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Campinas
2019
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2019
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AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Maza, pela relação leve e produtiva que construiu comigo e
com todas as orientandas. Pelas risadas, pelas broncas necessárias e pelo exemplo de coragem
e ética, por não fugir da luta e por ser a voz de tantas crianças e afásicos que não têm vez. Você
revoluciona a vida de todos que passam por você.
À Sônia Sellin Bordin, pelas valiosas contribuições dadas no período em que co-
orientou essa pesquisa.
Aos professores Sírio Possenti e Judith Righi-Gomes, pelo debate produtivo e pelas
contribuições em minha banca de qualificação.
A todos os funcionários do Instituto de Estudos da Linguagem que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a viabilização desta pesquisa.
A todas as crianças que frequentaram o CCazinho e suas famílias, em especial LP,
criança que acompanhei na graduação e no mestrado e EF, que ainda acompanho. Obrigada pela
confiança e por me darem esperança de que um dia teremos um mundo com menos rótulos e
mais diversidade.
Aos meus pais e minha irmã, por sempre me motivarem para a vida acadêmica,
cada um a seu modo. Obrigada por rechearem minha infância e adolescência de escrita e de
leitura e pelo incentivo para os estudos. Não teria chegado onde cheguei sem vocês.
Ao meu companheiro Enrico, que acompanhou toda minha trajetória acadêmica,
que não me deixou desanimar nem desistir, que me ajudava a recuperar a confiança e a
motivação nos momentos difíceis. Obrigada por ser minha força e por ter me feito acreditar em
mim. Você foi mesmo um achado! Obrigada também pela revisão e formatação desta Tese
inteira, por toda ajuda quando as palavras me faltavam e pelas horas e dias que passou me
ajudando a terminar tudo a tempo, seja por compreender quando eu precisava parar tudo para
escrever, seja para por a mão na massa para a formatação.
A todos os meus familiares, que sempre estiveram na torcida e sempre acreditaram
em meu potencial. Obrigada aos meus avós, tios e primos por todo o carinho e incentivo.
Às minhas amigas do grupo de pesquisa Afasia e Infância, Júlia Dias, Bruna
Castropil, Bruna Garcia, Tayná Povia, Laura Muller, Patrícia Aquino e Betina não apenas pelos
debates sobre nossas pesquisas, mas por todas as risadas que demos juntas durante os cafés, os
jantares e todos os outros momentos que compartilhamos. Vocês tornaram tudo mais leve!
Agradeço, especialmente, a amiga Betina, que esteve comigo desde o começo da trajetória
6
acadêmica, com quem dividi sonhos, alegrias, medos, momentos de desespero e também muitas
risadas, seja na UNICAMP, seja nos congressos nos quais ela sempre foi companheira!
Às minhas amigas da graduação e da vida: Geovana, Flávia, Débora, Mariana,
Marina e Rômulo pelo apoio, pelas risadas, por ouvir meus desabafos e por me lembrarem que
tudo acabaria dando certo.
À minha amiga Cecília, que também dividiu comigo as pressões da produtividade
acadêmica. Obrigada pelas risadas, pela companhia nos protestos e nos jantares.
Aos meus colegas da Fundação Bradesco, que, cada um a seu modo, sempre me
apoiaram no percurso de escrita da minha tese.
Ao Paulo Mucci, que, mesmo sem saber, é um dos responsáveis por eu não ter
desistido da carreira acadêmica e de ser professora. Você sempre foi para mim um exemplo de
ética, honestidade, empatia e de que a escola pode ser um lugar diferente. Espero um dia ser
pelo menos um pouquinho do profissional que você é.
Aos meus alunos, que, sempre interessados em minha pesquisa acadêmica,
comemoraram comigo os artigos publicados, as apresentações nos congressos e tantas outras
vitórias. A educação que vocês têm direito é uma das principais motivações para a escrita dessa
Tese. Que possamos estar sempre juntos na luta por nossos direitos.
Ao meu aluno João Pedro Garcia, que quase todos os dias, quando eu entrava em
sua sala de aula, me perguntava: “Professora, como está sua Tese? Já terminou? Já era pra ter
terminado”. Obrigada não só pela cobrança motivadora, mas pelo exemplo de dedicação que
você me dá todos os dias. É por conta de meninos como você que eu sei que o futuro que nos
aguarda será melhor.
A todos os professores que, mesmo em meio ao cotidiano familiar e profissional
caóticos em que vivem, encontraram um tempo para participar de minha pesquisa colaborando
com as entrevistas.
RESUMO
ABSTRACT
This thesis is developed within the discursive oriented neurolinguistics and takes as its
main object of reflection the role of teacher education in the process of pathologizing the
constitutive difficulties of reading and writing. A bibliographic survey showed that teacher
education is marked by a clinical approach (HORA, 2011) that expects a standard student, does
not accept diversity and transfers into the pathology área certain difficulties that often or are
constitutive of the learning process, or are social, psycho-affective, cultural or pedagogical. In
order to investigate whether this view remains contemporary, semi-structured interviews were
conducted with public and private school teachers working in the brazilian elementary school
I. The analysis of these data allowed us to understand how the clinical approach has perpetuated
itself over the years in initial teacher education and, above all, continued education- and how it
operates nowadays, especially in the role played by neurosciences or neuroeducation. Finally,
this research analyzes the recent government attacks against education materialized in the new
literacy policy published in 2019, which imposes the phonic method for literacy and determines
that the theoretical apparatus that will underpin this practice must be the cognitive sciences.
The ivestigations, oriented bay the ND, claim that understanding how medicine played a leading
role in the debate about school difficulties is essential to unveil the pathologization process,
which has been one of the justifications for the failure of school in contemporary times, as well
as to build a counter discourse that answers to it.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO
1
O acompanhamento dessas crianças está protegido pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências
Médicas da UNICAMP (CEP: 326/2008)
2
Dissertação de mestrado: À procura de um diagnóstico: reflexões neurolinguísticas (MOUTINHO, 2014).
13
3
Assim como Soares (2016) no livro Alfabetização: a questão dos métodos, fundamento a opção por utilizar o uso
das duas formas masculino/feminino (professora alfabetizadora / professor alfabetizador) na área de alfabetização.
Conforme a autora, o uso do feminino seria o que deveria ser adotado tendo em vista a realidade brasileira – o que
já é verificável na maior parte dos textos da área. Entretanto, do ponto de vista linguístico, o uso da forma
masculina acontece porque esta forma considera, no caso de uma referência a um grupo de pessoas dos dois
gêneros, como na designação de profissões, um gênero neutro, não marcado, uma generalização que estabelece
independência entre o gênero gramatical e o sexo. Essa opção não significa, porém, que nesta Tese se ignore a
distribuição por gênero nas diversas etapas da educação (desde a educação infantil até o ensino superior) e a
problematização a esse respeito, que será, inclusive, abordada aqui.
14
O contato com a teorização da ND foi, para muitos desses professores, uma espécie
de luz no fim do túnel e muitos acabaram, inclusive, solicitando que seus alunos pudessem
frequentar o CCazinho. Foi na observação desse processo e dessa condição de responsabilidade
do professor que surgiram as principais perguntas de pesquisa dessa tese: Por que o professor
busca nas ciências médicas as respostas para as dificuldades dos alunos? A literatura médica
está presente na formação de professores? Se sim, de que forma? Como se caracteriza a
formação do professor na contemporaneidade e que abordagem é dada aos chamados
transtornos da aprendizagem? Que papel tem a formação de professores no processo de
patologização das dificuldades de leitura e escrita?
Primeiramente, para responder a estas questões, a estratégia inicial era fazer uma
análise dos currículos oficiais dos cursos de pedagogia e rastrear a presença da literatura
médica. Entretanto, algumas dificuldades foram identificadas: a constante alternância de
professores e, consequentemente, de abordagens que acontece tanto nas universidades públicas
quanto particulares em uma mesma disciplina e a impossibilidade de rastrear a abordagem dada
aos textos presentes nas bibliografias dos cursos, que pode ser de crítica ou de corroboração.
Assim, essa pesquisa tomou outro caminho: a realização de entrevistas semiestruturadas com
professores de Campinas e região, tanto de escolas públicas quando privadas, nas quais
pudessem resgatar em suas memórias questões de sua formação que se relacionassem com as
dificuldades de aprendizagem e nas quais pudessem também contar sobre como lidam com os
encaminhamentos em sua prática cotidiana.
Apresento, a seguir, a organização desta Tese.
No capítulo I, “Quadro Teórico-Metodológico”, apresento os pressupostos teóricos
e metodológicos da ND e a maneira pela qual as concepções de cérebro, sujeito e linguagem
convocam o pesquisador a situar as dificuldades escolares como resultado de processo histórico
e social que determina sua relação com a leitura e a escrita. Neste capítulo, apresento também
o debate que relaciona o fracasso escolar e a patologização a partir das pesquisas de Patto
(2000), Moysés e Collares (2011) e Coudry (2009), e busco as raízes desse processo na obra de
Foucault (2001) na qual o autor resgata o que chama de medicina classificatória e medicina das
epidemias e nos permite entender como a medicina descarta questões históricas e sociais como
determinantes do sujeito e acaba por reduzi-lo a um corpo meramente biológico, apagando sua
história.
No capítulo II, “Patologização de Dificuldades Normais à Luz da ND”, apresento a
crítica de Moysés e Collares sobre o processo que consolidou a Dislexia como patologia e a
15
como esta última é a que mais abarca o tema dos transtornos de aprendizagem, sobretudo na
problematização que apresento sobre o avanço das neurociências sobre a educação. Analiso
também algumas fontes de pesquisa apontadas pelos professores sobre os transtornos de
aprendizagem, como páginas em redes sociais, a mídia online em geral e revistas impressas.
Para finalizar o capítulo, problematizo à luz da ND a afirmação comum a todas essas instâncias
analisadas sobre a necessidade do diagnóstico precoce da Dislexia. Para tal, analiso a lista de
sintomas elaborada por Capovilla (2002) e utilizada para embasar o livro Dislexia na Educação
Infantil (TEIXEIRA & MARTINS, 2014).
No capítulo V, “Alfabetização e Novas/Velhas Políticas Públicas”, analiso as
recentes políticas públicas para a alfabetização materializadas no decreto do presidente Jair
Bolsonaro que envolvem a imposição do método fônico, o embasamento teórico nas ciências
cognitivas e o processo de deslegitimação e desmoralização dos teóricos que trabalham com o
conceito de letramento e sobretudo da já consagrada obra de Paulo Freire no que toca à
alfabetização. A discussão trará as críticas da Linguística a respeito do método fônico e como
seus procedimentos e materiais são rasos, superficiais e induzem a criança ao erro, o que pode
disparar um processo de patologização.
Por este caminho, esta Tese visa contribuir não apenas para o debate que
desnaturaliza as respostas para o fracasso escolar, mas também para uma futura reflexão sobre
o contínuo avanço da racionalidade médica na formação de professores quando se trata de
entender as dificuldades escolares. Assim, a reflexão aqui apresentada é um modesto
instrumento de politização do debate sobre as dificuldades escolares porque argumenta em
favor de que a Pedagogia, as Ciências Sociais e sobretudo a Linguística – quando se tratam de
dificuldades de leitura e escrita – assumam o protagonismo do debate, questionem os rótulos
impostos pelo processo de patologização e se mostrem como alternativa para a avaliação e a
intervenção no processo de aprendizagem de tantas crianças com quem a escola ainda fracassa.
