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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


DEPARTAMENTO DE MÚSICA

JANAINA ROCHA AVANZO

CAMARGO GUARNIERI: BIOGRAFIA E ANÁLISE DE DUAS CANÇÕES


DOS CINCO POEMAS DE ALICE

São Paulo - SP
2018
O presente trabalho faz parte da avaliação da disciplina Música Brasileira e
pretende reunir aspectos da vida e obra do compositor Camargo Guarnieri, assim como
fazer uma breve análise das duas primeiras canções do ciclo Cinco Poemas de Alice,
composto em 1954.

BIOGRAFIA

Mozart Camargo Guarnieri nasceu em 1907 na cidade de Tietê – SP. Fazia parte
de uma família de músicos e, por isso, começou a aprender música dentro de casa desde
cedo. Quando mais velho, sua família se mudou para São Paulo junto com ele, para que
ele pudesse continuar os estudos de música com outros professores. Assim, foi aluno de
nomes como Ernani Aguiar, que lhe deu aulas de piano, e Lamberto Baldi, regente italiano
que lhe deu aulas de composição.
Um dos grandes nomes que conheceu também em São Paulo, no ano de 1928, foi
Mário de Andrade, que serviu de grande influência intelectual para o compositor,
apresentando-o a novas temáticas e preocupações artísticas que se refletiriam em sua obra
futura. Ambos mantiveram boas relações por muitos anos e, em 1935, Mário de Andrade,
como primeiro diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, convidou Guarnieri
para ser regente do Coral Paulistano e da Orquestra Sinfônica de São Paulo, grupos para
o qual também compôs peças.
Em 1938, Guarnieri foi selecionado para uma bolsa de estudos em Paris durante
dois anos, onde conheceu vários professores renomados e teve a oportunidade de compor
várias peças novas. Entretanto, com o início da Primeira Guerra Mundial, e juntamente a
uma falta de dinheiro para se manter na Europa, o compositor teve que retornar mais cedo
ao Brasil.
De volta ao país, tendo perdido seu posto de regente dos grupos que antes regia,
Guarnieri se manteve de forma incerta, até que surgiram oportunidades de intercâmbios
culturais com os Estados Unidos, fazendo com que ele fosse o principal compositor
brasileiro a fazer sucesso no meio musical norte-americano. Entre 1942 e 1943, pôde
passar 6 meses nos EUA, época na qual também se voltou para suas primeiras
composições sinfônicas.
Assim, em 1945, Camargo Guarniei estreia sua Sinfonia n° 1 em cinco capitais
sul-americanas, estabelecendo-o como um compositor renomado. Em 1952, o escritor
Luiz Heitor publica o livro 150 Anos de Música no Brasil e dedica um capítulo inteiro a
Guarnieri, provando sua grande reputação na época. A década de 1950 também marca o
início da Escola Paulista, uma escola de composição nacional que tem o compositor
como um dos principais professores. Entre seus alunos destacam-se nomes como Osvaldo
Lacerda, Kilza Setti, Lina Pires de Campos, Marlos Nobre e Almeida Prado.
De 1956 a 1960, o compositor passa a atuar também como assessor musical do
Ministério da Educação e Cultura no governo do Juscelino Kubitschek, trazendo
propostas para o estudo musical em conservatórios. Sua reputação internacional se
manteve também por muitos anos, e era sempre convidado a participar de concursos
internacionais como jurado. Em 1975, Guarnieri se tornou o diretor da Orquestra
Sinfônica da Universidade de São Paulo, a OSUSP, cargo que ocupou até o fim da sua
vida.
Pouco antes de sua morte, em 1993, recebeu o prêmio “Gabriela Mistral” de Maior
Compositor das Américas. É o segundo compositor brasileiro mais executado em todo o
mundo, e seu acervo musical, composto de mais de 700 obras, pode ser encontrado no
Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

