo. O ana-
lista é ao mesmo tempo passado e presente.
Freud encontra três tipos de caso onde estas forças perturbadoras estão
presentes, e o surpreendente é que as duas primeiras situações são aparente-
mente de soluções fáceis e basta um simples esclarecimento, enquanto que a
terceira das possibilidades ele rotula com o nome de transferência. A nosso ver,
as duas situações iniciais correspondem ao atual explícito da relação, enquanto
a última está contaminada com as brumas do passado do paciente. Vamos
destacar melhor esta afirmação com a primeira situação onde Freud afirma:

Se houver um afastamento pessoal, por exemplo, a paciente sentir que foi


abandonada, tiver sido pouco apreciada ou insultada, ou se tiver ouvido co-
mentários desfavoráveis sobre o médico ou sobre o método de tratamento. Esse
é o caso menos grave. O obstáculo pode facilmente ser superado através de discus-
são e explicação, embora a sensibilidade e a suspeita de pacientes histéricos possam
ocasionalmente atingir dimensões surpreendentes. (Ibid, p. 359) (grifo nosso).

Qual o paciente que não tem queixas contra o analista ou contra a aná-
lise, mesmo que sejam veladas! Neste momento, lógico, ainda não se trata de
um processo analítico como se veria mais tarde, mas o tipo de relação esta-
belecida já dava margem ao aparecimento de tais queixas. Queixas que nada
tinham a ver com o passado, mas com o real e o atual da relação terapêutica.
O analista era o objeto e o alvo deste descontentamento. Hoje sabemos que
este tipo de queixa embute um tipo de demanda que inevitavelmente leva à
frustração. A demanda de amor, cuidado, carinho, sexual, etc., permeia todo
o processo e por mais explicações racionais que se pudessem dar, principal-
mente em pacientes histéricos, não apaziguavam tais queixumes porque neles
estas situações “podiam atingir dimensões surpreendentes”. Era um impasse
causado pelo próprio processo, que para Freud se transformou em desafio. Na

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medida em que o processo ia se aprofundando mais impasses iam surgindo
de tal maneira que as investigações estavam muito mais voltadas para demo-
lir estes obstáculos chamados resistências. Estas resistências estavam além
das defesas que eram originadas contra as reminiscências. Como o processo
nesta época estava voltado para o resgate de lembranças traumáticas, ele era
doloroso por natureza. O analista, portanto, não deveria e não poderia poupar
o paciente, mesmo sabendo deste trajeto. A segunda das possibilidades citada
por Freud tem a ver também com a relação do paciente com o seu médico e
se reveste de maior importância por não ser de caráter individual e subjetivo
do paciente, mas que é criada também pelo processo, como se vê nesta cita-
ção do próprio Freud:

Se a paciente tiver medo de ficar muito ligada ao médico, de perder a sua in-
dependência em relação a ele, e mesmo de tornar-se sexualmente depen-
dente dele. Este é o caso mais importante, porque suas determinantes são menos
individuais. A causa deste obstáculo reside na solicitude especial inerente ao
tratamento.A paciente tem então novo motivo para a resistência, que se ma-
nifesta não somente em relação a alguma reminiscência específica, mas em
toda tentativa de tratamento. (lbid, p. 360) (grifo nosso).

Vemos, portanto, que não se trata de uma reação particular, individual


ou relacionada com alguma patologia específica, mas decorrente de qualquer
“análise relativamente séria”. Todas as emoções se tornam explícitas de uma
maneira direta ou indireta durante o processo, assumindo roupagens dife-
rentes, ora simbolizando o passado como tal, ora este passado deformado e
camuflado pelo presente e ora como real e atual. Estes impasses, como vistos
inicialmente, surgem não só por conta do médico, mas não inerentes ao tra-
tamento. O medo, o ódio, o amor, a dependência, a inveja, a atração sexual,
etc. são as peças desce tabuleiro de xadrez chamado psicanálise. Se continu-
armos com esta metáfora, poderíamos dizer que não são só as peças antigas
e ressuscitadas que são jogadas, mas também as que são geradas pelo próprio
jogo que ali se desenrola. O analista teria de desvendar estes dois enigmas, o
atual e o passado, que se cruzam neste jogo de vida e de morte, um jogo jogado

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a dois, onde se mesclam o passado e presente de ambos e cuja conclusão é im-


possível de se prever. O terceiro grupo da terceira dificuldade difere dos dois
primeiros pelo fato de que a paciente reveste o médico com uma roupagem
do seu passado, como se esta camuflagem fosse mais bem suportada e mais
aceita do que o conflito de desejos gerados na relação analítica. Neste sentido,
assim Freud se expressa:

Se a paciente assustar-se ao verificar que está transferindo à figura do médico as


ideias aflitivas que surgem do conteúdo da análise. Esta ocorrência é frequente, e,
na realidade, em algumas análises, regular. A transferência ao médico verifica-se
através de uma falsa ligação. (Ibid, p. 360) (grifo de Freud).

Esta situação, isto é, esta falsa conexão se dá através do mecanismo de


transposição encontrado nos psiconeuróticos, onde um evento do passado é
transferido para um outro recente, contaminando-o e camuflando-o.
A nosso ver o problema não está localizado só no passado, existe uma
área conflitiva no presente ligada à situação atual e ligada à figura do analista
e que tem de ser decifrada e revelada ao paciente, se estamos realmente fa-
lando de urna “análise relativamente séria”. O beijo imaginado pela paciente,
neste terceiro exemplo, não é só um simples deslocamento de uma situação
passada revivida numa situação atual; a nosso ver, houve realmente o de-
sejo de beijar ou ser beijada por Freud e isto a levou a se deprimir e a se cul-
pabilizar. Este desejo erótico dirigido ao analista era inconcebível, pois era
contrário a uma rigorosa moralidade que grassava naquela época, daí o sofri-
mento atroz vivido por ela ao albergar tais sentimentos. Como ter tais senti-
mentos pelo médico que quer somente ajudá-la, curá-la! Freud, ao descobrir
este segredo doloroso e ao verbalizá-lo à paciente “verificou que o trabalho
prosseguia e vejam bem! O desejo que tanto havia assustado a paciente sur-
giu corno a sua lembrança patogênica seguinte...” (Ibid, p. 360). Esses sen-
timentos agora podiam ser conversados e não seriam objetos de censura e
repreensão pelo analista e, portanto, reduzindo assim a autocensura e a au-
torreprovação. Deixaram de ser um perigo para a relação terapêutica e o tra-
balho, então, pôde prosseguir normalmente. Por outro lado, admitir ser o alvo

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de sentimentos deste tipo provenientes de sua paciente estava também fora
de cogitação para o terapeuta, de maneira que era mais fácil aceitá-los corno
ressuscitação do passado do que lidar com o jogo de forças dirigido direto à
sua pessoa. Assim o analista estaria protegido pelo biombo do passado. Esta
condição é vista na seguinte afirmação de Freud: “O conteúdo do desejo apa-
recerá primeiro na consciência da paciente sem quaisquer lembranças das
circunstâncias ambientais da época passada” (Ibid, p. 360), porque, a nosso
ver, não poderia ser expresso ou ligado diretamente à pessoa do terapeuta
por ser insuportável e para torná-lo mais aceitável, era deslocado para urna
situação semelhante já vivida no passado.
Esta falsa ligação se dá tanto em direção ao passado, isto é, transfor-
mando o presente em passado ou de uma maneira inversa transformando o
passado já vivido em um presente e assim tenta manter camufladas as duas
tendências com o objetivo de se defender da dor psíquica e da frustração sus-
citadas por ambas. As defesas atuam em ambos os lados, mas com um único
objetivo, se defender as perturbações geradas pelas duas situações. Qual é a
vantagem desta situação? Apesar de ser uma falsa vitória, esta fuga mantém
o conflito à distância, mas não a frustração. O passado, portanto, contamina
o presente ou o presente se “esconde” no passado, para o alívio do analista; e
assim o antigo é trabalhado por ser algo já vivido apesar de esquecido. Lidar
com conflitos antigos é muito mais tolerado pelo paciente apesar de despertar
angústia, do que com os que estão se instalando na situação atual pelo fato de
despertarem intensa frustração. O antigo não gera expectativas desconhecidas
e, portanto, são potencialmente menos perigosas. Neste sentido a colocação de
Freud vem a favor do que foi dito: “O desejo que estava presente foi então (...) ligado
à minha pessoa com a qual a paciente estava legitimamente preocupada (...)” (lbid, p.
360) (grifo nosso). Aqui vemos a utilização da palavra “preocupada” denotando
uma preocupação atual dirigida à pessoa do terapeuta por ter receio de que seus
sentimentos e emoções a ele vinculados sejam desvelados. Como o método em-
pregado nesta época estava exclusivamente dirigido para as lembranças com
a finalidade de reconstruir o passado esquecido, o presente da relação ficava
intocado. O terapeuta não trabalhava para construir e sim para reconstruir o
passado histórico destroçado pelas defesas patológicas do paciente.

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Tornar este passado consciente se transformou no objetivo fundamen-


tal da análise e não criava espaço para que o presente fosse levado em conta. O
trabalho terapêutico se resumia em reconstruir o passado histórico do paciente.
Isto representava um enorme progresso, nunca antes alcançado.
Mesmo que os envolvimentos durante o processo terapêutico fossem
relegados a planos secundários, não ficaram desapercebidos por Freud quando
ele afirma “impossível concluir qualquer análise a menos que saibamos nos
defrontar com a resistência que surge nessas três formas” (lbid, p. 361). Estas
duas situações (o passado e o presente), que surgem no trabalho analítico, não
podem ser mais dispensadas se se quiser que o trabalho prossiga e seja con-
cluído. O papel do passado cede espaço também para o atual, mesmo que este
ainda não fosse sistematicamente trabalhado. O passado só como lembran-
ças de traumas vividos e esquecidos ficou levemente descentrado pelo passado
transferido para o presente e pelo presente como tal. Tanto o passado transfe-
rido, como o presente, estão mesclados numa tessitura como gêmeos siame-
ses de impossível separação.
Como sabemos, nos primórdios da psicanálise, Freud procurou des-
cobrir um método terapêutico original que livrasse seus pacientes do sofri-
mento mental em que viviam. Porém, na medida em que se aprofundava no
processo, ficava mais surpreso com o aparecimento de resistências e obstá-
culos que se interpunham no caminho da “felicidade”. Estes impasses eram
incompreensíveis e sem solução naquele momento. Como uma pessoa em
eterno sofrimento mental criava forças contrárias à cura? A sua obstinação
levou-o gradativamente a mudar seu foco de interesse direcionando-se tam-
bém para as resistências. Resistências estas que por enquanto se situavam só
do lado do paciente.
Dos exemplos citados por Freud, de situações vividas com os pacien-
tes, pelo menos neste contexto, não vemos um sequer onde o terapeuta não
esteja envolvido nestes impasses. O analista é o agente provocador e gerador
destes impasses e, portanto, não pode se esquivar de trabalhá-los durante o
processo terapêutico. Estes obstáculos ficaram definitivamente incorporados
ao processo como um corpo estranho criado na vigência de “uma análise re-
lativamente séria”. O que Freud estava descobrindo é que esta relação não era

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uma coisa saudável, segura e inócua, mas uma geradora de sintoma, mesmo
que substituto. Estes transtornos entrariam no rol de mais uma das produções
do paciente e deveria ser tratado como tal. O terapeuta teria que se “defron-
tar com a resistência que surge nessas três formas” (Ibid, p. 361) (grifo nosso). São
três reações à situação vivida no processo terapêutico, mesmo que uma delas
esteja camuflada pelo passado histórico do paciente. Ao perceber este fenô-
meno Freud está gradativamente se afastando da condição única de arqueó-
logo da mente para ser também um engenheiro que constrói, apesar de que
neste momento esta consideração não esteja ainda sendo levada em conta.
Isto era visto como um acréscimo de trabalho e preocupação quando afirma:

De início fiquei muito aborrecido com este aumento de meu trabalho, até
que vim aperceber que todo processo obedecia a uma lei: e então também notei que
a transferência dessa espécie não traria nenhum aumento ao que tinha de fazer.
(Ibid, p. 361) (grifo nosso).

Estas situações surgidas durante o tratamento não eram mais um


acréscimo, mas fazia parte do trabalho e que tinha de ser descartado porque es-
tavam atrapalhando o bom andamento das pesquisas “arqueológicas”. Quanto
mais rápido o analista se livrasse deste incômodo, deste entulho, maior seria a
possibilidade de reconstrução do passado histórico do paciente, soterrado no
seu interior. Pelo lado do paciente não havia acréscimo, pelo contrário, havia a
sensação de alívio, de desobstrução, de modo que as lembranças podiam fluir
mais livremente. O paciente

tinha de superar a emoção aflitiva despertada por ter sido capaz de alimentar
tal desejo mesmo por um momento: e parecia não fazer diferença para o êxito
do tratamento se ela fizesse deste repúdio psíquico o tema de seu trabalho na
circunstância histórica, ou na circunstância recente relacionada comigo. (Ibid, p.
361-2) (grifo nosso).

Portanto, o clima criado pela situação analítica tinha de ser trabalhado


independentemente se ele tinha relação direta com a pessoa do analista ou

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indiretamente através dos fantasmas do passado. Se estes “obstáculos” não


eram esclarecidos o paciente adquiriria “um novo sintoma histérico embora seja
verdade, mais brando em troca de outro que fora gerado espontaneamente” (Ibid, p.
362) (grifo nosso). Assim, um sintoma gerado na relação substituía o que tinha
sido engendrado pela patologia do paciente, caso não fossem analisadas as si-
tuações conflitivas geradas pelo próprio processo. Este estado mórbido substi-
tuto seria mais tarde chamado de neurose de transferência.
A técnica psicanalítica, portanto, estaria se desviando gradativamente
para as situações criadas durante e pelo processo. Não bastava somente fazer
a ressecção dos “corpos estranhos” gerados no passado histórico do paciente,
mas também os gerados no tratamento. A simples “ressecção” do passado não
assegurava ao paciente o não aparecimento de novos pontos de conflitos atu-
ais ou antigos. O objetivo seria também dar, ao paciente, condições de supor-
tar, elaborar e compreender os conflitos, como afirma Freud ao dizer que: “(...)
uma analogia dessa espécie encontra justificativa não tanto na remoção do que
é patológico, mas no estabelecimento de condições que com maior probabilidade con-
duzem o processo na direção da recuperação”. (Ibid, p. 362) (grifo nosso).
O foco, portanto, do tratamento estava gradativamente sendo desviado
dos objetivos iniciais. Tanto a finalidade como a técnica estão sendo modifica-
das por conta deste algo atual que surgia durante o processo terapêutico. Com
esta recuperação o paciente teria sua vida mental restaurada e assim “melhor
armado contra essa infelicidade” (Ibid, p. 363) (grifo nosso).
O atual da relação terapêutica, descoberto por Freud e publicado pela
primeira vez no capítulo IV dos Estudos sobre a histeria, ficou adormecido por
várias décadas, fazendo com que ele seguisse o caminho do passado mesmo
que alguns flashes do presente surgissem para indicar a sua importância.
Ainda neste mesmo ano Freud escreve o Projeto... que nunca foi pu-
blicado em vida (FREUD, 1895/1969). Foi uma tentativa de arranjar uma lin-
guagem neurológica para explicar os fenômenos psicológicos que ele mesmo
estava descobrindo em sua clínica. Neste extraordinário trabalho ele conceitu-
aliza a noção de uma quantidade que circula dentro e entre os neurônios. Um
quantum de energia que percorre o circuito neuronal com o objetivo de des-
carga. Descarga esta que seria total (inércia neuronal) se o cérebro não criasse,

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através da evolução, condições de impedimento deste escoamento por meio
de modificações e especificações. É, portanto, uma quantidade que se esforça
para descarga. Se fosse uma força livre e em plena ação poderíamos descrevê-
-la como uma força atual, mas, como Freud conceitualiza, é uma quantidade
que circula, como já dissemos, dentro e entre os neurônios, não sendo, por-
tanto, uma força livre, pois está presa e submetida às leis dos neurônios. Esta
colocação é muito importante para o nosso raciocínio posterior.
A carta 52 (1896/1969) foi mais uma tentativa de Freud de formular o
funcionamento do aparelho psíquico tentando agora utilizar uma linguagem
diferente da anterior. Mais um passo foi dado neste sentido, mesmo que muito
tímido. O que notamos nesta carta é uma linguagem intermediária prenun-
ciando o verdadeiro salto que será dado pouco tempo depois com o trabalho
canônico A interpretação dos sonhos (FREUD, 1900/1969). Neste trabalho Freud
abandona a linguagem neurológica e abre as portas para o entendimento de
uma psicologia do normal. O estudo dos sonhos trouxe descobertas impor-
tantes para a compreensão do funcionamento do aparelho psíquico e para
lançar as bases da futura metapsicologia e da teoria da técnica. A importância
dada à consciência foi deslocada para um mundo mental inconsciente, passí-
vel ou não de consciência. A conceitualização de uma energia que circula no
aparelho psíquico ligada às representações (substitutas dos neurônios) e uma
técnica onde o par analítico é levado em conta como partícipe do processo, fo-
ram aportes fundamentais para a psicanálise. Se nos reportarmos para o ca-
pítulo VII de A interpretação dos sonhos na sua parte B (Ibid, p. 569), vemos que
o aparelho psíquico aí descrito tem uma espacialidade dividida em camadas
nomeadas de INC, PREC e CC e que o caminho energético tem uma direção,
na vigília, que vai do polo perceptivo ao polo motor, onde a energia percorre
o circuito de marcas mnêmicas dentro dele. As setas que representam esta
força se situam fora do pictograma e que neste momento da teoria a aten-
ção está voltada exclusivamente para o representacional. Há, portanto, uma
energia que circula nas marcas mnêmicas e é submetida às leis aí vigentes, e
uma outra energia que aporta ao aparelho psíquico. Aquela tem uma liberdade
mais ou menos vigiada pelas representações psíquicas, enquanto que esta é
completamente livre. É importante esta distinção para compreender o nosso

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ponto de vista, pois ao nosso ver a energia representada no aparelho psíquico


faz parte de um passado representado das vivências pessoais e correspondem
ao passado histórico de cada um. A outra energia totalmente livre a ser repre-
sentada é a força em estado bruto, em estado nascente e, portanto o atual, o
contemporâneo da questão.
O aparelho psíquico composto pelas representações é passado, os so-
nhos são passados que se presentificam de uma maneira regressiva por meio
da alucinação. Passado e presente enredado num nó indissolúvel. Esta nova
compreensão do funcionamento do aparelho psíquico deu como consequência
mudanças substanciais na técnica atingindo tanto o paciente como o analista.
O par analítico começa a ter uma identidade. Há uma associação livre casada
com uma atenção flutuante, a abstinência do paciente com a neutralidade do
analista, o sintoma originário com o produzido na relação.
O par psicanalítico precisa ser preparado para que o trabalho de aná-
lise se inicie e isto pode ser visto nesta citação:

Isso envolve alguma preparação psicológica do paciente. Devemos ter em mira


provocar-lhe duas modificações: um aumento da atenção que ele dispensa às
suas próprias percepções psíquicas e eliminação da crítica pela qual ele nor-
malmente filtra os pensamentos que lhe ocorrem (Ibid, p. 108).

O paciente tem de abdicar de qualquer crítica, deixar que a sua imagi-


nação flutue e que ponha em palavras o imaginado. “Informamos a ele, por-
tanto, que o êxito da psicanálise depende de ele relatar o que quer que lhe venha
à cabeça”... (Ibid, p. 108) afirmaria Freud um pouco mais adiante. A outra face
da moeda, isto é, o preparo do analista neste momento ainda está ligado a um
preparo que depende exclusivamente dele mesmo. Vemos aí uma maior com-
plexidade do método que já começa a atingir ambos os lados.
Ao falar do processo analítico interpretativo, assim Freud (Ibid, p. 558)
se expressa:

Quem quer que procure fazê-lo deve familiarizar-se com as expectativas le-
vantadas no presente volume e, de acordo com as regras nele estabelecidos,

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esforçar-se por abster-se, durante o trabalho, de qualquer crítica, qualquer parti
pris e qualquer inclinação emocional ou intelectual. Deve manter em mente
o conselho de Claude Bernard aos experimentadores de um laboratório de fi-
siologia: ‘Travailler comme une bête’ - isto é, trabalhar com tanta persistên-
cia quanto um animal e com a mesma indiferença pelo resultado. Se este for
seguido, a tarefa não será mais uma tarefa difícil.

O analista, caso queira transformar o seu trabalho numa tarefa mais


fácil, teria de abdicar de uma série de condições criada pelo e durante o pro-
cesso. Não é só o passado do analista que estaria incluído nesta verdadeira
cartilha de regras, mas também os sentimentos, as emoções, preconcepções,
os interesses e as expectativas suscitadas durante o processo. Todas estas si-
tuações não deveriam aparecer durante o trabalho analítico. O seu interesse
deveria estar restrito ao ato de trabalhar, de interpretar, de decifrar, sem ter
nenhuma expectativa quanto aos resultados. Não se poderia fazer uso nem do
desejo nem da memória durante o processo analítico como iria dizer muito
mais tarde Bion (BION, 1973).
O aprofundamento na compreensão do funcionamento do aparelho
psíquico através do estudo exaustivo dos sonhos e a importância dada aos
acontecimentos que ocorriam no par analítico fizeram com que Freud con-
ceitualizasse e aprimorasse um “modus operandi” para este processo, cada dia
mais difícil e complexo, o que podemos ver na sua afirmação:

na psicanálise das neuroses se faz uso mais completo desses dois teoremas -
que quando ideias intencionais conscientes são abandonadas, as ideias inten-
cionais ocultas assumem o controle da corrente de ideias e que as associações
superficiais são apenas substitutas por deslocamentos das associações mais
profundas e suprimidas. Na verdade, estes teoremas transformaram-se em
pilares básicos da técnica psicanalítica. Quando instruo um paciente a aban-
donar a reflexão de qualquer tipo e dizer-me o que lhe vem à cabeça, estou
me apoiando firmemente na presunção de que ele não será capaz de aban-
donar as ideias intencionais inerentes ao tratamento e sinto-me justificado
em inferir que aquelas que parecem ser as coisas mais inocentes e arbitrárias

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que me conta acham-se de fato relacionadas à sua enfermidade. Existe outra


ideia intencional de que o paciente não desconfia - uma ideia relacionada co-
migo. (FREUD, 1900/1969) (grifo nosso).

Com isto Freud afirma, apoiado nestes dois teoremas, que o paciente
fala somente dele, dos seus conflitos interiores, do sintoma gerado pelo pro-
cesso e da sua ligação com o analista, mesmo utilizando associações superfi-
ciais, deslocada e sem importância.
Assim, mesmo que o analista não perceba, ele está entranhado no pas-
sado e no presente do paciente e podemos até ir mais adiante afirmando que
também nas expectativas futuras do próprio paciente. Já de posse de todo este
conhecimento teórico e prático nesta época, o Caso Dora soa como algo desto-
ante. Freud não conseguiu empregar estes conhecimentos derivados do estudo
da relação do par analítico. Por que não o fez? Uma possibilidade é a de que estes
conceitos não estavam bem sedimentados e assim não podiam ser extensivos
a todos os casos. A outra possibilidade é que Freud voltou à condição de arque-
ólogo e trabalhou exclusivamente as lembranças da paciente. Se prestarmos
bem atenção, podemos ver que Freud fez uma verdadeira exegese do passado
histórico de Dora, mas mesmo assim o processo terapêutico não prosseguiu.
Ele dá uma verdadeira aula interpretativa sobre os sintomas, os sonhos e o pas-
sado infantil. Montou ou remontou todo o quebra-cabeça e dentro da impor-
tância dada às reminiscências não haveria motivo para sua interrupção. Freud
trabalhou ad nauseam “todos” os produtos psíquicos de sua paciente, que sur-
giram durante o curto tempo de tratamento. Diríamos que ele trabalhou, deu
sentido a todo o passado histórico da paciente, que surgiu durante o processo.
Confirmou a sua teoria dos sonhos, fez uma verdadeira dissecção da estrutura
histórica e com isto começou a descobrir uma sexualidade infantil diferente do
adulto, através dos sintomas orais de Dora. Mas o que ficou faltando então? A
importância deste caso não foi somente pela investigação minuciosa que Freud
fez da histeria, mas das suas conclusões sobre a interrupção do processo, que
foi publicada somente cinco anos mais tarde. Freud faz uma verdadeira mea
culpa do seu fracasso. Quem ganhou com esta intensa reflexão sobre o fracasso
foi a psicanálise. Neste momento (1905/1969), os conflitos relacionados com o

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próprio processo terapêutico começaram a ganhar importância, mesmo que
tal importância esteja relacionada com o vínculo analista-analisando, conta-
minado pelo passado. Foi um grande passo para a próxima etapa. Mesmo afir-
mando que as transferências “são as novas edições ou fac-símiles dos impulsos e
fantasias que são criados e se tornam conscientes durante o tratamento” (FREUD,
1905/1969) (grifo nosso), Freud não trabalha os sentimentos atuais que foram
deflagrados por ele próprio. Não há a admissão verdadeira de um sentimento
atual dirigido para a pessoa do analista como tal.
O analista é somente este passado revivido, ficando escondidos im-
pulsos ou demandas atuais tão ou mais constrangedores do que as reminis-
cências. O psiquismo humano prima por se defender do novo e, portanto, do
desconhecido, criando uma bruma ilusória com o passado já vivido. Quando
o analista permanece envolvido por esta ilusão e mantém-se como o deci-
frador desta substituição, estaria revelando só a metade da verdade. A nosso
ver, a mais importante, a outra metade, não estaria sendo revelada para o
paciente. Somente o deslocamento do passado para o presente se tornaria
consciente para o paciente, deixando intocado o presente como tal. Não é só
o passado que não quer ser revelado, mas também e principalmente o atual
da relação que resiste com maior força ao seu desvelamento. Ambas reve-
lações trariam como consequências dor, angústia, constrangimento, culpa,
frustração e nada mais natural que o aparelho psíquico se defenda disto, já
que está regido pelo princípio do prazer. Um clima de irrealidade é constru-
ído durante o processo analítico, onde o passado e o presente são processados
de tal maneira que ilude assim o par analítico. Caberá ao analista descons-
truir esta ilusão lenta e progressivamente.
As três situações do terceiro impasse descritas por Freud no capítulo IV
dos “Estudos sobre a Histeria” estariam presentes o tempo todo, porém apenas
a rotulada como transferência começou a ser trabalhada analiticamente. “A
transferência” diz Freud, “é uma necessidade inevitável (...). Esta é, entretanto,
a parte mais difícil de toda a tarefa” (Ibid, p. 113). A tarefa é duplicada quando
o analista lida com as coisas do passado e do presente, com sentimentos anti-
gos “estrangulados” em seu interior e com impulsos atuais surgidos durante o
processo e dirigidos diretamente para a pessoa do analista. Esta é uma questão

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– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

importante e Freud estava atento a ela, apesar de não trabalhá-la na prática


naquele momento. Isto é visto quando Freud diz: “É fácil aprender a inter-
pretar sonhos, a extrair das associações do paciente seus pensamentos e suas
lembranças inconscientes e praticar métodos explanatórios semelhantes: para
isto o próprio paciente sempre fornecerá o texto” (lbid, p. 113) (grifo nosso). Fornece
o texto porque o mesmo já está escrito mesmo que esteja mutilado pelos aci-
dentes de percurso da história do paciente. O mais difícil é decifrar o texto que
está sendo escrito no momento do trabalho analítico, pois “somente depois
de analisada a transferência é que o paciente atinge um sentido de convicção da
validade das ligações estabelecidas durante a análise” (Ibid, p. 113) (grifo nosso).
Vemos, portanto, que o processo analítico é um perturbador de um equilíbrio
instável no qual estava o paciente criando ilusões e fantasias. O trabalho ana-
lítico se faz pela desconstrução, reconstrução e construção.
A análise constrói um clima imaginário para poder trabalhar e o seu
trabalho seria destruir este clima que ela mesma criou. Este clima de déjà vue
e déjà raconté criado pela situação analítica mantém e alimenta urna relação
desatualizada e anacrônica com o “intuito” de “camuflar” a relação atual que
se dá no par analítico. Esta mesmice do passado, mesmo sendo atualizada na
relação analítica, cria um clima de “proteção” para as coisas que estão se de-
senvolvendo naquele momento. A consequência inevitável da descoberta da
transferência foi a conceitualização de uma força energética que vem pôr em
movimento todo o sistema psíquico.
Há uma contemporaneidade destas descobertas. Em 1895 foi a des-
coberta do fenômeno da transferência e quase ao mesmo tempo a noção de
uma quantidade que circula nos neurônios como visto no “Projeto”. A concei-
tualização da fantasia, dois anos mais tarde, ao afirmar que uma ideia carre-
gada energeticamente funciona como uma realidade como visto na carta 69
(FREUD, 1897/1969). Em 1900, com A interpretação dos sonhos, Freud busca uma
linguagem psicológica para os fenômenos psíquicos e, no seu primeiro esboço
da mente, conceitualiza uma quantidade que circula no aparelho psíquico indo
do polo perceptivo para o polo motor (FREUD, 1900/1969). Esta força exempli-
ficada como uma energia está ainda fora deste pictograma, e está simbolizada
por uma seta que entra pelo lado perceptivo e por uma outra seta que escoa esta

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– A IMPORTÂNCIA DO PRESENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA FREUDIANA: CLÍNICA DAS PULSÕES? 103
quantidade através do polo motor. Esta quantidade que circula pelas marcas
mnêmicas, neste momento da teoria, é qualificada como energia sexual. Vê-
-se, portanto, que o Caso Dora, de inegável importância, abriu as portas para o
escudo e a descoberta da sexualidade infantil e da teoria pulsional.
A pulsão neste momento coincide com o representante psíquico e a
transferência é o deslocamento do passado para o presente. Ambos são o pas-
sado, o representado, o simbolizado.
A tópica construída por Freud neste período é representacional com
suas expressões inconsciente, pré-consciente, consciente e com suas próprias
leis. A energia aqui está presa ao representante psíquico e ela pode circular mais
ou menos livre nos seus representantes. O objeto da psicanálise aqui é o incons-
ciente e o objetivo da prática é desvendar o que nele já está inscrito. Esta tópica
está alicerçada sobre o império do princípio do prazer comandada pelo incons-
ciente. O centro é o inconsciente e a psicanálise é fundamentada em torno dele.
O aprofundamento do estudo da transferência e da pulsão cria novas
perspectivas para a compreensão do psiquismo e novos caminhos para a psi-
canálise. Com isto houve um descentramento progressivo tanto da prática
como da teoria. Ambas foram expandidas. O aparelho psíquico não ficou so-
mente com o representado, mas também com o não representado e a prática
foi acrescida do trabalho da transferência com os seus dois vértices - o passado
e o presente. Estes acréscimos podem ser vistos com a nova noção de pulsão no
trabalho Pulsões e seus destinos (FREUD, 1915/1969) e o maior aprofundamento
do conceito de transferência. A pulsão agora não é mais o representante psí-
quico, mas uma força constante e se é constante, portanto, é atual, e deman-
dando com isto um eterno trabalho ao aparelho psíquico para representá-la.
A transferência ganha o colorido de atual no trabalho técnico Amor de
transferência (FREUD, 1914/1969), quando Freud afirma textualmente que este
amor de transferência é verdadeiro. Isso restitui ao sentimento amoroso a co-
notação de atual e reduz a sua carga de ser apenas passado. Se o amor é verda-
deiro, por que os outros impulsos criados e mobilizados no processo analítico
não o são? A nosso ver isto se concilia com a nossa hipótese inicial, onde estas
demandas que surgem durante a análise são também atuais, mesmo que uti-
lizem uma roupagem ou uma linguagem do passado.