17
I
QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO
4
A articulação teórica proposta pela ND abarca diversos autores que se debruçam os vários aspectos que estão
envolvidos na aprendizagem. Ao longo da escrita desta tese e de minha trajetória na área, iniciada em 2008, muitas
vezes recebemos questionamentos sobre o fato de que os principais autores que fundamentam a teorização – Freud,
Luria, Vygotsky – escreveram para crianças de um tempo que não é o nosso, que enfrentavam problemas que não
caracterizam o século XXI. Entretanto, esses autores trataram de questões chave que ainda se fazem presentes no
cenário político-educacional, como a centralidade do interesse para a aprendizagem, como a necessidade de não
reduzir a atenção e outras funções psicológicas superiores a um processo meramente biológico, a soletração como
processo do aprendizado de leitura e escrita, dentre outras. Assim, a ND reconhece que, apesar de escreverem
sobre uma outra época e sobre outros países, a teorização se mostra não apenas atual, mas necessária para a
construção do contradiscurso para a patologização. Ademais, a ND não se restringe a teorização destes três autores
e propõe uma articulação de seus principais conceitos com outros teóricos da contemporaneidade que retomam,
ampliam e atualizam suas discussões.
18
5
Tanto o termo medicalização quanto o termo patologização têm sido usados pela literatura para denominar o
mesmo processo: tratar questões sociais como problemas médicos, orgânicos. O termo medicalização é recorrente
nas reflexões que tratam problemas socioculturais como se fossem da esfera clínica, representados sobretudo pela
pesquisa de Conrad (1992). Moysés e Collares (2011) ressaltam todos os problemas sociais que passam a receber
um diagnóstico médico podem ser considerados medicalizados, ainda que não esteja envolvido nenhuma
prescrição medicamentosa. Para as autoras, esse processo não envolve também a pedagogia, a fonoaudiologia, a
psicologia, etc – as outras áreas incorporadas à clínica - e não apenas a figura do médico e a medicina. O uso do
termo patologização, é recorrentemente usado de maneira mais abrangente, uma vez que não está intimamente
relacionado à medicina: Patto, já na década de 90, usava o termo para tratar da forma como outros agentes sociais
– como a escola, por exemplo – participam ativamente do processo de tratar como patológicas/orgânicas questões
que resultam das organizações políticas, sociais, históricas e culturais. No âmbito da ND, o termo patologização
é mais recorrentemente usado. Nesta pesquisa, tendo em vista que trataremos sobretudo do olhar patologizante da
escola, utilizaremos os dois termos como sinônimos, mas predominantemente o termo patologização será
provilegiado.
19
medicina se constituiu de modo a abarcar preconceitos de raça e classe não pode deixar de ser,
para o professor, um ato político de reconhecimento e denúncia desses preconceitos que,
travestidos de ciência, acabam por legislar sobre quem será capaz ou incapaz de aprender, a
quais alunos o professor deve ou não se dedicar, aqueles que carregarão o estigma da
anormalidade que definirá seu percurso escolar, profissional e psíquico. Tal ato político vai para
além da leitura sobre o tema e do reconhecimento do problema, mas também deve se
encaminhar para uma prática pedagógica renovada, liberta do olhar clínico formatado por uma
medicina pautada na desvalorização e deslegitimação das classes populares, focada nas
potencialidades dos alunos e não nas supostas limitações que a clínica constata e rotula como
patologia. Conhecer essa face da consolidação da prática clínica e do estabelecimento de uma
anormalidade estabelecida historicamente, permitirá também ao professor um exercício de
situar as supostas patologias que justificam as dificuldades escolares – sobretudo a dislexia –
na historicidade do raciocínio clínico e repensar a banalização dos diagnósticos e o recorrente
processo de naturalizar as dificuldades de leitura e de escrita. Em suma, compreender o processo
histórico que conferiu ao professor um olho-clínico (HORA, 2011) e analisar como ele se
mantém e se estrutura na contemporaneidade, objetivo principal dessa tese, é também uma
maneira de reivindicar o papel docente de investigação das dificuldades escolares para além das
supostas justificativas clínicas: reivindicar um olhar para a contemporaneidade, para aspectos
sociais, políticos, culturais, para as políticas públicas de educação e, sobretudo, questões
pedagógicas que determinam a aprendizagem ou as dificuldades de aprendizagem e quando elas
são patologizadas.
Para compreender com mais profundidade esse mecanismo chamado de
patologização ou medicalização do social, passamos, portanto, a uma retrospectiva histórica
que iluminará a reflexão sobre o polêmico enlace entre e a medicina e a educação.
O termo medicalização foi primeiramente postulado e inserido nos estudos das
ciências Sociais por Irving Zola (1972). Para este autor, a medicalização pode ser definida como
uma jurisprudência da profissão médica sobre outras esferas sociais categorizando problemas
desta ordem como pertencentes ao campo médico, podendo ser supervisionados e analisados
apenas por um médico.
Entretanto, é com as reflexões de Michel Foucault (1977) que a medicalização
recebe o tratamento crítico que norteia a abordagem dessa tese. Segundo o autor, o maior perigo
da medicalização vai muito além da interpretação dos problemas sociais como orgânicos: ele
reside no fato de que a ação médica passa a penetrar completamente o espaço social,
20
6
O autor cita uma lista de desvios. Dentre eles, destaco: a loucura, o alcoolismo, a anorexia, a homossexualidade,
a hiperatividade, os problemas infantis de aprendizagem e a obesidade.
7
O autor cita como exemplo, aqui, o uso de calmantes para aliviar e eliminar comportamentos depressivos
consequentes de problemas familiares, pessoais, profissionais, etc.
8
Stanislas Morelé um sociológo francês, autor do livro “A medicalização do fracasso escolar” (La medicalisation
de l’échec scolaire), no qual analisa a maneira pela qual as dificuldades de aprendizagem foram alvo de
patologização na França através de estudos de caso, tomando como premissa de análise a sociologia da educação.
21
e integrado, partindo das obras de Vygotsky (1926; 1934), Luria (1979) e Freud (1891). Para
Vygotsky (1926;1934), quando se trata de estudar o cérebro, é preciso levar em conta a noção
de variação funcional: ainda que o cérebro seja um patrimônio biológico comum a todos, é
inegável a variação de funcionamento e de modos de organização neurológica. O que é central,
na obra de Luria e Vygotsky, é que essa variação é determinada pelas diferentes relações
históricas, sociais e culturais que atravessam e determinam os sujeitos, mediadas pela
linguagem.
Para além da concepção de cérebro, a ND integra uma concepção de sujeito
histórico e social, constituído singularmente pela linguagem (FRANCHI, 1977) e por isso não
idealizado, não encaixado em padrões socialmente impostos ou impostos por concepções de
desenvolvimento humano orientadas pela medicina tradicional, como veremos adiante. Dessa
maneira, para a ND, tanto sujeito quanto cérebro, mente e linguagem são constituídos em um
processo histórico e social na relação com o Outro. É a partir dessa premissa básica que
podemos entender o caráter discursivo da ND: é na interlocução que os sentidos são construídos
e os sujeitos são constituídos, o que nos leva a uma das principais questões metodológicas da
área que é a análise dos dados. A interlocução é, também, um conceito central para a prática
clínica que pretende se afastar dos modelos tradicionais que envolvem a aplicação de testes
padronizados, de exercícios de repetição – que são, inclusive, chamados de exercícios de treino.
Se partimos da construção social dos sujeitos, as histórias particulares de cada um
não podem ficar de fora da análise, bem como “as condições em que se dão a produção e a
interpretação do que se diz; as circunstâncias histórico-culturais que condicionam o
conhecimento compartilhado e o jogo de imagens que se estabelece entre interlocutores”
(COUDRY & FREIRE, 2010, p. 23-24). A linguagem não pode ser, portanto, reduzida à
comunicação: a ND toma a linguagem como construção coletiva, histórica e social, o que
confere a ela um caráter de indeterminação semântica e sintática e exige o contexto para ser
interpretada (FRANCHI, 1977). O sentido não está dado a priori: são construídos no interior do
contexto discursivo e nas práticas de linguagem (COUDRY, 1986), devendo ser levados em
conta obrigatoriamente a história das expressões e o caráter singular da intersubjetividade
estabelecida na interlocução.
Para Franchi, autor cuja concepção de linguagem embasa a ND, a linguagem é uma
atividade constitutiva: tanto de sujeitos, quanto de si mesma. Nesse processo, a análise dos
dados exige uma contextualização de maneira que se explicite a situação de interlocução entre
os sujeitos, os tipos de práticas discursivas (MAINGUENEAU, 1984), as condições de
24
1.2. O cérebro
Para abordar a concepção de cérebro, podemos partir de alguns cientistas que, desde
o final da Idade Média, refletiram sobre o cérebro e deram importantes contribuições para as
mudanças significativas nos estudos da neurologia, das patologias cerebrais e para o processo
de aprendizagem. Entre os séculos XVIII e XIX, destacam-se Pierre Cabanis (1795), Georges
Cuvier (1769) e Franz Joseph Gall (1806). Apesar de serem praticamente contemporâneos,
contribuíram de maneira diferente para os estudos de cérebro. Cabanis foi o primeiro
fisiologista a postular que o cérebro é o órgão do pensamento, assim como o estômago é da
digestão, etc. Curvier, anatomista, apresentou a tese de que as faculdades mentais – não mais
as mesmas faculdades elencadas pela teoria dos ventrículos, mas a percepção e a aprendizagem,
por exemplo – estariam localizadas em áreas específicas do cérebro. Cuvier foi o orientador de
Gall que, por sua vez, dando continuidade e aprofundando as teorias de seu professor, fundou
a frenologia, procedimento de análise que explicitarei brevemente a seguir. Para Gall, a
fisiologia do sistema nervoso central incluiria as disposições morais e intelectuais, que
dependeriam das faculdades inatas e distintas, como a memória verbal, a linguagem, a
calculatividade, a comparação, a benevolência, a capacidade de ter esperança, a consciência, a
destrutividade, a amorosidade, a cautela, etc. Gall relacionava esses traços psicológicos e
funções cognitivas às protuberâncias do crânio, partindo da premissa de que cada uma delas se
localizaria em determinada parte do cérebro e poderia ser detectada a partir da observação visual
e a partir do toque. Assim, Gall relacionou de forma arbitrária a localização de uma faculdade
mental e uma protuberância no crânio: para ele, todas as faculdades, inclusive as que
envolveriam questões morais, seriam inatas e dependeriam do uso e do desuso, do estímulo
para que se desenvolvessem e aumentasse de tamanho no cérebro e mostrassem maior
predominância no comportamento do indivíduo.
Os estudos de Gall foram relevantes para o aprofundamento dos estudos do cérebro
porque, pela primeira vez, a linguagem foi considerada uma das faculdades com representação
no cérebro. Isso teve como implicação uma certa nosologia, ou seja, relação lógica de que uma
patologia ou uma lesão que afeta esta área também afeta, consequentemente, a linguagem. Neste
caso, surge uma afasia. Para Gall, porém, o fato de que a pessoa afásica passa a ter problemas
com a fala, a leitura e a escrita não implica necessariamente no fato de que o que ele chamou
de mentality – o trabalho mental – também estivesse afetado: seria possível a ocorrência de
alterações da linguagem sem o comprometimento severo de outros processos cognitivos. Gall
26
foi o primeiro a estabelecer propriamente a relação entre área cerebral lesada e manifestações
clínicas, anátomo-fisiológicas, de impressões vistas a olho nu na análise da caixa craniana.
