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256p.; 16x23cm
ISBN: 85-87184-23-7
coo 150.195
CDU 159.964.2
Apoio
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C A P E S
Ili
Todos os direitos desta edição reservados à
Marca d' Água Livraria e Editora Ltda.
Rua Dias Ferreira, 214
22431-050 Rio de Janeiro RJ
Tel /í-ax (55 21) 2511-4082 / 2511-4764
Doris Rinaldi
Marco Antonio Coutinho Jorge
[organizadores]
il!
MESTRADO EM PESQUISA E
CLÍNICA EM PSICANÁLISE
INSTITUTO DE PSICOLOGIA - UERJ
facebok.com/lacanempdf
Sumário
O desejo na velhice: notas sobre a relação entre verdade e gozo ..... 211
Julia Cristina Tosto Leite
Parte VII: Psicose e laço social
Desejo e psicose: uma breve introdução ...................................... 2 21
Maritza Magalhães Garcia
1
LACAN, Jacques. O seminário, lfrro 17: o arcsso da psicanálise ( 1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1992.
1
N. do E. Os maternas dos discursos propostos por Lacan, aludidos cm quase todos os textos
do presente livro, podem ser encontrados ao lado da primeira orelha da capa.
1
LACAN, Jacques. O seminário, lfrro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit., p. 74.
Programa de Pós-Graduação cm Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2000, que se constituiu na leitura
e discussão desse seminário. A partir das leituras do seminário e das múltiplas elaborações
que estas suscitaram nos alunos do curso, nasceu, da palavra de Mara Viana de Castro,
o desejo de produzir um livro que expressasse a riqueza das articulações ensejadas por
O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Acolhida pelo colegiado do Mestrado, a idéia se
expandiu para além dos limites da disciplina, englobando as contribuições dos demais
professores e alunos do Mestrado que, cm seus trabalhos de pesquisa, focalizam os
conceitos elaborados por Lacan nesse momento de seu percurso.
É importante destacar que este livro é o segundo produzido no âmbito desse
Programa de Pós-Graduação e que ele mantém o mesmo espírito do primeiro4 ,
buscando refletir o trabalho que ali se realiza e que privilegia, no ensino da psica
nálise, a interseção entre teoria, clínica e pesquisa. Sua organização foi partilhada
com Marco Antonio Coutinho Jorge, em um trabalho afinado e cuidadoso de
leitura e revisão. Nosso objetivo é oferecer ao leitor o amplo quadro de possibili
dades de articulação proporcionado pelo pensamento de Lacan em O seminário, livro
17: o avesso da psicanálise, não apenas para aqueles que militam no campo da psicanálise,
mas também para os que se interessam pela contribuição que esta pode trazer à
discussão das questões e impasses do mundo de hoje.
Os textos
Na primeira parte da coletânea, dois artigos apresentam O seminário, livro 17: o avesso
da psicanálise, ressaltando sua importância no conjunto da obra de Lacan e a origina
lidade da teoria dos quatro discursos como modo de pensar o laço social. O papel
dos maternas é destacado pelo que atestam da preocupação de Lacan com a trans
missão da psicanálise, visando a evitar que esta se perdesse no inefável da expe
riência, sem recair, entretanto, no dogma religioso ou no saber universitário.
Tomando como referência a relação entre ciência e real, mantida "graças ao uso de
letrinhas"5, ele afirmou que o real, isto é, o que é completamente desprovido de
sentido, pode ser escrito não com palavras, mas com letras. Utilizando a ação combi
natória dessas letras, o materna visa a possibilitar a transmissão, pela via da escrita, do
4
Ver ALBERT!, Sonia e ELIA, Luciano (org.). Clínica e pesquisacm psicanálise. Rio de Janeiro: Rios
Ambiciosos, 2000.
'LACAN, Jacques. "Conférences et entretiens dans lcs univcrsités nord-américaines'',Sa/icrt6/7.
Paris, Seuil, 1974.
6
LA�AN, Jacques. Tcle1isão (1974). Rio de Janeiro: Jorge Zah�r Editor, 1993.
7
LACAN, Jacques. "A ciência e a verdade" (1965). Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
8
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit., p. 34.
"lbid., p. 149.
A presentação 11
sença do pensamento de Lévi-Strauss, no qual o mito é analisado como ser lin
güístico, evidencia-se na leitura lacaniana dos mitos freudianos de 'Totem e tabu" e
Édipo e na própria formulação dos maternas dos quatro discursos como estruturas
mínimas que organizam as relações entre o sujeito e o Outro. Todos sabemos o
quanto o materna lacaniano é tributário da noção de mitema, unidade mínima constitutiva
dos mitos, concebida como feixe de relações e cunhada por Lévi-Strauss na análise
da estrutura dos mitos. Ao retomar os mitos freudianos destacando a dimensão da
verdade, a pergunta crucial que - por seu caráter enigmático - instigou Lacan foi: o
que é um pai? Situada no centro da experiência analítica, essa pergunta é abordada
no último artigo dessa parte, que faz uma análise, a partir dos discursos, da função
paterna na histeria e na neurose obsessiva.
As relações entre saber e verdade, redimensionadas em O avesso da psicanálise, são
trabalhadas na seção que leva esse nome. Abrindo a série de artigos que a
compõem, a importância de Hegel no pensamento de Lacan se faz presente,
não sem mostrar a subversão operada pelo último nos conceitos do primeiro -
os filhos matam os pais! A leitura de Fenomenologia do espírito, em que Hegel tomou
o saber como objeto, serve de base para a discussão sobre o saber absoluto e a alienação
na relação dialética senhor-escravo. Essa dialética é abordada sob o prisma da
teoria do desejo, salientando-se as diferenças entre as fórmulas hegelianas e
lacanianas. Se a frase "Eu te amo, ainda que tu não o queiras" resume as questões
trazidas por Hegel na luta de puro prestígio entre duas consciências que esperam
reconhecimento, a expressão "Eu te desejo, ainda que não o saiba" traduz a
fórmula lacaniana ao tocar em algo inarticulável, real: o objeto a. A articulação
entre saber, verdade e gozotambém é examinada no âmbito dessa dialética: ao analisar
o discurso do mestre, Lacan demonstrou que, ao contrário do que pensara Hegel, é
o escravo quem detém a verdade do gozo.
No artigo seguinte, as concepções de verdade e saber, tal como apresentadas
em O avesso da psicanálise, são relacionadas ao tema da homossexualidade. Verdade e
saber não se recobrem, não em função da impotência do saber, mas sim por uma
impossibilidade situada pelo real. No centro dessa clivagem, está a impossibilidade
de inscrever a diferença sexual no inconsciente. O saber se situa no registro fálico
e se constitui como defesa em relação à verdade. Lacan, contudo, advertiu sobre
os perigos do excessivo amor à verdade, posto que a verdade não é o real: o real é
o impossível, e a verdade se interpõe entre nós e o real. Tais considerações são
importantes ao se analisar o discurso dominante sobre a homossexualidade, pela
via seja de sua rejeição (discurso médico), seja de sua exaltação (discurso gay), já
que ambas são da ordem de um saber que "ama a verdade". Esse é um alerta
11
Título ele uma elas partes de O seminário, /irra 17.- o arcsso da psicanálise.
12
Trata-sc de um quinto discurso, cujo materna foi apresentaelo por Lacan cm uma conferência
profcriela cm Milão cm maio de 1972. Cf. Lacanemltalie. Milão: La Salamandra, 1978.
11
LACAN, Jacques. O seminário, /i,-ro 17: o arcsso da psicanálise. Op. cit., p. 64.
14LACAN, Jacgues. O seminário, /irra 7: a ética da psicanálise (1959-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
PARTE I
Surpreendente e inusitada, a lista dos quatro discursos introduzidos por Jacques Lacan
em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise parece saída de urna das páginas de Jorge Luís
Borges, nas quais são enumerados, com toda naturalidade, um após o outro, corno se
constituíssem um conjunto inquestionavelmente coerente e harmônico, os seres
imaginários mais díspares: a an.6.sbena, o centauro, a hidra, a mandrágora... A lista de
Borges é, evidentemente, infinita, e ele mesmo nos adverte de que poderia incluir
coisas tão diversas quanto o príncipe Hamlet, o ponto e a Divindade!
Embora bastante limitada, se comparada a ela, a lista dos discursos lacanianos
causa semelhante estranheza: o mestre, a histérica, o psicanalista e o universitário!
De saída, surge a seguinte questão: o que significa a existência de discursos tão
heterogêneos entre si? É bom recordar que o próprio Lacan chama atenção para o
fato de que seus quatro discursos recobrem as (três) atividades mencionadas por
Freud como sendo, na verdade, profissões impossíveis', ou seja, lembra que esses
discursos se referem fundamentalmente a impossibilidades.
Em seu prefácio à obra Juventude desorientada, de August Aichhorn, escrito em 1925,
Freud afirma, pela primeira vez, que havia muito tempa que passara a considerar como
seu o chiste sobre os três oficias impossíveis: educar, curar e governar, ainda que, acrescenta,
tivesse se "empenhado sumamente na segunda dessas tarefas''2. Posteriormente, retorna
essa mesma argumentação naquele que seria um de seus últimos escritos, o ensaio "Análise
terminável e interminável", de 1937, ponderando que, quanto a essas três profissões - e
aí Freud não fala mais cm curar, porém em psicanalisar -, podemos, de antemão, estar
1
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1992, p. 158.
' FREUD, Sigmund. "Prólogo a August Aichhorn, Verwahrloste Jugend" (1925).Em: Obras completas,
vol. XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996, p. 296.
17
seguros de que "chegaremos a resultados insatisfatórios" 3 • Desde já, contudo, note-se que
Lacan acrescentaria a elas uma quarta impossibilidade, o fazer desejai, relativa ao discurso
da histérica, posição discursiva que se distingue das outras três por não constituir uma
profissão. E também que indagaria se as demais posições discursivas são, de fato , profissões .. .
Sobre esses quatro discursos, Lacan observou algumas coisas frmdamcntais:
que todo liame social se sustenta neles ; que os "quadrípodcs" são um aparelho de
"quatro patas", com quatro posições , que definem quatro "discursos radicais"; que
foi O surgimento do discurso psicanalítico que permitiu que houvesse o destaca
mento dos outros discursos ; que o discurso psicanalítico emerge a cada vez que há
a passagem de um discurso a outro, acrescentando que isso equivale a afirmar que
o amor é o signo de que trocamos de discurso.
Que estranho e insuspeitado mrmdo é esse que se abre, diante de nossos olhos,
com a teoria lacaniana dos discursos? É o mrmdo do materna lacaniano, da letra e do
algoritmo, que, como já se pôde frisar, traz para a teoria seu ponto de equilíbrio em
relação ao Lacan do "inconsciente estruturado como uma linguagem", que pode ser
considerado como o Lacan do poema. Como lllila gangorra, Lacan equilibrou seu
ensino entre estes dois pólos, o materna e o poema: um não anula o outro , mas antes
o complementa. Ambos são necessários e de nenhum deles se pode prescindir.
A segrmda questão que se apresenta - e que constitui uma bússola na qual buscamos
orientação - é esta : será que cada analista deve ter como tarefa a travessia do árduo
desfiladeiro imposto por essas duas montanhas, o materna e o poema?
Pronrmciada cm 1 969-70, no contexto imediatamente posterior aos eventos de maio
de 1 968 que sacudiram Paris, a teoria dos quatro discursos de Lacan comparece cm seu
ensino para tratar de uma forma original do liame social. 5 Por isso mesmo, não só a capa de
O seminário, livro 1 7 apresenta o líder estudantil Daniel Cohn-Bcndit desa.fiando com seu olhar
irônico um policial , como também se pode ler no interior do volume tanto uma entrevista
dada par Lacan nos degraus do Panteão - a Faculdade de Direito, onde dava seu seminário,
estava fechada - quanto uma palestra de improviso feita para os estudantes em Vinccnnes.
Há uma relação histórica entre o advento do materna no ensino de Lacan e a
criação do departamento de psicanálise de V incennes. Elisabeth Roudincsco acredita
1 FREUD, Sigmund. "Analisis tcrminablc e intcrminable". Em : Obras completas, vol . XXlll. Buenos
Aires: Amorrortu, 1996, p. 249.
4
LACAN, Jac9ucs. O seminário, /irra 17: O arcsso da psicanálisc. Op. cit. , p. 165 .
5 Houve 9ucm se perguntasse se Lacan não estaria com isso propondo a substituição da noção
de ideologia, tão cm voga na9uclc momento, pelo "fino mecanismo de 9uatro termos, 9uatro
letras, instalados cm 9uatro lugares" (GODIN, Jcan-Guy. Jacques Lacan: S, ruc de Lillc. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 991, p. 30).
6
ROUD INE SCO, E lisab eth & P LON, Michcl. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1 998, p. 503.
7
D ID IER-WE ILL, Alain. Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar
Editor, 1 988, p. 1 27.
8
LÉRES, Guy. "Lectur e du discours capitalistc selon Lacan: um outil pour r épondr e au Malaise",
Essaim, n.3. Paris, Éres, 1 999, p. 9 1 .
9
Sobre a qual já n o s debruçamos de modo m ais extenso cm um trabalho anterior. Cf. JORGE ,
Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Ú!can, vol. 1: As bases conceituais. Rio de
Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2000, p. 65 .
'º JORGE , Marco Antonio Coutinho. "Sexo e discurso". Em: Sexo e discurso cm Freud e Lacan. Rio
de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1988.
(... ] não creio vão ter chegado à escrita do a, do _g, do significante, do A e do <j>. Sua
escrita mesma constitui um suporte que vai além da fala, sem sair dos efeitos mesmos
da linguagem. Isto tem o valor de centrar o simbólico, com a condição de saber
servir-se disso, para quê? - para reter uma verdade côngrua, não a verdade que
pretende ser toda, mas a do semi-dizer, aquela que se verifica por se guardar de ir até
a confissão, que seria o pior, a verdade que se põe em guarda desde a causa do desejo. 1 2
11
Por exemplo : LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 1: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 979, p. 63) e também O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise.
(Op. cit. , p. 1 2).
12
LACAN, Jacques. O seminário, lirro 20: mais, ainda (1 972 -3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1 982, p. 1 26.
11
LACAN, Jacques. "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines" ( 1 976),
Scilicc t, n. 6/7. Paris, Seuil, p. 27.
14
LACAN, Jacques. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano"
( 1 960). Em : Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, p. 830.
1 5 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit., p. 1 6 1 .
16
Ibid . , p. 1 93.
17
LACAN, Jacques. Televisão ( 1 974) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 993, p. 67.
18
LACAN, Jacques. "Séminaire de Caracas". Em: Almanach de la di.ssoulrion. Paris, Navarin, 1 986, p. 86.
19
LACAN, Jacques. "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines". Op. cit., p. 26.
O sujeito e o significante
Como dissemos, a teoria dos quatro discursos supõe, para seu entendimento, com
preensão prévia da lógica do significante estabelecida por seu ensino, pois as letras que
compõem os discursos são o fruto dessa lógica: S 1 , S 2 , $, a. Tais letras são aquelas que
compõem a "relação fundamental de um significante com um outro significante", da
qual "resulta a emergência disso que chamamos sujeito - em virtude do significante
que, no caso, funciona como representando esse sujeito junto a um outro significante'14 :
Embora seja efeito do significante, o sujeito não pode ser representado inte
g ralmente por ele ; por isso , surge barrado, dividido, sem unidade possível, abso
lutamente heterogêneo ao indivíduo que significa precisamente o indiviso, aquele
q u e não se divide. Lacan postula que a hipótese com a qual ele entra no inconsciente
é a de que "o indivíduo que é afetado pelo inconsciente é o mesmo que constitui o
q ue chamo de sujeito de um significante'>25 •
Foi justo no estabelecimento dessa distinção fundamental que Lacan se empe
nhou ao longo de todo um ano de seus seminários iniciais : na distinção entre o cu,
cuja W1idadc provém do registro do imaginário e da alienação daí decorrente, e o
sujeito, representado no campo do simbólico como dividido , cindido, lugar do con
flito e da impossibilidade de obter qualquer Wlidadc. O eu não é o sujeito e
26
25 LACAN, Jac9ues. O seminário, livro 20: m ais, ainda. Op. cit., p. 1 94.
26
LA CAN , Jac9ues. O seminário, lfrro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1 954-5),
es pecialmente a s eção "Para al ém do imaginário, o s imbólico ou do pe9ueno ao grande Outro"
(Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 985 , p. 2 1 9-342).
7
2 LACAN, Jac9ues. O seminário, lirro 20: m ais, ainda. Op. cit. , p. 68.
2
' [hid. , p. ] 95.
29
MILLER, Jac9ucs -Alain. "Las rcspuestas dei real". Em : Aspectos dei ma/estar en la cultura. Buenos
Aires : Manantial , 1 987, p. 1 1 .
binária do significante: "o significante, em si mesmo, não é nada de definível senão como
uma diferença para com um outro significante"30 . Se é a diferença o que constitui a
passibilidade de que haja definição, é preciso ao menos dois significantes para que esta surja.
Quais são esses significantes entre os quais o sujeito surge , de maneira pontual
e evanescente, como dividido?
- S 1 , um significante que apresenta o poder de marca fundadora, de signi.irantemcstre,
poder que permite a Lacan destacar a homofonia existente, em francês , entre maftre
[mestre, senhor] e m 'être [me ser]. 3 1 S 1 não é exatamente apenas wn significante , mas sim
um enx�e, essaim, de significantes que constituem uma referência singular para o
sujeito. Embora S 1 seja igualmente parte do saber (S) do Outro (o que é o mesmo que
dizer que S 1 é parte do tesouro dos significantes) , ele consiste em uma região do Outro
muito privilegiada para todo sujeito. Embora qualquer significante seja capaz de vir na
posição de significante mestre, quando isso se produz , ele passa a ser como um selo ,
uma marca fundadora e originária. Sobre S 1 , diz Lacan : "S 1 deve ser visto como
interveniente . Ele intervém em uma bateria significante que não temos direito algum ,
jamais , de considerar dispersa, de considerar que já não integra a rede do que se chama
um saber"32 • Tal intervenção de S 1 no campo já constituído dos outros significantes ,
uma vez que eles já se articulam entre si como tais, faz com que surja $.
- S 2 , outro significante, que representa a ''bateria dos significantes'83 (S 2 , S 3 , S "... ) ,
o conjunto - faltoso, é preciso sublinhar - dos significantes do campo d o Outro, o saber
do Outro. S 2 é o conjunto faltoso dos significantes do campo do Outro e designa todos os
outros significantes que não possuem valor de S 1 para o sujeito. O nome da falta de S2
foi escrito por Lacan como S (.f..), o significante da falta de ao menos um significante no
campo do Outro, o significante da falta de inscrição da diferença sexual. S (.f..) é a
matriz da estrutura psíquica e constitui o núcleo real do inconsciente, homólogo ao
objeto da pulsão e do desejo, a: S (!/;.) é o furo real do simbólico, assim como a é o furo
real do imaginário. Quanto a isso , Lacan salienta que o prindpio de prazer se funda na
coalescência de a com o S (!/;.), acrescentando que a cisão, o descolamento entre a,
como imaginário, e A , como simbólico, é feita pela psicanálise, mas não pela psicologia.
'º LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit. , p. 1 94.
" LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o arcsso da psicanálise. Op. cit . , p.· 1 44.
32
Ibid. , p. 1 1 .
33 Jbid.
14 lbid. ,
p. 1 3.
11
RA BIN OVICH, Diana S. "O psicanalista entre o mestre e o pedagogo", Dizer, n . 4. Rio de
Janeiro : Escola Lacaniana de Psicanálise, 199 1 , p. 8.
16
LACAN, Jac9u es. O seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit., p. 43.
11 WAJCMAN, Gérard. Lc maitre et l'hystérique. Paris: Navarin, 1 982, p. 1 4.
1
' LACAN, Jac9ues. O seminário, /irra 20: mais, ainda. Op. cit. , p. 45 .
verdade produção
Quanto aos lugares, Guy Léres pondera que quatro lugares são o mínimo necessário
e suficiente para estabelecer o liame social, e isso do seguinte modo : o lugar do agente
determina, por seu dito, a ação ; o lugar do outro, que, movido por esse dito, é necessário
à execução ; o lugar do produto, resultado simultaneamente do dito do primeiro e do
trabalho do segundo. E quanto ao quarto lugar, o da verdade, diz Léres: "Para que esse
dito primeiro seja levado em conta por aquele que vai operá-lo, é preciso que ele possa
considerá-lo como não enganador". Por isso, "a verdade é o quarto lugar necessário para
ordenar a função da fala" 41 • Nesse sentido, os lugares dos discursos são fixos porque todo
e qualquer discurso é sempre movido por uma verdade, sua mola propulsara, sobre a qual
está assentado um agente, que se dirige a um outro a fim de obter deste urna produção.
SUJEITO OUTRO
agente � outro
verdade produção
Que essa estrutura de dois binômios articulados como dois campos diversos, do sujeito
2
e do Outro, pode ser legitimamente considerada como a base da estrutura dos discursos é
algo depreendido também quando vemos a outra maneira pela qual Lacan escreve suas
fórmulas dos discursos. Ela situa espacialmente a estrutura dos discursos como dois campos
diversos, li dos um ao outro exclusivamente pela seta que parte do agente para o outro43 :
ga
42
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (Op. cit. , p. 1 8) . Não proliferaremos
exemplos quanto a isso, para não sermos exaustivos, mas sublinhamos que exemplos como o
aqui mencionado são inúmeros.
3 Cf. LACAN, Jacques. "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines"
4
(Op. cit . , p. 63) e Tclc1isão (Op. cit . , p. 29; 40) e também WAJCMAN, Gérard. le maitre et
l 'hystériquc (Op. cit. , p. 1 6) .
i
verdade
l
produção
Além disso, cabe sublinhar, na direção de nossa argumentaç ão, que a posição
da seta central entre os dois binômios é situada por Lacan indiferentem ente, seja
entre os dois binômios como um todo, seja entre os numeradores de cada binômio.
Tal posicionamento indif crente da seta central fala precisamente a favor dessa
distinção, implícita nos discursos, de dois campos distintos , do suj eito e do Outro.
Assim, no irucio d e o semmano, l'1vro 17 e uma uruca vez em o semmano, l'1vro 20 , a
I I O O
44 I O I 45 O O
seta surge na posição mediana entre os dois binômios, ao passo que em muitas
outras passagens aparece escrita entre os n umeradores dos dois binômios.
Apliquemos agora essa intervenção que distingue dois campos diversos, do
sujeito e do Outro, nos binômios dos quatro discursos:
MESTRE HISTÉRICA
PSICANALISTA UNIVERSITÁRIO
1 f, s2 1
� �
s2 s, s, $
44
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 1 2 .
45 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda.
Op. cit., p. 1 2 3. Ressalte-se que a publicação
desse seminário se deu cm 1 975 , logo, quando Lacan ainda estava vivo.
por sua vez, trata-se do saber, S2 , vindo no lugar da ordem, do mandamento do mestre.
Os quatro discursos . . .
Seguindo as próprias indicações de Lacan, considero fecundo tomarmos o discurso
do psicanalista como o ponto de referência principal para estabelecer a leitura dos
demais discursos . A partir da descoberta de Freud, o discurso do psicanalista veio
não só introduzir uma nova forma de liame social, como também permitir que os
outros discursos pudessem ser isolados como tais. O primeiro ponto a se destacar é
que o discurso do psicanalista tem como dominante o avesso do discurso do mestre,
e esse constitui um dos aspectos centrais de O seminário, livro 17 e dá a ele seu título.
O que mais chama atenção no discurso do mestre é S 1 , o significante mestre que
o mestre faz agir sobre o outro, tomado enquanto saber, para conseguir uma produção
determinada de mais-de-gozar. O campo do sujeito do mestre é regido pelo falo,
um dos nomes de S 1 , e recalca sua barra. Já o campo do Outro do mestre está
preenchido pelo saber e pelo objeto mais-de-gozar que esse saber produz.
O mestre tem a posição própria àquele que usa a linguagem, e por isso o
materna do discurso do mestre é considerado como o "ponto de partida'119 do
qual, fazendo um "quarto de giro", obtêm-se os outros três discursos. Ele é o materna
da entrada mesma do sujeito na linguagem: a linguagem é efeito do discurso do mestre
e sua estrutura é a mesma desse discurso. Como observou Wajcman , nele as letras têm
o mesmo valor que os lugares . so No discurso do mestre, S 1 no lugar do agente evidencia
que, por meio do poder imperativo do significante, a entrada do sujeito na ordem
simbólica depende do acionamento de um significante mestre: "O significante mestre
determina a castração", diz Lacan, que ainda acrescenta : "O dito primeiro decreta,
leg ifera, sentencia, é oráculo, confere ao outro real sua obscura autoridade'1; 1 •
46 LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 40.
47 lbid. , p. 99.
48 Ibid. , p. 4 1 .
4 9 lbid. , p. 1 2 .
so w
AJCMAN, Gérard. Lc maitre et l'hystérique. Op. cit. , p. 1 7.
Si
LACAN, Jacques. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano".
Em: Escritos. Op. cit. , p. 8 2 2 .
5
2
1ACAN, Jaa:iues. "Conférences et cntrctiens dans des universités nord-améric:aines". Op. cit., p. 63.
13 LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 1 22.
54
CHAUVELOT, Diane. L'hystérie vous saluc bien! Sexe ct violence dans l 'inconscient. Paris: Denoel, 1 995 .
s;
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 1 88 .
Discurso e 1 ·
1am e social 31
na IPA e introduziu elementos na formação do analista que v isam a sustentar o
vigor do discurso psicanalítico no âmbito da formação analítica , abolindo toda a
burocratização decorrente do predomínio do discurso univcrsitário. 56
Deve-se mencionar ainda que cu e outros autores pudemos aproximar, de
maneira impressionante, o discurso universitário da estrutura da neurose obsessiva,
devido ao apagamento do sujeito barrado em prol do saber e do falo.
56
JORGE, Marco Antonio Coutinho. "Lacan e a estrutura da formação d o psicanalista".
Seminário inédito.
57
Embora tenha mencionado o discurso do capitalista, sem atribuir-lhe uma fórmula própria,
já em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. (Op. cit. , p. 1 03.)
58
LÉRES, Guy. "Lecture du discours capitaliste selon Lacan. Um outil pour répondre au
Malaisc.". Op. cit. , p. 89.
59
ALBERT!, Sonia. "Psicanilise: a última flor da medicina". Em: ALBERT[, S. e ELIA, L. Clínica
e pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos , 2000, p. 46.
60
LACAN, Jacques. Tele visão. Op. cit. , p. 40.
Luciano Elia
1
LACAN, Jacques. O seminário, /irra 17: o arcsso da psican.ílisc ( 1969.,:70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1992.
33
Pois bem. Propomos a idéia de que o próprio ensino de Lacan estrutura-se de
modo análogo ao da experiência psicanalítica do inconsciente, com a peculiaridade
suplementar de ir além dos efeitos do inconsciente, ou seja, levando o saber além
do trabalho do inconsciente. Além de admitir a afecção e o trabalho do inconsciente
cm sua própria formação, Lacan tomou a si também a tarefa, incalculavclmcnte
mais árdua, de estabelecer uma nova leitura da obra freudiana, de criar uma nova
Escola de Psicanálise, reinventa�do-a, para que ela resgatasse seu rigor e lugar no
mundo, cm um movimento repleto de conseqüências incontor náveis. Seu ensino,
que basicamente tomou duas formas, a de um Seminário, ou seja, um discurso oral
mente sustentado, e a de Escritos, é, de ponta a ponta, marcado pelas incidências do
inconsciente, e pelo ultrapassamento do próprio inconsciente. Homologamcntc,
a formação do psicanalista é marcada por saltos, por descontinuidades, definidas
por momentos cruciais, privilegiados e difíceis, nos quais o entendimento se vê
iluminado por grandes clarões que são efeitos do trabalho de análise, mas também
de crises, em que o entendimento se vê obscurecido por um véu impenetrável.
Como comecei por afirmar, qualquer que seja a corrente da psicanálise cm
que se situe o analista em formação, tais efeitos se produzem, desde que o analista
não cesse de ser afetado pelo campo de incidência do inconsciente no modo como
concebe e realiza sua formação. Mas, se a formação é lacaniana, tais marcos e
saltos incluem a transferência com o texto lacaniano, escrito ou falado por ele e,
no segundo caso, estabelecido como texto por um outro. E, havendo tal transfe
rência, em grupos de leitura e estudos, seminários ou cartéis, a tomada de O semi
nário, livro /7está destinada a ser, quase sempre, um momento crucial. Por quê? Este
artigo é uma tentativa de responder a essa pergunta.
Como se sabe, Lacan inicia seu ensino pela retomada da primazia da relação
do sujeito com a fala e com a linguagem, a função da primeira no campo da segunda,
de modo a retificar os rumos que a Psicanálise pós-freudiana vinha tomando, e
que não se trata aqui de mapear. A sua tese principal, nesse período - tese que,
aliás, ele nunca recusou - é a de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
Os dez primeiros seminários de Lacan constituem uma longa elaboração das
conseqüências teóricas, clínicas, éticas e metodológicas dessa tese central, e, alter
nadamente, tomam as questões do significante e as questões do sujeito como seu
eixo primotdial, tendo os de número ímpar ( 1 , 3, 5, 7 e 9) como eixo a ordem do
significante e os de número par (2, 4, 6, 8 e 1 0) as questões do sujeito. Trata-se,
2
Remetemos o leitor menos familiari7.ado com essas gucstões ao escrito de Lacan "Função e campo
da faia e da linguagem em psicanáüse". Em: &:ritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998.
1
LACAN, Jacques. "O seminário, livro 1 0: a angústia" ( 1 962-3). Inédito, documento de trabalho.
4
LACAN, Jacques . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise ( 1 963 -4). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 979.
1
l bid . , p . 2 3 : aula 11, "O inconsciente freudiano e o nosso", de 22 de fevereiro de 1 964.
6
lnternational Psychoanalytical Association, fundada, por Freud cm 1 91 O.
7 Essa seqü ência
de seminários de Lacan é, toda, inédita.
' Seminário também inédito.
O ºAvesso da
Psicanál i se" e a formação do psicanalista 35
(eixo central de todo o primeiro grande ciclo do ensino de Lacan) para, sem
refutá-lo como campo e como linguagem, ir além dele: o ato, como tal (e, como
tal, ele é um ato psicanalítico, o que não significa simplesmente o ato de alguém
que é psicanalista) é um significante. Eis uma das teses de "O seminário, livro 1 S".
"O seminário, livro 16: de um Outro ao outro'� retoma o objeto a à luz dessas
novas noções, que relativizam a primazia da lin guagem e do registro do Simbólico
cm relação ao campo do gozo e ao registro do Real, dando ao objeto a a dimensão
do "mais -de-gozar" e prepara, por assim dizer, a entrada da noção de discurso no
ensino de Lacan, em O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise.
Esse conjunto ordenado de referências histórico-cronológicas do ensino de
Lacan tem aqui unicamente o objetivo de precisar a lgumas balizas para que se
possa compreender a grande virada em que se constitui O seminário, livro 17 e sua
importância como momento crucial da formação do psicanalista. Consideramos
essa virada o se gundo grande corte no curso do ensino de Lacan.
A primeira grande afirmação do Aves-so, como passarei a chamar O seminário, livro 17
a partir desse momento, é a de que "o discurso é sem palavras", feita j á na primeira
lição, intitulada "Produção dos quatro discursos" 1 º. O discurso já não é, assim, nem
equivalente nem coextensivo à linguagem. O campo dos discursos não é o campo da
linguagem, que detinha a primazia no ensino pregresso de Lacan, mas de for ma
alguma é uma refutação, no sentido popperiano, desse campo. Não se trata de falsear
a importância da linguagem, nem mesmo reduzi-la, mas de incluir uma outra dimen
são que não seria passível de inclusão no campo da linguagem tal como ele se estrutura .
Pode-se dizer que o objeto a faz parte do campo da lin guagem, uma vez que,
sem ele, a própria linguagem não poderia estruturar-se e a fala humana seria
impossível. Os limites do dizível, o impossível de dizer o desejo, por exemplo,
que já estavam indicados desde sempre por Lacan, já testemunhavam as incidências
do objeto a no campo da linguagem. Mas formular o que escapa a um campo,
constituindo-o, é coisa bem diferente de criar as condições de operati vidade disso
que escapa, ou , em uma palavra, torná-lo operante. É o discurso - e não a linguagem
- que torna operante o objeto a, além de estabelecer lugares de operatividade -
quatro - e modos de relação entre esses lugares nos quais não apenas o objeto a,
mas letras S 1 e S 2 e o sujeito do inconsciente operam.
É também Avesso que permite reler o corte da Ciência Moderna cm relação à
Epistcme antiga, também desde sempre indicada, como uma operação de discurso.
• Seminário inédito.
10
LACAN, Jacq ues. O seminário, /irra 1 7: o a,·esso da psicanálise. Op. cit. , p. 9-ss .
O Mestre antigo distingue-se do Significante Mestre, bem como o corte entre
ess e sig nificante, notado por uma letra (as letras é que operam no discurso, que é
se m palavras), S I ' e o significante do saber, notado pela letra S2 , já indica, por si só ,
0 efeito de castração 1 e de sexuação que operam os discursos a partir do advento
1
da Ciência. Tratar o real pelo simbólico, eis um projeto que só se apre ende no
nível do significante, que despoja o real a tratar de suas qualidades sensíveis,
empíricas ou anímicas. Incidentalmente, é o Avesso que permite compreender com
cla reza, e de uma vez por todas, que a Psicanálise só poderia remontar sua filiação
discursiva à Ciência clássica, moderna, galileana, para subvertê-la, e nunca à tradição
das Ciên cias ditas humanas, de surgimento histórico muito mais recente .
Correlativamente, o Mestre - e seu discurso - é ultrapassado , por um giro
dis cursivo, pela histérica : esta expõe, no próprio agenciamento de seu discurso,
aquilo que o mestre esconde no seu, e que constitui a sua verdade : a castração, a
divisão do sujeito. Isso significa que a histérica "sabe", discursivamente, mais que o
mestre, mas que paga com seu sintoma por esse saber. Homologamente, o analista
é aquele que faz com o discurso histérico um giro semelhante : coloca em posição
de agenciamento do seu discurso, no lugar dito do se mblant e do discurso, aquilo que
constitui a verdade do discurso da histérica, sua condição de objeto a. Não se
trata, assim, corno se diz correntemente sem muito rigor, de "fazer semblante de
objeto a", mas de tomá-lo como semblante do discurso. E é com isso que o analista
opera, produz efeitos de análise, leva o sujeito a uma outra posição no discurso,
que é a do Outro, ou do trabalho.
O Pai, o Édipo, a Metáfora e o Desejo - ou seja, as relações entre a Lei e o
Desejo - também não serão poupados da reviravolta de O se min ário, li vro 17. Grandes
figuras da teoria do fim dos anos 1950 1 2 , tais categorias perdem seu lugar de
pilares e de dete rminantes das vicissitudes últimas da experiência do sujeito em
análise . Se, na metáfora paterna de O s eminário, liv ro S e escritos conternporâneos 1 3 ,
cabia ao Nome-do-Pai a função maior de, remetendo-se tão-somente a outro signi
ficante e nada mais (o Desejo -da-mãe), barrá -lo, substituí-lo cm se u l ugar na cadeia
(trata -se de uma substituição de lugar), a fim de produzir a significação fálica,
s erão ago ra as
arti culações entre o Falo como significante e a Castração que
11
lbid. , p. 8 1 -ss: "O Mestre castrado", aula VI, de 1 8 de fevereiro de 1 970.
12 L
A CAN; Jacques. O seminário, livro S: as formações do inconsciente ( 1 957-8) . Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1 998.
" LACAN, Jacques. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" ( 1 957-8).
Em : Escritos. Op. cit.
, p. 5 37-ss.
determinarão os destinos do sujeito. O Complexo de Édipo torna-se um sonho de
Freud, e a Castração toma seu lugar, como operação agenciada pelo Real (já o era,
desde O s eminário, livro 4 como agenciada pelo Pai Real, pelo que se vê, mais uma
14
,
o sujeito tem uma volta a mais a dar em termos de sua relação com a verdade.
LACI\N, Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto ( 1 956-7). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
14
Editor, 1 995.
15
LACAN, Jacques. "O seminário, livro 2 1 : os nomes do pai". Inédito.
16
LACAN, Jacques . O seminário, lirro 17: o arcsso da psicanálise. Op. cit., p. 1 64.
17
l bi<l . , p. 1 64.
1
' Ibid. , p. 5 1 -ss: aula IV, "Verdade, irmã de gozo".
19
LACAN, Jacques. Telcrisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
20
LACAN, Jacques. O seminário, lirro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit . , p. 1 66.
1
' Ibid . , p. 5 1-ss : aula IV, "Verdade, irmã de gozo".
21
LACAN, Jacques. "Proposição 9 de outuhro sobre o psicanalista da Escola", Sdlicet, vol. 1.
Paris, Scuil, 1968, tradução do autor.
21
Ibid.
24 LACAN, Jacques. O seminário, Ji1T0 20: mais ainda ( 1 972-3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982 .
11
ELIA, Luciano. "Uma ciência sem coração", Ágora: Estudos cm Tcoria Psicanalítica, vol. 2 , n. 1 . Rio de
Janeiro, Contra Capa Livraria I Pós-graduação cm Teoria Psicanalítica UFRJ, 1999, p. 41 -ss.
16
MILLER, Jacqucs-Alain. "Vcrs un signifiant nouvcau", Rérue de l'École dela Cause Freudienne, 199 2 .
27 LACAN, Jacques. "La chose frcudiennc". E m : Escritos. Op. cit. , p. 402-ss.
forma de manter o furo no saber que é nele prcscntificado pela impossibilidade de
demonstrar a inexistência da relação sexual . Impossível a demonstrar, pelo saber,
a verdade da inexistência da relação sexual faz furo, e mantém aberta a questão,
que faz divisão de águas cm relação à ciência.
Mantenho minha posição quanto a essa sustentação (da problemática saber /
verdade), mas a r etifico quanto à posição da verdade, assinalando que esse deslo
ca m ento é efeito de um cartel sobre o Avesso, que, na época, estava apenas cm seu
inÍcio. É importante assinalar que se t rata de um cartel porque sustento que essa
modalidade de trabalho, p rópria à for mação cm Escola, é aquela que permite que
os efeitos do discurso analítico se façam presentes na transmissão. Ainda me atinha,
na enunciação daquele debate, a um certo amor à v erdade que, posterio rmente,
veio a destituir-se, o que me levou a inte rpretar, no sentido que interpretação tem no
ensino de Lacan, ou seja, a p rodução de um sentido que rompe com as sinonímias
entre o antes e o depois da interpretação e que se faz pela via literal, de um modo
novo, a frase de Miller "a psicanálise deve igualar-se à ciência".
Se "igualar-se" quiser dizer "atingir o patamar da ciência" po rque ela estaria
aquém dele, ou seja, aspirar à ciência, manter, como Freud, u m "ideal de ciência",
nas palavras de Jean-Claude Milner29 , então continuo a rejeita r essa frase. Mas, na
nova inte rpretação da mesma frase, com seu mesmo barro literal, a frase pode ser
ouvida como "colocar-se lado a lado com a ciência", situa r-se no mesmo lugar,
acentuando (e não atenuando ou abolindo) assim a diferença radical entre a psica
nálise e a ciência - diferença que só é metodologicamente possível se a psicanálise
situar-se no mesmo patamar da ciência.