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Se a pulsão é, portanto, uma força constante e os sentimentos vividos


durante o processo analítico dirigidos à pessoa do analista são também atu-
ais, essas emoções estão sendo também engendradas por esta força atual que
busca descarga. Há assim uma mudança radical na teoria e na prática psica-
nalíticas. Do ponto de vista teórico, uma segunda tópica, uma segunda teoria
pulsional e uma segunda teoria da angústia, estão sendo delineadas e pelo lado
da prática a análise torna-se sem fim, deixa de ser inócua, pois com estas des-
cobertas evidenciou-se que o homem não está determinado psiquicamente,
pelo contrário, está o tempo todo se determinando durante todo o seu percurso
vital, na sua interação com seu universo pulsional e objetal.
O conceito de uma quantidade que busca descarga independente de
qualquer coisa e que subjaz ao mundo representacional atinge o seu ápice em
1920 com o texto Além do princípio do prazer (FREUD, 1920/1969). Todo o apa-
relho representacional é sustentado ou alimentado por esta força que busca
uma inércia, mesmo que por “maldição” seja obrigado a utilizar o universo
representacional para descarregar-se. Do caos pulsional até a ordem, do Além
do princípio do prazer até o Princípio de realidade, há todo um trabalho psíquico
de tentar dominar esta força em estado bruto, utilizando o auxílio dos repre-
sentantes-representativos, isto é, a energia quiescente que vão sendo incor-
porados durante a história libidinal de cada um. Por não poder ser expressa
diretamente, esta força estaria condenada a ser presa ao seu representante psí-
quico e para com isto viabilizar uma descarga amena e diversificada. Mesmo
que esta condenação seja perpétua, esta força operante estaria o tempo todo
tentando se desviar, abreviar o tempo de sua descarga e lutar contra ligações
realizadas pela compulsão à repetição operante na mente. O princípio de nir-
vana, lutando contra a instalação do princípio de prazer/princípio de reali-
dade. O imediatismo da descarga contra o seu adiamento, o coração contra a
razão, a energia livre contra a energia ligada, o impulso contra a reflexão, o
caos contra a ordem. Neste trabalho sem fim, a vitória estaria sempre do lado
do mais poderoso, no dizer de Freud, no lado do exército mais potente, que é
a pulsão (FREUD, 1937/1969).

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– A IMPORTÂNCIA DO PRESENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA FREUDIANA: CLÍNICA DAS PULSÕES? 105
Com a conceitualização de uma pulsão a ser representada, isto é, de
uma pulsão sem representação (pulsão de morte), Freud ressuscita definitiva-
mente o atual da relação analítica.
Quais seriam as implicações para a psicanálise destas “descobertas”,
ou seja, da cristalização destes conceitos? Isto provocou uma verdadeira re-
viravolta em toda teoria e prática psicanalíticas. Freud colocou a psicaná-
lise de ponta-cabeça, como já o fizera na carta 69 de suas correspondências
com Fliess. O cientificismo, o determinismo e o iluminismo da psicanálise
vão por água abaixo. A procura de leis universais, que regeriam o funciona-
mento do inconsciente, é abandonada e substituída pela singularização do
processo analítico. O objetivo terapêutico da análise não faz mais sentido. O
novo objetivo do processo tem de ser montado não exclusivamente no res-
gate de símbolos (representações), mas na produção de símbolos com o in-
tuito de enriquecer e ampliar a rede representacional para poder, com mais
ferramentas, lidar com a invasão eterna e contínua deste exército indestru-
tível. É uma guerra sem fim que vai ser travada na arena do setting, onde os
fantasmas do passado vêm travestidos de roupagem nova (transferência) e
o presente vai atingir diretamente o ser do analista (referência). O analista
é o objeto substituto de um passado camuflado, transferido e atualizado e é
também, ao mesmo tempo, o objeto do impacto direto desta força. Enquanto
que naquela (transferência) o analista ainda pode ficar protegido pelo passado
transferido e se sentir aliviado por perceber que tudo não passa de uma falsa
ligação, de uma ilusão, nessa (referência) não tem como se proteger, não tem
como escapar, há uma referência direta à sua pessoa no tempo presente, que
urge por uma resposta imediata. É muito comum neste momento o analista
e o processo analítico naufragarem como um “Titanic” por conta destas duas
situações criadas pela força já representada e principalmente pela segunda
possibilidade, isto é, por esta quantidade que faz do analista o seu objeto di-
reto. A meu ver este é o verdadeiro “iceberg” que o processo tem de trabalhar
e, em trabalhando, criar uma rede simbólica (construir salva-vidas) para evi-
tar uma catástrofe antecipada e maior.

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The importance of the present in freudian


psychoanalytic clinic: clinic of drives?

ABSTRACT: The author works through concepts such as past and present in the
clinical practice. For this, he utilizes Freudian technical and metapsychologi-
cal framework. Where, the past could be related to the libidinal history of the
patient, represented in his psychic and transferred to the analyst (transference),
while the present represented by facts that occur during the therapeutic hour is
directed toward the analyst (reference);and it needs to be symbolized. The past
could be the drive representation while the present could be the drive itself. The
analyst has to sail through both moments of the analytic process, digging sym-
bols (archeologist) and constructing symbols (constructor).

KEYWORDS: Psychical working over; False binding; Death instincts; Reminiscen-


ce; Psychical presentation; Transference; Symbolic net; Symbols.

REFERÊNCIAS
BION, W.R. Atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1973, p. 142.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1969.
(1895). Psicoterapia da histeria. In: Estudos sobre a histeria, v.11.
(1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Publicações pré-psicanalíti-
cas e esboços inéditos, v.1.
(1896). Extratos dos documentos dirigidos à Fliess. In: Publicações pré-psica-
nalíticas e esboços inéditos, v.1.
(1900). A interpretação dos sonhos, vols. 4 e 5.
(1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria, v.7.
(1915). Pulsões e seus destinos, v.16.
(1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações
sobre a técnica de psicanálise III), v.12.
(1920). Além do princípio do prazer, v.18.
(1937). Análise terminável e interminável, v.23.

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– A IMPORTÂNCIA DO PRESENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA FREUDIANA: CLÍNICA DAS PULSÕES? 107
Comentário
PSICANÁLISE NOS DIAS DE HOJE
Em um artigo anterior (SILVA, 1999) tentamos garimpar o presente, o atual
(metapsicologicamente falando) na clínica freudiana que se iniciava. Naquela
época demonstramos, através de uma releitura dos casos clínicos de Freud e
de seus artigos de técnica, a expressão do atual (FREUD, 1895/1969) na relação
clínica entre o analista e o analisando.
Sabemos que no início de seu trabalho clínico, Freud privilegiava
a busca pelo passado esquecido do paciente, numa verdadeira aventura
proustiana (PROUST, 1981). O passado encravado profundamente no psi-
quismo do paciente era perseguido e desencavado obsessivamente e as-
sim transformava o analista em um verdadeiro arqueólogo da mente. As
ferramentas utilizadas para este grande empreendimento iam gradativa-
mente se sofisticando por conta das dificuldades de se trazer à luz estas
“cidades” soterradas. Desde a sugestão, a hipnose, a pressão frontal com
os dedos, a associação livre, a interpretação dos sonhos e por fim o traba-
lho da transferência foram armas utilizadas para se tentar dar conta deste
trabalho hercúleo.
A narrativa deste passado para surtir efeito tinha de vir acompanhada
com o afeto correspondente, despertado pelo acontecimento doloroso. A utili-
zação destas novas metodologias, que iam sendo descobertas gradativamente,
tinha como objetivo vencer as dificuldades encontradas no caminho que im-
pediam a emersão de tais conteúdos por conta de uma tentativa desesperada
do paciente de se defender da dor que inevitavelmente adviria.
A descoberta do fenômeno da Transferência, chamada inicialmente de
“falsa ligação” (FREUD, 1893-1895/1969), que inicialmente foi vista como obstá-
culo ao trabalho analítico, começou a ser utilizada como a maior ferramenta
para se aprofundar no mundo interno do paciente. O panorama então mudou
e ela se transformou na arena, na peça fundamental (FREUD, 1905), no qual o
trabalho psicanalítico, propriamente dito, se desenrolaria.
Apesar da força deste passado, alguns indícios foram por nós pesca-
dos, que denunciavam a presença do presente que se infiltrava sutilmente

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– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

nos meandros da narrativa do paciente ou de seus atos. Além dos fantasmas


do passado que vinham travestidos do atual (transferência) e assim disfarça-
damente burlava a censura, algo se imiscuia sorrateiramente, um outro fe-
nômeno que rotulamos de “Referência” (SILVA, 1999). O analista era agora a
referência direta das intensidades do paciente. Ele agora teria de ter os ouvi-
dos voltados tanto para o passado como para o presente, que inevitavelmente
estavam entrelaçados no discurso do paciente.
O processo analítico, agora com este duplo vértice e estas duas
faces, o passado e o presente, teria necessariamente de utilizar o mé-
todo de interpretação para aquele e o método de nomeação para este,
concomitantemente.
Na análise clássica (interpretação da transferência resistencial)
(FREUD, 1912/1969), o analista ainda estaria “protegido” pelas roupagens do
passado, por esta falsa ligação, e é muito diferente quando estamos diante
de uma situação onde somos a referência direta dos impulsos do paciente.
Com essa não temos proteção, não temos como escapar e as coisas aconte-
cem em tempo real. Freud já tinha alertado sobre isto quando afirmou que o
amor de transferência (FREUD, 1914/1969) era também um amor verdadeiro,
situação esta, por exemplo, vivida por Breuer (FREUD, 1893-1895/1969) que,
ao receber o impacto direto de toda carga erótica de Anna O., não a supor-
tou e abandonou o caso.
Apesar de Freud ter trabalhado exaustivamente nos seus primeiros
vinte e cinco anos dando ênfase ao universo representacional dos seus pacien-
tes, pois o modelo econômico (pulsional) tinha sido posto à margem e para-
lisado no Projeto (FREUD, 1895/1969) por ser incompatível com a vida, ele, no
entanto, estava atento a este modelo ao publicar em 1914 o trabalho Recordar,
repetir e elaborar (FREUD, 1914/1969), onde percebeu que as atuações e as pas-
sagens ao ato se entrelaçavam no mesmo processo.
O tempo estava mudando e Freud não estava insensível a tais mudan-
ças. A conhecida clínica dos conflitos estava cedendo lugar, gradativamente,
a uma nova clínica que explodia na realidade de nossos consultórios e na re-
alidade externa. As intensidades tinham agora um contorno mais nítido, im-
pondo, por isto, uma mudança no modo de trabalhar do analista. O trauma foi

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– A IMPORTÂNCIA DO PRESENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA FREUDIANA: CLÍNICA DAS PULSÕES? 109
resgatado e o econômico assumiu uma posição de destaque, acrescentando à clí-
nica clássica a clínica do trauma. Esta foi a virada de 1920 no discurso freudiano
(FREUD, 1920/1969), onde o fator econômico atingiu um lugar privilegiado.
No nosso trabalho falávamos de uma certa torção de eixo da psicaná-
lise (SILVA, 1999c) por conta das mudanças nas próprias demandas provoca-
das pelas novas doenças da alma (KRISTEVA, 1993), cuja prevalência aumentou
consideravelmente a partir da segunda metade do século passado, determi-
nando, assim, uma nova abordagem e um novo desafio que punham à prova
o próprio projeto psicanalítico. Se no começo, utilizando a metáfora de Freud
(FREUD, 1905/1969), o analista seria o equivalente a um “escultor”. Hoje ele te-
ria de agregar sistematicamente também a função de “pintor”, onde o método
indutivo obrigatoriamente se somaria a dedutivo.
O mundo mudou, a cultura mudou e o sujeito mudou e, por efeito de
cascata, as demandas que chegam aos nossos consultórios, quando chegam,
mudaram substancialmente.
Sociólogos como Bauman (BAUMAN, 1995) ou analistas como Birman
vêm alertando estas transformações já há algumas décadas. Como exemplo
ilustrativo citaria os dois últimos trabalhos deste intitulados: Cadernos do mal
(BIRMAN, 2009) e Subjetividades contemporâneas (BIRMAN, 2012), onde vemos
ali descortinado um clima sombrio permeado pelas intensidades e seus res-
pectivos transbordamentos.
Hoje esta situação povoa os nossos consultórios, quando nos con-
frontamos com pacientes atormentados pelos demônios travestidos de pâ-
nicos, somatoses, depressão, adição de qualquer natureza (legal ou ilegal),
obesidades mórbidas, compulsões, passagens ao ato e etc. Há uma verda-
deira busca frenética pelo alívio imediato da dor possibilitando o apareci-
mento de cartéis salvadores que prometem o apaziguamento instantâneo
destes sofrimentos.
A mudança na subjetividade com a consequente pobreza no universo
simbólico tornou-nos vulneráveis à coisa pulsional, levando-nos frequente-
mente a transbordamentos onde o ato aparece em primeiro lugar, antecipando-
-se ao pensamento e a reflexão. Hoje sonhamos menos, fantasiamos menos,
associamos livremente menos.

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Se o mundo mudou, o sujeito mudou, então, o nosso psiquismo tam-


bém está mudando por extensão. Este novo psiquismo deste novo sujeito re-
jeita terminantemente a análise clássica. Estamos mergulhados no reino do
imperativo do gozo. O simples prazer está sendo deixado para trás e o que se
busca está além dele. (FREUD, 1920/1969)
De tudo que foi dito, nesta pequena reflexão, concluímos que a psica-
nálise está num impasse e nós, como analistas, estamos atônitos por termos
de lidar com as coisas do passado, com as coisas do presente e com duas re-
gras num mesmo jogo.
Se antes estas intensidades tinham de ser garimpadas ou pesca-
das em águas profundas, hoje elas estão à flor da terra, ou melhor, à flor
da pele.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, 334 p.
BIRMAN, J. Cadernos do mal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 331 p.
______ . O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012, 159 p.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago, 1969.
(1893-1895). Estudos sobre a histeria-Caso clínico II - Fräulein Anna O., v.2.
(1893-1895). Estudos sobre a histeria- Caso clínico II - Fräulein Elizabeth Von
R., v.2.
(1895). Projeto para uma psicologia científica, v.1.
(1895). Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particu-
lar intitulada “Neurose de Angústia”, v. 3.
(1905). Fragmento de um caso de histeria, v.7.
(1905). Sobre psicoterapia, v. 7.
(1912). Dinâmica da transferência, v.12.
(1914). Observação o amor de transferência, v.12.
(1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre técnica), v.12.
(1920) Além do princípio do prazer, v. 18.
KRISTEVA, J. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, 239 p.

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– A IMPORTÂNCIA DO PRESENTE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA FREUDIANA: CLÍNICA DAS PULSÕES? 111
PROUST, M. Em busca do tempo perdido. Porto Alegre - Rio de Janeiro, 1981.
SILVA, E.O. A importância do presente na clínica psicanalítica: Clínica das pul-
sões? In: Revista Boletim em Psicanálise, São Paulo, v.8, p.27, 1999.

EDE DE OLIVEIRA SILVA


Trav. Humberto I, 44
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Artigo
O fim de análise em Melanie Klein
uma leitura desconstrutiva[1]
LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO

RESUMO: O trabalho de Melanie Klein sobre o término de uma análise, publi-


cado em 1950, é submetido a uma leitura desconstrutiva. Após uma rápida
apresentação desta modalidade de leitura e da explicitação de suas vantagens
para o psicanalista diante de textos de psicanálise, é feita uma consideração
genérica sobre o contexto em que Melanie Klein produziu o texto e sobre al-
gumas das suas características retóricas. Em seguida, são focalizados quatro
aspectos do texto: a distinção entre os vértices genético e estrutural na teoria
e na clínica kleiniana, a relação problemática entre “força do ego” e “profun-
didade do ego” como índices de uma cura bem sucedida, a exigência de que a
análise prossiga na solidão e, finalmente, o não-analisável com que cada indi-
víduo deve aprender a conviver.

PALAVRAS-CHAVE: Término de análise; Técnica psicanalítica; Interminabilidade


da análise; Melanie Klein.

1. Palestra apresentada no Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Psicanalista, professor
em18 de agosto de 2000. da USP e da PUC-SP.

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ARTIGO – LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO
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1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Leituras desconstrutivas
Sendo Melanie Klein, por diversas razões, algumas das quais apontarei em se-
guida, objeto de adesões e ódios intensos, o título da minha palestra pode criar
algum mal entendido. O termo “desconstrução” e seus derivados, introduzidos
na terminologia filosófica por Jacques Derrida, embora de uso cada vez mais
comum, pode, por isso mesmo, gerar interpretações muito variadas e mesmo
totalmente descabidas. Cabe, portanto, de início, afirmar com toda a clareza
possível o que uma leitura desconstrutiva não é. Não é uma forma mais ou me-
nos elaborada de oposição ao texto, uma crítica desqualificadora do texto ou
de seu autor. Como se verá a seguir, é, ao contrário, uma forma extremamente
leal, mas também extremamente livre de entrar em contato com um texto
em todas as suas dimensões. Não é o caso de fazer neste momento uma apre-
sentação completa do que uma leitura desconstrutiva vem a ser, o que já fiz
em diversos outros lugares (FIGUEIREDO, 1999). No entanto, algumas poucas
palavras precisam ser reeditadas.
A leitura desconstrutiva parte de alguns pressupostos. No lugar da
“obra” e do seu “autor”, cada um dos quais exibindo uma serena unidade
e soberania, a leitura desconstrutiva trabalha com o textual e com a inter-
textualidade. Concebermos uma “obra” e seu “autor”, dotado de “intenções
autorais”, que instalariam no que ele produz um “sentido” fixo e inalienável
é, de uma certa forma, nos mantermos aquém do que a própria psicanálise
ensina acerca dos sujeitos humanos e suas divisões constitutivas. Tratemos
o texto - cada texto - como uma heterogeneidade em que o suposto sentido
ideal - as teses que mal ou bem nele figuram e lhe dão uma certa identidade
- dependem para ser formuladas de algo que não se formula como tese - o
a-tético. Parte deste a-tético está “presente” no texto na forma de indícios
que podem gerar, inclusive, tensões com o que o autor pretendia ou supu-
nha estar dizendo. Alguns destes indícios nos apontam para textos ainda
não escritos e que talvez nunca o serão. Muito deste a-tético nos remete, as-
sim, a outros textos, da mesma pessoa ou de outras, sobre os quais, a favor
dos quais ou contra os quais, a escrita pôde ser articulada. Entre estes outros

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– O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN UMA LEITURA DESCONSTRUTIVA 115
textos, que formam o impensado necessário de cada texto, alguns nos esprei-
tam do passado e outros nos aguardam no futuro. Desta maneira, rompe-se
a delimitação da obra e do autor para se abrir uma rede intertextual muito
mais complexa e indeterminável. Cada texto é constituído de marcas deixa-
das sobre outras marcas e sobre cada texto novas marcas virão se imprimir.
Em uma dada leitura, é sempre deste conjunto aberto que se trata e o sen-
tido é o que este emaranhado de marcas nos solicita realizar a cada leitura.
Nesta medida, o sentido se dá na posterioridade da escrita que é, ela mesma,
o que se dá sempre na posterioridade de outras escritas e leituras. Não só a
leitura vem depois, mas outras escritas, que virão ainda depois de cada lei-
tura, exigirão as retomadas quase infinitas de um texto. Trata-se, assim, de
um sentido que não se encontra aprisionado na obra ou na intenção auto-
ral e que não se encontra plenamente presente na obra, mas se transforma
na medida em que se transmite e gera ou evoca novas marcas e estas, novas
leituras. A leitura desconstrutiva não persegue um suposto “sentido ideal”,
aquele supostamente enclausurado na obra pela intenção autoral e que se
repetiria, recuperado, sempre igual a cada boa leitura.
A leitura desconstrutiva caracteriza-se pela duplicidade de “atitudes”:
há tanto uma lealdade exacerbada como uma grande liberdade no leitor. A le-
aldade é a atenção rigorosa aos detalhes, aos aspectos formais, às lógicas que
organizam e desorganizam o texto e comandam suas remissões internas e ex-
ternas. A liberdade é a de não se manter aprisionado pela suposição de que o
texto e seu autor disponham de uma unidade e soberania a que devamos nos
curvar reverentemente. Há, portanto, uma forte dose de conservação - nada,
em princípio, do texto é descartável - e, ao mesmo tempo, outra boa dose de
destruição - no lugar de uma unidade a ser consagrada, o que emerge é um
campo de diferenciações e remissões muitas vezes surpreendente.
O “produto” de uma leitura desconstrutiva não é, assim, uma resenha,
um resumo, uma síntese; não é, também, uma exposição sistemática e sisuda
do pensamento do autor em sua obra. O resultado desta leitura toma mais fa-
cilmente a forma de um relatório de viagem com muitas observações e comen-
tários à margem. É como se fosse o protocolo de uma expedição exploradora
em que vão se assinalando os episódios e as descobertas, as expectativas, as

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lembranças e os sustos de uma viagem por um território desconhecido. Nesta


trajetória não podem faltar os momentos de humor e franca hilaridade.
Convém neste momento anunciar uma limitação insuperável desta
palestra. Quando nos dedicamos à desconstrução de um texto, sabemos por
onde e como começar, mas não sabemos aonde e quando vamos terminar. A
desconstrução de umas poucas páginas pode nos levar muito longe e por muito
tempo. Em uma palestra serei obrigado a estabelecer certos limites que, em uma
atividade desconstrutiva verdadeiramente livre, não deveriam existir a priori.
A leitura desconstrutiva é uma prática que, desde a atividade seminal
de Derrida, vem sendo efetivada diante de textos de variada natureza, em es-
pecial de textos filosóficos e literários (mas, também, psicanalíticos), que ga-
nham nova vida e novas possibilidades de pensamento e fruição. Creio, porém,
que no caso da desconstrução operar sobre textos psicanalíticos há um ganho
suplementar. As chamadas leituras canônicas e sistemáticas de textos psicana-
líticos, de muito apelo acadêmico, conseguem organizar obras e pensamentos
em formas muito didáticas e eficazes nos termos de uma certa ideia de trans-
missão. No entanto, esta lealdade reverencial pela obra e pelo autor não cos-
tuma ajudar a clínica. Quanto mais impressionante o caráter sistemático da
exposição, quanto mais somos apresentados, por exemplo, a “Freud segundo
a ordem das razões”, menos são em nós mobilizadas as memórias da clínica e,
de forma mais geral e fundamental, menos comparece a experiência do incons-
ciente. As leituras canônicas e canonizantes de grandes textos psicanalíticos
tendem a fechá-los em seus próprios limites e a colocá-los em uma espécie
de altar em que podem ser reverenciados e repetidos - como em uma oração
ritualizada - sem que deles se possa tirar algum proveito clínico. Leituras ca-
nônicas são expressões, suspeito eu, da compulsão à repetição e movidas pela
pulsão de morte. Já as leituras próximas (leais) e desconstrutivas - capazes de
destruir a ilusão da unidade e do fechamento - são leituras antiescolásticas
e não escolares de textos canônicos, capazes por isso de convocar memórias
e afetos dos mais variados matizes. Os textos submetidos a uma leitura des-
construtiva recuperam e ganham vitalidade, embaralham-se novamente às
correntes pulsionais e escapam aos mausoléus, que são as bibliotecas e as Es-
colas. Dessa maneira, apesar do momento destrutivo que contém, uma leitura

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– O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN UMA LEITURA DESCONSTRUTIVA 117
desconstrutiva é extremamente generosa com os textos a que se dedica, pois
lhes garante uma sobrevivência que lhes é negada por seus presumidos guar-
diães de estrita observância.
Ora, esta operação de resgate pode ser feita por qualquer leitor, mas
coroa-se mais difícil quando um certo tipo de transferência positiva não muito
bem resolvida mantém o leitor prisioneiro do texto canonizado. Nada impede
que um psicanalista kleiniano se disponha e consiga re-introduzir os textos
de Melanie Klein no campo da experiência do inconsciente, desde que ele não
seja um kleiniano de escrita observância. A chamada “escrita observância”
kleiniana, bioniana, lacaniana, winnicottiana, freudiana ou qualquer outra
não permite a articulação de lealdade rigorosa e liberdade a que aludi acima.
É claro que uma forte transferência negativa, uma forte antipatia, também
pode ser um obstáculo. No entanto, é provável que seja mais proveitoso che-
gar a um texto com o nariz torcido e um pé atrás do que de joelhos e com os
olhos postos no altar e seu sacerdote. Foi movido por uma ligeira antipatia,
mas também por uma intensa curiosidade que fui me aproximando de Mela-
nie Klein. Desta aproximação tenho tirado muito partido e é um pouco desse
proveito que desejo compartilhar com vocês.
Dito isso, comecemos a nos aproximar do texto.

O texto On the critería for the termination of a Psycho-Analysis (1950)


Tratarei de um pequeno texto publicado em 1950 no lnternational Journal of
Psycho-Analysis[2], o único texto deste ano incluído nas Obras Completas (vol.
III; KLEIN, 1950/1984). No início da década de 1940, prolongando-se por muitos
anos, eclodira, junto com a Segunda Guerra Mundial, a Controvérsia (com C
maiúsculo) entre o pequeno, mas aguerrido, grupo de Melanie Klein e os psi-
canalistas mais próximos a Anna Freud, que pretendiam a expulsão de Klein e
suas asseclas. Desde a década anterior, quando os Freud ainda habitavam Viena,
os sinais da dissensão vinham se acumulando e exigindo cuidados por parte da
Sociedade Britânica. Com a chegada dos Freud e outros vienenses a Londres, a
tensão aumentou muito e a Sociedade Britânica teve de abrir e institucionalizar

2. São meras quatro páginas e meia dos Writingsof Melanie Klein, vol. UI, 1984.

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um processo de confrontos em que os dois grupos eram obrigados a se mani-


festar por escrito e oralmente em uma série de seminários e discussões sobre
teoria e técnica. Isso, com as bombas caindo lá fora e destruindo a cidade. Ao
término das Controvérsias, Londres estava bastante bombardeada, mas a So-
ciedade Britânica de Psicanálise gozava de boa saúde e instituiu a formação
múltipla e os três grupos: kleinianos, freudianos e independentes.
Durante o tempo das Controvérsias, e logo após, foram produzidos al-
guns dos mais importantes textos de Melanie Klein e do seu grupo. Muitos
destes trabalhos vieram a ser reunidos para a primeira grande e retumbante
autoapresentação do grupo kleiniano em 1952, com a publicação do livro De-
velopments in Psycho-Analysis, com textos de Klein, Heimann, Isaacs e Riviere
(HEIMANN et alii, 1952).
O texto de 1950, comparativamente a muitos anteriores e posteriores, é
um texto menor e que não foi reproduzido nas diversas coletâneas com obras
de Melanie Klein e seus seguidores publicadas na década de 1950. Posterior ao
término das Controvérsias e posterior ao grande texto de 1946 (Notes on some
Schizoid Mechanisms; KLEIN, 1946/1984), já nasce com o “sistema kleiniano”
praticamente formado e com os riscos de expulsão contornados. Mas ainda
não traz todas as marcas, às vezes insuportáveis para os não-kleinianos, das
pretensões imperialistas do grupo.
Em uma primeira leitura, salta aos olhos a necessidade de Melanie
Klein situar-se no campo da tradição e manter o contato com o tronco psi-
canalítico freudiano. Ela já inicia dizendo: “Há um certo número de critérios
(para o término de uma análise) sobre os quais todos concordamos.” (Grifo
meu.) Mais adiante, ela afirma “como aprendemos com Freud e Abraham” ao
se referir às condições do luto, que é um dos pilares para o que ela entende
como condição para o término da análise. Há ainda uma menção aos “crité-
rios bem conhecidos” de todos para o término de uma análise, quando ela se
interroga sobre as relações entre o que está propondo e o que é admitido na
comunidade psicanalítica.
Não é muito; ao longo de todo o pequeno texto são três ou quatro men-
ções explícitas aos demais psicanalistas com quem aprendeu ou a quem deve
satisfações. Não obstante, é claro que ela está interessada em manter-se bem

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– O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN UMA LEITURA DESCONSTRUTIVA 119
integrada à sua comunidade e em mostrar como suas contribuições inscrevem-
-se, confirmam e enriquecem, o campo sem abrir dissidências.
De outro lado, já neste texto e mais ainda nos posteriores, ela quer
deixar muito claro que está falando na própria voz e a partir da própria expe-
riência. Naquele primeiro parágrafo, em que ela alude aos critérios com que
todos concordam, acrescenta: “Aqui eu vou sugerir uma abordagem diferente
ao problema.” No segundo parágrafo, encontramos: “...como minha obra mos-
trou-me”. No terceiro parágrafo é explicitamente mencionada uma alusão à
“minha obra sobre desenvolvimento precoce” seguida de quatro referências:
“Klein, 1935, 1940, 1946, 1948.” Abundam no texto expressões como “eu che-
guei à conclusão”, “eu descobri”, “eu vou sugerir”, “minha tese”, “meus novos
critérios”, etc. Além das citações autorreferidas no terceiro parágrafo vamos
encontrar mais uma no parágrafo 15 (KLEIN, 1929), totalizando cinco citações
dela mesma contra apenas urna citação de outro autor (STRACHEY, 1934) e
menções mais ou menos vagas a Freud e a Abraham. Já tive a oportunidade
de comparar um texto de Melanie Klein, escrito durante as Controvérsias,
com a versão do mesmo texto publicada após o término das Controvérsias. É
notável a mudança na sua política de citações: vão se tornando cada vez mais
autorreferidas (o que inclui trabalhos de seus seguidores) e se concentrando
em alguns textos de Freud e de Abraharn. Isso já está patente neste trabalho
de 1950. O efeito retórico deste procedimento não pode ser ignorado. Na me-
dida em que se constitui a Escola Kleiniana, os que se formam nela terão cada
vez mais a impressão de que tudo o que há de importante neste mundo foi
escrito por Melanie Klein e seus adeptos e que é perda de tempo ir atrás de
outros autores, inclusive Freud. Em contrapartida a esta autocanonização es-
colástica, o leitor que já não aderiu ao grupo vai se sentindo verdadeiramente
afrontado com tanta presunção. Poucas escritas psicanalíticas são capazes de
gerar tanta antipatia.
Mas além da autorreferência contínua e maciça, o recurso permanente
à própria experiência, algo que pretende se colocar no campo do indiscutível,
também aborrece o leitor que está em busca de argumentos e razões, não se
contentando com testemunhos. Mesmo quando se trata de concordar com
Freud, é a partir da experiência própria que isso se dá. Por exemplo, antes de

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dizer, entre parênteses, “como aprendemos com Freud e Abraham”, ela vinha
afirmando: “Eu descobri que em adultos o sucesso do trabalho do luto depende
não somente de estabelecer dentro do ego a pessoa de que fazemos o luto.” (Grifo
meu.) Neste ponto, introduz a lembrança de que isso que descobrira tinha an-
tes aprendido com seus mestres. Mas logo em seguida acrescenta que, além
do que os mestres disseram, algo ela descobriu por si mesma.
Dificilmente podemos condenar um psicanalista porque fala em
nome próprio e assume suas ideias e afetos e desejos. Não obstante, não po-
demos desconhecer que esta retórica tão abusada produz efeitos muitas ve-
zes desastrosos na audiência, seja pela via da adesão canônica, seja pelo do
repúdio indignado. Por outro lado, este recurso à experiência própria, esta
fala em que o testemunho prevalece sobre o argumento caracteriza a escrita
feminina no Ocidente. Em uma cultura em que certas atividades estiveram
associadas à posição masculina, entre as quais a atividade de pensar e cons-
truir teorias, cabendo às mulheres o campo das intuições e afetos, é comum
que a escrita feminina insista em um tipo de conhecimento que recorre me-
nos à razão e ao conceito. Há nisso algo de defesa, mas também de ardil: neste
terreno os homens devem calar-se. Podemos encontrar algo muito asseme-
lhado em Santa Tereza D’Ávila, no século XVI (confrontando-se aos doutos
beneditinos) e vamos encontrar páginas bem aparentadas em nossas Cla-
rice Lispector e Adélia Prado, para ficar só com algumas. Julia Kristeva está
escrevendo uma trilogia sobre o Gênio Feminino, ou seja, sobre a produção
cultural em que uma posição feminina é indiscutível na forma, no estilo e
nas ideias. O segundo volume desta trilogia é dedicado à vida e obra de Me-
lanie Klein e acho que realmente esta é uma dimensão muito esclarecedora
da retórica que atua em seus escritos (KRISTEVA, 2000). Contudo, aquele que,
procurando razões e evidências bem argumentadas, encontra testemunhos
pessoais e acha que é só disso que se trata, está se deixando enganar, mesmo
que se sinta frustrado e fique furioso. A partir destes elementos testemunhais,
articulados de início de uma maneira aparentemente simplória, vai se cons-
tituindo um campo conceitual extremamente complexo e se engendrando
uma lógica de difícil apreensão, mas poderosa.

