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MÉTODO E AXIOMAS NEOCLÁSSICOS E A CRÍTICA MÍOPE DA

HETERODOXIA

GT 6 – Economia Política e História do Pensamento Econômico

Enoque Fôro de Oliveira1

RESUMO
Este texto basicamente faz uma síntese da discussão entre a ortodoxia neoclássica e a heterodoxia da ciência
econômica acerca de alguns conceitos muito utilizados na disciplina: racionalidade e equilíbrio geral. A proposta
vai no sentido de apontar equívocos de autores da heterodoxia acerca destes conceitos e acerca da própria
tradição neoclássica. São elucidados os sentidos dos axiomas neoclássicos e comparados com o sentido presente
na argumentação de textos heterodoxos. A metodologia empregada na construção deste foi a leitura de artigos e
elaboração de recortes dos argumentos utilizados por ambas as correntes de pensamento em seus textos, para
comparação, reflexão e crítica acerca das controvérsias envolvidas nesta discussão. A heterodoxia tem muitas
críticas a fazer ao que é postulado pela escola neoclássica, no entanto, um exame sobre a origem dessas críticas
revela a profunda incompreensão dos autores desta corrente acerca dos conceitos neoclássicos e da própria
historiografia epistemológica desta escola.

Palavras-chave: Racionalidade. Equilíbrio Geral. Axiomas neoclássicos. Heterodoxia.

