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Apreciação crítica da pintura ” O Poeta” de Marc Chagall

Na pintura “O Poeta”, de Marc Chagall, observa-se, em primeiro plano, uma


figura humana, sentada num bar e acompanhada por um gato. O plano de fundo
apresenta-se difuso e acinzentado, enquanto que a cor vermelha, do lado direito da tela,
e a azul, do lado esquerdo, destacam a ação principal: um homem que escreve num
pequeno caderno, enquanto desfruta de uma bebida.
Nesta obra, o branco é a cor que está presente em todo o quadro. Em relação aos
elementos físicos, pode-se admitir a existência de, pelo menos, duas formas de vida - a
figura de um homem com uma cabeça posicionada de maneira irreal e um gato
lambendo-lhe o braço. Além disso, é possível deduzir um ambiente de esplanada
O contraste entre as cores frias que preenchem o corpo do poeta e as cores
quentes do ambiente que o envolve realçam o processo de intelectualização das
emoções presente no processo criativo pessoano. A intensidade e espontaneidade das
sensações que o atingem são esfriadas pelo filtro da imaginação, uma vez que o poeta se
expressa racionalmente, daí o facto de a cabeça estar do avesso, posicionando o cérebro
ao nível da boca, afastando o coração e a sua sensibilidade, como que a guardando no
seu bolso.

Este quadro está intimamente relacionado com os poemas de Fernando Pessoa


que definem a teoria do fingimento artístico.

No poema “Autopsicografia”, o sujeito poético refere que a poesia não está na


dor experimentada, ou sentida realmente, mas no fingimento dela. Ou seja, a dor real,
para se elevar ao plano da arte, tem de ser fingida, imaginada, expressa em linguagem
poética, o poeta tem que partir da dor real, a dor que deveras sente. Para haver poesia,
não basta sentir a dor real.
O “eu” poético diz que quem lê sente apenas a ausência da dor em si mesmo e
não a dor presente no poeta. O poeta tem duas dores, a real e a fingida, mas quem lê não
tem nenhuma dessas dores – apenas a ausência de dor em si mesmos. Isto é, o leitor não
sente a dor que o poeta sente, visto que é quem escreve que sente profundamente a dor
que o leva a escrever.
Na 3ª estrofe do poema, o sujeito poético chama pelo seu coração. O coração
( ímbolos da sensibilidade) é comparado tanto à dor como à emoção: é o coração que
sente, que “entretém a razão”.

No poema “Isto”, o poeta nega que finge ou mente sobre aquilo que escreve.
Justifica que o que faz é racionalizar os sentimentos (sente com a imaginação), a
criatividade e não usa o coração. Sente-se dominado pelo destino de procurar sempre
algo de mais belo, mas inacessível. Procura constantemente nunca se satisfazendo com
o que procura, mas vendo sempre naquilo com que se depara um terraço que esconde
mais.
Relaciona essa procura com o facto de se querer libertar das sensações – ao
escrever distancia-se delas. Ao escrever, o poeta coloca-se ao nível do fingimento, do
pensamento, da racionalidade. “Sentir? Sinta quem lê!” – O leitor está dominado pela
ideia de que a origem dos versos situa-se no sentimento, mas engana-se, pois não é isto
que as palavras querem exprimir.

A pintura e os poemas “Autopsicografia” e “Isto” ambos refletem o fingimento


artístico, que se baseia em experiências vividas e que procura escrever distanciado do
sentimento. Fernando Pessoa apenas transcreve o que lhe vai na imaginação e não o
real, não sente o que não é real, o leitor é que ao ler, vai sentir o poema.
Na minha opinião, o homem da pintura representa Fernando Pessoa ortónimo. A
cor azul do seu corpo sugere sentimentos como melancolia, tédio e solidão interior. A
cabeça for a do lugar, por sua vez, indica confusão mental, como quem está distante da
verdade metafísica. O fingimento artístico é refletido pelo gato, a letra “A” e o braço
que escreve: estando o gato a suscitar afeição, amor, emoção, pode-se afirmar que a
emoção é o início, como o “A”, do processo criativo, que resulta na intelectualização
dela.
Absorvido pelo processo de escrita e pela sua bebida, como seria, comum em
Pessoa, o poeta na obra encontra-se indiferente à vida exterior: à flor que desabrocha, ao
gato que se aproxima e à fruta cortada abandonada no balcão. Para tal contribui,
também, o facto de a perspetiva do poeta em relação ao que o rodeia diferir da das
pessoas comuns, pois é como se observasse o mundo do avesso.

Esta obra de arte é, de facto, muito expressiva e rica em símbolos, cujos


significados diferem de interpretação para interpretação. Conjugando dois campos da
arte (a literatura e a pintura), a pintura aproxima-nos do processo de escrita e transmite
ao observador a sensação de distanciamento do poeta em relação ao que o rodeia.
Face ao alcance indefinido da mente do poeta e à excentricidade do seu ponto de
vista, talvez estejamos tão longe de o compreender realmente como o gato inocente que
o observa com curiosidade.
Por fim, considero que a pintura foi bem concebida, pois expõe, com uma
grande perícia, o estado de alma de um poeta, conseguido através de uma profunda
análise surrealista.

Clara Monteiro
12ºA Nº9

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