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– O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN UMA LEITURA DESCONSTRUTIVA 121
Tentemos agora nos aproximar mais um pouco desta pequenina peça
literária. O texto é pequeno, mas nele cabem todas as questões kleinianas. Em
uma primeira tentativa de identificar o material de que se compõe o traba-
lho, encontramos todos os ingredientes do pensamento kleiniano dispostos
naquela forma simples e mesmo simplista que, aparentemente, caracteriza o
“sistema”. O que surge à primeira vista é o que eu denomino de lógica identi-
tária, na qual cada polo conceitual se identifica plenamente consigo mesmo
e se opõe de maneira igualmente simples a um outro polo. Criam-se assim os
dualismos identitários.
Há, de início os dois instintos: instinto de vida - correlacionado plena-
mente ao amor, e o instinto de morte - correlacionado plenamente ao ódio e
à agressão. Que esta leitura kleiniana seja uma verdadeira afronta à complexi-
dade conceitual do texto de Freud, Além do princípio de prazer, é algo que discuti
detalhadamente em outras oportunidades e não há tempo aqui para reabrir a
discussão. De qualquer modo, já antecipo que esta aparente barbaridade come-
tida por Melanie Klein não impede que ela também, por seus próprios meios,
termine por superar seu ponto de partida dualista e simplista.
Sobre este dualismo básico, tudo se dispõe segundo o mesmo esquema
dualista: há dois mecanismos básicos para lidar com as tarefas de aliviar-se
da angústia (gerada pelo ódio) e adaptar-se às condições reais de sobrevivên-
cia e que são a projeção e a introjeção; há as duas experiências básicas que são
satisfação e frustração; há as duas posições subjetivas que são a esquizo-pa-
ranóide e a depressiva; há as duas angústias associadas a cada uma das duas
posições que são a angústia de aniquilamento do ego e a angústia da perda ou
destruição do objeto; na posição esquizo-paranóide, os objetos dividem-se em
dois: há os bons e os maus; na posição depressiva, o sujeito é impulsionado na
direção da culpa pela perda/destruição do objeto e, em contrapartida, na di-
reção da reparação do objeto danificado, etc., etc. Tudo parece extremamente
simples, simétrico e organizado a uma primeira leitura, uma leitura de índole
sistemática. Ledo engano.
Dada a impossibilidade de ler com a calma e a atenção devidas estas
poucas páginas do texto de 1950, vou me concentrar em algumas passagens
para submetê-las à desconstrução acima prometida. Neste empreendimento,

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embora o tema do final de análise esteja em nosso foco, inevitavelmente ire-


mos nos extraviar por trilhas muito diferentes. Em alguns casos, ao invés de
conclusões, vamos nos deparar com encruzilhadas e perspectivas. Mas, recor-
demos, o mais importante não é fechar o texto em si mesmo para fazer dele
um bloco monolítico, cristalino, mas impenetrável. O importante é abri-lo e
disseminá-lo em muitas direções.
Procurarei “abrir” o texto sobre o término de análise recortando nele
quatro momentos de leitura que, no meu entender, propiciam alguns horizon-
tes interessantes por onde conduzir o pensamento psicanalítico.

2. O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN:


A DESCONSTRUÇÃO EM TRÊS MOMENTOS E MAIS UM

Primeiro momento: Entre gênese e estrutura


Vamos ao texto:
Tem sido observado que o término de uma análise reativa no paciente
experiências precoces de separação e é da natureza (in the nature) de uma expe-
riência de desmame. Isto implica, como minha obra tem me mostrado que as
emoções sentidas pelo bebê no tempo do desmame (weaning time), quando con-
flitos infantis precoces chegam ao máximo, são fortemente revividas quando
se acerca o fim de uma análise. De acordo com isso, cheguei à conclusão de
que antes de examinar o término de uma análise tenho de me perguntar se os
conflitos e experiências durante o primeiro ano de vida foram suficientemente
analisados e elaborados no curso do tratamento. (Grifos meus.)
Postulando uma equivalência entre o fim de análise e a experiência de
desmame (o primeiro é da natureza da segunda) e supondo que o desmame é
para o bebê um paradigma da experiência de luto, Melanie Klein poderá resu-
mir, mais adiante neste artigo, a condição para o término de uma análise: “As
ansiedades persecutórias e depressivas devem ter sido suficientemente redu-
zidas e isso - na minha visão - pressupõe a análise das primeiras experiências
de luto.” (Grifo meu.)
Ao longo deste e de outros textos de Melanie Klein nos defrontamos
com dois vértices de aproximação implicados no texto e exigidos por ele.

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O primeiro, genético e desenvolvimentista, parece enfatizar uma se-
quência de estados, tendo como ponto de partida uma condição original e, na
sequência, eventos particulares que se sucedem, mas sempre a partir de uma
“primeira experiência”.
Ainda que a condição inicial possa ser concebida como universal (o
nascimento do bebê no desamparo, com fortes impulsos e necessidades ur-
gentes, ambos de impossível manejo para o recém-nascido), os eventos que
se sucedem adaptam-se menos bem a esta abordagem. Por exemplo, quando
fala em “desmame”, está se referindo ao acontecimento concreto e singular
de um dado processo evolutivo, o que varia de caso para caso quanto à época e
à forma, ou, como o termo “weaning time” sugere, a um invariante estrutural,
universal e “fora do tempo”? Ambas as alternativas deixam a desejar e ambas
são de alguma forma necessárias.
Sua adoção, por exemplo, do termo “posição”, no lugar de fases e está-
gios do desenvolvimento libidinal, como faziam Freud e mais ainda Abraham,
também nos encaminha para uma interpretação menos calcada no vértice
genético e desenvolvimentista e mais afinada com uma concepção estrutural
do psiquismo inconsciente. Quando ela nos fala em reviver e, mais ainda, em
reativar as angústias básicas - persecutória e depressiva - seja no processo de
constituição de um psiquismo viável, durante o período da neurose infantil,
seja no processo de redução dos excessos destas angústias durante a cura ana-
lítica, uma concepção estritamente genética fica aquém das necessidades. Há
um algo sempre já lá, mas também sempre ainda lá e atual para ser reativado.
De outro lado, trata-se de um processo e isso impõe a consideração de uma di-
mensão temporal. Embora deixe em aberto as dimensões e modalidades de
temporalidade em curso, não se pode evitar a dimensão evolutiva como uma
das dimensões desta temporalidade: houve um antes do agora, haverá um de-
pois. Sem isso a própria ideia de “reativação” não faria sentido.
Da mesma forma, embora as posições e as angústias e defesas que lhes
estão associadas devam ser concebidas como distintas e sucessivas no tempo
- pois há uma lógica que explica como, de uma, a outra advém -, a “mistura”
de angústias a que ela se refere neste trabalho e em muitos outros deixa bem
claro que a posição esquizo-paranóide e a angústia de aniquilamento não estão

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superadas e descartadas em nenhum momento da vida, podendo ser reativa-


das junto com a angústia depressiva (perda e/ou destruição de objeto) e com
a culpa por esta destruição, em diversos momentos críticos de uma trajetória
existencial. Posições, angústias e defesas fazem parte do arsenal permanente
de cada indivíduo e estão sempre à sua disposição.
Nesta medida, cria-se uma situação curiosa. De um lado, Melanie Klein
monta uma narrativa muito bem articulada do que seria o desenvolvimento
psíquico em que cada estado decorre do anterior. O texto de 1943/44, publi-
cado originalmente com acréscimos em 1952 - Some theoretical conclusions re-
garding the emocional life of infants (KLEIN, 1943/1984), apresenta uma síntese
grandiosa desta vertente desenvolvimentista. Ela também refaz este percurso
nos parágrafos iniciais do texto que estamos examinando. Nesta perspectiva,
o término da análise seria um dos acontecimentos possíveis na sequência de
eventos que compõem uma trajetória de vida. Como todo acontecimento his-
tórico, poderia ser datado e estabelecer uma clara divisória entre o antes e o
depois do encerramento do processo de cura.
De outro lado, em todos os textos, ela mesma vai nos mostrando o
quanto esta narrativa mais ou menos linear é incapaz - justamente porque é
uma boa narrativa - de levar em conta a dimensão estrutural e a complexidade
não sucessiva dos processos psíquicos que se encavalam e sobre-determinam
uns aos outros. Visto por este ângulo, o término de análise precisaria ser con-
cebido, também ele, de forma muito distinta. Já não é mais um acontecimento
da história, mas uma variável a ser introduzida na estrutura, instalando no
psiquismo uma possibilidade nova de enfrentar as experiências de luto. Seria
como um padrão de “desmame bem sucedido”, que poderia ser, também ele,
reativado vezes sem conta ao longo de uma existência. Esta noção do término
de análise como uma possibilidade disponível para ser reativada no futuro, e
não apenas como um acontecimento da história localizado no passado, será de
grande valia quando reconhecermos, conduzidos por Melanie Klein, o caráter
interminável da análise, os limites intransponíveis da cura analítica.
Cabem aqui duas pequenas digressões.
Eis a primeira. Um resultado curioso desta duplicidade de vértices é
que a transmissão do pensamento kleiniano frequentemente apoia-se no mais

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fácil de transmitir o caráter desenvolvimentista do psiquismo em evolução,
o que cabe bem na forma de uma narrativa que todo mundo parece entender
sem dificuldades. Quem não entende e gosta de ouvir histórias? As apresen-
tações iniciais de Melanie Klein nos cursos de psicologia, por exemplo, a colo-
cam quase sempre como uma teórica do desenvolvimento.
Enquanto isso, a clínica kleiniana tende a se enraizar na dimensão es-
trutural, tomando o psiquismo como um campo em que fenômenos e proces-
sos muito mais contemporâneos que sucessivos geram uma dinâmica às vezes
demoníaca, mas acessível à observação clínica e à intervenção. Daí a ênfase
no aqui e agora do campo transferencial e uma certa desconsideração pelas re-
construções históricas à la Freud, fazendo incidir um foco quase exclusivo na
ativação atual de angústias e de posições subjetivas com as quais o analista
deve lidar através de suas interpretações.
Gera-se, então, uma certa incompatibilidade entre a Melanie Klein que
é apresentada para iniciantes como teórica do desenvolvimento e a Melanie
Klein que se torna um paradigma da clínica centrada no aqui e agora trans-
ferencial. Quando estes dois vértices se encontram de forma não muito ela-
borada, podem-se criar curtos-circuitos e dar lugar a intervenções analíticas
extremamente desastradas em que o aqui e agora é invadido violentamente
por referências (supostamente) históricas que o analista tira do bolso de seu
colete teórico e impõe ao analisando sem qualquer consideração pelo paciente
real que tem diante de si[3].
E agora a segunda digressão. Vista pelo ângulo desta clínica, a forte e
pesada referência ao passado precoce (os primeiros meses de vida, a primeira
experiência de luto, etc.) deixa de representar uma base empírica sólida - como
era a pretensão de Melanie Klein, que dizia ter entrado em contato direto, e
analisado, um período que Freud apenas imaginava especulativamente (daí
o caráter de testemunho de muitas das comunicações kleinianas). Ou seja, a
suposta “observação direta da infância precoce”, que Melanie Klein apresenta

3. Creio que a clínica inspirada em Bion procura evitar esta violência fazendo uma opção mais clara
pelo aqui e agora transferencial. Em virtude disso, Bion não é um autor fácil para iniciantes, já que
não dispõe das belas histórias para serem facilmente contadas e digeridas. Ele está desde sempre
no terreno da mais alta complexidade.

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como a sua mais científica contribuição à psicanálise, vista pelo vértice da


abordagem estrutural, determinante da clínica kleiniana, passa a ter o mesmo
estatuto especulativo que a herança filogenética em Freud. Isto é, ajuda-a a con-
ceber a constituição de um aparelho - uma estrutura e uma dinâmica - que na
verdade sempre já nos precede e que devemos sempre tratar na prática como
algo já constituído. Até que ponto poderíamos dispensar esta especulação so-
bre as origens pré-históricas? Mas a questão acerca do estatuto das “teorias”
sobre o precoce e o pré-original são pura e má metafísica, tanto em Freud como
em Melanie Klein, é algo que só poderíamos deixar sem resposta se a questão
fosse apenas teórica.
No entanto, o campo atual das transferências e contratransferências,
em que se atualizam recorrentemente as sempre mesmas ansiedades e posi-
ções subjetivas com seus impasses e defesas, se tornaria um território perigosa-
mente enclausurado se não pudesse ser concebido como reativação e revivência
e, portanto, como comportando um imenso mal entendido. Assim sendo, em-
bora a clínica kleiniana privilegie a dimensão sincrônica e estrutural do aqui
e agora transferencial, ela precisa, para se manter arejada e livre, da referência
ao passado pré-histórico das primeiras experiências, ao passado pré-histórico
de um desmame concreto e realmente vivido lá nos inícios míticos da histó-
ria de cada um. As angústias na sua atualidade precisam ser concebidas como
inatuais e extemporâneas - re-edições - para poderem ser interpretadas e ela-
boradas. Há aqui uma exigência da praxis que se opõe a e prevalece sobre um
limite do conhecimento e a especulação deve comparecer, ainda que lhe fal-
tem os fundamentos empíricos que gostaria de poder exibir. Em Freud, o mo-
mento especulativo, seja quanto à pré-história humana, seja quanto às raízes
ainda mais longínquas na biologia, não é dissimulado: é mesmo especulação e
honestamente assumida. Em Melanie Klein o momento especulativo vem tra-
vestido de “observação pessoal”, “intuição”, etc., ou seja, ele se apresenta como
se tivesse um estatuto descritivo de testemunho pessoal (“eu sei porque eu vi”)
que ora encanta, ora confunde, ora enfurece seus leitores, conforme estejam
mais ou menos inclinados por suas simpatias ou antipatias. Mas a questão é
outra, é a de reconhecer a natureza do saber psicanalítico e como ela impõe ao
psicanalista criativo, como era Melanie Klein, uma série de peripécias curiosas.

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ARTIGO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
– O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN UMA LEITURA DESCONSTRUTIVA 127
No caso dela, fazer passar por experiência vivida e testemunhada o que deve-
ria ser entendido como pertencendo ao campo do radicalmente inacessível
a qualquer conhecimento, mas, apesar disso, como objeto de uma teorização
necessária à sua (nossa) prática.
Passemos ao segundo momento da nossa desconstrução.

Segundo momento: A força e a fraqueza do ego


Melanie Klein tenta mostrar que seus critérios para o término de uma análise
correspondem em boa parte aos critérios reconhecidos pelos demais, mas vai
além deles. Os critérios consensuais seriam, na época: “Potência e heterosse-
xualidade bem estabelecidas, capacidade para o amor, para relações de objeto
e para o trabalho e algumas características do ego responsáveis pela estabili-
dade mental e que estão associadas a defesas adequadas.”
A estabilidade emocional e a capacidade de fazer um bom contato com
a realidade serão reunidas sob a rubrica de “força do ego”.
Segundo ela, todos estes aspectos de desenvolvimento estão inter-rela-
cionados às modificações nas ansiedades persecutórias e depressiva. Ou seja,
os critérios propostos por ela seriam mais profundos porque identificam as
condições básicas para que os outros índices sejam alcançados.
Mas, no que concerne à “força do ego”, a situação torna-se um pouco mais
complexa. Estabilidade e capacidade para se adaptar à realidade podem ser obti-
das mediante a construção e o acionamento de algumas defesas até mesmo de
caráter psicótico. De 1950 para cá muitos autores se interessaram por e nos cha-
maram a atenção para estes pacientes ultra-adaptados, e ultranormais, e ultra-
estáveis e, no entanto, profundamente comprometidos. Diante destas situações
clínicas, Melanie Klein foi levada a sugerir que, além da estabilidade e um apa-
rente contato com a realidade, característicos de uma boa “força egóica”, é neces-
sário incluir nos critérios de alta o que ela denomina de “profundidade do ego”.
O uso e mesmo o abuso da noção de profundidade pode incomodar
certos leitores e confesso que este é o meu caso. No entanto, ao seguir Mela-
nie Klein na tentativa de entender o que ela denomina de profundidade neste
contexto, encontrei o seguinte: “Sustento que uma expansão na profundidade
do ego também é essencial. Um elemento intrínseco de uma personalidade

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profunda e plena é a riqueza da vida de phantasia e a capacidade de experi-


mentar emoções livremente.”
A “profundidade do ego” (termo que realmente violenta meus ouvidos)
corresponde na verdade à riqueza do mundo de phantasia, ou seja, do mundo
pulsional - posto que em Melanie Klein a phantasia (com ph) é a expressão di-
reta dos “instintos”. “Profundidade de ego” diz respeito também à “capacidade
de experimentar emoções livremente”. Trata-se da capacidade de suportar
(acolher) o impacto de toda a gama dos afetos - amor e ódio, ansiedade, pesar
e culpa - diante dos objetos primários e de tolerar o insight, entendido como o
contato com o mundo próprio mental e instintivo, com a realidade psíquica
e suas ambivalências.
Segundo ela, apenas a moderação (jamais completa) das angústias es-
quizo-paranóides e depressivas será capaz de garantir esta dupla condição: de
um lado, o fortalecimento do ego - medido em termos de estabilidade e contato
com a realidade externa - e, de outro, a expansão de sua profundidade - me-
dida em termos da capacidade de suportar as variações geradas pelo impacto
das pulsões (instintos) na forma de phantasias e emoções.
Ao conduzir, porém, estes dois critérios, um perfeitamente aceito
pela comunidade da época e outro novo, a uma suposta base comum (a mo-
deração das angústias reativadas), Melanie Klein aborta, neste texto (mas a
isso voltaremos mais tarde a partir de um outro trabalho da autora), a pos-
sibilidade de questionar a compatibilidade destes índices de saúde psíquica.
Força e profundidade do ego se casam e se completam harmoniosamente?
Ela não discute esta questão, mas, efetivamente, nos deixa com a incum-
bência de prosseguir na interrogação e uma das tarefas da leitura descons-
trutiva é a de abrir ou reabrir as trilhas que um grande autor entreviu, mas
não pôde percorrer.
Prossigamos para o terceiro momento.

Terceiro momento: O fim na solidão


“Mesmo se foram alcançados resultados satisfatórios, o término da análise fa-
talmente desperta sentimentos dolorosos e revive ansiedades arcaicas - equi-
vale a um estado de luto. Quando a perda representada pelo fim de análise

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– O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN UMA LEITURA DESCONSTRUTIVA 129
ocorreu, o paciente ainda tem de carregar por si mesmo parte do trabalho de
luto... Apenas se as ansiedades persecutórias e depressivas tiverem sido gran-
demente modificadas pode o paciente conduzir por si mesmo a parte final do
trabalho de luto.” (Grifos meus.)
Ao conceber o fim de análise como tarefa individual e singular, Mela-
nie Klein contrapõe-se ao autoritarismo invasivo que caracteriza a modalidade
mais vulgar de exercício da clínica kleiniana, modalidade vulgar, mas a que
ela própria se dedicava. A prática das interpretações “profundas e precoces”,
a tentativa de ir ao encontro das angústias antes mesmo que elas comecem a
emergir, o atrevimento na oferta de interpretações transferenciais desde o iní-
cio do tratamento, ou seja, todas as formas de imposição de presença preconi-
zadas pela própria Melanie Klein e que foram uma das razões mais fortes dos
que a combateram no período das Controvérsias, tudo isso cede lugar a uma
“política de ausência” ou, como diria eu, de presença reservada.
Criar condições de ausência ou instalar espaços de vazio é, no meu en-
tender, uma tarefa analítica fundamental e permanente, tarefa a ser cumprida
no cotidiano, a cada sessão e a cada término de sessão. A esta tarefa, porém,
a clínica, calcada no pensamento de Melanie Klein, muitas vezes parece não
dar muito valor, dada a intrusividade do analista kleiniano de “estrita obser-
vância”. Ficou famosa, por exemplo, uma interpretação que a própria Melanie
Klein deu à sua analisanda Clare Winnicott e que durou exatos vinte minutos
de relógio, contados pela supliciada[4].
No entanto, ao reconhecer que o fim de análise só pode ser realizado
pelo paciente “solitário” após o término das sessões - pois só após o encerra-
mento do trabalho da dupla vão ser reativadas certas experiências dolorosas -
e ao sugerir que esta “solidão” comece a ser experimentada ainda na vigência
das sessões, mediante o anúncio bem antecipado do término (alguns meses
antes do fim), Melanie Klein insinua, em um pequeno parágrafo de um texto
menor e marginal, algo de essencial ao trabalho psicanalítico e que contraria

4. Novamente aqui, convém considerar como Bion estabeleceu um contraponto necessário à inva-
são e à imposição de presença que tanto marca a clínica kleiniana em geral.

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a onipotência e onisciência clínica que permeiam boa parte de seus escritos:


é preciso deixar ao paciente a responsabilidade por sua própria análise.
Finalmente, o quarto momento.

E mais um quarto: de 1950 a 1958


O quarto momento de nossa leitura do texto de 1950 difere dos demais porque
nos lança ao futuro, na direção de um trabalho bem posterior que, contudo,
retrospectivamente nos leva de volta à questão do término da análise e, a pos-
teriori re-significa o artigo que estamos examinando.
Melanie Klein termina o texto de 1950 sobre o término de uma psica-
nálise enfatizando o trabalho com as transferências positivas e negativas. Não
basta valer-se da transferência positiva para conduzir o trabalho interpretativo
ao seu termo. A manutenção da transferência positiva e da idealização do ana-
lista revela o quanto as angústias persecutórias não puderam ser moderadas,
pois a idealização de uma figura de poder e saber é da ordem da defesa contra
aquelas angústias. Ela dirá então: “Somente analisando tanto a transferên-
cia negativa quanto a positiva, a ansiedade é reduzida pela raiz (at the root).”
Retomando o que dissemos no “primeiro momento” desta leitura,
a “raiz” pode ser pensada em termos genéticos, mas é muito mais razoável
pensá-la em termos estruturais. Não se trata de atenuar as ansiedades
diante dos objetos primários eles mesmos, mas de moderá-la diante de alvos
transferenciais que evoquem e suportem reativações daquelas ansiedades.
Nas transferências, positivas e negativas, não se chega às raízes no passado,
mas às raízes “atuais” destas reativações para aí sim poder tratá-las, embora,
como vimos antes, elas só possam ser tratadas psicanaliticamente se forem
concebidas como inatuais nesta atualidade, como extemporâneas.
No entanto, o que neste momento interessa é saber que este traba-
lho nas e com as transferências destina-se a destruir as idealizações posi-
tivas e negativas. As figuras extremamente assustadoras — os objetos aqui
maus — da posição esquizo-paranóide e as figuras salvíficas — os objetos
aqui bons — que emergem como defesas contra as ansiedades persecutórias
nesta posição devem ser superadas em um processo de síntese que caracteriza
a passagem bem sucedida pela posição depressiva. Daí surge um bom objeto

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– O FIM DE ANÁLISE EM MELANIE KLEIN UMA LEITURA DESCONSTRUTIVA 131
de outra natureza, distinto do objeto bom idealizado. Trata-se, na verdade, de
um bom objeto sintetizado e que contém os elementos da ambivalência sob o
predomínio do amor, capaz de mitigar o ódio que, no entanto, não é aqui ex-
-cindido, como antes o fora dos objetos bons primitivos.
Uma primeira observação a fazer diz respeito ao deslizamento se-
mântico que o termo “bom” sofreu. Na posição esquizo-paranóide, o “bom
objeto” opõe-se ao “mau” e ambos são, de uma certa forma, purificados e ide-
alizados. Ao término da análise, é necessário que se tenha aberto espaço para
instalar na mente um outro tipo de “bom objeto”. Este novo “bom objeto”
não é um salvador onipotente, mas comporta aspectos inquietantes com os
quais o indivíduo deve saber lidar. De uma certa forma, já se insinua nesta
nova concepção de “bom objeto” a interminabilidade da análise, posto que
haverá sempre elementos destrutivos e ameaçadores muito próximos e em
convívio estreito com os elementos construtivos no interior deste “bom ob-
jeto”, dado seu caráter sintético. O que caracteriza este novo bom objeto é a
sua capacidade de conviver com o ódio e a ele resistir. A internalização deste
objeto bom não comporta, portanto, uma promessa de alívio e segurança
absolutos, mas corresponde, ao contrário, ao que Melanie Klein chamara de
“profundidade do ego”, a capacidade de entrar em contato e acolher a vida
instintiva e de phantasia, entrar em contato e acolher toda a gama de afetos,
amor, ódio, culpa, ansiedade e pesar.
Mas há ainda uma outra observação que nos remete ao futuro do texto
de 1950. Todo o tom otimista que ainda perdura no texto sobre o final de aná-
lise de 1950, quando uma grande aposta é feita sobre a capacidade de síntese,
tom otimista que mal deixa entrever o que há de complexo, problemático e
perturbador no bom objeto sintético a ser internalizado como condição para o
término da análise, toda uma ingênua esperança de cura rui definitivamente
alguns anos mais tarde.
No texto On the development of mental funccioning, falado em 1957 e pu-
blicado em 1958, Melanie Klein (1984) postula a existência de objetos maus
não-integráveis e, correlativamente, de objetos idealizados irredutíveis. Seriam,
os primeiros, objetos ainda mais assustadores e terríveis que aqueles que até
então ela supunha existirem no superego precoce e cruel.

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ARTIGO – LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO
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Os objetos superegóicos, idealizados positiva ou negativamente, pode-


riam, com esforço, vir a se integrar e a fortalecer o ego, embora introduzindo
sempre a ambivalência e a inquietude. Era isso que ela postulava no texto de
1950 sobre o final de análise. Já em 1958, o que ela admite é que há extremos
muito mais radicais e que o psiquismo egóico, a vida consciente do ego, jamais
será capaz de, mesmo ao fim mais cabal de uma análise bem sucedida, inte-
grar estas polaridades excessivas.
Na verdade, neste texto surpreendente do final de sua vida, Melanie
Klein vai dizer com todas as letras que a integração daqueles aspectos contra-
ditórios e ambivalentes no ego, ao enriquecer o ego, criam instabilidade.
Diz ela: “Embora os aspectos rejeitados do self e dos objetos internali-
zados contribuam para a instabilidade, eles também estão na fonte da inspira-
ção nas produções artísticas e em várias atividades intelectuais.” (Grifo meu.)
Há, portanto, um ganho nesta instabilidade posto que seja um ganho
de difícil aproveitamento para certos pacientes. Talvez alguns jamais consi-
gam suportar a ambivalência e a instabilidade associadas à internalização de
um bom objeto sintético e não possam, portanto, dispor desta riqueza subje-
tiva sem experimentar um forte risco de loucura.
Fica então claríssimo como os dois critérios que propusera no texto de
1950 que estamos examinando - de um lado, a “força” (estabilidade) e, de outro,
a “profundidade do ego” - não se somam, mas até competem um com o outro,
sendo ambos, contudo, indispensáveis. A estabilidade (associada à força) sem a
riqueza egóica (que traz consigo instabilidade) pode ser tão patológica quanto
a instabilidade sem uma certa “força do ego”. As duas condições são em parte
antagônicas e, ao mesmo tempo, cada uma é a condição da outra poder ser
alcançada e conservada em um processo de saúde. Há, portanto, entre os dois
critérios, oposição e complementaridade - que condiz com a lógica da suple-
mentaridade trabalhada por Derrida -, o que nos leva à noção de saúde como
algo dinâmico e nunca à esperança de um estado definitivo de cura.
O que, porém, mesmo aí em 1958 ela ainda não diz, embora abra um am-
plo espaço para que nós possamos pensar e dizer, é que, além desta instabilidade
que uma riqueza subjetiva produz quando se acolhe e tolera a ambivalência, haverá
sempre um a-mais, um irredutível, um não-integrável que comanda a marcha

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incessante da análise, ultrapassando o término das sessões e mesmo superando
o que na solidão individual o indivíduo “bem analisado” poderá conter e elaborar.
No entanto, ser capaz de conviver com isso - o irredutível e não-analisá-
vel do terror e das promessas de salvação - também faz parte da saúde.
Da condição humana, ninguém se cura.

The termination of a psychoanalysis in Melanie


Klein’s work: a desconstructive reading.