1
Graduando em Ciências Econômicas – Universidade Federal do Pará. E-mail: enoque20oliveira@gmail.com .
1 - INTRODUÇÃO

Para que um campo do conhecimento alcance o status de ciência, ele precisa fazer uso
de métodos e através destes elaborar teorias que expliquem a realidade. O método é
importante e imprescindível porque só com a sua utilização é possível julgar se um
conhecimento é científico ou não. O método estabelece quais critérios devem ser observados
no processo da pesquisa e que tipo de conhecimento será produzido. Desta feita, ao se
apresentar uma teoria, há como verificar se ela merece tal classificação observando-se se para
sua elaboração foram atendidos os requisitos estipulados pelo método utilizado, bem como
que tipo de teoria é (se das ciências físicas e naturais, se das ciências sociais, ou exatas, e
etc.). O método indutivo, por exemplo – bastante usado nas ciências naturais, exige que sejam
observadas e registradas todas as variações em um dado objeto para só então, após se verificar
o que permaneceu inalterado, possa-se concluir o que é aquele objeto e quais suas
características. Inclusive, como sempre apresentará variações se considerado em diferentes
tempos e espaços, nunca se poderá chegar a uma verdade absoluta sobre o objeto, de acordo
como o método indutivo. Mas, então, a partir desta regra, há como comparar o processo de
elaboração de uma teoria em ciências naturais com aquilo que método apregoa. Caso o
cientista natural não tenha registrado o objeto quando apresentou uma determinada variação,
digamos, em sua cor, consistência ou temperatura, sua teoria não terá nada a dizer sobre o
objeto naquelas circunstâncias ou aquilo que dirá será falso em vista de não ter dados a
respeito, e, logo, é incompleta. Porém, neste caso ela o é por não ter atendido ao próprio
método que se propôs a seguir. Neste caso, pode ser descartada como teoria.
Na ciência econômica o aspecto teórico-metodológico se expressa através de suas
formas de pensamento: ortodoxia x heterodoxia. A primeira utiliza como abordagens
metodológicas o instrumentalismo e poperrianismo (LISBOA, 1998b, p. 2) que corroboram
para a elaboração de modelos que buscam prever a realidade até um certo ponto. As
abordagens instrumentalista e de Karl Popper são céticas quanto à capacidade humana de
compreender o real em sua totalidade, por isso os modelos. Já a segunda utiliza uma
abordagem que recebe influência de vários métodos como o Historicismo, o Materialismo-
dialético e até o método dedutivo. Segundo Bresser-Pereira (2009, p. 165), o método
heterodoxo ou da macroeconomia keynesiana é o histórico-dedutivo. Este, por sua vez,
consiste na observação da realidade histórica para se identificar padrões na manifestação dos
fenômenos sociais, econômicos e políticos. A partir destes padrões são elaboradas previsões
ou tendências e volta-se à observação da realidade para verificar-se como estas se
concretizam. A título de teoria, por tarte da ortodoxia tem-se a Teoria do Equilíbrio Geral que
estabelece a propensão da economia a igualar ou estabilizar os níveis de oferta e demanda dos
bens, pelo menos a curto prazo, como veremos. Por parte da heterodoxia tem-se o Princípio
da Demanda Efetiva elaborado por John Maynard Keynes, segundo o qual as economias
podem apresentar períodos de desnivelamento entre oferta e demanda, com a segunda sendo
escassa ocasionando desemprego e crises. Sob essas circunstâncias, e de acordo com este
Princípio, o Estado deveria intervir provocando o aumento de renda (realizando de obras
públicas, baixando a taxa de juros, gerando déficits fiscais com empréstimos para injetar na
economia), o que elevaria o nível de emprego e geraria a recuperação econômica.
Comumente encontra-se textos heterodoxos tecendo duras críticas ao método ortodoxo
e a seus princípios e teorias. No entanto, pelo menos como será defendido neste texto, essas
críticas ocorrem por uma incompreensão por parte da heterodoxia econômica acerca do que é
a tradição neoclássica (ortodoxia) e acerca do que significam seus axiomas. A primeira seção
trata dos modelos utilizados pelos autores neoclássicos e da discussão acerca do equilíbrio
geral. Faz-se uma relação entre o método neoclássico e os modelos, na tentativa de mostrar
como o uso destes é justificado pelas premissas filosóficas e metodológicas das quais a teoria
neoclássica se vale. Na sequência toca-se no tema do equilíbrio geral, acerca de como a
heterodoxia desconhece a produção científica neoclássica a respeito deste conceito. A
segunda seção aborda o axioma neoclássico da racionalidade dos agentes demonstrando que
este nada tem a ver com o entendimento dos heterodoxos acerca do que dizem ser a
racionalidade para a tradição neoclássica. Na maioria das vezes fazem uso de um espantalho
apenas para criticar os autores ortodoxos. E, na terceira seção, tenta-se desconstruir outro
equívoco heterodoxo: o de que a escola neoclássica serve à ideologia liberal. Como é
mostrado neste tópico, algumas correntes dentro da tradição neoclássica são favoráveis ao
pensamento liberal, porém dentro da mesma existem outras contrárias a essas correntes. Logo,
tal diversidade não permite que se faça, pelo menos não sem ressalvas, a relação que a
heterodoxia pretende entre teoria neoclássica e o (neo)liberalismo.
2 - A JUSTIFICATIVA METODOLÓGICA DOS MODELOS NEOCLÁSSICOS E A
DIVERSIDADE DE CONCEITOS DE EQUILÍBRIO GERAL

Em relação ao método utilizado pela teoria neoclássica podemos destacar a influência


que recebeu da abordagem de Karl Popper e do instrumentalismo, conforme aponta Lisboa
(1998b). Para Popper o conhecimento produzido sobre um objeto se estuda é sempre parcial,
não sendo possível se chegar ao entendimento dele por completo devido às variações que
apresenta ao longo do tempo: “Popper compartilha com os autores instrumentalistas o
ceticismo sobre a possibilidade de compreensão do real e a crítica ao positivismo lógico: todo
conhecimento é necessariamente conjectural não sendo jamais possível demonstrar que a
verdade é conhecida.” (LISBOA, 1998b, págs. 7-8). Acordando com essa premissa, o
instrumentalismo coloca a apresentação de qualquer teoria como apenas uma tentativa de
reprodução da realidade. Por conta de ter esta visão filosófica e epistemológica, a teoria
neoclássica lança mão da elaboração e aplicação de modelos para compreensão da realidade,
haja vista que estes funcionam como uma representação apenas:

“Do ponto de vista metodológico, parece-me que a tradição neoclássica combina


elementos instrumentalistas com regras de inspiração popperiana que procuram
evitar as armadilhas convencionalistas. (...). Obviamente, todo macroeconomista
sabe que não há um único bem ou agente na economia, ou que há diversos exemplos
de tecnologias com retornos crescentes de escala. A resposta de diversos autores
neoc1ássicos a estas críticas é sistematizada na abordagem metodológica
instrumentalista proposta por Friedman: toda teoria é necessariamente uma distorção
e simplificação do real, não sendo possível uma construção teórica realista. Neste
caso, deve-se avaliar os diversos modelos não segundo o seu realismo, posto que
nenhum modelo o é, mas sim segundo a sua capacidade de previsão. Desta forma, se
a hipótese de existência de um consumidor representativo produz resultados

compatíveis com os dados empíricos, este deve ser o modelo utilizado. ”

(LISBOA, 1998b, págs. 31-32).

Ou seja, para esta tradição em economia vale utilizar modelos se eles demonstrarem
em algum grau uma compatibilidade com a realidade, não havendo necessidade de serem
realísticos, pois nenhuma forma de conhecimento o é. Então, o que define se um modelo é
correto é sua capacidade de fazer previsões, se os resultados que apresenta são similares até
um certo ponto àquilo que se manifesta na economia real.
A teoria neoclássica apresenta modelos de equilíbrio geral para explicar como os
mercados e as escolhas dos agentes funcionam. Estes modelos recebem muitas críticas dos
heterodoxos que consideram os mesmos como descolados da realidade por conta do alto nível
de matemática que incorporam ou porque trabalham com restrições determinadas:

“Os economistas parecem dar de ombros às mágoas da gente leiga, ainda que


instruída e letrada nas coisas da ciência. Prosseguem impávidos, construindo os seus
“modelos”, errando mais do que acertando as suas previsões, lançando
recomendações e julgamentos peremptórios sobre as políticas econômicas, em geral

sugeridas, ou até mesmo conduzidas por outros economistas. ” (BELLUZZO,


2014).

“Os economistas clássicos ou políticos não tinham dúvidas de que seu objeto era o
sistema econômico, e estavam cientes das limitações que tal definição impunha a
suas pesquisas. Os economistas neoclássicos mudaram gradualmente essa visão.
Como seu modelo básico de sistema econômico – o modelo do equilíbrio geral – era
radicalmente abstrato, tinha pouca utilidade para explicar as realidades econômicas

concretas.” (BRESSER-PEREIRA, 2009, p. 172)

No entanto, Lisboa (1998) aponta para o fato de que não existe um único conceito de
equilíbrio usado pelos neoclássicos A bem da verdade, o entendimento mais recente de
equilíbrio dentro desta tradição difere bastante daquele concebido pelos clássicos e pelos
primeiros neoclássicos. No início, compreendia-se o equilíbrio geral como um período
permanente de estabilidade entre os níveis de oferta e demanda na economia, porém, com o
passar tempo isto foi sendo modificado para um conceito mais dinâmico e restrito ao curto
prazo. Todavia, os heterodoxos quando tecem suas críticas restringem-se a este conceito mais
antigo de equilíbrio, como se ignorassem as renovações ocorridas dentro da teoria
neoclássica:

“Afinal, há alguma hipótese que caracteriza o hard core da tradição neoclássica? O


uso de equilíbrio? Mas qual conceito de equilíbrio? Como discuti em Lisboa (1998,
seção 8), o conceito de equilíbrio sofreu diversas transformações fundamentais ao
longo da primeira metade deste século, sendo virtualmente abandonado do centro da
tradição neoclássica o conceito de equilíbrio de longo prazo, tal como utilizado
pelos autores clássicos e primeiros autores neoclássicos .” (LISBOA, 1998b, p.
13).

