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Análise do Auto da Alma de Gil Vicente

Antes que se discorra a respeito do Auto da Alma, é importante


introduzir aspectos acerca do momento em que esta obra foi produzida. Esse
momento é o Humanismo, período de transição entre a Idade Média e a Idade
Moderna, ou seja, entre o Trovadorismo e o Classicismo. Nesse período há
também a passagem do feudalismo, que era a estrutura socioeconômica
medieval, para o mercantilismo, em que a atividade comercial e o dinheiro
ganhavam cada vez mais importância, fazendo surgir a burguesia como nova
classe social.
O Humanismo traz consigo uma mudança de paradigma que se
contrapõe ao pensamento artístico-filosófico medieval, marcado pela fé católica
e pelo teocentrismo, bem como pela negação dos prazeres terrenos e a
submissão à Igreja Católica. Embora o Humanismo venha de encontro ao que
se pensava no medievo, esse momento de transição ainda possui traços que
remontam ao período medieval nas produções artísticas, visto que a Idade
Média foi um período que se estendeu por séculos moldando e monopolizando
uma sociedade. As noções medievais acabavam se relacionando com as ideias
renascentistas, o que influenciou os artistas da época, por meio dessa
coexistência de valores religiosos e clássicos.
Como características gerais do Humanismo, tem-se como principal o
antropocentrismo, em que o homem torna-se o centro do mundo, e há a
valorização do ser humano, das suas emoções, ações e pensamentos.
Também é possível encontrar dentro do período humanista: o cientificismo; o
racionalismo; a demonstração da figura humana, suas expressões e detalhes,
baseada nos modelos clássicos greco-romanos; a descentralização do
conhecimento, onde a Igreja perde o monopólio do conhecimento com o
desenvolvimento da imprensa.
A linguagem das produções literárias do Humanismo era baseada na
valorização do ser humano e no universo psicológico dos personagens. O autor
de maior destaque desse período foi Gil Vicente, poeta e dramaturgo
português, que demonstrava em suas obras críticas aos costumes da
sociedade portuguesa, retratando uma imagem fiel do cenário de sua época.
Como características de suas composições, tem-se: sátira social, em que o
conteúdo das obras apresentava um teor moralizante demonstrado através de
humor; uso de alegorias; temas religiosos; texto escrito em versos; exaltação
dos valores humanos e condenação dos vícios da sociedade; crítica à
corrupção dos membros da Igreja; personagens de caráter popular. Gil Vicente
é, também, considerado o criador do teatro português. O teatro vicentino
apresenta aspectos condizentes com a corte portuguesa da época e contém
uma dura crítica a certos costumes e atitudes da sociedade que o autor
verificou em seu tempo, comprovando e corroborando mais ainda o seu olhar
moralizante.
A partir disso, pode-se construir uma análise do Auto da Alma de Gil
Vicente, composição que faz parte do teatro do autor e é repleta de figuras
alegóricas, seguindo os preceitos católicos da época. Nesta peça, A Alma, que
é uma entidade representativa, passa por um grande dilema no qual há
presença do Diabo, que a leva ao mundo dos prazeres terrenos e das
tentações; e do Anjo, que alerta para a necessidade de salvação. De início,
Alma é tentada pela sedução do Diabo e do pecado, mas o Anjo a socorre, o
que faz com que ela permaneça alheia ao mundo material, à luxúria e aos
pecados. Sabendo disso, cabe, então, analisar a peça observando como seus
elementos dialogam tanto com o pensamento existente no período medieval
em declínio quanto com as características da perspectiva humanista.
Logo nos primeiros trechos é possível observar a presença de temas
religiosos e que remetem a salvação divina:
“(...)
dos tormentos
que o Filho de Deus, na Cruz,
comprou, penando.
Sua morte foi avença,
dando, por dar-nos paraíso,
a sua vida
(...)”

“A Sua mortal empresa


foi santa estalajadeira
Igreja Madre:
consolar à sua despesa,
(...)”