ABSTRACT: Melanie Klein’s text about the termination of a process of psychoanaly-


sis, published in 195O is here submitted to a deconstructive reading. The practice
of deconstructive reading is explained by the author who also demonstrates its
advantages for the hermeneutics of psychoanalytic texts. The historical context
in which Klein produced this text and some of its rhetorical characteristics are
also analyzed. Four main aspects of the text are focused: the difference between
genetic and structural approaches in theory and clinic kleinian work; the pro-
blematic relation between ego strength and depth of the ego as two criteria of a
successful analysis; the requirement to pursue analysis in solitude; and finally
the need to learn how to deal with the non-analyzable aspects.

KEY WORDS:Termination of a psychoanalysis; Psychoanalytic technique;


Endlessness of a psychoanalysis; Melanie Klein.

REFERÊNCIAS
FIGUEIREDO, L. C. Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta, 1999.
HEIMANN, P.; ISAACS, S.; KLEIN, M. and RIVIERE, J. The developments of Psycho-
-Analisis. London: The Hogarth Press, 195.
KLEIN, M. Notes on someschizoid mechanisms. The writings of Melanie Klein,
vol III. London: The Free Press, 1984, p. 1-24.

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ARTIGO – LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

______ . (1950). On the criteria for the termination of a psycho-analysis. op.cit,


1984, p. 43-7.
______ . (1952). Some theoretical conclusions regarding the emotion life of
infants. op. cit, 1984, p. 61-93.
______ . (1958). On the development of mental functioning. op. cit., 1984, p.
236-246.
KRISTEVA, J. Le génie féminin. Tome II. Mélanie Klein. Paris: Fayard, 2000.

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Comentário
Relendo o artigo mais de dez anos após sua publicação, fiquei satisfeito porque
de certa forma continua me agradando, o que, como sabem os que deixam re-
gistradas suas ideias no papel, muitas vezes não acontece. Por exemplo, toda
a longa parte introdutória, em que exponho meu procedimento de leitura,
acredito que ainda seja fiel ao que continuo fazendo ao lidar com textos psi-
canalíticos. Já em relação aos pontos que destaco como focos da leitura des-
construtiva do pequeno capítulo de Melanie Klein sobre o término de análise,
talvez haja alguma coisa a ser aprimorada. A isso dedico os poucos parágrafos
que se seguem.
Quanto à problemática do luto, evocada e disparada pelo fim de aná-
lise — luto que é sempre uma reativação dos primeiros atravessamentos da
posição depressiva, o que ela tão bem esclarece no magnífico trabalho de 1940
sobre o tema — insistiria mais no fato de que o término de um luto, o que sem-
pre tramita em solidão, é também o equivalente a um renascimento. Diversas
vezes em minha experiência pessoal assisti ao processo de encaminhamento
de um término de análise como implicando tanto as ansiedades depressivas e
os pesares associados às perdas, quanto as ansiedades de aniquilamento asso-
ciadas ao nascimento e às ameaças de morte que lhe são intrínsecas. Vale di-
zer, a complexidade do processo inclui seja também as reativações da posição
esquizoparanóide, seja o júbilo de uma libertação, um triunfo sobre a morte.
Acerca das relações entre a dimensão evolutiva/desenvolvimentista e
a dimensão estrutural do psiquismo no pensamento kleiniano não teria mais
nada a destacar, salvo a ênfase na extrema importância de uma compreen-
são disso para as nossas práticas clínicas que não podem ignorar nem um dos
dois polos, nem a paradoxal relação que há entre eles. Mas isso, acredito já foi
suficientemente explicitado no meu texto original.
Outro aspecto a ser enfatizado é a curiosa relação entre força e profun-
didade do ego, duas dimensões associadas por Klein ao fim da análise: de um
lado, a força comporta uma aposta em uma relativa estabilidade e organização
do ego, competente e coerente; de outro, a profundidade comporta a aposta na
experiência emocional livre, espontânea e enriquecedora, mas, por isso mesmo,

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ARTIGO – LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

fonte de instabilidade. Caberia neste contexto uma referência a Bion e tam-


bém a Winnicott: dois autores de origem kleiniana que suspeitam do excesso
de estabilidade e coerência, vendo nisso defesas e resistências à experiência
emocional verdadeira e genuína.
Finalmente, cabe também enfatizar a importância dos ‘restos’, estes
objetos refratários aos processos de digestão, assimilação e simbolização pelo
ego, “fontes de inspiração nas produções artísticas, e nas várias atividades in-
telectuais” (KLEIN, 1940, p.245), nas palavras da autora, irredutíveis a toda a
análise e que permanecem no psiquismo muito além de seu término. Uma
ideia de De M’Uzan (1964), retomada por Anzieu (1982) vem aqui a calhar: a
criação é o suplemento exigido pelo não simbolizado. E há sempre, em maior
ou menor medida, como sugere Klein no texto de 1958 com que encerro mi-
nha exegese do texto de 1950, algo desta ordem em todos nós. Uma boa aná-
lise termina, mas os processos analíticos não, e as criações serão para todo o
sempre requisitadas como suplementos de sentido, sob a pressão e o apelo desse
resto não simbolizado que, em termos kleinianos, faz parte da saúde mental.

REFERÊNCIAS
ANZIEU, D. Le corps de l’oeuvre. Paris: Gallimard, 1982, 384 p.
DE M’UZAN, M. De l’art à la mort. Paris: Gallimard, 1964, 208 p.
KLEIN, M. Mourning and its relation to maniac-depressive states. In: The wri-
tings of Melanie Klein. vol. I. Londres: The Free Press, 1984, p. 344-369.
______ . The development of mental functioning, In: The writings of Melanie
Klein. vol. III. Londres: The Free Press, 1984, p. 236-246.

Luís Claudio Figueiredo


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(11) 3083 3731
lclaudio@netpoint.com.br

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Artigo
Sobre o alcance da
intervenção analítica[1]
JOSÉ CARLOS GARCIA

RESUMO: Este trabalho apresenta um breve levantamento da utilização do con-


ceito de símbolo na obra de Freud para, a partir daí, podermos refletir sobre as
implicações disso na prática clínica. Acompanhando este mesmo propósito,
busco assinalar que, na verdade, a experiência clínica de todo analista o expõe a
um campo de não simbolização -ao campo pulsional. Neste sentido, estaríamos
tratando de situações que ultrapassam a esfera do já representado no aparelho
psíquico: para alcançarmos as fronteiras de uma clínica que estaria aquém do
reprimido. Proponho que este ponto de vista nos obrigue a considerar um con-
texto transferencial em que o analista não se apresentaria apenas como objeto
de desejo, mas precisaria ser entendido também como objeto atual da pulsão.
Sendo assim, seria necessário que repensássemos uma série de questões refe-
rentes à técnica, que precisariam ser adequadas às concepções aqui esboçadas.

PALAVRAS-CHAVE: Processo primário; Processo secundário; Pulsão; Representa-


ção; Reprimido; Símbolo.

Psicanalista e Professor do
1. Este artigo foi extraído de minha Dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Psicolo- Departamento Formação
gia da Universidade de São Paulo, em 1998, com o seguinte título: O ato analítico e seu potencial de em Pscanálise do Instituto
simbolização. Sedes Sapientiae.

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ARTIGO – JOSÉ CARLOS GARCIA
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Pretendo começar esta reflexão destacando algumas questões referentes à ma-


neira como foi abordada a noção de símbolo na obra de Freud. Acredito que isto
possa ser relevante como introdução a uma discussão sobre a técnica psica-
nalítica. A intenção, portanto, será a de levantar em breves linhas as diferen-
tes noções de símbolo que percorreram a obra freudiana e suas consequências
para a prática clínica.
Já em seus primeiros escritos, Freud começou a explorar a noção de
símbolo para referir-se a algo que, como um marco comemorativo, fazia alu-
são a uma solução de compromisso principalmente pelo sortilégio da conti-
guidade temporal.
Ao tratar do caso Lucy R., Freud (1892, p. 154) comentou desta forma
as alterações histéricas que sua paciente apresentava com relação ao olfato:
“Essa experiência devia ter sido o trauma que as sensações recorrentes do ol-
fato simbo- lizavam na memória.” Lucy se queixava de sentir cheiro de pudim
queimado e Freud começou por admitir que este cheiro devia ter estado pre-
sente no momento da situação traumática, comentando, ainda, que só rara-
mente sensações olfativas são escolhidas como símbolos mnêmicos.
Por certo não é propriamente a rememoração do caso, nem a melhor
inserção do exemplo destacado que pretendo privilegiar neste momento, mas
o que daí se depreende como noção de símbolo; uma associação arbitrária en-
tre um signo e um objeto. Nas palavras de Lorenzer (1970, p. 15): “O símbolo é
uma atribuição inteiramente contingente do signo ao designado.”
Ao percorrer a obra freudiana constatamos que, desde o Projeto para uma
psicologia científica (1895), Freud trabalhou uma concepção de simbolismo que
abrigava irretocável semelhança com o conceito psicanalítico de deslocamento.
Nessas condições, um elemento fortuito se associaria a outro elemento, este
último adequado à expressão do afeto penoso da situação traumática, para,
a partir daí, ressurgir na consciência acompanhado do afeto em questão, po-
rém destituído da significação que só o elemento original poderia traduzir.
De uma perspectiva como esta, o alcance terapêutico da psicanálise
seria propiciado pela possibilidade de tradução de sentido que, através do
símbolo, fosse possível recuperar. Levando isto às últimas consequências,
tratar-se-ia de reduzir o símbolo ao oco de si mesmo.

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ARTIGO
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– SOBRE O ALCANCE DA INTERVENÇÃO ANALÍTICA 139
Ainda no texto do Projeto, Freud fez uma distinção entre o simbolismo
normal e o neurótico definida a partir da disponibilidade para a consciência
da relação simbólica. No caso normal, o sujeito reconheceria conscientemente
o valor simbólico tomado ao simbolizado. Ele cita o exemplo da bandeira e da
luva de uma dama pela qual um cavaleiro entra em combate. Para o neuró-
tico, no entanto, o valor simbólico do sintoma subjaz reprimido. Lorenzer (1970,
p.15) fez o seguinte comentário sobre o símbolo mnêmico:

O que diferencia então o ‘símbolo mnêmico’ dos conceitos posteriores de sím-


bolo é a total falta de referência ao conteúdo; seu emprego se restringe apenas
ao assinalamento temporal. O signo não expressa nada do designado; indica
exclusivamente a ocorrência de um acontecimento determinado (alterado no
sentido traumático); portanto, o símbolo mnêmico não é interpretável. Não é
lícito indagar sobre seu sentido, senão que deve-se tomá-lo como mero código
e, por certo, como um código cuja chave se desconhece.

A simbolização foi tema frequente dos Estudos sobre a histeria. Neles


Freud (1893) falou sobre a conversão simbólica ou simbolização. Exemplar-
mente, foi nos casos Elizabeth von R. e Cacilie que ele conseguiu estabelecer o
surgimento desta formação de sintoma envolvendo a simbolização. A primeira
com sua astasia-abasia estaria revelando, além de umadesordem orgânica, pro-
vavelmente de origem reumática, usada para servir de apoio, uma conversão
da dor psíquica por conta da simultaneidade desses eventos. Freud nos disse
que com toda certeza outro fator importante na formação dos sintomas de Eli-
zabeth foi o fato de ela: “...procurar uma expressão simbólica dos seus pensa-
mencos dolorosos...” (p. 202). Quanto a Cäcilie, o mesmo padrão se repetiria:
ela sofria de uma nevralgia facial terrível, que Freud pensava ser sustentada,
pelo menos no início da enfermidade, por problemas dentários provavelmente
associados ao começo da gravidez, mas que posteriormente receberiam o in-
cremento de situações traumáticas causadoras de dor psíquica, as quais po-
deriam, a partir desse substrato, ter produzido simbolizações. Cäcilie, num
determinado momento do tratamento, associa sua dor facial a uma lembrança
dolorosa e diz: “Foi como uma bofetada no rosto.” (p. 227)

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O que se poderia ainda salientar desta noção de símbolo é o fato de que,


nos exemplos citados, a construção do símbolo se deu a partir da experiência
individual de cada paciente, sob o efeito da contiguidade temporal entre a si-
tuação traumática e o elemento a serviço da simbolização.
Outra coisa bem diferente é a noção de símbolo que encontramos em
A interpretafão dos sonhos, onde a questão da universalidade da significação
simbólica dentro de uma cultura determinada - e, às vezes, mesmo além dela
- são destacadas a ponto de Freud chegar ao extremo de afirmar:

O próprio fato, contudo, acha-se além de qualquer dúvida e é importante para


a técnica da interpretação onírica, porque, com a ajuda de um conhecimento
do simbolismo onírico, é possível compreender o significado de elementos
independentes do conteúdo de um sonho ou peças separadas dele ou, em al-
guns casos, até mesmo sonhos inteiros, sem ter-se de interrogar o que sonhou
sobre suas associações. (FREUD, 1900, p. 722)

Pirotecnias à parte, é o mesmo autor que, parágrafos adiante, iria se


reconduzir a uma reflexão mais amadurecida sobre a questão simbólica. Freud
se expressou da seguinte maneira:

Incidentalmente, seria um equívoco esperar que se tivéssemos um conhe-


cimento ainda mais profundo do simbolismo onírico (da linguagem dos
sonhos), poderíamos passar sem o interrogatório do que sonhou sobre suas
associações relativas ao sonho e retornar inteiramente à técnica de inter-
pretação da antigüidade. Inteiramente à parte dos símbolos individuais e
das oscilações no emprego dos universais, nunca se pode dizer se qualquer
elemento determinado do conteúdo do sonho deve ser interpretado simbo-
licamente ou em seu sentido próprio e ninguém pode ter certeza se todo o
conteúdo do sonho não deve ser interpretado simbolicamente. Um conheci-
mento do simbolismo onírico nunca fará mais que capacitar-nos a traduzir
certos constituintes do conteúdo do sonho e não nos libertará da necessi-
dade de aplicar as regras técnicas que apresentei anteriormente. (FREUD,
1900, p. 723/724)

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– SOBRE O ALCANCE DA INTERVENÇÃO ANALÍTICA 141
Sou levado a reflerir, depois de partilhar desse último ponto de vista
apresentado por Freud, que talvez a questão fundamental não seja propria-
mente o símbolo e sua tradução, mas antes a própria simbolização enquanto
experiência única de cada ser humano e, portanto, de certa forma, intradu-
zível ou não traduzível a qualquer forma de denominador comum. Esta é,
porém, uma discussão que preciso adiar, já que prenuncia um momento de
concluir que ainda terá seu lugar. Ainda é preciso acrescentar,com relação
ao simbolismo onírico, que, no lugar da mera simultaneidade casual do sím-
bolo mnêmico, o que se impõe agora como ligação simbólica passa a ser da
ordem de um elo lógico. Lorenzer faz um interessante paralelo da evolução
do conceito de símbolo em Freud, na medida em que nos chama a atenção
para o fato de que a primeira concepção de símbolo estaria em absoluta sin-
tonia com a noção de trauma, enquanto o simbolismo onírico se alinharia
com a noção de fantasia. Na sequência afirma Lorenzer (1970, p. 38): “Só nas
simbolizações se consideram os nexos de significado; só com elas a psicaná-
lise deixa de ser uma psicologia dos acontecimentos para se converter numa
psicologia das vivências.”
Para concluir esses comentários sobre o simbolismo onírico, lembre-
mos que Freud procurou mostrar que, na verdade, seu alcance vai além do so-
nho para expressar-se também nos contos de fada, mitos, lendas, nos chistes
e, finalmente, no folclore. Afirma, ainda, que o simbolismo é uma caracterís-
tica do pensamento inconsciente e, portanto, uma criação do processo psí-
quico primário.
O tema da simbolização que esteve tão presente na primeira tópica
freudiana, principalmente nos trabalhos ligados à histeria e aos sonhos, foi
praticamente sendo relegado a uma posição de imobilismo na pesquisa freu-
diana. Curiosamente, se levarmos em conta que a segunda tópica trouxe em
seu bojo uma nova teoria das pulsões e que esta alterou substancialmence a
concepção da dinâmica psíquica, seria de se esperar que isso tivesse levado
também a uma retomada da temática da simbolização, o que, afinal, não acon-
teceu. Em todo caso, o que estou tratando de levar em consideração é o fato
de que, ao se colocar diante de um “além do princípio do prazer”, Freud abre
uma nova perspectiva para a compreensão da relação pulsão-representação e

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por conseguinte envolvendo, no meu modo de pensar, uma necessária revi-


são da noção de simbolização.
Neste texto de 1920, Freud apresentou sua última formulação para a
compreensão da teoria das pulsões. Fiel como sempre à concepção dualística,
ele opõe pulsões de vida a pulsões de morte, atribuindo às primeiras a fun-
ção de sistematização e ordenação cada vez mais complexas da vida mental,
sendo que nesta tarefa estariam empenhadas as forças da sexualidade e as de
autoconservação. Já as pulsões de morre buscariam a descarga de forma total
e imediata da tensão presente no aparelho psíquico e tenderiam, portanto, a
modos mais simplificados e menos organizados como forma de processar os
acontecimentos mentais. Freud (1920, p.83) afirma:

Descobrimos que uma das mais antigas e importantes funções do aparelho


mental é sujeitar os impulsos instintuais que com ele se chocam, substituir
o processo psíquico primário que neles predomina pelo processo secundário
e converter sua energia catéxica livremente móvel numa catexia principal-
mente quiescence (tônica).

Esta afirmação poderia levar à falsa compreensão de que o aparelho


psíquico pudesse estar formado desde o nascimento e apto a cumprir essa ta-
refa. No meu modo de entender, são exatamente as primeiras ligações (creio
que esta palavra traduza melhor a ideia de sujeição) que começam a sistema-
tizar o que irá se desenvolver como um aparelho psíquico. Esse é um momento
interessante para tentar organizar as ideias sobre a simbolização. Gostaria de
lembrar Garcia-Roza (1987, p.113) quando, referindo-se à pulsão, ressalta a sua
ligação com o corpo enquanto fonte e o mundo dos objetos enquanto lingua-
gem. Ele comenta em consequência disso que: “A pulsão é, portanto, desman-
teladora da ordem natural e constituinte da ordem humana.”
No meu modo de entender, esta foi uma das ideias freudianas de pri-
meira grandeza lançada nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde
Freud (1905) destituiu a ideia de instinto em relação à sexualidade humana
para produzir este que é um dos conceitos fundamentais da psicanálise: o con-
ceito de pulsão.

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– SOBRE O ALCANCE DA INTERVENÇÃO ANALÍTICA 143
Se aceitamos, seguindo Freud (1920), que a pulsão por excelência é a
pulsão de morte, o passo seguinte em nosso raciocínio será entendê-la como
aquilo que constitui o que é da ordem do humano. Como venho sustentando
neste texto, a pulsão de morte abriria a possibilidade para a simbolização e,
neste sentido, podemos dizer que é dela que parte toda condição de criativi-
dade humana, desde que as relações primitivas do bebê com o ambiente as-
sim o permitam.
Para Freud, o modelo fundamental da inscrição psíquica seria a experi-
ência de satisfação vivida pelo bebê junto ao seio materno. A busca por reinvestir
o traço mnêmico da experiência de satisfação - uma vivência alucinatória - já
é um produto psíquico por excelência, isto é, já é uma representação mental.
Na esteira desse acontecimento fundador, promovido pelo encontro
da boca com o seio e a consequente experiência de satisfação que daí decorre,
as operações mentais passam a ser reguladas dentro de uma funcionalidade
que Freud (1920) denominou processo psíquico primário, cuja economia é
sustentada pelo princípio de prazer. Segundo sua descrição, o princípio de pra-
zer: “é uma tendência que opera a serviço de uma função, cuja missão é li-
bertar inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade
de excitações constantes nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível”. (p. 83)
Penso que esta definição nos permite considerar um aspecto impor-
tante da dinâmica pulsional, já que a perspectiva de uma descarga total das
excitações só pode ser entendida como moção da pulsão de morte. Por sua
vez, a ideia de manutenção de um equilíbrio de investimento no sentido de
constância aponta para a complexidade e para a sistematização do aparelho
psíquico e, por conseguinte, encaminha-nos para o reconhecimento de uma
demanda da pulsão de vida. Se levo estas ideias ao extremo do que propõe meu
pensamento sobre a pulsão, sou tentado a abandonar a suposta necessidade
da posição dualista que marcou o pensamento de Freud.
Considerando a dinâmica psíquica tal como a tenho tratado aqui, o
que me interessaria sustentar é que o campo pulsional, que fica fora do psí-
quico - como afirmou Freud (1915) em seu artigo O instinto e suas vicissitudes
equivaleria essencialmente ao que se refere ao conceito de pulsão de morte.
Daí se depreende que a pulsão, enquanto tal, não é da ordem do psíquico e a

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este só se submete por intermédio das representações. Se, portanto, a pulsão de


morte opera em direção ao aparelho psíquico, criando potência de demanda e,
ao mesmo tempo, permitindo abertura para um objeto que não é pré-deter-
minado nem fixo, será, como disse há pouco, a vigência do princípio de prazer
que irá garantir os primeiros registros psíquicos que, sem dúvida, já podem ser
considerados como rudimentos de simbolização.
O próximo passo no desenvolvimento mental será dado pelo incre-
mento da integração da palavra como representação simbólica da realidade.
Isto irá permitir uma outra forma de realização psíquica - o processo secun-
dário - que adia o momento de satisfação até que o teste de realidade confirme
a presença do objeto capaz de prover a real satisfação da necessidade. Usando
os termos de Freud (1900), enquanto o processo primário visava à descarga
imediata por meio de uma identidade de percepção (alucinação), no processo
secundário o que se busca é a descarga a partir da identidade de pensamento.
Essa breve exposição de tema tão complicado pode ser desculpada se
a intenção de alcançar um foco específico de interesse for compreendida. O
que estou privilegiando é o fato de que nos dois processos do funcionamento
mental estamos lidando com representações. E esta é a condição fundamental
de simbolização, já que supõe que um objeto tenha sido encontrado e depois
perdido, deixando em seu lugar uma representação. É no seio do encontro
que surgem seio, boca e o que é pulsão. Pulsão inscrita como representante
representativo e pulsão sem inscrição, pulsão de morte ou, como prefiro,
simplesmente pulsão.
Enquanto a mãe não puder criar uma condição de hiato entre ela e o
bebê, não haverá pensamento. O pensamento surge lá onde o objeto se perdeu,
lá onde a coisa foi substituída pela representação, lá onde a pulsão de morte
erigiu o não como seu representante.
O processo primário e seu modo alucinatório de satisfação tende à
anulação do reconhecimento da perda fazendo coincidir o objeto alucinado
com o objeto capaz de produzir efetiva satisfação, mas de qualquer forma este
engodo já é uma cena psíquica propiciada pelas representações mentais, por
conseguinte o início do processo de simbolização. Talvez o que acabo de expor
possa ser identificado com o conceito de Segal de equação simbólica. Diz ela: “Na

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equação simbólica, o substituto-simbólico é sentido ser o objeto original. As
propriedades do substituto não são reconhecidas ou aceitas.” (SEGAL, 1955, p.
87) Como disse, o essencial aqui colocado é que, a partir da condição de re-
presentação, surge o potencial para a simbolização.
O ponto que gostaria de trabalhar a seguir é que a premência pulsio-
nal pela descarga através do único caminho possível - a representação - nem
sempre alcança êxito. Há sempre uma atualidade da pulsão buscando descarga,
algo não representado e, portanto, não reprimido. Quando a pulsão, por algum
impedimento, não pode ser descarregada, ela expõe o aparelho psíquico a uma
vivência de angústia. Dar curso a essa descarga pode ser uma condição dire-
tamente ligada ao potencial criativo do sujeito e por conseguinte à sua possi-
bilidade de saúde mental.
A ideia de potencial criativo está associada, no meu modo de entender,
ao conceito de pulsão enquanto energia de investimento constante em dire-
ção ao inconsciente. É desta quantidade pulsional, nunca de todo acolhida pelo
campo do representado, que depende a condição criativa enquanto potencial
para o novo e a articulação da experiência emocional do sujeito.
A mãe propicia à criança o acesso à realidade através de seu corpo e de
sua condição de portadora da palavra, que são as formas fundamentais para
ingressar no campo simbólico. A criança só encontrará uma realidade possível
de ser compartilhada na medida em que seja capaz de desenvolver a capaci-
dade de simbolização. Fica evidente, portanto, que uma falha nesse momento
do desenvolvimento da criança trará consequências muito graves para seu fu-
turo como indivíduo.
Do ponto de vista freudiano, a pulsão - cuja fonte é o corpo- terá acesso
ao psiquismo mediante sua condição de ser representada. E seu caminho se fará
através do inconsciente até alcançar o nível das representações conscientes.
Destaquei estes dois últimos aspectos, quero dizer, o papel materno
no favorecimento do aporte simbólico e a descrição do caminho possível da
pulsão no aparelho psíquico, para poder discutir a simbolização na perspec-
tiva do enquadre analítico. Tenho me feito acompanhar, no decorrer deste
trabalho, pela concepção segundo a qual o alcance do ato analítico vai além
da revelação do reprimido, para alcançar a possibilidade de simbolização do

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que continua a insistir como o atual da pulsão. Garcia-Roza (1987) expressou


assim esse ponto de vista:

Se o inconsciente insiste, enquanto recalcado, em se tornar consciente,


a pulsão insiste mais fortemente ainda investindo o inconsciente. E
poderíamos dizer mais ainda: que o inconsciente só persiste porque a pulsão
insiste. É a pulsão que confere realidade ao inconsciente. A repetição do
inconsciente só se faz nas e pelas máscaras, o mesmo acontecendo com a
repetição que se dá a nível do pré-consciente/consciente. A repetição que se
dá a nível da pulsão é de outra natureza, não é máscara, disfarce ou sentido,
é real. (GARCIA-ROZA, 1987, p. 60)

A mãe teve que se haver com esse real ou, como preferi chamar, esse
atual da pulsão em busca de ser simbolizado. O que estou tratando de afirmar
é que o analista também se verá convocado a esse lugar como objeto atual da
pulsão. Em outras palavras, penso estar considerando outra maneira de teo-
rizar o campo transferencial, onde o que insiste em se repetir não é apenas o
reprimido, mas a própria atualidade pulsional.
Levando estas questões em consideração, penso que seria importante
esclarecer que estou diferenciando o movimento transferencial articulado ao
desejo e à representação desta outra forma de transferência que surge da cap-
tura do analista como objeto atual da pulsão. O analista se apresenta como re-
curso para inscrição de experiências ainda não vivenciadas pelo paciente. Se
assim é, e seguindo a orientação de Freud quanto à função do analista no sen-
tido de que este não se entregue ao que na transferência representaria uma
tentativa de atuação da fantasia edípica inconsciente do paciente, mas que
ajude o paciente a integrar pela elaboração simbólica esses elementos de sua
história como sujeito. Caberia então ao analista, nesta outra perspectiva trans-
ferencial que estou discutindo, mobilizar recursos para que algo que não pôde,
até então, ser representado pudesse enfim escapar da condição de repetir-se
como insistência em busca de simbolização. Isto se daria através do ofereci-
mento dos recursos de transicionalidade do espaço analítico - incluindo-se
aí sem reservas o analista - para apropriação pulsional por parte do paciente.

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Seguindo estas considerações, a postura do analista com relação ao en-
quadre mereceria ser compreendida de uma perspectiva mais ampliada. Te-
ríamos que levar em conta que o analista precisaria ter à sua disposição um
instrumento de intervenção na transferência, que lhe permitisse ir além dos
limites da técnica psicanalítica clássica. Gostaria de citar um interessante
comentário de Winnicott sobre esse assunto em seu trabalho sobre os objeti-
vos do tratamento psicanalítico:

Em minha opinião, nossos objetivos ao aplicar a técnica clássica não são al-
terados se acontece de interpretarmos mecanismos mentais que fazem parte
do tipo de distúrbios psicóticos e dos estágios primitivos do desenvolvimento
emocional do indivíduo. Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a cons-
cientização nascente em termos de transferência, então estamos praticando
análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos
ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim? (WINNI-
COTT, 1962, p. 155)

Quando pensamos na prática analítica, pelo menos em sua forma


clássica, somos confrontados com uma técnica que se dedica a mobilizar no
paciente, através da associação livre, o surgimento de elementos reprimidos e
que, portanto, ficam ordinariamente excluídos da consciência a não ser através
do concurso de elementos substitutivos como os sintomas, os sonhos, os atos
falhos, etc. Nesta perspectiva, o analista estaria buscando, através de seu tra-
balho interpretativo, revelar o arranjo simbólico desses elementos substituti-
vos, permitindo ao paciente entrar em contato com a dinâmica de seu conflito.
O analista tem o poder de conjurar os fantasmas inconscientes, prin-
cipalmente, porque se oferece como suporte para a transferência do anali-
sando amparado que está pelas condições especiais do espaço analítico. Espaço
este que é uma consecução como procurei demonstrar no decorrer do texto.
A demanda que surge no paciente devido à sua possibilidade de reco-
nhecer-se em sofrimento faz com que ele se dirija ao analista e nesta procura
atribua a ele uma dotação de saber que lhe permite sustentar o investimento
no processo analítico na esperança de alcançar alívio.