Outro marco na história do estudo do cérebro é o estudo de Broca. Broca (1861) foi
o primeiro estudioso das afasias e o primeiro a descrever um caso de afasia motora. Seu
paciente, Leborgne, tinha uma lesão ao pé da terceira circunvolução frontal do hemisfério
esquerdo e sua fala era marcada pela repetição de um jargão – “tantan”. Uma vez que o paciente
apresentava uma questão de linguagem e uma lesão localizada no cérebro, a conclusão de Broca
foi a de que aquela área é a área responsável pela produção da linguagem articulada e postulou
que o pé da terceira circunvolução frontal do hemisfério esquerdo seria, portanto, a sede da
linguagem.
Em 1874, Wernicke relacionou a área de armazenamento da memória sensorial das
palavras à primeira circunvolução temporal e chamou as afasias decorrentes de uma lesão nessa
área de afasia fluente, que depois ficou conhecida como afasia de Wernicke. Também descreveu
distúrbios de compreensão da linguagem verbal em pacientes que mantinham a fluência na
produção. Tanto as hipóteses de Wernicke quanto a de Broca eram, portanto, localizacionistas.
Seus estudos sobre o funcionamento cerebral ainda perduram e são a base da maioria dos
estudos do cérebro. Entretanto, apesar do fato de que ambos estavam desenvolvendo suas
pesquisas praticamente ao mesmo tempo e solidificando o localizacionismo como premissa
para os estudos do cérebro, já despontavam severas críticas a esse raciocínio, essenciais para
compreender a argumentação desta pesquisa.
A principal questão que fazia com que o localizacionismo fosse colocado em xeque
era o fato de que pessoas que tinham afasia de Broca também apresentavam problemas
relacionados à compreensão da linguagem e não apenas de produção. Dentre os críticos do
localizacionismo, convém apresentar sumariamente os principais pesquisadores que
contribuíram para a teorização sobre as afasias e sobre o antilocalizacionismo.
Jackson (1880) foi o neurologista de maior influência para todos os neuropsicólogos
e a maior inspiração de Luria. Para Jackson, afirmar que há uma lesão que perturbaria a fala e
tentar localizá-la é totalmente diferente de afirmar que a fala pode ser localizada no cérebro.
Para ele, a correlação anátomo-clínica explica a fisiologia de uma função, mas não sua
localização. Essa tese posteriormente influenciou a abordagem holística e a gestáltica no início
do século XX. A visão holística, representada aqui por Florence, tinha como objeto o cérebro
das galinhas e o procedimento de tirar dele pequenas partes para verificar posteriormente as
consequências no animal. A conclusão foi a de que não importava qual parte fosse retirada,
27
problemas surgiriam, o que os fez pensar que o cérebro era indiferenciado. Essa teoria inspirou
outras críticas ao localizacionismo que afirmava que o cérebro seria um todo indiferenciado,
sem especialização, resultando em uma visão generalizada do comportamento que exclui a base
fisiológica do cérebro.
Freud (1891) integra a crítica ao localizacionismo quando defende sua tese de
doutorado, As Afasias. Orientado por Charcot, Freud estudou as afasias a partir das questões
simbólicas que notava na fala dos afásicos, observando as marcas subjetivas da afasia. Esse
estudo o conduziu posteriormente à Psicanálise, revolucionando tudo o que se entendia do
funcionamento psíquico. Freud não seguia a concepção holística: tratava de questões motoras
e simbólicas sem desconsiderar a base fisiológica dessas funções e apontou contradições
anátomo-clínicas nas tipologias das afasias. Construiu sua argumentação em torno do fato de
que o localizacionismo dissocia a linguagem e o pensamento.
Head (1861) apresentou uma visão integrativa e sistêmica da atividade cerebral.
Para ele, a afasia não dependeria de centros anatômicos circunscritos: não seria possível afirmar
que há uma afasia motora ou uma afasia sensorial, uma vez que qualquer uma delas, uma vez
constatada, pode revelar dificuldades motoras ou sensoriais. Head afirma, portanto, que a
linguagem é um processo cortical integral que não pode ser separada em seus componentes por
uma causa patológica. Dessa forma, Head abordou do papel da linguagem na cognição e a
colocou como objeto central para a compreensão das afasias e do funcionamento do cérebro.
Os estudos de Head foram fundamentais para que a neuroplasticidade pudesse ser deslocada
para o centro dos estudos do cérebro, bem como entendida como ponto de partida para os
tratamentos de sujeitos com cérebro lesado.
Por fim, Luria (1979) desenvolveu o modelo de funcionamento cerebral que
fundamenta a ND e a argumentação desta pesquisa. A partir da visão integrativa de Head, Luria
propôs uma terminologia específica para compreender o cérebro e estabeleceu a noção de
sistema funcional complexo (SFC). Para Luria, todas as partes são solidárias entre si; se uma
delas é afetada, há um esforço por parte das outras para suprir, da maneira que podem, a função
que foi prejudicada. Luria se opõe também ao associacionismo – as abordagens chamadas
holísticas – já que, para ele, a organização cerebral é resultado do trabalho coordenado de três
unidades funcionais, interdependentes. As funções corticais superiores, de acordo com Luria,
se organizam em diferentes níveis de complexidade e são realizadas pelo trabalho cooperativo
das diferentes regiões cerebrais de um mesmo hemisfério ou dos dois em conjunto. Luria trata
das funções cerebrais em termos corticais porque todas essas funções têm uma representação
28
no córtex, onde encontram-se os neurônios com funções mais sofisticadas e envolvem regiões
corticais e sub-corticais, já que as conexões atravessam o córtex como um todo.
Tratando de conexões que atravessam o córtex como um todo, Luria não concebe a
linguagem e o cérebro como estruturas fechadas e autônomas, que podem ser localizadas no
substrato cerebral, mas que, para ele, fazem parte de um sistema complexo. Para compreender
sua argumentação, a noção de sistema é fundamental: uma vez que há funcionamento integrado
e sistêmico, todas as atividades externas têm, de alguma forma, repercussão no funcionamento
do sistema. Desta forma, Luria mostra a natureza social e singular do funcionamento cerebral
ao apontar que o cérebro não escapa das inflências externas, já que são elas que transformam o
funcionamento cognitivo.
Partindo do princípio extra-cortical e do fato de que as mudanças ocorrem na
estrutura interfuncional da consciência a partir da experiência do homem com a cultura e com
o outro, Vygostky postula sua máxima a respeito do desenvolvimento humano: o aprendizado
antecede e determina o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, conforme
veremos com mais profundidade a seguir. Diferentemente dos localizacionistas, Luria reitera
que essas funções não estão localizadas no cérebro, circunscritas a uma área específica – elas
são, de fato, executadas através da participação sistêmica de grupos e estruturas cerebrais, que
contribuem com o que lhes cabe para a organização do sistema.
Essa retomada sobre os estudos do cérebro, especialmente a partir do estudo das
afasias, permite analisar como a ciência moderna ainda se fundamentou e ainda se fundamenta
nas visões localizacionistas para explicar as dificuldades de aprendizado, conforme veremos
nos capítulos a seguir: procurou-se, através de exames de neuroimagem, encontrar uma lesão
ou uma má-formação que justificasse os problemas de aprendizagem de muitas crianças –
buscando, em seu corpo, uma justificativa para dificuldades que são socialmente produzidas.
Entretanto, conforme veremos, uma vez que não era possível encontrar nada a que se pudesse
atribuir as dificuldades, a hipótese de um problema de funcionamento passou a ser levantada, e
não mais uma explicação neurofisiológica. A compreensão do funcionamento do cérebro como
órgão cujo funcionamento é de base sistêmica e a maneira pela qual o outro e a multiplicidade
de interações que o sujeito/criança trava ao longo da vida determinam esse funcionamento
sistêmico na e pela linguagem é uma das questões centrais para a argumentação proposta nessa
pesquisa e em outras pesquisas feitas no âmbito da ND.
Para Luria, as funções superiores – linguagem, memória, percepção, atenção
dirigida, planejamento, raciocínio intelectual, gestualidade – são desenvolvidas nas múltiplas
29
relações que o sujeito trava: consigo mesmo, com com o outro, com a cultura, com a natureza
etc. É importante ressaltar que essas funções são construídas ao longo da vida do sujeito,
modificadas constantemente pela história, pela cultura e pelas relações sociais que também
estão em constante transformação. Para Luria, esse funcionamento é integrado, envolve todo o
cérebro e convoca todas as áreas, que, por sua vez, para a realização de determinada função,
podem ter um papel mais específico, funcionando como base, e outras menos especializadas,
porém não dispensáveis ao funcionamento sistêmico.
“O cérebro é um órgão que não se vê e que tudo vê. Gerencia um corpo – que
fala, age, respira, come, ama, brinca, aprende, lê escreve, ouvir, tem medo,
raiva etc – presente, datado, localizado. Assim, as ações que comanda se
nutrem desse ambiente historicamente estabelecido, numa relação contínua de
reciprocidade entre ele, o corpo e o ambiente. Cada ação humana aprendida
convoca estruturas e funções específicas (dadas pelo patrimônio da espécie)
que, por sua vez, se relacionam a outras menos especializadas (postas pela
cultura e responsáveis pelas diferenças entre as pessoas), cujo funcionamento
conjunto resulta na ação em questão. Essa relação entre o geral e o específico,
baseada em uma organização hierárquica, exige um trabalho coordenado e
integral de todo o cérebro e sustenta toda a aprendizagem humana.”
(COUDRY & FREIRE, 2005, p. 27)
Coudry e Freire (2005) apresentaram os três blocos elencados por Luria e a maneira
pela qual a escrita convoca esse funcionamento. Retomando as autoras, apresentarei esse
funcionamento enfatizando o papel da linguagem na constituição dos sujeitos e no
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, especialmente a atenção.
Luria agrupa os cinco lobos cerebrais em três grandes grupos, de acordo com a
fução que exercem. O primeiro grupo delimitado por Luria, chamado aqui de Bloco I (BI),
envolve o lobo límbico, abarcando estruturas situadas no tronco cerebral. Apesar se ser estrutura
mais primitiva do ponto de vista do desenvolvimento da espécie, (em relação as funções
superiores neocorticais), é o bloco cujo funcionamento é pré-requisito para todo o
funcionamento mental, já que recebe sangue do coração, controla os hormônios, a neuroquímica
que envolve o cérebro. O troco cerebral é importante para a vigília, o controle do sono, do stress,
do tônus, do estado mental como um todo. A manutenção do estado vigil do cérebro é
responsável pela atenção dirigida, central para o aprendizado. Para as autoras, há dois
momentos em que a atenção dirigida deixa de ter como foco a sala de aula ou a questão que
envolve o aprendizado: “quando há decréscimo da atividade cerebral, por exemplo, em estados
de sonolência ou embriaguez; ou quando o foco de atenção é deslocado por interferência de
necessidades, emoções e desejos, fome, paixão, vontade de estar em outro lugar, preocupação,
30
etc”. (COUDRY & FREIRE, 2005, p. 28). Pode-se mencionar, ainda, a questão do sentido e da
motivação para o aprendizado, que será detalhada adiante, como central para a manutenção da
atenção. Em sala de aula, a criança que se vê impossibilitada de compreender o que lhe é
exposto e se vê fora da espiral9 (VYGOTSKY, 1934) a partir da qual se constrói a
aprendizagem, dificilmente consegue manter a atenção dirigida a um raciocínio ao qual não
acompanha.