Não é importante sabe r qual das duas interpretações corresponde à intenção
enunciativa de meu interlocutor, e há razões para supo r que seu "igualamento"
visa a uma ce rta redução da diferença entre Ciência e Psicanálise, porquanto o seu
artigo dirige-se ao estabelecimento de um significante novo que, como a ciência,
p roduz invenções, no caso da psicanálise, o amor. O que importa aqui é traze r uma
e xe mplicação, a partir da experiência, e envolvendo uma produção textual, dos
efc �tos do ensino de Lacan na formação do analista, nos deslocamentos que esses
efeitos p roduzem, pa rticularizando-os no contexto de um seminá rio tão marcado
pelo eixo da subversão analítica 30 , como é o Avesso.
o "Avesso da
Ps i canál i se" e a formação do psicanalista
Instituto de Psicologia - UFRGS41
P A R T E II
Psicanálise e Universidade
P si canálise e universidade
e a instauração de discursividades
Sonia Alberti
O retorno a . . .
Quando Michel Foucault proferiu sua conferência sobre autoria', em fevereiro de
1969, Jacques Lacan, convidado a assisti -la, introduzia em seu seminário um novo
ponto de vista para tratar as questões freudianas: os discursos. Estamos falando de
"O seminário, livro 16: de um Outro ao outro", conforme fi gura no primeiro
capítulo de O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Nesse capítulo, Lacan observou:
"Aconteceu, no ano passado, que eu chamasse o saber de gozo do Outro"2 • Entre as
perguntas feitas a Foucault sobre a questão da autoria, a última implicava Lacan
diretamente: "O que pode significar o 'retorno ' como momento decisivo na
transformação de um campo de discurso?". ·
Foucault identificou Sigmund Freud como um dos dois mais importantes instau
radores da discursividade (o outro sendo Karl Marx), especificando tratar-se de um
autor que estabeleceu uma infinita possibilidade de discursos, com não somente
cer to número de analogias, mas também certo número de diferenças (sic): "Freud
possibilitou certo número de diferenças cm relação a seus textos, seus conceitos,
suas hipóteses, que são todos da alçada do próprio discurso analítico'8 . Isso exigiria
·
um "retorno a' ongem · ), mas "o que se d eve entender por 'retorno a '�?. Esse
" (s1c
r etorno, respondeu própr Fouca
o io ult:
1
FOUCAULT, Michel. "Qu ' est-ce un auteur?" ( 1 969) , Littoral, n. 9. Paris, Eres, 1 98 3 . Essa
conferência possui uma tradução inédita no Brasil , realizada por Clarice Gatto e Jairo Gerbase.
Agradeço a ambos a gentileza de chamar minha atenção para essa versão distribuída entre
,
amigos. Será a cita aqu
da i.
2 LACAN
, Jacques. lc Séminairc, Li,rc XVII: L'Emws dc la ps chanalysc ( 1 969-70). Paris: Seuil , 1 991 , p. 1 2.
y
1
FO U CAULT, Michcl. "Qu'est-ce un auteur?". O p. cit. , p. 14.
4
lbid. , p. 1 6 .
43
se endereça ao que está presente no texto, mais precisamente, retorna-se ao
pr6prio texto, ao texto cm sua nudez e, ao mesmo tempo, retorna-se ao que
está marcado como furo, cm ausência, cm lacuna do texto. Retorna-se a um
certo vazio que o esquecimento esquivou ou mascarou, que recobriu com uma
falsa ou errada plenitude e o retorno deve redescobrir essa lacuna e essa falta. 1
; Ibid.
6
1hid. , p. 2.
Nele se produzem teses, como afirmou Lacan, nas quais "o que quer que seja
dessa ord cm tcm rc1açao
- com um nome de au tor"'º. "O rdi nanamcnte
· ·
", prosscgwu,
"as pessoas se contentam com isso e é isso que assume o papel do significante
mestre" ' 1 . Atento à conferência, Lacan pôde m arcá-la, por sua própria genialidade,
com as letras S 1 e S 2 , pois um discurso é sempre determinado pela linguagem e S 1
e S 2 são sua referência mínima 2 •
1
Prosseguiu Foucault: "Talvez seja tempo de estudar os discursos [ ... J nas moda
lidades de sua existência: os modos de circulação, de valorfração, de atribuição, de apropria-
7
lbid. , p. 1 8 .
" lbid. , p. 1 0, grifo meu.
' lbid.
,o LAC AN, Jacgucs . Lc
Séminairc, Lfrrp XVII: L 'Enrcrs de la psychanalysc. Op. cit . , p. 2 2 1 .
" lbid .
". Não ha' 1 ingu .
· agcm sem art1culaçao - de dois. s1gmficantcs,
. .
mesmo gue nem sempre essa arti-
culaça_o leve a uma significação, como
no caso da holófrasc.
PsicanáJ ·
!Se e universidade e a inst.auraçio de discursiridadcs 45
ção [ . .. ] ; a maneira pela qual eles se articulam nasrelações sociais" 1 3 • A questão é determinar
até que ponto essa proposição foi o cstopim que levou Lacan a se ocupar das questões
que O seminá rio, livro 17: o avesso da psicanálise finalmente inauguraria. Na aula que proferiu
logo cm seguida à conferência, em 26 de fevereiro de 1969, Lacan confessou que, cm
razão de Foucault ter utilizado a expressão "retorno a", ele se considerava "como tendo
sido convocado'*. Respondeu à convocação ocupando-se da relação entre verdade e
saber e observando que se a verdade é o lugar em que se produz a fala (sempre da
ordem da ficção), o saber implica a articulação entre verdade e traço unário, SI ' o que
deduziu da série de Fibonacci1 5, equiparando-a ao Vorste llu ngsrcpriiscntanz [o representante
da representação] de Freud, ou seja, a marca deixada, a inscrição significante. Isso se
deu em uma sessão de seu seminário dedicada a retomar a ética da psicanálise.
Foucault terminou sua conferência ar ticulando a questão discursiva ao estatuto
do sujeito, "para apreender os pontos de inserção, os modos de funcionamento e
as dependências do sujeito'%, ou ainda "como, segundo que condições e sob que
formas, algo como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar
pode ele ocupar cm cada tipo de discurso, que funções exercer, e obedecendo a
quais regras? Em suma, trata-se de retirar do sujeito seu papel de fundamento
originário e de analisá-lo como uma fun ção variável e complexa do disc ursam. Não só o
sujeito é conseqüência do discurso em uma "cultura cm que os discursos circula
riam" 1 8, como também surge a questão: "Quais as localizações aí preparadas para
sujeitos possíveis? Quem pode preencher essas diversas funções de sujeito?"1 9.
No fim de O seminário, liv ro 17: o avesso da psicaná lise, Lacan retomou essa conferência,
justificando, de forma talvez extemporânea - mas o inconsciente é atemporal -, a
maneira de construir Scilice t, revista em que todos foram convocados a escrever
bons artigos, "alguma coisa estruturalmente rigorosa"zo , sem no entanto assiná-los,
"a utor" estaria end ereçando seu texto por um reconhecimento que só adviria se o
a r tig o não trouxesse idéias nem prcscntificassc uma cabeça pensante. Crítica ao
discurso umvcrs1tano : Eu nao sou , de 10rma a Iguma, um au tor "22. S e Frcu d e
· · ' · " -
e
Marx possibilitam infinitas leituras , como dizia Foucault, o que lhes atribui um
novo caráter como autores (ou seja , não são tanto autores , mas antes "instaurador es
de subj etividades") , para Lacan, a verdade fala. É esse o sentido que deu cm O semi
nári o, livro 17: o avesso da psicanáli se para o "retorno a .. ." citado por Foucault.
Quando o sujeito se interroga, o discurso em questão é o do histérico. N ele , é
0 sujeito que está sustentado pela verdade de um saber que não se sabe, já que é o
não-saber que enquadra o saber. É o discurso do histérico, por tanto, que, na
ar ticulação com o discurso do mestre, denuncia, com Foucault, que a ausência é o
primeiro lugar do discurso. Isso serve para introduzir a retomada da questão sobre
a ar ticulação entre psicanálise e universidade. A partir da instalação do discurso
universitário na Idade Média, surgiu a fi gura do autor que, no contexto da circulação
dos discursos , sustenta cada vez mais o discurso u niversitário, em que se produzem
teses e "é isso o que dá o peso ao nome"23 , momento no qual se pode dizer o que
quer que seja , desde que se tenha um nome . Disso se pode inferir o saber como
gozo de uma posição que apaga a versão subjetiva como desejante. Bem diferente
é o discurso psicanalítico que visa ao sujeito, razão de Lacan ter feito a experiência
de Scilicet, tentando furar a sustentação de um saber por um S 1 no lugar da verdade,
a fundamentar o saber como gozo do Outro .
" lbid.
22
lbid. p. 2 2 1 .
l1
'
lbid.
diferentes. Há também a questão da psicanálise na universidade, englobando sobretudo
as observações de Elisabeth Roudinesco sobre a vanguarda brasileira nesse campo e a
resistência, até há pouco tempo, tanto das instâncias universitárias quanto das instituições
psicanalíticas à determinação de um lugar para a psicanálise na universidade.
Embora sejam questões por demais complexas para que seja possível desen
volvê -las cm um único trabalho, isso não me impede de iniciar seu desenvolvi
mento, única forma de, diante delas, pôr-me a trabalho. E assim fazendo já duas
vezes nos últimos mcscs 24 , dei-me conta do quanto é necessário trabalhá-las melhor.
Há algo que talvez explique, de imediato, a razão de uma certa resistência à
psicanálise na universidade por parte de algumas instituições psicanalíticas no Brasil.
Trata-se, mais uma vez, do problema da tradução de Freud para o português, tão
grave e alardeado que já não é mais possível justificar a insistência nessa leitura. Em
um pequeno texto , publicado originalmente cm Gyógyászat, revista médica de Buda
peste, em 19 19, Freud respondeu à pergunta de alguns estudantes de medicina que
se manifestavam pela inclusão da psicanálise no curso de medicina: "A psicanálise
deve ser ensinada nas universidades?". A versão publicada na Gesammcltc Werkc chamou
minha atenção por sua proximidade com o que eu mesma vinha tecendo cm relação
à questão, destoando, entretanto, da versão publicada pela Imago. Não retomarei
todo o texto, mas somente seus três primeiros parágrafos, que vão direto ao tcma2 5 .
Freud introduziu sua contribuição a esse debate - vejam que não é novo -obser
vando que ele deve ser esclarecido a partir de dois pontos de vista [Standpunktcn]: o da
psicanálise e o da universidade. Tratarei somente do primeiro. Para Freud, era muito
" "Apresentação" (Em: ALBERT! , S. e ELIA, L. ( org. ). Clínica e pesquisa cm psicanálise. Rio de Janeiro:
Rios Ambiciosos, 2000, p. 7- 17) e "Psicanálise e universidade" (Pulsional: Rcrista de Psicanálise, ano
XIV, n. 144, abril 200 1 , p. 41-4).
2 ; Vcrsão cm português (volume 1 7 da Standard Edition) : "A questão da conveniência do ensino da
psicanálise nas universidades pode ser considerada sob dois pontos de vista: o da psicanálise e
o da universidade. (1) A inclusão da psicanálise no currículo universitário seria sem dúvida
olhada com satisfação por todo psicanalista. Ao mesmo tempo, é claro que o psicanalista pode
prescindir completamente da universidade sem qualquer prejuízo para si mesmo. Porque o
que ele necessita, cm matéria de teoria, pode ser obtido na literatura especializada e, avançando
ainda mais, nos encontros científicos das sociedades psicanalíticas, bem corno no contato pessoal
com os membros mais experimentados dessas sociedades. No que diz respeito a experiência
prática, além do que adquire com a sua própria análise pessoal, pode consegui-la ao levar a
cabo os tratamentos, uma vez que consiga supervisão e orientação de psicanalistas reconhecidos.
O fato de que urna organização dessa natureza exista, deve-se, na verdade, à exclusão da
psicanálise das universidades. E é, portanto, evidente que esses sistemas de organização
continuarão a desempenhar uma função efetiva enquanto persistir tal exclusão".
clara a diferença entr e esses dois contextos, essas duas instituições, como diria Lacan
m ui tos anos depois, esses dois discursos no laço social. Uma pergunta como essa
e xige um debate entr e ambas as par tes, de forma que cada uma verifique as possív eis
in terseções discursivas decorrentes de bons e / ou maus encontros. Tratava-se,
or tanto, já para Freud, de dois conjuntos diferentes, cada um com suas leis e seus
�cgulamcn tos, impossíveis de serem identificados entre si, mas passíveis de manterem
u m campo de interseção. Como isso se daria do lado da psicanálise?
Seg undo Freud, todo analista valora positivamente a inserção da psicanálise
seja dependente da
no cur rículo acadêmico, mas isso não significa que o analista
universidade. Ao contrário : ele adquire seus conhecimentos teóricos no estudo da
literatura analítica e os aprofunda durante as sessões científicas das associações
psicanalíticas no debate conceitua! [im Gcdankcn tausch] com seus membros. Ele aprende
0 man useio prático da técnica analítica par te cm sua própria análise, parte na de
pacientes sob supervisão de colegas mais e xpcrimcntados.
26
O que Freud afirmou - é preciso explicitá-lo - foi que o analista, como tal,
não é produto da universidade, e por tanto não é dependente dela. Um analista
nem mesmo se forma, como analista, pela universidade, por mais que ela possa
formar profissionais . O que demonstra que não houve qualquer originalidade cm
Lacan ao observar que o analista é produto de sua própria análise, senão a de
explicitá-lo nesses termos e refinar a proposta : "o analista só se autoriza de si
mesmo", a partir de sua própria análise e a par tir da possibilidade de se tornar
psicanalista de sua própria cxperiência 27 , âmbito assegurado pelo dispositivo por
ele proposto, o passe. Além disso, a psicanálise não só não equivale às profissões
de formação universitária, como tampouco é delas dcbitária . Voltaremos a isso.
Freud confirmou, cm 19 1 9, que a formação do analista se dá no tripé formação
continuada (debates científicos entre os pares nas associações psicanalíticas), análise
pessoal e supervisão de casos clínicos. Até aqui, não são graves as diferenças entre os
te xtos publicados na Gcsammcltc Wcrkc e na Imago. O problema se encontra no pará
grafo seguinte: na tradução, fica assegurada ao âmbito da associação psicanalítica a
f�rmação do analista cn u an to houver resistência à psicanálise por parte da univer
g
sidade, deixando subentendido que, no momento cm que a psicanálise deixar de ser
e xcluída pela · ·
umvers1·dade, Ja - e' garantiºdo que as assoc1açocs
" ' nao · al1ticas
· - ps1can ' · pcrs1s-
; FREUD, Sigrnund . "Soll die Psychoanalyse an den Universitaten gclehrt wcrdcn?" ( 1 9 1 9).
m : Gesammelte Werke. Frankfurt a.M. : Fischer Taschcnhuch 1 999
n , , p . 700 .
LACAN, Jacques. "Proposition du 9 octohrc 1 967 sur le psychanalyste
" de l'École" ( 1 967) . Em :
Acte de fondati·on ct autrcs tcxtes" , tire
· ' a' part <1 e l'Annua,re
·
I 982de /'Eco/e dela Cause Freudicnnc, p. 1 5 .
Psicana']"
ise e universidade e a instauração de cliscursfridadcs 49
tam ! Nada disso se lê na Gcsammcltc Wcrkc: "As organizações psicanalíticas devem sua
existência justamente à exclusão do âmbito da universidade e continuarã o a desem
penhar uma importante função de formação enquanto perdurar essa cxclusão'� 8 .
De minha leitura, entendo que não é a psicanálise que deve ser mantida excluída
da universidade para que perdurem as organizações psicanalíticas, mas elas próprias
devem ficar excluídas da universidade para manter a especificidade da psicanálise. Não
estar atento para essa diferença é correr o risco de questionar ou mesmo militar contra
a psicanálise na universidade, caso se queira preservar a função até hoje exercida pelas
associações psicanalíticas na formação dos analistas e nos debates científicos que dizem
respeito à psicanálise . Talvez tenha sido essa a razão de termos presenciado tantas vezes
a resistência, por parte de analistas institucionalizados, ou seja, vinculados a associações
psicanalíticas, à criação de cursos, programas ou mesmo disciplinas de psicanálise no
currículo regular das universidades. Não poderia ser diferente, já que Freud somava
todos os esforços para fortalecer a Associação Psicanalítica Internacional e , ao mesmo
tempo, propunha a inserção da psicanálise no currículo regular de um curso de medicina
cm Budapeste. Ele o justificou, no fim desse mesmo artigo, afirmando que o fato de ter
disciplinas de psicanálise na universidade e no hospital psiquiátrico não faz de ninguém
um analista. O estudante de medicina ainda está longe de realmente aprender psicanálise,
da mesma forma que o cirurgião tampouco sai da universidade experiente. Ele sabe
que, para isso, necessitará de longos anos de formação especializada nos hospitais.
As distorções na leitura desse texto tiveram outras conseqüências: generalizou
se o endereçamento do texto e decidiu-se que, para Freud, somente médicos
poderiam estudar psicanálise. O próprio Freud denunciou esse engano quando,
cm 1927, viu-se obrigado a escrever um apêndice ao texto "A psicanálise leiga",
chegando a se per guntar se a tentativa dos médicos de se apoderarem da psicanálise
não levaria ao risco de sua destruição pela medicina, já que, de início, foram os
próprios médicos que a rejeitaram, maldisseram e condcnaram29 • Isso torna com
preensível a citação recentemente publicada na Rede dos Estados Gerais da Psica
nálise, encontrada po_r Paulo Medeiros, de uma carta de Freud a Oskar Pfistcr:
18
"Die psyehoanalytisehen Organisationen ihrerseits verdanken ihre Existcnz geradc dem
Ausschluss aus dem Univeristatsbctrieb un<l wer<len fortfahrcn, cinc wichtigc Ausbildungsfunk
tion zu erfüllen, solangc dieser Aussehluss bestehcn blcibt" (FREUD, Sigmund. "Soll dic Psy
choanalyse an dcn Univcrsitatcn gclehrt wcrdcn?'' (1919). Em : Gcsammcltc Wcrkc. Op. cit.).
19FREUD, Sigmund. "Nachwort zur ' Frage der Laienanalyse" (1927). Em: Studicnausgabc.
Frankfurt a. M . : S. Fischer, 1975, p. 343.
O que daí decorre é que não só o analista não precisa ter esta ou aquela formação
Isso tampouco significa que nenhum
acadêmi ca, como também não deve ser sacerdote.
sacerdote possa querer ser analista, mas que as duas práticas são incompatíveis e
Essa é uma questão
que, para ser o segundo, é preciso deixar de ser o primeiro.
a
in teressante , haja vista o fato de não poucos sacerdotes se submeterem tratamento
analítico. Se, como afirmou Lacan, toda análise é didática, esses sacerdotes poderão
optar por assumir a função de analista, caso suas análises cheguem ao fim, ou seja,
caso cheguem a produzir. . . um analista.
"O analista", disse Freud, "faz parte de uma categoria que ainda não existe, o que
implica não haver profissão para o analista". Com efeito, o analista é só, e em sua
solidão não há categoria senão, para retomar Lacan, a dos santos: "leigos tratadores de
almas"3 1 . Os santos descritos por Lacan não impõem em vida o respeito que lhes valem
depois, e tampouco os leigos tratadores de almas fazem caridade, razão de o analista
posicionar-se como dejeto e, como o santo, não ter mais efeito quando goza disso.
É desse lugar que o psicanalista transmite a psicanálise cm sua prática cotidiana
quando, sempre, novamente, recebe o sujeito - o que não o impede de rir, ao contrá
rio. Mas é um lugar bem diferente do ocupado por alguém que ensina. Um analista
não o é as 24 horas do dia. Seria impossível fazer isso sem, justamente, tirar daí um
gozo, o que impediria seu funcionamento. Além disso, é insuportável a solidão
determinada por seu ato. Ao se associarem, os analistas deixam de ser santos... às
vezes são mesmo a encarnação do diabo, como as histórias das cisões o testemu
nham ! Mas são sujeitos e, como tais, divididos, apaixonados e sempre muito falantes,
como o sujeito histérico. Quando Lacan desenvolveu os quatro discursos que fazem
laço sociaP , sugeriu que aquele que ensina se encontra no lugar de agente do discurso
2
'° Carta de 25 de novembro de 1 928, divulgada na Rede dos Estados Gerais da Psicanálise, orga
_
:zada por Maria Cristina Magalhães. Faria somente uma pequena modificação, na tradução de
cura de almas seculares"para"seculares tratadores de almas", ou ainda "leigos tratadores de almas".
" LACAN, Jacques. Télérision. Paris: Seuil, 1 974, p. 28.
ll l
.ACAN, Jacques. Lc Sémina1rc, lirrc XVlf: L'Enrcrs dc la p�1·chanalysc. Op. cit.
Biblioteca
Interrogar o mestre significa não se submeter a ele, dar vida aos significantes mes
tres que não deixam de ser os próprios conceitos, sempre ver ificados novamente na
experiência . Eis de onde é possível ensinar cm uma associação psicanalítica ou em uma
escola de psicanálise. E eis também por que falar '1acanês", por exemplo, não transmite
nem ensina nada a ninguém, simplesmente porque não se está aí no lugar do sujeito,
agente do discurso da histérica, que, por definição, questiona. Para quem já fez a
experiência, é muito impressionante verificar que, efetivamente, só se avança no saber
psicanalítico quando se começa a trabalhar os significantes mestres a partir de Freud .
Há algo na leitura do texto freudiano que sempre me surpreende e só me é
possível avançar quando o levo em conta. Seria demais dizer que o texto de Freud
cria trilhamentos [Bahn ungcn ]? Talvcz não. É por isso que, na graduação, ponho meus
alunos para ler Freud. E ponto. É desconcertante como funciona! Por si só, Freud
estimula a curiosidade, derruba os preconceitos e desconcerta os narcisismos. Na
graduação, sou meio, instrumento para uma leitura do texto freudiano, pois deixo
a ele a função da transmissão. Ocorre que, às vezes, como instrumento, produzo
al guma transferência e, caso se verifique a partir de minha presença, ela seguirá os
caminhos que produzir. Às vezes se instala o algoritmo que Lacan legou cm "A propo
sição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola". Particularmente,
prefiro que o semestre termine antes, cm respeito à análise do sujeito que, nova
to, provavelmente terá dificuldades no trânsito entre os discursos.
Como instrumento para a leitura do texto freudiano, não sou diferente dos
mestres que, sustentados no sofrimento e na paixão dos sujeitos - - que há cm cada
estudante -, punham o outro a trabalho. O produto (as provas , as notas) deixa
sempre, no professor, a sensação de ter sido enganado, e nos alunos, a angústia de
serem vilipendiados. Como, cm sala de aula, mantenho-me bastante fiel ao papel
do professor, não é o discurso universitário que aí me determina, mas o do mestre.
Na pós-graduação é diferente, e é geralmente como sujeito no discurso da
histérica que compartilho com os pós-graduandos os temas de pesquisa. A diferença
entre a associação psicanalítica e o curso de pós-graduação reside no contexto: se
na primeira estou entre pares que me permitem avançar cm minha relação com a
causa freudiana , na segunda a psicanálise pede passagem, pois é sempre um estran
geiro inquietante . É o lugar, aliás , que me parece melhor para ela . Se me inscrevo
no discurso da universidade, é na hora de seguir à risca suas normas e fazê -las
cumprir, mas não sem a consciência de que ainda aí sou sujeito, resto passível de
ser jogado fora . Não vejo outra posição para um analista no discurso da universidade
senão a da identificação com o sujeito reduzido a rcbotalho - sabendo, entretanto,
que esse lugar é do semblante.
Uma das perguntas apresentadas a Jacques Lacan no programa realizado pela tele
visão francesa cm 1974, e publicado no mesmo ano sob o título Télévision, diz
respeito ao lugar do psicanalista perante os trabalhadores de saúde mental , psicó
logos, psicotcrapeutas e psiquiatras que, "nas bases e na dureza, agüentam toda a
miséria do mundo" 1 • Em sua resposta, a um só tempo irônica e enigmática, ele se
valeu da noção de discurso para indicar que "agüentar a miséria" é participar do
discurso que a condiciona - o do mestre -, mesmo que protestando contra ele. Ao
relacionar essa miséria ao discurso do capitalista, mestre moderno, Lacan o denun
ciou, afirmando que isso não basta, podendo, inclusive, reforçá-lo.
Quanto ao psicanalista, chamou atenção para o discurso analítico, que confere
ex-sistência ao inconsciente freudiano, o que só é claramente atestado no discurso
da histérica. É o discurso analítico, como laço social determinado pela prática de
uma análise, que define o lugar do analista como o do "santo", não por fazer "carida
de ", mas por bancar o "dejeto" e, com isso, realizar o que a estrutura desse discurso
impõe, isto é, "permitir ao sujeito do inconsciente tomá-lo como causa de seu desejo''.
Essa longa referência introduz o problema que pretendo abordar : o lugar do
p sicana lista junto aos demais trabalhadores da saúde mental que, nos hospitais
psiquiát ricos e nos serviços substitutivos instituídos pela reforma psiquiátrica,
lida m com a "mi s éria do mundo".
1
L ACAN, Jacques. Tclcvisio ( 1 974) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 993, p. 29.
1
lhid. , p. 33.
Perante essa miséria, não podemos esquecer as observações de Freud cm 1 9 19,
que, reconhecendo o reduzido âmbito de atuação da prática psicanalítica, limitada
aos consultórios privados, assinalou a necessidade de estender a clínica, por meio
da assistência pública, a amplas camadas da população. O que o motivou foi a
existência de uma imensa "miséria neurótica" que ameaça a saúde pública tanto
quanto as doenças orgânicas, exigindo , portanto, uma ação do psicanalista na
instituição pública3 •
Isso conduz a uma reflexão sobre o lugar da psicanálise na pólis, uma prática
que Lacan designou "psicanálise cm extensão" e que diz respeito à transmissão da
psicanálise não apenas pela via das instituições psicanalíticas, pelo ensino ou pelo
testemunho que· os analistas aí podem dar de seu percurso, mas também por sua
prática no âmbito das instituições públicas de assistência, nas quais, por meio de
laços sociais múltiplos, ela se defronta com outros discursos que sustentam dife
rentes práticas no campo da saúde mental. Se, como lembrou Lacan, a "psicanálise
em extensão" está na estrita dependência do que ocorre na "psicanálise cm intcn
são", sustentada pelo desejo do analista no tratamento oferecido a cada sujeito, é
no âmbito da "extensão" que esse desejo fará sua prova mais radical.
Não se trata, portanto, de reproduzir a velha oposição "público versus privado",
supondo uma extensão da psicanálise à instituição pública que resultaria na depre
ciação da "verdadeira psicanálise", exercida no espaço privado dos consultórios .
Tal como apresentada em "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista
da Escola'>4, a distinção entre "psicanálise em intensão" e "psicanálise cm extensão"
indica um . vínculo indissociável entre elas, evidenciando a lógica do discurso
analítico, no qual interno e externo se entrecruzam, uma vez que não há sujeito
sem Outro. A altcridade se encontra no próprio fundamento do conceito de sujeito
do inconsciente como efeito do significante. O suj eito é atravessado por essa altc
ridade que o determina e, ao fazê-lo, o divide, posto que uma parte sua escapa ao
domínio do significante . Como resto dessa divisão, emerge o objeto causa de seu
desejo, ao mesmo tempo o mais íntimo e o mais estranho ao sujeito, "ex-timo",
como disse Lacan, procurando expressar nesse neologismo o ponto de encontro
entre interno e externo.
l FREUD, Sigmund. "Linhas de progresso na terapia psicanalítica" ( 1 91 9). Em: Obras completas,
qual Lacan conceituou o discurso como uma estrutura necessária que põe cm
movim ento relações fundamentais decorrentes do fato de estarmos imersos na
linguagem. Partindo da forma fundamental da linguagem, que supõe a emergência
do sujeito, $, entre os significantes, uma vez que um significante (S) o representa
para outro significante (S), dessa operação sobrando um resto (a), ele apresentou
quatro modos de ordenação desses elementos que obedecem às seguintes questões:
quem ocupa o lugar de agente do discurso, a que outro ele se dirige, que verdade
o impulsiona e qual é a produção desse discurso. O sistema completo desses lugares,
aliado às possibilidades de inscrição dos elementos S 1 (significante mestre), S 1
(saber), a (mais-de-gozar) e $ (sujeito), resulta nos quatro discursos considerados
por Lacan os laços sociais fundamentais entre os seres falantes. São eles os discursos
do mestre, da histérica, do analista e o universitário.
Cada um del es é tomado por referência aos demais e a passagem de um ao
outro se efetiva a partir do movimento de um quarto de volta de seus elementos
pelos lugares. É o inconsciente, como instância dinâmica, que provoca essa passa
gem, por meio da mudança do lugar cm que o efeito do significante se produz.
É importante assinalar que a teoria dos quatro discursos deriva do paradigma
fundador da teoria lacaniana do "inconsciente estruturado como uma linguagem",
mas o que Lacan explorou cm O seminário, livro 1 7: o avesso da psiCiJilálise foi a articulação
entre linguagem e gozo. A partir da formulação de que "o saber é o gozo do Outro",
' Trata -se do Projeto Integrado de Pesquisa " aúde, loucura e família: práticas socioinstitucionais
S
cm ser viço" , CNPq/UERJ,
coordenado por mim cm parceria com o professor Marco José de
Oliveira Duarte, que teve como campo empírico de investigação o Instituto de Psiquiatria da
U niversidade Federal do Rio de Janeiro (IPU B ) . O presente artigo tomou como base o relatório
d esse projeto ,
concluído cm julho de 2 00 1 .
" LAC A N, Jacque
s. O seminário, /irra 1 7: o arcsso da psicanálise ( 1969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1992 .
apresentada cm um seminário antcrior7 , desenvolveu a função do saber cm sua
dialética com o gozo, tomando os discurso s como aparelhos de gozo : o gozo que
resta ao falante por estar imerso na linguagem . O objeto a, definido anteriormente
como objeto causa de desejo, ganhou, cm O se minário, lii-r o J 7: o av esso da psicanálise, a
função de "mais -de-gozar", com base cm uma referência ao conceito de "mais
valia", formulado por Marx cm O capital. Nesse último seminário, esse objeto surge
cm diferentes lugares no esquema dos "quadrípodcs", indicando que a distribuição
e o manejo do gozo variam de acordo com o discurso.
O que Lacan procurou demonstrar foi que o gozo primitivo, mítico, que Freud
supôs ao termo do processo primário, com a inserção do aparato significante, está
perdido, e é isso que instaura a função do desejo. O "mais-de-gozar" é um "bônus",
um resto de gow que se produz no lugar da perda e que movimenta o circuito da repe
tição que comanda o desejo. Há uma dialética entre desejo e gozo que passa pelo
saber, fazendo com que nada seja mais importante no discurso que aquilo que diz
respeito ao gozo: "O discurso toca nisso sem cessar, posto que é dali que ele se origina'8 .
Essas formulações interessam -me particularmente por permitirem refletir
sobre o lugar da psicanálise na pólis, a partir de sua inserção no laço social e na
política, cm que diversas formas de laço social se confrontam. O reconhecimento
de que todo discurso é um meio de gozo é fundamental para pensar os discursos
como aparelhos de poder e, a partir daí, o lugar do discurso analítico como la ço
social determinado pela prática de uma análise.
A instituição
A instituição objeto de pesquisa é tradicionalmente médica e universitária, desen
volvendo, desde sua fundação, atividades de ensino, pesquisa e assistência . Ao
longo de décadas, dedicou-se basicamente à formação médico-psiquiátrica articu
lada à assistência . A presença de profissionais de outras formações era absolutamente
acessória, não influindo diretamente na clínica até fins da década de 1 980.
Na década de 1 990, observou-se uma abertura para outros campos de saber -
entre eles, a psicanálise -, paralelamente à reestruturação do serviço, sob a
influência das discussões travadas pelo movimento da reforma psiquiátrica, que
criou o campo da saúde mental. Ainda que essa instituição não estivesse no centro
de tais discussões, seus efeitos se fizeram presentes por meio de algumas mudanças
7
LACAN, Jacques. "O seminário, livro 1 6 : de um Outro ao outro". Inédito.
' Ihid.
enfermarias e ambulatório, assim
nas tradicionais estruturas de assistência, como
co mo na criação e ampliação dos novos dispositivos propostos pela reforma, tais
o Centro de Atenção Diária.
co mo CAPS e hospital-dia , que passaram a integrar
de dez equipes, cuja
E ssa refor mulação incidiu sobre a clínica, com a criação
mas que integra, além dos médicos
super visão fica a cargo de um psiquiatra,
assistentes sociais, terapeutas
res ide ntes, profissionais de outras áreas -- psicólogos,
ocupa ciona is, enfermeiros - e alunos dos diversos cursos de especialização, inclusive
c m clínica psicanalítica .
As mudanças visaram a favorecer um trabalho multidisciplinar na abordagem
da chamada "loucura", que ocorreu paripassu com a promoção da "humanização" do
trata mento, anteriormente de características marcadamente manicomiais, por meio
da modificação das regras de abertura das enfermarias, do fim da divisão por
gênero, da redução do tempo de internação, da diminuição da contenção física e
do uso abusivo de cletrochoques, além de alterações na estrutura do ambulatório,
com a implantação dos Grupos de Recepção a partir de 1995.
Tais transformações abriram espaço para a pluralização dos discursos, acom
panhada da diversificação da clínica , que hoje não se restringe à clínica m édica.
A presença dos discursos da Reforma - sustentando os novos dispositivos de
assistência que compõem o Centro de Atenção Diária - e do psicanalítico - cuja
presença se faz notar no ambulatório vinculado ao curso de especialização em
clínica psicanalítica - traz, como conseqüência, novas concepções de tratamento
que rompem com o paradigma médico dominante .
É importante assinalar, entretanto, que o espaço d e atuação das várias abordagens
clínicas não é distribuído de forma equânime, nem se pode dizer que haja integração
entre elas, no sentido de uma assistência pautada pelo principio da interdisciplinaridade.
As transformações ocorridas quebraram o domínio exclusivo do discurso médico, mas
não chegaram a abalar sua hegemonia. É o Único que atravessa todos os setores,
sustentando a espinha dorsal da instituição através das equipes clínicas. Estas, por sua
vez, têm bastante autonomia, seguindo orientações diversas que dependem de
supervisores - sempre médicos - mais ou menos abertos à articulação com outros
saberes, evidenciando a inexistência de uma linha de trabalho claramente demarcada a
partir da direção da instituição. Se a pluralidade de orientações pode ser pensada como
fator positivo, que estimula a interlocução e a convivência com as diferenças, a
inexistência de uma proposta explícita de direção clínica para o conjunto da instituição
cria um vácuo no qual se reafirma o discurso médico tradicional.
Al ém disso, no cotidiano da assistência, a troca entre as equipes é reduzida,
o correndo
apenas eventualmente. O lugar oficial de intercâmbio são as reuniões
O d esej o d 57
o psicanalista no campo da saúde mental
clínicas, que se realizam uma vez por semana e promovem o encontro de profis
sionais, residentes e alunos do curso de especialização para as discussões. O acom
panhamento de uma série dessas reuniões revelou a predominância do discurso
médico também na constr ução das histórias clínicas e nos debates travados, com
pouca participação de outros saberes.
Assim, apesar dos esforços pela transformação da instituição e das modificações
efetivamente realizadas, ainda temos uma organização marcada pela hierarquia e
pelos especialismos, o que leva à divisão de territórios : enquanto o discurso médico
atravessa toda a instituição, mas tem na enfermaria seu locus privilegiado, o discurso
da Reforma se limita ao Centro de Atenção Diária, e o psicanalítico, ao ambulatório.
A ênfase na internação faz com que grande parte dos pacient es ingresse na
instituição diretamente para as enfermarias, sem passar. pelo ambulatório. Isso
restringe a constituição de um espaço de escuta no qual o sujeito possa trazer sua
questão, o que poderia evitar internações desnecessárias, revelando um resquício
das velhas práticas manicomiais que se pretende ultrapassar.
Observa-se, portanto, que as transformações da assistência nessa instituição cons
tituem ainda um processo em construção, cujo destino depende dos profissionais
envolvidos no trabalho e efetivamente interessados na mudança, entre eles os psica
nalistas. Como afirma um dos entrevistados, psiquiatra, "a psiquiatria só abre mão
do seu lugar de exclusividade não porque queira, mas porque é forçada, e porque
não dá conta do objeto que ela mesmo constituiu, dizendo que iria dar conta".
Psiquiatria e psicanálise
A partir dessa fala, duas questões se apresentam: a primeira, relativa ao objeto da
psiquiatria, e a segunda, à relação entre esse objeto e a psicanálise.
De que objeto se trata? Como se sabe, a psiquiatria, como "medicina especial",
nasceu com Pinel e Esquirol na passagem do século XVIII para o XIX, a partir da
construção de um saber sobre a loucura que a transformou cm "doença mental" .
Esse nascimento é correlato ao do asilo, h erdeiro das antigas casas de internação,
que se constitui como espaço privilegiado de tratamento e cura da alienação mental.
A subordinação da experiência da loucura à ordem médica se dá "concomitante
mente ao nascimento do moderno discurso médico , tributário da razão iluminista,
caracterizado pela crença no racionalismo científico e no poder da técnica'9 .
• RINALDI, Doris. "A ordem médica: a loucura como 'doença mental", Em Pau ta: Revis ta da Faculdade
dc Scniço Social da UERJ, n. 13. Rio de Janeiro, jul . / dez. 1 998.
Na "ordem médica" 1 0 , a razão esta no médico e o "erro", no doente . Na ordem
as ila r, isso é elevado à potência maxima, uma vez que a doença mental é identificada
à d esrazão, que, no entanto, guarda um resquício de razão que pode ser resgatado
p or meio do tratamento moral. A ambigüidadc da revolução pineliana reside no
fato de que a experiência subjetiva da loucura, ao mesmo tempo que encontra um
lugar para expressar sua verdade - o asilo -, vê-se, nesse mesmo lugar, objetificada
pelo saber médico, identificado à verdade e à razão. Isso não significa, entretanto,
que para a psiquiatria em seu nascedouro inexistisse sujeito na alienação mental.
A s próprias idéias de alienação e doença pressupõem um sujeito doente, que,
tomado como objeto do saber médico, sustenta os ideais de tratamento e cura.
o tratamento moral confere ao médico um lugar de poder e autoridade, diante
de um sujeito perdido nas "paixões da alma": poder moral e disciplinador, por
meio do qual o resgate da razão pode se efetivar.
A partir da teoria dos quatro discursos, podemos aproximar o discurso alienista
do discurso do mestre, nomeado por Lacan. Nele, o médico ocupa o lugar de mes
tre que, com seu olhar e sua palavra, pode restabelecer o poder da razão, perdida no
turbilhão das paixões. É o significante mestre (S) que, em posição de comando, age
sobre o outro, o alienado, com o objetivo de promover uma mudança na "cadeia de
suas idéias" 1 1 • O produto do discurso do mestre é a constituição de um objeto (a)
que, nesse caso, é a "doença mental". É aí que se situa o gozo, subsumido pelo saber
(S 2 ) , uma vez que o objeto é uma produção do discurso, estando disjunto do sujeito
(8). Ele não aparece como causa de desejo para o mestre e, por isso, o discurso do
mestre é o único a tornar impossível a fantasia, uma vez que ela supõe a relação de a
com a divisão do sujeito ($ O a) ' 2 . Nesse sentido, o discurso do mestre é recalcador
para o próprio mestre, que é cego quanto à sua verdade.
O que a psicanalisc tem a dizer sobre isso? Em primeiro lugar, a descoberta freu
diana do inconsciente questiona as certezas do sujeito racional, mostrando que existe
uma razão "que a própria razão desconhece" , e que concerne justamente às "paixões da
ahna,, · ao essas razões, de ordem inconsciente, que, em última instância, nos governam.
s-
Com isso, Freud subverteu a noção de doença mental, questionando a oposição normal
versus patológico
e abrindo a possibilidade de comunicação entre "razão" e "desrazão".