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Quando o analista acolhe uma demanda de análise, ele se compromete


com a sustentação de um campo de estabilidade que engloba: o espaço físico
de sua sala, a manutenção dos horários de atendimento, a duração das sessões
e alguns outros elementos que organizam o campo físico dessa experiência.
Porém, o mais importante é a condição que o analista precisa ter de conservar
sua posição transferencial sem entregar-se ao paciente como modelo de iden-
tificação da verdade, ou de normalidade. A verdade ou normalidade sugerem
um campo de racionalidade passível de ser transmitido ao outro como ensi-
namento, como decodificação.
Assim que esses fatores, que destaquei como construtores do espaço
analítico, estiverem efetivamente em ação, o analisando poderá se valer do
enquadre analítico para reproduzir nele vivências arcaicas de sua infância, as
quais se definem como conteúdos representacionais imobilizados, em maior
ou menor intensidade, pela ação da repressão. Essa descrição abarca o que ge-
ralmente se entende por transferência, ou seja, uma forma de resolução dada
aos conflitos edípicos que se inscreveu inconscientemente determinando o
modo como cada um é capaz de se vincular às pessoas com quem se relaciona.
Esse tem sido, sem dúvida, o campo predominante da intervenção ana-
lítica, e a interpretação do representado o instrumento usado para alcançá-lo,
mas, certamente, não é o único nem talvez o mais importante. Penso que ao
lado dessa potencialidade do trabalho analítico podemos constatar uma ou-
tra, que diz respeito ao potencial para simbolização de demandas pulsionais
que não puderam até então alcançar o nível do representado. Falo, portanto,
de um potencial para simbolização que seria criado pelo enquadre analítico
movido pela força da transferência. É necessário, todavia, que passemos a ex-
plorar um pouco mais a noção de transferência para podermos ampliar sua
compreensão e conseguirmos subsídios para discutir o potencial de simboli-
zação da experiência analítica.
Se a relação com o analista for estabelecida numa base de sólida con-
fiança, de tal forma que o paciente consiga se expor ao surpreendente em si
mesmo pela superação de suas resistências, será esperado, na melhor das hi-
póteses, que o campo analítico com sua potência transferencial abra-se à vir-
tualidade de novas experiências emocionais. O vínculo analista-paciente se

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prestaria, então, não somente à revelação do reprimido como também propi-
ciaria a oportunidade de abertura para que experiências primitivas do sujeito
pudessem alcançar o nível representacional simbólico.
Isto torna-se particularmente evidente se considerarmos a clínica das
psicoses, pois nela fica de todo perceptível a necessidade de entender o pro-
cesso transferencial como indo além do reprimido. A psicose manifesta uma
transferência com características diferentes daquelas que encontramos na
neurose. Se o objetivo clínico da análise dos neuróticos é trazer para o vínculo
com o analista toda a atualização resistencial do reprimido em forma de trans-
ferência para então poder interpretar aquilo que resiste à significação, na psi-
cose o que insiste em se repetir é de outra ordem. Na transferência psicótica o
analista é capturado por um movimento que tenta desalojá-lo da condição de
experimentar a estabilidade de seus limites de ser e existir. Ele se percebe to-
mado pela violência da pulsão não submetida ao campo simbólico da castração.
Se faço referência à clínica das psicoses não é porque tenha intenção di-
reta de levar adiante um trabalho detalhado sobre esse tema, mas sim para usá-
-la como contraponto ao modelo analítico clássico e como suporte às ideias que
desenvolvi ao longo deste trabalho. Na psicose temos, como afirmei, a expres-
são superlativa da captura do analista como objeto atual da pulsão. Por outro
lado, o que estou tratando de reiterar é que este não é um fenômeno ausente
na clínica da neurose, ainda que apareça obviamente de forma mais branda.
Nessa perspectiva, a transferência traz em seu bojo mais do que o que
foi capturado pela condição desejante do sujeito e o analista se oferece inevita-
velmente como atualidade objetal para a avidez da pulsão. É importante referir
que encontro na obra de Freud elementos teóricos de fundamental relevância
para poder pensar estas questões, mas que, ao mesmo tempo, identifico res-
trições com as quais a clínica de Freud se viu defrontada.
O conceito de pulsão de morte, por exemplo, recolocou para o pensa-
mento psicanalítico, com muita intensidade, a questão do não representado - do
pulsional por excelência. E é esse aspecto que precisa ser considerado quando
queremos retomar o conceito de transferência e sua utilização na clínica.
A visão estrutural da segunda tópica freudiana, com a concepção de
id, abarcou mais do que o que estava referido ao conceito de inconsciente da

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primeira tópica, abrindo espaço para o não representado, para o campo pulsio-
nal com toda sua inclemente força energética. Esta é uma questão que Freud
não chegou a integrar em sua teorização sobre a técnica; de fato, não há em sua
obra nenhuma consideração neste sentido. Desta forma, pelo menos enquanto
objeto da técnica, o pulsional para ele ficaria circunscrito ao que se inscreveu
no aparelho psíquico como representante representativo.
Também por isso fiz questão de evocar a clínica das psicoses, pois
entendo que a marca desta vivência -sua impressão indelével - é que nos
conduz a um novo olhar para a experiência transferencial e, como sabe-
mos, foi predominantemente à clínica das neuroses que Freud se dedicou,
faltando-lhe, portanto, maiores oportunidades de observar a transferência
psicótica. Além disso, esta postura de Freud estava coerentemente afinada
com seu modo de entender o psicótico como sendo incapaz de produzir o
que ele considerava imprescindível para a realização de uma análise, a neu-
rose de transferência. Quando teorizava sobre o tema, no entanto, ele tinha
claro que a etiologia das psicoses -seu ponto de fixação -apontava para um
momento muito inicial da relação mãe-bebê, embora nunca tenha tratado
de repensar suas concepções sobre a técnica de maneira a permitir que ela
abarcasse esses novos limites da clínica.
Espero que este ja claro que não estou de forma alguma cobrando de
Freud maior longevidade para que pudesse ter dado conta de questões que o
tempo de apenas uma vida não permitiu resolver. Aponto somente para esta
defasagem entre a produção teórica e a formulação técnica, a fim de poder ex-
pressar os limites com os quais tenho me defrontado na clínica e que clamam
por uma constante reflexão que possa permitir o desenvolvimento de novos
instrumentos para o analista.
Na clínica das psicoses esta reflexão sobre os limites da técnica é por
demais necessária, pois nos revela o analista sendo solicitado a um campo
transferencial espoliado da condição de simbolização. O psicótico é presa de
um mundo mental onde é mantido siderado pelo horror da captura por um
outro que não pode oferecer-lhe a inserção no campo simbólico pela referên-
cia à posição de castrado, ficando, por isso mesmo, alijado da possibilidade
de se localizar na partilha dos sexos como homem ou mulher. Essa é a cena

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alarmante que aguarda o analista e ele dependerá de sua capacidade de expor-
-se ao desamparo frente às vivências contratransferenciais para permitir que
algo desta experiência possa alcançar recursos de simbolização para o paciente.
Como já disse, a clínica das psicoses amplia as feições da questão
que recortei na discussão da técnica, mas o que insisto em afirmar é que
também nas neuroses há que se identificar a insistência do não represen-
tado. O analista cria, com sua escuta e com seu convite a que o paciente as-
socie livremente, um campo de atração transferencial. O paciente atualizará
neste vínculo sua forma de amar e de odiar, mas trará consigo também a
constante insistência da pulsão que vitaliza o próprio inconsciente. Curioso
pensar na pulsão de morte como vitalizadora - até mesmo paradoxal - mas é
sua premência pela descarga total que encontra o aparelho psíquico e o força
à vida. Deste ponto de vista, e retomando o que disse no texto a respeito de
reconhecer a excelência do conceito de pulsão no que Freud circunscreveu
como pulsão de morte - já que pulsão de vida, como ele a chamou, sempre
teria a ver com o que está inscrito - poderíamos sem dificuldade considerar
a pulsão como fonte de tra nsformação psíquica e, portanto, como fonte da
capacidade criativa do ser humano.
A visão ampliada da transferência como incluindo também uma sobra
pulsional que escapa à condição de representante-representativo obriga-nos a
repensar a questão da neutralidade. Pois, se por um lado o analista não deve se
oferecer como objeto de desejo para o paciente, enquanto aquele que por seus
atos pode satisfazer a condição desejante deste, por outro lado, se aceitamos
que a pulsão busca inscrição enquanto excedente - enquanto sobra - é neces-
sário que reflitamos sobre como responder a essa nova demanda. Demanda
esta que reservaria ao analista não a condição de objeto de desejo, mas antes a
de objeto de necessidade, na medida em que o paciente o solicita lá onde seus
recursos psíquicos não encontraram possibilidades de simbolização. Estamos
falando de experiências não realizadas e não de conteúdos reprimidos.
Quando falamos da posição transferencial do analista, habitualmente
relacionada à condição de objeto de desejo do paciente, penso que estamos
circunscrevendo um campo diferente daquele no qual o analista se apre-
senta transferencialmente como objeto atual da pulsão, e é neste sentido que

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empreguei o termo objeto da necessidade. Relaciono esta questão direta-


mente aos tipos de acontecimentos que marcam os momentos primitivos de
desenvolvimento do vínculo mãe-bebê. Nestas circunstâncias, o paciente usa
de todas as condições do enquadre e, portanto, do analista, para ensaiar neste
contexto novas experiências que até então não haviam encontrado acolhida
nos vínculos estabelecidos.
O que sustenta alguém como analista não é a rigidez do enquadre,
mas o tipo de escuta que dedica aos pacientes e a maneira como compreende
e interpreta a partir de seu lugar na transferência. O potencial de simbolização
no processo analítico se amplia pela condição que o analista tem de se reco-
nhecer como objeto da atualidade pulsional e, mediante isso, usar o contexto
transferencial para poder ajudar o paciente a recortar um novo aspecto de
realização emocional, que até então não havia podido ser significado. A ple-
nitude desta experiência será vivida quando o analista puder ser deixado de
lado como objeto pulsional para dar lugar ao surgimento e sustentação de um
novo objeto subjetivado pelo acesso ao simbólico. Caberia pensar, como referi
há pouco, que este objeto integrado à subjetividade teria sido constituído não
a partir de uma dinâmica que dissesse respeito somente ao que é da ordem do
desejo, mas antes mereceria ser descrito como um objeto da necessidade, uma
vez que se instala como forma de reparação a uma falta ou falha que teria ha-
vido no desenvolvimento de recursos que pudessem ter permitido ao paciente
a ampliação de suas condições de simbolização e, por conseguinte, enriquecido
seu mundo interno e suas relações com a realidade.

On the reach of the psychoanalytic intervention

ABSTRACT: This article presents a brief survey of the Freudian concept of symbol,
considering clinical practice. Following this course, it remarks that in truth, the
clinical practice of ecery psychoanalyst is based on a non-symbolized scope whi-
ch is the drive scope. Psychoanalysts are immerse in a context that transcend the
sphere of representation, as we need to reach a fronteir far from the repressed. It

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– SOBRE O ALCANCE DA INTERVENÇÃO ANALÍTICA 153
is propoused them, na undtrstanding of the tramferecial context in which the
psychoanalyst is not only the object of desire of the patient, but also the actu-
al object of the drive. In this way, it is necmary to reformulate some practice of
psychoanalytic technique.

KEYWORDS: Primary process; Secondary process; Instinct; Presentation; Repres-


sion; Symbol.

REFERÊNCIAS
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sig-
mund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
(1893). Estudos sobre a histeria, v.2.
(1900). A interpretação de sonhos, v.5.
(1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, v.7.
(1915). Os instintos e suas vicissitudes, v.14.
(1920). Além do princípio do prazer, v.18.
(1950/1895). Projeto de uma psicologia científica, v.1.
GARCIA-ROZA, L. A. Pulsão de morte e pulsão sexual. In: Acaso e repetição em
psicanálise (Uma introdução à teoria das pulsões). 2. ed.. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 1987.
LORENZER, A. Crítica del concepto psicoanalítico de Símbolo. 1.ed.. Buenos Aires:
Amorrortu, 1976.
SEGAL, H. Notas sobre a formação dos símbolos. In: A obra de Hanna Segal. 1.ed..
Rio de Janeiro: Imago, 1982.
WINNICOTT, D. W. (1962). Os objetivos do tratamento psicanalítico. In:
O ambiente e os processos de maturação (Estudo sobre a teoria do
desenvolvimento emocional). 3. ed.. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

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Comentário
A produção deste texto, circunstanciada que estava pela elaboração de minha
dissertação de mestrado, traz as marcas daquele momento, especialmente no
que se refere ao conjunto de autores explorados. Mas o tema abordado então
continua recebendo minha atenção e guiando minhas ações na clínica.
Penso que o texto, em sua talvez excessiva condensação, tenha exposto
um leque de questões que foi difícil de aprofundar no artigo, mas a relevância
das mesmas torna sua leitura no mínimo interessante. Procurei de início fazer
um apanhado da noção de símbolo na obra de Freud e, a partir daí, desenvol-
ver uma tentativa de compreender a implicação deste conceito para a clínica,
especialmente no que tange à interpretação como instrumento da análise.
Ao reler o texto hoje (15 anos depois) me pareceu importante, por exem-
plo, ter começado a refletir sobre a questão do dualismo pulsional tal como ele
se depreende da obra de Freud e ter me atrevido a assumir uma posição mo-
nista diante do conceito de pulsão.
Muitos anos depois da escrita do texto, tive a oportunidade de discu-
tir sobre o tema com meu, hoje, prezado mestre e amigo Garcia-Roza e ele me
fez perceber que seria possível estabelecer uma diferença importante entre os
conceitos de dualismo e dualidade. Do ponto de vista da Filosofia o dualismo
diria respeito a duas substâncias diferentes, por exemplo: corpo e alma. É o
que podemos observar em Descarte com sua proposição de res cogitans (pen-
samento) e res extensa (corpo), que são consideradas por ele como substâncias
existentes em si mesmas e independentes uma da outra, ainda que isso não
exclua, obviamente, a possibilidade de que elas se relacionem.
Exatamente por este arrazoado é que não poderíamos pensar em du-
alismo com relação às pulsões, pois não é possível estabelecer diferença subs-
tancial entre elas; seja no caso da pulsão sexual e de autoconservação, seja com
relação às pulsões de vida e de morte. Tratar-se-ia neste caso, com muito mais
coerência, de empregar o conceito de dualidade que não aponta para nenhuma
diferença de substância, mas que permite, por exemplo, destacar o aspecto di-
ferencial da pulsão por suas formas de manifestação como pulsão inscrita ou
não inscrita. E aí, bastar-nos-ia seguir Freud quando admite que a pulsão de

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morte é a pulsão por excelência. O passo seguinte, como destaquei no texto, é
se perguntar se continua fazendo algum sentido adjetivar a pulsão ou se me-
lhor seria chamá-la simplesmente de pulsão, quando se tratar de nos referir-
mos à sua condição não inscrita, ou seja, não representada.
Na esteira desta discussão vinha outra de amplitude mais clínica e
que dizia respeito à atualidade pulsional na sessão de análise, que tornaria in-
teressante pensar a perspectiva transferencial do analista como sendo objeto
atual da pulsão. Meu interesse era explorar o potencial de simbolização do ato
analítico para que este pudesse nos permitir ir mais além da revelação do re-
primido. Abrindo, a partir destes elementos, uma reflexão sobre as possibilida-
des de aprimoramento de nosso instrumental clínico não só para as neuroses,
mas, também, para os quadros psicóticos.

José Carlos Garcia


Rua João Moura, 647 - Conj. 121
Pinheiros
(11) 3081 7906
josecgarcia@terra.com.br

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Artigo
Transferência – continência
holding - rêverie
CECÍLIA NOEMÍ MORELLI F. DE CAMARGO

RESUMO: Neste texto é apresentada uma reflexão sobre a possibilidade de ar-


ticulação entre os conceitos de rêverie e holding, advindos de referenciais teó-
ricos diferentes. A transferência é colocada como o palco onde será encenada
a relação mãe/analista/bebê e onde a continência e a rêverie poderão, ou não
se realizar, novamente. É, então, feita uma comparação entre rêverie e holding,
que reflete sobre a necessidade de que o analista, embasado nesta ou naquela
teoria, tenha clareza sobre suas diferenças, sem, no entanto, perder de vista a
importância de sua aplicação na prática clínica.

PALAVRAS-CHAVE: Transferência; Continência; Holding; Rêverie.

Há uma questão que surge frequentemente quando se fala sobre o conceito de


rêverie proposto por Bion: qual sua semelhança ou diferença com o conceito
de holding proposto por Winnicott? Esta é a origem do tema sobre o qual pre-
tendo refletir. Psicanalista, Professora do
Departamento Formação
Mas, o que tem a ver com isso os conceitos de transferência e
em Psicaná1ise do
continência? Instituto Sedes Sapientae
Se a tarefa de pensar diferenças ou semelhanças entre holding e rêve- Mestre em Ciências
da Comunicação pela
rie já não é simples, ela se complica na articulação com estes outros conceitos. Escola de Comunicações
É possível essa articulação? Se é, qual é ela e onde pode nos levar? e Artes da USP.

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– CECÍLIA NOEMÍ MORELLI F. DE CAMARGO

Optei por começar pela introdução do conceito de transferência.


É lugar comum no campo da psicanálise que transferência e contra-
transferência são, por excelência, instrumentos de trabalho do analista. Além
disso, transferência é um conceito que foi passando por transformações em
sua definição no decorrer do tempo.
Nesse percurso foi desde ser reconhecido como obstáculo ao trata-
mento até ser visto como o principal instrumento terapêutico da psicanálise.
Classicamente, é reconhecido como o terreno onde se joga a problemá-
tica do tratamento psicanalítico, pois são sua instalação, suas modalidades, sua
interpretação e sua resolução que caracterizam este tratamento.
Na linha que estuda as relações objetais procura-se ver nas relações
transferenciais as modalidades privilegiadas das relações do indivíduo com
seus diferentes tipos de objeto.
A contribuição de Melanie Klein, no percurso histórico do conceito, in-
cide mais significativamente quando a ideia de reencenação acrescenta refle-
xões advindas de seu trabalho com crianças muito pequenas. A faixa de idade
dessas crianças sugeria que alguns dos acontecimentos nas reencenações trans-
ferenciais não provinham de uma distante forma como a criança experien-
ciava sua vida não só cotidiana, mas também de fantasia. Esta compreensão
teve influência sobre a prática da psicanálise sobre adultos.
Klein (1952, p.78), em As origens da transferência, afirma que “o paciente
está fadado a lidar com conflitos e ansiedades, revividos na relação com o
analista, empregando os mesmos métodos por ele usados no passado”.
Colocado desta forma, o conceito de transferência é facilmente articu-
lado com o de fantasia inconsciente, já que a relação que se evidencia na aná-
lise é a que se estabelece com os objetos internos.
Joseph (1978, p.114), em Diferentes tipos de ansiedade e seu manejo na
situação analítica, dá sua contribuição ao propor examinar “o modo como os
pacientes usam a nós – analistas – para ajudá-los com relação à ansiedade”,
explicitando diferentes situações de ansiedade e propondo que a análise
se dê pelo esclarecimento e pela compreensão desse uso, primeiramente
pelo analista e a seguir pelo paciente. Diz ela (1985, p.163) em Transferên-
cia: A situação total:

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– TRANSFERÊNCIA – CONTINÊNCIA HOLDING - RÊVERIE 159
Muito da nossa compreensão da transferência surge por intermédio da com-
preensão de como nossos pacientes agem sobre nós para que sintamos coi-
sas pelos mais variados motivos; como tentam nos atrair para dento de seus
sistemas defensivos; como inconscientemente atuam (act out) conosco na
transferência, tentando fazer com que nós atuemos com eles; como transmi-
tem aspectos de seu mundo interior, desenvolvidos desde a infância elaborados
na vida infantil e adulta, experiências muitas vezes para além da utilização
de palavras, que frequentemente só podemos apreender através dos senti-
mentos provocados em nós por meio de nossa contratransferência, usada no
sentido amplo da palavra.

Vemos assim, que nesse tipo de compreensão de transferência, o ana-


lista está sempre sendo intensamente usado e que a análise não passa pelo
exame da resistência ou da defesa, mas pelo exame das relações objetais, por
meio da relação com o analista.
O foco do analista estará não no conteúdo das palavras, mas no que es-
tas fazem ao analista; não só nas palavras, mas nas ações do paciente, não só
no paciente, mas em suas próprias reações, efeitos de comunicações vindas do
paciente, mantendo-se atento ao que é próprio de sua personalidade mesma.
Penso que a transferência proposta deste modo é um palco.
No entanto, não é um palco que se presta à apresentação de quaisquer
atores. Pressupõe um analista capaz de um tipo muito específico de desem-
penho. O desempenho de um continente atento ao que se passa com ele pró-
prio e que deve ser capaz de estar à mercê daquele que com ele interage, sem
se perder de vista.
Esta é a primeira articulação: transferência e continência.
A noção de conter relaciona-se ao conceito descrito por Melanie Klein
de identificação projetiva. Quando apareceu, o conceito se referia somente a
um relacionamento objetal agressivo, representando um ataque a um objeto
que se efetiva forçando partes do ego do sujeito para dentro do objeto. Posterior-
mente, Melanie Klein junta o conceito de inveja ao de identificação projetiva
e o conceito passa a implicar no ingresso no outro com o intuito de destruir
suas melhores qualidades. Estes acontecimentos se dariam no contexto da

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posição esquizo-paranóide e estão na base de uma teoria do desenvolvimento


baseada na experiência emocional do bebê com a mãe, por extensão do ana-
lisando com o analista.
O conceito de identificação projetiva também é usado no decorrer do
tempo de inúmeras e diferentes maneiras. Sem me aprofundar neste ponto,
quero destacar alguns destes usos. Além do significado inicial, como um ata-
que, outros usos feitos por diferentes autores, foram aparecendo.
Bion fala de identificação projetiva normal e anormal. A diferença entre
elas dependeria do grau de violência do mecanismo que pode, além disso, ter
pelo menos dois objetivos diferentes: - evacuar um estado mental insuportável
com consequente entrada em um objeto para conseguir alívio, em fantasia, e
com intenção de controlar, por intimidação, o objeto, ou - causar no objeto um
estado mental, como meio de comunicar desta forma (e na ausência de outra),
a este objeto, certo estado mental.
A eventual capacidade do objeto (mãe/analista) de transformar ou não
o estado mental nele despertado pela identificação projetiva é relativamente
independente do motivo pelo qual o sujeito fez a identificação projetiva.
A identificação projetiva feita com fins de comunicação pode não ser bem
recebida e, portanto, não poder ser transformada; outra, com fins mais agressi-
vos, pode ser bem tolerada e independentemente de haver expectativa de que
seja transformada, sendo bem tolerada, poderá ser transformada pelo continente.
Estas duas possibilidades terão consequências sobre o sujeito e, conse-
quentemente, sobre a relação objetal decorrente.
Mas, de que modo identificação projetiva se relaciona com continên-
cia? Melanie Klein, ao tratar do desenvolvimento do ego, propõe, entre outras
coisas, que é pela ocorrência de repetidos ciclos de introjeção e projeção que
tal desenvolvimento se dá.
Bion estende essa afirmação falando de ciclos de identificação proje-
tiva e identificação introjetiva. Diz em Ataques ao Elo de Ligação referindo-se
à situação transferencial:

(...) o paciente recorreu à identificação projetiva com uma persistência tal que
sugeria que se tratava de um mecanismo de que jamais conseguira valer-se o

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suficiente; a análise deu-lhe uma oportunidade para o exercício de um me-
canismo de que havia sido privado (...) o paciente sentia que havia um ob-
jeto que lhe proibia o uso da identificação projetiva (...) achava que eu negava
ingresso às partes de sua personalidade que ele desejava depositar em mim.
(BION, 1959, p. 95)

Se o desenvolvimento se dá entre ciclos de identificação projetiva e in-


trojetiva, a citação acima evidencia a consequência da impossibilidade de uso
por parte do bebê/paciente, do mecanismo que pode ser muitas vezes o único
disponível. O que quer dizer impossibilidade de uso?
A impossibilidade é consequência de uma mãe não continente. Isto pode
ocorrer ou porque ela ficou presa da ansiedade do bebê, tendo-lhe permitido
o ingresso (assim como o analista da ansiedade do paciente), ou porque não
pode tolerar esta experiência e nega-lhe o ingresso, atribuindo, por exemplo,
a um insistente choro do bebê qualquer significado apressado como de que ele
só queria sua presença, desprezando o importante fato de ela própria não sa-
ber o significado de tal demonstração emocional.
Disse que é possível que a mãe não possa tolerar certa experiência que
chegue até ela por identificação projetiva. O que poderia fazer com que uma
mãe não pudesse tolerar certos conteúdos nela depositados?
Um caminho para a resposta é pensar o que seria necessário para que
ela tolerasse a experiência, para que ela pudesse contê-la. Seria necessário que
essa mãe tivesse dentro de si a possibilidade de um estado mental descrito
com o nome de rêverie. Tal estado permite que a mãe receba e acolha os senti-
mentos do bebê; mais que isso, permite que participe de modo fundamental
da consecução do ego dele, pelo desenvolvimento da capacidade de reflexão
sobre seus estados mentais (do bebê), mediante a introjeção de um objeto que
pode conter e compreender suas experiências, dito de outro modo, pela intro-
jeção de uma função: a continência.
O processo seria: por identificação projetiva o bebê insere na mente
da mãe um estado de ansiedade e terror para o qual ele é incapaz de en-
contrar sentido, que é vivido como intolerável (especialmente angústia de
aniquilamento).

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A rêverie que é um processo de fazer sentido para o bebê, exerce-se por


uma função conhecida como função alfa.
Nesse processo podem ocorrer problemas, de modo que o exercício do
estado de rêverie pode ser insatisfatório. Por exemplo: a mente da mãe pode
estar ausente para o bebê por estar imersa em outras preocupações, ou a mãe
pode ser um continente inadequado ou fraco entrando em colapso diante da
força das identificações projetivas onipotentes do bebê. Pode ainda ocorrer
que o bebê ataque a função continente da mãe por um componente invejoso
muito intenso que, projetado no objeto (mãe/analista), transforma-o em um
continente invejoso que priva de significado as projeções do bebê, intensifi-
cando fantasias retaliatórias, ou ainda pode ocorrer que o bebê restrinja suas
possibilidades introjetivas de um objeto bom e compreensivo, ainda monito-
rado por intensa inveja.
Vemos, assim, como a identificação projetiva de uma parte insuportá-
vel da personalidade danifica a própria personalidade e as relações de objeto
já que gera-se um objeto insuportável. O futuro dessa situação será determi-
nado pela reação do objeto, ou seja, o estado mental do objeto pode afetar a
utilização da identificação projetiva pelo sujeito e em decorrência disso seu
próprio estado mental.
A possibilidade de introjeção desempenha papel fundamental nesse
processo, já que o sujeito, ao receber de volta os elementos modificados, intro-
jeta também a função de continência, que depois de repetidas experiências
fica instalada em sua própria personalidade.
Algum esclarecimento sobre onde se dá a ação da função alfa pode ser útil.
Bion utiliza o termo função alfa para se referir a dois processos:
- o transformar um elemento sensório bruto (elemento beta) em um
elemento psiquicamente significativo; e
- o de transformar estados anímicos insuportáveis em suportáveis.
A transformação do que é chamado de elemento beta em elemento alfa
é que vai ocorrer caso seja exitosa a rêverie da mãe/analista. Incluo algumas
reflexões sobre ocorrências destes fenômenos na análise.
Quando tomamos a situação do paciente fazendo identificação proje-
tiva de elementos beta para dentro do analista, estamos falando da produção

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no analista de uma restrição intelectual, de uma contratransferência cuja ca-
racterística principal é a perda de capacidade de pensar criticamente sobre o
material nele projetado. Assim, até que o material recebido possa ser subme-
tido à função alfa do analista, aquele age sobre ele analista obnubilando sua
capacidade de pensar. Após o trabalho de sua própria função alfa o analista
pode chegar a um entendimento sobre certo material e ter, então, uma sensa-
ção de estranheza quanto ao fato de não ter podido “dar-se conta” e formular
uma interpretação, anteriormente.
Para que isto possa ocorrer, o analista precisa ter sido capaz de tolerar
permanecer neste estado nebuloso e resistido à tentação de agir, de fazer algo,
de dizer algo ao paciente. Essa ação geraria no paciente um estado mental se-
melhante ao que o paciente nele gerou ao fazer a dada identificação projetiva.
Neste ponto, coloca-se a questão de como pode o analista saber que
está em condições de formular uma interpretação a partir da elaboração de
sua contratransferência?
Caper (1998, p. 151), em Interpretação: revelação ou criação, refere-se
a dois indícios:
- o analista percebe que se recuperou de sua deterioração intelectual e
que pode pensar claramente sobre o que vai interpretar. Isto se liga à observa-
ção de Bion de que uma interpretação deveria descrever algo evidente para o
analista e não observado pelo paciente. Isto não fala de uma acuidade na ha-
bilidade perceptiva do analista, em detrimento da do paciente; fala que o pa-
ciente é particularmente não perceptivo na área que precisa de interpretação,
questão que está relacionada ao fato do paciente estar preso a seus elementos
beta, o que torna impossível um pensamento crítico sobre eles; e
- o analista não se sente mais sob a compulsão de agir sobre o paciente,
ou seja, de usar sua interpretação para induzir certo estado no paciente, mas
apenas dar a ele algo sobre o que possa pensar, aceitar, rejeitar ou modificar.
O analista não necessita que o paciente aceite sua interpretação. Ele pode ter
esperança de que sua interpretação eventualmente haja sobre a ansiedade do
paciente incrementando-a ou diminuindo-a, mas cuidará para que ela não seja
usada no sentido de fazer algo pelo paciente, ou seja, ela deve se aproximar de
uma descrição de cerca realidade psíquica.