A percepção de que não está acompanhando um raciocínio ao qual é exposta, ou
seja, a verificação de que o sentido não se constrói, depende de estruturas mais complexas que,
em conjunto, monitoram o funcionamento do cérebro e compõem o Bloco III (BIII), conforme
veremos adiante.
O Bloco II (BII) é formado pelos lobos occipital, temporal e parietal. São estruturas
situadas sobre as superfícies laterais ou convexidades externas dos hemisférios cerebrais. São
estruturas neocorticais, ou seja, estruturas que foram desenvolvidas tardiamente e que
distinguiram o ser humano do estágio anterior da evolução da espécie. São responsáveis pela
recepção, análise e armazenamento de informações. Três camadas de neurônios, sobrepostas,
formam o BII: a primeira recebe as informações advindas dos órgão sensoriais – visuais (lobo
occipital), auditivas (lobo temporal) e cinestésicas (lobo parietal), a segunda analisa essas
informações e a terceira as sintetizam. Dessa forma, há uma preparação para as ações que serão
realizadas pelo Bloco III.
O BIII também é uma estrutura neocortical e é composto pelo lobo frontal. São as
estruturas situadas sobre superfícies laterais ou convexidades externas dos hemisférios,
responsáveis pela interpretação, avaliação e por fim, sobre o agir sobre o mundo. O BIII, assim
como o BII, também é formado por três camadas de neurônios. Entretanto, o funcionamento
acontece de maneira inversa ao do BII:
9
Na perspectiva de Vygotsky, a criança só consolida novos aprendizados a partir de aprendizados anteriores, de
modo que um depende de outro que é pré-requisito para que um novo aprendizado aconteça. Assim, o aprendizado
acontece em uma espiral que liga o que a criança já sabe e não sabe ainda. Se não tiver esses pré-requisitos, é como
se a espiral estivesse partida e a criança impossibilitada de construir relações, associações e de fato aprender algo
novo.
31
Luria postula, assim, uma visão dialética que envolve cérebro, sujeito e linguagem:
o sujeito é produto do meio, que têm efeito determinante em seu sistema funcional, mas ao
mesmo tempo, o sujeito age sobre o meio. Essa ação se dá, por um lado, de forma restrita à
linguagem, mas por outro, não tão restrita assim, já que também o sujeito age sobre a
linguagem.A partir da noção de sistema funcional complexo, Luria não só incopora os aspectos
culturais, históricos, sociais e subjetivo para os estudos do cérebro, como também atribui a eles
papel central na compreensão do funcionamento normal e patológico do cérebro, demonstrando
que háalterações cruciais na atividade mental humana que decorrem de mudanças das formas
básicas de atividade, como a aquisição de leitura ou uma nova prática sócio-histórica. Luria
ressalta que essas alterações são mais que uma simples expansão de horizontes, mas que
representam novas conexões e possibilidades de novas motivações que afetam radicalmente a
estrutura dos processos cognitivos. As novas mudanças que acontecem na esfera da experiência
social geram, de fato, segundo Luria, mudanças dramáticas na natureza da atividade cognitiva
e na estrutura dos processos mentais. “A atividade cognitiva humana torna-se parte do sistema
mais amplo da experiência humana em geral tal como foi estabelecido no processo histórico da
sociedade, codificado na linguagem”. (LURIA, 1986, p. 215-216)
Na perspectiva da ND, o cérebro, portanto, é constituído pelas ações do homem
sobre a cultura nas quais a linguagem tem um papel fundamental. Para Vygotsky esse processo
de constituição social é chamado de princípio extra-cortical: tudo o que está fora do cérebro
têm uma ação no funcionamento cerebral, o que faz do cérebro um órgão sócio-histórico-
cultural. Luria afirma que, como consequência de novas formas de relacionamento abstrato,
categórico, com a realidade – ou seja, com diversas experiências sociais e culturais – surgem
novas formas de dinâmica mental, que são o que Luria trata como as “mudanças na
autoconsciência da personalidade, que atinge o nível superior da consciência social e adquire
novas capacidades de análise objetiva, categórica, das próprias motivações, ações,
características intrínsecas e idiossincrasias”.
Assim, Luria atribui às mudanças sócio-históricas o papel de criar novas formas de
atividade e estruturas no funcionamento cognitivo, promovendo o que ele chama de avanço da
consciência humana para um novo estágio. (LURIA, 1986, p. 217)
É desta maneira que Luria traz, para o cerne dos estudos do desenvolvimento,
exatamente os fatores que o discurso médico hegemônico se recusa a considerar, conforme
trataremos nos próximos capítulos, por crer que sejam impeditivos para reconhecer as doenças
ou que não sejam determinantes do desenvolvimento: os aspectos sociais e culturais que
32
Partindo dessas reflexões, Vygotsky postula uma de suas máximas sobre a relação
entre a aprendizagem e o desenvolvimento, tema tratado por diversos psicólogos e estudiosos
da educação e ainda discutido na contemporaneidade: para ele, a aprendizagem não é, em si
mesma, desenvolvimento, mas, uma vez organizada a partir da zona de desenvolvimento
iminente de cada criança – que é, conforme dada a historicidade do sujeito considerada por
Vygotsky, singular – a aprendizagem “conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo
de processos de desenvolvimento, e esta ativação não poderia poderia produzir-se sem a
aprendizagem” (VYGOTSKY, 1934 p. 40). O autor trata da aprendizagem, portanto, como
condição necessária e universal para que se desenvolvam na criança “características humanas
não naturais, mas formadas historicamente”.
Luria aprofunda o papel da linguagem na relação estabelecida entre aprendizagem
e desenvolvimento e ressalta o seu papel regulador na constituição dos processos psíquicos,
retomando a reflexão de Vygotsky. O autor cita uma situação simples e cotidiana, na qual a
mãe pede que a criança pegue uma boneca, levante a mão, ou pergunte onde se localiza um
objeto. De acordo com Vygotsky, esse procedimento é essencial para a organização da atenção,
já que permite que ela possa destacar um elemento do vasto conjunto que a rodeia, que planeje
e organize os gestos necessários para cumprir o que foi pedido. Ato voluntário está distribuído
entre duas pessoas: o ato motor da criança começa com a alocução verbal da mãe e termina com
as próprias ações da criança. Na próxima etapa do desenvolvimento, a criança, ao dominar a
língua, passa por dois momentos: no primeiro, ela dá ordens a si mesma, de maneira extensa.
No segundo, essa auto-regulação acontece de forma mais abreviada, na linguagem interior.
O que não se pode perder de vista, nesse processo, é o papel fundamental do adulto:
sem a linguagem de outro, sem que o adulto fale com a criança e organize sua atenção e seu
corpo, pensamento, ações, etc. pela linguagem, os dois momentos, de exteriorização e
interiorização da linguagem, não são possíveis; eles decorrem de formas sociais de
34
comportamento, em um ato prático que a criança executa orientada por um adulto e que vai, ao
longo de seu desenvolvimento, resultar na sua capacidade de auto-regulação, no ato voluntário
livre. Na defesa dessa perspectiva, Luria rechaça o exame do desenvolvimento dos processos
psíquicos como resultados do desenvolvimento biológico, afirmando que devem ser tratados
em outro âmbito, dada a função reguladora da palavra, que, para o autor, não pode ser reduzida
a um mero instrumento de comunicação: além da função cognoscitiva da palavra e sua função
como instrumento de comunicação, há sua função pragmática ou reguladora, a palavra não é
somente um reflexo ou instrumento da realidade, é o meio de regulação da conduta. (LURIA,
1986, p. 95-96)
Partindo das reflexões de Vygotsky, as autoras Coudry, Bordin, Antonio, Silva e
Nakazone (2009)10 ressaltam que, mesmo considerando as diferenças individuais, as crianças
desenvolvem mais ou menos as mesmas características na mesma época, mas o fato de que esse
desenvolvimento aconteça anteriormente ou posteriormente ao desenvolvimento dos demais
não significa necessariamente que exista uma patologia: é preciso investigar que condições
sociais e culturais determinam esse desenvolvimento peculiar. Antes mesmo do nascimento,
para além do desenvolvimento biológico, os bebês são já são sujeitos da linguagem, inseridos
na cultura: a eles são dados nomes, apelidos, expectativas, com eles a família traça planos, e
imagina seu futuro. Os bebês provocam profundas transformações nas vidas de quem cuidará
deles, modificam a realidade a seu redor e a vida emocional, cultural e social da mãe e da família
também os modifica. É possível afirmar que, no âmbito do senso comum, a imagem construída
em torno do bebê está atrelada a dependência, à fragilidade, ao “ser-que-não-aprendeu”, que
não andam e, até mesmo, pela concepção equivocada de que o bebê ainda é um ser que está
fora da linguagem, o que mostra que a linguagem está comumente representada e pela fala,
tomada praticamente como sinônimo de falar as primeiras palavras. Como contraponto a esta
perspectiva, a ND não só toma o bebê como sujeito da linguagem com seu choro, o olhar e,
sobretudo, o balbucio como linguagem, como também enfatiza a relação de construção de
sentido feita pelo adulto em torno das manifestações linguísticas do bebê como condição para
o desenvolvimento.
10
Texto não publicado produzido para fins didáticos na disciplina Linguagem, Diversidade e Patologização na Ed.
Infantil.
35
É possível afirmar que na tenra infância, o adulto responsável pelo bebê é, também,
responsável por tomar o bebê como interlocutor que começa um movimento de atribuir sentido
ao mundo: os cheiros que o rodeiam, as vozes das diferentes pessoas que convivem com ele, o
espaço onde está, o corpo do outro, etc. Desta maneira, retomamos Winnicott (1993), que
afirma que todos os cuidados precoces têm uma relação íntima com o psiquismo da criança e,
posteriormente, já após a tenra infância, com a aprendizagem da leitura, que passa pela leitura
do outro, de si mesmo, da vida e de todos os objetos da cultura. “Em outros termos, nossa vida
mental adquire sua dinâmica própria internalizando a dinâmica da interação socioverbal da
comunidade em que vivemos”. (FARACO, 2012, p. 32)
36
“A criança que mergulha nas práticas de escrita desde a tenra idade alcançará,
por volta dos 5 anos, o momento em que estará madura para se alfabetizar,
adquirindo a chave do sistema gráfico e dominando-o para poder participar com
autonomia dos inúmeros eventos de letramento que seguirão em sua vida
escolar ou não. Já as crianças que vão ter um contato mais efetivo com a escrita
apenas ao entrar na escola exigirão, antes de começar a decifrar o sistema
gráfico propriamente dito, experiências letradoras que lhes tornem significativa
a escrita e despertem nelas a necessidade (e, consequentemente, o desejo) de
aprender. São experiências que antecedem e acompanham o processo de
alfabetização e se ampliam à medida que os alunos vão adquirindo autonomia
nas suas relações com o sistema gráfico.” (FARACO, 2012, p. 13)
37
a esse processo, bem como a ausência desse aprendizado a depender das relações travadas – ou
não – com a criança. Na perspectiva das autoras, portanto, aprender é modificar: se uma nova
percepção ou sensação chega ao cérebro e é reconhecida do Sistema Nervoso Central, ela
dispara uma lembrança. Se é uma sensação ou percepção nova, ela dispara uma mudança, ou
seja, o aprendizado propriamente dito. Assim, somente a partir das lembranças é que são
geradas novas modificações, ou um novo aprendizado. O tempo todo nosso cérebro
neuroquimicamente processa isso. A cada novo aprendizado há um efeito de memória imediata
que dispara os engramas de aprendizagem; isso porque o que já se sabe também entra em
relação. (COUDRY et al., 2009, p. 6)
Nesse sentido, a ND traz para a centralidade dos estudos sobre a aprendizagem a
noção de aprendizado em espiral desenvolvida por Vygotsky. Para o autor, a aprendizagem
acontece em espiral porque, no curso do desenvolvimento, é sempre preciso retomar uma etapa
anterior e, partir do já aprendido, para chegar aos novos aprendizados e gerar, assim, a
modificação estrutural citada acima.