O desej o 1
' 0 psicanalista no campo da saúde mental 59
o campo do inconsciente, contudo, não se apresentou para Freud como objeto de um
saber que lhe era externo, posto que ele reconh eceu saber no próprio inconsciente:
saber que não se sabe, mas que se revela na fala de um sujeito.
O que está no centro de interesse da clínica psicanalítica não é a doença mental
como objeto, mas o sujeito em sua singularidade. Mas será o mesmo sujeito a que se
referiu a psiquiatria em seus primeiros passos? Como indica Philippe Julien, o sujeito
que nasce com a psiquiatria é efeito de uma retomada pela medicina, no decorrer do
século das luzes, de uma velha tradição filosófica : a sabedoria estóica. Foi em Cícero
que se buscou a noção de que o desregramento das "paixões da alma" provocaria a
perda da razão. Nas palavras do autor, "o sujeito da psiquiatria é o retomo do sujeito
filosófico da sabedoria antiga, isto é, do prindpio do poder sobre si, da enkratcia. Há em
cada um de nós um piloto, como dizia Platão, que dirige nossas faculdades e nossas
tendências, um pequeno mestre: pequeno homem de bem no homem. Tal é o sujeito'� 3 •
Esse sujeito suposto teria uma função de mestria, no sentido de harmonizar e sintetizar
as faculdades mais elevadas do homem - intelecto e vontade - e as paixões da alma.
É o prindpio da unificação que o rege, sob o império da razão.
Para a psicanálise, contudo, o sujeito é outro. É o sujeito do inconsciente,
dividido pela linguagem, que não se identifica a nenhum ser, a nenhuma substância
encarnada, ex-cêntrico a si mesmo. Dele só temos notícias por seus efeitos na fala,
e é à espera desses efeitos que permanece a escuta do psicanalista. O discurso do
analista, nesse s entido, é o avesso do discurso do m estre, pois o que está em lugar
de agente no discurso não é o significante mestre (S), mas o objeto a, como causa
de d esejo e lugar de gozo (mais-de-gozar). É ele que agirá sobre o sujeito, no
lugar do outro, para produzir o significante m estre (S1) que o marca e divide. Ao
contrário do discurso do mestre, que parte da exclusão da fantasia, no discurso do
analista esta vem para a boca de cena, em que o analista, ao ocupar o lugar de
agente, oferece-se como causa de desejo para o sujeito.
Além disso, se nesse momento de fundação da psiquiatria se podia supor, por
parte do saber médico, a consideração de um "resquício" de sujeito no alienado, a
própria ordem asilar sustentada pelo discurso médico se incumbiria de reduzi-lo
à condição de puro objeto.
Nas décadas de 1 980 e 1 990, a partir do desenvolvimento das neurociência s
e da moderna psicofar macologia, observou -se uma crescente afirmação da
chamada "psiquiatria biológica", que opera uma r edução da vida m ental à sintaxe
11
JULIEN, Philippe. "Pincl, Esquirol, Freud , Lacan", littoral. Op. cit. , p. 4 1 -2 .
neuronal • Esse processo não foi sem conseqüências para a clínica psiquiátrica,
14
Ü dese1· o d .
o ps1cana1·1sta no camp o da sau'd e menta1 61
se dá O equivalente homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é o produto
de nossa indústrià, um mais-de-gozar forjado'%. É o produto da indústria farma
cêutica que surge aqui como equivalente desse "elemento humano", criando sin
tomas e doenças que passam a definir o sujeito, objetificado pelo discurso. A recente
ênfase do discurso psiquiátrico na depressão e na criação de síndromes, como a do
pânico, é exemplo disso.
Mais tarde, em uma conferência em Milão, em maio de 1972 1 7 , Lacan apre
sentaria o materna do discurso capitalista como um quinto discurso, a partir de
uma inversão, no discurso do mestre, dos lugares do significante mestre e do
sujeito. Todavia as considerações que fez em O avesso da psi canálise, vinculando-o ao
discurso universitário, são bastante ricas para a discussão das questões levantadas
na pesquisa, na qual, ao investigarmos o lugar da psicanálise na instituição, de
frontamo-nos com as resistências que o discurso médico lhe opõe, seja pela via do
discurso do mestre, seja pela do discurso universitário.
16
LACAN, Jacque s. O seminário, lirro 1 7: o a vesso da psicanálise. Op. cit. , p. 76.
17
Cf. VA LA S, Pa trick. As dimensões do gozo: do mito da pulsão a deriva do gozo. Rio de Janeiro : Jorg e
Zahar Editor, p. 77, nota 1 38.
1 FREUD, Sigmund. "As resistências à psicanálise" ( 1924) . Em : Obras complew, v ol . XIX. Op. cit .
8
19
FREUD, Sigmund. "Conferências introdutórias sobre psicanálise" ( 19 1 6-7) . Em : Obras complew,
vol. XVI. Op. cit.
2
° FREUD, Sigmund. "Psicanálise e psiquiatria" (19 17). Em : Obras complcra.s, vol. XV. Op. cit. , p. 3 0 1.
psicanálise no campo da assistência, a partir do discurso do analista, tendo como
efeito o recr udescimento da resistência à psicanálise, como pode ser percebido
neste trecho da entrevista de um médico especializando cm psiquiatr ia :
[ . . . ) cu acho que a psiquiatria ficou muito atrasada no tempo por causa da psica
nálise. Antigamente, qualquer ato bizarro era considerado esquizofrenia; hoje
cm dia, há uma ciência mesmo [ ... ) Eu acho que a psicanálise fez péssimos d.iag
nosticos ao longo do tempo e abriu mão até de usar medicação, às vezes. (. . . ) Eu
acho que se perde tempo quando o paciente está precisando de uma intervenção
urgente e o psicanalista hesita mais cm dar a medicação [... ) Eu acho que feliz
mente a indústria, os laboratórios, estão investindo bastante cm saúde mental , o
que cu acho fantástico.
abrindo espaço para outros profissionais, não chega a subvertê-la. O que caracteriza o
discurso universitário, ao recolher e organizar os significantes entre si sem privilegiar
nenhum deles, é a tendência a preservar e reproduzir a ordem estabelecida. Nele há,
no lugar da verdade, o significante mestre (S), que funciona justamente para sustentar
a ordem do mestre. Disso resulta a tirania do saber, na qual a verdade como enigma
que move o desejo é anulada, sendo substituída por um signo. O que fica excluído,
portanto, é a verdade do sujeito, e este não é mais que um produto do discurso da
ciência, "consumível" como os outros. Nesse quadro, torna-se difícil um debate em
torno das diferentes abordagens clínicas que faça surgir algo novo. A tendência é a
reprodução das mesmas posições, preservando "cada macaco no seu galho".
Como se posicionam os psicanalistas perante esse quadro? Há o reconheci
mento, de um lado, da responsabilidade dos médicos quanto ao tratamento básico
oferecido .pela instituição - internação - e, portanto, a aceitação da hierarquia
fundada no saber médico e, do outro, da importância de conviver com a pluralidade
de abordagens, por se tratar de uma instituição universitária. Em ambos os casos,
trata-se de tentar autorizar o trabalho da psicanálise dentro do hospital de maneira
sutil, "sem arrogância" e "sem hostilidade". A expressão mais freqüentemente
utilizada para evidenciar essa estratégia é "não bater de frente", que pode ser
traduzida, no sentido psicanalítico, por não criar, ou melhor, não reforçar as resis
tências à psicanálise. Os psicanalistas entrevistados reconhecem as resistências pre
sentes na instituição , não apenas por parte dos representantes do discurso médi
co-psiquiátrico , mas também d e outros profissionais, muitas vezes vinculados ao
discurso da reforma psiquiátrica. Mais importante, entretanto, é a percepção de
que a resistência também se apresenta naqueles que pretendem sustentar a prática
psicanalítica na instituição.
Não se pode esquecer o valor da observação de Lacan quanto à questão da
resistência, que, em última instância, é sempre do analista , o que nos remete às
observações de Freud sobre suas fontes afetivas. Foi a partir da crítica aos pós
freudianos, cuja prática se baseava na análise das resistências e na elaboração da
contratransferência, que Lacan destacou a resistência como dizendo respeito ao pró
prio analista. Isso o levou, em contrapartida, a formular a noção de "desejo do ana
lista" como fundamento da ética da psicanálise. Ainda que essa formulação tenha
22
Cf. ALBERT) , Sonia. "Psicanálise: a última flor da medicina". Em : ALBERT), S. e ELIA, L
(org.). Clínica e pesquisa cm psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000, p. 50.
contexto da condução de uma análise, isto é, no campo da "psicanálise
su rg ido no
crn in tcnsão", podemos considerá-la pertinente também no âmbito da "psicanálise
c rn e xtensão", em que o discurso psicanalítico se defronta com outros discursos.
A questão que se impõe, portanto, é como sustentar o desejo do analista em uma
institui ção de saúde mental que tem no discurso médico sua principal referência.
No caso estudado, apresenta-se uma série de dificuldades . Em primeiro lugar,
a pr áti ca psicanalítica na instituição é sustentada pelos alunos do curso de espe
cializa ção cm clínica psicanalítica, exceção feita a uma psicanalista diretamente
li ga da à assistência, como parte da pesquisa que desenvolve. Isso traz al guns pro
bl emas, já que eles não estão plenamente autorizados a ocupar o lugar de analista,
mesmo porque a universidade não visa a formar analistas2 • Sua ação se restringe
3
24
FIGUEIREDO, Ana Cristina. Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1 997.
25
Ibid . , p. 1 0.
26
Ibid . , p. 1 1 .
º desejo do ps1cana
. i·1sta no campo da sau' d e menta
i lnst·1tuto denPsic olog ia - UFRGS 67
'" LACAN, J acques. "A terceira" ( 1 974), Chc vuoi? Psicanálise e Cultura, ano 1 , n. O, 1 986, p. 2 5 .
e
analista so' pod e " 1azer de conta", «1azer
e e
semblante", quando se 01erece para o
suj eito como causa de seu desejo, o que não se aplica apenas a esse discurso, uma
vez que todo discurso põe cm jogo um "faz de conta", por meio do artifício simbó
lico. E esse lugar de dejeto, como efeito do significante, que o analista ocupa ao
faze r operar o dispositivo analítico para que o significante mestre (S1 ) se destaque,
como marca do suj eito que é memória de gozo. O saber ocupa o lugar da verdade,
isto e, funciona no registro da verdade que é sempre não-toda. Não se trata,
portanto, do mesmo saber que está cm jogo no discurso universitário, mas do
saber inconsciente, que mantém uma face enigmática.
Aos psicanalistas "não mortos", portanto - que se defrontam com os impasses
criados pela inserção da psicanálise no hospital público, no qual a impotência,
como é comum a todo laço social, protege a impossibilidade -, cabe circular pelos
vários discursos, sem se deixar aprisionar cm nenhum deles, mtúto menos no
discurso universitário, fazendo da psicanálise apenas um saber sem furo. Ao apostar
na proposta freudiana, é preciso, sem medo de errar, fazer da psicanálise um sintoma
que prolifere e, como tal, faça eco e possa ser escutado.
Psicanálise e Ciência
A al e tosfera , lugar de obj etos
ag almáticos
Filippo O livieri
O seminário, livro 1 7: o avesso da psic an ális c foi uma das formulações mais criativas de Lacan,
1
1
LACA N, Jacques. O seminário, li1ro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 992.
' FREUD, Sigmund. "O mal-estar na civilização" ( 1 929). Em: Obras completas, vol. XXI. Rio de
Janeiro : Imago, 1 980.
: LACA N, Jacques . O seminário, li1ro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit., p. 1 5 2 .
_ LACA N, Jacqu es. Tclevisão ( 1 974) . Rio d e Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 993.
' lbid. , p . 40.
71
No discurso histérico,. tem-se um sujeito dividido ($) no lugar do agen te, e
essa divisão se deve ao objeto a (mais-de-gozar) no lugar da verdade, o que remete
à verdade do sintoma. A histérica interroga o mestre (S 1 ) no lugar do Outro, que
produz um saber (S 2 ) no lugar da produção6 • Contudo o saber criado não dá conta
daquilo que o causa no lugar da verdade. Não há, por exemplo, um significante
que responda o que é ser uma mulher, mas apenas a impotência do saber produzido
pelo mestre, obrigando a histérica a refazer sua pergunta.
A convergência entre os discursos científico e histérico está no saber. O sujeito
histérico, assim como o sujeito da ciência, é suposto não saber. A histérica interroga
o mestre da mesma forma que o sujeito cartesiano, sujeito da ciência por excelência,
interroga o saber constituído. Lacan afirmou que, embora se trate de um saber
que logo estará defasado, o imperativo categórico da ciência é "Continue a saber ! '17 •
Assim, no saber médico, por exemplo - uma das ver tentes mais significativas do
discurso da ciência -, a medicação "de ponta" logo está ultrapassada: os objetos
criados pelo saber científico são sempre de "penúltima geração", e é nesse sentido
que o sujeito histérico e o da ciência se acoplam.
Entretanto Lacan afirmou que o discurso histérico tem quase a mesma estrutura
do científico , indicando a existência de uma divergência cm relação à verdade . No
materna do discurso histérico, encontra -se a no lugar da verdade, indicando a ver
dade recalcada de seu sintoma. A ciência, no entanto, não quer saber nada da
verdade como causa, há Vcrwcrfung dessa verdade, o que indica uma tentativa de
repúdio da divisão do sujeito :
Quanto ao que ocorre com a ciência, não é de hoje que posso dizer o que me
parece ser a estrutura de sua relação com a verdade como causa, já que nosso
progresso neste ano deve contribuir para isso.
Abordá-la-ci através da estranha observação de que a prodigiosa fecundidade de
nossa ciência deve ser interrogada em sua relação com o seguinte aspecto, no
qual a ciência se sustentaria : que, da verdade como causa, ela quer-saber-nada. 8
6
Como Freud, impelido p elas histéricas a produzir um saber - no caso, a psicanálise.
7
LACAN, Jacques . O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit., p . 99.
8
LACAN, Jacques. "A ciência c a verdade" ( 1965) . Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge zahar
Editor, 1 998, p . 889.
' LACAN , Jacques. O seminário, livro 1 7 : o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 150.
' º lbid . , p.
1 51 ; 15 3.
" lbid. , p. 1 5 1 .
11
Mas também foi categórico cm afirmar que o verdadeiro pensamento científico deve estar
.
li ber to disso.
/\ aletos 1·era,
lugar de objetos agalmáticos 73
Trara-se justamente do lugar de fato ocupado - pelo quê? Falei há pouco de ondas. É disso que se trata.
Ondas hertzianas ou quaisquer outras, nenhuma fenomenologia da percepção nunca nos deu delas a menor
idéia, e com certeza jamais nos teria conduzido a elas.
Esse lugar, certamente não o chamamos de noosfcra, que estaria povoada por
nos mesmos. Se ha algo que, no caso, passa para o centésimo plano de tudo o que
pode nos interessar, é justamente isso. Mas lançando mão da aleteia de um modo
que nada tem de emocionalmente filosófico, vocês poderiam, a menos que achem
algo melhor, chama-la de alctosfcra . 1 1
A s latusas não estão apenas nas vitrinas: seu brilho agalmático chega até nós p or
meio de ondas que serpenteiam pelo ·ar e constituem a aletosfera . Lacan ressaltou
que basta ter um microfone para nos ligarmos a ela, e citou como exemplo a ida do
homem à lua, fato cm evidência à época. Mesmo estando na lua, os astronautas
estavam na aletosfera, uma vez que utilizavam ondas para se comunicar1 4.
Cada vez mais , a televisão nos acossa com intermináveis propagandas. A inter
net, com seus sites de compra, tem forte apelo comercial, já se afigurando como
um verdadeiro mercado virtual. Dessa maneira, estamos como que capturados na
alctosfera, nessas ondas que causam nosso desejo e tentam fazer supor que o encon
tro com o objeto é viável, quando não há objeto natural na ordem humana.
Cabe, então, perguntar se a aletosfera não seria um espaço reser vado ao gozo
e se o campo lacaniano, campo do gozo, também não estaria presente em seus
efeitos. Uma vez que o próprio Lacan equiparou as latusas e o objeto a, a resposta
provavelmente é afirmativa. Assim, o que torna cada latusa agalmática é o que
nela está contido de singu laridade : podendo ser um objeto qualquer, de modó
algum é qualquer objeto. Cada objeto é agalmático para um sujeito quando evocá
o brilho do objeto perdido ou, melhor dizendo, de sua perda. A aletosfcra pode:
ser perfeitamente articulada com o gozo, desde que este seja entendido como ci
encontro com algo faltoso.
A latusa é agalmática
Em O seminário, livro 8: a transferência 1 5 , Lacan discorreu sobre as questões do amor.
Utilizando-se de O banquete, de Platão, focalizou a relação de Sócrates e Alcibíades
,; LACAN, Jac9ucs. O seminário, li�ro 8: a transferência (1 960-1 ). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 994,
Note-se que Lacan fez uma referência topológica, afirmando que as latusas são
algo que se encontra no interior do sileno. Mais tarde, em O seminário, livro 1 7: o avc.s:so da psicanálise,
ele faria novo uso da topologia, ao dizer que a aletosfera é um lugar. Não poderíamos,
então, pensar nela como um lugar dentro do qual estão os objetos agalmáticos?
A questão do agalma se articula com a função do desejo humano. Em O banguetc,
tratava-se de objetos de fascínio que saíam da boca de Sócrates p ara seduzir a
todos , em especial, segundo Alcibíades, aos belos r apazes. Esses objetos são agal
máticos porque são privilegiados do desejo e irão para cada um até o ponto limite
que Lacan chamou de metonímia do desejo inconsciente. Aí, o objeto agalmático
desempenha o papel sempre limitado e fugaz de causa de desejo. A função essencial
do agalma é produzir a metáfora do amor, na qual a imagem ilusóri a pode ser per
cebida pelo olho como real no nível do objeto do desejo.
Ora , nove anos após O seminário, livro 8: a transferência, Lacan chamaria esses objetos que
causam o desejo de latusas e, portanto, é legítimo afirmar que circulam na aletosfera.
,. lbid., p. 141.
bíades o protótipo do sujeito histér ico que demanda um saber ao mestre. Sócrates,
contudo, esquiva-se desse lugar e afirma que o que interessa a Alcibíades é um
outro : quando este, discorrendo sobre o que há de agalmático no filósofo, reivindica
o saber que nele supõe, a atopia de Sócrates o impele a apontar que o agalma que
move Alcibíades se encontra em outro - no caso, Agatão.
V imos que o imperativo categórico da ciência é "Continue a saber ! ". Pode-se
supor essa demanda como sendo a mesma que o histérico lança ao mestre. Mas o
histérico mostra que o agalma está sempre em outro lugar: o objeto fascinante hoje
já não o será amanhã, uma vez que o agalma não está no objeto cm sua concretudc.
As histéricas que freqüentam os consultórios médicos exigem que se saiba sempre
mais. "Esse remédio não resolve nada, por isso estou aqui!", diz a paciente ao
analista cm uma entrevista preliminar, assim como as histéricas de Freud puseram
em questão o saber médico de sua época, levando-o a inventar a psicanálise.
Do mesmo modo, o "Continue a saber !" imposto pela ciência indica que os
objetos que povoam a aletosfera serão sempre destituídos. Pode-se pensar a
aletosfera como lugar cm que as latusas circulam, mas esse movimento depende
do "Continue a saber !". Ao aproximar os dois discursos, vemos que o sujeito da
ciência, assim como o histérico, exige a constante produção de um novo saber, e o
que é agalmático hoje se tornará fosco amanhã.
Lacan e o objeto a: uma articulação
e ntre psicanálise e matemática
N elma de Mello Cabral
A constituição do objeto a
Para explicar a divisão do sujeito e definir o lugar de a nessa operação, Lacan recorreu
a uma analogia com a divisão aritmética5 • Para ser realizada, essa operação exige que
sejam dados dois números: o dividendo e o divisor. Do mesmo modo, para que ocorra
a divisão do sujeito, faz-se necessária a existência do Outro (A), concebido como espaço
aberto de significantes, e de um sujeito hipotético (ou primitivo), S. Como resultado,
o sujeito se inscreve no lugar do quociente como sujeito barrado (/,) em função de um
resto, que se separa do Outro ao resistir à assimilação da função significante. Lacan
chamou esse resto de objeto perdido e o designou com a letra a :
Na aritmética , o resto pode ser tomado, em u m sentido mais usual, como quan
tidade que falta ao produto do quociente pelo divisor para se chegar ao dividendo
(dividendo = quociente x divisor + resto) ou, em um sentido não tão comum, como
quantidade que o dividendo possui a mais que o produto do quociente pelo divisor,
um excesso do dividendo (dividendo - resto = quociente x divisor) .
Pode-se extrair do caminho indicado por Lacan a constituição não somente de
uma falta na divisão do sujeito, mas também a de um pequeno excesso. Ao consi
derar a divisão para mostrar como se dá a fundação do sujeito e a constituição de
' O objeto a pode também ser abordado no contexto dos registros psíquicos: Real, Simbólico
e Imaginário. Com a descoberta da topologia do nó borromeano para pensar a amarração dos
três registros, Lacan mostrou que a existência de um nó articulando os três registros cava um
vazio central, representando o lugar do próprio nó , onde situou o objeto a.
; LACAN, Jacques. "O seminário, livro 10: a angústia". Op. cit.
s , objeto a e sujeito barrado ($), que se permutam por quatro lugares fixos -
1
a�entc, Outro, produção e verdade. Também fazem parte dessa fórmula a flecha
(�), designando impossibilidade, e a barra (-), que significa clivagem.
Dependendo do lugar em que se encontram os elementos a, $, S2 e S 1 , tem-se
como resultado a produção de um tipo de discurso. A passagem de um discurso a
outro exige a operação de um quarto de giro em seus elementos, caracterizando,
portanto, uma permutação circular9. Para Lacan, o discurso inaugural que instaura a
possibilidade de tratar o sujeito falante como habitado pela linguagem é ô do mestre.
O significante mestre, S 1 , intervém no campo do Outro, cm S 2 , provocando a
emergência do sujeito barrado ($). Essa intervenção é feita ao custo de uma perda,
a perda de gozo, que se presentifica como mais-de-gozar. Ao produzir como efeito
o mais-de-gozar, a intervenção significante evidencia a existência de uma causa, a
causa de desejo. Dessa forma, com a perda de gozo na fundação do sujeito, o mais
de-gozar e a causa de desejo instauram a economia psíquica.
D ados D e d , números inteiros com d -:te O, existem e são Únicos dois inteiros q e r, tais que
6
lacan e O
objeto a
Por meio da fórmula "o saber é o gozo do Outro" 10 , o mais-d e -gozar relaciona
saber e gozo . Ao surgir a inter venção significante pelo estabelecimento de uma relação
entre S 1 e S_,, há uma queda no campo do Outro de algo que é da ordem do gozo . J á a
causa de desejo relaciona verdade e desejo, por meio da fórmula "o desejo do homem
é o desejo do Outro" 1 1 • Para definir o objeto a e sua participação na economia do
falante, Lacan trilhou o caminho do formalismo matemático de Bourbaki, no qual um
símbolo é definido por sua relação com outro símbolo. O a é uma letra que se relaciona
com outras letras : isolado, não faz sentido. Todavia não somente mantém relação, como
pode ser permutado com outra letra, como acontece, por exemplo, nos quatro discursos.
Também pode ser apagado, rasurado ou ainda manipulado, como na fórmula D = dx + y,
em que, ao substituir D e d por dois inteiros quaisquer, sempre é possível encontrar
dois números inteiros x e y que satisfaçam a equação.
O a articula -se com A (Outro) e com g (sujeito barrado), se o contexto consi
derado for a divisão do sujeito, ou então com S 1 (significante mestre), S 2 (bateria
significante) e g, se a abordagem for pela via do discurso do ser falante. Pode-se
inferir daí que Lacan nomeou um objeto que tem relações determinadas dentro
de um conjunto de letras. Não vejo nesse encaminhamento uma filiação ao forma
lismo estrito, no qual a teoria consiste cm um jogo cujos objetos são destituídos
de significação. Em ambos os contextos, a invenção do objeto a decorre da neces
sidade de explicar o surgimento do sujeito e o motor de sua existência.
Ao usar a letra a para designar o objeto perdido, Lacan a destituiu de qualquer
caráter dedutivo, isto é, ela não carrega consigo a possibilidade de dedução. Esta
belece-se assim um cálculo local em que o manejo das letras possibilita extrair
proposições empíricas referentes à clínica psicanalítica . Segundo Milner, "um ma
terna lacaniano, enquanto literal, funciona idealmente como uma matriz de pro
dução de proposições empíricas" 1 2 •
'º LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o arrsso da psicanálise. Op. cit. , p. 1 3 .
11
LACAN, Jacques. "O seminario, livro 1 O: a angústia". Op. cit.
12
MILNER, Jean Claude. A obra clara ( 1 993). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, p. 1 06 .
11
LACAN, Jacques . O seminário, li,ro 2: o cu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise . Rio de Janeiro :
Jorge Zahar Editor, 1 98 5 .
_,, LACAN , Jacques. O seminário, lfrro S: as formações do inconsciente ( I 957-8) . Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, I 999, p. 263.
laca,, e. o b ·
o Jeto a 81
pulsional. Como já afirmei, Lacan considerava o objeto a irracional 1 5 • Entendo
disso um número irracional, e questiono o que ele possibilita compreender sobre a
noção de resto cm psicanálise.
De acordo com a teoria das equações, dado dois números reais D e d:;t:O,
sempre se pode encontrar dois outros números reais x e y, tais que D
= dx + y 6 •
Podemos tornar essa equação análoga à da divisão aritmética, isto é, à D = dq + r
e, por um abuso da linguagem, chamar as incógnitas x e y de quociente e resto,
respectivamente. Desse modo, podemos continuar considerando o objeto a como
resto e, como o universo de solução da equação não se restringe ao conjunto dos
números inteiros, podemos considerá-lo um número real. Nesse caso, ele pode ser
racional ou irracional. Suponhamos que seja um número racional e consideremo-lo
em sua expressão decimal periódica. Por exemplo 1,347289347289347289...
Observe que um número como esse pode ser escrito indefinidamente e que,
depois de certo tempo, os mesmos algarismos se repetem. Temos, nesse caso, a
repetição do mesmo, a reprodução de um período, um ciclo. Tomar o resto como
número racional para pensar o movimento pulsional implicaria conceituar a repe
tição do humano apenas como reprodução do mesmo, o que não está de acordo
com a repetição nos sonhos traumáticos, na clínica e nas brincadeiras infantis,
destacadas por Freud cm "Além do princípio de prazer" 1 7 • A compulsão à repetição
de que trata a psicanálise não obedece a nenhum ciclo, pois põe em jogo uma
quantidade de força variável que atua de forma constante. Justifica-se, assim, a
razão de Lacan ter afirmado que o objeto a é irracional.
Os números irracionais não têm expressão exata, ou seja, a possibilidade de
escrevê-los nunca se esgota. Além disso, não apresentam o fenômeno de repetição
de um mesmo período, pois a cada algarismo segue-se outro, indefinidamente.
Em geral, escreve-se --/2 = 1,414... , mas é possível continuar:
11
LACAN, Jacques. "O seminário , livro 1 O: a angústia". Op. cit.
16 Dados dois números quaisquer, existem infinitos números reais satisfazendo à equação D = dx + Y·
Basta arbitrar um valor qualquer para x e obter um valor para y (ou o contrário).
17
FREUD, Sigmund. "Além do princípio do prazer" ( 1 920). Em : Obras completas, vol . XVIII . Rio
de Janeiro: Imago, 1980.
19 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: m ais ainda ( 1 972-3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1 996, p. 1 27.
'" MARX, Karl . E/ capital ( 1 867). México: Fondo de Cultura Econômica, 1 980, p. 1 6 1 .
,,LA C A N , Jacques. O seminário, livro l i : os quatro conceitos fundamentais d a psicanálise. Rio de Janeiro :
Jorge Zahar
Edit or, 1979.
lacan
e o objeto a 85
que demanda uma fala - "Fale, fale qualquer coisa, fale tudo que lhe ocorrer" -
que o analista institui o analisando como sujeito suposto saber, e é daí que ele
poderá advir como analista: "É lá onde estava o mais-de-gozar, o gozar do outro,
'. .
que eu, a' med 1'da que profiiro o ato anal1t.J.co, devo advir"2l
1= 1
1 + 1=2
1 + 2 = 3
2 + 3 =5
3 + 5 = 8
5 + 8 = 13
8 + 13 = 21
1 3 + 2 1 = 34
22 LACAN, Jacqucs. O seminário, /irra 17: o a rcsso da psicanálisc. Op. cit. , p. 50.
Obtém -se, assim, a seqüência 1 2 3 5 8 1 3 2 1 34 5 5 89 144. . .
na cci pelo termo seguinte, forma-se uma nova seqüência de números, defmida pm :
:2 4
2 3 5 8 13 21 34
2 3 5 8 13 21 34 55
Foi por essa seqüência que Lacan se interessou para abordar o objeto a como mais
de-gozar. Há, na obtenção de cada termo, a repetição de wn número anterior, mas cm
outra posição (o denominador de qualquer termo da seqüência é o numerador do
termo seguinte) e, conseqüentemente, a produção de wn termo diferente do anterior.
Note que os termos dessa seqüência oscilam, pois o segundo termo é menor
que o pr imeiro, o terceiro, maior que o segundo, o quarto, menor que o terceiro
e assim por diante. A seqüência, portanto, não é crescente nem d ecrescente.
" Defimr uma seqüência por recorrência, ou recursivamente, consiste em defini-la por intcr-
rn édio de uma regra que permita calcular qualquer termo da seqüência cm função dos anteces
sores im ediatos, como fez Leonardo de Pisa. Uma recorrência é dita de segunda ordem se cada
ter rno da seqüência é expresso em função dos dois antecessores imediatos. Nesse caso, para que
a seqüência fique bem determinada, é necessário o estabelecimento dos dois primeiros termos.
''
Escolhi p ara o desenvolvimento deste trabalho a seqüência obtida p ela divisão do antecedente
P lo co ns eq üente, cuja expressão é dada por u/ u. + , • considerada p or Lacan no capítulo "Os
e
sulcos da
aleto sfcra" de O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise, e não a expressa p or ele um p ouco
ab aixo, no
mesmo parágrafo.
Contudo a cada termo que se avança a diferença para o anterior se torna menor e
se aproxima de um número irracional : 0, 6 1 80 3 3 989... Estudando o comporta
mento dessa seqüência, tem-se que a di ferença entre a0 e 0 , 6 1 8 ... é arbitrariamente
pequena para um n suficientemente grande. Isso significa que o limite da seqüência
de Fibonacci é 0, 6 1 8 .. .
Vejamos agora a relação entre a seqüência de Fibonacci e a razão áurea. Pri
meiro, é importante ressaltar que os termos da seqüência de Fibonacci são frações
comuns que podem ser expressas em frações unitárias:
1 +1 1
1 + T+T 1 + 1 + -------
1 +
1
+ --
1 + 1
A c B
a b
Diz-se que um ponto C desse segmento o divide em média e extrema razão se:
AC CB
AB AC
a b
a +b a
A razão - é conhecida como razão áurea ou número áureo, e daí segue que
b
a
a = b2 + ah.
2
-V S - 1 b
m = -- :'.: 0,6 1 8 . . . � --;- = 0,6 1 8... ,
2
FR EUD, Sigrnund. "Psicologia de grupo e análise do ego" ( 192 1). Em: Obras completas, v ol.
27
J + 1
a+ a+ a + --------
a+ 1
a+ a+
a+ 1
a+
a+ 1
Para obter cada termo da seqüência, repete-se a mesma lei, mas a repetição
não engendra o m esmo termo, e sim termos distintos, que se afastam do primeiro
para se aproximar do número áureo. Do mesmo modo que cada termo da seqüência
de Fibonacci é obtido a par tir de um outro, que é obtido de outro, o sujeito
advém do Outro, ou seja, é no Outro que ele colhe os significantes com os quais
poderá advir e forma uma cadeia .
A noção de tykhé permitiu a Lacan conceituar a compulsão de que Freud falara
como repetição com diferença. Mas como entender essa repetição diferencial no
falante? Assim como, por uma lei de recorrência de segunda ordem, obtém-se a
seqüência de Fibonacci, em que os termos são distintos um do outro, por uma lei
de formação (a castração) que se repete insistentemente como mau encontro,
novos significantes poderão fazer parte da cadeia que constitui cada falante. A partir
daí, pode-se dizer que a marca da singularidade do sujeito não é dada especifica
mente por seus significantes, que podem ser substituídos, mas pelo mais-de-gozar,
que expressa na repetição a forma com que cada falante se assujeita à lei da castração
e assim escolhe e ordena suas cadeias significantes.
Das especificidades da seqüência de Fibonacci, Lacan pôde depreender que
não imp
or ta a origem, a divisão original, mas a existência desse ato que deixa
co mo
marca o traço unário, o primeiro significante, o ser marcado como "um" do
'.lual to dos procedemos. Basta uma Única repetição para o advento do sujeito e sua
�nscrição no cngcndramento do automatismo da repetição. Lacan recorreu à razão
aurca de · ' · para estab e1 eccr as re 1açocs · · eo
um segmento un1tano - entre o SUJCito
O utro e entr
e a causa de desejo e o mais -de-gozar :
o
a
Como vimos, um ponto a desse segmento o divide cm média e extrema razão
ou razao aurca se:
- 1
1
--- =a
a+ 1
a+
a+
1
a+ -
a+
JO Ibid . , P· 1 49.
l i U m número real tem representação e m fração contínua infinita s e , e somente s e , e l e é u [Tl
número irracional.
unitario permite entender que o sujeito não é causa de si mesmo, mas traz consigo
0 g er me da
causa que ira cindi-lo novamente : a repetição de um encontro faltoso.
E m O seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan articulou causa e gozo ao afirmar que 0
si g nifi cante é causa tanto material quanto final do gozo, pois sua inscrição cm uma
cad eia acar reta a interdição do gozo absoluto. Todavia se, por um lado, ocorre a
i n terdição do gozo pleno, por outro, surge um novo tipo de gozo, um bônus,
provocado pela inscrição do significante na cadeia .
Pode-se extrair da articulação entre os seminários abordados um deslocamento
no discurso lacaniano, da fórmula "O desejo do homem é o desejo do Outro" -
q ua ndo Lacan tomou o a como letra que cai do simbólico no real - para a fórmula
"O saber é o gozo do Outro" - quando afirmou que, em cada divisão do sujeito, o
a retor na, por meio da repetição, como mais-de-gozar. Esse deslocamento, análogo
ao freudiano, introduzido com a repetição em "Além do princípio de prazer",
mostra a existência de uma falta real e originária sofrida pelo vivente ao ser atin
gido pela pulsão, o que faz dele um ser sexuado e mortal.
Essa é a falta presente não apenas na causa de desejo, mas em seu efeito, o
mais-de-gozar. Ao realizar uma subversão, deslocando "isso gira", e gira cm uma
cadeia significante, para "isso cai", e cai porque, como excesso, atinge o sujeito de
forma traumática, o que Lacan ressaltou foi a direção da experiência analítica,
oferecida por Freud a partir do conceito de pulsão de morte.
P A R T E IV
O lugar do Pai
O lugar do Pai
Elisabeth Freitas
1
LACAN , Jacques. O seminário, livro 4: a relação de objeto ( 1 956-7). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar
Edito r, 1 995, p. 38 3 .
95
Primeira : os textos mctapsicológicos (impressão de traços mnésicos ou escri ta
psíquica), que exigem o recurso à escrita cm forma de esquemas e diagramas para
substituir o aparelho neuronal de "Projeto para uma psicologia científica'" pela di
mensão tópica espacial do aparelho psíquico. Há cm Freud um recalcado irred u
tível, um impossível a saber, ou melhor, não há anterioridade do saber inconsciente .
Segunda : a escrita dos mitos (Édipo e o pai da horda), que servem para dar
corpo ao pai, isto é, para indicar a noção de pai como referente ou "operador
simbólico a -histórico"7 •
Terceira : o texto "Moisés e o monoteísmo", que ocupa o lugar intrínseco do
pai como resultado de operações com a escrita . Para Freud, a deformação [Entst cllung]
de um texto tem duplo sentido: mudar a aparência e transferir, assemelhando -se
as lacunas , contradições e repetições nele encontradas a um assassinato .
Quar ta : o estilo freudiano de escrita manuscrita gó tica (cuja origem é oriental)
sobre grandes folhas de papel. Como afirmou Lacan, "a letra da obra de Freud é
uma obra escrita'>II, tendo sido o próprio Freud quem afirmou que "o escritor se
sente como um pai em relação à sua obra'19 •
Pode-se dizer que essas quatro escritas freudianas têm por condição o apaga
mento do objeto do qual se originam. No mito primordial do pai mor to, a questão
da voz, como forma do desejo . do Outro e do nome impronunciávcl de Deus,
herdeira do grito do pai da horda assassinado pelos filhos , indica o lugar vazio,
essência do ponto velado referido ao enodamento do pai à pulsão. É essa a condição
do gozo que está no centro das questões freudianas, ou melhor, "não há outro
meio de aceder a esse vazio central da Coisa senão representá-lo, colocando um
dado objeto nesse lugar vazio através de um ato criador"'º.
Quinta: a elaboração lacaniana das escritas de Freud por meio da escrita borro
meana, que exclui o sentido e enoda o aparelho psíquico, o pai e a imago Dei . A retirada
do campo místico-religioso do termo que funda o pai simbólico, isto é, que faz de
Deus o nome, ou Nome-do-Pai, reconfigura-o no nível de uma metáfora paterna.
6
FREUD, Sigm und. "Projeto para uma psicologia científica" ( 1 895). Em: Obras completas, vol. J .
Op. cit.
7
DÔR, Joel. O Pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 99 1 , p. 1 3 .
8
LACAN, Jacques . "O seminário, livro 1 8 : de um discurso que não seria do semblante" . Op- cit,
9
FREUD, Sigmund. "Uma lembrança da infância de Leonardo da Vinci" ( 1 9 1 0) . Em : Qbf3S
completas, vol . XI. Buenos Aires: Amorrortu, 1 994, p. 1 1 3 .
'º JULIEN, Philippe. O estranho gozo do próximo. Rio d e Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996, P· 1 l l -
0
96 Saber, verdade e go1-
C om o se escreve o pai cm Freud e cm Lacan? Suas respostas para a função do pai
r utura s ã o diferentes . Ao passo que Freud ar ticulou as figuras míticas na ten
na c, s·t
. de con struir uma origem, Urvatcr [pai primcvo], que aponta para o Urvcrdriingt
tatl',,"
originário] ou a falta de significante significada pelo recalcamento, Lacan
[re cal q ue
a passagem do mito para a estrutura de linguagem a fim de substituir a
opcro u
rnctajJsi co logia freudiana, isto é, articular a estrutura dos diferentes mitos do pai
por Freud como metáforas, criando a metáfora do Nome-do-Pai . Em
com· tru ídos
as psi cos cs 1 1 , fez emergir três significantes que determinam sua trans-
0 scmin,írio, Jil'l'o 3:
rnis são : o Outr o, o Nome-do-Pai e a foraclusão. A redução do pai ao significante
Nome -do-Pai indica que as três versões freudianas do pai - Édipo, pai da horda e
Moi sés têm como condição de unificação a invenção do Outro (A), lugar de exceção .