“A existência de tantos modelos alternativos, distintas noções de equilíbrio e


formalizações do processo de decisão individual, reflete a existência de diversos
grupos com visões conflitantes dentro da própria tradição neoclássica: alguns
autores acham as noções existentes e dominantes de equilíbrio, equilíbrio de Nash e
expectativas racionais, perfeitamente adequadas e consideram as pesquisas que
procuram desenvolver noções alternativas de equilíbrio equivocadas; outros
acreditam que a noção de racionalidade utilizada na maioria dos modelos é adequada
e suficientemente geral para tratar quase todas as questões que os críticos em geral
discutem; outros, ainda, acham que as teorias da decisão existentes são
problemáticas porque elaboradas para jogos estáticos e isto explica alguns resultados
paradoxais obtidos em jogos dinâmicos; muitos, talvez a maioria dos economistas
neoclássicos, acreditam que os mercados tendem a ser eficientes na maioria das
vezes; alguns estão dispostos a aceitar o receituário dos manuais para alunos de
doutorado como expressão da fronteira da ciência; outros passam a maior parte da
profissão apontando os limites e fragilidades dos argumentos mais usuais. É nesta
diversidade e pluralidade de pensamento que, talvez, resida a origem do sucesso

desta tradição” (LISBOA, 1998b, p. 21).

“No que se refere ao conceito de equilíbrio, a crítica heterodoxa usualmente se


dirige a um conceito que não o utilizado pela tradição neoclássica recente.
Equilíbrio, segundo alguns destes autores, implicaria em alguma forma de
estabilidade temporal das variáveis endógenas, o que, como discuti neste ensaio e
em Lisboa (1998, seção 7), de forma alguma é correto. Também não é correto
propor que fazer tradição neoclássica implica utilizar algum conceito específico de

equilíbrio” (LISBOA, 1998b, p. 31).

3 - A RACIONALIDADE NEOCLÁSSICA PARA ALÉM DO QUE A HETERODOXIA


ENTENDE

A tradição neoclássica trabalha com a premissa de que as escolhas dos agentes


econômicos são racionais. No entanto, há um abismo entre o que esta tradição de fato
estabelece como racional e o que a heterodoxia entende como racionalidade neoclássica.
Segundo Lisboa (1998a), o que define uma escolha como racional é a capacidade do agente
de discernir entre duas ou mais opções. Se ele consegue enxergar e entender que há a opção A
e a opção B (ou ainda mais uma C) para serem escolhidas, e escolhe uma efetivamente, então
sua escolha foi racional. Não interessa para esta definição se a escolha lhe trará
arrependimento ou prejuízos no futuro porque a sua racionalidade já foi determinada lá atrás,
no processo, quando ordenou em uma escala de preferências as opções que tinha, e não no
fim, quando verificou o quanto sua escolha lhe agradou:

“A expressão ‘o agente é capaz de ordenar estas opções ...’ significa:

• dadas duas opções quaisquer A e B em F o agente prefere A a B, ou prefere B a A,


ou o agente está indiferente entre A e B;
• se o agente prefere A a B e B a C então o agente prefere A a C.

Toda relação de preferência que satisfaz estas duas restrições é dita racional.”

(LISBOA, 1998a, p. 8)

No entanto, se observarmos o que Prado (1995) demonstra entender por agentes


racionais em seu texto “A Teoria Neoclássica (pura) e a Teoria Neo-austríaca frente ao legado
cartesiano”, facilmente perceberemos a confusão que faz ao extrapolar o conceito de
racionalidade para algo sobre o qual a teoria neoclássica não se responsabiliza. O autor
assevera que o “agente racional” neoclássico é um ser dotado de toda informação possível
acerca das opções que tem e que por isso sua escolha sempre será a melhor que poderia
realizar. O problema, no entanto, está em que Prado compreende que por causa disso o agente
é imune a erros ou escolhas mal sucedidas, ou ainda que, caso haja infinitas opções, o agente
por ser racional conhece cada uma delas:

“Na medida em que eles são racionais, em segundo lugar, ela (a teoria
neoclássica)2 se obriga a pensá-los como perfeitamente racionais. Isto é, ela
precisa supor que os agentes sabem tudo o que precisam saber para tomar decisões
bem determinadas. Assim, tem de admitir que eles conhecem as suas preferências,
as suas dotações, todos os bens trocados no mercado e os seus preços, ainda que
não tudo (eles não conhecem, por exemplo, as preferências dos outros agentes).
Ademais, a racionalidade neoclássica é objetivista, pois ela supõe que o
conhecimento do agente é correto, ou seja, imagina que ele corresponde
exatamente aos fatos. Dito de outro modo, os agentes aí descritos por axiomas não

2
Grifo meu.
estão limitados por qualquer ignorância relevante e não cometem erros

cognitivos.” (PRADO, 1995, págs. 4-5).

Está claro que a definição de racional exposta por Lisboa em momento algum se
expande para além das duas condições que estabelece, em uma tentativa de dizer se a opção
escolhida ainda será a preferida no futuro. A teoria neoclássica considera a possibilidade do
agente se arrepender da operação escolhida, sem, no entanto, deixar ser racional por causa
disso: em um primeiro momento o agente tinha um conjunto x de opções A, B e C, e, tendo a
capacidade de preferir uma a outra, escolheu a A. Se no futuro surgir a opção D ou o agente
passar a achar que a opção C teria sido melhor, isto apenas significa que podendo escolher
entre A, B, C e D ou novamente entre A,B e C, o agente escolhe D, no primeiro caso ou C, no
segundo. Ou seja, não importa se o agente mudou de ideia depois acerca de sua escolha, o que
importa é que novamente havia um conjunto de opções a serem escolhidas, e preferindo uma
a outra o agente faz sua escolha (“D seria melhor”, “C teria sido melhor”). As condições para
que a escolha seja racional são atendidas, nada tendo a ver com a consequência dessas
escolhas. Como explica Lisboa:

“Outro exemplo usual que, aparentemente, violaria a hipótese de racionalidade seria


a escolha de decisões inconsistentes ao longo do tempo: o agente hoje escolhe uma
opção da qual se arrepende amanhã. Uma vez mais, esta possibilidade é inteiramente
compatível com a hipótese de racionalidade. Esta hipótese apenas impõe restrições
sobre as relações de preferência em um dado momento de tomada de decisão: ‘hoje
tenho estas opções disponíveis e sou capaz de escolher a que prefiro’. Não há
qualquer restrição, no entanto, sobre as minhas preferências em algum outro
momento, que podem ser radicalmente distintas, ou mesmo inconsistentes com as

minhas preferências atuais.” (LISBOA, 1998a, págs. 8-9).

Então, se a teoria neoclássica admite a possibilidade do agente realizar uma má


escolha e vir a se arrepender amanhã, como ela poderia chamar de agente racional aquele que
“sabe de tudo que precisa saber”, aquele que “conhece ... todos os bens trocados no mercado”,
ou ainda que agentes racionais seriam aqueles que “não cometem erros”, como Prado diz que
a teoria neoclássica coloca? A resposta é que a ela não chama de agente racional para esse
tipo de sujeito. Prado, assim como outros autores heterodoxos, é que fazem esta confusão por
não compreendem o conteúdo que criticam.
É possível ainda citar mais um equívoco deste autor sobre a racionalidade neoclássica
em outro texto seu, desta vez o intitulado “O caráter monológico da racionalidade
neoclássica”. Neste, Prado argumenta que o conceito neoclássico de racionalidade coloca o
agente econômico como um sujeito isolado no mundo que não sofre influência ou não avalia
acerca das escolhas dos outros agentes:

“Segundo a teoria neoclássica, o indivíduo decide como agir na esfera econômica


consultando somente a si mesmo: dada a restrição orçamentária e a regra de
otimização que segue, o agente só precisa examinar os seus desejos cristalizados em
estruturas coerentes de preferências ou em funções utilidade para saber que opção
deve escolher. Ora, por que é assim? (...). Veja que a ação e a decisão podem
depender de um processo interativo e reflexivo, seja do sujeito com outro sujeito,

seja do sujeito consigo mesmo (...).” (PRADO, 1996, p. 9)