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O próximo e último passo dessa articulação conceitual refere-se aos


conceitos de holding e rêverie.
Os arcabouços teóricos de onde provêm são bastante diferentes. Como
vimos, rêverie se refere à tentativa materna de proporcionar continência que
possibilite compreensão da realidade do bebê e pelo bebê, afim de apoiar sua
perda de onipotência.
Holding é um conceito usado por Winnicott para se referir ao necessário
apoio à crença do bebê (que deve ser inabalável) em sua própria onipotência.
Desse modo, colocam-se questões como pensar se é possível alguma
articulação entre eles e se são diferentes, são diferentes como?
Na teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott, em A integração
do ego no desenvolvimento da criança (1962), o início da vida psíquica corresponde
ao momento em que o ego começa a se desenvolver. O ego, uma organização
mental, é “a parte da personalidade que tende, sob condições favoráveis, a se
integrar em uma unidade” (WINNICOTT, 1962, p.55).
No início da vida, não há separação entre mãe e bebê e o sentimento é
de unidade. Winnicott diz que o bebê precisa, primeiro, ser.
O holding é a primeira função que o ambiente exerce. O próprio ato fí-
sico de segurar o corpo do bebê resultará em circunstâncias satisfatórias ou
desfavoráveis em termos psíquicos. Segurar e manipular bem a criança faci-
lita os processos de maturação e segurá-la mal significa uma incessante inter-
rupção dos processos de integração do bebê devido às reações deste às quebras
de adaptação. Segundo Winnicott, em Os bebês e suas mães, grande parte dos
bebês é segurada adequadamente, sentindo o mundo como amigável, adqui-
rindo confiança e tornando-se capaz de atravessar rapidamente e bem todas
as fases de seu desenvolvimento emocional

(...) a base da personalidade estará sendo bem assentada se o bebê for


segurado de uma forma satisfatória. Os bebês não se recordam de que
as pessoas os seguravam bem. No entanto, lembram-se da experiência
traumatizante de não terem sido segurados de forma adequada. (WIN-
NICOTT, 1988, p. 54)

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– TRANSFERÊNCIA – CONTINÊNCIA HOLDING - RÊVERIE 165
As transformações que vêm a ocorrer no desenvolvimento do bebê são
de sua própria natureza humana, associadas ao holding propiciado pela mãe.
Isso ocorre já que o ego fraco do início amparado pelo ego materno (pelo hol-
ding) torna-se forte, pelo apoio e satisfação das necessidades egóicas.
Falhas ambientais como mudanças repetidas de técnicas de mater-
nagem, ruídos altos, abandono do bebê e identificação da mãe com o bebê
ocorrem, e se ele não tiver oportunidade para se recuperar destas falhas, a con-
tinuidade da linha da vida não poderá ser restaurada com facilidade.
Assim, este é um dos pontos fundamentais na teoria de Winnicott – a
importância dos cuidados aos bebês nos estágios iniciais do desenvolvimento,
já que neste momento a dependência é absoluta e o bebê permanece passivo
frente aos cuidados maternos.
A mãe considerada suficientemente boa proporciona uma experiência
de onipotência durante a qual o bebê vive a ilusão de criar e controlar magica-
mente um objeto e o mundo.
Ao proporcionar um holding físico e psicológico e um manejo corporal
adequados, alimentando a onipotência do bebê, fazendo-o acreditar que está
criando e controlando o mundo, é que a mãe permite que o self verdadeiro se
revele. A adaptação da mãe suficientemente boa é que vai permitir ao self ver-
dadeiro reunir os pormenores do viver que coincidem com a realidade interna
do bebê, tornando-a mais complexa e possibilitando sua relação com a reali-
dade externa, com gradual renúncia da onipotência. É gradativo o processo no
qual o objeto vai sendo colocado fora do self, o que equivale dizer que parece
ocorrer uma renúncia a um objeto idealizado.
Penso que isto é um luto e o nascimento de um objeto mais real. Hol-
ding pode incluir a função da mãe, do grupo familiar e de outras pessoas que
cuidarem do bebê. Pensar no holding dentro da transferência é pensar em um
analista que “não dê as respostas exceto se o paciente der os indícios” (WINNI-
COTT, 1983, p.50), em Teoria do relacionamento paterno infantil. O analista capta
os indícios e faz a interpretação; muitas vezes acontece que o paciente falha
em dar os indícios tornando certo que o analista nada pode fazer. Esta limita-
ção do poder do analista é importante para o paciente, assim como o poder do

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– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
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analista é importante, representado pela interpretação que está certa, é feita


no momento oportuno e é baseada nos indícios e na cooperação inconsciente
do paciente que está fornecendo o material e justifica a interpretação.
Neste ponto, retomo algumas questões propostas no início destas con-
siderações; no entanto, o faço já sem a premência de ter que encontrar uma
resposta ou de ter que decidir se holding e rêverie se aproximam ou se afastam.
Neste momento, e amparada pelas considerações precedentes, me pa-
rece mais importante decidir se esta resposta nos leva a caminhos incompa-
tíveis na prática analítica.
Em função desta nova necessidade, parece mais importante pensar em
como os conceitos podem influenciar a prática clínica.
Neste sentido, parece que há finalidades comuns, girando em torno
da possibilidade de integração individual, aceitação da relatividade da inde-
pendência, possibilidade de lidar com angústias por meio de sua tolerância,
até que novas elaborações possam ocorrer, apesar dos pressupostos iniciais
serem tão díspares.
Ambos os conceitos podem se articular de forma harmoniosa com as
palavras onipotência, tolerância e continência.
Tolerância e continência são fundamentalmente necessárias tanto
para a mãe/analista na realização de um holding adequado, como para a mãe/
analista exercendo rêverie sobre o bebê/paciente.
Sim, os caminhos que podem ser percorridos pelo bebê, num e nou-
tro, são bem diferentes, mas podem não ser opostos já que levam a tão seme-
lhantes lugares.
Na transferência, quer se tenha optado por um ou por outro caminho
(e acho que essa escolha deva ser feita) é indubitável que o que se requer do
analista é uma postura em nada autoritária e muito interessada nos movimen-
tos do bebê/paciente, não desejando, por um lado, que ele seja ou faça isto ou
aquilo e, por outro, provendo a ele, por meio de uma presença atenta e serena,
um meio onde possa se desenvolver.
Penso que dar precedência a importância de um conceito pode ser in-
dício da presença de uma mãe/analista numa posição sacramental em nada
condizente com as propostas de nenhum dos dois autores.

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– TRANSFERÊNCIA – CONTINÊNCIA HOLDING - RÊVERIE 167
Transference – containment – holding – rêverie

ABSTRACT: This text presents a reflection on the possibility of articulation between


rêverie and holding, concepts deriving from different theoretical references. The
transference is presented as the stage where the relation mother/analyst/baby is
performed and where the baby/patient may be contained and where rêverie may or
not happen again.Then, a comparison between rêverie and holding concepts reflects
about the necessity of the analyst based in one or other theory to make the differen-
ce clear, without losing the importance of its application on the clinical practice.

KEYWORDS: Transference; Containment; Holding; Rêverie.

REFERÊNCIAS
BION, W. R. Ataques ao elo de ligação. In: Estudos psicanalíticos revisados. Rio
de Janeiro: Imago, 1959.
CAPER, R. Interpretação: Revelação ou Criação? Sobre a função alfa. In: Res-
sonâncias Bion em São Paulo. Simpósio realizado em São Paulo de
13 a 15 de nov. de 1996.
KLEIN, M. As origens da transferência In: Inveja e gratidão e outros trabalhos.
Rio de Janeiro: Imago, 1991.
JOSEPH, B. Diferentes tipos de ansiedade e seu manejo na situação analítica. In:
Equilíbrio psíquico e mudança psíquica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
WINNICOTT, D. A integração do ego no desenvolvimento da criança. In: O am-
biente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
______ . Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
______ . Teoria do relacionamento paterno infantil. In: O ambiente e os proces-
sos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.

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Comentário
Ao receber da revista Boletim do Departamento Formação em Psicanálise
o pedido para escrever um comentário sobre o artigo Transferência – Con-
tinência – Holding – Rêverie, passados treze anos de sua publicação, retomo
o texto e me parece que a inquietação inicialque levou à sua escrita con-
tinua viva e atual.Entretanto, seria ilusório afirmar que ela seja a mesma.
Considerando o aprendido comBion sobre a fugacidade do momento, sei
que outro texto seria produzido quer pretendesse reescrever o primeiro
ouapenas a ele adicionar.
Quero dizer que, do ponto de vista conceitual, algumas palavras aqui
e ali poderiam certamenteser acrescentadas, aprofundando e enriquecendo
o original. Mas hoje penso que a preocupação que o gerou já era desde então
maior que a necessidade de compreensão e esclarecimento dos termos que no-
meiam o artigo, embora sua finalidade primeira tenha sido esta.
Apesar de esta compreensão ser importante, algo subjaz a ela, está
mesmo além dela,ainda é presente e soma-se ao que aqueles conteúdos me
instigam neste momento: as qualidades imprescindíveis ao analista e que de-
vem ser arduamente buscadas em sua formação.
A constatação de que condições especiais são necessárias a ele, tal como
à mãeno exercício de suas funções, amplifica o empenho na busca incessante
por uma aproximação crescente à conquistade um estado mental de abertura
e entrega ao encontro.
Tolerar não tê-lo conquistado plenamente: esta é a difícil tarefa a ser
praticada sem cessar...
Sim, entender a teoria que é utilizada como pilar do trabalho do ana-
lista é fundamental, indispensável. No entanto, o próprio Bion alerta seu leitor
sobre o uso a ser feito da teoria que propõe:

Por essa razão não estou muito interessado nas teorias psicanalíticas; alguém
que se qualifica, pode ir vê-las num livro. Mas a prática da análise é a única
situação em que se lêem pessoas e não livros. É, pois uma pena despender

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– TRANSFERÊNCIA – CONTINÊNCIA HOLDING - RÊVERIE 169
tempo que se poderia usar na leitura de uma pessoa, lendo, no lugar, um li-
vro. (BION, 1974, p.125, Grifo do autor)

Em outro momento afirma:

Creio que seja positivo sermos capazes de reconhecer a dívida que temos para
com nossos antepassados – nossos antepassados mentais. Que nós, como ana-
listas, conheçamos o significado do termo ‘transferência’e ‘contratransferên-
cia’ assim como eram utilizados por Freud, Abraham, Melanie Klein, ou por
qualquer outro, é inteiramente oportuno somentese aprendemos a esquecer
tudo isso de maneira a estarmos abertos a captar o próximo movimento feito
pelo paciente – a próxima etapa, por assim dizer. (BION, 2005)[1]

A fundamental importância das condições internas necessárias ao ana-


lista está diretamente ligada à questão da comunicação primitiva não verbal
e préverbal entre o bebê e sua mãe,que se processa por identificação projetiva,
ou seja, por ‘comunicação inconsciente’, possivelmente telepática, porque é
feita à base de “transferência de paixão” (tele-paixão).
Bion propôs que esta comunicação sonhada exige decifração e,
além de ser uma defesa primitiva, é a forma mais profunda de interação
subjetiva(comunicação) disponível ao bebê, e é sabido que também pode ser
utilizadapelas partes mais primitivas das personalidades dos seres humanos
em geral. Aquilo que for projetado no objeto deverá ser por este suportado, ela-
borado e tendo-se tornado suportável, depois de significado, poderá ser reincor-
porado pelo sujeito. Assim, a possibilidade de que conteúdos projetados possam
ser contidos pela mãe/analista(adulto maduro) é de fundamental necessidade.
No entanto, há especificidades na qualidade da continência a ser exercida que
definem o destino, eu diria, não só dos conteúdos projetados, mas do próprio
bebê/ paciente /analista/ser humano.
Se ainda importa conjeturar sobre as semelhanças ou diferenças entre
holding e rêverie, talvez possa ser dito que frente ao enorme desamparo do humano

1. Tradução não publicada, realizada por Renzo Birolini.

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(bebê ou paciente) há de peremptoriamente existir uma sustentação, e aí cada


um dos conceitos deverá encaixar-se dentro do corpo teórico do qual faça parte.
O que não pode ser omitido é que há, por assim dizer, uma missão que envolve
refinamento do analista no analisar, acolher, interpretar e devolver ao paciente
experiências emocionais recebidas por identificação projetiva, tornando-as as-
sim, toleráveis. Mas afinal, o que se está pensando quando se diz que é necessário
que o analista possa conter os conteúdos projetados pelo paciente?
Um dos significados que pode erroneamente ser atribuído a conter é
o de imaginá-lo como algo que se opõe a limite, algo como um espaço infinito
onde o todo e o tudo podem caber. Gosto de associar a ideia de conter à de um
espaço que possui limites,característica inerente à atribuição de significado e,
portanto, não favorecedor da manutenção da onipotêncianarcísica com que o
desamparo é, em geral, enfrentado. O conter, por outro lado, deve ser receptivo
para que possa ser transformador.
Cito Steiner, no seu artigo Refúgios psíquicos, quando salienta que:

A transferência fica carregada da ansiedade que o paciente é incapaz de en-


frentar, mas que precisa ser contida na situação analítica, e essa continência
depende da capacidade do analista de reconhecer e de suportar o que o pa-
ciente projetou e das suas próprias reações contratransferenciais. A experiência
sugere que tal continência se enfraquece se o analista insiste em interpretar
ou explicar ao paciente o que este está pensando sentindo ou fazendo. Este
sente essas interpretações como uma falta de continência e que o analista está
empurrando os elementos projetados para ele (...) sua necessidade imediata
é que eles continuem a alojar-se no analista e sejam compreendidos em seu
estado projetado. (STEINER, 1997, p.154)

Este trecho deixa clara mais uma qualidade que deve estar no âmago
da própria continência: ela deve propiciar ao paciente a experiência emocional
de ser compreendido. Fico muito tentada a usar aqui uma frase frequentemente
empregada por um colega: “explicação é bom pra quem explica”.
Sim, a experiência de ser compreendido é totalmente diferente da de
obter compreensão sobre si mesmo.

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– TRANSFERÊNCIA – CONTINÊNCIA HOLDING - RÊVERIE 171
No mesmo artigo acima referido, Steiner (1997, p.154) enfatiza que “o
paciente que não está interessado em obter compreensão- isto é,compreensão
sobre si mesmo-no entanto pode ter uma necessidade premente de ser compreen-
dido pelo analista”. (Grifos meus)
É a possibilidade de ter sido compreendido que abre o caminho para
que a obtenção de compreensão possa ser conquistada, suportada e tolerada.
Apenas uma mente mais desenvolvida será capaz de conter e de fun-
cionar como continente de si mesma, minimizando o esparramar-se nos ob-
jetos do mundo ao seu redor, fazendo-se cargo, mais dono e senhor do que lhe
pertence. Sem esse desenvolvimento não se constitui o aparelho de pensar os
pensamentos, as experiências emocionais, e não ocorre o aprender com a ex-
periência que nos aproxima de O.
O exercício da ‘autocontinência’ este sim pode,depois de arduamente
atingido, difundir-se nas relações interpessoais, num efeito decompartilha-
mento de respeito aos limites do outro.
Eeste é o caminho pedregoso a ser trilhado pelo analista, já que se pro-
põe a entrar em contato íntimo e profundo com a dor de seu semelhante, pre-
tendendo desenvolver nele espaço emocional para compreender-se, lidar com
seu desamparo e aproximar-se de sua realidade última.

REFERÊNCIAS
BION, W. R. Conferências brasileiras: 1 – São Paulo/1973. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1974,137 p.
______ . Italian seminars. Londres: Karnac, 2005, 110p.
STEINER, J. Refúgios psíquicos – organizações patológicas em pacientes psi-
cóticos, neuróticos e fronteiriços. Rio de Janeiro: Imago Editora,
1997, 184 p.

Cecilia Noemi Morelli F. de Camargo


Rua Oscar Freire, 1399, apto 121
Cerquera César
(11) 3064 9127
mormicam@gmail.com

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Artigo
A atualidade do conceito construção
MARIA HELENA SALEME

RESUMO: Este texto busca refletir sobre a clínica psicanalítica frente a situa-
ções difíceis como os comportamentos compulsivos. Considera a compulsão
como resultado de manifestações do pulsional sem representante psíquico. A
construção, na transferência analítica, possibilitaria a tessitura facilitadora de
novas representações.

PALAVRAS-CHAVE: Representação; Psicanálise; Transferência; Construção;


História.

Por quantas mudanças passa um psicanalista! Desde acreditar que o com-


plexo de Édipo é o essencial da clínica psicanalítica até conviver, de fato, com
o abismo, à beira do qual algumas pessoas caminham. Se o psicanalista aceita
o convite de seu paciente para seguir por essa senda poderá perceber que há
potencialidades psíquicas que fogem ao que foi delineado pela clássica clínica
psicanalítica e que deve reavaliar a teoria e o método de trabalho.
Em O Fetichismo (1927), Freud afirma que os perversos, frente à im-
possibilidade de introjetar a castração, defendem-se da angústia com o meca-
Psicanalista e Professora
nismo de recusa, algo mais que a repressão; algo percebido é recusado e não
do Departamento de
reprimido, uma crença despotencializa o valor do percebido. Após a formula- Formação em Psicanálise
ção do conceito de recusa, necessitou-se da revisão da definição de cura, que do Instituto Sedes
Sapientiae, autora do livro
era a de tornar consciente o inconsciente por meio do cancelamento de re- “Normopatia na Formação
pressões. Utilizando-se de tal definição, tornava-se impossível tentar algum do Analista”, Ed. Escuta.

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tratamento em psicóticos, uma vez que nas psicoses há o predomínio do Pro-


cesso Psíquico Primário e a repressão precisaria ser efetivada e não dissolvida.
Freud sempre sublinhou que algo de uma ordem diversa à da neurose ocorria
na psicose. Pensou, entre outras ideias, que o psicótico não faria transferên-
cia e que, portanto, não seria tocado pela psicanálise. De alguma maneira, sa-
bia que algo em sua clínica deveria mudar para poder trabalhar com outras
formas de funcionamento psíquico que não a neurose. A partir de sua obra,
pensadores que “fizeram trabalhar sua teoria”[1] têm mostrado que uma aten-
ção maior à teoria econômica do funcionamento psíquico conduz a uma nova
abordagem da clínica psicanalítica.
Joel Birman afirma que a clínica de Freud, “tomar consciente o in-
consciente”, é a clínica das neuroses e não das psicoses, das perversões e da
psicossomática[2].
É função do analista provocar o mal-estar na civilização[3], favorecer o
trânsito interno do pulsional, viver com o analisando seu medo à loucura, ou,
em outras palavras, andar à beira do abismo com o analisando, às vezes desco-
brir que o abismo não tem mais de meio metro e por vezes ter de aceitar que
o abismo é intransponível. Para ocorrer alguma mudança no analisando, ele
deve abrir mão de seus modelos identificatórios, abandonar crenças, viver uma
desorganização, tarefa difícil, pois é acompanhada pelo medode enlouquecer,
pelo temor da perda da unidade interna, mas é a única forma de se dar espaço-
parao novo. A repetição só pode ser interrompida com a vivência da dispersão,
que alguns analistas temem mais do que seus analisandos; tementes do caos,
incrementam o sentimento de culpa em seus pacientes, melancolizando-os,
favorecendo a repetição.

1. Expressão que Laplancbe utiliza com frequência, mostrando claramente uma postura de encontro
e troca com os diversos autores psicanalíticos. Os conceitos devem circular dentro do leitor e criar
novos pensamentos.
2. Anotações pessoais de seminários realizados com o dr. Joel Birman.
3. O mal-estar na civilização, texto publicado em 1930, cujo tema principal é o conflito entre as forças
pulsionais e as exigências da cultura, representadas pelo superego. Neste sentido, pensa-se que
o analista, ao favorecer o trânsito do pulsional, provoca o questionamento do superego, muitas
vezes conduzindo a uma quebra em comportamentos adaptados, mas estereotipados e compul-
sivos. Desta forma, seria tarefa do analista incentivar a criatividade do analisando, mostrando-lhe
quando formar uma ideia com o objetivo de manter o status quo por evitação da mudança.

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ARTIGO – A ATUALIDADE DO CONCEITO CONSTRUÇÃO 175
De maneira geral, o ser humano teme e se fascina pelo novo; muitas
vezes a crise que conduz alguém à procura de uma análise é provocada pela
percepção da mudança iminente. Pelos mais variados e incontroláveis moti-
vos as relações terminam, e tendemos a procurar todos os recursos, até aná-
lise, para descobrir como manter a imutabilidade, como manter o objetoou a
relação como era antes, para evitar a mudança. A ideia é preservar, voltar ao
que era, mesmo que as condições já não sejam as mesmas.
Todos nós fazemos o possível para não alterar nada de importante em
nossas posições, mas os pacientes ditos difíceis fazem o possível e o impossível.
São capazes de qualquer coisa para não sentir sua unidade ameaçada, podendo
chegar até a loucura, desde que evitem o contato com o desamparo. Temem
mais ao desamparo do que à morte ou à loucura. Sentem horror a qualquer
excesso pulsional que ameace sua débil e falsa ideia de unidade.
O nome “paciente difícil” é uma espécie de armadilha, pois supõe a
existência de “paciente fácil”. Não existe paciente fácil em análise, se o pro-
cesso funciona provoca mudanças na dupla que a experiência e isso jamais
pode ser chamado de “fácil”. Acredito que há momentos diferentes, nos quais
nos protegemos de tal maneira que só algo muito grande pode nos atingir; e
outros, como tão bem descreveu o poeta, nos quais se está “tão à flor da pele
que até um beijo de novela nos faz chorar”. A dispersão pulsional é um fato,
assim como o é o movimento da vida; eles se entrelaçam todo o tempo e nos
põem em contato com nosso desamparo e com nossa impossibilidade de man-
ter o “para sempre”, o final feliz de todo conto de fadas. Psiques diferentes su-
portam diferentemente essa vivência de desamparo.
Como podemos entender a ameaça de destruição contida na mobili-
dade, e como podemos ajudar alguém a superá-la?
Desenvolverei a ideia de que a ausência de representações de marcas
vividas na primeira infância, o existente, mas não significado, pode conduzir
a uma repetição sintomática, estabelecendo comportamentos compulsivos no
paciente, dos quaisele não pode se livrar. Repetição/compulsão que busca uma
marca singular, única forma disponível neste momento de sentir-se um ser
individual, independentemente do sofrimento envolvido. Abrir mão de cer-
tas compulsões é quase impossível, porque preenchem brancos da história do

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ARTIGO – MARIA HELENA SALEME
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indivíduo, servindo como suporte identificatório; e sua ausência provocaria a


vivência de aniquilamento. Por exemplo, abandonar um vício, modificar um
comportamento compulsivo, pode ser o equivalente a perder a única forma de
expressão de uma paixão sem representação psíquica. Utilizo o termo paixão
como foi definido por Piera Aulagnier no livro Os destinos do prazer (1985, p.
150): “Uma relação na qual um objeto tornou-se, para o Eu de um outro, fonte
exclusiva de todo prazer, tendo sido por ele deslocado para o registro das ne-
cessidades.” Em seu texto, Piera Aulagnier utiliza-se da drogadição, dos jogos
de azar e de situações em que o Eu de outra pessoa se torna objeto passional,
para exemplificar as relações assimétricas da esfera da paixão. Quanto pensa
na droga, ela focaliza as pessoas que têm na droga sua única e exclusiva fome
de prazer. Nas relações de amor, o objeto é fonte privilegiada e não exclusiva
de prazer e de sofrimento. Na paixão, o objeto é vivido como a única fontede
prazer, confundindo-se com objeto de necessidade. Neste sentido, a paixão não
é um excesso de amor, mas forma de relação de outra ordem. Na paixão há a
projeção no outro de um poder desmedido, que é visto como onipotente e que
nada deseja, nem necessita. Na drogadição, a droga é um objeto que não de-
seja o drogadicto, muito menos necessita dele. É uma relação de mão única:
a droga não sofre com a ausência do drogado, assim como o objeco da paixão
não sofre com a ausência do sujeito da paixão. São relações onde há o predomí-
nio do sofrimento, pela rejeição do objeto ou pelo medo de a rejeição ocorrer.
“É um objeto escolhido por Tânatos e não por Eros.” (AULAGNIER, 1985, p. 150)
Penso que a interpretação no processo analítico, embora necessária,
não é suficiente para possibilitar a criação de novas formas de funcionamento,
porque o que se repete são marcas sensoriais “pré-inconscientes”, não reprimi-
das, não passíveis de associação pelo paciente e que a construção em análise
é o processo fundamental nesses casos.
Para isso vou retomar o texto de Freud, Construções em análise.

I- CONSTRUÇÕES EM FREUD
Freud define, nesse texto de 1937, o objetivo da análise como o de levar o pa-
ciente a cancelar as repressões feitas em seu desenvolvimento primevo e a
substituí-las por reações que corresponderiam a um estado de maturidade

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ARTIGO – A ATUALIDADE DO CONCEITO CONSTRUÇÃO 177
psíquica. Considera que, para isso, é preciso recordar certas vivências com
seu afeto correspondente, as quais momentaneamente estão esquecidas.
Tratar-se-ia de transformar a vivência em experiência.
Esse esquecido foi reprimido e o sintoma é consequência da repressão:
o sintoma é substituto do reprimido.
Nesta primeira parte do texto, Freud não tem dúvidas sobre a relevân-
cia de se recuperar uma lembrança perdida. O questionamento é sobre como
podemos chegar a ela.
A resposta já é conhecida de todos nós. Chegaremos ao inconsciente
reprimido por meio dos sonhos, da associação livre e dos indícios de repeti-
ções dos afetos.
A primeira novidade do texto é a “construção”, tarefa do analista, o
qual deve construir a lembrança esquecida por meio dos indícios dados pelo
paciente. Outra reflexão fundamental, que nos traz o texto,é a ideia de que a
análisese passa entre duas pessoas, cada qual com sua história. Em outros tex-
tos, Freud já havia trabalhado a interferência das questões pessoais do analista
no desenvolvimento de seu trabalho, mas aqui Freud é mais amplo e vê o ana-
lista mais humano, tendo uma história própria que, por mais que se modifi-
que pelas análises feitas, sempre existirá e influenciará a produção da dupla
na situação de análise.
Freud compara o trabalho do analista ao do arqueólogo: os dois cons-
troem hipóteses por meio de indícios. Não seria essa uma característica da ci-
ência em geral - construir hipóteses a partir da observação do fenômeno, dos
indícios recolhidos através da história pessoal do cientista?
Freud relativiza as certezas e as verdades, como podemos perceber em
Moisés e o monoteísmo (1939[1934-38]), provavelmente escrito em 1934 e rees-
crito em 1936 (contemporâneo ao Construções em análise):

Não foi possível demonstrar, em relação a outros assuntos, que o intelecto


humano possua um faro particularmente bom para a verdade,ou queamente
humanademonstrequalquer inclinaçãoespecial para reconhecê-la. Encon-
tramos antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se extravia sem
qualquer aviso, e que nada é mais facilmente acreditado por nós do que aquilo

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ARTIGO – MARIA HELENA SALEME
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

que, sem referência à verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas


de desejo. (FREUD, 1939, p. 150)

Na sequência, Freud distingue a verdade histórica da verdade material


e fala sobre a deformação que a verdade material sofre ao ser interpretada por
quem quer que seja. Ainda no mesmo texto, Freud considera que as impres-
sões que uma criança recebe, numa época em que mal consegue falar, podem
produzir o efeito posterior de uma compulsão, que pode ser compartilhada por
muitos, com um alto grau de certeza (refere-se às religiões).
Assim, a construção antecede e segue a uma interpretação, mediada
sempre pelo analisando, é feita pela dupla e é sempre incompleta. A sugestão
aqui já não tem a mesma força que tinha nos primeiros trabalhos de Freud,
porque não é o analista-pagé quem fala, mas o analista que busca um saber; e
porque a verdade já não é tão verdadeira assim.
A interpretação refere-se ao que se faz com um elemento singular do
material: uma ocorrência, um ato falho, etc. Na construção, o analista apre-
senta ao analisando uma mínima parcela de sua história. Na melhor das hi-
póteses, trata-se de uma verdade histórica provável e incompleta.
No texto, Freud oscila entre duas posições: às vezes procura pela verdade
histórica, acredita em sua existência e na importância de ser lembrada;outras
vezes mostra a verdade como inacessível, relativa, sofrendo as vicissitudes do
psíquico. Neste segundo momento, mostra-se voltado a definir a análise como
um trabalhofeito por uma dupla que promove representações, fluxo e troca
de pensamentos, em posições diferentes, pois o analista está apoiado em seu
trabalho pessoal e na teoria psicanalítica. Freud afirma que a construção não-
conduz à recordação e que o fator terapêutico não está na veracidade da cons-
trução e nem na recordação do paciente do fato construído.
Como já vimos, distante do analista onipotente tradutor, o analista do
texto Construções em análise (1937) é passível de erro em suas formulações. Mais
do que poder errar, o analista deve reconhecer para o paciente que mudou de
ideia quando isto efetivamente ocorrer, denotando um trabalho criativo a qua-
tro mãos ou resultado de duas diferentes histórias que criarão uma terceira.
Freud nos mostra o analista num jogo transferencial sujeito a angústias, a seu

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próprio inconsciente e à sua história pessoal. Consequentemente, um “não”
ou um “sim” do paciente devem ser escutados dentro do contexto de uma du-
pla onde a incompletude existe para ambos, mesmo que assimetricamente.
A terceira parte do texto de Freud é a mais surpreendente.
Ao partir do pressuposto de a construção conduzir à recordação do pa-
ciente, verificou que, embora ela quase nunca ocorresse, sobrevinham efeitos
no analisando. Percebeu que,em geral, após uma construção, os pacientes re-
latavam vivências e recordações “ultraclaras”; não se recordavam do episódio
em si, mas de expressões faciais, de um lugar ou de um objeto ligados à situ-
ação que fora construída. Nessa altura, abalou-se a crença de Freud na impor-
tância da lembrança, pelo paciente, do fato reprimido. Percebida a contradição
em suas formulações, Freud elaborou a seguinte explicação:

O ‘impulso ascendente’ do reprimido, colocado em atividade pela apresenta-


ção da construção, se esforçou por conduzir os importantes traços de memória
para a consciência; uma resistência, porém, alcançou êxito - não, é verdade, em
deter esse movimento -, mas em deslocá-lo para objetos adjacentes de menor
significação. (...) Talvez seja uma característica universal das alucinações -à
qual uma atenção suficiente não foi até agora prestada - que, nelas, algo que
foi experimentado na infância e depois esquecido, retorne- algo que a criança
viu ou ouviu numa época em que mal podia falar e que agora força o seu ca-
minho à consciência, provavelmente deformado e deslocado, devido à opera-
ção de forças que se opõem a esse retorno. (FREUD, 1937, p. 301)

A consequência imediata foi perguntar-se sobre as formações deliran-


tes, nas quais quase sempre estão articuladas as alucinações. Freud levantou
a hipótesede a pulsão emergente do reprimido aproveitar o distanciamento
da realidade objetiva para impor seu conteúdo à consciência. A tendência à
realização de desejo e a resistência funcionariam juntas na desfiguração e no
deslocamento desses conteúdos. Trata-se de uma concepção do delírio idên-
tica à formação de sonhos. Implica em reconhecer um fragmento de verdade
histórico-vivencial no delírio e na ideia de que a força compulsiva do delírio
se encontra na fonte do infantil.

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ARTIGO – MARIA HELENA SALEME
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

Abandonar-se-ia o vão esforço de convencer o paciente do erro de seu delí-


rio e de sua contradição da realidade e, pelo contrário, o reconhecimento de
seu núcleo de verdade permitiria um campo comum sobre o qual o trabalho
terapêutico poderia desenvolver-se. Esse trabalho consistiria em libertar o
fragmento de verdade histórico-vivencial de suas deformações e ligações com
odia presente real, e em conduzi-lo de volta para o ponto no passado ao qual
pertence.” (FREUD, 1937, p.303)

Obviamente recoloca a questão da clínica da psicose.


Freud considerou a emergência de indícios perceptivos que o sujeito
não conseguiu transformar em representação-palavra. Embora nesse mo-
mento teórico Freud já tenha teorizado sobre o mecanismo de Recusa e sobre
a Pulsão de Morte, parece que trabalhava com a hipótese de que tudo estava
reprimido, como se não pudesse integrar inteiramente em sua clínica esses
achados teóricos. Reencontra, em sua prática, a constatação de que há na psi-
que elementos sem ligação. Na sequência afirma que o delírio seria uma espé-
cie de construção, uma tentativa de fazer uma ligação desses elementos. Vai
mais longe ainda: o fragmento da realidade objetiva que o paciente desmente
no presente será substituído por outro fragmento que foi desmentido na tenra
pré-história. A tarefa em jogo, para Freud, seria a de articular o material des-
mentido no presente e o material reprimido naquele tempo. Freud chama de
pré-história esquecida o que alguns autores têm desenvolvido como vivências
que deixaram marcas, que nunca atingiram um estatuto de representadas no
Primário ou no Secundário.
O aparecimento de fragmentos de cunho histórico-vivencial não é ex-
clusividade dos psicóticos. Esses fragmentos sem representação no Primário ou
no Secundário aparecem também nas análises de neuróticos, podendo provocar
um estado de angústia em que o paciente tem a sensação de que algo terrível
possa vir a acontecer (pânico?). Freud considera a possibilidade de algo terrível
ter realmente acontecido, em outros tempos, para aquele aparelho psíquico.
Para Freud, o psicótico padece de reminiscências tal como afirmara
sobre as histéricas, embora outros numerosos fatores diferenciem estas duas
formas de funcionamento psíquico.