O conceito de espiral tal qual desenvolve Vygotsky, remete, portanto, a outro
conceito pilar da ND, e essencial para as reflexões sobre o desenvolvimento e a argumentação
contra o excesso de diagnósticos de patologias relacionadas ao aprendizado: a
neuroplasticidade. Se a aprendizagem dispara transformações fisiológicas e funcionais no
Sistema Nervoso Central (incluindo, aí, alterações neuroquímicas) que não são permanentes –
já que uma aprendizagem pode, na espiral, modificar uma anterior e ser modificada pela
próxima, há continuidade e transformação constante nas mudanças fisiológicas e cerebrais (é
por isso que o autor afirma que o aprendizado não acontece de maneira contínua, mas sim em
picos e platôs) porque há continuidade e transformação constantes nas relações sociais e
culturais do sujeito. Entretanto, é preciso lembrar que, quanto mais jovem for o cérebro, maior
é a neuroplasticidade e que ela permanece de maneira diferente e em outro ritmo ao longo de
toda a vida, até mesmo na velhice.
O que é preciso, portanto, para que essas mudanças aconteçam, ou seja, para que a
aprendizagem efetivamente aconteça? Para Vygostky, a motivação, ou seja, o interesse do
sujeito por aquilo que lhe é proposto, seja na escola ou fora dela, é condição fundamental para
a aprendizagem. É preciso que a criança esteja imbricada no processo, que deseje aprender, que
sua curiosidade seja despertada, que seja instigada a resolver problemas e desafios, ou seja, que
a zona de desenvolvimento iminente seja criada a partir dos interesses do sujeito. Luria e
Vygotsky chamam esse imbricamento de atitudepara a aprendizagem, que deve ser instigada e
39
despertada pelo outro - no contexto da escola, pelo professor. A noção de atitude proposta pelos
autores embasa uma reflexão por eles desenvolvida que é muito cara à ND e à argumentação
contra a patologização de dificuldades normais: a psicologia e a pedagogia da atenção.
Conforme já apresentado, para Vygotsky (2001), a atenção é uma função superior
e tem, portanto, seu desenvolvimento determinado pelo contexto sócio-histórico em que a
criança está inserida. Vygotsky afirma que a atitude de atenção sempre começa com um caráter
motor: para prestar atenção em algo, seja um gesto, uma música, a leitura de um livro, etc. há
uma reorganização corporal em função da atenção, que envolve ativar ou suspender todos os
órgãos envolvidos no ato de prestar atenção: mudar a posição da cabeça, voltar o corpo ou os
olhos para outro lado, ir para um local onde a atenção seja facilitada (afastar-se de barulhos,
excesso ou falta de luminosidade etc). Assim, para o autor, essas reações preparatórias do
organismo são responsáveis por preparar o corpo para a atenção necessária para a realização de
qualquer atividade e passam por três momentos: a) o estímulo ou impulso, que pode envolver
uma vontade interna ou uma provocação externa, como uma emoção, um desejo, um desafio,
etc; b) a elaboração central desse impulso e c) o efeito responsivo desse estímulo e dessa
elaboração.
Para o autor, inicialmente, atenção apresenta caráter não arbitrário ou involuntário,
caracterizado por Vygotsky como a atenção direcionada a estímulos externos que desperta a
criança por se apresentar como novo. Luria, na mesma direção, aponta que a atenção
involuntária pode ser observada já na criança em tenra idade ou a criança em idade pré-escolar,
já que elas apresentam atenção instável, que rapidamente se perde diante de outros estímulos.
A atenção voluntária está intimamente relacionada ao interior: a questão, neste
caso, não são os barulhos, os objetos externos, o ambiente, e sim o próprio corpo e pensamento,
incluindo as reflexões sobre um livro que lemos, um filme que assistimos, uma memória, o
planejamento antes de começar alguma ação. Assim, predomina, no caso da atenção
involuntária, o reflexo incondicionado e inato, e, no caso da atenção voluntária, o reflexo
condicionado, adquirido nas relações sociais. Assim, todo reflexo condicionado pode ser
modificado, aperfeiçoado: o sistema de atenção é, ao longo de todo o desenvolvimento,
transformado, já que não nasce pronto e não tem caráter estável. Na análise da ND (COUDRY
& FREIRE, 2005; MÜLLER, 2018; MOUTINHO, 2014; RIGHI-GOMES, 2014) a exigência
escolar envolve principalmente a atitude de atenção interna, ainda que não ensine ou não crie
condições para que a criança a desenvolva.
40
Dessa forma, se o contexto familiar também não possibilita esta atitude de atenção,
cria-se conflito na escola já que o comportamento da criança não condiz com o que a escola
espera, “ainda mais levando-se em conta que a atitude de atenção interior se diferencia da
atitude de atenção involuntária ou não arbitrária principalmente pela ausência de reações
adaptativas claramente expressas dos órgãos externos” (MÜLLER, 2018). Esta pesquisa tratará
do tema da atenção com mais profundidade no último capítulo, partindo dos resultados dos
dados obtidos.
1.4. A linguagem
A teorização neurolinguística acerca da linguagem se assenta nos trabalhos de
Franchi (1977), autor que toma a linguagem enquanto instância pública e abrangente,
constituída e constitutiva de sujeitos singulares, determinados historicamente e culturalmente.
Partindo desta concepção de sujeito, alinham-se com a ND os estudos de Freud (1981), Luria
(1979) e Vygotsky (1926; 1934), que apresentam uma visão histórica e funcional do cérebro e
do que é aprender e ensinar a falar, ler e escrever. O movimento teórico é iluminado e ilumina,
ao mesmo tempo o movimento metodológico heurístico através do conceito de dado-achado,
compatível com o paradigma indiciário proposto por Ginzburg (1989).
A concepção de linguagem que sustenta a ND é norteada por uma visão histórico-
cultural, que a toma como trabalho social e historicamente situado e que incorpora, por um lado,
os recursos expressivos da língua e suas regras de utilização e, por outro, prevê que ela se mostre
indeterminada sintática e semanticamente. Tal previsão permite concluir que o sentido não está
previamente dado, mas que resulta, e constantemente se renova, a partir da situação discursiva
e da intersubjetividade que permeia a interlocução. A linguagem é compreendida como um
trabalho coletivo, histórico e social, que produz discursivamente o sistema linguístico de forma
aberta e passível de mudanças:
autor sinaliza que partir dessa premissa para compreender o processo educacional faz com que
o pesquisador/professor não escape à singularidade dos sujeitos, conceito tão caro à ND e
central na construção da contra-argumentação dos discursos patologizantes. Para além da
singularidade, o autor ressalta que não se pode perder de vista que o processo de constituição é
contínuo, ininterrupto e condicionado às práticas discursivas, sociais, culturais e históricas nas
quais o sujeito está inserido. “Trata-se de erigir como inspiração a disponibilidade para a
mudança” (GERALDI, 1991, p. 6) e, sobretudo, tomar a mudança como perspectiva que move
o trabalho com o sujeito: se não há mudança, se o que se pode ou não aprender já está dado pelo
aparato biológico, perde-se o sentido do trabalho pedagógico. É desta maneira que a
interlocução assume um dos papéis centrais na teorização da ND, já que é lugar de constituição
de sujeitos na e pela linguagem:
adiante, nas reflexões de Cagliari (1997) e Coudry (2007, 2009a, 2010) a entrada da criança no
mundo das letras.
Luria (1988) afirma que a história da escrita na criança começa muito antes da
primeira vez que o professor coloca o lápis em sua mão e lhe mostra a forma das letras. Para o
autor, o modo pelo qual a criança aprenderá a escrever, depende, dentre outros fatores, do que
ele considera como o período da “pré-história” da escrita da criança, no qual ela pode vir a
desenvolver técnicas primitivas que se assemelham à escrita, ainda que possam desempenhar
ou não funções semelhantes. É nesse período, de pré-história da escrita, que a criança perceberá
que a escrita desempenha uma função diferente da do desenho, que, por sua forma, evoca o
objeto representado. A escrita é uma representação gráfica que não evoca aquilo que representa,
que não contém nada, em si, que retome o sentido que representa. O fato de que uma criança
percebe esse caráter representativo da escrita já é um dos primeiros passos para que ela
compreenda o que envolve ler e escrever. Tais técnicas são culturalmente elaboradas e podem
explicar as circunstâncias que tornaram a escrita possível. De acordo o autor, é preciso
desenterrar a pré-história da escrita da criança, o que é crucial aos professores, já que é preciso
conhecer aquilo que a criança era capaz de fazer antes de entrar na escola, conhecimento a partir
do qual eles poderão fazer deduções ao ensinar seus alunos a escrever” (LURIA, 1988, p.144).
Portanto, buscar conhecer o que a criança faz antes da escola pode ser uma
possibilidade da descoberta sobre quais são seus principais interlocutores e como estes se
relacionam com a linguagem, com a leitura e com a escrita e como esta relação, por sua vez,
marca o modo pelo qual a criança escreve e lê. Cagliari contribui para a reflexão dessas práticas
letradas não apenas no processo de aprendizagem de leitura e escrita propriamente dito, mas
também na adaptação da criança ao ingressar na escola:
“Uma criança que viu desde cedo sua casa cheia de livros, jornais, revistas,
que ouviu histórias, que viu as pessoas gastando muito tempo lendo e
escrevendo, que desde cedo brincou com lápis, papel, borracha e tinta, quando
entra na escola, encontra uma continuação de seu modo de vida e acha muito
natural e lógico tudo que nela se faz. Uma criança que nunca viu um livro em
sua casa, nunca viu seus pais lendo jornal ou revista, que muito raramente viu
alguém escrevendo, que jamais teve lápis e papel para brincar, ao entrar na
escola sabe que vai encontrar essas coisas lá, mas sua relação com isso é bem
diferente da da criança citada anteriormente. E a maneira como a escola trata
da sua adaptação pode lhe trazer apreensões profundas, até mesmo
desilusões.” (CAGLIARI, 1997, p. 22)
materiais que demandam planejamento de uso e organização no espaço, estratégias que muitas
crianças ainda não conhecem, uma vez que, virtualmente, através dos tablets e computadores,
não são necessárias. Algumas crianças estão, portanto, familiarizadas com habilidades e
estratégias diferentes daquelas que predominam na escola, seja pelo uso da tecnologia ou pela
falta de atividades cotidianas da família em casa que envolvem a leitura e a escrita, o que pode
causar dificuldades de adaptação e até mesmo no processo de aprendizado para elas tão novo.