Este entendimento nada tem a ver com a racionalidade neoclássica propriamente dita.
Segundo esta tradição, a racionalidade do agente não apenas o permite considerar que há
outros agentes escolhendo no mercado, como a sua própria escolha depende
fundamentalmente das escolhas desses outros:

“A teoria neoclássica, como entendo, se desenvolve a partir da revolução


marginalista e se caracteriza por dois princípios básicos:

• em uma sociedade de mercado os agentes tomam decisões independentemente de


qualquer coordenação a priori;
• cada agente toma suas decisões tendo em vista o seu interesse, as suas expectativas
sobre o futuro e sobre o que espera que os demais agentes irão fazer.

(...). A dificuldade óbvia: o que é melhor para cada agente fazer depende do que ele
espera que os demais agentes irão fazer e, em particular, do resultado do conjunto

das decisões individuais, os preços de mercado” (LISBOA, 1998a, p. 16).

Logo, a racionalidade neoclássica nada tem de monológica, como diz Prado. Resta
saber de onde o autor tirou essa ideia.
Outro aspecto interessante de se ressaltar acerca da racionalidade dos agentes é que a
teoria ortodoxa não estabelece que todos os indivíduos são capazes de aplicar conhecimentos
altamente técnicos no processo de decisão para o fim de realizar a melhor escolha. No
entanto, por uma pequena falta de atenção é isto que muitas vezes é entendido. O que a teoria
diz é que o agente faz uma escolha conforme as restrições que lhe são dadas – existindo
apenas A e B, ele não pode escolher C, ou preferindo A a B, e B a C, não pode preferir C a A.
Porém, ao se realizar cálculos sofisticados levando em conta as mesmas restrições, se chega a
um resultado que é idêntico ao do agente, que escolhe sem fazer cálculo algum. Por conta
dessa igualdade de resultados é que se diz que os agentes racionais fazem uso da matemática
em seus níveis mais complexos no momento da escolha, e não que porque eles tem realmente
essa capacidade. Não tem. (LISBOA, 1998a, p. 10).

4 – MAINSTREAM ECONÔMICO (ESCOLA NEOCLÁSSICA) E


(NEO)LIBERALISMO: DESCONSTRUINDO OS MITOS

Os economistas heterodoxos ainda acusam a teoria neoclássica de fazer parte de algum


plano das elites capitalistas defensoras do livre mercado para perpetuação da ideologia liberal
na economia e na política:

“Há alguns meses, Paul Krugman perguntou: "Por que os economistas erraram
tanto?". A razão principal foi que os economistas "mainstream" adotaram o método
hipotético-dedutivo, que é próprio de ciências metodológicas como a matemática
(...). Isso lhes permitiu matematizar a teoria econômica, usar cálculo diferencial e
integral e, assim, dar-lhe uma aparência científica, mas, com essa roupagem
matemática, a teoria ortodoxa estava justificando o velho "laissez-faire" que sempre

foi origem de crises e mais crises.” (BRESSER-PEREIRA, 2010.)

O primeiro equívoco desta crença é não observar que a última coisa que elites
econômicas desejam é a concorrência ameaçando seus lucros. Logo, como podem ser a favor
do livre mercado se neste elas não receberiam nenhum tipo de proteção contra os concorrentes
a não ser àquela advinda de sua própria capacidade de atender com eficiência à demanda dos
agentes econômicos? No entanto, Lisboa (1998) ainda reconhece alguma compatibilidade
entre a teoria neoclássica e a ideologia liberal, porém, destaca que o sucesso desta tradição
dentro da ciência econômica é obra dos próprios resultados que ela alcançou, sobretudo a
partir da segunda metade do século XX. Além disso, ainda argumenta que as escolas
neoclássicas que poderiam ser ditas como favorecedoras do pensamento liberal foram
ofuscadas pelos estudos de outras vertentes também neoclássicas, indicando que se houvesse
tal compromisso com algum status quo, estas últimas não teriam se desenvolvido:

“Há diversos aspectos relacionados à sociologia do conhecimento, a uma certa


concordância com formas hegemônicas de compreensão da realidade, que
certamente são importantes na determinação da escolha do paradigma. Desta forma,
o sucesso da escola de Chicago no debate sobre macroeconomia na tradição
neoc1ássica reflete, em certa medida, uma ideologia liberal. O exato papel
desempenhado por estas questões no sucesso de Chicago pertence à história do
pensamento e à sociologia da ciência. É preciso, entretanto, evitar igualmente a
ingenuidade maniqueísta, que atribui unicamente à sociologia do conhecimento a
influência de Chicago. O fracasso dos argumentos, utilizados pela tradição
macroeconômica anterior, em explicar a crise das principais economias, que se
inicia no final dos anos 60 e começo dos anos 70, levou ao aparecimento de diversos
paradigmas alternativos com os mais diversos fundamentos teóricos. O renascimento
de Chicago deveu-se, ao menos em parte, à capacidade desta escola em produzir
diversos modelos alternativos ao longo dos anos 70 e 80 compatíveis com as
observações empíricas. O desenvolvimento de correntes de pensamento alternativas
à Chicago na tradição neoc1ássica, e que procuram incorporar fundações
microeconômicas distintas na construção de modelos macroeconômicos, revela a
impossibilidade, parece-me, de identificar esta tradição a algum projeto ideológico,
ou, ao menos, esta identificação é muito mais sutil do que sugere a crítica

heterodoxa” (LISBOA, 1998b, p. 32).

Os autores heterodoxos costumam estranhar que a teoria neoclássica tenha tanta


relevância no meio acadêmico, haja vista as limitações e falhas que dizem que ela apresenta.
Geralmente, apontam um “demasiado” uso da matemática, ou o conceito de homo
economicus, ou o de equilíbrio geral como a causa da falta de realismo da teoria neoclássica:

“Enquanto no nível de graduação os manuais continuam basicamente a ensinar a


boa teoria macroeconômica keynesiana, a maior parte da teoria macroeconômica das
expectativas racionais ensinada no nível pós-graduação tem pouca utilidade prática.
Como reconheceu um eminente macroeconomista neoclássico, Gregory Mankiw
(2006: 42), resumindo sua própria experiência em Washington, a macroeconomia
“científica” definitivamente não é usada pelos formuladores de políticas; o que eles
usam é essencialmente a macroeconomia keynesiana. Em suas palavras: “A triste
verdade é que a pesquisa macroeconômica das últimas três décadas teve apenas um
impacto limitado sobre a análise prática da política monetária”. Teve, no entanto,
importância prática no processo de desregulação dos sistemas financeiros que levou

à grande crise do sistema bancário de 2007-2008 .” (BRESSER-PEREIRA,


2009, págs. 164-165)

Lisboa (1998), no entanto, aponta para o fato de que nenhuma das objeções colocadas
pelos heterodoxos é contrária ao conteúdo da teoria neoclássica. Estes insistem em tais
críticas por, como é defendido desde o começo deste texto, não conhecerem a própria teoria
neoclássica. O que resta, então, aquele que ataca seu oponente sem mesmo saber quem ele é
(?):

“Ao contrário da crítica heterodoxa, não me parece que a cheia do


mainstream deva-se a um projeto ideológico, como aponta Ganem
(1996), ou a defesa de alguma forma de política econômica liberal,
ou qualquer outro fator programático. Sobretudo, não me parece
haver qualquer argumento heterodoxo que seja incompatível com os
princípios centrais da tradição neoclássica. A regra
metodológica/retórica do jogo, no entanto, é o abandono de alguma
teoria apenas quando é proposta uma teoria alternativa com maior
grau de falseabilidade capaz de explicar os fatos explicados pela
teoria anterior e algum fato novo adicional. Infelizmente, parece-me,
este desafio foi ignorado pela heterodoxia, que, no melhor dos casos,
se satisfaz em apontar os limites dos modelos neoclássicos auxiliares
existentes e estabelecer princípios genéricos de uma teoria ideal que
jamais se realiza. Talvez o destino inevitável da heterodoxia seja
correr da "cheia" que, persistente, arrogante e imperialista, invade os
nichos que se imaginavam fora do alcance neoclássico. O fracasso da
crítica que desconhece o seu inimigo é a surpresa com a casa
tomada, e, sobretudo, a necessidade permanente de reinventar,
justificar e diferenciar o seu objeto de estudo.” (LISBOA, 1998b, p.
34).