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ARTIGO – A ATUALIDADE DO CONCEITO CONSTRUÇÃO 181
II- BREVE ARTICULAÇÃO COM O PENSAMENTO DE PIERA AULAGNIER
Para Piera Aulagnier, o aparelho psíquico possui três formas de registro: Ori-
ginário, Primário e Secundário.
No registro do Originário, a criança desconhece a existência de algo ex-
terno à psique e seus contatos com o mundo seriam registrados em pictogra-
mas. O pictograma é uma marca de encontro que não é representação-coisa
ou representação-palavra. O pictograma é uma figuração que a psique faz do
seu espaço, dos impactos do mundo no corpo.
Piera Aulagnier teoriza a existência de uma forma de registro que nunca
recebeu palavra e que se manterá em funcionamento e em mudança por toda
a vida. No registro do Originário, fundo representativo permanente que faz a
figuração de um mundo-corpo, mas que não está em relação com o mundo, o
postulado é o de auto- engendramento.
Os pictogramas podem sofrer alteração ou não. Alguns poderão trans-
formar-se em seres arcaicos e fantasiados, portanto, com representação no
Primário; outros, em breves relatos que, de fragmentos, passarão a ter uma
construção histórica com aparente sequência temporal (portanto, é claro, com
representação no Secundário).
Para Aulagnier, os elementos transformam-se dentro do aparelho psí-
quico - o “eu” teoriza sobre o “eu” e o sujeito se identifica com essa teorização
que faz de si próprio. Nem todos os elementos são simbolizados; há uma espé-
cie de “escolha” que determina o funcionamento do aparelho psíquico. Pode-
mos criar hipóteses sobre esta escolha, mas não são passíveis de verificação.
Esse processo de historiar a partir de elementos dispersos, de marcas
recolhidas é o que Freud chamou de construção. Para Aulagnier, a construção
é uma função do “eu”, é infindável e constante, e a garantia da continuidade
da história. São autobiografias com falhas como qualquer espécie de história,
dependem da intersecção dos fatos com o historiador. Algumas das marcas das
primeiras relações da criança com o mundo são reatualizadas nos registros do
Primário e do Secundário, outras não. A criança sabe disso, sabe da existên-
cia de um “eu” que já foi e do qual ela não é idêntica, sabe que algo foi já sen-
tido, já experimentado, mas não sabe precisar do que se trata. Em geral, esse
tempo é contado para a criança, que poderá aceitar ou recusar a história que

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ARTIGO – MARIA HELENA SALEME
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

lhe contam, ou seja, fará o recorte pessoal da história. As crianças que passam
por uma mudança importante nessas primeiras experiências, que sofrem uma
substituição da pessoa que lhes dispensa os cuidados maternos, terão uma es-
pecial dificuldade em historiar elementos perceptivos de ordens muito diversas.
Trata-se de uma interpenetração entre uma fantasia, um indício perceptivo e
uma série de acontecimentos.
O analista é outro historiador à procura de indícios sem pretensãode en-
contrar uma verdade que não seja efêmera. O processo de construção, feito junta-
mente com o paciente, permite a desconstrução da antiga história. Além disso, as
novas construções poderão ser desconstruídas num processo contínuo de refor-
mulação, uma vez que o objetivo da análise não é o da procura de uma verdade, que
só serviria de obstrução. Sua meta é fazer trabalhar, investir,pulsar, ousarsair da re-
petição e do sofrimento desnecessário. Há modificação do passado pelo presente.
No Originário, a relação da criança com o mundo não pode ser metabo-
lizada em uma fantasia ou em um pensamento, já que a criança não mantém
a catexia e o mundo é representado por seus efeitos somáticos. O Primário e
o Secundário partem desta vivência somática para fazer umaconstrução psí-
quica, buscando representar o mundo para aquela psique. Na vida adulta há
vivências que são registradas apenas somaticamente, ou seja, metabolizadas
no registro do Originário.
As manifestações da vida somática do infans provocarão uma emoção
na mãe que afetará a vida psicossomática do bebê. Pensemos, por exemplo,
em um bebê que acabou de adormecer após mamar tranquilamente. A mãe
pode interpretar este comportamento como uma declaração de amor do bebê,
sentir-se narcisizada e reagir com manifestações carinhosas pelo filho. A mãe
vai olhar e interpretar essa criança a partir de sua história infantil, de sua re-
lação com o pai da criança, pelo estado de seu próprio corpo, por suas ativi-
dades repressivas e sublimatórias e pelos acontecimentos importantes deste
momento do encontro.
A mãe só pode criar uma história desta criança ou, mais precisamente,
deste encontro, a partir de sua própria história; imaginará um futuro, o qual
antecipará um ego nesta criança. Esta historização, a partir do intérprete e das
reações do interpretado, irá ocorrendo também nos registros do Primário e do

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ARTIGO – A ATUALIDADE DO CONCEITO CONSTRUÇÃO 183
Secundário. Esta relação permitirá incontáveis possibilidades de o bebê cons-
truir uma representação de si próprio. Uma doença no recém-nascido ou em
sua mãe, por exemplo, pode acarretar nesta relação um registro de desprazer
com sérias consequências na psique do infans[4].
O Primário é testemunha de uma organização psíquica antiga e é a
via de reconhecimento do aparelho psíquico — de seu desejo e de sua relação
com o outro. As experiências de prazer e desprazer permanecem como uma
marca e os objetos têm uma função identificance. Em O aprendiz de historia-
dor e o mestre feiticeiro: do discurso identificante ao discurso delirante: “A dimen-
são histórica é uma trama complexa de acontecimentos entrelaçados por fios
fantasmáticos e fios do pensamenco.’’ (AULAGNIER, 1989, p. 50)
As representações do Originário e do Primário, ou seja, os pictogramas
e as fantasias formam um fundo de um memorizável afetivo[5], que em parte
pode ser resgatado em análise por meio da construção. Não se trata de ele-
mento do passado, nem de elemento reprimido, mas sim de um representante
do presente do infantil. Pela escuta do infantil em análise, pela escuta inter-
pretativa das ressonâncias ocorridas no analista e pela construção em trans-
ferência, poderemos ter algum acesso a esse fundo representativo. As marcas
deste primeiro tempo aparecerão na transferência e a palavra do analista re-
construirá um aspecto singular desse tempo. Para Piera Aulagnier, a constru-
ção reinscreve uma experiência que deixou marcas, possibilitando uma nova
circulação de significados; provoca uma transcrição que não ocorreu na his-
tória do sujeito. É um ato de criação e não de recordação, ato possibilitado pela
história construída na relação transferencial.

4. A biografia de Van Gogh exemplifica ricamente a existência de um sofrimento na psique da mãe,


por ocasião desses primeiros encontros, que conduz a graves dificuldades na criança. Não há aí o
estabelecimento de uma regra, uma vez que Piera Aulagnier utiliza o conceito de “potencialidade”.
Ou seja, criam-se potencialidades que podem tomar diferentes rumos, conforme as experiências
e vivências posteriores.

5. Poderíamos pensar em alguma semelhança entre este “fundo memorizável afetivo” teorizado por
Piera Aulagnier e a “pré-história esquecida” descrita por Freud. A diferença fundamental situa-se
na conotação de esquecido/reprimido que Freud mantém, mesmo que descrevendo um fenômeno
de outra ordem.

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O sujeito constrói uma teoria de origem que o insere numa tempora-


lidade que lhe possibilita viver o presente e o futuro. A análise poderá propor-
cionar ao analisando a possibilidade de relativizar o impacto de suas primeiras
experiências, de compreendê-las de modo diferente, reconhecendo sua impor-
tância. Modificando versões da vida infantil, pode-se sair de repetições com-
pulsivas. A reinterprecação do passado pode modificar o presente. Assim, o ego
é pensado como um projeto, localizado na categoria de tempo e história, his-
tória esta construída pela relação com seus objetos.
A construção feita na análise jamais reconstruirá de maneira abso-
luta a história do sujeito. Pode ajudá-lo a desmontar sua história mítica e fa-
miliar e a perceber as consequências desta história. Pode, com isso, provocar
novos significados e construir vias alternativas de relação com seus objetos.
Não se trata de uma volta ao passado, mas sim de uma ressimbolização do
infantil sempre presente.

The currentness of the conception of Construction

ABSTRACT: This paper examines the hazards found by clinical psychoanalysis when
faced by complex situations such as compulsive behavior. It considers compul-
sions as instinctual expressions with no psychical representation. Construction,
done in the framework of analytical transference, could allow the development of
a web that could ease the formation of new representations.

KEYWORDS: Representation; Psychoanalysis; Transference; Construction; History.

REFERÊNCIAS
AULAGNIER, P.O aprendiz de historiador e o mestre feiticeiro: Do discurso iden-
tificante ao discurso delirante. São Paulo: Escuta, 1989.
______ . A violênda da interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1979.

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
ARTIGO – A ATUALIDADE DO CONCEITO CONSTRUÇÃO 185
______ . Uma intérprete em busca de sentido. São Paulo: Escuta, 1990.
______ . Os destinos do Prazer-alienação-amor-paixão. Rio de Janeiro: Imago,
1985.
BIRMAN, J. Freud e a interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Relumé-Du-
mará, 1991.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sig-
mund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
(1939[1934-38]). Moisés e o monoteísmo, v. 23.
(1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, v. 7.
(1927). O fetichismo, v. 21.
(1937). Construções em análise, v. 23.

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Comentário
Confesso que fiquei muito intrigada com a proposta da Comissão Editorial
de nos fazer revisitar um texto escrito há 13 anos. Vocês me convocaram
a pensar na questão do tempo. Assim me soou a pergunta: Você mudou
nesse tempo?
Quando, depois de muita relutância, reli o texto, gostei muito do que
estava escrito, mas achei que não conseguiria mais escrever o mesmo artigo.
Nele, tentei entender a metapsicologia do conceito de construção, lan-
çando mão da teoria de Piera Aulagnier, trabalhando os conceitos do irrepre-
sentável e do irrepresentado.
Repito, hoje não conseguiria escrevê-lo, porque o foco que dirigiria
minha escrita seria outro. Tocada por vocês, o meu foco foi para a ques-
tão do tempo.
No artigo de 2001, escrevi que a reinterpretação do passado poderia
modificar o presente e que o ego se encontra na categoria do tempo e de sua
relação com o outro. Mantenho essa ideia, acrescentando e sublinhando que
a interpretação em transferência modifica o passado. As histórias podem ser
mudadas porque se modifica nosso acervo para a sua compreensão e porque
passado e futuro são categorias do presente.
Incluiria, também, o trabalho de Balint sobre a Falha Básica. Balint es-
creveu sobre a vivência clínica de conceitos formulados por Ferenczi. O autor
preocupou-se intensamente em como manter a potência do encontro analítico.
Ferenczi propôs uma liberdade ética para o analista, incentivando que vivesse
integralmente sua contratransferência como material de análise.
Sob esta luz, o conceito de construção poderia ser ampliado, porque fi-
caria sublinhado que a construção surge de um analista vivo, que pulsa e que
se deixa tocar, contagiar, pelo material do analisando. Assim, a história passa a
ser vista de um modo mais amplo do que a relação de causalidade, vista como
um conjunto de materiais em forma de signos e traços, que se atualizam e se
apresentam na relação com o outro.
Agradeço o convite de vocês de rever um passado/presente, de fa-
zer história.

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Leitura
Sem memória e sem desejo:
O valor da reconstrução em análise
uma breve reflexão sobre
questões técnicas[1]

ARMANDO COLOGNESE JÚNIOR

A técnica psicanalítica e sua teoria sempre foram questões que, a meu ver, não po-
dem ser distanciadas da teoria psicanalítica como um todo, nem especificamente.
Como um todo - teoria e teoria da técnica - sublinho que quando pensamos e pro-
curamos lidar na prática clínica com inconsciente, fantasias, recalque, relações de
objeto e, principalmente, transferência, estamos falando de psicanálise. Especifica-
mente, refiro-me à corrente teórica na qual o analista sente-se mais confortável e
costuma se apoiar. Observo que as correntes teóricas introduzem muito mais que
estilos de trabalho ou peculiaridades; elas costumam introduzir uma diferente
forma de observação do psiquismo e, consequentemente, sugerem um modo pe-
culiar de se abordar os fenômenos psíquicos.
Faço essa introdução para que possam acompanhar algumas reflexões
sobre questões técnicas que estarão contidas e baseadas em autores/pensado-
res, ou de estudiosos de uma mesma corrente de pensamento.
O título deste trabalho mostra a direção de minhas reflexões: Klein e Bion.

Psicanalista, Professor e
Membro do Departamento
1. Este texto foi produzido para apresentação no Seminário sobre Técnica Psicanalítica, oferecido Formação em Psicanálise do
pelo Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em 1999. Instituto Sedes Sapientiae.

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LEITURA – ARMANDO COLOGNESE
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
JÚNIOR

Ouvi muitos comentários desfavoráveis sobre a questão “memória e


desejo” e, confesso, sempre me intrigaram muito. Quando me aproximei dos
textos de Bion, e, particularmente, de seu artigo sobre estas questões, tive a
forte sensação de que se tratavam mais de teorias particulares sobre o tema,
na maioria das vezes, do que propriamente críticas.
Desde já declaro que compreendo que estes aspectos abordados por
Bion têm uma grande coerência com a forma particular de ele conceber a psi-
canálise, tanto do ponto de vista teórico quanto clínico.
Não vejo discussões caminharem na direção do desejo. É claro, para os
psicanalistas, que “desejar” é algo que deva ser banido da mente de um analista.
Desejar a cura, o progresso de um paciente, em sua vida privada ou na própria
análise, é aspecto há muito discutido como prejudicial à análise.
Bion compreende que a experiência emocional que o analista possa
ter com seu paciente é o aspecto central de uma análise. Ele dá muita impor-
tância ao rapport.
Ele afirma que memória é algo que, como o desejo, também deva ser
banido da mente de um analista. Diz que o analista deve isentar-se, despreocu-
par-se, em relação ao paciente que ele irá atender. Usa uma imagem: o analista
que pensa que sabe quem é o paciente que virá para a sessão, certamente es-
tará tratando do paciente errado. Aqui, a questão é estar livre para observar as
novidades, o desconhecido. Deve-se estar atento para que nada distraia o ana-
lista de poder intuí-lo. Compreendo intuição como a percepção inconsciente,
vindo do que possa ter sido escutado, como diferente, novidade, desconhecido,
na fala do paciente. Este tipo de percepção ocorrerá, na visão de Bion, muito
mais fácil se o analista não estiver preso à memória.
Memória está, predominantemente, relacionada a impressões sensó-
rias, faz parte do passado e deve ser deixada de lado para não impedir o analista
de perceber novos movimentos psíquicos do paciente; portanto, o paciente,
numa análise, não deve ter nem passado nem futuro para o analista. Em psi-
canálise o que deve ser observado é o que está ocorrendo e não o que ocorreu,
nem o que ocorrerá. Isto porque ele acredita que em toda sessão há uma evo-
lução. E evolução “é um processo baseado em experiência que não tem back-
-ground sensório, mas que é expressa em termos derivados da linguagem da

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LEITURA – SEM MEMÓRIA E SEM DESEJO 191
experiência sensória”. (BION, 1967/1990, p.32) Este é um termo que Bion faz
questão de frisar, pois, uma vez vivenciada uma evolução, percebida e sentida
uma novidade, ela nunca será confundida com memória. “... Ela compartilha
com os sonhos a qualidade de ser totalmente presente ou inexplicável e re-
pentinamente ausente. Esta evolução é o que o psicanalista deve estar pronto
para interpretar.” (BION, 1967/1990, p.31) O conhecido já não é elemento para
interpretação e não deverá contribuir para a evolução de uma análise.
É conveniente ressaltar que Bion não faz uso do termo memória como
algo que pode ser confundido com o uso popular, nem o emprega como si-
nônimo de lembrança, que pode ocorrer numa sessão. Aliás, lembranças
são sempre bem vindas, na compreensão do autor, já que ele sugere que deva
ser investigado o quê, nesta relação, pode ter servido para que tal lembrança
tenha ocorrido e qual o sentido que ela tem aqui e agora. É por estar atento a
todos os meios de comunicação que o paciente possa estar tentando fazer e,
seguramente, acreditando que a identificação projetiva possa ser usada para
isto, que Bion leva em conta recordações que possam surgir numa sessão.
Com esta diferenciação, vemos que memória e desejo caminham lado a lado,
faço esta aproximação para podermos entender porque Bion considera nociva
também a memória. Como ilustração, podemos considerá-la como resistên-
cia do analista a viver uma experiência emocional com o seu paciente, ou,
ainda, como expressão da identificação projetiva que o mesmo possa es-
tar fazendo a fim de impedir uma nova experiência emocional em análise.
Cabe lembrar que os pacientes buscam formas de acolhimento na
mente do analista para se sentirem, muitas vezes, cuidados, compreendidos,
ou até mesmo como forma de teste para saberem se podem confiar. Neste sen-
tido, a patologia do paciente estará sendo depositada, com certa frequência, na
mente do analista. Um cuidado especial deve ser dado a isto.
A transferência é um fenômeno universal e a psicanálise instru-
mentalizou. Klein (1943/1989, p.51) sugeriu atenção aos movimentos que ocor-
rem dentro de uma análise, e aqui estou pondo em relevo o conceito de fantasia
inconsciente. “...As figuras, que o analista vem a representar na mente do pa-
ciente, sempre pertencem a situações específicas e é só levando em conside-
ração essas situações que podemos compreender a natureza e o conteúdo dos

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LEITURA – ARMANDO COLOGNESE
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
JÚNIOR

sentimentos transferidos para o analista... o que significa dizer que: devemos


compreender o que a análise inconscientemente representa na mente do pa-
ciente em cada momento específico...” Acredito que Bion não concordava ple-
namente com este final; acredito que ele diria que somos capazes de mostrar
ao paciente como ele desenvolve padrões específicos de comportamentos (ou
padrões de reações) a partir de um envolvimento e experiência com o analista.
Mesmo assim, acredito que seja devido à fantasia inconsciente que os
movimentos ocorrem e devido a progressos cognitivos e desenvolvimento da
simbolização que situações do passado serão atualizadas numa sessão através
da transferência.
Ora, se o que se repete são conflitos infantis - atualizados - não há o
porquê de se tentar reconstruir situações do passado numa sessão analítica.
As interpretações transferenciais já são um modo de tocar no passado e a pos-
sibilidade desta repetição, bem acolhida e interpretada pelo analista, facilitará
recordações e consequentes elaborações. Só desejo e memória, no sentido de
impedirem a vivência emocional, necessária para o paciente, com o analista,
forçarão “recordações” e contato do paciente com sua história.
Quando Bion diz que devemos nos afastar da memória e do desejo, o
que sugere a disponibilidade de vivência por parte do analista da experiên-
cia emocional, compreendo que não se trata de uma nova técnica, mas, sim,
de uma questão técnica há muito postulada. Vejo nisto uma possibilidade de
interpretação e não tradução do material inconsciente trazido pelo paciente.
Costumo dizer que estas são interpretações na transferência e as outras seriam
interpretações da transferência - ou seja, sem o devido compartilhamento da
experiência emocional proposta e necessitada pelo paciente.

REFERÊNCIAS
BION, W. R. (1967). Notas sobre memória e desejo. In: Melanie Klein hoje. v.2.
Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 30-4.
BRENMAN, E. (1980). O valor da reconstrução na psicanálise de adulto. In: Me-
lanie Klein: Evoluções. São Paulo: Escuta, 1989, p. 125-141.

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
LEITURA – SEM MEMÓRIA E SEM DESEJO 193
MALCOLM, R. R. (1986). “Interpretação: O passado no presente”. In: Melanie
Klein hoje. v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 89-105.
PICK, I. B. (1985). “Elaboração na contratransferência”. In: Melanie Klein hoje.
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KLEIN, M. (1943). “Transferência”. In: Melanie Klein: Evoluções. São Paulo: Es-
cuta, 1989, p. 49-53.
STRACHEY, J. (1934). “A natureza da ação terapêutica da psicanálise”. Interna-
tional Journal of Psichoanalysis, 15: 931-983.

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LEITURA – ARMANDO COLOGNESE
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JÚNIOR

Comentário
Na quarta discussão que Bion teve em Los Angeles, no Veterans Adminis-
tration Hospital, Brentwood, em abril de 1976[2], o autor abre a discussão
dizendo:

BION – Ver pacientes muitas vezes, como geralmente fazemos, torna mais di-
fícil que se adquira aquele grau de ingenuidade no qual poderíamos vê-los a
cada vez como se jamais os tivéssemos visto antes. É difícil pensar, “Ah, já vai
começar este negócio outra vez – ontem, anteontem, por semanas, meses e
anos”. Não pode ser assim na realidade porque o paciente que vimos ontem,
ou na semana passada, ou no mês passado, não pode ser a mesma pessoa que
vamos ver amanhã. Deveríamos nos aproximar o mais possível de sentir que
esta é a primeira vez que vemos aquele paciente. É difícil, porque nós sempre
sentimos que deveríamos conhecer sua história e assim por diante, e tudo
mais – um refluxo do nosso próprio treinamento médico. Ele é útil por duas ou
três sessões, mas depois disso, esta informação que obtemos através de ouvir
dizer não é importante. Dessa época em diante poderíamos ser lançados em
uma essência diversa – não a essência da história do paciente.
Questionador – O senhor está dizendo que, na verdade, não toma notas. Cada
vez que a pessoa vem ela é uma nova pessoa e só importa aquilo que está pre-
sente naquele momento.
BION – Sim. Como havia dito, Platão assinalou que a linguagem é extre-
mamente enganadora – ela aparenta ser precisa, exata, mas de fato ela não
é mais exata do que a pintura ou desenho. Uma pintura não te conta coisa
alguma – ela tem que ser interpretada. Charcot, que tanto impressionou a
Freud, disse que você tinha que seguir observando um paciente, até que um
padrão começasse a se impor. Na medicina física, os sentidos de um médico,

2. Conversando com Bion, livro da Imago Editora, Rio de Janeiro, 1992, reproduzindo, como explica
Francesca Bion, quatro discussões, de duas horas cada, com intervalos de uma semana cada, no
Veterans Administration Hospital, Brentwood, Los Angeles, em abril de 1976, com um grupo de
aproximadamente vinte e cinco pessoas, composto de residentes de psiquiatria, psicoterapeutas
e psicólogos.

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ou seja, o toque, o cheiro e assim por diante, devem ser tão agudos que ele
não lê livros, mas pessoas. Em relação a estes sintomas mentais, o que pode-
mos dizer? Neuróticos? Psicóticos? Isto não nos diz nada. A diferença entre
as pessoas aparece como tão incrível que parece demandar uma descrição;
então a gente lança mão dessa divisão grosseira. Temos que fazer um pres-
suposto, que existe uma coisa e esta seria a mente... ... A ideia que existe
uma mente ainda persiste, mas vamos adiante. Freud sugeriu que quando
uma pessoa ‘esquece’, o vazio – o espaço de nossa ignorância – é tão mal-
quisto que ele é preenchido com ideias falsificadas, paramnésia. Mas já que
não sabemos nada sobre a mente, será que o todo do trabalho de Freud não
é uma elaborada paramnésia, construída porque ele não podia tolerar ser
ignorante? Estou tentando voltar ao que é básico – até mesmo questionando
a existência da própria mente. Assim que ficarmos convencidos de que nada
mais perto de tal suposição vai satisfazer esta intrigante pergunta, aí então
poderemos fazer distinções a respeito do que parece como sendo compor-
tamento da mente... ... É possível encontrar uma explicação racional para
qualquer coisa, mas, contrastando com isso, ajudaria caso pudéssemos ver
o irracional. Então, poderia ser mais fácil entender por que um cirurgião de
sucesso, que faz operações cirúrgicas durante anos, tem de repente aquilo
que denominamos um ‘colapso’, e não pode mais enfrentar uma sala de ci-
rurgia. Será que é um ‘colapso’? Ou uma cura? Ou uma irrupção? Ou algo
que arrebentou?Ou um sensacional avanço? Em outras palavras: para onde
está indo a pessoa? Será que o cirurgião está se permitindo ver algo que ele
jamais se permitiu ver antes – o quão é cruel, violento e brutal? Usando a
analogia da medicina comum, é como se existisse algum foco de infecção
que agora começou a emergir para a pele. É pena, mas até onde sabemos,
a mente não tem pele, ainda que Freud falasse sobre o id, ego e superego –
uma tosca, porém astuta, subdivisão da mente em várias partes.
Questionador – Se o senhor acha que toda sessão é nova, por que se preocu-
par em fazer anamnese?
BION – Eu não faço. De tempos em tempos, costumava manter anotações,
mas depois, quando olhava para elas, o que via? “Terça-feira”. Mas sobre que
diabos é isto? Não tenho a menor ideia. Gostaria de tomar uma nota que pelo

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menos me lembrasse algo. Então a primeira pré-condição é ser capaz de ver,


ouvir, cheirar, sentir algo que possa ser relembrado – mas não sei qual a no-
tação que devemos usar. Se fosse um artista, poderia desenhar ou pintar. Se
fosse um músico, poderia compor uma peça musical. Mas o que os psiquia-
tras têm a fazer a respeito disso?...
BION – Para podermos captar esses assinalamentos, estes sinais de alguns
elementos mentais, arcaicos, temos que estar em um estado de mente pe-
culiar, a margem entre estar conscientemente acordado, capaz de verbalizar
as impressões de alguém e estar adormecido, é extremamente pequena. É
fácil estar no estado de mente onde você escorrega para o sono, lá no gabi-
nete onde se supõe que você esteja trabalhando. Também é igualmente fá-
cil escorregar para um estado horrível de estar intelectualmente acordado.
É muito fácil de se conseguir o estado correto de mente, ou seja, a fronteira
entre os dois; a gente está sempre oscilando acima e abaixo dela. Infeliz-
mente, é comparativamente raro estar no comprimento de onda correto,
que para ser reconhecido tem que ser experimentado. Entretanto, a maio-
ria dos pacientes é capaz de tolerar esta raridade, ou seja, a exceção que às
vezes conseguimos. (BION, 1992, p. 54)

Perto de quinze anos preparei um breve trabalho sobre a questão da


memória e o desejo, valendo-me do pensamento de Bion.
Quis refletir algo sobre ele após este tempo e achei interessante citar
Bion, como o fiz acima.
De certa maneira minha prática clínica confirmou, reafirmou e apri-
morou o que havia estudado e percebido naquele momento.
Estou mais seguro que é necessário estar presente à sessão de análise
com o paciente que nos procurou naquele dia. Receber e, se possível, vivenciar
as emoções implícitas e explícitas que ele traz naquele momento. Se, como de-
fino, a transferência é a revivência emocional primitiva inconsciente, com um
objeto que não é o original (COLOGNESE, 2003), percebo que somente assim
podemos verbalizar algo sobre seu estado de mente daquele dia. Mas claro, é
necessário preparo, muita análise pessoal e ainda sim respeito às diferenças e
limitações de ambos que compõem a dupla em ação.

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REFERÊNCIAS
BION, W.R. Conversando com Bion. Rio de Janeiro: Imago, 1992, 242 p.
COLOGNESE JR. A. A compreensão na transferência: Algumas reflexões sobre
a importância da identificação Projetiva na transferência como
situação total. In: A trama do equilíbrio psíquico: a questão econô-
mica e as relações de objeto. São Paulo: Edições Rosari (Torre de Ba-
bel), 2003. 126p.

Armando Colognese Júnior


R. Cel. Artur de Paula, 59 conj 102
colognesejr@uol.com.br

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Entrevista
Entrevistado: Ede de Oliveira Silva
MARINA FIBE DE CICCO E TALITA NACIF

Nesta edição comemorativa de 20 anos da Revista Boletim em Psicanálise foi


sugerido entrevistar alguém que tenha participado ativamente de sua fun-
dação e contribuído para dar continuidade a este projeto, participando da
comissão editorial ou publicando artigos. A entrevista tem como norte en-
tender um pouco mais da Revista Boletim em Psicanálise e obter ideias de
como melhorá-la cientificamente. Com a participação de Ede neste número
comemorativo, penso que a história do nascimento e desenvolvimento da
revista ficará mais delineada assim como as ideias de aperfeiçoá-la cienti-
ficamente. Boa leitura!

ENTREVISTA
BFP: Nos disseram que a revista do Departamento Formação em Psicanálise
surgiu de uma maneira bastante “lúdica”. Foi da ideia de alguns membros, de
uma determinada turma e de um determinado ano do Curso Formação em
Psicanálise em publicar um jornalzinho para que eles pudessem se comunicar
entre si e com os alunos. Você sabe disso? Como surgiu a revista?
Ede: Houve uma revista muito antes do atual Boletim e era chamada de PA-
THOS. Pode ser que você ainda encontre alguns exemplares no Sedes ou com
alguns dos professores, pois as minhas doei-as ao Sedes. No começo as edições
Médico com formação
eram um tanto artesanais. Esta revista (PATHOS) deu lugar ao Boletim. Na sua psicanalítica no Sedes, no
configuração inicial, em 1992, você pode ver como era diferente do formato Departamento Formação em
Psicanálise, hoje faz parte
atual. Seria interessante que você pudesse ver as capas de rosto deste primeiro do corpo docente deste
ano e comparar as modificações que ocorreram daí em diante. No primeiro mesmo Departamento.

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ENTREVISTA – MARINA FIBE DE CICCO E TALITA NACIF

ano de publicação tinha algo de lúdico, como você afirmou, e também artesa-
nal, pois tinha informações sobre o cotidiano, cursos, fofocas e os eventos dos
semestres e assim por diante.

BFP: Estamos pensando em fazer duas revistas anuais a partir de 1913. O que
você pensa disto? Você lê a revista e sente falta de algo? Colocamos esta ques-
tão porque é nossa vontade revigorá-la. E uma ótima maneira é perguntando
aos que bem conhecem o Departamento e sua história.
Ede: Acho que duas vezes por ano seria o ideal, mas, às vezes não temos ar-
tigos suficientes para fechar as duas revistas. Acho que nosso Departamento
produz pouco e, lógico, eu me incluo nesta preguiça coletiva. Seria interes-
sante que você pudesse colher outras informações com outras comissões
editoriais que fizeram parte desta história e assim teria uma ideia mais li-
near deste percurso.

BFP: Em nossa última reunião, nós da comissão da revista, imaginamos a pos-


sibilidade dela ser digital/virtual ao invés de ser impressa. O que voce acha?
Ede: Eu sou da moda antiga e, portanto, gosto de folhear livros e revistas com
minhas mãos. Ainda não me acostumei com o e-book, por exemplo. Não acre-
dito que este vai substituir os livros de papel. Sou um dinossauro? Por que não
pode ser feito em dois formatos? Agradaria a velha guarda e a nova também.
Acho muito legal a iniciativa de vocês em querer revigorá-la. Tive uma ideia
agora que pode virar sugestão: de vocês fazerem um histórico da revista desde
a sua criação ilustrando com as várias páginas de rosto (miniaturizada) evolu-
tivas neste número comemorativo. É viável?