CARTA ABERTA DE 1950 E ESTÉTICA MUSICAL

Em 7 de novembro de 1950, Camargo Guarnieri publicou a Carta Aberta,


documento em que se mostrava totalmente contra o uso do dodecafonismo e defendia
uma estética musical nacionalista. A carta era um ataque direto ao grupo Música Viva,
surgido em 1939 e sob liderança de Hans-Joachim Koellreutter, que defendia o uso de
técnicas de vanguarda para a criação de uma nova estética brasileira.
Para Guarnieri, o dodecafonismo não era um movimento artístico, mas puramente
intelectual, e, advindo da Europa, não representava a música brasileira da melhor forma,
música esta que deveria buscar suas influências nas raízes folclóricas. Se abria assim uma
discussão sobre o tipo de nacionalismo que deveria ser praticado na música, relacionada
à identidade nacional e as influências da modernidade europeia.
Guarnieri, junto a compositores como Francisco Mignone, figurava como o
principal representante da corrente nacionalista, iniciada por Mário de Andrade e partir
da semana de 1922. Em suas composições, ele não buscava aplicar os elementos
folclóricos sem modificação, mas justamente utilizar suas influências para criar novas
ideias musicais. Portanto, o uso do dodecafonismo não fazia sentido nesse contexto
porque não se relacionava em nenhum aspecto das formas musicais nacionais já
existentes.
Tanto para Guarnieri como para Mário de Andrade, a melhor forma de se tornar
universal não seria o uso de técnicas internacionais. Pelo contrário, a busca pelas formas
nacionais seria a melhor maneira de se colocar no mundo cosmopolita (EGG, 2006).
Assim, a carta abrange mais questões intelectuais de influência do que questões de
técnicas composicionais, atrelando-se muito pouco às características do dodecafonismo
em si, mas questionando sua importância estética em nosso país.
Assim, esta carta demonstra as disputas por espaço musical da época. Guarnieri
escreve a carta no sentido de estabelecer a escola nacionalista e seu espaço de atuação,
diferenciando-a da escola criada pelo grupo Música Viva e sua busca por técnicas de
vanguarda (EGG, 2006). Interessante, então, observar a carta como uma questão política-
ideológica e menos como uma questão de técnica composicional, já que o próprio
Guarnieri faz uso do dodecafonismo em algumas peças. E comenta: Não estou mudando
de ideia. Vivo no presente e minha música é atual. Você pode reconhecer que a música é
minha, mas a personalidade de minha música está sempre ligada ao presente".