Em Freud, é o texto "Moisés e o monoteísmo" que ordena a escrita psíquica
inconsciente, forma o sujeito e indica um originário que, para Lacan, é irremediavelmente
furad o. O pai de Freud, Moisés, ocupa esse lugar de exceção ou ponto de impossível, pois
indica o furo da não-relação sexual, que não se inscreve, ma� funciona como recurso
necessário para sua escritura. Logo, por meio da escrita de um texto, Freud constrói um
lugar contra a ameaça do absurdo e da morte, o lugar do pai, ou melhor, o Deus Moisés
como "o mesmo Deus de Akenaton, um Deus que seria Um"1 2 •
Na transmissão de Lacan, a trilogia paterna, ou os três registros enodados do
pai, foi pensada por meio da metáfora do Nome-do- Pai, que difere do materna da
metáfora pertinente às formações do inconsciente ou à lógica do processo primário
de "Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud'� 3 • Nesse texto, a
metáfora como elemento da lógica do significante se escreve da seguinte forma:
f (S') S = S (+s)
s
A segunda escrita da metáfora, formulada em "De uma questão preliminar a
todo tratamento possível da psicose" 14 , aplica-se
à metáfora do Nome-do-Pai ou
rnetáfor a com o símbolo ou sintoma. Consoante
essa nova escrita, a Vcrwerfung [fo-
" LACAN , Jacgues . O seminário, li1TO 3: as psicoses ( 1 95 5-6). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 985 .
11
LAC,AN, Jacgues. O seminário, hro
_ 17: o avesso da psicanálise ( 1 969-70). Rio de Janeiro : Jorge Zahar
Ed itor, 1 99 2 , p. 1 09.
" LACAN, Jacgues. "Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud" ( 1 957). Em:
º
Escritos R 10
· d e Jane1ro: Jorge Zahar Editor 1 998.
'
14
LACAN , Jacgues. . "De uma guestao · ·
- pre 1 1mmar a todo tratamento poss1vel da psicose" ( 1 958).
E rn.. Escritos.
.
Op. cit.
0 Jugar d P
o ,ai
97
raclusão] freudiana é indicada pela foraclusão do Nome-do-Pai, ou seja, este se
refere, por ausência, à significação simbólica do Falo, foracluído nas psicoses .
Nome d o Pai
De sejo da mãe
Desejo da m ãe
Nome do Pai
Nome do Pai (
----A
Phallus
Pai simbólico
"O pai simbólico é impensável. Ele não está em lugar algum, ele não intervém em
nenhum lugarm s . Nome-do-Pai é o significante do pai morto, ou melhor, a inscrição,
no simbólico, da falta de significante do gozo. Embora seja um significante impro
nunciável, sua operação se produz a cada vez que um nome próprio é promrnciado.
O sujeito, portanto, entra na ordem simbólica por meio da inscrição de um nome
no lugar vazio do Outro, autorizando a existência do sistema significante. É a
invenção do pai morto como interditor do gozo que funciona como estrutura
mítica no texto freudiano, em que o Deus Yahvé do monoteísmo diz: "Eu sou
aquele que sou", ou seja, é desse lugar que se origina a fala ou, segundo Lacan, que
o eu 1/e] pode advir.
Assim, o que funcionará como pai para um sujeito não é o genitor, que não
ocupa lugar no psiquismo, mas sim o significante do pai morto do tempo mítico
freudiano. Como Lacan afirmou, em Oseminário, livro 3: as psi coses, "antes que houvess e
15 LACAN, Jacques. "A significação do fal o" (195 8). Em : Escritos. Op. cit.
16
LACAN , Jacques . "Le Séminaire, Livre XXI: Les non-dupes errent" (1973-4) . Inédit o.
17
LACAN , Jacques . "O seminário, livro 2 2 : R .S.I." (1975) . Inédito.
18
LACAN, Jacques . O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-7). Rio de Janeiro: Jorge zahar
Editor, 1995.
• • 1 •
•
Pai 1magmano
A partir do lugar terceiro instaurado pela mãe, ou o significante do Nome-do-Pai
que não é representável, a criança constrói, na saída do Édipo, um pai imaginário
todo-poderoso, um Deus. Esse pai imaginário tomado como mestre, como herói,
constitui a primeira identificação do ideal do eu, e será essa operação de recobri
mento da falha real do simbólico pelo imaginário que dará lugar à organização
neurótica da personalidade: "não se coloca a questão do Édipo se não houver pai ;
inversamente, falar de Édipo é introduzir como essencial a função do pai '� 1 •
Pai real
Sob o véu do pai imaginário, o pai real, para além do mito de Édipo, funciona
como um operador estrutural. Em Freud, o pai real é o pai morto por assassinato,
isto é, tem como metáforas tanto o pai da horda quanto Moisés, o egípcio. O pai real
é também o real do pai, ou melhor, é aquele que faz da mulher a causa de seu desejo ;
logo, não é nem o pai da realidade nem o genitor. Não se demonstra nem se transmite,
e só é alcançado como o impossível a saber sobre a verdade da paternidade.
Como pai real, sua presença surge inevitavelmente para o filho a partir do mo
mento cm que assume a consistência de seu desejo diante do desejo da mãe. Ao se
�onfrontar com a castração, a criança entra em um momento de incer teza pela
instância pa terna,
. "e e' isso
· - do pai· real como 1mposs1ve
que a afirmaçao · ' l esta' des-
tinada a m
ascarar" • Se o real surge do que é impossível no simbólico , a noção de pai
22
0 111
ga� do Pai 99
real é cientificamente insustentável : "Eis o que permite articular o que verídicamente
corresponde à castração, [ ... ] o pai é aquele que não sabe nada da verdade"2 3 .
Assim, o pai imaginário é uma fantasia sem a qual nenhum pai real receberia
a investidura do pai simbólico. Dito de outro modo, o pai real é a impossibilidade
como tal; o pai simbólico, o silêncio como impossibilidade ; e o pai imaginário,
a promessa que declina a impossibilidade como possibilidade. Porque a posição
do pai real como impossível nos escapa, Freud operacionalizou a necessidade da
escrita enigmática de Moisés que aponta para a letra como sendo um nome sem
pai, pois "ela faz borda ; ela é corte da origem paterna do nome, pois que ela é
fundadora, sendo como letra princípio paterno" 4 .
2
21 Ibid . , p. 1 2 2 .
24 JULIEN, Philippe. "L'origine de la triade lacaniennc", Étudcs freudiennes, n. 33, p. 74. Cf. Lacan
(Lc Séminaire, forc XXll- R.S.l. (1 974-5). Paris: Le Graphe, 1 975): "enquanto seria ncccssaria para
aquilo do que se trata, a saber, o enodamento do imaginario, do simbólico e do real, essa função suple
mentar, cm suma, de um toro a mais, cuja consistência deveria ser referida à função dita do Pai"·
2 5 LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o arcsso da psicanálisc. Op. cit. , p. 1 1 0. Em 1 3 de novembro
"
de 1 979, no seminario sobre a dissolução, Lacan afirmaria que "o nó borromeano é urn enigrnª
26
LACAN, Jacques. Lc Séminaire, Lirrc XXII: R.S.l. Op. cit.
J\_cerca da lei e seu estatuto
Cândida Regina Machado da Costa
1
FREUD, Sigmund. "Moisés e o monoteísmo: três ensaios" ( 1939) . Em: Obras comp/et;Js, vol .
XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
2
Cujos motivos, segundo Lacan , não foram inconscientes.
Freud era um pioneiro, questionando e confrontando os outros campos da ciência
com uma metodologia robusta - e nesse sentido, estava em uma posição de mestre.
Co mo situou o pai, esse nó em que se deteve, e por que se deteve nele? Tratou dessa
tcmatica pela via do mito, do complexo de Édipo e de '"Totem e tabu" : a interdição do
3
Sobre o p ai real
Passemos ao tema da emergência do discurso do mestre, tentando articulá -lo ao
real, esse ato inicial que opera um corte feroz e ignora tudo que não é de sua
ordem. Na tradição judaica, Yavhé é dessa ordem de ignorância radical que, falando
ao povo hebreu, instaura uma nova ordem e exige ruptura absoluta com todas as
crenças e todo o saber que não sejam de sua letra.
Para Lacan, esse corte deve ser definido como da ordem dos efeitos da linguagem:
Falava há pouco da ignorância. Para ser um pai, quero dizer, não só um pai real,
mas um pai do real, existem coisas que é preciso ignorar ferozmente. Seria pre
ciso, de certa maneira, ignorar tudo o que não seja aquilo [... ]. Como o nível da
estrutura, devendo este ser definido como da ordem dos efeitos da linguagem' .
É assim que esse Deus sem nome e sem imagem se apresenta: "Sou Iahweh,
teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da servidão". A entrega do Decálogo a
Moisés é dramática: "Os elementos visuais juntam-se aos elementos auditivos e
alcançam seu ápice no diálogo de Deus com Moisés''6. "É um diálogo singular, p elo
qual o trovão é identificado à voz de Yahvé, que fala a Moisés. O povo se mantém
irnóv el, no sopé da montanha, contemplando e escutando, trêmulo de medo'j].
,
E nessa cena exuberante que Moisés recebe as tábuas da Lei. Firma-se um pacto
[bcri t] não somente falado, mas escrito: um documento de aliança.
Yah vé não admite r ivais. V árias passagens do Antigo T estamento mostram sua
.
ira crn rel
ação aos adoradores de Baal : "Disse o Senhor a Moisés : toma todas as
FRE UD, Sigmund. "Totem e tabu" ( 1 9 1 3). Em: Obras completas, vai. XII. Op. cit.
1
' LACAN, Jacques . O seminário, lfrro 17: o avesso da psicanálise ( 1 969- 70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 992.
' lbid. , p. 1 27.
Êxod o 1 9 , 1 9 .
6
É preciso ressaltar que Yahvé apresentou a lei escrita porque os homens não a
liam em seus corações, onde sempre estivera. Tem-se, então, exigindo leitura,
uma lei sem palavra, o que cria uma impossibilidade: como ter acesso à palavra
antes da incidência da linguagem ?
Em " Les noms d u pere" 1 0 , Lacan situou o real : "Desse aí, pode-se dizer que um
Deus, isso se encontra no real". Trata-se de um instigante contraponto ao mito : a
estrutura. Se a temática do pai foi apresentada como um sonho de Freud, Lacan,
lendo-o como formação, ressaltou a operação de linguagem como condição para
o inconsciente. Aquilo que é do real, inacessível como pura manifestação da matéria
viva, terá de se articular, a partir da incidência da linguagem, de significante a signi
ficante (o que supõe um sujeito) na obtenção de um gozo: mais-de-gozar, em
Lacan; mais-valia, em Marx.
Esse corte, essa operação que inaugura o inconsciente, é aquilo que Freud
denominara castração e articulara míticamente ao pai, partindo de sua prática
clínica e de sua própria experiência do inconsciente. Freud, que não deixara de
perceber a íntima conexão estabelecida por seus pacientes entre a sexualidade e a
dupla parental, construiu, a partir dela, o complexo de Édipo. Nesses relatos, viu
ser segregado um objeto especialíssimo, em torno do qual a criança, menino ou
menina, buscaria a via da sexuação e organizaria uma teoria sexual : o falo. O falo
é, assim, um operador Único para os dois sexos. Em seu retorno a Freud, Laca n
situou o falo não como objeto, mas como significante - um operador lógico para
ambos os sexos. O que é do real se articula de significante a significante com o
objetivo de obter um gozo, a partir da incidência da linguagem. Como a linguagem
é uma operação de corte (castração) que ignora tudo o que não é de sua ordem,
não há saber sobre o sexo pelo simples fato de que não há mais objeto do insti nto.
8
Números 25,4.
• LACAN, Jacques. O seminário, li,ro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit.
'° LACAN, Jacques. "Los nombres dei padre", aula 20 novicmbre 1 963. RD Ediciones Elctronica5-
f; perante a castração, esse buraco do real, esse deus sem nome e sem imagem,
ai real, que não pára de não se escrcver1 1 , que se ordena o discurso do mestre.
0 p
() q u e não pára de não se escrever é o real, o incognoscível, o impossível, o que
n ã o pode ser representado ; é, enfim, a vida como fenômeno. O inconsciente, que
;i r a de não se escrever e abre toda uma tradição dirigida à posteridade e à
12
�ad ci a das gerações, situa o pai simbólico. O que não pára de se escrever é conse
ia da incidência da alingua, da insistência de sentido, o que supõe um sujeito.
q üên c
Es sa operação situará o gozo como futuro. O que se imaginariza, que não pára de
s e cs crc vcr , forjando as imagens mais tenebrosas da fúria, da incidência do buraco
13
d o real, situa o pai imaginário, e fala da captação imaginária operada pelo sentido,
pela imagem. Essa mitologia do pai, portador do falo, é uma construção do discurso.
Em "Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia'� 4 , ao tratar
dos crimes determinados pelo supereu, Lacan afirmou :
Se nossa experiência com psicopatas nos conduziu à dobradiça entre a natureza
e a cultura, descobrimos nela essa instância cega, essa instância obscura, cega e
tirânica [ . . . J [queJ nos revela sua aparição em um estágio tão precoce que parece
contemporâneo, e às vezes até anterior, à aparição do cu. 1 5
Essa instância, que em Freud era a identificação a o pai anterior a toda carga de objeto, é
exatamente o supcreu: "O supcreu é imperativo de gozo - ' Goza!"1 6 •
A fúria da palavra inaugural, que ignora ferozmente qualquer saber sobre a
origem que não seja seu nome impronunciável e sem imagem - YHVH -, f az da letra
sua lei . Pela incidência das leis de linguagem, o surgimento do sujeito é ético, porém
há nesse percurso uma perversão, um descaminho, uma pére version que o direciona
da linguagem à escritura (os dez mandamentos) . Nesse sentido, o pai real é interdição,
mas porta um paradoxo : é ao mesmo tempo proibição e mandamento de gozo .
A linguagem aponta um gozo a ser alcançado, e por isso lin agem é trabalho.
Em vários momentos de seus seminários, Lacan prometeu nunca mais falar
gu
" LACAN, Ja cques. O seminário, livro 20: m ais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 992.
" lbid. , p. 1 26.
" lbid . , p. 1 27.
" LACAN , Ja cques. "Introdução t eórica às funções da psicanálise em criminologia"
( 1 95 0) .
Ern : Escritos. Madr i: Siglo Veintiuno , 1 989.
15
lbid.
16
LACAN , Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit.
do buraco do real, a castração. A investida topológica, tomando como referencial
o campo da matemática, particularmente o nó borromeano, leva a interrogação
lacaniana fundamentalmente ao campo do real. Em Freud e a judeidadc , Bctty Fuks
demonstra a implicação da tradição judaica no est atuto jurídico ocidental:
A idéia de um Deus não subsumido ao conhecido, ao familiar, instaurou um
vazio em torno do qual o judaísmo se estruturou, obrigando o povo ao esforço
de manter-se voltado para o incognoscível. Freud reconhece que a força desmi
tologizante do segundo mandamento operou uma mudança radical na concepção
do homem sobre o universo e que a ciência seria descendente direta das idéias de
Moisés, pois concerne à leitura do que se encontra para além do visível . 1 7
Esse corte instaura o discurso do mestre, discurso da ciência jurídica, que não
pode deixar de se articular com a lei da estrutura. A abertura do campo da ciência
jurídica exclui o sujeito e, portanto, sua possibilidade de implicação, vale dizer,
sua responsabilidade. A tradição judaica mostra claramente esse encaminhamento
da lei jurídica a partir da lei mosaica. O povo judeu, que não construiu nenhum
grande império, nenhuma civilização, manteve sua tradição, sua identidade como
nação, totalmente ligada ao Decálogo e à Torah, ou seja, à escritura. A obediência
a Yahvé, descrita cm todo o Pentateuco como de uma ferocidade ímpar, retorna,
nesse processo de repressão secundária, social, nos vários momentos de perseguição
aos judeus. O que não é pouco, já que o próprio Cristo , filho dessa tradição,
introduziu uma nova ordem: mais uma vez, o retorno do recalcado.
A consolidação do cristianismo se fez com a mesma fúria implacável. Durante
a Idade Média, não parou de se escrever essa imaginarização da lei do pai terrível,
operada com crueldade desmedida e tendo como conseqüência o surgimento do
direito canônico, cm cuja tradição estamos inscritos: "Não se quer ver que a Justiça
está sempre no lugar do mito fundador e que a lógica interv ém aqui cegamente
para intimidar cada um a representar seu papel"1 8 •
Isso que não pára de não se escrever prolifera, exigindo o inconsciente, operação
de parar de não se escrever que solicita leitura na articulação de significante a
significante, cm que só é possível um sujeito advir : operação específica da psicanálise
e única possibilidade de implicação e responsabilidade do sujeito por seus atos.
Mas traz também a operação imaginária, de ordenação moral, que não pára de se
escrever, e a cada momento solicita novas leis, novas ordens, na vã tentativa de
implicar um sujeito desde sempre excluído.
17
FUKS, Betty Bernardo. Frcud c ajudcidadc: a rocação do cxílio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000 .
18 LEGENDRE, Pierre. O amor do censor. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise1 , Lacan afirmou que iria retomar o projeto
freudiano pelo avesso. Com esse intuito, propôs-se a distinguir o que está em
qu estão na estrutura necessária para a arquitetura de quatro discursos por meio dos
qu ais o laço social é estabelecido. Esses discursos foram denominados por ele
como o discurso do mestre (DM) , discurso da histérica (DH) , discurso do universitário (DU) e o
discurso analítico (DA). Essa estrutura ultrapassa em muito a palavra, uma vez que esta
advém da relação de um significante (S) com outro significante (S ) . Da relação
2
entre S1 e S2 emerge o sujeito ($) e dessa emergência resulta um resto (a). Estão
portanto aí designados os quatro elementos que compõem esses quatro discursos,
quais sejam: S 1 , S 2 , $ e a. Esses elementos se organizam articulados em quatro
lugares localizados acima e abaixo, à direita ou, acima e abaixo, à esquerda. Esses
lugares são designados como os espaços determinados para o agente, a verdade, o
outro e a produção .
A localização dos lugares acima designados toma o seu valor por um jogo no
funcionamento que possibilita a essas letras (S 1 , S2 , $ e a) ocuparem tais espaços de
medo equivalente. O que quer dizer isso? Quer dizer que os lugares acima descritos
são fix os, podendo todavia ser ocupados por qualquer uma das letras, que poderão
circular entre esses diferentes espaços. A o funcionarem nesses diferentes lugares,
essas letras passam a desempenhar a função que o lugar lhes confere, ou seja: de
agente, de verda
de, de outro ou de produção, em um determinado discurso. E desse
arranJ· o , d ·c
essa trama, do texto dessas 1etras , func10nan
· do nesses duerentes 1ugares,
que advê m os quatro discursos.
Es se modo de funcionamento permite afirmar que são equivalentes ou con
gr u ente s
nos diferentes discursos ,·
1
l�CAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise ( 1 969-70) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar .
Editor, 1 992.
1 07
• no lugar do agente: DU(S) OH ($) DM(S ) :::: DA(a)
• no lugar da verdade: DU(S ) DH(a) D M(Z) :::: DA(S 2 )
• no lugar do Outro: D U (a) :::: DH(S I) DM(S 2 ) :::: DA($)
• no lugar da produção: OU ($) :::: DH(S) DM(a) :::: DA(S I)
2
LEVI-STRAUSS , Claude. "A estrutura dos mitos" ( 1 944-56). Em : Antropologia estrutural, vol . 7 .
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1 991 .
mesmos caracteres e detalhes nas diferentes regiões do mundo, o que faz
c o!l1 05
eles t enham o mesmo caráter de objeto absoluto, que garante sua trans
co m q ue
rni ss ão cm qualquer lín gua, a despeito da pior tradução, uma vez que seu valor,
sua s ubstância, está na história narrada.
Na busca de compreender em o mito, alguns antropólogos sustentam que cada
0 presente
, o passado, o futuro e a eternidade.
O mit o, como todo ser lingüístico, é formado de grandes unidades constitutivas
qu e são denominadas de mit cmas . Estes
têm a natureza de um feixe de relações , que
�vi denciam um traço comum, que possibilita o estabelecimento de um sistema que
e, 0 mesmo
ª tempo, sincrônico e diacrônico, reunindo as propriedades da língua
e da pala
vra. É somente sob a forma de combinações de tais feixes que as unidades
consti tu
_ tivas adquirem urna função significante. Para se proceder à análise de um
tnito , Lé · emas seJam
· Strauss propoc
VI- - que os m1t · agrupa dos em co 1unas, separad as
por relações, de acordo com o traço comum que se pretende evidenciar. Cada
coluna comporta um tipo de relação refer ida a esse traço. Todavia as colunas, urna
cm sua relação com as outras, podem evidenciar traços inversos ou antagôn icos.
De modo que uma coluna pode, por exemplo, conter como traço comum as
relações de parentesco depreciadas, enquanto a outra coluna contenha as rela çõe s
de parentesco superestimadas. Vale destacar que esse tipo de análise proposta pelo
autor descarta a busca de uma versão que seja autêntica ou verdadeira de um determina do
mito. Sua proposta é definir o mito pelo conjunto de suas versões, de modo que o mito valha
'
que continue a ter o valor de mito, enquanto for entendido como tal.
Lévi-Strauss, apoiado na formulação freudiana, citou como exemplo ilustrativo
de análise o mito de Édipo e destacou que, nesse mito, o traço comum evidencia do
é a dificuldade para se caminhar ereto. E continuou dizendo que o problema colo
cado por Freud, em termos edipianos, é que: "se trata sempre de compreender
como um pode nascer de dois : como se dá que não tenhamos um Único genitor,
mas uma mãe, e um pai a mais?"3 •
Essa questão colocada pelo autor sobre o mito de Édipo diz respeito ao enigma
do nascimento e à questão da função do pai . Sobre o enigma do nascimento, Freud,
em seus textos, afirmou que as teorias sexuais infantis são o modo pelo qual cada
criança, uma a uma, tenta responder tanto ao enigma do nascimento (de onde viemos)
quanto ao da morte (para onde vamos). Quando se referiu a "um pai a mais" Lévi
Strauss não estaria, por um lado, apontando para além da triangulação edípica, uma
vez que é o pai, enquanto função, que transmite a lei da castração, cuja inscrição
simbólica é o passaporte necessário tanto para a determinação da sexualidade quanto
para a inserção social dos indivíduos? E, por outro, essa pergunta não nos remete à
questão para sempre não respondida, para nós analistas, sobre a função paterna?
No mesmo texto, Lévi-Strauss afirmou que os mitólogos sempre se perguntam
por que os mitos e, geralmente, a literatura oral, usam tão freqüentemente a
duplicação, triplicação ou quadruplicação de uma seqüência para contar uma
história. Se, por um lado, o autor destaca a preocupação dos estudiosos a resp eito
da função da repetição na estrutura mítica, por outro, ele responde dizendo ter a repetição
uma função própria que é tornar manifesta a estrutura do mito. Para o autor, todo mito é redu tí vel
a uma fórmula que adquire todo um sentido se levarmos em conta que, para
Freud, são exigidos dois traumas para que nasça o mito individual cm que consis te
uma neurose.
1 Jbid. , p. 250.
Lévi-Strauss concluiu, provisoriamente, que o sentido do mito se deve à
ma n eira pela qual seus elementos se encontram combinados ; que o mito provém
e é parte integrante da li nguagem, ainda que esta, tal como é utilizada no mito,
manifeste propriedades específicas ; e que tais propriedades são mais complexas
ntradas cm uma expressão lingüística qualquer.
que as enco
S empre que se referiu ao mito , tanto cm "O mito individual do neurótico"
uanto nos seminários A relação de objeto e O av esso da p sicaná lise, Lacan utilizou esse
!xto de Lévi-Strauss . Em O seminário, liwo 4, referiu-se ao mito em vários momentos
di sti nto s, sempre r eferidos à passagem da falta de objeto da frustração para a
castra ção . Nesse sentido, ele abordou tanto as teorias sexuais infantis quanto a
i
co nstrução mítica como recurso significante na fobia do pequeno Hans. Em O sem
nario, /irra 17, el e utilizou o mito para falar do S 2 , saber que advém no lugar da
verdade, no discurso do analista. Em "O mito individual do neurótico", utilizou a
noção de mito não só para demarcar a posição particular que a psicanálise ocupa
no conjunto das ciências, como também para dizer que "o mito é o que confere
uma fórmula discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmitida na definição
da verdade, porque a definição da verdade não pode se apoiar senão em si mesma,
e é enquanto a palavra progride que ela se constitui"4.
Por que a palavra por si só não é suficiente para transmitir a verdade, urna vez
qu e o mito , que é uma narrativa, se utiliza de palavras? É porque uma palavra não
pode apreender a si mesma. É só estruturada como um mito, isto é, como uma
narrativa , que a palavra pode exprimir algo e adquirir valor de verdade subjetiva.
Uma palavra isolada não passa de uma articulação de fonemas determinados que
possuem um significado variável de acordo com o con texto no qual é utilizada.
É pelo fato de ser um só termo ou um só vocábulo que a palavra é insuficiente,
tan to para dizer da verdade quanto para narrar um mito. Para esse fim, ela só terá
ser ven tia se estiver estruturada em uma narrativa, que é uma história, composta
de vár ias palavras, com ao menos um personagem, um enredo, um tempo e um
espaço. Por isso, é só de modo mítico que a palavra pode exprimir a verdade. A pa
lavra, fora da narrativa oral, não transmite o mito, assim como o significante fora
da cadeia não representa o sujeito.
Em O seminário, livro 4: a relação de objeto, Lacan retomou o mito enquanto uma narrativa
qu e por ta algo de atemporal, tendo cm seu conjunto um caráter de fic ção e podendo ser,
ª0 m esmo tempo, estável e maleável a modificações. Tal caráter inesgotável do
' LACAN, Jacg1.1cs. "O mito indivi<lual <lo neurótico" (1953). Lisboa: Assírio e Alvim , 1980, p. 49.
mito o torna uma espécie de molde que comporta um tipo de verdade relacionada
sempre com os temas da vida e da morte, da existência e da não-existência e do
nascimento, e cm especial, vindo a questionar a relação do homem com uma força
sagrada e secreta, maléfica ou benéfica. O mito se caracteriza também por um a
eficácia ambígua por tratar, ao mesmo tempo, de temas ligados à existência do
sujeito e ao fato de que ele é o sujeito de um sexo, de seu sexo natural. Assim, pa ra
Lacan, a verdade não pode ser separada do mito por ter uma estrutura de ficç ão .
Quando Lacan se refere à eficácia ambígua que caracteriza o mito, pode -se
entender com isso que tal característica está estritamente relacionada ao caráter
inesgotável do mito , que tem como conseqüência que um mesmo mito tenha
diversas versões verdadeiras respondendo e, ao mesmo tempo, não dizendo tudo
sobre o enigma do que é o ser humano. Decorre dessa resposta não toda, na qual
resta sempre algo por dizer, a repetição, que também faz parte da estrutura do
mito. É o mito, enquanto metáfora do enigma do ser, que vai dar ao humano uma
dimensão simbólica que lhe permita situar-se enquanto sujeito de seu sexo natural,
uma vez que nada no ser humano é natural, pois é o simbólico que marca o natural
no humano. Isto é: a natureza sexual do homem é simbólica.
Ao serem decompostos em mitemas, os mitos revelam uma surpreendente
unidade, que permite aproximar as narrativas míticas mais distantes, o que denota
o poder humano de manejar si gnificantes e de ser por estes manejados nos dando
a idéia do peso, da presença da instância significante enquanto tal, uma vez que os
elementos que compõem o mito em si mesmos não si gnificam nada, mas carregam
toda uma série, todo um feixe de si gnificações.
Lacan relacionou todas as teorias sexuais infantis e todas as atividades infantis
que são estruturadas cm torno dessas teorias à noção de mito e evidenciou o valor
dado a essas teorias por Freud. Segundo ele, tal valor se deve ao fato de que essas
teorias dizem respeito a toda atividade de pesquisa da criança cm relação à sua
atividade sexual e concernem ao conjunto do seu corpo, motivando todos os seus
temas afetivos, fazendo com que a criança venha a dirigir seus afetos ou afeiçõ es
de acordo com as linhas mestras de sua imagem. Isso faz com que as teorias sexu ais
infantis ultrapassem tudo aquilo que é considerado como uma atividade meram ent e
intelectual.
Em O seminário, livro 1 7, Lacan afirmou que, ao se analisar os mitcmas, que são
grupos contraditórios entre si, percebe-se a impossibilidade de colocar ess es
diferentes grupos em relação. Ele então deixa de lado o que Lévi -Strauss escreveu
e substitui essa contradição pela afirmação de que duas relações contraditóri as,
uma vez que cada uma delas é contraditória em si mesma, são idênticas. O que se
nessa afirmação é que a verdade não pode ser separada do mito, uma vez
sUS te n ta
� uc esta só pode ser enunciada, tal qual ele, por um semidizer. E se, como propõ e
l
L{ \' i - Strauss, cada versão do mito tem valor de verdade, a verdade do sujeito, que
quanto S 2 , no discurso do analista, é dessa mesma ordem.
adv ém en
matar e a p roi bi ção d o in cest o, são, portanto, anteriores aos mandamentos divinos que
nos foram legados por Moisés. As leis sociais existem para coibir tudo aquilo que
' F RE UD, Sigmund . "Totem e tabu"(l 912). Em : Obras completas, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago,
1980 .
113
Do rn·Ito
social a o mito individual d o neurótico
os homens desejam fazer. A lei, ao mesmo tempo que interdita, funda o des ej o,
fazendo com que não haja lei sem desejo e nem desejo sem lei.
A fraternidade social, que surge como decorrência do assassinato do pai da hor d�
e da impossibilidade de um dos irmãos vir a ocupar o seu lugar, funda-se no recalque �
sexualidade e da agressividade. E, como o recalcado sempre volta, não é à toa que Lac an
ressalta todo o esforço que gastamos para provar que somos irmãos . Se ser m os
irmãos implica tal dispêndio de energia, isso prova que não o somos, e qu e a
segregação está na origem da frater nidade. Todos os grupos sociais se baseiam na
segregação e se fundam na exclusão dos outros gr upos.
No texto "Moisés e o monoteísmo", Freud fez um paralelo entre o que acontece
com o povo judeu e com outros povos, explicando que a tradição, que sempre
comporta um certo esquecimento, exerce um poderoso efeito sobre a vida mental
dos povos. Ele afirmou que é nas tradições que vamos encontrar as heranças mais
arcaicas, recalcadas, que nos são transmitidas e que ressurgem posteriormente.
Foi baseado na idéia da evolução que Freud postulou tanto a existência de uma
pré-história da raça humana, que é esquecida, desconhecida, quanto ressaltou que é
esse desconhecimento (sempre presente na história da raça humana) o que se transmite.
Ainda nesse mesmo texto, Freud reafirmou que o totcmismo foi a primeira
forma de religião humana que, posteriormente, foi se desenvolvendo até a passagem
para a humanização, primeiro dos deuses que, com a introdução do judaísmo e
com sua continuação no cristianismo, tor naram-se um deus-pai-único. Freud
ressaltou, todavia, a existência de uma lacuna entre a legislação de Moisés, que é
o mensageiro dos mandamentos divinos, e a religião judaica posterior.
A história de Moisés é contada baseada na versão do historiador Scllin, que
diz que Moisés acabou sendo assassinado por seu povo. Esse assassinato não foi
registrado por escrito e ficou conhecido somente nos meios sacerdotais. Para Freud,
esse assassinato é uma repetição do assassinato do pai primevo, que ficou esquecido, e que, cm vez
de ter sido recordado pelo povo judaico, foi repetido, por meio de uma atuação .
Não proponho discutir se Moisés morreu assassinado ou não, pois ente nd o
que o que se mantém em jogo cm toda religião continua sendo o que Freud
recorta da importância de S. Paulo apóstolo para a religião cristã. São Paulo liga
a culpa ao pecado original, crime cometido contra Deus e que foi expiado pela
morte de seu filho Jesus, que é também assassinado, sem culpa, pelos roma n os.
Eu diria que, se os romanos não se culparam por essa morte, as religiões, d e
qualquer forma, encarregaram-se de transmitir uma culpa tão grande que, aliada
à ne urose, faz grandes estragos e traz grandes sofrimentos à vida humana até os
nossos dias.
d e t odo o ser humano, fato determinante para a futura inserção social de toda
cria nça, que tem conseqüências em toda a sua vida posterior de adulto.
Lacan se referiu ao complexo de Édipo sob a forma da metáfora paterna, que
vem a ser a organizadora psíquica que vai dar uma resolução à tríade imaginária
mãe-criança-falo, na qual o desejo da mãe tem um papel fundamental. É a metáfora
paterna, enquanto inscrevendo simbolicamente a impossibilidade de completude
de todo indivíduo humano, que vai possibilitar ao sujeito sua inscrição enquanto
sujeito do desejo. Essa é a insí gnia do ser humano na estrutura neurótica e na
estrutura perversa, apesar de, na perversão, o sujeito recorrer ao objeto fetiche
para não se haver com o fato do desejo ser da ordem do real e, assim, desmentir a
castração. Na psicose, a metáfora paterna é foracluída. A inscrição ou a foraclusão
dessa metáfora vai determinar a organização estr utural do psiquismo de todo
indivíduo humano de maneira irremediável, uma vez que não existe tratamento
que possibilite a nenhum indivíduo mudar de estrutura psíquica.
No meu entender, esses três mitos retomados por Lacan têm alguns pontos
comuns, quais sejam: a) estarem sempre ligados à exigência de um recalque de
um desejo de origem sexual e da agressividade; b) referirem-se sempre a uma
morte, acompanhada da culpa pelo assassinato de um pai ; c) serem fadados ao
esquecimento. Esse esquecimento vai acompanhar tanto a história pessoal do
indivíduo quanto a história da civilização ; d) terem valor de verdade por estarem
r eferidos a acontecimentos arcaicos da história da humanidade e da origem pessoal
�e todo indivíduo ; e) terem um significado que está para além da própria história,
individual ou social, escrita ou narrada.
A metáfora paterna, como toda metáfora assim o desi gna, é a inscrição simbólica
de uma falta real. No lugar da falta de um significante que diga do seu desejo, o
sujeito neurótico fixa, como um clichê cstereotípico, uma história , que passa a ter
0 valor de sua verdade subjetiva. Tal história, no caso da estrutura neurótica, corres
ponde à construção de seu mito individual. Lá, no lugar da falta real, que não
D o rn ito s
ocial ao mito individual do neurótico 1 15
pode ser apreendida pela palavra, o mito permite, ao sujeito, imprimir uma fór m ula
discursiva que vale como sua verdade subjetiva. O mito, apreendido como a histór ia ,
como a epopéia do sujeito, permite-lhe exprimir, de forma imaginária, sua histó ria,
referida a seu grupo familiar originário. Tal história se configura, ao mesmo tempo,
como simbólica e como real. Como simbólica, trata-se de toda uma série, de todo
um conjunto de histórias que são passadas ao sujeito por sua tradição oral familiar,
e que se configura pela narração de al guns traços a respeito da união e da relação
dos seus pais, indo refletir, de modo fechado, para o sujeito, a relação inaugural
entre seu pai e sua mãe e ele próprio. Essa relação adquire seu valor de verdade
subjetiva, pela apreensão, subjetiva, que dela teve o sujeito, e não pela maneira
como ela, de fato, ocorreu. Como real, essa história vai dizer respeito ao que e
impossível de se dizer. É em suplência ao que não pode ser transmitido que 0
sujeito constrói o seu mito, a sua fantasia fundamental. Lacan nomeia esses traços
que são transmitidos ao sujeito como pertencentes à sua constelação originária,
naquilo que o simbólico preexiste a ele. Tais traços são, portanto, anteriores ao
seu nascimento e ao seu destino. O palco familiar serve como cenário fantasístico
para a narrativa mítica, ou edípica, de cada indivíduo. Nesse cenário vai se inscrever
toda a sua trama familiar, num tempo que é simultaneamente passado (herança
arcaica recebida pelo sujeito), presente (aqui e agora) e futuro, já que a fantasia
determina, por antecipação, a relação egóica a ser estabelecida pelo sujeito, assim
como a apreensão de sua imagem corporal e as relações de objeto que porventura
ele vier a estabelecer. É a fantasia, naquilo que vela e desvela a falta real, que vai
permitir ao indivíduo se relacionar com seus semelhantes, estabelecendo relações
de objeto a partir de um molde fixado por sua estrutura. A fixação desse molde
fantasístico se impõe enquanto repetição do real, âquê, tal qual os diferentes mitos
abordam o real em jogo na vida humana, no mundo. Por isso Lacan ressalta que é
impossível abordar seriamente a referência freudiana sem fazer intervir, além do
assassinato e do gozo, a dimensão da verdade, que é irmã do gozo. Se a verdade é
irmã do gozo, é porque a fantasia tem o valor de verdade subjetiva e desconheci da
para o sujeito e é, ao mesmo tempo, fonte de sofrimento e gozo . Arrisco dizer que
estão embutidas na fantasia tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte.
De que somos culpados? Somos culpados da falta real. Essa culpa do real é
deslocada para o pecado nas di ferentes religiões.
Para Lacan, o discurso se defme como uma forma de laço social que articula o
cam po do sujeito ao campo do Outro. Cabe ressaltar, no entanto, que em cada dis
curso existe um único sujeito, e que o outro do discurso não é o outro da realidade, e
sim a maneira como o sujeito em questão percebe, "fantasia" o outro, uma vez que esse
último está no campo do real. Ainda que o discurso ocorra não entre sujeitos, mas em
um mesmo sujeito, não se pode esquecer que sua importância reside em implicar a
referência ao outro: "São os discursos que estruturam o laço social"3 •
Lacan afirmou que o discurso é uma estrutura necessária que, embora suportada
pela linguagem, transcende a palavra. Em sua abordagem , estabeleceu quatro ele
mentos (termos) na constituição de um discurso: S1 , significante mestre; S2 , saber;
a, mais-de-gozar (resto) ; e $, sujeito barrado, ocupando lugares distintos. A ssim,
"todo e qualquer discurso apresenta uma verdade que o move, sua mola propulsora,
sob r e a qual está assentado um agente, o qual se dirige a um outro, produtor, a fim
de obter deste uma produção''4.
A ordem em que os elementos se apresentam e a forma como se posicionam
mediante o deslocamento de um quarto de volta nos lugares de agente, outro, pro
d ução e verda de definem cada um dos quatro discursos nomeados por Lacan:
LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise ( 1 969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
1
Editor, 1 992, p. 1 I .
2 OR
J GE, Marco Antonio Coutinho. Sexo e discurso cm Freud e lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 988, p. 1 54.
1
ME LMAN, Charles. Clínica psicanalítica: artigos e conferências. Salvador: Ágalma / Editora da U FBA,
2000, p. 42 .
' JOR GE, M arco Antonio Coutinho. Sexo e discurso cm Freud e lacan. Op. cit. , p . 1 58 .
Nessa fórmula, vê-se que o sujeito é representado pelo simbólico, mas está
fora dele. Como um significante é o que representa um sujeito para outro signifi
cante, e não há nenhum significante que possa representar o sujeito integralmente ,
o que ternos é um sujeito barrado, ou dividido, além de um objeto a que não é
nem pode ser representado sequer parcialmente, posto que não tem representação
alguma e está perdido para sempre.
Tornemos, então, o discurso do mestre. Lacan privilegiou a dominante do
discurso, aquilo que dá o tom, que marca o estilo discursivo. Nesse discur so, o
agente é S 1 , o significante do falo que, embora não surja explicitamente, fala de
urna posição fálica quando um mestre fala, portando a lei que constitui o direito.
Por isso, não há na fala do mestre o sujeito dividido, que está recalcado: o significante
mestre se emite rumo a um saber - "o saber de um indivíduo castrado de seu
gozo, o saber do escravo, o saber do psicanalisando"5 - do outro, a fim de produzir
mais-de-gozar. O discurso do mestre opera por sugestão.
Na primeira rotação do discurso do mestre, tem-se o discurso da histérica.
O outro da histérica é S 1 (dominante do mestre) e, por isso, onde há histérica, há
mestre. O sujeito barrado no lugar do agente é o sintoma e "é cm torno do sintoma
que se situa e se ordena tudo o que é do discurso da histérica'"'. No campo do sujeito
estão a falta radical, $, e a (o real), e a histérica se dirige ao mestre porque acredita qu e
ele tem todas as palavras: S 1 e S 2 (o simbólico). O discurso da histérica visa a "fabricar,
como pode, um homem - um homem que seria movido pelo desejo de saber',i .
; KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: J orge Zahar Edito r,
1 996, p. 331.
6
LACAN, Jacques. O seminário, hro 1 7: o aresso da psicanálise. Op. cit. , p. 41.
7
Jbi<l. , p. 3 1 .
Embora a histérica se dirija ao mestre pedindo que ele produza um saber
sob re seu sintoma, ela se põe no lugar de objeto a (causa de desejo) , ou seja, ela
sab e q ue nenhum saber produzido pelo mestre dará conta de sua verdade. Assim,
s e O outro responde do lugar de mestre, a histérica o destitui.
No capítulo V I de O seminário, bvro 1 7: o avesso da psicanábsc, intitulado "O mestre cas
trado", Lacan disse que anunciaria "algo novo , é que o significante mestre , ao ser emitido
na di reção dos meios do gozo que são aquilo que se chama o saber, não só induz, mas
determin a a castração" , e o que demonstra isso com mais clareza é o discurso da
8
histérica, que revela a relação do mestre com o saber, já que, em seu discurso, esse
saber surge como gozo. A histérica "tem o mérito de manter na instituição discursiva a
pergunta sobre o que vem a ser a relação sexual, ou seja, de como um sujeito pode
sustentá-la ou, melhor dizendo, não pode sustentá -la'':1. No entanto, apesar de não se
deixar enganar pelo mestre, ela permanece solidária a ele, tentando inclusive sustentar
seu lugar de mestria, da mesma forma como se relaciona com o pai, sempre idealizado.
A histérica é "afetada pela impotência do pai [... ] mas só há impotência por
comparação com um ideal de potência"1 0 • Assim , a histérica é aquela que desafia o
mestre para destituí-lo, pois não é o gozo do outro que ela quer, e sim o saber
como meio de gozo para dar suporte à verdade de que o mestre é castrado. Dessa
for ma, o discurso da histérica é aquele que conduz ao saber de que a linguagem
não dá conta do gozo e , portanto, sempre haverá algo que falta, um r esto.
O pai desempenha papel central na histeria: o de mestre. Sob o ângulo de
potência da criação , esse pai sustenta sua posição em relação à mulher, ocupando
a posição de pai idealiz ado. Na histeria, a função paterna se realiza com o movimento
que oscila do ser ao ter o falo , e é nesse intervalo que podem ser registrados os
pontos determinantes de sua organização. Trata-se de querer "conquistar o atributo
do qual o sujeito se considera injustamente desprovido"1 1 •
No sujeito histérico, a dinâmica do desejo acontece no nível do ter e, portanto,
.
Junto ao outro
, que supostamente o possui. Por isso, como assinala Dor, "uma
rnulher histérica vai se identificar, de bom grado, com uma outra mulher, desde
que essa última saiba se apresentar como alguém que não tem o falo, mas contudo
pode desejá-lo num outro" 1 2 • Foi justamente essa a particularidade que Lacan
M fbid . , p. 83.
' lbid . , p. 87.
:� KAU FMANN, Pierre. Dicionário cnciclopédico dc psicanálisc. Op. cit. , p. 249.
D OR, Joel. O pai e sua função cm psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 99 1 , p. 69.
"
l hid. ' p. 69.
observou no caso Dora: ela se identificava amorosamente com a Senhora K. e a
questão que apresentava estava ligada à feminilidade - o que é uma mulher ? B us
cando esclarecer essa associação entre o mestre e o pai idealizado da histér ica '
Lacan retomou o caso Dora e citou o texto "Psicologia das massas e anális e do
eu" 1 3 , em que Freud afirmou que o pai é aquele que preside a primeira identificação ,
sendo , por isso, aquele que merece o amor. Afinal , uma das três formas de identi
ficação com o pai é justamente a de um pai todo-amor.
O pai de Dora era um homem doente, castrado em sua potência sexual , e ela
permanecia junto a ele, amparando-o em sua incapacidade e se portando de man eir a
contemplativa cm relação à Senhora K. , pois acreditava que ela sustentava o des ejo
de seu pai. Em seus sonhos , mais especificamente no segundo, o ponto princ ip al
era o fato de o pai simbólico ser o pai morto , mas ainda assim ocupar o lugar de
dono do saber ou , melhor dizendo , o lugar de mestre. No sonho , o pai está morto,
ou seja, surge como lugar vazio , sem comunicação , d eixando claro que a questão
está além de sua morte: Dora aproveita o fato de todos terem ido ao cemitério
para ler sobre assuntos proibidos , mostrando que para ela a importância do pai
estava diretamente relacionada ao que ele produzia de saber sobre a verdade.
Em nova rotação das letras , encontramos o discurso do analista. Nesse discurso,
a dominante é a falta (o real) , que se traduz pelo silêncio da subjetividade, do
sujeito do analista: ele se apresenta como um cadáver, pois o sujeito que o interessa
é o outro. Ele dá seu lugar ao sujeito do inconsciente e seu discurso é o Único que
favorece a inscrição do desejo , uma vez que só o próprio sujeito pode produzir
saber sobre si mesmo.
Na quarta e última rotação, deparamo-nos com o discurso universitário, consti
tuído de respostas prontas e fechadas e que visa à universalidade ou, melhor dizendo,
a acabar com a diferença. O discurso universitário consagra a relação de ensino , pois
nele a dominante é o saber que toma o outro como objeto, buscando produzir um
sujeito informado. O que move o universitário é o afã de conquistar o conhecim ento
para repeti-lo acadêmica e rigorosamente, de modo a não permitir questionamentos.
Trata-se de um saber que se sabe, mas pertence a outro e é regido pelo comando do
mestre, já que a mestria do universitário está recalcada. Pode-se observar que, do lado
do sujeito , só há significante (puro falo, embora mesmo este se encontre apagado p elo
saber) e não há furo, pois a falta está toda no campo do Outro.
" FREUD, Sigmund. "Psicologia das massas e análise do cu" ( 1 920). Em: Obras completas, vo l.
XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1 974.
CHEMAMA, Roland. "Algumas reflexões sobre a neurose obsessiva a partir dos 'quatro
14
discursos", Revista Lugar, n. 8 . Rio de Janeiro, Rio Sociedade Cultural Ltda. , 1 976.
1·
' D OR, Joel. O pai c sua função cm psicanálisc. O p. cit. , p. 64.
16
FREUD, Sigmund. "História de uma neurose infantil" ( 1 9 1 7) . Em : Obras completas, vol. XVII.
Op. cit.
17
lbid. , p. 3 1 .
Como assinala Leclaire cm Desmascarar o rea/1 8 , esse conjunto de pressões e limites
assedia o sujeito obsessivo, fazendo vigorar o "imperativo da necessidade" e arrastando.
o para o "inferno do dever". Em essência, ele não se dispõe a correr o risco de se
confrontar com seu desejo inconsciente, daí resultando uma passividade masoquista .
O obsessivo apresenta tendência a se constituir como t udo para o outro. Para isso, deve
exercer controle sobre todas as coisas, a fim de que o outro não lhe escape. Na verd ade
,
o obsessivo permanece preso ao temor da castração pois, uma vez que houve inscrição
paterna, ele sabe que o lugar do Pai é impossível de conquistar. Assim, passa toda a vida
convocando o pai para assegurar-lhe o lugar, empenhando-se cm atualizá-lo a cada
instante e a cada ato, mesmo que isso implique uma posição submissa.
A neurose obsessiva consiste na carência de reconhecimento paterno. Para
fazer valer esse reconhecimento , o sujeito obsessivo se obriga a pagar um preço
extraordinariamente alto. Seu drama reside precisamente no fato de que ele tem
o reconhecimento, mas se julga sob o risco permanente de perdê-lo. O reconhe
cimento lhe foi concedido antecipadamente, como uma espécie de adiantament o :
o pai o reconheceu para fazê-lo representante de seu desejo. A dificuldade é que,
na falta de reconhecimento posterior, o primordial fica ameaçado. Lacan acentuou
que o sujeito obsessivo está atrelado ao jogo petrificador que se estabelece entre o
mestre e o escravo, mostrando-se rigorosamente limitado às normas, às regras e
aos ditames da lei. Ele julga necessário assumir a posição submissa de não ter voz
(desejo), para que ela seja sempre a desse mestre que precisa idolatrar.
Lacan discriminou com precisão as diferenças entre as formas de inscr ição da
função paterna na histeria e na neurose obsessiva e, a par tir dessa distinção, classi
ficou a histeria como uma manifestação discursiva. A função paterna no neurótico
histérico é representada pelo outro castrado, sendo não apenas uma ameaça que
assusta, mas também um apelo que seduz e tranqüiliza. A fantasia de castração é
certamente angustiante, mas é a garantia que protege do perigo de experim entar
um gozo sem limites. Na neurose obsessiva, a função paterna é representada pelo
outro da lei : seu papel é proibir e punir severamente o desejo incestuoso. O obses
sivo teme a lei, mas solicita que ela seja lembrada ininterruptamente, por meio de
ordens, proibições e mesmo castigos.
Por meio da teoria dos quatro discursos, vê-se que, enquanto a histeria mostra
a insuficiência do mestre denunciando sua castração, a neurose obsessiva b usca
defender-se da castração anulando as diferenças, em uma busca incessante de u ni ·
18 LE CLA IRE , Scrgc. Desmascarar o real. Lisboa: A ssírio & A lvim , 1977.
Saber e verdade
A dialética hegeliana e o discurso
de Lacan . O paradigma do gozo
di scursivo
Mareia Mello de Lima
1
H E GE L , Georg Wilhclm Friedrich. Fenomenologia do espírito, vol. l i (1807) . Petrópolis: Vo ze s ,
199 2 , p . 10.
' LACAN, Jacques . O seminário, /irra 2: o cu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro:
J orge Zahar Editor, 1985, p. 97.
1
LACAN, Jacques. O seminário, li>ro 17: o a,r:ssodapsiranálisc. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1992, p. 45.
1 25
entre o saber natural da consciência filosófica e o saber do inconsciente formu lad o
por Freud. No primeiro caso, a dialética saber-verdade acontece como se fos se
um fluxo contínuo do ser todo consciente no processamento da razão corn 0
objetivo de atingir o ideal. O aspecto crucial da teorização é que ela faz operar a
consciência e o espírito na função de duplo especular, cm face da idealiz ação
imaginária que cerca ambos os conceitos. Ao passo que, no campo freudiano, a
atribuição de saber é proveniente da identificação do sujeito com um traço unário4,
einzigcr Zug, modelo do saber absoluto. A psicanálise de orientação lacaniana exp lica
o saber através do significante primordial, a forma mais primitiva de inscrição do
sujeito do inconsciente. Revela o traço fundante de um saber originário mas, ao
mesmo tempo, representa um significante que falta. O sujeito surge daí corno
puro efeito. Sendo assim, a dialética saber-verdade só existe excluída. É na condição
de verdade foracluída que ela faz retorno, no sentido mesmo de uma foraclusão
gen eralizada que existe no surg imento do sujeito do significante.
O presente artigo abordará alguns conceitos da Fenomenologia do espírito que
servirão de base para mencionar a análise processada por Lacan sobre a doutrina
hegeliana. A prioridade será quanto à discussão sobre o saber absoluto e à alienação
instalada no centro da relação dialética senhor-escravo ; bem como determinados
pontos intimamente ligados a essa problemática, tais como a certeza do sujeito e
a verdade do objeto. A questão será verificar a articulação desses conceitos com a
lógica dos discursos, isto é, com a proposta de Lacan enunciada a partir de deter
minadas escrituras formais e consideradas essenciais à definição do sujeito. A dis
tinção imposta entre duas classes de saberes - a do S 1 e do S 2 - torna perfeitamente
cabível indagar qual a contribuição que a leitura daFcnomenologia oferece à psicanálise.
O eixo da orientação convergirá sobre o quinto paradigm a encontrado no ensino
de Lacan quanto à doutrina do gozo, trabalhado por Jacques-Alain Miller sob o
título de gozo discursivo5 •
a
4
Cf. a tradução do alemão, adotada por Lacan, do termo cinziger Zug, citado por Freud ("Psicologi
,
de las massas y análisis dei yo" (1 9 2 1). Em: Obrascomplctas, vai. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu
199 3 , p. 10 1 ).
1 l
MILLER, Jacques-Alain. "Os seis paradigmas do gozo", Opção Lacaniana, n. 26/ 27. São Pau o:
Eolia, abril 2000, p. 87-105 .
1 26
j
Saber, verdad-=.:.tl
_
vazios, tomados como falsos conceitos. Em seu ponto de vista, a filosofia
a r ciais e
o fundamento do racional, mostrar a importância do presente e do
� c\'cria ser
vitar o subjetivismo. A intenção era valorizar uma crítica ativa do existente
re a l e e
desafios da Aufhebung, termo utilizado para articular o conceito de
dia n t e dos
dialética de si mesmo. Prestigiar a razão significava facilitar a realização
sup e ração
sciente diante da realidade, posição bem distinta de uma racionalidade
do se r con
en vo lvida cm abstrações que não atingem o conceito, begriff Indicou, portanto ,
u c a objetividade seria o Único método científico adequado à construção do
�crda dciro objeto da ciência, resumindo sua opinião cm uma frase que se tornou
famosa: "o que é racional é real e o que é real é racional'�.
A citação traz embutidas as dimensões do real, wirklich, e da realidade, wirklichkeit,
e imp lica a noção de atividade : o real provém do movimento que se realiza através
da ação do homem. P rocedem daí duas interpretações. P rimeiro, a que descreve a
seqüência-chave da teorização , pré-requisito indispensável à compreensão da
definição: em Hegel, o real não é a mera existência de uma realidade dada, mas
algo proveniente da atividade que se realiza, que já se realizou ou está por se
realizar. Em segundo, nesse conjunto de operações surge impressa a problemática
central em torno da qual circula toda a Fenomenologia, o conceito de superação
dialética, sobre o qual Hegel inseriu várias significações. Segundo Jean Hyppolite,
o termo "ao mesmo tempo quer dizer negar, suprimir e conservar, e, no fundo, suspender
[.. . ). Freud nos diz nesse ponto : 'A denegação é uma Aufhebung do recalque, mas
nem por isso é uma aceitação do recalcado m. Em outras palavras, Hegel previa o
saber na via do movimento e da continuidade, assimilando o dado novo e persistindo
na série, na condição de se revelar aí um saber de forma diferenciada, elevada ,
semp re em suspenso no continuum.
A Fenomenologia é a seqüência lógica na composição desse processo dialético,
urna busca comprometida desde o não-saber até o saber concluído, por isso mesmo
análogo à p erfe
ição do espírito, modelo do ideal hegeliano. A obra centraliza o
estudo cm
torno de sete fi gu ras do movimento da consciência, uma sucessão
c Í rica de acontec
� imentos paradigmáticos que não se confundem, absolutamente,
corn etapa
s cronológicas do ser. A primeira consiste no saber imediato promovido
6
HEG E L, G eorg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito ( 1 8 1 6). Lisboa: Guimarães,
1 90, p . 1 3 .
�. As críticas hegelianas resumidas nesse parágrafo estão contidas nas 1 7 primeiras
Paginas do texto.
HYPP OLITE, Jean. "Comentário falado sobre a Vcrncinung de Freud" ( 1 954). Em: LACAN,
Jac:9ues. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998, apêndice I, p. 895, grifo meu.
pela certeza sensível, e marca o início da experiência cu-objeto. É um mo del o
de
consciência ainda difusa que adquire força de verdade priorizando a intuição: sa
be
que o objeto existe, mas as relações de conhecimento são incipientes porq ue
a
consciência não reconhece ainda a totalidade de s uas propriedades . Dessa fo rm
a
a figura se liga mais ao puro movimento do que a um saber já cstab cle cid
º·
Entretanto, a certeza sensível instala uma primeira diferença: há um eu e U
il\
objeto mediatizados na consciência. A certeza provém do objeto, "mas ne m po
r
isso foi ainda suprassumida, se não apenas recambiada ao Eu'".
A_percci!ção - segunda figura dialética -inaugura um passo novo: inicia a qualifica.
ção do objeto fornecendo-lhe atributos até se defrontar com a unidade. O ato de
perceber não significa mais referir-se ao fenômeno intuitivo, mesmo porque O ato
em si é inconsistente, promove a ilusão, o objeto pode ou não ser apreendido. Instala.
se, portanto , a idéia da negação embutida na superação dialética : o sujeito conquista
a capacidade de duvidar. A percepção introduz uma nova propriedade na construção
do saber - o objeto Uno - mas conduz o aspecto logicizante daAufhebung, que nega 0
fenômeno e, concomitantemente, conserva-o. A característica universal do objeto
é, assim, posta à prova. A questão crítica, para a orientação lacaniana, é que Hegel
previu a apreensão do objeto e as possíveis correções diante das discordâncias com a
realidade. Se for incorreta, o passo seguinte deverá separar o incorreto do con tinuum
até então percebido. A essência objetiva é colocada no Uno excludente, separado,
com novas propriedades determinadas em relação às anteriores, porém agora sem o
caráter de negatividade: o objeto consiste "em ser seu apreender ao mesmo tempo
refletido cm si a partir do verdadeiro''9.
Se Hegel definiu a ilusão pelo ato de perceber, considerou a contradição pel a
diversidade q ue ocorre com o objeto, em termos de não manter a igualda de
esperada com a verdade, ou seja, a unidade da consciência com o Uno. Na figura
anterior havia um objeto e uma consciência separados ; na percepção, a consciê ncia
e o objeto visam à unificação : "A coisa é o Uno sobre si refletida [ . . . ] é um ser
diverso d uplicado ; mas é também Uno" 1 º. Isso significa que, no processo d e_
superação dialética, a consciência deixa de considerar o objeto como o igual � 5
1
mesmo e passa a considerar, nela própria, o desigual, pelo que foi excluído. A teo·
• HEGEL, GcorgWilhclm Fricdrich. "A certeza sensível ou: o Isto ou o Visar". Em: Fenomenolog
ia
1 28 Saber, verdade e go
º
i
- ão d cspriorizou o ato sob o prisma do sujeito e fez convergir a ênfase no
1 j,,: aç
ro csso perceptivo, conduzindo a operação através de um simples mimetismo
c
rcll cx o do objeto percebido sobre o cu. No entanto, tal questão não foi valorizada
or Hegel na mesma dimensão como foi introduzida no ensino de Lacan.
p
Lacan posicionou o objeto no campo da imagem, marcando a diferença fun
da mental quanto à forma de teorizar sua atuação no real do sujeito e as formas de
emer gência revestidas de significação. Hegel buscava a unidade com a coisa apreen
dida e não se deu conta do paradoxo no qual inseriu a formulação. As qualidades
do objeto hegeliano são de tal ordem que ele se revela à consciência no mesmo
movimento de negação daquilo com o qual a consciência se relaciona . Sem dúvida,
Lacan reconhecia o valor da especularidadc, mas não se deixou enganar pelas
"astúcias da razão"1 1 • Inseriu o paradoxo numa outra ordem : considerou a unidade
perdida e, ao mesmo tempo, capaz de produzir efeitos na constituição. Por isso
acentuou o privilégio do falo - o objeto freudiano por excelência - e seu caráter
de pura ficção, somente alcançável cm representações imaginárias, apesar dos
efeitos que produz no sujeito. Se a Aulhcbung hegeliana pretendeu retirar o aspecto
de negatividade do objeto, Lacan, ao contrário, considerou o falo um operador, o
significante que falta nessa Aulhcbung, no sentido mesmo que ele inaugura o processo
pelo seu desaparecimento 1 2 •
,\) Em função disso, o objeto a foi inventado por Lacan a partir dos efeitos de
causa prccipitadora do desejo: ele é feito de gozo, mas gozo foracluído. Essa
"pequena imagem exemplar do Estádio do Espelho" é um índice que dá conta da
ligação inaugural sujeito -Outro, porém trata-se de "uma imagem somente
projetada" 1 3 que caracteriza o vazio como lugar estruturante do desejo. Mesmo
considerando as variações das teorizações lacanianas operadas a partir de O seminário,
livro 20, mais ainda - que basicamente focaliza o real do gozo como propriedade do
corpo vivo - mesmo assim o objeto comportará, inevitavelmente, a dimensão do
logr o, do eqmvoco,
, . , .
uma vez que sua imagem sera, sempre correlata a uma ausencia.
" LACAN , Jacques. "Le Séminairc, livre XII : Problemcs cruciaux pour la psychanalyse" ( 1 964-
5 ) . Inédito, aula de 05 de maio de 1 965. Lacan se referiu ao mito hegeliano do saber absoluto,
id eal inconcebível cm que os caminhos da positivação do desejo refletem essas astúcias da
razão, em contraste com o desejo inconsciente, que está sempre determinado.
12
LACAN, Jacques. " A significação do falo" ( 1 958). Em: Escritos. Op. cit., p. 699 .
" LACAN, Jacques. "Lc Séminairc, livre X: L' Angoissc" ( 1 962 - 3 ) . Inédito, aulas de 28 de
novembro e 05 de dezembro de 1962.
S
Instituto de Ps ico log ia - UFRG
A dia! eti
' ca hegeliana e o discurso de Lacan
1 29
Conforme comentou Jacques-Alain Miller, ela se dá a ver, projeta-se no cam
po
escópico, porém o engodo subsiste: ela mostra e esconde, ou melhor, mostra
exatamente para esconder. "A imagem faz tela ao que não se pode ver" 1 4 • Assi m
na descrição do objeto mais -de-gozar 1 5 , o propósito de Lacan não foi retirar �
negatividade, cm termos de um Uno separado, como disse Hegel, mas intro duzir
o objeto num lugar diferenciado, definindo -o na posição de produção de urna
perda. O desvalor que a Fenomenologia do espírito conferiu à imagem, adquir iu, em
Lacan, outra significação: configurou o objeto no campo da ilusão, fornecendo .
lhe o estatuto de miragem do desejo.
A razão analítica reprSienta o terceiro movimento da consciência e consiste na
decomposição do material já apreendido, na depuração do conceito no âmbito da
razão. O eixo central gira em torno do entendimento, vcrstand, responsável por fazer
coincidir as várias leis da razão quando as forças entram cm conflito. O impass e
apontado por Hegel foi demonstrado pelo desconhecimento de uma reali dade
múltipla em função do acúmulo de fenômenos. O sujeito custa a apreender o novo
e prefere reiterar sobre um saber anterior que, por vezes, não traduz o universal.
"O entendimento suprassumiu com isso sua própria inverdade e a inverdade do
objeto ; e o que lhe resultou em conseqüência foi o conceito do verdadeiro [... ] que
não é ainda o conceito'> l 6. A v erdade está para ser efetivamente alcançada, o sonho
hegeliano se circunscreve ao universal, ao conceito, mas ainda é um vir-a-ser. Percebe
se, então, o empenho em teorizar sobre a experiência do ser na dimensão do
conhecimento que deverá ser conquistado através da busca de uma unidade do real.
,
14
MILLER, Jacqucs-Alain. "Los cárcclcs dei gocc". Em : lmagcncs y miradas. Buenos Aires: E OL
1 994, p. 20.
1
' LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 1 7.
de p
c ue "a consciência-de-si é desejo [... ]. Mediante a reflexão-sobre-si, o objeto
e){ ] i a r q
vida [. . . ] o objeto do desejo imediato é um ser vivo" 1 7 , o próprio eu.
veio-a -ser
A análise da questão pelo prisma da teoria do desejo revela novas diferenciações
fórmulas hegeliana e lacaniana concernentes à função do desejo, apesar
e nt r e a s
d e c){istir cm pontos comuns, pois ambas estão aí afetadas. O que interessa à fórmula
eliana é o willc, vontade, uma vez que o termo introduz a razão, ponto de
heg
par tida para o indivíduo atingir a liberdade. A vontade se exerce na superação do
arbítr io, facilitando à consciência lidar com as par ticularidades da d emanda,
promovendo o enriquecimento e a qualificação do eu ; de maneira que o desejo,
en quanto vontade, cumpre-se em sua própria satisfação. T eoricamente, Hegel falou
do sujei to do amor que tende à completude, tornou o Outro consistente, com
exist ência de realidade, uma consciência. Trata-se de uma psicologia do querer,
demasiadamente centrada no registro imaginário. Por isso, o conceito de desejo
responde mais ao apelo de duas consciências que esperam o reconhecimento, cuja
decisão se efetua pela luta de puro prestígio: obtém-se o que se deseja pela violência
em função da disputa situada no centro da dialética senhor-escravo. Todo esse
conjunto de relações adquire vigor na frase que, segundo Lacan, resume a fórmula
hegeliana do desejo: "Eu te amo, ainda que tu não o queiras"1 8 •
Quanto à fórmula lacaniana, o que interessa é o wunsch, desejo, o objeto que falta ao
Outro e ele não sabe, no sentido mesmo do objeto que o completaria de gozo, tanto
quanto ao $. Nesse caso, a definição do sujeito do inconsciente vem pelo paradoxo:
ele é causado pelo objeto perdido e identificado com um Outro inconsistente, que
não r epresenta um ponto no espaço ocupado por alguém, justamente porque é
cscópico, pura imagem. Na verdade, é um "Outro que não existe" 1 9 , no campo da
'º LACAN, Jacques. "Le Séminaire, livre IX: L'Identiflcation" ( 1 96 1 -2). Inédito, aula de 2 1 de
fevereiro de 1 962.
11
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito, cap. IV: Op. cit. , p. 1 25.
" Ibid. , p. 1 26-7.
" Ibid. , p. 1 2 8.
i• LACAN, Jacques. Lc Séminairc, livre XI: Lcsquatre conccptsfondamcntaux de la psychanal 'sc ( 1 963-4). Paris:
Seuil I Points, p. 2 �6- 7.
;
li
LACAN, Jacques. "Le Séminaire, livre XIV: La logique <lu fantasme" (1 966-7). Inédito, aula
de 3 1 <lc maio de 1 967.
a consciência do escravo, pois é este quem detém, de fato, a verdade do gozo. Fo
i
para não renunciar ao gozo que se tornou escravo, para dá-lo como obj et o a
o
senhor. Se o ideal do escravo é ser um corpo que obedece, é porque isso lhe clá
acesso ao gozo masoquista, essa posição de dejeto, de resto, tão bem ilustrada Pel
a
estrutura perversa .
Hegel forneceu três exemplos - a consciência estóica, o ceticismo e a consciência
infeliz - que favorecem a reflexão sobre o sujeito dividido. Os conceitos de liber da de
autonomia e certeza, propostos na explicação, falam muito mais da relação do suj eit�
com o gozo da sublimação do que das hipóteses que a razão propõe. São exempl os
que transcrevem uma verdadeira regulação do gozo através da formalização do sab er.
No caso da consciência estóica, a ação não está ligada nem à verdade do senhor n ern
à servidão do escravo. A questão crucial é a impassibilidade da consciência diant e da
dor e a liberdade em centralizar-se sobre si mesma. Ela se reconcilia com a realida de
através do traço de obstinação, sobrepondo-se ao eixo senhor-escravo para avançar
no campo do espírito, instância máxima do saber absoluto.
Quanto ao ceticismo, a insuperável contradição do eu precipita a descrença
absoluta. A autonomia do pensamento desencadeia aspectos de aniquilação e nega
tividade, e a lei mor.l se desvanece em sua função de mandamento. Mas a liberdade
que a consciência quer alcançar - "essa ataraxia do pensar-se a si mesmo, a imutável
e verdadeira certeza de si mesmo"26 - conflui à descrição do gozo. As expressões
utilizadas por Hegel para definir a consciência cética são convincentes: consciên cia
perdida, con fus ão movimentada, des vario in cons ciente que os cila, desvanecer de clarado e outras, que
inserem no raciocínio certa inquietude dialética, inclusive a dúvida sobre a possi
bilidade de alcançar o conceito. Na orientação lacaniana, a descrença só faz demons
trar que o sujeito recua diante do real do gozo.
O último e mais importante dos exemplos - a consciência infeliz - to ca
diretament e no t ema do desamparo. Guarda vinculação com a dilaceração
fundamental mencionada por Freud em termos do traço masoquista erógeno dos
sujeitos, e sem dúvida r epresenta uma outra via de articular o gozo na teori a
lacaniana. Convém, entretanto, observar as diferenças, preservando os planos do
consciente e do inconsciente, do lugar diferenciado onde o desamparo se funda
para os sujeitos hegeliano e freudiano. Se a Spalt ung é cisão constitutiva para Fr eud ,
a consciência infeliz hegeliana não é uma instância antecipada e nem se instit ui a
partir de um corte. As cisões no hegelianismo são as contradições experim entadas
26
HEGEL, Georg Wilhclm Fricdrich. Fenomenologia do espírito, cap. IV Op. cit. , p. 1 39.
rc
na dialética amo-escravo. E consciência cindida em função de "uma luta
rº\,ocada
p c e tra va [.. . ] a vitória é antes uma capitulação"27 que culmina na imutabilidade
u s
j0 pade
cer. A teorização da consciência infeliz proporciona excelentes contri
buiçõ es sobre a psicologia da dor e sobre a passividade em render homenagem ao
entanto, a renúncia e a privação se introduzem no escrito de Hegel
outro. No
com o ele mento secundário , e não como dado primário , própr io ao real psicanalí
O saber absoluto
Ao término da Fenomenologia do espírito, a figura do saber absoluto foi definida como
uma essência espiritual a ser alcançada pela consciência, um universal, o puro
conceito. A razão é tão consciente da ação que engendra que di.ega mesmo a declarar
sua determinação no juízo infinito, "o Eu se denomina alma [ ... ] Das Dingist Jch, A Coisa
é Eu [ ... ] uma consciência-de-si cultivada"28 • A teoria visava à perfeição do espírito ,
mas deixou subentendida, por detrás dessa essência , a figura do supereu obsceno, tal
como defmida por Lacan. Hegel o tratou somente pela via da consciência-de-si moral, a
boa-consciência que fornece a certeza do saber. Porém é uma instância que remete o
sujeito ao real insuportável contido na realidade, essa mesma que Hegel se esforçou
em aprimorar por meio da Aulhebung, o conceito de superação dialética. O instinto de
conservação do eu - pano de fundo da dialética hegeliana - tem como essência o
medo da morte, que para Lacan é o "Mestre absoluto, subordinado ao medo narcísico
da les ão do corpo próprio"29 • A categoria do real lacaniano refere-se aqui ao corpo
lesado e dominado pela morte , tal como nas fantasias primitivas de fragmentação .
Do ponto de vista hegeliano, no entanto, a intenção foi legitimar a ação moral
do homem e conver ter o saber no instrumento para atingir a superação dialética,
2 7 l bid. , p. 1 4 1 .
'"
H EGEL, Georg Wilhelm Friedrich. "O Saber Absoluto". Em: Fenomenologia do espírito, vol. II,
cap. VIII. Op. cit. , p. 209, e cf. a expressão referida no parágrafo 791 da mesma obra. Grifo
meu.
'
29 LACAN, Jacques.
"A agressividade em psicanálise" ( 1 948) . Em : Escritos. Op. cit . , p. 1 22 - 3 .
30
HEGEL, Georg Wilhclm Friedrich. Fenomenologia, cap. IV. Op. cit., p. 1 4 3 , grifo meu.
11 Ibid. , p. 1 45 .
12 Ibid . , p. 1 46-7. Nesse ponto, Hegel definiu o conceito de ser-para-si como a própria consciência ,
enquanto que o ser-em-si represen ta o além imutável , o espírito.
ll
Ibid . , p. 1 48 .
14
HEGEL, Georg Wilhelrn Fricdrich. Fenomenologia do espírito, cap. VIII. Op. cit . , p. 2 1 1 .
O gozo discursivo
A teoria lacaniana do gozo foi resumida por Jacques-Alain Miller em seis diferentes
paradigmas. O quinto modelo - o gozo discursivo -sintetiza as articulações processadas
durante os anos de 1968 a 1970. Nesse período, um dos comentários mais mar
cantes de Lacan 36 sobre a Fenomenologia foi no sentido de indicar que Hegel, através
da consciência-de-si, prolongou o cogito inaugural cartesiano, transformando o
aforismo "penso, logo existo" em um outro transcrito da seguinte forma: "sei que
penso". Por extensão, definiu os conceitos hegelianos de liberdade - "sou onde
quero" - e da ilusão - "sou onde penso". Assim, Lacan acentuou a diferença entre
o campo fr eudiano e a teoria hegeliana do saber : o traço informulável do trauma,
tr aduzido pelo "cu não sei", demonstra que a definição do desejo, em Freud, é um
desejo sempre desfalecente de saber, tal como no sonho "ele não sabia que estava
morto". Mas a beleza da filosofia hegeliana consiste cm sustentar o paradoxo. A ex
cessiva referência à verdade serve para demonstrar que o pensamento quer esquecer
ª sent ença que designa seu início trágico - "eu não sei" - pois implica o corte
i naugural do ser. A importância clínica da função do sujeito suposto saber evidencia
que não podemos nos aproximar de uma terminação possível do saber.
A d·IaJeti
' ca hegeliana e o discurso de Lacan
1 37
As contribuições lacanianas mais decisivas sobre a intercorrelação das temáticas
saber-gozo-verdade, lançadas no seminário sobre O avcsso da psícanálisc, estão implicad as
nos algoritmos dos quatros discursos, iniciados pela formalização do discurso do
mestre, também intitulado amo ou senhor. A lógica do surgimento do sujeito do
significante foi trabalhada a partir de uma estrutura inicial de discurso concentrada
na relação binária - S 1 � S 2 -, na qual se distinguem duas categorias de sab er.
O primeiro significa o saber absoluto e funciona como agente precipitador do discurso.
E o Um que inaugura a série, produzindo efeitos sobre os demais , no entanto trata-se
de um significante que falta, o Um a menos, e como tal, "um saber que não se sabe"37 .
O segundo termo - S2 - funciona como o lugar do Outro, já que o Um falta .
Representa o reservatório dos significantes , uma vez que contém o saber do Outro
- é o Outro da ordem do saber constituído e, enquanto significante, nada mais é que
um efeito do S • Lacan não hesitou cm chamá-lo "o gozo do Outro"38.
A intervenção do unário no campo significante promove a operação de perda,
1
no mate rna S (J,..), o significante da falta do Outro . Nesse sentido, ele é ao mesmo
42
., D
esde "Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano" (1960),
l�can oferecia ao S ($,.) o valor matêmico de um significante que falta, tendo utilizado o
aforismo "não há Outro do Outro". (Em : Escritos. Op. cit. , 833). Segundo Miller, o aforismo
não será mais enfatizado a partir do sexto paradigma do gozo, que transforma o Um no
verdadeiro Outro do Outro.
•,
M ILLER, Jacques-Alain. "Os seis paradigmas do gozo". Op. cit. , p. 96.
" lACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 33.
Introdução
1
A par tir da ênfase atribuída por Lacan à expressão freudiana "amor à verdade" , no
capítulo XII, "A impotência da verdade", gostaria de pensar o conceito de verdade
para a ciência e para a psicanálise no que diz respeito ao tema da homossexualidade,
tomando como fio condutor os quatro discursos propostos em O seminário, livro 1 7: o
avesso da psicanálise .
Nesse seminário, Lacan cita wn trecho de "Análise terminável e interminável'11 ,
em que Freud abordou as dificuldades do analista como obstáculo ao sucesso da análise,
a partir de wn artigo de Ferenc--Li1 . Ao comentar a conclusão de Ferenc--.c i, de que o
êxito das análises dependeria de o analista ter aprendido com seus "erros e equívocos",
Freud afirmou que isso não tornava o analista wn modelo de perfeição, wna vez que,
ao contrário do médico, cuja tuberculose pode ser wna vantagem no tratamento de
pacientes que sofrem dos pulmões, a sua subjetividade interfere no trabalho analítico.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicariá/isc ( 1 969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
1
141
do analista descrito por Lacan. A "ordem médica", termo criado para ressaltar 0
caráter normativo do discurso médico, institui o bem e o mal do discurso religioso
corroborando o último.
Na Idade Média, a Igreja Católica e o Estado condenaram a sodomia e ntre
indivíduos do mesmo sexo, que gozara de alguma tolerância na cultura pagã do
Mundo Antigo 5 , criando um controle moral e legal da sexualidade : qualquer prática
sexual sem finalidade procriadora era considerada um "pecado contra a natureza"G.
Segundo o clero, uma vez violada, a natureza retaliava sob a forma de pestes e
catástrofes. O termo ''lepra" era empregado pela Igreja como "metáfora de doença"7
para descrever o ato homossexual , vinculando a homossexualidade à heresia, à
lepra e ao Diabo 8 • Os médicos, por sua vez, eram pressionados pelas autoridade s
para curar o vício da sodomia. Essa correlação entre homossexualidade e doe nça
reapareceu no século XIX, com um novo referente : o instinto sexual, que será
abordado adiante.
O discurso médico é, por excelência, um discurso normativo. Do mesmo modo
que a ordem jurídica institui uma ordem das coisas, o discurso médico instaura a
ordem no organismo, com o objetivo de curar o doente, trazê-lo de volta à
normalidade através de uma sanção terapêutica com função superegóica. O homem
normal /saudável é o ideal buscado pela medicina, constituindo sua ética, e a
sexualidade se insere nesse modelo como um bem9 , em nome da ''higiene sexual" 1 º.
Para o médico , o sintoma é um signo que porta uma informação sobre a doença.
Ordenando esse signo com outros, ele constitui uma cadeia de significantes, isto é,
o discurso médico e, a partir dele, uma significação : o diagnóstico, "ato de mestria"1 1 •
Fazendo do sintoma um signo, o médico exclui a verdade do sujeito.
12
FRE UD , Sigmund. "A nálise te rmináve l e inte rminável" ( 1 937) .Em : Obras complctas, vol. XXIII.
Op. cit . , p. 2 8 1 -2.
13
LACAN , Jacques. O seminário, lirro /: os escritos técnicos de Freud (1953-4). Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1986, p. 302 .
,.
LA CAN , Jacques. "A ciência e a ve rdade" (1 956) . Em : Escritos. Rio de Jane iro: Jorge Zahar
E dito r, 1 996, p. 870.
" MILNE R, Jean Claude . A obra clara : Lacan, a dência, a filosofia. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor,
1 996, p. 34.
1• L A C AN, Jacque s. "Função e campo da fala e da ling uagem" (195 3). Em : Escritos. Op. cit.
17
J ORGE , Marco A ntonio Coutinho. Fundamcntos da psicanálisc dc Frcud a Lacan , vol. 1. Rio de Janeiro :
Jorge Zahar Editor, 2000, p. 65 -7.
"A i m p
otência da verdade" e a homossexualidade 1 43
Outro, instaura-se o sujeito do fracasso, da impotência: "Essa falta do verdadeiro
sobre o verdadeiro, que exige todos os fracassos que a metalinguagem constit ui
no que ela tem de falsa apar ência, é propriamente o lugar do Urvcrdriingung, do
recalque originário" 1 8 . Esse saber que não se sabe (S 2 ) ocupa, no discurso do ana
lista, o lugar da verdade, e a verdade do sujeito é sempre um semidizer, uma v ez
que, devido à falta de inscrição psíquica da diferença sexual no inconsciente, r est a
o r eal, o impossível de ser sabido. O discurso do analista restitui, desse modo, 0
atender à demanda dos bens sociais, o que dizer da suposta causa genética da homos
sexualidade? Estaremos abrindo caminho para a eugenia da orientação sexual ?
Ao comentar as três profissões impossíveis estabelecidas por Freud em "Análise
terminável e interminável"25 , Lacan observou uma mudança conceituai significativa:
21
COSTA, Jurandir Freire. A face e o rerso: estudos sobre o homocrotismo ll. Op. cit. , p. 1 42 .
11
ISAY, Richard. Tornar-se gay: o caminho da auto-aceitação. São Paulo: Summus, 1 998, p. 1 57-8 .