Essa temática bíblica e religiosa aqui presente, com alusão à vida eterna
e a espiritualidade e o papel da Igreja, remonta ao pensamento medieval
marcado pela fé católica. Outro ponto que pode ser observado que remete ao
medievo é a ideia de livre arbítrio, mas que apenas um lado é o certo, o que é
evidenciado na fala do Anjo para Alma no seguinte trecho:

“Vosso livre alvedrio,


isento, forro, poderoso
vos é dado
polo divinal poderio
e senhorio,
que possais fazer glorioso
vosso estado.
Deu-vos livre entendimento,
e vontade libertada
e a memória,
que tenhais em vosso tento
fundamento,
que sois por Ele criada
pera a glória.”
Neste trecho é possível perceber justamente essa ideia, quando o Anjo aponta
que o “livre alvedrio” é dado pelo divino, mas para que possa ser feito algo
glorioso. Num trecho anterior ao mostrado acima, o Anjo exemplifica:

“Não vos ocupem vaidades,


riquezas, nem seus debates.
Olhai por vós;”

Remete-se nessa passagem a uma ideia cristã de “vigiai e orai” (Mateus


26:41), ou seja, pressupõe ao indivíduo estar sempre numa cobrança interna,
numa busca por estar sempre atento aos desvios, para que dessa forma se
mantenha no eixo, o que garantiria a salvação. A presença do Anjo como
sendo o responsável pelo direcionamento ideal da Alma, mostrando-lhe o
caminho certo a ser seguido e os preceitos religiosos/gloriosos que devem ser
cultivados é existente em toda a peça.

Outro ponto que se pode observar é que Alma alegoriza a vida e o


indivíduo, na medida em que através de suas questões particulares e
humanas, propriamente ditas, são um reflexo do ser humano. Gil Vicente traz
nas falas do Diabo características que evidenciam as questões do homem que
são universais. No seguinte trecho, o Diabo diz à Alma:
“Quem vos engana,
e vos leva tão cansada
por estrada,
que somente não sentis
se sois humana?
Não cureis de vos matar
que ainda estais em idade
de crecer
Tempo há i pera folgar
e caminhar”

Neste segmento, é possível identificar um teor maniqueísta que revela a


dualidade entre o bem e o mal. Sendo assim, as questões que remetem aos
prazeres e aos desejos humanos são vistas como pecaminosas, ainda que
inerentes ao ser humano, que, enquanto um ser vivo, pretende desfrutar
desses desejos. É o que pode ser observado no seguinte diálogo do Anjo com
a Alma:

“ANJO Que andais aqui fazendo?


ALMA Faço o que vejo fazer
polo mundo.
ANJO Ó Alma, is-vos perdendo!
Correndo vos is meter
no profundo!”

A partir desses trechos, é possível perceber que o autor traz para o


cenário da peça como elemento humanistas a existência do hedonismo,
característica essa que aponta para o prazer do ser humano. Assim, nota-se as
questões psicológicas e o indivíduo como o centro, não mais a Igreja. Mas que,
sendo o livre, o homem deve se dispor a viver buscando o que garantirá sua
plenitude e salvação, que é o que configura a visão do poeta.

Com base no exposto, pode-se concluir que a temática do Humanismo


se faz presente na obra, uma vez que Alma corresponde não só à vida, mas ao
ser humano em sua completude, o que indica que nós possuímos traços que
valorizam o prazer e que dão margem para a luxúria. Por outro lado, todas
essas questões são tidas como pecaminosas, pois o indivíduo deve se manter
sempre no caminho “sagrado”, desviando-se o mínimo possível, tendo em
mente o temor de ir ao inferno e ao encontro com o Diabo, o que é
proporcionado através de uma vida centrada nos prazeres terrenos.

Em suma, a obra é completamente marcada pelo caráter dicotômico


entre esses dois universos (o céu e o inferno). A visão psicológica de Alma
representa a humanidade, as nossas indagações do que possivelmente seria
certo ou errado. Ao final da peça, quando Alma seguiu o Anjo e a ordem foi
reestabelecida, é o indício de que o caminho a ser seguido é o de encontro a
Deus e a Igreja, o que remonta à visão medieval ainda existente naquele
momento.

REFERÊNCIAS

ABDALA JR, Benjamin; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da


Literatura Portuguesa. São Paulo: Ática, 1982.
SOUZA, Warley. "Gil Vicente"; Brasil Escola. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/literatura/gil-vicente.htm. Acesso em 29 de julho
de 2021.

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