Não quero aqui, afirmar que crianças de classe alta e baixa passam por um processo igualmente
sofrido de adaptação escolar e que estaria na mesma condição de dificuldades e estranhamento
ao entrar na escola. Ao contrário, quero ressaltar que as dificuldades são variadas e decorrentes
da maior ou menor relação da vida da criança fora da escola com ao que lhe é apresentado em
sala de aula. A permanência ou o enfrentamento dessas dificuldades depende de um olhar atento
do adulto, de investigação da escola sobre o que as crianças fazem antes de ingressar na vida
escolar e de estratégias para que a criança passe a ter contato com o conhecimento privilegiado
na escola.
Além dos pais, são vários os interlocutores da criança, e todos têm um papel
singular em seu processo de aquisição da leitura e da escrita: a família, os amigos, a escola, o
livro, a mídia, as Políticas Educacionais etc. Cada um destes interlocutores, por sua vez, se
inscreve em um percurso histórico-social que molda suas próprias relações com a linguagem e,
por conseguinte, a relação da criança com a linguagem. Em suma, cada sujeito, a partir da
diversidade de interações sociais das quais participa, tem uma relação singular com a linguagem
no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Ademais, dos diferentes contextos
histórico-sociais, desenvolve-se uma pluralidade de variedades linguísticas, dentre as quais,
inicialmente, a criança domina uma.
Segundo Alkmin (2009), as diferentes variedades linguísticas têm sido alvo de
mitos e preconceitos ao longo dos anos, devido a informações desencontradas a respeito do que
é falar bem, do que é falar errado, do que está ortograficamente ou gramaticalmente correto ou
errado. Para discutir esta questão, a autora apresenta, em seu texto, os processos históricos nos
quais estão enraizadas tais informações.
De acordo com a autora, com o fim da velha ordem medieval, uma nova aristocracia
urbana surge e ascende política e socialmente. Seus hábitos se cristalizam enquanto superiores
aos da burguesia, dos artesãos e camponeses: as vestimentas, as habitações, os costumes e,
principalmente, o modo de falar ganham um status de superioridade e elegância perante os
hábitos burgueses, camponeses e provinciais. A variedade falada pela classe social e política
45
dominante passa a ser considerada padrão, verdadeira e correta, enquanto as demais passam a
pertencer à ordem do vulgar, do incorreto. Tal legitimação da variedade linguística da classe
dominante se estendeu ao longo dos anos e, atualmente é representada pela mídia, jornais,
professores, políticos, instituições de ensino (Superiores, Fundamentais e Básicas), o livro
didático, etc, que ditam regras do que seria falar e escrever bem.
No percurso histórico da constituição da variedade padrão, o modo pelo qual os
grupos dominados falavam e escreviam passou a ser considerado errôneo. Analogamente, a
escrita e a fala do grupo dominante passaram a ser consideradas corretas e impostas enquanto
padrão (ALKMIN, 2009). É neste sentido que Possenti (2005) afirma que a escrita não é natural,
mas arbitrária. Como vimos, porém, não é tal arbitrariedade que faz uma variedade melhor do
que a outra, mas sim os preconceitos que permeiam a sociedade em várias esferas, inclusive a
Linguística.
Analisando o modo como se conduz atualmente o processo de alfabetização nas
escolas, o que predomina é a imposição de uma variedade: aquela mais prestigiada e usada
pelos grupos dominantes. Nesse contexto, a variedade da criança não é levada em consideração
para o processo de aprendizado, e mais do que isso: é, para os professores, considerada como
erro cometido pelos alunos, e, em alguns casos, algo da ordem do desvio. Segundo Coudry e
Scarpa,
Sobre esse assunto, Possenti aponta que “talvez muitas crianças deixassem de ser
reprovadas na escola ou, pelo menos, de ser consideradas problemáticas, se seus juízes, os
professores, tivessem informações históricas mais sólidas e – acho que isso sempre vem junto
– uma dose menor de preconceitos” (POSSENTI, 2005 p.30). Esse levantamento de afirmações
defendido pelo autor poderia evitar o processo impactante e, em muitos casos, sofrido pelo qual
muitas crianças passam ao entrar na escola denunciado por Cagliari:
“A criança que entra na escola pode certamente levar um choque, por mais
que os adultos digam que a escola é isso ou aquilo. Se ela for pobre, vier de
uma comunidade que fala um dialeto que sofre discriminação por parte dos
habitantes do lugar onde se situa a escola, seu caso será realmente dramático,
trágico mesmo. Tudo o que ela conquistou até aquele momento será
46
circulam em uma língua. Com relação ao aprendizado da leitura e da escrita, Freud faz as
seguintes considerações:
No que tange à escrita, Freud afirma que uma criança aprende a escrever a partir da
reprodução de imagens visuais das letras de modo a associá-las às impressões cinestésicas
provenientes da musculatura das mãos – chamadas pelo autor de impressões quirocinestésicas
– até conseguir reproduzir figuras idênticas ou muito parecidas (FREUD, 1973, p. 89)
49
De tal modo, aprender uma letra significa reconhecer, em novas imagens sonoras,
visuais e motoras, os sons de palavras já conhecidas. Tal reconhecimento advém de duas
impressões: impressão sonora e motora da fala que nomeia a letra e impressão sonora e motora
do som da letra. Desse modo, o desenvolvimento de tais competências não é autônomo e, para
que uma criança fale, leia e escreva é necessária a presença do outro em relação de sentido com
ela (BORDIN, 2008). Os processos de aquisição da fala, da leitura e da escrita se dão, então,
pela relação com o outro e com outros tipos de interlocutores: a escola, a mídia, as políticas
educacionais, os médicos, etc. Desta maneira, quando uma criança está entrando na escrita, tudo
o que para ela já foi dito pelo outro em uma relação de sentido passa a ser o que já foi ouvido,
e nesse processo se dão novas cadeias associativas, que colocam em relação, segundo Coudry
(2013), o velho e o novo da língua.
As afirmações de Freud nos fazem retomar, portanto, um processo que é comum a
todas as crianças que entram no mundo das letras: no início do processo, a criança se apoia em
sua fala para escrever, ou seja, no velho da língua, para construir a hipótese de representação
da ortografia convencional. Quando a criança percebe que escrever nada mais é que estabelecer
relações entre fonemas e grafemas, é inevitável que tome sua fala como ponto de partida para
a escrita:
como lugar de informação, transmissão de valores, estudo, divertimento, lazer. Esses eventos,
segundo Kleiman, estão na base do processo de escolarização e preparam a criança para a
entrada no letramento acadêmico. A família letrada é para a criança a matriz da discursividade
que a escola pressupõe que a criança terá, como saber responder perguntas retóricas, construir
narrativas, saber falar sobre o que está fazendo, descrever diferentes situações e objetos,
comparar etc. A autora problematiza, assim, o fato de que a escola não introduzirá, para a
criança, diferentes maneiras de falar sobre o mundo, apenas selecionando novos tópicos e
apresentando-se de maneira artificial, como exercício da linguagem e de gêneros formais e
discursivos que a escola conta que a criança já saiba.
Se faz necessário sublinhar algumas das considerações feitas por Faraco na citação
acima e que está relacionada, de acordo com Patto (1990), com grande parte do preconceito que
embasa muitas das justificativas sobre o fracasso escolar nas últimas décadas, especialmente no
Brasil e dizem respeito à criança pobre.
Diversos autores (PATTO, 1990, MOYSÉS, 2001, COUDRY, 2007, 2009a) se
propõem a estudar o senso comum recorrentemente reproduzido nas escolas de que a pobreza
pode causar problemas linguísticos, cognitivos e afetivos, e, sobretudo, o baixo rendimento das
crianças que estudam em escolas públicas. Estes autores reúnem evidências teóricas que
refutam esse senso comum e que apontam à necessidade de revisão dos pressupostos que
orientam as práticas pedagógicas. Considerando para a falta de evidência científica de que a
carência de bens materiais possa interferir no desenvolvimento das crianças e de suas famílias,
os autores mostram a necessidade de justificar cada vez menos as causas dos problemas
escolares com as diversas carências de que sofrem os alunos e de cada vez mais procurá-las nas
ações pedagógicas ultrapassadas e padronizadas. Conforme Patto,
caráter a-histórico, são dissociados da vida, das experiências cotidianas, das entradas para o
mundo das letras que estão presentes no cotidiano das crianças e escolhe-se um caminho mais
longo, marcado pela imposição de regras ortográficas ou gramaticais, pelas frases sem sentidos,
os ditados, as cópias de textos longos e, a aplicação de avaliações padronizadas, e, por fim, a
culpabilização da criança pelo fracasso que não é dela, mas da escola.
Neste ponto da pesquisa, podemos nos indagar sobre o fato de que o excesso de
diagnósticos relacionados a uma patologia de aprendizagem não acomete somente as classes
populares. Inclusive, um movimento mercadológico caminha em direção às classes
privilegiadas envolvendo a aplicação de caros testes padronizados para diagnóstico,
acompanhamentos igualmente caros e regulares para intervenção, a indústria farmacêutica em
alguns casos, a produção acadêmica (publicações e cursos) na área, etc. Assim, o mercado
envolve as classes mais baixas e, em alguns casos, as classes baixas. As classes baixas, quando
não atendidas continuam carregando o preconceito e o estigma de pobre, incapaz, anormal,
criança com dificuldade, dentre outros. Para além de questões relacionadas à vivência da
criança na cultura letrada privilegiada na escola, o que pode estar, portanto, envolvido nas
dificuldades de aprendizagem das crianças de classe privilegiada? Primeiramente, conforme já
assinalado nesta pesquisa, não basta estar em um ambiente no qual há práticas de letramento
que a escola privilegia se não há a mediação do outro entre a criança e esses objetos da cultura.
Retomando a teorização apresentada sobre a tenra infância, Françoise Dolto nos leva a refletir
sobre o que acontece quando o adulto abre mão do papel de mediador:
“Uma criança muito solitária, se for um desses seres precoces que têm muito
cedo a necessidade de se comunicar, pois bem, sua função simbólica cai no
vazio, poder-se ia dizer, como uma metáfora da função digestiva. Ela tem
necessidade de ter elementos para suas percepções, mas elementos que façam
sentido para um outro que escuta os mesmos elementos perceptivos. Por
exemplo, uma criança que é deixada no berço, na sacada, no jardim etc. Pode
ficar muito bem, por que não? Mas é necessário que existam, em compensação,
muitos momentos de cumplicidade divertida, ou, pelo contrário, de brigas com
a mãe na hora em que estão se comunicando. Senão, o que acontece? “É um
menino muito bonzinho, não dá nenhum trabalho”. E, depois, vai deixando a
criança assim durante um ano no berço – já vi acontecer isso. Ela não chora nem
pela mamadeira. Quando a põem em sua boca, ela toma. Essas crianças são
como um saco que aceitam qualquer conteúdo: elas tomam tudo, isso lhes é
suficiente. Elas vivem uma vida tão imaginária que não tem mais nada a ver
com os humanos, sua linguagem foge às palavras humanas.” (DOLTO, 1999,
p. 12)
A criança que não é tomada como interlocutora pelo adulto fica, assim, fora do
sentido, apartada das práticas letradas que a rodeiam. Não basta que a criança veja a família
54
lendo, escrevendo, utilizando aparatos tecnológicos que envolvem a leitura e a escrita. Não
basta que a criança tenha disponível a ela uma vasta gama de recursos materiais que fazem parte
da cultura letrada e que são elementos constitutivos e anteriores ao processo de aprendizado da
leitura e da escrita, como livros, papéis, lápis, brinquedos, tablets, jogos, etc. É preciso que o
outro estabeleça uma relação de sentido com a criança que envolva a leitura e a escrita: a criança
precisa ser levada a olhar para o livro, suas imagens, letras, formato, capa, textura. É preciso
que alguém desenhe com ela, dê sentido a seu desenho. É preciso que alguém brinque com ela,
dê sentido ao brinquedo, construa a narrativa do brincar, amplie suas possibilidades de diversão,
frustração, compreensão, angústia, criatividade, etc. É preciso que ela seja levada a ler e
compreender o mundo, o espaço que a rodeia, os lugares que visita eventualmente e o sentido
que eles têm em sua vida, os gêneros textuais que a rodeiam (as propagandas, a lista do
supermercado, as embalagens dos produtos que consome, os jogos do celular e do computador,
a reportagem televisiva, a narrativa dos filmes, etc). É preciso que o outro organize sua rotina
e a situe no tempo e no espaço, o de sua casa, ou o espaço escolar, etc.