21
FRE UD, Sigmund. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" ( 1 905). Em : Obras completas,
vol. VII. Op. cit. , p. 1 48 -9.
Lacan criticou essas noções pbs-freudianas 9ue formulam a existência de um objeto ideal
24
1 45
11
26
LACAN, Jacques. O seminário, lúro 17: o avesso da psicanálise. Op.cit. , p. 1 58.
27
CLAVREUL, Jean. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. Op. cit. , p. 1 77-95.
2 ' FREUD, Sigrnund. "Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância" ( 1 9 1 O) . Em : Obras
completas, vol. XI. Op. cit.
19
FREUD, Sigrnund. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade". Op. cit. , p. 1 46.
'º LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o ai·esso da psicanálise . Op. cit. , p. 1 64.
11
LACAN, Jacques . O seminário, livro 20: mais, ainda ( 1 972 -3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1 98 5 , p. 62.
" LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o aresso da psicanálise . Op. cit. , p. 1 70.
" LACAN, Jacques. "Proposição de 9 de outubro de 1 967 sobre o psicanalista da Esco1 a"
( 1 967), Documentos para uma Escola, ano 1 , n. O. Rio de Janeiro, Escola Letra Freudiana, si d , p. 41 ·
14 Grifo do autor.
" Comentário reali7.ado pelo psicanalista Sérgio Gondim na apresentação de meu traballio "O ideal
do amor genital e a falta de objeto", na Jornada lntcrcartéis da Escola Letra Freudiana, cm 2 5
de maio d e 200 1 .
1• LACAN , Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Op. cit. , p. 49.
17
F REU D, Sigmund. "Conferências introdutórias sobre psicanálise: conferência XX" ( 1 9 1 6-7).
Em: Obras comp/ct;Js, vol. XVI. Op. cit. , p. 357-60.
18 COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre o homoeratismo. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1 992, p. 50, grifo meu.
19 LACAN, Jacques. O seminário, /irra 17: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 1 59.
40
RINALDI, Doris. A ética da diferença: um debate entre antropologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1 996, p. 1 47.
4 1 LACAN, Jacques. O seminário, /irra 1 7: o a vesso da psicanálise. Op. cit . , p. 1 70.
42
Ibid.
1
FREUD, Sigmund. "O mal-estar da civilização" (1930). Em : Obras completas, vol. XXI. Rio de
Janeiro : Imago , 1976.
2
FREUD, Sigm und. "Prefácio a Juventude desorientada , de Aichhorn" ( 1 925). Em : Obras completas,
vol. XIX. Op. cit. , p. 341.
1 LACAN
, Jacques. O seminário, livro 1 7: o arcsso da psicanálise ( 1960-70). Rio de Janeiro: Jorg e Zahar
E ditor, 1992.
• Ibid, p. 29.
O
1 50 Saber, verdade e goz
sujeito com o qual nos defrontamos esteja ocupando o lugar de agente: ele
q
IJC O
o d e estar cm qualquer uma das posições, pois são muitas as var iações que o
ps1.1J· c,i to pode tomar nos diferentes laços sociais em que transita.
o discurso do mestre é, fundamentalmente, o discurso fundador da civilização.
oduziu o discurso do mestre a partir da definição de sujeito : "sujeito é
Lacan intr
que um significante representa para outro significante';; . O discurso do
aq u il o
mes tre corresponde, assim, à própria instituição do sujeito, é o discurso do in
cons cie nte. Para defini-lo, Lacan tomou emprestado de Hegel a dialética do senhor
e d o es cravo : as posições do senhor (S1 ) , de um lado, e do escravo (S2) , do outro,
se es tabelecem depois da luta que os opôs. Aquele que enfrentou a morte se torna
senhor e o que recuou diante dela se torna escravo. Uma vez estabelecidas as
posi ções, o escravo estaria do lado do gozo, ao qual o senhor só teria acesso através
do escravo. Foi a partir dessa dialética que Lacan afirmou que o saber do lado do
escravo (S 2) é um saber relativo ao gozo do mestre. Em suas palavras : "O escravo
sabe muitas coisas, mas o que sabe muito mais ainda é o que o senhor quer, mesmo
que este não o saiba, o que é o caso mais comum, pois sem isso ele não seria wn
scnhor" 6 • Pode-se observar, portanto, que, no discurso do mestre, S 1 como agente,
precisa do outro que detém o saber sobre sua posição para produzir a mais-valia, o
objeto a, o resto, o gozo que o mestre tira do trabalho do outro, que Lacan chamou
"mais -de-gozar".
O discurso do universitário realiza um quarto de giro para trás, wna retroação
do discurso do mestre. Nessa retroação, há uma "transmutação" do saber, realizada
pela filosofia, que constitui wn saber a partir do saber do escravo e o transforma
cm saber do senhor: "A filosofia, em sua função histórica, é uma extração, essa
traição, cu quase diria, do saber do escravo, para obter sua transmutação cm saber
de senhor"7 . Como essa transformação é a passagem para um saber teórico, o
dis curso universitário é, portanto, a modalidade moderna do discurso do mestre.
Pode-se afirmar que, a partir de Hegel, Lacan se referiu ao mestre antigo - o
tncstr c contemplativo - e ao mestre contemporâneo, associando o último ao capi-
talismo e · . . , .
ao d 1scurso un1vers1tano.
Há um nível de equivalência no funcionamento dos discursos do mestre e
llnivcr sitár 10
· : "Podenamos,
'
, assim,
· escrever que aqui·1o que no d 1scurso
' do mestre
e S 1 pode ser chamado de congruente ou equivaler ao que vem funcionar como
O
5
lbid, p. 1 1.
• lbid , p. 30.
lbid, p. 20.
7
Q11e 111gar
pata o sujeito na escola? 151
S 2 no discurso universitário, naquele que qualifiquei como tal para fixar as id éias
ou, ao menos, a acomodação mental'>!!:
M (S I ) = u (SJ
Em outras palavras, o saber do escravo (S2) vai se transformando cm um sa ber
teórico que agencia o discurso do universitário (S). Há uma tirania do saber que
exige obediência "cega" ao mandamento do saber, e a ordem que se apres enta é
"saiba tudo". Nesse discurso, a verdade do sujeito é rejeitada cm nome do "tudo
saber", e tudo que é tratado pelo saber (S2) é considerado objeto de gozo (a) .
Lacan apontou ainda outra equivalência n o funcionamento dos discur sos do
mestre e do universitário. No primeiro, o elemento que ocupa o lugar do outro , do
trabalho, é S 2 , o escravo, aquele que se deixa explorar pelo mestre; no segundo , é 0
'objeto a - segundo Lacan, o aluno. Pode-se pensar, portanto, que o saber que
agencia esse discurso se dirige ao aluno no lugar de objeto a, aluno-objeto, traba
lhador escravizado a um saber teórico. Lacan brincou com as palavras, referindo
se ao "a estudante", ou seja , criando um neologismo que pretende dizer algo sobre
o estudante: "O estudante se sente astudado. É astudado porque, como todo trabalhador,
ele tem de produzir al guma coisa''9.
Nessa articulação, a está no lugar de explorado ; trata-se do "a estudante", que
está no discurso de maneira "mascarada", sempre identificado ao objeto a, encarre
gado de produzir o sujeito dividido ($), resto do saber científico. Ao identificar o
estudante no lugar de a no discurso universitário, Lacan fez uma analogia com a mais
valia de Marx e afirmou que os estudantes são "equiparados a mais ou menos créditos,
ou seja, são etiquetados como créditos, unidades de valor'�º. Pode-se apreender que,
no discurso universitário, o "a estudante" é tomado como objeto e o aluno-obj eto
enunciará a reprodução dos enunciados dos quais se torna mero porta-voz.
O legado de Lacan sobre os discursos que fazem laço social possibilita r efleti r
sobre os lugares que o sujeito pode vir a ocupar em uma instituição educacional .
O aluno teria se transformado no escravo do saber científico contemporâ n eo?
O professor seria o mestre contemporâneo do saber científico? O pai , como
si gnificante, seria o agente do discurso do mestre? Na tentativa de articular e ssas
indagaçõ es à prática institucional, utilizarei a p eça de Wedekind "O desp er tar da
• Ibid, p. 96.
9
Jbid, p. 98.
'º Jbid , p. 1 9 1 .
1 52 Saber, verdad e e g
oiº
r im avcra" 1 , que trata de questões cruciais do jovem cm seu meio escolar. Embo ra
1
A peça traz à tona experiências dos estudantes cm suas relações com os pais,
co l eg as e professores. A partir de um fragmento da obra, tentarei pensar o lugar
do s ujeito nos discursos do mestre e do universitário. Melchior, um dos protago
nis tas, vive com os colegas o problema do Liceu:
Melchior: Gostaria de saber por que, ao certo, estamos nesse mundo?
Moritz: Ir à escola! Preferia ser um burro de carga! Por que vamos ao colégio?
Vamos ao colégio para que possam nos obrigar a fazer exames? E por que nos
fazem passar pelos exames? Para sermos deixados cair. Há sete que devem ser
reprovados. Na turma do ano que vem só cabem sessenta alunos. Trabalhar, tra
balhar, eis o que vou fazer nem que os olhos me saiam da cabeça. Robcl já acu
mulou seis reprovações. Eu já me meti cinco vezes nesse estado lamentável e não
corro mais o risco de que se reproduza tão cedo! Robe! não se matará, não tem
pais que lhe sacrifiquem tudo [... ] eu, se caio, é um golpe de matar para meu pai,
e o hospício para mamãe [... ] Se cu fracasso, quebro o pcscoço. 1 4
Essa passagem remete ao discurso universitário, que lida com o outro como
objeto e produz um sujeito dividido, barrado e condenado ao lugar da própria
ignorância. Em seu livro Sexo e discurso em Freud e lacan, Marco Antonio Coutinho
Jorge retoma os ensinamentos de Lacan em relação ao discurso universitário:
O Único discurso que considera o outro enquanto sujeito é o discurso analítico. Inver
samente, o discurso_ universitário trata o outro enquanto objeto, o outro se encontra
nele objetificado. [... ] o que o discurso universitário transmite é a incidência do
saber depositado, preconcebido, sobre o outro objctificado. Ou seja, trata-se de
" W EDEKIND, Frank. L'Ercil du printemps ( 1 891 ) . Paris: Gallimard, 1 974. Fotocópia de uma
tradução da peça, arquivada sob n. 8 3 2 . 9w391 . l , na Biblioteca da UNIRIO / Rio de Janeiro.
11 0
comentário foi feito durante uma das reuniões das quartas-feiras da Sociedade Psicanalítica ,
que se tornaria, em abril de 1 908, a Sociedade Psicanalítica de Viena. Coube a Otto Rank
redigir a ata, co11fiada por Freud, em 1 93 8 , a P. Fedem e legada por este a Numberg.
" LACAN, Jacques. "Lacan sobre Wedekind: o despertar da primavera" ( 1 974), FALO, Revista
Brasileira do Campo Freudiano, n. 4/ 5 . Bahia, Fator, 1 989.
"' WEDEKIND, Frank. L'Ercil du printcmps. Op. cit.
Mais adiante, o autor esclarece que, tomado como objeto, o sujeito não tern.
mais voz ativa, restando-lhe o silêncio: "O que ele enunciará, a partir daí, nada
mais terá a ver com ele próprio e será, portanto, a reprodução dos enunciados dos
quais el� se torna mero porta-voz. Desse modo, a particularidade do estilo d o
sujeito é recusada, e sua enunciação, abolida'%.
A cena citada denuncia a burocracia do discurso universitário na escola de
Moritz: a obrigatoriedade dos exames, os resultados finais - aprovação ou repro
vação -, a concorrência por vagas limitadas, a urgência de comprovação de um
saber. Pode-se observar que esse discurso se apresenta sob o mandamento "Saiba
tudo, não pare, continue a saber sempre mais", evidenciando a tirania do saber.
A fala de Moritz revela que os alunos de sua escola se encontram submetidos ao
discurso universitário : o estudante estaria na posição do outro, do trabalho, identificado
ao objeto a, no lugar de "a estudante", explorado, encarregado de produzir o sujeito
dividido, sofrido por não conseguir dar conta do ideal do saber científico - ou
seja, sofrido por não ser oniscicnte.
Moritz diz: "Na turma do ano que vem cabem sessenta alunos. Trabalhar, tra
balhar, eis o que vou fazer nem que os olhos me saiam da cabeça . . .". No decorrer
da peça, ao contrário do que enunciara, Moritz não estuda, não trabalha, não
produz. Ele não se põe, como os outros alunos, na posição de objeto a no discurso
universitário que opera cm sua escola, mas simplesmente faz-de-conta de estudante,
fingindo que estuda e trabalha. Como não sabe o que fazer para escapar do man
damento imposto pelo discurso, engana a si mesmo e nega seu fracasso escolar,
mantendo-se, diante do grupo, como aquele para quem tudo vai bem. A écna na
qual conversa com os amigos sobre os resultados dos exames ilustra esse argumento:
Moritz: Eu passei! Melchior, cu fui aprov ado, eu passei!
Limmcmeicr: Você não deve ter lido direito! Tirando os outros , com v ocê e Erncst
a classe fica com sessenta e um alunos e o número de v agas é sessenta!
Moritz: Por isso que eu demorei ! Lá estav a escrito que nós dois passávamos com
15
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Sexo e discurso cm Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge zahar
Editor, 1 997, p. 92 .
1
• Ibid , p. 147.
Diante da concorrência por uma vaga, Moritz entra cm angústia. Ele não pode
en frentar a concorrência imposta pelo discurso universitário, não está na posição do
outro, do trabalho, no discurso universitário, mas no lugar da produção no discurso do
mestre, ou seja, no lugar do objeto a, posição de resto, queda. Retomando sua fala
anterior: "Por que vamos ao colégio? Vamos ao colégio para que possam nos obrigar
a fazer exames? E por que nos fazem passar pelos exames? Para sermos deixados
cair". Com a expressão "deixar cair", Moritz denuncia seu lugar no discurso do
m estre: objeto que cai. Identificado a a, cai como resto, suicida-se.
Os professores de Moritz ocupam para ele a posição de um Outro onipotente,
um a autoridade absoluta, um Outro não barrado ; parecem não se importar com
seus apelos. Freud falara sobre isso em 1 9 1 0, na Sociedade Psicanalítica de V iena.
Ao discutir o suicídio dos jovens, afirmou que os professores deveriam ocupar -se
mais cm sustentar o aluno a partir do lugar da função paterna:
Se é o caso que o suicídio de jovens ocorre não só entre os alunos de escolas
secundárias, mas também entre aprendizes e outros, esse fato não absolve as
escolas secundárias; isso deve talvez ser interpretado como significando que, no
concernente a seus alunos, a escola secundária toma o lugar dos traumas com
que outros adolescentes se defrontam cm outras condições de vida. Mas uma
escola secundária deve conseguir mais do que não impelir seus alunos ao suicídio.
Ela deve lhes dar o desejo de viver e devia lhes oferecer apoio e amparo em uma
época de vida em que as condições de seu desenvolvimento as compelem a afrou
xar seus vínculos com a casa dos pais e com a família. 1 8
8 FREU D , Sigmund. "Contribuições para uma discussão acerca do suicídio" ( 1 9 1 0). Em: Obras
1
completas, vol. XI , p. 2 1 7.
Moritz não responde às expectativas de seus pais : nunca foi bom aluno. Nas
palavras de Sonia Albcrti, "[... ] ele é literalmente aquele estudante ao qual Fr eud
se refere na discussão cm 1 9 1 0: incompreendido pelo pai ou substituto - e digo
incompreendido no sentido de não sustentado pela função paterna, posto q;-1_�
pai não per mite qualquer significação para o desejo -, Moritz suicida-se cm um a
,�o
última tentativa de barrar o circuito cm que ainda figurava como objeto de gozo
soz inho as dificuldades do mundo adulto e, por isso, transfere para o professor a
figura paterna. Por essa razão, o professor deveria posicionar-se do lugar de poder
sup orta r essa sustentação. Segundo Freud, o professor sofre a mesma vicissitude que
a devido ao complexo de Édipo, e sua importância está não no que ele é, como
0 p i,
" FRE UD, Sigmund. "Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar" ( 1 91 4) . Em : Obras
cornpfctas, vol. XIII. Op. cit.
12
lbid . , p . 2 87.
Q11e · 111gar
para o sujeito na escola? 1 57
Reitor: Patife !
Melchior: Eu lhe peço que me mostre uma única ofensa aos costumes nesse escrito!
Reitor: Você imagina que eu desejo bancar o palhaço diante de você?
Melchior: Eu...
Reitor: Você tem também tão pouca deferência pela dignidade do inteiro corpo de
seus professores quanto senso de decência ante o sentimento de descrição inato
ao homem cheio de modéstia diante da ordem moral do mundo.
Melchior: Eu...
Reitor: Peço a nosso colega, escrivão, que feche o processo verbal !
Melchior: Eu...
Reitor: O que você tem é de se calar! Leve-o para fora! 23
Sem direito à palavra, Melchior é julgado e condenado por wn escrito dito obs
ceno · que dera a Moritz antes de seu suiddio. Do lugar de agente no discurso do
mestre, o reitor não quer saber de nada, não tem wna escuta para o que Melchior tenta
dizer, ele quer simplesmente que as coisas andem no Liceu de acordo com a moral e os
bons costwnes, e é cm nome do bem que expulsa Melchior: "Um verdadeiro senhor
não deseja saber absolutamente nada - ele deseja que as coisas andem'�4 .
A última cena da peça de Wedekind se passa no cemitério e ilustra a relação
entre a função paterna e o laço social. Melchior, desolado pela morte da amiga
Wendla, causada pelo aborto de um filho seu, e desesperado com a expulsão do
Liceu, foge do reformatório para onde foi levado como punição e pula o muro do
cemi.t ério.
Melchior: Eis-me suspenso sobre... O que é que me mantém ainda em pé? O crime
chama o crime. Estou condenado à lama. Eu não era mau. E fui eu que a matei !
Resta-me o desespero. Não tenho direito de chorar aqui.
Moritz (o fantasma, com a cabeça cm seus braços entre os túmulos) : Um instante,
Melchior!
Melchior: De onde você vem?
Moritz: De lá, do muro lá adiante. Você derrubou minha cruz. Eu repouso junto
ao muro. Dê-me a mão. Você me agradecerá.
Melchior: Se aceito, Moritz, será por desprezo a mim mesmo. Eu me vejo um
pária. O que me dava coragem, agora j az no túmulo. Os Ímpetos nobres, não
posso mais decidir-me a estimá-los e não percebo coisa alguma que se atravesse
cm minha decadência. Sou a criatura mais execrável de todo o universo: 5
2
1 WEDEKIND, Frank. L'Eveil du printcmps. Op. cit.
24 LACA N, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit . , p. 2 1.
25
WEDEKIND, Frank. L'Evcil du printcmps. Op. cit.
1 58 Saber, verdade e g o
zO
Entra em cena o Homem Mascarado :
Homem Mascarado a Melchior: Mas você está tremendo de fome. Você não está ab
solutamente cm condição de julgar. Vá embora (a Moritz) .
Melchior: Quem é você?
Homem Mascarado a Moritz: O que você tem a fazer aqui? Por que não está com a
cabeça no lugar?
Moritz: Eu me dei um tiro de revólver.
Homem Mascarado: Então fique no lugar que lhe cabe.
Moritz: Por favor, não me mande embora . . .
Melchior: Quem é o senhor?
Homem Mascarado: Faço a você uma proposta: queira confiar-se a mim. Meu pri
meiro cuidado seria que você tivesse sucesso.
Melchior: O senhor é meu pai?
Homem Mascarado: Será que você não reconhece o senhor seu pai pela voz?
Melchior: Não.
Homem Mascarado: O senhor seu pai procura, nesse momento, consolação nos bra
ços robustos de sua mãe. Eu lhe abro o mundo. Você perdeu momentaneamente
o equilíbrio com seu estado miserável. Um bom jantar quente na barriga e de
seu estado você verá.
Melchior (falando baixo para ele não escutar) : É preciso que ele seja o diabo em
pessoa! (Em voz alta:) Depois do mal que eu fiz, não será um jantar quente que
me restituirá o repouso!
Homem Mascarado: Depende do jantar! . . .
Melchior: Quem é o senhor? Não posso me confiar a um homem que não conheço!
Homem Mascarado: Você não aprenderá a me conhecer, a menos que se fie em mim . . .
Aliás, você não tem escolha.
Moritz: . . . Minha moral lançou-me para a morte . Foi por amor a meus caros pais
que usei a arma mortífera. "Teus pai e mãe honrarás a fim de viver longamente".
Para mim, esse mandamento recebeu um desmentido fenomenal.
Melchior: . . . cu posso lhe dizer categoricamente, senhor, se ainda agora cu esten
desse a mão a Moritz sem qualquer cerimônia, minha moral, e só ela, teria sido
ª causa. Adeus caro Moritz. Onde esse homem me leva, eu não sei, mas é um
homem . 26
,, lbid.
venha sustentar a função paterna. Na teoria psicanalítica, a metáfora pat cr
na
concerne à função do pai, que está no centro da questão do complexo de Édi
rcve1a da pe 1o mconsc1cnte.
Po
. .
,, A função do pai aponta o lugar no qual o pai intervém : antes de qua lqu
er
outra coisa, ele interdita a mãe, e é aí que se liga à lei primordial da proibiç ão
do
incesto. O materna lacaniano da metáfora revela que o desejo da mãe é uma si rnpl
cs
incó gnita para o sujeito, e o Nome-do-Pai vem barrar esse desejo. A partir d ess
e
momento, é o Nome-do-Pai que regula o Outro como determinado pela signifl. _
cação fálica, e será somente depois da aquisição do significante Nome-do-Pai que
a relação da mãe com a criança poderá ser expressa cm termos de desejo. Quando
esse significante não se inscreve no simbólico, tem-se a psicose: a criança se percebe
como objeto de gozo da mãe, e não como objeto de desejo. A fórmula da m etá fora
paterna esclarece, assim, que a função simbólica do pai é estruturante e, por isso
mesmo, castradora : barra o acesso ao mundo do gozo com a mãe.
A peça dramatiza a tentativa do fantasma de Moritz de convencer Melchior a
se matar. O Homem Mascarado, surgido das trevas, salva Melchior das garras do
fantasma Moritz, exercendo a função paterna de sustentar a vida do suj�_ito diante
do desmoronamento do mundo a seu redor. Assim, a função paterna pela qual
Melchior é marcado, é sustentada, na peça, pelo Homem Mascarado: é ele quem
barra o gozo pelo qual Melchior é tomado.
Melchior apela ao pai para fazer a barragem desse gozo não significantizado.
O Homem Mascarado recomenda a Melchior que ele não dê tanta importância
aos ú ltimos fatos, sugere que tudo por que está passando não é tão grave quan to
parece e oferece um jantar quente, sugerindo que isso dissiparia seu estado mis e
rável. Dessa forma, não só esvazia de sentido os últimos acontecimentos da vida
de Melchior, como também opera como referencial para o rapaz, evitando que
ele se deixe morrer. O Homem Mascarado permite a Melchior uma referência
simbólica, instalada pela função paterna, salvando-o das garras do fantasma Mo ri tz;
ele vem sustentar o sujeito diante do desamparo fundamental de sua demanda de
proteção. Em seu prefácio à peça, Lacan escreveu: "Entre os Nomes-do-Pai, existe
o do Homem Mascarado. Mas o Pai cm tantos e tantos que não há um que l he
convenha, senão o Nome do Nome do No�e:Não um Nome que seja seu Nom ·
e
27
LACAN, Jac9ucs. lacan sobre Wedekind: o despertar da prima vera. Op. cit. , p. 5 .
As mortes de Moritz e de Wcndla (grávida) trazem para Melchior o real da
cas tração. Diante dessas perdas, ele precisa fazer valer o significante Nome-do-Pai
ar a que possa sustentar a exceção. O pai exceção, figura mítica de "Totem e tabu",
� aqu ele que tem o falo, representa um pai que não teria sido castrado e que, portanto,
od e ditar as leis que barram o gozo. A necessidade de um pai ideal que sustente o
p
sui·eito diante do desamparo fundamental emerge cm sua demanda de proteção,
ap esar de Melchior já ter se deparado com um pai castrado, que dormia no aconchego
da mulher. Do lado dos substitutos dos pais, ou seja, do Outro social, Melchior não
en c ontra algo que lhe permita fazer do professor uma figura paterna eficaz. Há algo
na r elação com o Outro - lugar aqui ocupado pelo professor - que claudica, e
Melchior precisa fazer valer o significante Nome-do-Pai.
Os três registros do pai - real, simbólico e imaginário - constituem o sujeito
de sejan te com a inscrição da metáfora paterna, e isso permite a inscrição do sujeito
na relação com os o utros, fazendo dele um ser da cultura. Pode-se observar, nos
discursos lacanianos , que a inscrição do sujeito na relação com os outros se dá nos
luga res de agente e do o utro. Essa relação só pode ser estabelecida com o advento da
identificação primária ao pai, ou seja, S 1 - significante mestre, que engendra S2 -
é fundamental para o estabelecimento dos laços sociais .
O discurso do mestre - o discurso do inconsciente - é quase um protótipo da
operação de simbolização, ou seja, S1 em direção a S2 produz a, objeto que sobra
da operação do Nome-do-Pai. Na operação de simbolização, o pai simbólico (Nome
do-Pai) , o pai morto, reduzido a puro significante, não impede que a incidência
do Nome-do-Pai deixe um resto, que vai apontar para o pai real, agente da castração.
-.:1- 0 pai real é um pai que goza e, ao mesmo tempo, priva. O pai do gozo, o pai
impossível, surge na clínica na imagem do pai que cometeu algum "pecado", e seu
gozo é localizado pelo sujeito cm seu sintoma. Sonia Alber ti explicitou esse argu
1
mento:
[ .. . ] o que é próprio da cultura e que mantém um laço com o sujeito também é
próprio do mal-estar na civilização. Este, por sua vez, revela que jamais será
possível arrematar os três registros. Do lado do sujeito, algo sempre faz sintoma ;
do lado da cultura, pai-a-versão (pere-a-version), aversão. [... ) É tecendo voltas e
voltas em torno desse real impossível de dizer [... ) que os nós vão se consolidando
[... ] e o sujeito vai podendo, enfim, exercer-se como agente, movimentando o
laço social. 28
18
ALBERT) , Sonia. Esse sujeito adolescente. Op. cit., p. 1 64-5 .
29
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 102.
1
O presente artigo é fruto de uma pesquisa, iniciada cm março de 2000 e ainda em desenvol
vimento , no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Instituto de Psicologia,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
' Decreto n. 3 . 298 , de 20 de dezembro de 1 999. Regulamenta a Lei n. 7 . 8 5 3 , de 24 de
ou tubro de 1 989, dispõe sobre a Política Nacional para Deficiência,
consolida as normas de
proteção e dá outras providências (Diário Oficial da União. Brasília, 2 1 de dezembro de 1 999)
.
1 65
Nos trabalhos direcionados a essas pessoas, o processo de reabilitação é co
cebido como "um meio de ajudar o indivíduo incapacitado a tirar o máxi rno d
tl-
e
suas capacidades para a satisfação salutar de suas necessidades e para a auto - reaJi_
zação. Isso significa restauração física máxima, reconhecimento mais confor táve)
da incapacidade, alteração nas metas, substituição de antigas satisfações por n ova
s
e desenvolvimento de recursos novos ou não utilizados"3 . Na tentativa de alcançar
as metas, que se encontram referenciadas na própria definição de reabilita ção
podemos, segundo literaturas relativas à mesma, constatar que o discurso vig ent�
nesse processo está embasado por al guns princípios, tais como :
• ajustamento às limitações ;
• reconhecimento / aceitação da incapacidade ;
• aprendizagem de novos compor tamentos compatíveis com a deficiência e a
realização de determinadas tarefas ;
• adaptação para integrar o deficiente à sociedade ;
• melhor compreensão da dinâmica, em situações diversas, dos comporta
mentos do deficiente, possibilitando previsão e reconhecimento das dificul�
dades como compor tamentos a serem eliminados.
s Cf. JORGE, Marco Antonio Cou tinho. Sexo e discurso em Freud e lacan. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1988, p. 158.
6
LACAN, Jacques . O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70). Rio de Janeiro : Jorge Zahar
E ditor, 1992, p. 1 1.
1 2 Ibid . , p. 1 74.
13
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Sexo e discurso cm Freud e Lacan. Op. cit. , p. 1 46-7.
1
LAUDELINO FREIRE. Grande e novíssimo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, 1 954.
do gozo, ou seja, o que é singular a cada sujeito ; é, cm suma, uma forma de laç
o
social que visa a barrar e ordenar o gozo.
Destaco dois momentos do ensino lacaniano cm que fica explícito o conceito
de discurso como o que freia o gozo : em 1967, no "Congresso sobre psicoses
infantis" - "Toda formação humana tem, por essência e não por acidente, de frear
o gozo"2 -, e em "A terceira", quando se refere ao sintoma como aquilo que p ro
vém do real, interfere, opõe-se e objeta à conformidade do ser sociaP. Se o sin toma
oferece objeção à conformidade do ser social, é pelo que tem de gozo. Em sua
obra, Freud falara da civilização como o que tenta frear, ordenar a pulsão q ue &.
sempre acéfala. Na luta entre as exigências pulsionais do isso e as exigências do
eu, impostas pelo ideal do eu, cuja matriz simbólica é a identificação ao traço
colhido das insígnias paternas, há uma solução de compromisso : o sintoma. Mar ca
singular do sujeito, o sintoma se revela nas entrelinhas do discurso, que de al guma
forma se enquadra nos moldes da moral civilizada de cada época. Assim, pode-se
dizer que o discurso, para Lacan, é a civilização, para Freud .
No texto "O mal-estar na civilização", Freud observou que o maior sofrimento
humano é a relação do homem com o outro ; homo, homini lupus ou "o homem é o
lobo do homem'"\ como disse T homas Hobbes. Nesse texto, Freud comungou das
idéias de Hobbes e chegou a perguntar : "Quem, em face de toda a sua experiência
da vida e da história, terá coragem de discutir essa asserção?'�.
A civilização impõe enormes sacrifícios tanto à sexualidade do homem quanto
à sua agressividade e, assim, a moral civilizada é um mal necessário. Freud advertiu
contra a ilusão de que as sociedades primitivas poderiam ser invejadas por sua
maior liberdade pulsional. Os povos primitivos estariam "sujeitos a restrições de
outra espécie, talvez mais severas que aquelas que dizem respeito ao homem mo
derno"6. Concluímos, com Freud, que o homem está fadado ao mal-estar do laço
social. Não há como estabelecer laço social sem perda de gozo. A tentativa de
coibir a pulsão é sempre fracassada, já que a coerção é inerente à própria pulsão,
e esse fracasso está atestado em "O mal-estar na civilização". O mal-estar advém
2 LACAN, Jacques. Enlànce alienée: l 'enfant, la psychose et l 'instituition. Paris : L'Es pace Analytique, 196? ·
3 LACAN, Jacques. "A terceira" (1975). Em : lntervencionesy textos 2. Buenos A ires : Manantial , 1993 ·
4
GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo. São P a ulo : Com panhia das Letras , 1989, p. 495 .
5 FREUD, Sigrnund. "E] males tar en la cultura" (1930). Em: Obras completas, vol. XXI. Bue nos
Aires : Amor rortu, 1998, p. 1 08.
6
[bid. , p. 112.
disc urso. O inconsciente é um saber que funciona sem que o sujeito saiba e é equi
vale nte ao discw-so do mestre, que, por sua vez, é o avesso do discurso do analista.
A debilidade mental é uma posição subjetiva em que justamente o sujeito não
sustenta o discurso com sua singularidade; esta é escamoteada, e quando escapa
7
LACA N, Jacques . O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise (1969-70) . Rio de Janeiro : Jorg e Zahar
Editor, 1992, p. 1 1 .
ao próprio sujeito, é recusada como algo que não lhe per tence. Comentando a
tese universitária de Anikc Lemaire , Lacan apontou um equívoco, aler tando que
"não é o mesmo dizer que o inconsciente é a condição da linguagem e a linguag em.
é a condição do inconsciente"ª. Debitou esse equívoco à passagem do discur s o
universitário para o do analista e disse que, de alguma forma, ele é obrigatório.
O discurso do analista tem leis próprias , e quando se faz sua tradução par a 0
discurso universitário, o equívoco se faz presente . O discurso universitário é da
ordem de um papel, de um lugar a sustentar, que é incontestavelmente um lug ar
de prestígio. O que agencia o discurso universitário é o saber prévio ao sujeito ,
saber cumulativo e incontestável dos grandes mestres.
"A linguagem é a condição do inconsciente e é o que é preciso entender par a
se estar no discurso do analista", afirmou Lacan9. Somos seres de linguagem , desna
turalizados , esculpidos pelo significante. Flutuando entre os c!��l!1=_SQS, g j�il
nega a linguagem para não se s�b!_Tieter ao ir1co_nscie11�e , e surgir aí como suleito,
�este que é necessariamente marcado pela falta. O inconsciente não prcexis; à
linguagem , não há uma naturalidade que possa compor tar um saber todo. O sujeito
do inconsciente é efeito do significante, e é o significante que está na origem da
pulsão, que mor tifica, mata a coisa. Não há pulsão sem incidência do significante,
e o que resta é a libido. Nessa mor tificação , trata-se de que "o puro instinto de
vida [... J é o que justamente é subtraído ao ser vivo pelo fato de ele ser submetido
ao ciclo da reprodução sexuada. E é disso aí que são os representantes , os equiva
lentes , todas as formas que se podem enumerar do objeto a" w.
A estrutura do sujeito do inconsciente é determinada pela incidência do signi
ficante mas , na estrutura, nem tudo é significante. O objeto a faz parte da estrutura
como aquilo que marca o impossível de dizer. A estrutura do discurso implica a
estrutura da linguagem e mais o objeto a. Si gnificante e objeto a estruturam os
discursos topologicamente, isto é , segundo os lugares que ocupam , e a noção de
estrutura pode ser representada pelo materna S (A), significante da falta no Outro
em torno da qual se tece a cadeia significante. A estrutura obedece às leis do signi
ficante, que se ar ticulam a partir de seus elementos e lugares ; a linguagem , porém ,
não recobre tudo. O significante da falta no Outro, no Outro barrado , faz parte da
• Ibid. , p. 39.
9
Ibid.
:
iro
'º LACAN, Jacques . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Jane
Jorge Zahar Editor, 1 988, p. 186.
o
176 Saber, verdade e goz
es trutura: "Ao propormos a formalização do discurso, encontramos um elemento
de impossibilidade, que está na raiz, na base do que é um fato de estrutura"1 1 •
Existem fatos, que são os laços entre as pessoas, estabelecidos pelos discursos.
( 0 que se observa na clínica, que mostra que, sendo um fato apreendido, não há
co mo negá-lo. O sujeito débil porta-se como se não apreendesse os fotos pelo
d iscu rso, !': dessa forma flutua entre eles. Por exemplo, quando interrogamos Maria,
uma J�vem de 13 anos, sobre sua família, ela responde: "Papai, mamãe, filhinha,
dois irmãos. Pedro, não, Maria, eu sei botar sapato, eu vou lavar a mão", e passa a
descrever o que precisa fazer no refeitório antes de comer. Ao tentarmos retornar
à questão , Maria se cala. Na realidade, tem uma irmã, dois anos mais velha que
e la. A estrutura do discurso indica a repetição, cuja função foi definida por Freud
cm "Alem' do prmc1p10
· ' · do prazer". Ao comentar esse texto, Lacan afi1rmou: E' no "
nível da repetição que Freud se vê obrigado, pela própria estrutura do discurso, a
articular o instinto de morte [ . . . ]. A repetição é um ciclo da vida que acarreta a
desaparição dessa vida como tal, que é o retorno ao inanimado" 1 2 • Se a debilidade
mental mascara a estrutura, numa tentativa de abolir a falta inerente à vida no ser
falante, podemos pensar que é uma tentativa de retorno ao inanimado. Vejamos
então como poderíamos pensar o processo de repetição no sujeito débil.
,..J
A repetição visa a recuperar o gozo absoluto, sem perdas, e por isso mesmo
impossível, perdido desde sempre. Na busca desse gozo absoluto, jamais alcançado,
o que se rg>ete, de formas diferentes, é o fracasso. Na repetição freudiana, a
alucinação da primeira experiência de satisfação, que instala a estrutura, desencadeia
um processo de repetição que constitui no sujeito a ação do inconsciente. A primeira
marca da vivência de gozo, o primeiro significante, é recalcado em sua origem :
Urvcrdrangung, recalque primário. Daí por diante, a cadeia significante repete sempre,
insiste, tentando repetir a primeira vivência de gozo, segundo o princípio do retorno
do recalcado. A repetição é repetição de go� que nunca é o mesmo, e por isso é
perdido: "A repetição não quer dizer - o que a gente terminou, recomeça, como
ª digestão ou qualquer outra função fisiológica. A repetição é uma denotação
precisa de um traço que eu extraí para vocês do texto de Freud, como idêntico ao
traço unário, ao pequeno bastão, ao elemento de escrita, um traço na m_edida em
que comemora uma _irrupção de gozo" 1 3 •
11
LACAN, Jacques . O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit . , p. 43 .
12
Ibid.
" lbid . , P- 73.
isso sempre rateia - "ça rate", como disse Lacan. O sujeito é produto dessa repetiç ão.
A repetição visando ao gozo produz perda, falta e, desse modo, o sujeito. É essa
. 1)perda que o débil não pode suportar.
/ A repetição implicando o significante e o gozo n�-9-é_a repetição de um ternpo
e
vivido original, mas tem a ver com uma causa suposta, u.rr:i passado supos.t:9 e
/
jamàis existido. O sujeito é indeterminado sob a cadeia significante e advém co rn
·uíítsignificante que sai da cadeia, retorna, e é ai que se produz o sujeito. Ess a
r- _..,,,--�- __.,,/'- -· \.
repetição cons titui a própria rede de significantes que faz parte do inconsciente, e
é ela que se organiza como saber inconsciente, definido por Lacan como S2 • O saber
é, portanto , o conjunto de significantes que se repetem, como fio condutor das
formações do i nconsciente, a partir da primeira experiência recalcada.
O sintoma que se articula ao gozo fixado pela fantasia está ordenado por esse
saber que trabalha no ser falante. É assim que o sujeito se cons titui, trabalhando
de forma organizada pelo gozo através de suas repetições, sintomas, atos falhas
etc. Se, como vimos, o saber inconsciente é produzido pela repetição que visa ao
gozo perdido desde sempre, podemos nos perguntar : qual o destino desse s_a ber
na debilidade mental? Essa repetição se dá pela via do discurso, mas o débil flutua
entre dois discursos, escamoteando a função mesma do discurso, ou seja, masca
rando a presentificação da impossibilidade de gozo absoluto, a presentificação da
_fa)ta. O que não se pode recuperar na experiência de repetição, permanece só a
mais -valia do gozo, do mesmo modo que, para Marx, o valor do trabalho não
pode ser recuperado, restando a mais-valia :
[.. . ] o saber deriva primeiramente [... ] do traço unário, e, em seguida, de tudo o
que poderá se articular de significante. É a partir daí que se instaura essa dimensão
do gozo, que tanto pode teorizar quanto transformar em religião o viver na
apatia - e a apatia é o hedonismo. [ ... ] o que o impulsiona [o saber], o que
trabalha nele, o que o torna de uma outra ordem de saber, diversa desses saberes
harmonizantes [... ] , é a função do mais-de-gozar como tal. 14
Se não há "a função do mais-de-gozar como tal", essa que se produz na repetição,
não há construção de saber inconsciente. Na debilidade mental, não exist e ª
repetição que visa ao gozo produzindo saber ; o gozo permanece curto-circuitado no
1
• Ibid. , p. 48.
relação à verdade e ao s. aber é o discurso, definido como "o que funda e define cada
rcalidade" • O discurso implica um sentido, um saber do que se fala e, para tanto, é
16
IS bid.
l
16
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda ( 1 972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1 985 , p. 45 .