ANÁLISE DAS CANÇÕES

A partir das características biográficas e estéticas apresentadas acima, será


realizada a análise de duas canções dos Cinco Poemas de Alice: “Pedido” e “E Agora...
Só me Resta a Minha Voz”. Este ciclo foi escrito em 1954, no auge da carreira do
compositor, utilizando os poemas escritos por sua irmã, Alice Guarnieri, e publicados em
1947 no livro Ternura. As cinco canções apresentam características muito semelhantes
em geral, mas, para este trabalho, serão focadas as duas primeiras, com o intuito de
realizar uma análise mais profunda.
Logo de inícios é fácil observar que o modo mixolídio (sétimo grau da escala meio
tom abaixo) e o modo do nordeste (além do sétimo grau meio tom abaixo, apresenta o
quarto grau meio tom acima) estão bastante presentes em suas composições. Em “Pedido”
o modo do nordeste aparece em alguns momentos, com o uso do Mi bemol e do Si natural
na região de Fá Maior. Assim, as peças tem um centro tonal, mas são utilizadas mais de
uma escala ao redor desse centro. É importante salientar também que as mudanças de
modo são sempre bruscas, pouco preparadas, dando maior surpresa e variabilidade na
música.
Outra característica da primeira canção é o uso inegável de melodias em terças
paralelas feitas pelo piano, as chamadas terças paulistas ou caipiras. Elas aparecem
durante toda a música e denotam a influência que Guarnieri tinha das músicas que ouvia
ainda na sua infância em Tietê – SP. Mesmo quando a textura da música muda, a relação
de terças se mantém entre as duas mãos do piano.
Para ambas as músicas é interessante observar o quanto a melodia da voz se
mantém bastante modal ao longo de toda a peça, enquanto cabe ao piano dar as
características renovadoras em relação a escalas, texturas e rítmica. Interessante observar
isso justamente em relação à história do compositor, que estudou piano por muitos anos
e trabalhou como pianista por muito tempo em sua juventude. Assim, a familiaridade com
o instrumento o permite desenvolver mais suas características idiomáticas.
As características rítmicas também são importantes nessas duas canções. Em sua
música aparecem com frequência ritmos como os cocos e emboladas, além do uso
irrestrito de síncopas. Em sua tese sobre a música para piano de Guarnieri, Grossi (2004)
cita a dissertação de Lutero Rodrigues (2001) que coloca “os ostinati sempre
desempenham o papel de acompanhamento, ou ainda mais, o de ambiência dos temas,
dando-lhes também uma base de sustentação harmonicamente definida que lhes permite
toda e qualquer liberdade melódica” (p. 45).
A importância do ritmo se mostra principalmente na segunda música, em que o
piano apresenta um ostinato na mão direita em torno das notas Mi e Si, que se segue ao
longo de toda a música, fazendo uma “cama” para a linha melódica da voz. Enquanto
isso, a mão esquerda apresenta melodia cromática descendente, guiada por condução de
vozes e que dá o colorido da música. O jogo de ritmo que segue também é uma maneira
de densificar a música, cuja textura vai aumentando para acompanhar o peso apresentado
pelo texto: “Só me resta a minha voz, faze por ouvi-la / Ela irá avisar-te do meu abrigo /
Porque só tu, mesmo de muito longe / Sabes entender meu pensamento”.
Outra característica muito relevante e que salta aos olhos nessas duas canções é o
uso predominante de textura polifônica. Guarnieri teve forte influência de compositores
predominantemente polifônicos, como Charles Koechlin, que deu à sua música uma
grande linearidade (GROSSI, 2004). Assim, se observa o cuidado com a condução de
vozes e com as relações entre as diferentes linhas melódicas, tanto do piano quanto do
canto, gerando interações mais complexas texturalmente e harmonicamente.
A obra de Guarnieri, assim como essas canções, também se caracterizam pelo
cuidado com a forma, com um grande uso da forma ABA, que é aqui representada pela
primeira canção, cuja introdução e fechamento seguem a mesma ideia. Há também na
obra do compositor certa liberdade no uso de acordes, caracterizado por acordes mais
densos, com muitos sons simultâneos e dissonâncias. Grossi (2004) enfatiza a seguinte
frase dita pelo compositor em uma entrevista para Lutero Rodrigues: “Eu não tenho
preocupação com tonalidade. Hoje nem me interessa saber o acorde, o que vale é o som
que eu ouço. Aquilo que eu sinto, vou escrevendo” (Rodrigues, 2001, p. 51).
Por fim, é interessante observar a preocupação de Guarnieri com o caráter
expressivo da peça. Em ambas as canções há um grande cuidado para a delimitação das
dinâmicas, que se relacionam diretamente com a construção da frase musical e, assim,
com a expressividade da música. Para ele, a emoção era um fator essencial da
performance de suas obras (GROSSI, 2004).
Assim, é possível ver como essas duas canções, apesar de únicas, são bastante
representativas de aspectos comuns a grande parte da obra de Camargo Guarnieri. Ao
mesmo tempo, refletem sua busca pela influência folclórica, no uso de modos e polifonias
nacionais, e pela construção de uma escola de composição nacional, já que é possível
perceber relações dessas músicas com composições de seus alunos da época. O estudo
dessas canções também se torna importante para ajudar a entender a história da música
brasileira e os acontecimentos musicais de meados do século XX, assim como os
caminhos que a música nacional seguiu a partir de então.

REFERÈNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOTELHO, Fernando Augusto. Mozart Camargo Guarnieri, ou simplesmente


Camargo Guarnieri. Revista GGN, 2011. Disponível em:
https://jornalggn.com.br/blog/fernando-augusto-botelho-rj/mozart-camargo-guarnieri-
ou-simplesmente-camargo-guarnieri

EGG, André. A Carta Aberta de Camargo Guarnieri. Revista Científica / FAP.


Curitiba. 2006, v. 1, p. 1-12.

GROSSI, Alex Sandra. O Idiomático de Camargo Guarnieri nas Obras para Piano.
ANPOM. 2004, v. 10.

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