Fora dessa relação, a criança fica apartada das relações de sentido que ela não
consegue estabelecer sozinha e que, entretanto, é esperado que ela demonstre ter, tanto pela
família, quanto pela escola. A família não pode abrir mão de seu papel de agência de letramento,
conforme apresentamos com Kleiman. Isso não significa, entretanto, uma pedagogização das
relações familiares. Significa o estabelecimento de uma relação na qual a criança é tomada
como interlocutora que dá sentido ao mundo na relação com os adultos. Abrir mão dessa relação
têm um grave impacto não apenas afetivo, mas, como vimos, no aprendizado da leitura e da
escrita e ao longo de todo o percurso escolar. Parece-nos estranho apontar a necessidade do
vínculo familiar e falar sobre a possibilidade de que o adulto não exerça seu papel fundamental
na construção da relação com o simbólico da criança. Entretanto, temos visto, tanto nas
avaliações realizadas no CCazinho quanto nas tendências teóricas de estudos psicanalíticos e
pedagógicos que esse papel se perdeu nas últimas décadas e o uso da tecnologia portátil tem
um papel importante nessa perda.
Entretanto, não quero, aqui, reproduzir a afirmação cristalizada no senso comum de
que os pais não dão atenção aos filhos ou que as crianças passam praticamente todo o tempo
disponível que têm concentradas apenas na tecnologia: é preciso ir além e tentar responder a
alguns questionamentos. Como a superexposição à tecnologia na tenra infância ou na infância
impactam a constituição do sujeito e o aprendizado da leitura e da escrita? Para essa resposta,
convocamos as reflexões da psicanalista Jerusalinsky (2016) sobre a constituição da criança na
55
era virtual. Jerusalinsky afirma que são muitas as mães que buscam ajuda na psicanálise ao
constatarem que cuidar de um bebê ou de uma criança é trabalhoso e, segundo a autora, a queixa
das mães não está relacionada a falta de um saber sobre como cuidar do corpo, da alimentação
ou da higiene, mas sim da posição psíquica de estar disponível ao bebê. Progressivamente, após
o estabelecimento do vínculo, a mãe passa a oferecer objetos que substituam a satisfação que o
bebê tem em contato com o corpo da mãe, “objetos que passem a representar a relação do bebê
com o outro (paninhos, chocalhos, brinquedos).
Para a autora, uma das consequências disso é a criança se tornar expectadora do próprio
brinquedo, sempre esperando para assistir como ele pode se mexer, o que ele vai falar, se vai
rir, chorar, etc. Dessa maneira, o brinquedo perde a função determinante ressaltada por
Vygotsky de disparador de criatividade. O autor afirma que já na primeira infância podemos
identificar processos de criação que se expressam melhor nas brincadeiras. Por exemplo, o uso
de objetos como a vassoura para imaginar que cavalga, a alternância de papéis discursivos nas
brincadeiras (brincar de casinha e simular a mãe, o pai, os filhos), imaginar uma narrativa de
guerra e se imaginar um soldado, um marinheiro, etc. Para o autor, as crianças reproduzem
muito do que viram e as brincadeiras infantis são um eco do que a criança viu e ouviu no mundo
do adulto, mas, justamente por serem um eco, não se reproduzem de maneira exata como
aconteceram na realidade. Para o autor, há uma nova elaboração criativa das impressões
vivenciadas, na qual se constrói uma realidade nova que responde às aspirações e aos anseios
das crianças sobre suas próprias vidas e possibilitam não apenas a criatividade, mas o
desenvolvimento da narrativa e, sobretudo, o aprendizado nas relações sociais com outras
56
crianças e com os adultos. A seguir, Jerusalinsky problematiza o fato de que, cada vez menos
as crianças brincam e passaram a ocupar grande parte de seu tempo envolvidas com jogos
eletrônicos, filmes e séries de televisão ou tablet.
Para Jerusalinsky, as telas eletrônicas, portáteis ou não, são como uma chupeta
eletrônica, já que evita que o bebê se desloque pelo espaço, explore o mundo, os brinquedos
que o rodeia, brinque com os outros, imagine-se em uma narrativa que inclui o brinquedo,
conforme mostra Vygotsky. Além disso, não se deslocando, a criança também não está em
relação de sentido com o outro, que, nessa situação, poderia impor limites e mostrar
possibilidades, dar sentido ao espaço e aos objetos que o ocupam e ao corpo da criança no
espaço junto com ela. Desse modo, fica-se na presença excessiva do objeto, mas subjetivamente
à deriva (JERUSALINSKY, 2016), já que, conforme vimos, a presença do outro e sua
intervenção na vida da criança é a instância onde está a língua que costura os retalhos e organiza
o caos de sentidos que é a vida do bebê, inserindo-o na linguagem, participando de sua
constituição como sujeito permitindo seu primeiro ato de leitura do mundo.
A autora alerta, ainda para o fato de que os aparelhos eletrônicos têm sido
disponibilizados às crianças cada vez mais cedo e o uso é feito de maneira indiscriminada, sem
regras que estabeleçam a hora de desligar. Desta maneira, é inevitável que o uso de celulares e
tablets tenham um impacto nas relações interpessoais de bebês, crianças, adolescentes e adultos,
além do fato de que diante das tecnologias, estamos expostos à efemeridade do conteúdo,
geralmente representados por vídeos e frases curtas, à possibilidade de interrupção, e à
simultaneidade de interações, o que muda nossa percepção do mundo e dos outros objetos da
cultura que não envolvem os gadgets e a internet. Nesse sentido, apesar de haver uma tendência
a exaltação da criança que lida a virtualidade – revelada, inclusive, na maneira como se referem
a ela, a criança multitarefa – Jerusalinsky argumenta que apesar da internet e das tecnologias
expandirem as relações e as tarefas, não significa que elas tenham a profundidade que a
sociedade e, especialmente, a escola requer.
57
“Se uma criança pode ficar tanto tempo jogando, é porque a tela afasta
sentimentos de solidão, angústia, raiva, culpa ou qualquer outro estado afetivo
que gere tensões psíquicas e iniba as fantasias e os medos. Desse modo, também
são afastados afetos prazerosos que dão origem a sentimentos de excitação,
vivacidade etc. e que são percebidos como proibidos ou perigosos. Em ambos
os casos, afastam-se afetos conflitantes, que requerem processamento psíquico,
o que é trabalhoso e demorado. Jogar é muito diferente de brincar, atividade
constitutiva que permite e favorece a elaboração, estimula a imaginação e
permite criar recursos psíquicos para lidar com as angústias próprias da vida.
Não é raro que as crianças tenham dificuldade para dormir depois de ter ficado
ligadas horas a fio. A distração com os joguinhos eletrônicos é instantânea e
estimulante. É só clicar um botão. Não é preciso pensar, muito menos falar ou
contar uma história, nem encontrar-se com os fantasmas que aparecem no
escuro da noite. E se, por qualquer motivo, o celular falta, vemos as crianças
num estado que lembra a abstinência.” (JERUSALINSKY, 2016)
Diante desta reflexão, não pretendo, nesta pesquisa, demonizar o uso dos aparelhos
eletrônicos ou, contra a tendência mundial de informatização e popularização da internet,
propor a proibição do uso das tecnologias pelas crianças. Não pretendo, também, negar a
importância da internet ou as positivas mudanças que os aparelhos portáteis provocaram nas
últimas décadas, que envolvem sobretudo a democratização do acesso à informação para
aqueles que têm acesso à internet e letramento digital para lidar com a quantidade de
informações vinculadas na internet – nem sempre verdadeiras. O que pretendo é alinhada às
reflexões apresentadas, problematizar a superexposição das crianças às tecnologias e tentar
compreender os impactos do fato de que elas têm sido grande parte das práticas letradas das
crianças antes de entrarem na escola. Para a autora, o mundo real está ficando desinteressante
para os bebês e para as crianças pequenas. Os bebês precisam ser olhados, precisam que os
58
adultos estejam em relação de sentido com eles de modo a, conforme apresentamos, organizar
o caos de sentidos que é a vida do bebê e que o ajudará a entrar na língua, a construir sua relação
com o simbólico, consigo mesmo, com o mundo e com os outros. O efeito estimulante de um
jogo virtual ou um vídeo não é o mesmo de ter que imaginar a partir de um relato ou uma
melodia, bem como não terá o mesmo efeito que têm as outras práticas de letramento citadas
por Kleiman como subjacentes ao letramento escolar.
Desta maneira, à luz da ND, esta pesquisa parte do princípio de que quando se trata
do aprendizado de leitura e de escrita, não se pode reduzir a reflexão ao processo de transcrição
gráfica da fala, mas a diversas questões que envolvem os cuidados na tenra infância, a entrada
do bebê no sentido, as práticas de letramento nos quais está inserido, a mediação do outro entre
a criança e os objetos da cultura, sobretudo as práticas de leitura e escrita. Assim, aprender as
práticas escritas exige mergulhar em todas as tradições discursivas. “Trata-se de uma complexa
experiência cognitiva que não começa nem termina com o domínio da alfabetização. A
alfabetização é apenas o momento específico do aprendizado de notações gráficas”. (FARACO,
2012, 53).
Conforme vimos, a noção de sujeito singular, historicamente determinado e
resultado das relações sociais e culturais é central para a ND, de maneira que é um dos principais
argumentos para a construção da crítica à literatura médica sobre os chamados transtornos de
aprendizagem. Tendo apresentado que a ND se constitui como perspectiva contra hegemônica
às tendências patologizantes que avançam sobre a educação, faz-se necessário, por ora,
sumarizar o processo histórico constitutivo daquilo que nossa abordagem propõe contradizer.
Em consonância com nosso arcabouço teórico, é o trabalho de Michel Foucault em O
Nascimento da Clínica que nos servirá de referência nesse ponto.