17
BRUNO, Pierre. "À côté de l a plaque", Ornicar?, n . 37. Paris, Navarin, 1 986, p . 39.
De bilidade mental 1 79
e m esmo sonhos. O su1c1to débil nao reconhece as manifestações de se u
inconsciente: ao ser interrogado com relação a um ato falho , por exemplo, ele dá
uma explicação, descrevendo a situação de for ma concreta e anulan do a
subjetividade. Situado entre os discursos, o débil ocupa sempre o lugar da verdade
que, em relação a ele, não se modifica. A verdade do débil é que ele é a significação
última, essa que satura o enigma do desejo da mãe e o sustenta em um ter mo
obscuro, como afirmou Lacan cm O seminário, livro 1 1: os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Mas o que o débil apresenta dessa forma é uma mentira. O lugar da
verdade ocupado por ele é a mentira que endereça à mãe, vale dizer, a de admitir
o um do corpo como referência única: "O status de um discurso deve ser referido
ao laço social no qual os corpos habitam, ou seja , mostrando que nós, como corpos,
o homem como corpo , habita um disctll'so. Para termos um corpo, precisamos
habitar um discurso" 1 8 • Precisamos do registro do simbólico , pois o imaginár io do
corpo só se sustenta por ele4 O sujeito débil nega o corpo simbólico c , _iID--ªg!!!-ª1:,ia
mcntc , oferece esse corpo como se ele pudesse existir sem sujeito, sob a forma de
objeto tampão da castração materna :\
A verdade do débil é efeito da maneira par ticular em que se dá a holófrase
(S 1 -S 2) , apoiada na referência ao gozo que remete à fusão no próprio corpo: é um
gozo cm curto-circuito, cm uma tentativa de fazer existir a relação sexuatn�ndo
a castração. Para o débil, a relação sexual se realizaria como união uniana , reduzida
imaginar iamente ao ato sexual : "Não é porque o sujeito s e coloca no lugar da
verdade que ele diz a verdade. Ao se colocar a serviço da verdade como Única, o
que o débil produz são as pérolas da mentira"1 9 •
O um na debilidade mental
Em "O seminário, livro 9: a identificação", Lacan estabeleceu uma diferença cla:-a
entre o um da unidade , Einheit, e o um da unicidade, Einzigkeit. O Einheit é o grande
um que dominou o pensamento de Platão a Kant, e sua função é o fundamento de
toda síntese : reunir, resumindo, tese e antítese. É o um que faz conjunto e determ ina
seus elementos, como o um do Belo, reunião de elementos que constituem toda ª
beleza de uma obra de arte. Para Kant, Einheit, o um como função sintética, é 0
modelo mesmo do que toda categoria traz consigo aprioristicamcnte, a função d e
'" LACAN, Jacques. "L' Étourdit" ( 1 972), Scilicct 4, vai . 4. Paris, Seuil, p. 30- 1 .
,. LACAN, Jacques. "O seminário, livro 1 6 : de um Outro ao outro" ( 1 969). Incdito, aula de
1 2 de fevereiro de 1 969.
'º LACAN, Jacques. "O seminário, livro 9: a identificação" ( 1 962). Inédito, aula de 2 1 de
fevereiro de 1 96 2 .
2 1 LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a rransferênda ( 1 96 1 ). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 992 .
� ebilidade mental
Instituto de Psicologia - UFRGS 181
onde há elisão significante para o sujeito. O ideal do cu é justamente esse signi ficante
que, situado fora do sujeito , cm seu exterior, permite-lhe ter uma referência simbó.
lica. O traço unário é o que vem no lugar original do sujeito que , como conse qüên
cia, será elidido para se reencontrar nas respostas do Outro que forem capazes de
traduzir o grito em apelo. Nasce daí a possibilidade de que algo se repita, insist a
nesse ponto mesmo de impossibilidade que o lugar vazio do sujeito abrirá no Out r o'.
Trata-se, portanto , da transformação do que era apenas uma matriz simbólica ,
no momento da antecipação da imagem como totalizadora no estádio do espelh o,
cm um traço de sustentação significante , o traço unário. Se , por um lado , o traç o
unário é o que se repete na cadeia formada como conseqüência de seu surgimento,
por outro será a sustentação dessa cadeia que circunscreverá uma realidade em
que os traços dos significantes constituirão o Outro como pura potência , como
tendo o poder de responder : "Essa será a constelação das insígnias que constit uirão,
para o sujeito , o ideal do eu , I (A)''22 •
A formação do ideal do eu é o revestimento do sujeito com as insígnias do
Outro , elementos si gnificantes que estão fora da cadeia e que, cm dado momento,
capturam o sujeito, marcando-o para sempre. O exemplo citado por Lacan foi a
tosse de Dora: "Tusso como meu pai". A tosse paterna é um significante. O ideal
do eu é a formação que virá nesse lugar simbólico, ligando-se às coordenadas
inconscientes do cu para dar-lhes consistência onde as imagens só fazem introduzir
tensão : esse outro que sou cu mesmo é outro diferente de mim. Entre a imagem
e o eu existe uma distância em que se instala o alheio, o estranho. O traço unário,
si gno do desejo do Outro , ordena-se a partir de um dito primeiro que decreta,
legisla e confere ao outro real sua obscura autoridadc23 . A matriz simbólica do
ideal do cu denuncia a Coi sa, o nada, e é o traço que irá apagá-la.
"Wo cs War, da durch das Eins Werdc Ich"24 ; aí onde estava a Coisa , aí , pelo
um , advirei eu. Será o traço unário que fará surgir o sujeito como aquele que
conta . O sujeito em relação ao um do traço unário é menos um , ou seja , ele é
chamado por esse traço , mas não se reduz a ele. Lacan propôs que o sujeito fosse
escrito como igual a um número que não existe , -V- 1 . A raiz quadrada de - 1 nã o
22
LACAN, Jacques. "Obser vação sobre o relatório de D a niel Lagache" ( 1960) . E m: Escritos.
Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1998, p. 686.
2l
LACAN, Jacques. "Subver são do sujeito e dialética do desejo no inconsci ente freu dia no"
( 1957) . Em: Escritos. Op. cit., p. 822.
24
LACAN, Jacques. "Le clivagc du sujct" ( 1970), Scilicct, n. 2 / 3. Paris, Seuil, 1970, p. 124.
unár io, o sujeito é causado pelo objeto a, puro vazio, isto é, o objeto do desejo se
consti tui na relação com o Outro a partir da incidência do significante. Nessa primeira
marca significante, vinda do Outro, inclui-se a falta. O sujeito não se deixa determinar
pelo um porque o objeto que marca a falta traz uma singularidade inapreensível: o
objeto é apenas circunscrito e faz objeção à apreensão pelo um - "Há uma hiância
entre esse um e algo que se prende ao ser e, por trás do ser, se prende ao gozo',z7 •
O sujeito neurótico faz objeção ao um, nega-se a ser um, pondo-se do lado do
enxame [e ssaiin], de vários Uns. O sujeito débil se esforça para ser esse um, só um,
que sustentaria a veracidade do Outro. O um do débil é como uma senha que
serve para tudo e impede que se torne presente a equivocidade da língua, denun
cia ndo a falta . O um do débil não é o um do traço unário, marca singular da
diferença, mas o um do todo. Não há, na debilidade mental, a repetição que visa
ao gozo, produzindo perda, o mais-de-gozar. Não há distinção de gozo ; ele se
apresenta sem objetos, como um corpo nu, "sem lenço nem documento", como diz
a música de Caetano Veloso. A paixão pelo um também faz do débil um brilhante
calculador, o que é diferentc de ser matemático. Os professores de crianças débeis se
surpreendem com o fato de esses sujeitos, que possuem tanta facilidade para cal
cula r, terem tanta dificuldade para se inserir em um discurso. O débil não decifra
porque, para isso, é necessária uma distribuição, uma contabilização do gozo.
Pode-se dizer que o sujeito débil não decifra, mas calcula, porque não está como
tn cn os um, como a volta pulada nas cadeias significantes da demanda, mas como
I (A) M
M <p
-� No sujeito débil , essa substituição não se dá: ele permanece imaginariamente
identificado ao mundo materno e, assim , mascara a estrutura, seja esta psicótica ,
neurótica ou perversa.
É preciso distinguir ainda a debilidade própria da neurose, que interroga a
verdade como se ela pudesse existir como única - a verdade assegurada pela fantasia
neurótica -, daquela que se identifica com o lugar da verdade de forma apaixonada.
Para saber do que se fala , é preciso saber que tudo que se diz tem uma n;{c_rência
ao falo e ao objeto. Para ler "nas entrelinhas", como disse Lacan em "O seminário,
-li�r� 2 2: R. S . I.", é preciso poder suportar a castração, poder abrir mão da suposiçã.0
do universo como reflexo do próprio corpo. É esse real que se apresenta para _o
sujeito débil como impossível de suportar.
A holófrase
Holófrase é um termo usado pela lingüística para designar a estrutura de algumas
línguas , denominadas holofrásicas. As línguas holofrásicas são aquelas cm que todos
4
'" I.ACAN, Jacques. "O seminário, livro 2 2 : R.S.I." (1 974-5). Inédito, aula de 1 0 de dezembro de 197 ·
Holófrase e estrutura
Em O seminário, livro 1 1: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan utilizou a
holófrase como termo de estrutura, pondo cm série os casos em que ela se faz
presente: no fenômeno psicossomático; na criança débil, quando se introduz em sua
educação a dimensão psicótica; e na psicose. Em suas palavras: "Quando não há inter
valo entre S e S , quando a primeira dupla de significantes se holofraseia, so�
1 2
29 LACAN, Jacques. O seminário, livro I: os escritos téaiicos de Frcud( l 954) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar
12
Ibid.
" STEVE NS, Alexandre. "L'holophras e entre psychos e et ps ycossomatique", Ornicar?, n. 42.
Paris , Seuil, 1 987.
34 LACAN, Jacques . "O seminário, livro 6: o des ejo e sua int erpreta ção" (195 8). Inédito , a ula
de 03 de dezem bro de 1958.
i; LACAN, Jacques . O seminário, lirro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op. cit., p. 2 3 6.
6
' Ibid., p. 2 15.
17 FR EUD , Sigmund. "Aprcciacioncs gcncralcs sobre cl ataque his térico" (1 908) . Em : Obras
vol. IX. Op. cit., p. 207.
completas,
18
LACAN , Jacques . O seminário, li,ro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Op. cit ., p. 207.
Debilidade mental 1 87
sagem enunciada. Não há intervalo entre a mensagem e a significação, o que há é
uma colagem, na qual o sujeito não é o sujeito do desejo. A holófrase do pri m ei ro
par de significantes impede que a operação de separação, e a conseqüente q ueda
do objeto, se efetuem.
Lacan ar ticula a operação de separação no intervalo entre S 1 -S 2 , em que reside
o desejo : "é como derivação da cadeia significante que corre o regato do des ejo e
o sujeito deve aproveitar uma via de confluência para nela surpreender seu próp rio
fcedback"39 • O desejo, que é sempre desejo do Outro, porque reside no interval o
entre dois significantes primordiais, só se constitui para o sujeito como interrogáv el,
como r eferência possível à constituição de seu desejo, se for situado entr e os
significantes como falha, intervalo, falta no Outro. O desejo se constitui, então,
pela tentativa de recuperação de duas faltas que se recobrem : a falta no Outro, A,
e a falta no sujeito, $. A falta no Outro introduz o sujeito na questão do desejo e a
falta no próprio sujeito é a resposta possível a essa falta no Outro : "É uma falta
engendrada pelo tempo precedente que serve para responder à falta suscitada
pelo tempo seguinte'>40.
Na neurose, o sujeito surge como desejante, como afânise, no intervalo entre
os significantes do primeiro par ordenado S 1 -S 2 • Na psicose, a solidificação desses
significantes tem como efeito a impossibilidade de dialetização e simbolização do
significante, e é aí que ele retorna no real.
Para o sujeito débil, trata-se do recobrimento da estrutura . Na n eurose, reco
brimento da falta no Outro ; na psicose, recobrimento da ausência da falta. Nos
dois casos, trata -se de tamponar os efeitos da estr utura a qual o sujeito é assujeitado.
Na neurose, o encobrimento do sintoma ; na psicose, o encobrimento da emergência
no real do que foi foracluído no simbólico. Para tal, o recurso de que se utiliza o
sujeito débil é tomar seu lugar no discurso da mãe, agarrando-se apaixonadam ente
a um significante que o nomeia e do qual se serve como o que o representa para o
mundo e para ele mesmo. O sujeito débil oculta, dessa forma, sua própria divisão,
fazendo um pelo viés do imaginário do corpo, fusionado com ele m esmo.
Diferentemente do um holofrásico da psicose, revelado na riqueza metoní mi ca
diante da impossibilidade metafórica, o um do débil se revela colado aos enunciados
maternos, tomados sem o equívo co da alíngua. Na psicose, o par S 1 -S 2 está
holofraseado sem a queda do objeto a. O objeto permanece do lado do sujeito :
19
LACAN, Jacques. " A direção do tratamento e os princípios d e seu poder" ( 1 95 8 ). Ern :
Escritos. Op. cit. , p. 629.
40
LACAN, Jacques. O seminário, !irra 1 1: os qu atro conceitos fu ndamentais da psicanálise. Op. cit . , p. 20 3 .
O camp o do gozo
Gozo e repetição: a diferença como
eixo da subversão analítica
Andréa de Abreu Souza
191
na letra freudiana como pulsão de mor te e, cm Lacan, como endereço ao r eal.
O ponto nuclear dessa nova abordagem é a relação da função do desejar c m Utn
entrelaçamento com um objeto privilegiado, no qual se impõe o trajeto do go zo
surgido na referência a esse objeto, conferindo-lhe um novo estatuto. Com base
na teoria marxista da mais-valia, Lacan considerou o valor que o objeto ass utnc
para o sujeito, visto que advém da perda de gozo sexual. O objeto é requerido não
como t ransgressor, mas como bônus :
[... ] a perda do objeto é também a hiância, o buraco aberto em alguma coisa , que
não se sabe se é a representação da falta cm gozar, que se situa a partir do processo
do saber na medida em que ganha ali um acento totalmente diverso, por ser
desde então saber escandido pelo significante [.. . ]. Ver uma porta entreaberta
não é transpô-la [... ] não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção,
queda no campo de algo que é da ordem do gozo - um bônus. 1
É nessa via eni gmática que se pode localizar a transferência, uma vez que, ao
delegar ao analista o lugar de suposto saber, este se torna causa de desejo. Assim,
' LACAN, Jacques . O seminário, lfrro 1 7: o avesso da psicanálise ( I 969- 70) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 99 2 , p. 1 7 .
2
Essa articulação s e refere a o estatuto do objeto a n a teoria d e Lacan, indicador d e u m vazio
estrutural que permeia a noção de gozo. É importante notar que Lacan conferiu diferentes
estatutos a esse objeto a: coisa, causa de desejo, objeto da angústia e mais-de-gozar. Creio que ,
em O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise, tentou estabelecer as condições em que a surge como
causa de desejo e condição de gozo. Em Freud, encontramos esse ponto que escapa ao sentido
tanto como umbigo do sonho quanto como falta de saber qu anto ao objeto, ambos descritos cm "Tr's
e
' "É moeda corrente ouvir-se, por exemplo, que a transferência é uma repetição. Não digo
que isso seja falso e que não haja repetição na transferência. Não digo que não tenha sido a
propósito da transferência que Freud abordou a repetição. Digo que o conceito de repetição
nada tem a ver com o de transferência" (LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 1 : os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise ( 1 964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 98 5 , p. 36) .
5 LACAN, Jacques. O seminário, lilro 17: o arcsso da psicanálise. Op. cit. , p. 50.
6
Lacan tomou o discurso do mestre como o avesso do discurso do analista, o que se encontra
evidenciado na própria grafia dos discursos. No discurso do mestre, tem-se a posição de
quem sabe como agente, enquanto no discurso do analista o agente é o objeto a como causa do
desejo, lugar vazio. A preocupação de Lacan foi enfatizar que o analista não deve se tomar pelo
mestre, aquele que sabe, daí a posição do suposto saber.
-
Gozo e repetição
Instituto de Psicologia - UFRG! 1 93
como condição do inconsciente, são as leis da linguagem que sustentam a possibili
dade de um discurso. Todavia cada discurso carrega sua marca, na justa dependência
dos lugares ocupados por seus termos, ou seja, cada wn dos discursos é regido por
suas próprias leis. Assim, frisou Lacan, não é suficiente dizer que o desejo do homem.
é o desejo do Outro, sendo necessário pôr em evidência o modo corno esse Outro é
tornado como referência. Um passo decisivo nesse contexto foi sua afirmação de
que não há metalinguagem, ponto fundamental para a psicanálise, wna vez que é aí
que se denuncia a ordem canalha se contrapondo à ética do desejo :
Não há outra metalinguagem senão todas as formas de canalhice, se designarmos
assim as curiosas operações que se deduzem do seguinte, de que o desejo do
homem é o desejo do Outro. Toda canalhice repousa nisso, em querer ser o
Outro - refiro-me ao grande Outro -de alguém, ali onde se delineiam as figuras
em que seu desejo será captado. 7
7
LACAN, Jacques. O seminário, lfrro 1 7: o arcsso da psicanálisc. Op. cit. , p. 57.
' Em meu entender, essa mesma afirmação pode ser encontrada em Freud: "Não temos mais de
levar em conta a enigmática determinação do organismo (tão difícil de encaixar em qualquer
contexto) de manter sua própria existência frente a qualquer obstáculo. O que nos resta é o fato
de que o organismo deseja morrer apenas do seu próprio modo. Assim, originalmente, esses
guardiões da vida eram também os lacaios da morte" (FREUD. Sigmund. "Além do princípio de
prazer" ( 1 920). Em: Obras complew, vol. XVIII. Rio de Janeiro, Imago, 1 976, p. 57).
9
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 43, grifo meu.
Tratando-se de uma repetição de gozo, a linha do gozo é aquela contada como
excedente cm relação ao princípio de prazer, que encontra seu lugar de funciona
mento como barragem para esse gozo. A repetição insiste pela via do desequilíbr io ,
ou seja, rompe a estabilidade através do estranhamento. Assim, a dimensão essencial
delineada por Freud, ligando a pulsão à repetição, é a de que as pulsões buscam a
ação para sua satisfação. Essa ação, no entanto , revela-se independente de qualquer
experiência de desprazer anterior, deixando patente que o trabalho da pulsão não
vai em direção ao equilíbrio psíquico buscando adaptar-se a algo dado a priori. Essa
constatação obrigou Freud a se deparar com o fato de que a pulsão não se encontra
ligada desde sempre. O aparelho psíquico está sujeito a um quantum de energia que
circula livremente .
Assim, o repetir na obra freudiana traça uma nova trajetória, que carrega em
seu bojo a pulsão de morte e impõe uma contradição: a criação de uma aliança
entre a noção de retorno exigido e a categoria de impossível que cerca esse mesmo
retorno. Encontra-se aí o psiquismo como sistema não-linear, que no entanto
possui um atrator particularmente estranho a partir do qual são determinadas
ações cuja marca é o que excede a circularidade totalizante . Um dos problemas
dessa abordagem é que se o gozo repetido tem como meta o retorno ao inanimado,
ele é da ordem do impossível, já que nesse caminho a única coisa que se pode
encontrar é a morte . Mas o que é a morte - agora repetida através do que excede
à vida - senão aquilo que, na leitura lacaniana, coaduna com a pulsão como vontade
de destruição, sempre disposta a recomeçar à custa de novos esforços? Surge então
a idéia de que, na repetição do gozo, algo se mostra como um custo com o qual o
sujeito tem de arcar.
Nesse sentido, será que se pode encarar o repetir como exercício de rigor
que, nessa tensão entre saber e verdade, busca dizer o indizível? Talvez esteja aí o
valor da interpretação: tradução que põe em evidência a função do Outro, a pro
pósito do qual é revelada a aproximação da falta ao gozar. Cabe agora esclarecer
qual o ponto de ligação entre repetição e interpretação.
'° FREUD. Sigmund. "Além do princípio de prazer" ( 1 920). Em : Obras completas, vol. XVIII. Op.
cit. , p. >. Ver nota 9.
Ao retomar essas formulações, Lacan afirmou que o gozo apresenta uma face
de imperativo categórico cm que a repetição tem caráter de autômaton , fazendo
com que aquilo que é requerido siga buscando os mesmos regimes de signos, be m
como os significantes que já se encontram disponíveis. No entanto , sendo a pulsão
o que move essa espécie de apelo , a busca de uma ação que visa à satisfação se
mostra para além do campo da aprendizagem - campo do instinto -, ao qual a
pulsão é avessa. A repetição do gozo está para além da obrigação, fadada ao mau
encontro com um retorno do qual surge uma ordem de significação não assimilável.
Eis o salto que marca o gozo e sua interpretação: a possibilidade de reconhecimento
do campo do desejo.
11
A noção lacaniana de descontinuidade pode ser lida a partir dos impasses que cercam o or
ganismo concebido por Freud, que, a exemplo de uma máquina, é movido pela tendência a
retornar. Em Lacan, isso é o que retira o homem da perspectiva de um funcionamento natural
com base em etapas de desenvolvimento , que levariam a uma adaptação da qual se colheriam os
frutos da estabilidade. O que se desvela aí como descontinuidade é um campo regido por uma
discordância fundamental, que se guia por relações simbólicas sempre cercadas por um ponto de
inadequação. Trata-se de um fracasso ao qual o falante está condenado, por estar imerso no
mundo da linguagem.Todavia essa ordem que lhe confere uma "má forma" é, ao mesmo tempo,
o que lhe garante uma marca, em torno da qual se opera seu movimento de retorno. Essa
garantia de retorno foi tomada por Lacan como o que caracteriza o inconsciente: "Há, sem
dúvida, um princípio que leva a libido de volta à morte, porém não de uma maneira qualquer. Se
a levasse pelos mais curtos caminhos , o problema estaria resolvido. Mas é só pelos caminhos da
vida que ele a leva, aí é que está. . . Ele não pode ir para a morte por qualquer caminho" (LACAN,
Jacques. O seminário, /irro 2: o cu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise ( 1954-5). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1 987, p. 107). Ver nota 1 3 .
12 LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 1: os quatro conceitos fu ndamentais da psicanálise ( 1 964). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 98 5 , p. 37.
11
Ibid. , p. 50.
1 LACAN, Jacques . O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit . , p. 44 .
4
Gozo e repetição 1 99
qual, para além do retorno do mesmo que jamais pode ser alcançado, o real
comparece, fazendo com que algo novo seja acrescentado ao repetir cm torno de
um furo. A repetição será levada em consideração como operação de reviramento
entre duas faces que não se opõem.
Assim, é do que há de perda de gozo que advém o objeto a, causa de desejo.
O gozo perdido é o que fornece justamente o próprio estatuto desse objeto perdido
para sempre, sendo possível, por essa via, apreender o sentido da afirmação
lacaniana de que no mais-de-gozar não se configura uma dimensão de transgressão :
Em função c;lc ser expressamente - e como tal - repetido, de ser marcado pela
repetição, o que se repete não poderia estar de outro modo , cm relação ao que
repete , senão cm perda. Em perda do que quiserem, em perda de velocidade, de
força - há algo que é perda. Freud insiste desde a origem nessa perda - na
pr6pria repetição há desperdício de gozo [... J. Aí é que se origina, no discurso
freudiano, a função do objeto perdido. 1 5
11
Ibid. , p . 44 .
1
• Ibid . , p. 45 .
Aquilo que é possível dar a conhecer se instaura apenas como efeito de sujeito
num tempo a post eriori, no qual se destaca a dimensão do traço. É o sentido do
traço, marca de sua inserção no gozo, que comparece na repetição para além de
uma representação . Lacan localizou aí o que encontramos cm Freud como "saber
ancestral"1 8 • Assim, pode-se dizer que o sujeito que nos interessa está em um
tempo-lugar cuja referência é o traço unário:
O que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem
do saber, e não do conhecimento ou da representação. Trata-se precisamente de
algo que liga, em sua relação de razão, um significante S1 a um outro significante
S2 [ • • • ] . O significante, então, se ar ticula por representar um sujeito j unto a
outro significante. É daí que partimos para dar sentido a essa repetição inaugural,
na medida em que ela é repetição que visa o gozo [ ... ]. E afirmo isto [ ... ] - que
é no traço unário que tem origem tudo o que nos interessa, a nós, analistas,
como saber. 1 9
17
Para o esclarecimento desse ponto, remeto à pág. 1 94 e às notas 2 e 1 1 deste artigo.
18
lbid. ' p. 1 6.
19
Ibid., p. 28 e 44-5.
'º Ibid . , p. 66.
Gozo e repetição·
J11,tltutc, de Pclcnloaia • w;RGS 201
encontra um saber que pode ser tanto o que o sidera quanto o que é repelido :
Eis o essencial do que determina aquilo com que lidamos na exploração do in
consciente - é a repetição [... ). A repetição não quer dizer - o que a gente
terminou, recomeça, como a digestão ou qualquer outra função fisiológica. A re
petição é uma denotação precisa de um traço [ ... ) um traço na medida em que
comemora uma irrupção do gozo. 2 1
Saber e verdade são, portanto , inseparáveis dos efeitos da lin guagem , em que
o gozo é interditado e encontra seus impasses perante um absoluto impossível. Eis
onde se legitimou para Lacan a possibilidade de situar o saber inconsciente como
meio de gozo e a verdade não-toda como sua irmã. Ao lidar com o regime dos
significantes , estamos diante de um campo de equivalência que joga com a diferença.
O sujeito é ao mesmo tempo representado e não representado , restando sempre
alguma coisa que p ermanece oculta e exerce wna clivagem.
Contudo a verdade não pode ser simplesmente equiparada à divisão do sujeito
revelada por wn semidizer. A verdade reside em wn enigma que não pode ser apa
gado, já que estamos no terreno da castração. Retomando o mito de Édipo , Lacan
observou que, na resposta ao enigma , o rei não encontrou a verdade. O que
aconteceu a Édipo, no momento cm que sua resposta à esfmge revelou a verdade, foi
justamente ter de perder os próprios olhos. Assim , o mito de Édipo traz a perspectiva
do terreno da verdade: zona de contorno , que há de se manter no nível da interrogação.
Não dá para dizer tudo ; logo, não dá para gozar de tudo. Essa perspectiva
pode ser encontrada em Freud no mito do assassinato do pai totêmico, ao qual
Lacan se referiu de maneira espirituosa , fazendo notar que realmente não dá para
ter todas as mulheres , uma vez que já é muito difícil saber o que fazer com uma.
A castração encontra seu lugar de lei simbólica, inaugurando o campo do desejo,
no qual só é possível gozar contornando o falo. Eis o bem-dizer, em que o reai
pode ser incluído no discurso como limite do simbólico .
Jogar com a v ida pela via da repetição é o modo através do qual o sujeito pode
dizer desse encontro que retorna sempre à mesma impossibilidade: encontrar o
objeto de sua demanda. 22 Entretanto há um núcleo inapreensível que permanece
2 1 Ibid . , p . 7 3 .
11
Em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud sublinhou que todo encontro com o
objeto é sempre um reencontro. Esse reencontro se refere ao objeto para sempre perdido, o
qual , como retomado por Lacan , denuncia uma falta estruturante no campo do desejo. A de
manda consiste na crença de que há objeto e de que ele será encontrado um dia.
como insistência na busca de satisfação, e esse ponto - o real - só pode ser conside
rado por intermédio do simbólico. A relação desses registros se faz notar nos estados
de desejo, cm que o sujeito se põe às voltas com o objeto perdido. O que se revela é
que esse objeto não coincide com o que é esperado e, uma vez que aquilo que se
apresenta só pode promover uma satisfação parcial, o sujeito repete uma busca que
o faz retornar sempre ao mesmo lugar: um vazio acompanhado da compulsão a
voltar a algo que revela um sujeito em fissura. Para Lacan, o mérito de Freud consistiu
justamente em ter mostrado essa dimensão de hiância, estrutural do inconsciente.
O fato de a pulsão de morte operar silenciosamente indica que há uma econo
mia a partir do que é contabilizado pelo caminho das perdas marcadas como traços
que se repetem. Esse enlace de traçados é produtor de uma ficção contada por
cada um , cm que o gozo pode ser destacado pela via do sintoma como um bem
dizer. Eis o processo que permeia a ética da psicanálise, a qual se evidencia na
repetição como lugar da diferença.23 Levando em conta esses aspectos, dos quais a
clínica fornece diversos testemunhos, resta a constatação de que, tal como provou
Freud, a psicanálise se exerce sempre a partir de seu caráter subversivo.24 Que
esse caráter, a exemplo de Lacan , seja bem-dito!
llJustamente porque falta objeto, a repetição pode ser lida em suas voltas como o que contorna
o vazio, levando o sujeito do campo da demanda para o campo do desejo. É importante destacar
que, cm O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, o estatuto ético "não ceder de seu desejo" pode ser
lido como "fazer valer a singularidade", sendo então possível uma articulação, em momentos
diferentes do ensino de Lacan, com "o gozo como a particularidade de um sujeito" e com "a
repetição tomada como diferença". Para essa abordagem do conceito de repetição, ver funda
mentalmente O seminário, livro 1 1: os quatro conceitos fundamcn�is da psicanálise ( 1 964), em que Lacan
chamou a atenção para a diferenciação entre reprodução, rememoração e repetição, apontando
a tykhé como uma repetição que participa do real , indo além da insistência do retorno dos
mesmos signos e significantes.
24 Penso nesse caráter de subversão nos seguintes termos: o conceito de pulsão faz com que a
psicanálise não seja norteada pela idéia de um campo fechado. Sua referência não se encontra
em uma noção de estabilidade que possa considerar um aparato psíquico absoluto e pleno.
A partir daí, os passos dados por Freud se retiram de uma via naturalista, e essa saída progressiva
abre passagem para uma nova abordagem do homem, inserindo-o em uma ordem de contin
gência submetida ao mutável , que se contrapõe à crença ilusória de um regime guiado pelo
necessário aliado ao eterno. O humano é, assim, aquilo que é guiado pela força de uma patência, a qual não permite
um congelamento do cu cm organiz.ações fixas. É aí que se pode extrair da obra freudiana uma ética que diz
respeito a um sujeito sempre aberto a novas exigências pulsionais que promovem sucessivas
reinscrições. Afinal, há algo mais subversivo que "Wo Es war soll Ich werden", apontando para
o verdadeiro lugar do cu?
A depressão e seus tropeços nos
arredores do gozo
Mara Viana de Castro
1
FREUD, Sigmund. "O mal-estar na civili7.ação" ( 1 929). Em: Obras completas, vol. XXI . Ri o d e
Janeiro: Imago, 1 977, p. 93.
2 "Dispositivo mecânico, acessório, coisa prática, engenhosa, mas de utilidade relativa" (Dicionário
São Paulo: Melhoramentos, 1 96 1 ) .
Ilustrado Michaelis.
1 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 98 2 , p. 1 1 .
4
BRUNO, Pierre. Satisfação e gozo. Belo Horizonte: Tahl, si d.
' HANNS, Luis. Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1 996, p. 405 .
6
Ver também ALBERT!, Sonia. "Psicanálise: a última flor da medicina". Em: ALBERTI, S. e
ELIA, L. (org. ) . Clínica e pesquisa cm psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 200 1 , p. 45.
7 Freud se refere a governar, educar e analisar como "profissões impossíveis" cm dois textos:
"Prefácio a juventude desorientada, dcAichhorn" (1 925) e "Análise terminável e interminável" ( 1 937).
8 LACAN, Jacques. O seminário, li1ro 17: o al'esso dapsicanálisc. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 996.
9 LACAN, Jacques apud RIBEIRO, Marco Antonio Coutinho. "Capitalismo e esquizofrenia".
Em: ALBERT!, S. (org. ). Autismo e esquizofrenia na clínica da csquizc. Rio de Janeiro : Rios Ambiciosos,
1 999, p. 1 63-75 .
'º Ibid.
provedor das pesquisas desenvolvidas pelo saber científico. Com isso, há uma
vulgarização da depressão, que é atualmente diagnosticada ao menor sinal de angústia.
Esse é o retrato da cultura atual. Não há mais espaço para a tristeza, para a angústia,
para reflexões cm que o sofrimento psíquico possa modificar, salvo se não for tratado
como depressão. As "pílulas da felicidade", patrocinadas pelo capital, surgem como o
senhor absoluto e fazem do sujeito um proletário escravo de substâncias.
Tratando da banalização da depressão na contemporaneidade, Elisabeth Roudi-
nesco afirma :
Forma atenuada da antiga melancolia, a depressão domina a subjetividade con
temporânea, tal como a histeria do fim do século XIX imperava cm Viena através
de Anna O. , a famosa paciente de Joseph Breuer, ou cm Paris com Augustine, a
célebre louca de Charcot na Salpêtricrc, às vésperas do terceiro milênio, a de
pressão tornou-se a epidemia psíquica das sociedades democráticas, ao mesmo
tempo que multiplicam os tratamentos para oferecer a cada consumidor uma
solução honrosa. É claro que a tristeza não desapareceu, porém ela é cada vez
mais vi vida e tratada como uma depressão. 1 1
Não há como negar que existe tristeza e angústia nesse estado psíquico. Trata-se
de uma angústia paralisante , que aprisiona e impede o aparecimento do sujeito. Na
depressão, há uma invasão da angústia de forma maciça. Há um sofrimento que
causa improdutividade, as ações do sujeito ficam inibidas e ele, a serviço da tristeza
e com o cu libidinizado, m ergulha cm uma espécie de gozo paralisante, deixando a
cada dia que passa a depressão o dominar mais e mais. Como barrar esse gozo?
A experiência psicanalítica apresenta-se como um campo propício para que o
gozo possa ser barrado, pois o objeto poderá advir cm sua dimensão de causa. Ao
11
ROUDINESCO, Elisaheth. Por que psicanálisc?Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 999, p. 1 7.
A relação fraterna entre verdade e gozo é uma das articulações destacadas por
Lacan cm O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálisc2 • Neste artigo, buscamos retomar
al guns pontos da sustentação conceituai dessa formulação e, a partir destes, derivar
possíveis incidências para a consideração do desejo, eixo cm torno do qual focali
zamos a discussão de nossa experiência clínica com o sujeito na velhice.
1
Em : MA RTZ, S.M. (org.). Quando cnrclheccr vou usarpúrpura. São P aulo : Marco Zero , 1 997, p. 90.
2 LACAN, Jac9ues. O seminário, /irra 1 7: o arcsso da psicanálise (1 969-70). Rio de Janeiro : Jorg e Zahar
Editor, 1 992, p. 5 1 -64.
21 1
A noção de verdade ganha, cm solo psicanalítico, um lugar que confere especi
ficidade à constituição desse campo. Sabemos que, par tindo dos sintomas neuróticos,
Freud percorre um caminho que começa com a consideração do papel de experiências
de natureza sexual encerradas no passado infantil e culmina na descoberta do lugar
central do desejo e na afirmação do inconsciente como referido a uma outra realidade.
Ao reconhecer o terreno movediço que a preocupação com a diferenciação entre
verdade e falsificação colocava, concebe a noção de realidade psíquica como valor
decisivo na produção da neurose3 • O relato do paciente apontaria, portanto, a verdade
de seu desejo, tratando-se, na clínica, de buscar aí situar sua implicação subjetiva.
Assim, cm um primeiro momento, o inconsciente seria aquilo que está oculto sob o
recalque, emergindo através dos lapsos, esquecimentos e sonhos e estando presente
cm todas as ações do sujeito. Com a formulação da pulsão de morte, em 1 920,
revigorando o campo das intensidades não dominadas pelo princípio de prazer, Freud
retoma o valor do trabalho de ligação do psiquismo para aí também demarcar seu
limite. A verdade ganha, então, o estatuto de criação, inesgotável e ao mesmo tempo
precária, uma vez que a pulsão de morte tende a desfazer os laços feitos por Eros.
Na tradição poética e mítica grega, a verdade [alétheia ) tem o sentido de desve
lamento do ser, lethe significando véu, encobrimento, e alpha, seu prefixo, designando
negação. Aludindo à manifestação Irevelação do ser, seu sentido seria primeiramente
ontológico, não se atendo à evidência fornecida pela experiência4 • Porém, portadora
de uma sombra essencial, designaria um mais além da palavra, o silêncio, o indizí
vel 5 . Lacan dirá que a verdade só é acessível por um semidizer, porque além de sua
metade não há nada a dizer 6 •
1
FR EUD, Sigmund . "Confe rências introdutórias sob re psicanálise " ( 1 9 1 6-7 (1 9 1 5-7) ). Em :
Obras completas, vol . XVI. Rio de Janeiro: Imago, 1 980, p. 428-30.
4
MA R CON DES, Danilo. Iniciação a história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro :
Jorge Zahar Editor, 1 997 , p. 266-7.
5 G A RCIA -ROZA , Luiz Alfredo. Palam e verdade na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1 998, p. 36.
6
LACAN, Ja cques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-70) . Op. cit . , p . 49 .
7
LACAN, Jacques. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1 954-5). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1 9R 'i . p. 6 1 .
mental da descoberta freudiana, reduzido nas práticas que visam ao eu em sua
dimensão de unidade, buscará, cm seu retorno a Freud, revitalizar sua importância.
O eu, no entanto, não seria um erro, no sentido de constituir uma verdade parcial :
É a partir dessa função imaginária que podemos conceber e explicar o que é 0
ego na análise. Não digo o ego na Psicologia, onde ele é função de síntese, mas 0
ego na análise, função dinâmica. O ego aí se manifesta como defesa, recusa. Aí
está inscrita toda a história das oposições sucessivas que o sujeito manifestou à
integração daquilo a que se chamará em seguida na teoria, em seguida somente,
suas pulsões as mais profundas e as mais desconhecidas. Em outros termos, nesses
momentos de resistência, tão bem indicados por Freud, apreendemos aquilo
através de que o movimento mesmo da experiência analítica isola a função fun
damental do ego, o desconhecimento.8
8 LA C A N, Jacques. O seminário,
livro /: os escritos técnicos de Freud (1 953-4). R i o de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1986, p. 67.
9 LAC A N, Jacques . "O estádio do espelho com o formador da função do cu" [ 1949 ( 1936)] .
princípio de realidade poderia ser tomado como aquele que permite que o jogo
dure, ou seja, que o prazer se renove, que o combate não termine por falta de
combatentes. O desejo surge justamente ao se encarnar na palavra : "Este to be or not
to be é uma história completamente verbal"1 3 •
Um dos eixos da ar ticulação entre real, simbólico e imaginário, registros através
dos quais Lacan retoma a centralidade do inconsciente no campo da psicanálise, é
a noção de objeto. Para ele, o desejo está intrinsecamente ligado a uma falta, uma
vez que implica um movimento que busca reconstituir a primeira experiência de
satisfação. Tendo como fundamento o processo p ulsional, o objeto do desejo é,
assim, objeto metonímico. É o desejo que, revelando antes uma falta-a-ser, inscreve
a criança em uma relação complexa com a alteridade 4 :
1
Nesse sentido, interpretar não é mostrar ao sujeito que o que ele deseja é o
objeto sexual (orientado por imagens). A ordem libidinal se ligaria ao imaginário,
ao eu, com seu caráter de ordem e harmonia. Não se trata de reconhecer algo já
dado, mas de o sujeito, ao nomear seu desejo, fazê-lo surgir. O desejo, estando
aquém da existência, insiste. Segundo Lacan, Freud introduz um mais além do
1 2 lbid., p. 74.
13
LACAN, Jacques . O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na témica da psicanálise. Op. cit. , p. 29 3 .
14
DOR, Joel. Introdução a leitura de lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1 989, p. 1 39-47.
,; LACAN, Jacques . O seminário, livro 2: o cu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Op. cit. , p. 3 2 3-4.