BFP: Após lermos o primeiro número da revista, sugerido por você, pensa-
mos que seria interessante que você também comentasse o seguinte: Muitos
dos temas dos artigos publicados neste primeiro número, em 2000, ainda es-
tão em debate hoje. As (novas patologias, a necessidade do analista ‘inovar’ e
se repensar, considerando o contemporâneo, os déficits de simbolização, etc.).
O que você acha que uma revista de psicanálise deve conter em tempos atu-
ais, qual o seu papel na formação/transmissão/divulgação de conhecimentos

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ENTREVISTA – ENTREVISTADO: EDE DE OLIVEIRA SILVA 201
psicanalíticos teóricos e práticos? Ou: como uma publicação deste tipo se in-
sere no universo de publicações psicanalíticas, e como o Departamento pode
fazer para que seja uma publicação expressiva?
Ede: Escrevi um artigo intitulado “A Importância do Presente na Clínica Psi-
canalítica: Clínica da Pulsões? no Boletim Formação em Psicanálise, n. 9, vol. 8,
1999, p.27, onde falava de uma certa mudança de eixo da psicanálise já que as
demandas estavam exigindo isso. A psicanálise foi obrigada a começar a pri-
vilegiar o presente (o atual) em relação ao passado histórico do paciente, como
era feito com as neuroses, isto é, a prática clínica estava exigindo uma nova
abordagem em virtude das novas demandas por conta do “ novos sofrimen-
tos da alma”, que atualmente têm grassado, de uma forma quase epidêmica,
na população em geral. Portanto, uma nova abordagem e um novo desafio se
descortinam em nossa frente, impondo, de uma maneira peremptória, mu-
danças na prática clínica para que pudéssemos dar conta, dentro do possível,
destas novas demandas. Se utilizássemos a metáfora que Freud utilizou fa-
zendo a comparação entre o trabalho analítico, a escultura e a pintura, hoje
estaríamos mais voltados a esta última, por conta do imediatismo exigido por
estas novas demandas. A psicanálise teria de se adaptar a estes novos movi-
mentos ou então correria o risco de ficar paralisada, no meio do caminho, ao
não acompanhar estas mudanças.
O mundo mudou e, portanto, o sujeito também e, por efeito dominó,
as demandas também mudaram, como já afirmei. Birman já vinha alertando
sobre estas mudanças desde o fim da década de 1980 do século passado. Hoje as
intensidades e os transbordamentos povoam os nossos consultórios, caracteri-
zados por pânicos, somatoses, drogadições (com drogas legais ou ilegais), vícios
de qualquer natureza, compulsões, depressões, etc. Aquelas patologias clássi-
cas (de saudosa memória) estão rareando em nossos consultórios. A solução
exigida para estes padecimentos tem de ser imediata e isto vai na contramão
do processo psicanalítico clássico. Hoje grande parte do nosso trabalho psica-
nalítico se restringe a dar nomes aos sentimentos, às emoções, às compulsões
e às dores que afligem os nossos pacientes. Eles exigem o alívio imediato dos
seus sofrimentos, da mesma maneira que encontram no uso de medicamentos,
de drogas e vícios de qualquer natureza, isto é, temos de fazer uma verdadeira

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maternagem, pois o que encontramos, na maioria dos casos, é uma pobreza


simbólica e consequente pobreza em sonhos e fantasias, deixando-os com-
pletamente vulneráveis às intensidades. O imediatismo da solução é a tônica
para livrá-los de um sofrimento psíquico indescritível. A procura deste cami-
nho mais curto para obter o alívio desejado (descarga) produziu uma intensa
procura por alívio semelhante àquele que ocorreu no século XIX em relação
a Histeria.A impossibilidade de conter as suas demandas provoca efeitos ca-
tastróficos. Com este imediatismo dominado pelo imperativo do gozo, vemos
consultórios psicanalíticos se esvaziarem em favor de terapias alternativas que
prometem mundos e fundos. Acho que a psicanálise está num impasse, pois
tem de agregar ao método antigo (transferencial) um outro que diz respeito
ao atual , ao presente, onde o analista é a REFERÊNCIA direta das pulsões do
paciente. No livro mais recente do Birman (Sujeito na contemporaneidade), ele
traz um apanhado geral do que tem dito nas duas últimas décadas.
Portanto, a formação psicanalítica tem de desenvolver estes dois vér-
tices, articulando o passado e presente do paciente para tentar da conta das
atuais demandas. Assim uma revista de psicanálise teria de trabalhar em cima
destes dois eixos para poder lidar com este novo sujeito e, assim sendo, não
perderia o bonde da história.

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Citações
Sobre formação

“Não posso responder a esta pergunta, mas podem ver a resposta por sua conta
[...] não me proponho a tentar tomar o lugar da sua inteligência.”
Wilfred Bion

“Ousem fazer operar a sua imaginação especulativa, agrade ou não à sua cul-
tura” [...] “Se por exemplo, este grupo impedisse o desenvolvimento do pen-
samento e do crescimento mental, penso que então morreria.”
Wilfred Bion

“Eu tinha os maiores escrúpulos de consciência por causa de todas essas in-
frações a uma regra fundamental - e a muitas outras que não posso enume-
rar aqui - até que recebi palavras tranquilizantes de pessoas investidas de
autoridade: os conselhos de Freud não pretendiam ser, de fato, mais do que
recomendações para principiantes, que deveriam protegê-los das inépcias e
dos fracassos mais grosseiros, não continham quase nenhuma indicação de
natureza positiva e, por conseguinte, grande liberdade era deixada a esse res-
peito à avaliação pessoal do analista, na medida em que pudesse explicar a si
mesmo as consequências metapsicológicas de sua conduta.”
Sándor Ferenczi

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CITAÇÕES – SOBRE FORMAÇÃO
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“Na verdade, não sei se devo invejar nos meus colegas mais jovens a faci-
lidade que têm para entrar na posse de tudo aquilo que a geração prece-
dente conquistou ao preço de duros esforços. Às vezes, parece-me que não
é a mesma coisa receber uma tradição já feita e acabada, por válida que
seja, ou estabelecer uma por si mesmo.”
Sándor Ferenczi

“Ninguém pode dizer como você deve viver sua vida ou o que deve pensar ou
que língua deve falar. Portanto, é absolutamente essencial que o analista forje
para si a língua que ele conhece, que sabe como usar, e cujo valor reconhece.”
Wilfred Bion

“Venha ao mundo com criatividade, crie o mundo; é apenas o que você cria o
que possui significado para você. Para a maior parte das pessoas esta última
parte é que deve ser encontrada e posta em prática.”
Donald Winnicott

“Tive minhas lealdades iniciais a Freud, Melanie Klein e outros, mas, por fim,
a lealdade acaba se voltando para nós mesmos, e isso deve acontecer com a
maioria de meus colegas.”
Donald Winnicott

“Sobre Bion e coisas do gênero. Gosto da maneira como ele vai em frente, seguindo
seu próprio caminho, e sou daqueles que esperam bastante dele. [...] Gosto da ma-
neira como Bion aborda esse assunto, e posso aprender algo com ele. [...] Bem, se
esse é o caminho dele, ‘é isso que me dá na telha agora’, como diz a canção popular.”
“Naturalmente, começo a partir de minha própria linguagem, assim como
você começa a partir da sua”
Donald Winnicott

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CITAÇÕES – SOBRE FORMAÇÃO 205
“Não serve para nada aprender o meu vocabulário; ele poderia ser bastante útil
como fase de transição, como ponto de apoio momentâneo enquanto você percorre
o próprio caminho no sentido do descobrimento do seu próprio vocabulário e de
como empregá-lo. É por isso que me parece que a minha resposta a estas pergun-
tas não tem importância nenhuma. É simplesmente uma noção que depois vai
agir como obstáculo para as suas próprias descobertas. Analogamente, é bastante
útil saber o que é esta cultura, mas deixa de sê-lo se a cultura ocupa o seu lugar. O
espaço que você ocupa não pode ser ocupado por outro sem que você se sacrifique.”
Wilfred Bion

“É como realizar uma intervenção cirúrgica e ter que afiar o bisturi e torná-lo per-
feitamente eficiente enquanto estamos operando. Assim, enquanto vocês exerci-
tam a profissão analítica, devem também exercitar a arte de afiar e tornar exato
o vocabulário que utilizam. É importante que estejam certos do que é o seu voca-
bulário, aquelas poucas palavras que lhes são verdadeiramente úteis, e mantê-las
atualizada e em condições tais que possam transmitir o que pretendem dizer.”
Wilfred Bion

“Façam como eu, não me imitem!”


Jacques Lacan

“... fazer o ‘contrário’ do que o mestre [Freud] mandava era o melhor jeito de
seguir o espírito de sua letra, ao passo que obedecer às indicações técnicas
era traí-lo sem remédio” [...] “a falta de ética não está em fazer diferente, mas
em não saber o que fez”
atribuído ao pensamento de Jacques Lacan

É “... preciso que cada psicanalista reinvente, a partir do que ele extraiu de sua
própria análise, a maneira pela qual a psicanálise pode perdurar.”
Jacques Lacan

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CITAÇÕES – SOBRE FORMAÇÃO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

“Durante alguns anos - quando do meu treinamento nos Estados Unidos


na psicologia do ego e minha formação inglesa na teoria das relações de
objeto - eu acreditava que era possível adquirir uma técnica que somente
fracassaria se eu fracassasse em usá-la adequadamente. Acreditava que
havia pelo menos um modelo que, se apreendido, poderia situar o clínico
no caminho certo para entender seu analisando. Em alguns aspectos não
estou decepcionado. Ambos os modelos realmente garantem técnicas bas-
tante úteis para a tarefa clínica. Mas trabalhar com um analisando é, de
longe, mais complexo que qualquer teoria sobre a vida psíquica. Os mo-
delos de Hartmann, Klein, Kohut e Lacan orientam com proveito o clínico
por um estrito enfoque, alcançando uma tautologia essencial, enquanto o
psicanalista usa tais modelos como redes para captar a sua própria som-
bra. O que pensar sobre a extraordinária quantidade do nosso trabalho
que está além de nossa compreensão? Será irrelevante porque não com-
preendemos? Não seremos passíveis de cometer um considerável número
de erros em nosso trabalho ao permitir silêncio demais numa ocasião, e
não proporcionar suficiente silêncio em outra; de uma interpretação que
está completamente fora de propósito, para uma que está em parte cor-
reta, mas errada na essência? Concluímos daí que existirá uma técnica
em algum lugar que podemos aprender e que irá nos absolver desta in-
clinação para o erro?”
Christopher Bollas

“Claro que eu passei por considerados cursos de formação, tanto na velha Ta-
vistock quanto no Instituto de Psicanálise, aprendendo mais e mais teorias
que eu considerava precisar saber. Mas só muito tempo depois de eu ter ter-
minado o meu curso de formação e de já ter começado a me recuperar dessa
experiência traumática, passei, então, realmente a pensar que começava a ter
uma ideia de sobre o que se tratava. Ainda não sinto-me satisfeito com rela-
ção a como essa impressão era ou sobre o modo como eu a reuni — este é um

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CITAÇÕES – SOBRE FORMAÇÃO 207
motivo pelo qual eu gostaria de continuar a debater o assunto aqui. [...] Como
psicanalista, muito me foi ensinado sobre a interpretação dos sonhos. A única
coisa sobre isto que não ficou muito clara pra mim é: o que é o sonho? Porque
quando me dizem que o paciente teve um sonho, isto me é dito por uma pes-
soa que está em um estado “acordado” de mente.”
Wilfred Bion

“Espanta-me, por vezes, que os analistas parecem realmente acreditar que eles
terão permissão para ser psicanalistas — eu não sei porquê.”
Wilfred Bion

“Antes de mais nada, um princípio: o psicanalista só se autoriza de si mesmo.


[...] Isso não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua for-
mação. [...] mas um fato: nenhum ensino fala do que é a psicanálise.”
Jacques Lacan

“... foi nos círculos dos didatas que se postulou e se professa a teoria que con-
fere como finalidade à análise a identificação com o eu do analista. Ora, não
importa em que grau suponhamos que um eu tenha conseguido igualar-se à
realidade da qual supostamente deve tirar medida, a sujeição psicológica em
que assim se alinha a conclusão da experiência é, se nos lerem direito, o que
há de mais contrário à verdade que ela deve tornar patente: a saber, a estra-
neidade dos efeitos inconscientes.”
“... nenhuma espécie de verdade pode ser deslindada sob a forma de um saber
generalizável e sempre verdadeiro”
“... o inconsciente escapa totalmente a este círculo de certezas no qual o ho-
mem se reconhece como eu.”
Jacques Lacan

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CITAÇÕES – SOBRE FORMAÇÃO
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“O analista só se autoriza de si mesmo, isso é óbvio. Pouco lhe importa uma


garantia que minha escola lhe dê, provavelmente com a irônica sigla AME.
Não é com isso que ele opera.
Aquilo de que ele tem de cuidar é que, a autorizar-se por si mesmo, haja
apenas o analista.
Pois minha tese, inaugural ao romper com a prática mediante a qual pretensas
Sociedades fazem da análise uma agregação, nem por isso implica que qualquer
um seja analista.
Pois, no que ela enuncia que é do analista que se trata, supõe que ele exista.
Autorizar-se não é auto-ri(tuali)zar-se.
Pois afirmei, por outro lado, que é do não-todo que depende o analista.
Não-todo ser falante pode autorizar-se a produzir um analista. Prova disso é
que a análise é necessária para tanto, mas não é suficiente.
Somente o analista, ou seja, não qualquer um, autoriza-se apenas de si
mesmo.” (1973/2001)
Jacques Lacan

“Não acho que a minha explicação importe. Eu chamaria atenção para a na-
tureza do problema.”
“Quando sinto uma pressão – seria melhor eu estar preparado no caso de você
me fazer algumas perguntas” –, aí eu digo, ‘às favas com isto, não vou procu-
rar este negócio em Freud nem em lugar nenhum, nem mesmo na minha
afirmação anterior – eu vou tolerá-lo’, Mas é claro que eu estou pedindo que
você também o tolere.”
Wilfred Bion

“Vou tentar te dar a chance de preencher o vazio que eu deixei.”


Wilfred Bion

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CITAÇÕES – SOBRE FORMAÇÃO 209
REFERÊNCIAS

BION, W. R. Conversando com Bion. Rio de Janeiro: Imago, 1992, 242p.

BION, W. R. (1977) Seminários Italianos (Renzo Birolini, trad.). Textos não pu-
blicados, 71 p.

FERENCZI, S. Obras Completas: Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes,


1992, 290 p.

FERENCZI, S. Obras Completas: Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes,


1992, 290 p.

BION, W. R. Evidência. Revista Brasileira de Psicanálise, v.19, n.1, p.129-41, 1985.

WINNICOTT, D. W. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1994, 98p.

WINNICOTT, D. W. O Gesto espontâneo, 2 ed, São Paulo: Martins Fontes, 2005, 244p.

WINNICOTT, D. W. O Gesto espontâneo, 2 ed, São Paulo: Martins Fontes, 2005, 244p.

BION, W. R. (1977) Seminários Italianos (Renzo Birolini, trad.). Textos não pu-
blicados, 71 p.

BION, W. R. (1977) Seminários Italianos (Renzo Birolini, trad.). Textos não pu-
blicados, 71 p.

LACAN, J. Conferência A terceira (1974). Cadernos Lacan. Porto Alegre: APPOA,


2002. v. 2.

GOLDENBERG, R. Corte e costura. Revista Viver Mente & Cérebro. Coleção Me-
mória da Psicanálise. Lacan, n. 4, São Paulo, 2005, p. 40-45.

INTERNO Boletim 2013.indd 209 24/03/2014 14:33:15


210 BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE
CITAÇÕES – SOBRE FORMAÇÃO
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

LACAN, J. Congresso sobre a transmissão (1978). Rev. Letra Freudiana, ano XIV,
n. 0, p. 65-67, s/d.

BOLLAS, C. Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter, 1998, 226p.

BION, W. R. The Tavistock Seminars. London: Karnac, 2005, 118p.

LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.


Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, 608p.

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, 944p.


______ . O seminário livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 3
ed, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, 420p.
______ . O seminário livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 3
ed, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, 420p.

LACAN, J. Nota Italiana. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003, 608p.

BION, W. R. Conversando com Bion. Rio de Janeiro: Imago, 1992, 242p.

BION, W. R. Conversando com Bion. Rio de Janeiro: Imago, 1992, 242p.

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Normas
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO[1]

1. LINHA EDITORIAL
O Boletim Formação em Psicanálise, revista do Departamento Formação em Psi-
canálise do Instituto Sedes Sapientiae, tem por proposta editorial a divulgação
de trabalhos relacionados à psicanálise e campos afins, numa tendência con-
temporânea de integração e complementaridade. Nesse sentido, valorizamos
a diversidade na busca de articulações com outras áreas de conhecimentos,
tendo como finalidade maior a busca da compreensão do sofrimento humano
e a constante (re)construção metapsicológica.

2. NORMAS GERAIS
Os originais devem ser enviados para a Comissão Editorial da revista Boletim
Formação em Psicanálise (endereço logo abaixo). Se o material estiver de acordo
com as normas estabelecidas pela revista, ele será submetido à avaliação do
Conselho Editorial. O artigo será lido por dois membros do Conselho, que po-
derão rejeitar ou recomendar a publicação de forma direta ou com sugestões
para reformulações. Caso não haja consenso, haverá uma terceira avaliação.
Se dois conselheiros recusarem o material, este será rejeitado para publicação.
Os originais não serão devolvidos, mesmo quando não aprovados. Sendo o ar-
tigo aprovado, sua publicação dependerá do programa editorial estabelecido.

1. Baseadas no estilo de normalizar de acordo com a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técni-
cas – NBR 10.520, 2002).

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NORMAS
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

Endereço para encaminhamento dos trabalhos


Instituto Sedes Sapientiae
Departamento Formação em Psicanálise
Rua Ministro de Godói, 1484
05015-900 – São Paulo, SP / Brasil
Tel: (11) 3866 2730

3. TIPOS DE TRABALHOS
Além de artigos, a revista publica leituras (comunicações, comentários), rese-
nhas de livros, conferências, entrevistas e traduções.
A tradução deve apresentar também uma cópia do trabalho original,
com todas as indicações sobre a edição e versão de que foi traduzida, acompa-
nhada da autorização do autor.

4. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS


O original deverá ser enviado em uma cópia impressa, acompanhado de uma
cópia eletrônica em CD no padrão Word for Windows 6.0.

Padrão gráfico indispensável na digitação do texto


▪ o texto deverá ser digitado em uma só face (frente);
▪ fonte Times New Roman;
▪ corpo 12;
▪ espaço duplo entre linhas;
▪ mudança de parágrafo na primeira linha;
▪ não utilizar recursos especiais de edição na cópia em CD (macros,
justificação, etc.);
▪ utilizar itálico para palavras estrangeiras ou para destaque de
palavras;
▪ não usar sublinhado;
▪ o negrito deve ser restrito ao título do artigo e aos subtítulos das
seções.

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
NORMAS 213
Folha de rosto
Deverá constar o título do trabalho em português; nome do autor e sua quali-
ficação (3 linhas no máximo); endereço (com CEP); telefone (com DDD); en-
dereço eletrônico (e-mail). O nome ou qualquer identificação do autor deverá
constar apenas na página de rosto de modo a garantir o anonimato do autor
durante o processo de avaliação do seu trabalho.

Folha de resumo
Deverá constar o título do trabalho em português; resumo em português (no
máximo 10 linhas) com palavras-chave (no mínimo 3 e no máximo 5); título
do trabalho em inglês; abstract com keywords (no mínimo 3 e no máximo 5).
Os resumos e as palavras-chave devem ser digitados em itálico.

5. CITAÇÕES
As citações são feitas pelo sobrenome do autor ou pela instituição responsável
ou ainda, caso a autoria não seja declarada, pelo título de entrada, seguido da
data de publicação do documento, separado por vírgulas e entre parênteses.

Citação textual
▪ Até 3 linhas – deve ser inserida no corpo do texto, entre aspas e com
indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de refe-
rência. Exemplo: Ferraz (2000, p. 20) considera “como tipicamente
perversos certos atos ou rituais praticados com o consentimento
formal do parceiro”.
▪ Com mais de 3 linhas – deve aparecer em destaque e com recuo de
margem esquerda de 4 cm, sem aspas, espaço simples, corpo 11 e
com indicação do(s) autor(es), da(s) página(s) e do ano da obra de
referência. Exemplo:

Freud (1905/1980, p.86) ensina:

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214 BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE
NORMAS
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

Esse último exemplo chama atenção para o fato de que é essencialmente a uni-
ficação que jaz ao fundo dos chistes que podem ser descritos como “respostas
prontas”. Pois a réplica consiste em que a defesa, ao se encontrar com a agressão,
“vira a mesa sobre alguém” ou “paga a alguém com a mesma moeda” – ou seja,
consiste em estabelecer uma inesperada unidade entre ataque e contra-ataque.

Citação indireta
O sobrenome do autor é apresentado dentro dos parênteses em letras maiúscu-
las seguidas, seguido do ano da publicação. Exemplo: Em O mal-estar na civili-
zação Freud faz um esforço para circunscrever o mal-estar na modernidade ao
tecer seus comentários sobre as relações entre sujeito e cultura (BIRMAN, 1997).

Citação de autor
▪ No caso de autores cuja obra é antiga e foi reeditada, citar o sobre-
nome do autor com a data publicação original, seguida da data
da edição consultada. Exemplo: Freud (1915/1980) ou (FREUD,
1915/1980).
▪ No corpo do texto deverá constar o sobrenome do autor acrescido
do ano da obra. Exemplo: Reik (1948).
▪ Fora do corpo do texto (citação indireta) o sobrenome do autor deve
vir em letras maiúsculas, seguido do ano da publicação entre pa-
rênteses. Exemplo: (REIK, 1948).
▪ No caso de dois ou três autores os sobrenomes devem ser ligados
por “&” no corpo do texto e por “;” fora do corpo do texto. Exemplo:
Ades & Botelho (1993) ou (ADES; BOTELHO, 1993).
▪ Caso tenha mais de três autores, deverá aparecer somente o sobre-
nome do primeiro, seguido da expressão “et al.”. Laing et al. (1974)
ou (LAING et al., 1997). Obs.: Na lista final de referências todos os
nomes dos autores deverão ser citados.
▪ Em caso de autores com o mesmo sobrenome, indicar as iniciais
dos prenomes. Exemplo: Oliveira, L. C. (1983) e Oliveira V. M. (1984)
ou (OLIVEIRA, L. C., 1983; OLIVEIRA V. M., 1984).

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
NORMAS 215
▪ Se houver coincidência de datas de um texto ou obra do mesmo
autor, distinguir com letra minúscula, respeitando a ordem alfa-
bética do artigo. Exemplo: Freud (1915a, 1915b, 1915c) ou (FREUD,
1915a, 1915b, 1915c).
▪ Caso o autor seja uma entidade coletiva, deve ser citado o nome
da entidade por extenso. Exemplo: American Psychological Asso-
ciation (2000).

Citação de citação
Utilizar a expressão “citado por”. Exemplo: Para Rank (1923) citado por Costa
(1992)...

Citação de depoimento ou entrevista


As falas são apresentadas no texto seguindo-se as orientações para “citações
textuais” e devem vir em itálico. Exemplo: O relato a seguir ilustra bem esse as-
pecto: “O fim da gestação é uma morte”.

Citações de informações obtidas por meio de canais informais


(aulas, conferências, comunicação pessoal, endereço eletrônico
Acrescentar a expressão “informação verbal” entre parênteses após a citação
direta ou indireta, mencionando os dados disponíveis em nota de rodapé. Exem-
plo: Freud foi influenciado pelas idéias de Darwin. (Informação verbal).
Obs.: Não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.

Citação de trabalhos em vias de publicação


Cita-se o sobrenome do(s) autor(es) seguido da expressão “em fase de
elaboração”. Exemplo: Besset (em fase de elaboração) ou (BESSET, em fase de
elaboração)
Obs.: É necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.

Citação de eventos científicos (Seminários, Congressos,


Simpósios, etc) que não foram publicados
Proceder da mesma maneira que para canais informais.

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NORMAS
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

Citação de Homepage ou Website


Cita-se o endereço eletrônico de preferência após a informação e entre parên-
teses. Exemplo: (www.bvs-psi.org.br)
Obs.: Não é necessário listá-lo na relação de Referências no final do texto.

6. NOTAS DE RODAPÉ
Caso sejam indispensáveis, as notas devem vir na mesma página em que fo-
rem indicadas, usando o programa automático do Word. As referências dos
autores citados no texto devem ser apresentadas no final do texto, NÃO em
notas de rodapé.

7. REFERÊNCIAS
Devem vir no final do texto, com o título ‘Referências’, relacionadas em or-
dem alfabética pelos sobrenomes dos autores em letras maiúsculas, seguido
das iniciais do prenome e cronologicamente por autor. Quando há várias obras
do mesmo autor, substitui-se o nome do autor pelo equivalente a seis espaços,
seguido de ponto. Exemplo:

Referências
BIRMAN, J. … 1992. (com apenas um autor)
______ . … 1997a.
______ . … 1997b.
JERUSALINSKY, A.; TAVARES, E. E.; SOUZA, E. L. A. … (com dois ou três autores)
LAING, P. et al … (com três ou mais autores)
ROUANET, S.P. …

Quando houver indicação explícita de responsabilidade pelo conjunto


da obra em coletâneas de vários autores, a entrada deve ser feita pelo nome do
responsável seguida pela abreviatura singular do mesmo (organizador, coor-
denador, editor, etc.) entre parênteses. Exemplo:
BARTUCCI, G. (Org.) Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de Ja-
neiro: Imago, 2001, 408p.

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
NORMAS 217
Livro
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título do livro em itálico, ponto, edição (a partir da segunda: “2.ed”), cidade, dois
pontos, editora, ano de publicação e número de páginas. Se for uma reedição,
colocar o ano em que foi escrito logo depois do nome do autor. Exemplo:

CECARELLI, P. R. (Org.) Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 2000, 295 p.


FIGUEIREDO, L.C.M. & COELHO JUNIOR, N. Ética e técnica em psicanálise. São
Paulo: Escuta, 2000, 237 p.
LACAN, J. (1959-1960) O seminário livro 7, A ética da Psicanálise. Rio de Janeiro:
Zahar, 1988, 358 p.

Capítulo de livro e ou coletâneas


Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título do capítulo, ponto, In:, título do livro em itálico, ponto, cidade, editora,
ano de publicação e página. Quando for coletânea logo após o “In:” colocar so-
brenome e iniciais do organizador e “(Org)” logo após. Exemplo:

DUARTE, L.F.D. Sujeito, soberano, assujeitado: paradoxos da pessoa ocidental


moderna. In: ÁRAN, M. (Org.) Soberanias. Rio de Janeiro: Contra
Capa, 2003, p.179-93.

Artigos de periódicos
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título do artigo, ponto, título do periódico em itálico, vírgula, cidade, volume,
número, página e ano de publicação. Exemplo:
ROSA, M.D. O discurso e o laço social nos meninos de rua. Psicologia USP, São
Paulo, v.1, n.1, p.205-17, 1990.

Dissertações e Teses
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do(s) prenome(s),
título da Dissertação ou Tese em itálico, ponto, ano, ponto, número de folhas,

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218 BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE
NORMAS
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

identificação se é Tese de Doutorado ou Dissertação de Mestrado, o nome da


Instituição onde foi defendida e cidade. Exemplo:

LOFFREDO, A. M. Angústia e repressão: um estudo crítico do ensaio “Inibição, sin-


toma e angústia”. 1975. 100 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
– Faculdade de Psicologia, PUC, Rio de Janeiro.

Trabalhos publicados em eventos científicos (Congressos,


Seminários, Simpósios, etc.) publicados em anais ou como artigo
Autor(es), título do trabalho, In:, título do evento, numeração do evento, ano
e local de realização, tipo de documento (Anais, Atas, resumo) editora, ano de
publicação e página. Exemplo:

MARAZINA, I. A clínica em Instituições. In: CONPSIC – II Congresso de Psico-


logia, 1991, São Paulo. Anais. São Paulo: Oboré, 1992, p.25-43.

Trabalhos que não foram publicados


Dependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da mesma
maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “Texto não publicado”.

Trabalhos que estão em vias de publicação


Dependendo do tipo (artigo de periódico, capítulo de livro, etc.), proceder da
mesma maneira que foi indicado anteriormente, seguido no final de “no prelo”.

Resenhas
Sobrenome do autor em letras maiúsculas, seguido das iniciais do pre-
nome, título do livro, ponto, cidade, dois pontos, editora e ano de publi-
cação. Resenha de sobrenome em letras maiúsculas, seguido das iniciais
do prenome do autor da resenha, título da resenha (se houver), ponto,
nome do periódico em itálico, volume, número, páginas e data de publi-
cação da revista.

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BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE – ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013
NORMAS 219
Referências de Freud
Sobrenome do autor em caixa alta, seguido da inicial do prenome, título
da edição utilizada em itálico, cidade, editora e ano de publicação da edi-
ção consultada. Abaixo, ano em que o artigo foi escrito, título e volume.
Exemplo:

FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund


Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
(1895). Uma réplica às críticas do meu artigo sobre neurose de angústia, v. 3.
(1896). Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa, v. 3.
(1897). Sinopses dos escritos científicos do Dr. Sigmund Freud, v. 3.
______. Gesammelte Werke Chronologisch Geordnet. Frankfurt, S.Fischer Verlag,
1987.
(1917). Die Verdrängung, v. 10.
(1917). Das Unbewusste, v. 10.

Documentos extraídos de fontes eletrônicas


Proceder da mesma maneira seja para livro, capítulo de livro e artigos de pe-
riódicos, entretanto, adicionar no final “recuperado em (data)”, seguido do en-
dereço eletrônico. Exemplo:

PAIVA, G.J. (2000) Dante Moreira Leite: Um pioneiro da psicologia social


no Brasil. Psicologia USP, n. 11, v. 2. recuperado em 5 de fevereiro
de 2006, da Scielo (Scientific Eletronic Library Online): http://
www.scielo.br.

8. IMAGENS E ILUSTRAÇÕES
Tabelas, gráficos, fotografias, figuras e desenhos devem ser referidos no texto
em algarismos arábicos e vir anexos, em preto e branco, constando o respec-
tivo título e número. Se alguma imagem enviada já tiver sido publicada, men-
cionar a fonte e a permissão para reprodução, quando necessário.

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220 BOLETIM FORMAÇÃO EM PSICANÁLISE
NORMAS
– ANO XXI – VOL. 21, № 1 – JAN/DEZ 2013

9. DIREITOS AUTORAIS
Os direitos autorais de todos os trabalhos publicados pertencem à revista Bole-
tim Formação em Psicanálise. A reprodução dos trabalhos em outras publicações
requer autorização por escrito da Comissão Editorial da Revista.

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