O engodo heterodoxo em atacar à teoria neoclássica, e, muitas vezes, o pensamento


econômico livre mercadista, termina por deixar estes autores cegos para contradições em usas
próprias palavras. Bresser-Pereira, por exemplo, no último trecho de seu texto há pouco
citado, concorda com Mankiw que os aplicadores de políticas econômicas (policymakers) tem
há décadas usado a teoria (neo)keynesiana para guiar a economia dos países. No entanto, em
2008, a culpa da crise financeira foi da teoria neoclássica que não tem influência nas políticas
macroeconômicas há pelos menos 30 anos.

5 – CONCLUSÃO

O debate aqui apresentado é uma das principais expressões do aspecto teórico-


metodológico e conceitual em ciência econômica. Tanto heterodoxia quanto ortodoxia tem
seus repertórios analíticos e suas críticas à outra corrente. No entanto, através deste tentou-se
lançar um pouco mais de luz sobre o que de fato são alguns conceitos neoclássicos, bem como
mostrar como alguns equívocos heterodoxos acerca destes conceitos podem ser combatidos.
A teoria neoclássica com seu método instrumentalista-popperiano e seus axiomas da
racionalidade e do equilíbrio geral apresentam várias peculiaridades. Em Lisboa (1998b)
apresenta-se as nuances do pensamento neoclássico, e argumenta-se que o conteúdo da maior
parte das críticas heterodoxas é algo já contemplado nas transformações pelas quais a tradição
neoclássica passou ao longo do tempo. Ou seja, se conhecesse e estudasse melhor aquilo que
critica, a heterodoxia entenderia e até dialogaria mais com a ortodoxia econômica. No
entanto, aquela ainda prefere ater-se a uma velha opinião formada sobre tudo no que diz
respeito à teoria neoclássica.
A associação feita pela heterodoxia sobre o mainstream e um projeto de político de
fortalecimento da ideologia liberal também é uma visão equivocada. Por se tratar de um
momento histórico em que o neoliberalismo ganhava protagonismo em governos pelo mundo,
certamente, deve-se considerar a influência desse fator no interesse dos economistas em
pesquisar os efeitos de políticas que favorecem a lógica de mercado. No entanto, além dessa
correlação, o fato é que os estudos de autores neoclássicos conseguiram explicar bastante as
causas das recessões e das altas inflações que se tinha em várias economias àquela época. As
hipóteses e modelos neoclássicos ajudaram a resolver muitos problemas econômicos reais,
além de terem se mostrado bastante compatíveis com os dados empíricos. Ou seja, a tradição
neoclássica teve importância e utilidade prática demais para a ciência econômica e para as
sociedades para que fosse relegada ao ostracismo só para evitar uma crítica frágil de outra
escola.
6 – REFERÊNCIAS

BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Os tropeços da ciência triste. Carta Capital. 2014. Disponível
em: https://www.cartacapital.com.br/revista/783/os-tropecos-da-ciencia-triste-7567.html .
Acesso em: 03/02/2018.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Por que os ortodoxos erram tanto? Folha de S. Paulo.
2010. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0802201006.htm . Acesso
em: 03/02/2018.

_________ Os dois métodos e o núcleo duro da teoria econômica. Revista de Economia


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LISBOA, Marcos de Barros. A Miséria da Crítica Heterodoxa. Primeira parte: Sobre as


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_________. A Miséria da Crítica Heterodoxa. Segunda parte: Método e Equilíbrio na


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