16
LACAN, Jacques. O seminário, livro S: as formações do inconsciente ( 1 957-8). Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1 999, p. 252-5.
17
LACAN, Jacques. O seminário, livro 2 : o eu n a teoria de Freud e n a técnica da psicanálise. Op. cit. , p. 288 -95 ·
18
lbid. , p. 407.
19
lbid. , p. 266.
20
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 5 8-9.
21
WITIGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus ( 1 953). São Paulo: EDUSP, 1 994.
22 LACAN , Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 60.
21
Ibid. , p. 1 78 .
24
VALAS, Patrick. As dimensões do gozo. Op. cit. , p . 74.
25
LACAN, Jacques . O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 64.
26
FREUD, Sigmund. "Totem e tabu" ( 1 9 1 4) . Em: Obras completas, vol. XIII. Op. cit.
7 LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. 1 66.
2
28
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. ( 1 972 -3). Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor,
1 98 5 , p. 1 29.
29
CA RNEIRO, Cláudia. "O corpo efêm ero", Cadernos do Tempo Psicanalítico, n. 4. R io de Janeiro,
1999, p. 23-35.
30 MANNONI, Maud. O nomeável e o inominável: a última palarra da vida. R io de Janeiro : Jorge Zahar
Editor, 1995 , p. 26.
11
FREUD , Sigm und. "O m al-estar na civilização" (1930 (1929) ). Em : Obras completas, vol . XXI.
R io de Janeiro : Im ago , 1980, p . 105.
caráter de término da vida, tornaria empobrecida a vida. 3 Assim, a busca da "res
2
12
FREUD, Sigmund. "R eflexões para os tempos de guerra e morte" ( 1 9 1 5). Em : Obras completas,
vol. XIV. Rio de Janeiro : Im ago , 1 980.
li
FRE UD, Sigmund. "O mal-estar na civ ilização" (1929). Em : Obras completas, vol. XXI. Op.
cit. , p. 81-90.
34
JOR GE , Marco Antonio Coutinho. Fu ndamentos da psicanálise de Freud a lacan, vol. 1 : As bases conceituais.
Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2000, p. 100-1.
15
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1 988.
1 LACAN, Jacques. O seminário, liffo 7: a étia da psicanálise ( 1 959-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 98 8 .
' Ibid . , p . 362.
3 FREUD, Sigrnund. "O mal-estar na civilização" ( 1 930). Em: Obras completas, vol. XXI. Rio de
Janeiro : Imago, 1 980.
4
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise ( 1 969-70). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 992 .
5 LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit. , p. 3 6 3 .
função do analista, afirmou que "constituir-se como garante de que o sujeito possa
de qualquer maneira encontrar seu bem, mesmo na análise, é uma espécie de
trapaça", chamando a atenção para dois fatores :
1) A exigência de rigor e firmeza por parte do analista diante da "confrontação
com a condição humana", o que supõe levar cm consideração as conseqüências da
possível passagem da exigência de felicidade para o plano político (exigências
próprias do que Lacan denominou "serviço dos bens"). Aqui Lacan sinalizou outra
esfera, a do desejo : "O ordenamento do serviço dos bens no plano universal, no
entanto, não resolve o problema da relação atual de cada homem, nesse curto
espaço de tempo entre seu nascimento e sua morte, com seu próprio desejo".
2) "A função do desejo deve permanecer em uma relação fundamental com a
morte". Retomando a tragédia através do mito edípico e da peça Rei Lear, de Shakes
peare, Lacan relembrou como "o limite dessa região se expressa para o homem em
seus termos derradeiros'06 • Trata-se de, ao mesmo tempo, "tocar no termo do que ele
[o homem) é e do que não é" e, nesse ponto, tanto Lcar quanto Édipo mostram-nos
que "aquele que avança nessa zona, avançando-se pela via derrisória de Lear ou pela via
trágica de Édipo, avançará sozinho e traído'q. Ainda cm O seminário, livro 7: a ética dapsicanálise,
Lacan pensou a passagem do homem comum - aquele que se põe a serviço dos bens -
ao herói trágico, após certo acesso ao campo do desejo: "Em cada um de nós há a via
traçada para um herói, e é justamente como homem comum que ele a efetiva'8 .
Se a morte - um dos nomes da castração -tem relação fundamental com a função do
desejo para o sujeito, pade-se depreender que, onde há desejo, há sujeito do inconsciente,
subentendendo-se o efeito da operação de castração no psiquismo humano. O acesso
chistoso, falho ou pela via dos sonhos ao campo do desejo carrega consigo a sombra do
recalque e da renúncia pulsional, ou seja, do momento atemporal que constitui
simbolicamente a civilização desde os primórdios, como afirmara Freud em 1930.
Lacan analisou a última frase de Édipo, me phynai, que significa "de preferência ,
não ser". Essas palavras parecem carregar consigo todo o arsenal da real função do
desejo. Quando dizemos "Eu sou . ..", imediatamente evocamos também aquilo
que não somos, mas de forma apagada, obscurecida. Como indicou Lacan, o signifi
cante chega matando a Coisa [das Díng) . Lacan chegou a dizer que Édipo morre da
"morte verdadeira", pois "ele mesmo risca seu ser". Édipo, portanto, subsiste à cas-
6
Ibid. , p. 364.
7
Ibid. , p. 366.
8
Ibid. , p. 383.
tração: "uma subsistência na subtração dele mesmo da ordem do mundo'>J. Leio essa
"ordem do mundo" como a ordem simbólica à qual a linguagem se encontra
submetida, vale dizer, tudo o que, a partir do campo simbólico, torna-se possível
ordenar na relação dos homens com o mundo. Embora essa leitura da "ordem do
mundo" em que se torna presente a castração operando no registro simbólico seja
perceptível na estrutura neurótica, como se pode entendê-la na psic�se?
Para Schreber, o juiz psicótico que pôde escrever sua autobiografia 0 , era ne
1
de regressão da libido para cada wna das afecções, o que permite delinear wna clínica
diferencial para cada wna delas a partir do primeiro ponto de fixação. Em suas palavras :
"Na paranóia, a fixação à qual o paciente retorna por regressão é o estágio do narcisismo,
e na demência precoce é necessário utilizar wn estágio anterior a esse, que é o do auto
erotismo infantil" 1 3 • Há vestígios dessa fixação libidinal nardsica também na megalo
mania, que surge como sintoma e faz saltar aos olhos a inflação egóica presente nesses
quadros. Quase dez anos depois, em "Sobre o narcisismo: uma introdução" 4 , Freud
1
9 Ibid. , p. 367.
'º SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doentc dosncrvos (1 903). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1 995 .
11
A expressão é do próprio Schreber.
12
FREUD, Sigmund. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" ( 1 905). Em : Obras completas,
vol. VII. Op. cit.
1 1 Ibid. , p. 205 .
14
FREUD, Sigmund. "Sobre o narcisismo, uma introdução" ( 1 9 1 4). Em: Obras completas, vol.
XIV: Op. cit.
15 FREUD, Sigmund. "As neuropsicoses de defesa" ( 1 894). Em : Obras compleras, vol. III . Op. eit.
16
Ibid. , p . 64.
1 7 FREUD, Sigmund. "Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa" ( 1 896). Em :
Obras compleras, vol. III. Op. cit.
18
lbid. , p. 1 74.
19
lbid. , p. 1 8 1 .
20
Ibid. , p. 1 8 2 .
21
FREUD, Sigmund. "Rascunho K." ( 1 896) . Em: Obras completas. vol. I. Op. cit.
22
Trata-se da experiência sexual de caráter traumático de que Freud falou cm seu trabalho
sobre as neuropsicoses de defesa, de 1 894, já citado.
11
Na Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, lê-se "autocensura primária".
24
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 1: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro :
Jorge Zahar Editor, 1 992 , p. 2 2 5 .
2
; LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit. , p . 1 64.
16 QUINET, Antônio. Teoria e clínica da psicose. Rio de Janeiro: orense Universitária, 2000.
F
27 FREUD, Sigmund. "A negativa" ( 1 925). Em : Obra compleras, vol. XIX. Op. cit.
28
QUINET, Antonio. Tcoria e clínica da psicose. Op. cit. , p. 74.
2• LACAN, Jacques. Da psicose paranóica cm suas relações com a personalidade ( 1 93 2 ) . Rio de Janeiro :
Forense Universitária, 1 987. Op. cit.
10
Ibid. , p. 25 1 .
" Ibid., p. 256.
12
Ibid. , p. 257.
" Ibid. , p. 260.
14
FREUD, Sigmund. "Totem e tabu" ( 1 9 1 3). Em: Obras completas, vol. XIII. Op. cit.
35 LACAN, Jacques. Da psicose p aranóica em suas relações com a personalidade ( 1 932). Op. cit . , p. 266.
36
lbid. , p. 328.
17 Ibid . , p. 3 3 1 .
38 FREUD, Sigmund. "O eu e o isso" ( 1 923). Em: Obras completas, vol. XIX. Op. cit.
39 FREUD, Sigmund. "Além do princípio de prazer" (1 920). Em: Obras completas, vol. XVIII. Op. cit.
40 L
ACAN, Jacques. Da psicose paranóica cm suas relações com a personalidade ( 1 932). Op. cit. , p. 332.
41
LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Op. cit., p. 30- 1 .
41 LACAN, Jacques. O seminário, li1T0 3: aspsicoses ( 1 955-6). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 992.
< J LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 7: o avesso da psicanálise. Op. cit.
44
Jbid. , p. 1 1 0.
45
Jbid. , p. 1 1 .
46
Jbid.
discurso que passa não necessariamente pela fala, mas pela linguagem. Contudo,
uma vez que é definido no laço social47 , o sujeito está implicado no discurso, o que
supõe a verificação de seu posicionamento cm relação ao gozo. Certamente não
foi por acaso que Lacan partiu de "O mal-estar na civilização" para efetivar esse
retorno a Freud: foi o mesmo texto que o motivara a ir de encontro à Coisa (das
Ding) em A ética da psicanálise, em que fez a primeira conceituação de gozo e por onde
iniciamos este estudo.
Tomando a psicanálise por seu avesso, Lacan se deparou com o discurso da civi
lização, que é o discurso do mestre. Se Freud afirmara que o maior sofrimento hu
mano é a relação com os outros homens, ressaltando a renúncia pulsional na base
civilizatória, Lacan pensou o viés inverso: o modo como se estrutura a cultura e como,
a partir dela, posiciona-se a psicanálise. Percebeu, então, que é justamente aquilo que
se encontra excluído da civilização - o objeto a como resto de gozo - o que, na verdade,
a estrutura. É o objeto a que ordena tanto a linguagem quanto a civilização.
No capítulo "Do mito à estrutura", tratou da morte ou, mais especificamente,
do assassinato do pai, registro mítico que pode ser reconhecido na base de "Totem
e tabu". Segundo Lacan, para que se dê a instauração da castração, a morte do pai
deve comparecer de al guma forma. A partir das formulações de Freud, não só se
torna impossível supor que tudo é permitido, desde que Deus esteja morto, como
se atesta o contrário : "nossa experiência é que Deus estámorto tem como resposta nada
mais é permitido". A preocupação lacaniana em decantar esse ponto lançou luz sobre
uma especificidade de saber trazida pela psicanálise:
É a partir da morte do pai que se edifica a interdição desse gozo [o de dormir com
a mãe) como primária. [ . . : J É aí, no mito de Édipo tal como nos é enunciado, que
está a chave do gozo. [ . . . ) O mito de Édipo, no nível trágico em que Freud se
apropria dele, mostra precisamente que o assassinato do pai é a condição do gozo.48
47
Refiro-me à seguinte definição: "um significante é aquilo que representa o sujeito para um
outro significante. Esse significante será portanto o significante para o qual todos os outros
significantes representam o sujeito: quer dizer, à falta desse significante, todos os outros não
representariam nada" (LACAN, Jacques. "Subversão do sujeito e dialética do desejo no incons
ciente freudiano" ( 1 960). Em: Escritos. füo de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Op. cit. , p. 819).
48
LACAN , Jacques. O seminário, livro 1 7· o avesso da psicanálise. Op. cit. , p. J 13.
'9 Ibid., p. 1 2 1 .
0
' R A BINOVITCH, Solai. A foraclusão: presos do lado de fora. R io de Janeiro : Jorge Zahar Editor,
200 1 , p. 85.
" MILLE R , Jacque s - Alain. "Suplem ento topológico a 'De una cuestión preliminar . .." ( 1 979).
Em: Maternas, vol. I. Buenos A ires : Manantial , 1 987, p . 1 8 1 .
Desejo e psicose 2 31
Afinal, o que está foracluído do simbólico na psicose não é o real da Coisa,
mas o significante, mais cspccificamcntc o Nome-do-Pai. Após uma "morte subjetiva"
que entrega o sujeito ao real do gozo do Outro, para que algo do sujeito se torne
presente para o psicótico faz-se necessário que ele delire. Esse delírio que vem em seu
socorro possibilita, a ele que é dito como fora-do-discurso, tratar o gozo e entrar no
discurso. Assim, ao sujeito naufragado do Edipo resta uma ilha a ser construída pela
paranóia ou, em outras palavras, é possível reacessar o funcionamento do imaginário
criando significantes que não somente portam, mas também encarnam, o real. Isso
significa que, identificando o gozo no lugar do Outro, o paranóico elege um significante
que o represente para outro significante, de acordo com uma das definições de sujeito
no ensino de Lacan. Como exemplo, temos o sujeito que se torna "mulher de Deus",
em Schreber, ou o que se identifica como "uma cobaia barata da engenharia biofísica",
nas palavras de uma paciente atendida por mim em um hospital psiquiátrico carioca.
Contudo o que se exibe de paranóico nesses casos é o tratamento possível de
um real avassalador através do simbólico, ainda que trôpego, acidentado. Essa é a
demanda prínceps do psicótico, o que lhe permitiria escapar da retaliação imaginária
apresentada pelo que há de avassalador no desejo da mãe. Segundo Philippe Julicn52 ,
a verdadeira demanda de análise é a do sujeito psicótico: a busca de um nome, de
algum significante que o designe .
Mas não é exatamente disso que trata a psicanálise, de acolher o real para que
o sujeito se apresente? Se tomamos a clínica como o que necessariamente porta o
real, a clínica com psicóticos traz essa marca em relevo, a céu aberto. Aquilo que
não cessa de não se escrever exige sempre novas articulações e inclui o sujeito cm
toda sua produção 53 ; produção que, na estrutura psicótica, revela-se urgente,
maciça, turbilhonante e voraz. Como dizia o Homem dos lobos, com seu inseparável
espelhinho, "estas cicatrizes jamais dcsaparecem"54 .
5 2 JULIEN, Philippe. As psicoses: um estudo sobre a paranóia comum (1997). Rio de Janeiro: Companhia
de Freud, 1999.
" Quanto ao sujeito na psicose, ver a tese de doutorado de Ângela Pequeno de Andrade, na
qual a autora desenvolve os dois temas de maneira brilhante e bastante esclarecedora ("Sujeito
e psicose". Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
IPUB, 2 000).
54
BRUNSWICK, Mack apud AULAGNIER, Piera. "Observações sobre a estrutura psicótica".
Em: KATZ, C. S. (org. ) . Psicose, uma leitura psicanalítica. São Paulo: Escuta, 1991.
Algumas considerações sobre
S 1 e o laço social na psicose
O discurso
Em seu Dicionário de filosofia, Gérard Durozoi descreveu o discurso como "a expressão
do pensamento racional sob a forma de uma série de juízos que dizem respeito a
operações e conceitos parciais" 1 , acrescentando que, segwido a lógica de Morgan,
o discurso designa um universo e é determinado por ele, ou seja , existe um "uni
verso do discurso": "A raposa mente ' é verdadeiro no universo da fábula, mas não
no da zoologia" 2 • André Lalande, por sua vez, cm Vocabulário técnico e crítico da filosofia,
definiu discurso como a operação intelectual efetuada através de uma sucessão de
operações elementares parciais e sucessivas3 •
Já no terreno da psicanálise, Pierre Kaufmann deu relevo à articulação entre o
discurso e a noção de laço social : "Resta portanto indagar, em se tratando do dis
curso, isto é, da realidade social da comunicação, acerca da mutação que sofrem ai os
determinantes da cadeia significante: significado , significante substituivo'\ Roland
Chemama , por fim, definiu discurso como a "organização da comunicação, sobretudo
da linguagem, específica do sujeito com os significantes e com o objeto, que são
determinantes, para o indivíduo, e que regulam as formas de vínculo social',s.
1
DUROZOI, Gérard & ROUSSEL, André. Dicionário de filosofia ( 1 990) . Campinas: Papiros, 1 996.
2 Ibid.
1
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico de filosofia ( 1 926). São Paulo: Martins Fontes , 1 996 .
4
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico depsicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 993.
; CHEMAMA , Roland. Dicionário de psicanálise ( 1 993). Porto Alegre: Artes Médicas, 1 995 .
A noção de discurso perpassa toda a obra de Lacan. Estabelecida já desde O se
minário, livro 1: os escritos térnicos de Freud - discurso "é o enunciado pleno, é aquele em
que há não somente um verbo, mas um sujeito, um nome" 6 -, permaneceu até
seus últimos seminários e conferências. Mas foi a partir de 1 969, ano em que
Lacan concebeu os quatro discursos, que a noção se tornou um conceito, vindo a
ocupar um lugar mais específico em sua obra, ligado ao laço social.
Em 19 5 3, Lacan escreveu "Função e campo da fala e da linguagem em psicaná
lise", mostrando a "deterioração do discurso analítico'>? provocada pela negligência
dos analistas com a fala, a linguagem e o discurso. Para Lacan, a psicanálise só
opera no campo da linguagem, pois mesmo o que é da ordem da pulsão de morte
e do real deixará sua marca - ou sua não-marca - nesse campo. Sobre a articulação
entre pulsão de morte e linguagem, há, em O seminário, livro 1 1 : os guatro conceitos funda
mentais da psicanálise, urna elaboração dessa relação pelo viés da repetição : tiquê e autô
maton. O autômaton seria a repetição significante, a própria sobredeterminação sig
nificante, a "insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio
de prazer" 8 , para além da qual se encontra o real. A tiguê seria o encontro faltoso
com o real, a repetição da falta que, mesmo assim, só pode se realizar se houver ao
menos um significante inscr ito : "Nossa tarefa será demonstrar que esses conceitos
só adquirem pleno sentido ao se orientarem em um campo de linguagem, ao se
ordenarem na função da fala" 9 •
Já nesse texto de 19 5 3, 1 7 anos antes da elaboração da teoria dos quatro
discursos, Lacan atr ibuiu ao discurso o campo em que ocorre a análise e em que a
verdade do sujeito pode advir, relacionando discurso e verdade - relação que se
manteria até 1970. Ele chamou o conjunto da fala do analisante de discurso, tornando
o termo como correlato à história do sujeito. O termo discurso traria consigo,
portanto, a noção de fala mais próxima à verdade do sujeito, fala plena .
Em uma análise, a fala plena está do lado da "análise da resistência, da inter
pretação simbólica"'º, da subjetividade do obsessivo e da histérica. É a fala que, ao
trazer em seu bojo o passado, a história do sujeito e o discurso ao qual ele se
6
LACAN, Jacques. O seminário, livro /: os escritos térnicos de Freud ( 1 95 3-4). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1 986, p. 283.
7
Ibid. , p. 245 .
" LACAN, Jacques. O seminário, livro 1/;' os quatro conceitos fundamentais da psicanálise ( 1 964). Rio de Ja
neiro: Jorge Zahar Editor, 1 98 5 , p. 56.
9
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Op. cit. , p. 247.
'º Ibid. , p. 2 5 5 .
1 1 Ibid.
12 Ibid.
1 1 Ibid. , p. 2 5 3 .
14 MILLER, Jacques-Alain. "Clinique ironique", Revue la Cause Freudienne, n. 2 3 . Paris, 1 993, P · 8 .
" STEVENS, Alexandre. "Le renouvellement d e la clinique par Lacan", Feuillets du Courtil. Leers
Nord, Champ Freudicn Belgiquc, 1 997, p. 1 6.
16
• MILLER, Jacqucs-Alain. "Clinique ironique", Revue La Cause Freudienne. Op. cit . , p. 8 .
17
STEVENS, Alexandre. "Le renouvellemcnt d e l a clinique par Lacan", Feuillets du Courtil. Op.
cit. , p. 1 6 .
18
Ibid . , p . 1 7 .
9 MOREL, Genevieve. "Anatomia analítica". Em : Psicanálise: problemas ao feminino. Campinas:
1
Papirus, 1 996, p. 1 2 2 .
' LACAN, Jacques. "Le Séminaire, Livre XVIII: D ' un discours qui ne serait pas d u semblant" .
0
como se fosse uma letra, já que ele cifra algo do gozo particular. O discurso não é
impor tante somente porque produz significação. Ele é crucial porque, como 0
discurso do analista, produz significantes mestres, "S 1 ," , ou seja, escreve traços
que , mesmo separados de S 2 , cifram e nomeiam o gozo. A letra mostra como S
prescinde de S 2 para nomear algo do gozo, podendo funcionar como letra. Um
1
mostra que a fala não traduz o que S (A) quer dizer, mas pode se apoiar nessa
escrita. É como o nome próprio: ele é uma escrita sem tradução, mas é da inscrição
do nome próprio que o sujeito pode falar, pode produzir uma significação. O nome
próprio proporciona uma signifi cação justamente por remeter à ausência de signi
ficação. Na neurose, o nome, a nomeação, conduz ao falo, já que o falo é a signifi
cação dita do neurótico . O falo é, por tanto , um dos Nomes-do-Pai. É um signifi
cante capaz de dar um sentido ao desejo da mãe , como na metáfora paterna,
engendrando um sentido.
O discurso analítico é aquele que produz S 1 , Esse discurso é acessível à psicose?
Não é pela produção de S 1 que o sujeito psicótico pode vir a fazer laço social?
Como no caso de Schreber, que estabilizou seu quadro psicótico após a segunda
longa internação pela via da construção de um S 1 : ser a mulher de Deus. Essa
construção delirante se sustentou na identificação de Schreber com a mulher, que
proporcionou a ele um corpo - com seios e nádegas femininas - e lhe deu um
destino, uma inscrição simbólica na cultura : copular com Deus para gerar uma
nova raça de seres humanos. Além disso, localizava algo de seu gozo : ele gozava
com a volúpia de uma mulher. Eis os três registros, imaginário, simbólico e real,
enodados pelo sintoma ser mulher.
22
Ibid. , aula de I O c;le março d e 1 97 1 .
Desse modo, Lacan relacionou a letra ao traço unário. A letra é o litoral, a
borda do furo. "É do apagamento do traço que se designa o sujeito. Isso se marca
então cm dois tempos para que se distinga isso que é traçado. Litura... lituraterrc,
risco de nenhum traço que já esteja antes, é o que aterra o litoral"2 3 • É a escrita
que dá sustentação a todos os gozos, o que pode ser verificado nos discursos: o
arcabouço que o ser falante constrói, pela escrita, visando a organizar seus gozos.
S 1 no discurso do mestre
Para definir o que é discurso, Lacan partiu do significante mestre, S 1 , que, nesse
discurso, está na posição de semblante. No discurso do mestre, S 1 é aquele signi
ficante que age em uma cadeia de significantes já existente (S2) e que, por ter
estatuto de exceção, é o significante que porta o traço distintivo do sujeito. O dis
curso que mostra essa função de S 1 é o do mestre. Nele, o laço social se faz quando
se ocupa o lugar de mestre, a castração não aparece, não se parte do não saber,
mas do saber sem furo : '\ é aquele que deve ser visto como interveniente. Ele
intervém numa bateria significante que não temos direito al gum, jamais, de con
siderar dispersa, de considerar que já não integra a rede do que se chama um
sabcr" 24 •
Dessa ação de S 1 sobre S 2 (cadeia significante) e do surgimento do sujeito,
algo se define como uma perda, que é o objeto a, objeto mais-de -gozar. O saber é
o caminho pulsional traçado por cada sujeito no lugar de um instinto inexistente
para o ser humano. Esse caminho resiste à tendência ao Nirvana. O princípio de
prazer, assim como o discurso, são, em Freud e em Lacan, aquilo que poderíamos
i gualar a esse caminho.
É a partir do traço unário que se pode pensar a pulsão, já que ambos estão inter
relacionados. Com a inscrição de S 1 , há uma repetição significante : S2 , que representa
a cadeia significante. \ foi chamado por Lacan de saber. Essa repetição, esse par
significante, é o próprio gozo do sujeito , a marca pulsional. Tem-se aí o princípio de
prazer: cm S 1 , a primeira experiência de satisfação ; em S2 , a tentativa de reencontrar
o objeto da primeira experiência de satisfação, para gozar dele pela segunda vez.
O par significante demonstra que houve gozo e uma perda de gozo, o que leva o
sujeito a tentar reencontrar o primeiro momento de puro gozo.
23
Ibid., aula d e 1 2 de maio d e 1 97 1 .
24 LACAN, Jacques. O seminário, livro 17: o avesso de psicanálise ( 1 969-70). Rio d e Janeiro : Jorge
Zahar Editor, 1 992 , p. 1 1 .
Na psicose, não ocorre identificação primária com o pai, mas com algum
outro significante que pode vir no lugar do significante do Nome-do-Pai, dando
lhe suplência e possibilitando ao sujeito dar uma significação, que não a significação
fálica, ao mundo. Isso quer dizer que o sujeito psicótico pode ter acesso ao discurso,
ao laço social, através do discurso do mestre, como mostra o exemplo acima,
desde que ele produza alguma significação delirante.
Na neurose, há identificação primária com o pai. Portanto S1 como Nome
do-Pai intervém sobre a cadeia, S2 , o que produz sentido.
S 1 (Nome-do-Pai) S2 (filho)
g a (significação fálica)
S 1 no discurso da histérica
Esse tipo de laço social apresenta o sujeito dividido no lugar dominante. S 1 está na
posição do outro, para quem o discurso se dirige. O sujeito se dirige ao significante
mestre, produzindo um saber e tendo como verdade o gozo : "O próprio sujeito,
histérico, se aliena do significante mestre como aquele que o significante divide,
S 1 no discurso universitário
No discurso universitário, S 1 ocupa o lugar da verdade. S 1 é o ideal, o "cu do
mestrc"28 , aquele cu que contém um saber verdadeiro, completo. Em minha
opinião, o sujeito psicótico pode fazer laço social por meio do discurso universitário.
Não é rara a relação do sujeito com o ideal, com um saber que vem de Deus, da
mãe, do Outro , saber inquestionável ao qual o sujeito se cur va e segue. Mas nesse
discurso, assim como no da histérica, o sujeito psicótico está submetido ao gozo
do Outro, em uma posição passiva e alienada diante de seu próprio gozo.
Há casos de psicose nos quais, mesmo após um surto, o sujeito pode conseguir
construir um S 1 , mesmo não sendo pelo discurso do mestre, ou seja, pela significação
delirante. A partir do discurso do analista, ocorre a produção de S1 , que tem como
efeito a identificação a um traço significante que faça funcionar a cadeia significante
como tal: por seu caráter de exceção, por ser S 1 o traço de um gozo singular do sujeito.
Lacan afirmou que, na psicose, na ausência do Nome-do-Pai, o psicótico se faz pai do
nome: "Isso nos leva a um outro nível, o nível onde não está somente o Nome-do-Pai,
mas onde está também o Pai do Nome. Quero dizer que o pai é aquele que nomeià82 •
29
LACAN, Jacques . O seminário, livro 1 7: o avesso de psicanálise. Op. cit. , p. 3 4 .
'º LACAN, Jacques. "Le Séminaire, Livre XVIII: D ' un discours qui ne serait pas du semblant".
Op. cit. , aula de 1 7 de fevereiro de 1 97 1 .
'' ALBERT), Sonia. Essc siycito adolescente ( 1 995). Rio de Janeiro : Rios Ambiciosos, 1 999, p. 2 1 3 .
2
' LACAN, Jacques. "Conferência de Genebra sobre o sintoma" ( 1 975). Em : lntcrrcnciones }'
textos, n. 2 . Buenos Aires: Manantial, 1 998.
Função vem a ser esse algo que entra no real, que nele jamais
havia entrado, e que corresponde não a descobrir, experimentar,
cingir, destacar, deduzir, nada disso, e sim a escrever - escrever
duas ordens de relações.
Jacques Lacan
Este artigo consiste em uma articulação entre os efeitos que se produzem cm uma
experiência clínica com o saber teórico da psicanálise; Única maneira, cm meu
entender, de fazer avançar o conhecimento nesse campo de saber. A clínica se
desenvolve no Centro de Atenção Psicossocial Infanta-juvenil Pequeno Hans, dirigido
a sujeitos que o campo social denomina crianças e adolescentes, e que a psicanálise
nomeia de autistas e psicóticos. Meu objetivo é esclarecer o modo como a psicanálise
opera nessa experiência que é uma nova possibilidade de sua aplicação: uma expe
riência clínica inserida na rede de atenção pública, municipal, de saúde e que faz
parte, juntamente com outros "CAPS", da resposta que o município do Rio de Janeiro
vem construindo para a questão da assistência cm saúde mental.
O dispositivo analítico posto cm função no Centro de Atenção Psicossocial
Infanta-juvenil (CAPSI) Pequeno Hans define-se como uma nova possibilidade de
aplicação da psicanálise tanto pela especificidade de constituir-se em uma iniciativa
clínica de acesso público dirigida a sujeitos autistas e psicóticos quanto pelo fato
de estar em função para o um-a-um do coletivo, o que implica vigorar fora da
abordagem convencional, individual, do consultório. Estivemos, de imediato,
confrontados com a produção de muitos efeitos, o que foi, para nós, uma sur presa,
uma vez que esperávamos encontrar predominantemente as dificuldades e a neces
sidade de muito tempo de trabalho para que alguma mudança, ainda que pequena,
1
Este artigo constitui uma elaboração a partir de um fragmento da Dissertação de Mestrado
da autora, intitulada "O dispositivo psicanalítico na clínica institucional do autismo e da psicose
infantil", apresentada ao Programa de Pós-Graduação cm Psicanálise da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, cm dezembro de 200 1 .
243
pudesse ser observada, dada a gravidade das problemáticas que estávamos nos
dispondo a enfrentar. A surpresa causada pelo quase imediatismo dos r esultados
impôs a necessidade de tentar explicá-los.
Nossa aposta é a de que é possível instaurar o dispositivo analítico para abordar
o autismo e a psicose infantil cm uma inici ativa clínico-institucional sem que para
isso tenhamos de proceder a adaptações. Isso nos conduz na direção de considerar
a prática analítica como sendo uma só, ou seja, ela não se especializa em crianças,
adolescentes, adultos; n euróticos, psicóticos e perversos.
A experiência clínica em psicanálise ocupa um lugar e possui valor absolutamente
diferenciado e fundamental, inigualável no campo dos saberes. É a partir de seu
estabelecimento que temos as condições necessárias ao manejo diferenciado que se
impõe pelas tensões surgidas no dispositivo analítico. Dadas as peculiaridades da
relação entre teoria e prática nesse campo de saber - especificamente aquela que
requer que a experiência clínica afirme-se como o lugar próprio da produção de
saber, e não aquele da aplicação do saber teórico, como acontece em outros campos -,
pensamos que para fazer avançar o conhecimento em psicanálise trata-se de instaurar
a experiência analítica e de sustentar a psicanálise na radicalidade de sua intervenção
para que as especificidades, tais como a da_psic<>se; quando desencadeada na infânqa,
? • por tanto, co�gurada sob a forma do /a�e da psicose infantil, possam ser
acolhidas e transmutadas cm saber teórico.
Essa estrutura clínica impõe questões ao dispositivo analítico , uma das quais,
no caso do autismo, é a ausência da fala, via de acesso ao inconsciente. Consideramos
essas e outras questões, que se impõem e constituem-se como impasses, uma
exigência de trabalho. Exigênci a essa que se atualiza em duas vertentes: a clínica,
ao nos lançarmos na sustentação da posição de analistas diante daqueles que não
falam, no caso do autismo, ou que falam , embora de forma a reproduzir a fala do
outro, ou seja, falam sem ter operado a inver são da fala, no caso da psicose infantil ;
e a que se atualiza impondo a arti culação com o saber teórico como buscamos
proceder com a elaboração deste artigo.
Iniciaremos com a análise dos dois pólos daquilo que constitui o dispositivo
analítico: a tarefa do anali sante e a intervenção analítica, no sentido de tentar
lançar al guma luz no que insiste como efeito próprio do encontro do sujeito com
os limites precisos da experiência analítica e, em seguida, tentar cernir o aspecto
diferencial que assume essa proposta que se desenvolve no CAPSI Pequeno Hans.
A experiência analítica situa-se em oposição à experiência comum porquanto
ela é preparada, o que quer dizer que ela está sustentada por teses que a estruturam,
advindas do saber teórico da psicanálise, e que nela opera um instrumento que é
,!produção de uma máquina, qt1e circula no meio - �ie�tífico, uma vez que se solicita
que ele abandone qualquer referência e que produza significantes que constituam
a associação livre. Através desses significantes, tudo que diz respeito ao destino
desse sujeito, à sua verdade e à sua realidade, se tornará presente. É no trabalho
do analisante de articular em significantes todo o seu vivido, tudo que é da ordem
da multiplicidade de dimensões existentes, uma multiplicidade de dados e de
elementos substanciais, que se constitui a produção do anali sante.3
É precisamente porque a experiência analítica faz circular mais e mais esses significantes,
trazidos pelo discurso do analisante, até que o sujeito possa abandonar a posição que ele
assume diante de todos esses termos, todos eles plasmados como objetos da fantasia, que
a realidade do sujeito se modifica, a vida concreta muda, pois terá sido possível analisar a
repetição. Esse é o efeito de uma análise, que é um efeito de real, uma vez que remete o
· sujeito ao impossível\e, com isso, o que se escreve é a inconsistência do Outro. Dito de
outro modo, é a partir das notícias do impossível de tudo dizer, do impossível de se dizer
o que se é, e, portanto, do caráter contingente das significações, que temos efeitos de
escrita da incompletude do Outro. Por tanto, esta expressão - "a produção do
analisante" -, cujo duplo sentido remete, primeiro, ao analisante como aquilo que é
produzido, ou seja, ele não se encontra independentedo dispositivo analítico pois constitui
se como uma resposta ao desejo do analista , e, segundo, aquilo que o analisante produz ,
ou seja, a produção fervilhante de S 1 -, será mais bem entendida na condensação dos dois
sentidos, ou seja, o analisante é instituído pela experiência clínica e ele é. o seu trab_<llho.
No livro 17 dd]semmario, mtitul�o O avesso dapsicanálise, �ixo temático da presente
coletânea, Lacan retoma essa idéia e a faz avançar apresentando uma formalização
que produz um deslocamento da idéia de que a lingu;gern é o sinônimo dç
estrutura ; para afirmar que ''há estruturas'>! . A linguagem deixa de ser a estrutura
2
LACAN, Jacque s. "O seminário, l ivro 1 5 : o ato psicanalítico" (1 967-8). Inédito.
' Jbid. , aula de 07 de feve reiro de 1 968.
' LACAN, Jacques . O seminário, lirro 1 7: o al'esso da psicanálise ( 1 969-70) . Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1 992, p. 1 1 .
' Ibid . , p. 1 3 .
6
Ibid . , p. 1 80.
O analista, uma vez que ele é alguém que "paga com a sua p essoa'lfl, ou seja ,
que consegue subtrair toda sua subjetividade e emprestá-la como suporte aos
fenômenos singulares da transferência , e, dessa forma, operar, como objeto a, 0
7
Ibid . , p. 3 1 .
8
LACAN, Jacques. "A direção da cura e os princípios de seu poder" ( 1 96 1 ) . Em: Escritos. Ri o de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1 998 , p. 593 .
s1
O sujeito, portanto, não comparece pela fala, mas pela via do ato, e esse fato
decorre da falta de articulação do sujeito a um discurso. Porém, esse ato põe em
jogo os termos que fazem discurso. Com a instauração da experiência analítica é
possível, então, que esse S1 se articule a outro significante, à medida que ele se
encadeie cm uma série de atos. Teremos, então, os termos do discurso do m estre.
Podemos observar que a experiência analítica opera com esses sujeitos de modo a
que o inconsciente se articule em discurso. Observamos, também, que no trabalho
realizado pelo sujeito, nessa clínica, a insistência da repetição do ato remete-nos à
dimensão que não pára de trabalhar para que o simbólico venha se articular a um real
que ainda não faz parte dele. A partir desses elementos teóricos , podemos pensar que
essa insistência é própria da não-articulação do sujeito em um discurso. No encontro
desse sujeito com o suporte significante próprio à experiência analítica deu-se, como
já dissemos, a intervenção de S 1 junto a outro significante, S2 , o que possibilitou o
encadeamento das ações, tornando visível uma lógica significante. Com isso é possível
ao analista ler o surgido dessa lógica e dirigir sua intervenção para que um efeito de
simbolização se produza. Isso completa o discurso do mestre com todos os seus termos.
Ao operar a articulação do inconsciente em discurso, o analista causa esse
significante-mestre, S 1 , que se apresenta na clínica através da dimensão do ato, de
modo a que ele passe a funcionar necessariamente de forma a que, da sua articulação
ao outro significante, S2 , produza-se algo que cumpra a função de significante mestre.
E qual é essa função? É a que define a legibilidade do discurso, nos dirá Lacan". Esse
autor concebe o que torna qualquer texto legível como sendo a introdução do S1 , do
9
LACAN, Jacques. "A direção da cura e os princípios de seu poder" ( 1 96 1 ). Em: Escritos. Op.
cit. , p. 1 80.
Denise Blanc
Psicóloga. Psicanalista. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em
Psicanálise do IP /UERJ . Bolsista da CAPES. Associada ao Corpo Freudiano do Rio de Janeiro.
Doris Rinaldi
Professora do Programa de Pós-Graduação cm Pesquisa e Clínica cm Psicanálise do IP I
UERJ . Professora Adjunta do IP /UERJ . Procientista. Doutora cm Antropologia Social pelo
Museu Nacional/UFRJ . Bolsista de Produtividade CNPq. Psicanalista. Membro da Inter
secção Psicanalítica do Brasil. Autora de A ética da diferença: um debate entre psicanálise e antropologia
(Rio de Janeiro : EdUERJ /J orgc Zahar Editor, 1 996) e de A terra do santo e o mundo dos engenhos:
estudo de uma comunidade rural nordestina (Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1 980) .
Elisabeth da Rocha Miranda
Psicanalista . Mestre pelo Programa de Pós-Graduação cm Pesquisa e Clínica cm Psicanálise
do JP/UERJ . Membro de Formações Clínicas do Campo Lacaniano.
Elisabeth Freitas
Psicanalista. Mcstranda do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica cm Psica
nálise do IP/ UERJ. Membro da Letra Freudiana do Rio de Ja�eiro.
Filippo Olivieri
Psicanalista. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação cm Pesquisa e Clínica em Psicanálise
do IP/UERJ .
Luciano Elia
Professor Titular de Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ. Coodenador-Adjunto
do Programa de Pós-Graduação cm Psicanálise e Coordenador do Curso de Especialização
cm Psicanálise e Saúde Mental do mesmo Instituto. Psicanalista. Membro do Laço Analítico
Escola de Psicanálise.
Sonia Alberti
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Pesquisa e Clínica em Psicanálise do
IP / UERJ . Professora Adjunta do IP / UERJ . Procientista. Doutora em Psicologia pela Uni
versidade de Paris X, Nanterre. Psicanalista. Membro de Formações Clínicas do Campo
Lacaniano do Rio de Janeiro e da Associação Fóruns do Campo Lacaniano. Autora de Esse
sujeito adolescente (Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1 999, 2ª ed. ) e organizadora de Autismo
e esquizofrenia na dínica da esquize (Rio de Janeiro : Rios Ambiciosos, 1 999) .