Particularmente, é conveniente ao nosso argumento apresentar, aqui, as duas
primeiras etapas do nascimento da clínica elencadas por pelo autor. Esse recurso a Foucault
ganha relevo porque, primeiramente, a medicina classificatória ainda se configura como base
para o raciocínio clínico atual, guia do olhar clínico e, sobretudo, nos mostra a diferença radical
entre a concepção de sujeito adotada pela clínica e a concepção adotada pela ND. Na primeira,
as singularidades dos sujeitos são perturbações ao raciocínio clínico e, portanto,
desconsideradas no processo diagnóstico. Na segunda, as singularidades dos sujeitos são
centrais no processo de compreensão de sua relação com os outros, com o mundo, com os
objetos da cultura – no caso desta pesquisa, a leitura e a escrita. Ademais, conhecer o que
Foucault apresenta como a medicina das epidemias e como medicina classificatória ajuda a
59
entender como a medicina não apenas passou a assumir um status de autoridade normativa
sobre a vida, sobre o Estado e sobre as relações entre os sujeitos, mas também passou a ocupar
todos os espaços sociais, inclusive o espaço escolar e a formação docente.
que a doença é de natureza alheia ao corpo, o hospital revela-se um ambiente também alheio à
doença, já que ali ela perderia seu caráter natural (a doença deveria desenvolver-se e
desaparecer no mesmo local onde surgiu). Paralelamente, o movimento de reestruturar os
hospitais partindo dessa premissa geraria um alívio econômico, já que eles11 eram destinados
aos pobres e se tornavam seu patrimônio. O que se observa, após a construção desta crítica aos
hospitais, é uma certa ampliação da gama de profissionais aos quais caberia tratar de questões
relacionadas à saúde – papel até então reservado aos médicos – e passa a ser do Estado também
a tarefa de organizar, legislar e garantir boas condições de saúde à população. É neste
movimento que, segundo Foucault, a medicina das espécies se perde e dá lugar à medicina das
epidemias.
11
Para Moysés, a carga contra o hospital faz-se por via dupla: o doente pobre, que não tem condições de pagar
pelo próprio tratamento, de certa forma rouba da sociedade, já que precisa ter seu tratamento por ela sustentado e,
pior, uma vez internado, não trabalha e abandona a família, que fica sem os recursos que eram frutos do doente. A
questão, portanto, se amplia: o hospital, além de ser um espaço artificial e prejudicial à essência da doença, passa
a ser a agência responsável por contribuir para a criação e propagação de mais doenças ainda no espaço social, já
que a família do doente, sem recursos, também adoece. A assistência proposta é, portanto, a domiciliar, já que
além de permitir que a doença se desenvolva em seu espaço natural, possibilita, em tese, que toda a família do
doente seja amparada, impedindo que a doença provoque mais pobreza e mais doença. Assim, criticar a destinação
do hospital como espaço destinado ao doente “coloca em questão sua incapacidade de atingir seus propósitos, de
proteção do doente e de prevenir a difusão da doença, propondo-se, por meta, a romper as cadeias da doença das
doenças e do empobrecimento perpétuo”. (MOYSÉS, 2001, p.147)
12
De acordo com Foucault (2004) essa medicina de epidemias, também chamada de medicina de estado, se
desenvolveu principalmente na Alemanha: o autor retoma Marx para elucidar que, se a economia era inglesa e a
política era francesa, a filosofia era alemã, o que fazia com que a produção intelectual alemã sobre os mais diversos
campos de saber fosse aquela que se consolidava pela Europa e pelo novo mundo.
61
sustenta o olhar do médico neste período não é um círculo de saberes que se completa, mas uma
espécie de registro clinico da série infinita e variável dos acontecimentos, cujo suporte não
abrange a “percepção do doente em sua singularidade, é uma consciência coletiva de todas as
informações que se cruzam, crescendo em uma ramagem complexa e sempre abundante,
ampliada finalmente até as dimensões de urna história, de uma geografia, de um Estado”.
(FOUCAULT, 1980, p. 32)
É neste contexto histórico que Foucault argumenta que a medicina é uma estratégia
biopolítica. Assim, inicia-se um processo13 de registro dos índices de natalidade, mortalidade e
de propagação de doenças, de normatização de todos os aspectos da vida humana, desde
alimentação, vestuário, condições de moradia e, sobretudo, a divulgação do discurso de
conscientização de que cada um é responsável pela proteção e manutenção de suas condições
de saúde14.
Consequentemente, os médicos assumiram, também, o papel de administradores e
controladores da saúde. Aos médicos cabia isolar e redistribuir as pessoas contaminadas por
diversas doenças e propiciar condições melhores na forma de organização urbana para evitar a
contaminação. Cabia, também, o atendimento gratuito à parcela menos privilegiada
financeiramente da população. “Mas esta experiência só pode adquirir plena significação se for
reforçada por uma intervenção constante e coercitiva. Só poderia haver medicina das epidemias
13
Para entender a reflexão que gira em torno desta afirmação, é necessário situar as mudanças de paradigma que
se refletiam na prática médica no contexto da emergência de ideias iluministas. Pautados na crença de que todas
as pessoas eram livres, autônomas e capazes de orientar sua própria conduta, o iluminismo propunha o afastamento
da fé católica, considerada responsável pela ignorância generalizada e pela manutenção e sobrevivência das velhas
estruturas feudais. Segundo os filósofos iluministas, somente o esclarecimento do indivíduo por meio do avanço
da ciência e da técnica poderiam libertar o homem dos grilhões da ignorância. Ao passo que as ideias iluministas
eram fortemente difundidas, a medicina foi normalizada enquanto profissão e vinculada aos emergentes Estados
modernos da Europa ocidental, a começar pela Alemanha. Entretanto, para o autor, é ingênuo afirmar que o
propósito da polícia médica era evitar as epidemias e garantir a saúde da população. A atuação da polícia médica
se estendia a julgamentos de valor e partia de premissas preconceituosas sobre os mais pobres, seus hábitos,
moralidade e condições de vida. Tais julgamentos acabaram por retirar o caráter meramente biológico da doença,
a fim de que práticas médicas pudessem ser articuladas aos projetos de reorganização e controle social. É neste
momento, segundo Moysés, que a medicina fez coincidir seu espaço com todo o espaço social, atravessando-o, e
ocupando-o plenamente. “Iniciam-se discussões sobre a relevância da presença generalizada dos médicos na
sociedade, seus olhares cruzando-se e formando uma rede exercendo uma vigilância constante, em todos os
espaços físicos e temporais”. (MOYSÉS, 2001, p. 151).
14
Para que essas metas fossem cumpridas, quatro estratégias foram traçadas pelo governo alemão: a) um sistema
de observação das doenças, envolvendo inclusive o levantamento das taxas de natalidade e mortalidade; b) ações
normatizantes da prática e do saber médico de modo que o Estado passa a exercer controle da universidade e dos
hospitais, normatizando, antes dos doentes, os médicos e os espaços onde se exerce a medicina; c) a criação de
uma organização que controlasse as atividades dos médicos, reunindo os dados sobre doença e saúde coletados
pelos médicos, bem como o controle de epidemias e a regulamentação dos tratamentos de forma a subordinar a
prática clínica ao Estado e d) a atribuição do controle de uma região (vigilância e intervenção clínicas) a um médico
eleito pelo governo, o que fez com que surgissem as figuras do médico de distrito, encarregado por uma pequena
parcela da população até o médico responsável por regiões que abrigam mais de 50.000 pessoas.
62
clínico: na medicina classificatória, a singularidade dos sujeitos não só não é levada em conta
como se apresenta como problema no processo diagnóstico. Já na medicina das epidemias,
vemos um padrão de sujeito ser construído e imposto pelo olhar clínico, bem como a
configuração deste olhar como o único que pode compreender e solucionar todos os problemas
da humanidade. Retornaremos a este tema nos próximos capítulos, ao tratar da medicina da
normalidade e da medicina do poder e da perplexidade.
64
II
PATOLOGIZAÇÃO DE DIFICULDADES NORMAIS À LUZ DA ND
Orton descreve essa patologia com base em uma hipótese sobre o que estaria
envolvido no ato de ler: segundo ele, pela simples observação de algumas crianças lendo, era
possível verificar que as palavras formariam engramas nos dois hemisférios: um apresentaria a
ordem da palavra (CASA) e o outro a palavra ao contrário (ASAC). No desenvolvimento
normal, o cérebro anularia o engrama contrário e a criança aprenderia a ler e escrever sem
problemas. Em casos de strephosymbolia, o cérebro não poderia anular a palavra na ordem
errada e essa incapacidade seria a causa dos problemas de leitura e de escrita. Cabe, então,
perguntar: o que Orton observou ao ver crianças lendo que o levou a essa conclusão? Como
pode afirmar a existência dos engramas e da capacidade de anulação pela simples observação
de leitura? Mesmo com os problemas metodológicos e teóricos, dos o trabalho de Moyses e
Collares trata, Orton funda a Orton Dyslexia Society, instituição que resistiu durante muito
tempo e que foi responsável por diversas pesquisas e publicações sobre Dislexia.
Outro marco na história da consolidação da Dislexia é a pesquisa do neurologista
americano Bradley, publicada em 1937. Bradley realizava investigações e experimentos
químicos com crianças e adolescentes abrigados em asilos e orfanatos. As experiências
envolviam o uso de psicotrópicas, geralmente calmantes e anfetaminas, apesar de já naquela
época existirem diversas pesquisas que alertavam sobre os efeitos colaterais dessas drogas,
principalmente o grande risco de dependência química - após o uso. Moysés e Collares afirmam
que Bradley nunca conseguiu apontar uma justificativa ética e científica para o uso de
psicotrópicos no tratamento de problemas de aprendizagem, nem mesmo os procedimentos
metodológicos que adotou em suas pesquisas. Entretanto, os resultados afirmavam que todas as
crianças tratadas com anfetaminas apresentaram melhora significativa e persistente de todos os
sintomas.
Em 1962, na universidade de Oxford, foi promovido um importante evento
científico que mudaria os rumos dos estudos sobre dislexia. Pesquisadores que se alinhavam à
teoria de lesão cerebral mínima de Strauss vinham buscando, há algum tempo, localizar no
cérebro a região que seria afetada em casos de dificuldade de leitura e escrita. Moysés e Collares
(2011) apontam que, uma vez que essa empreitada se mostrou insatisfatória (pois não era
possível localizar nenhuma lesão nos exames post-mortem), deu-se mais uma mudança
especulativa e cosmética, definida pelos pesquisadores neste evento: Strauss teria cometido um
erro conceitual – se não havia lesão (porque era ilocalizável) havia uma disfunção. O que era
antes a lesão cerebral mínima, passou a se chamar disfunção cerebral mínima. Trago, a seguir,
as características elencadas por Moysés e Collares para mostrar que apesar de ser uma
67
disfunção, a patologia surgiu categorizada como fisiopatologia, graças aos estudos de Bradley,
e já com um remédio que a trataria.
Psiquiatria propõe uma nova forma de enquadrar as questões de comportamento das crianças
como um transtorno, separando-o, somente nos critérios diagnósticos, dos problemas da
aprendizagem: o déficit de atenção – TDA (ADD – Attention Deficit Disorder). Segundo
Moysés e Collares, apesar de ter agradado aos médicos e aparentemente atendido às suas
insatisfações, essa ruptura foi pouco produtiva, pois os critérios continuaram vagos e impreciso,
como: “a criança não parece ouvir quando falam com ela, age sem pensar, tem dificuldade de
aprendizagem, falha em terminar tarefas” etc. Pouco tempo depois, a partir do TDA, surge uma
nova patologia, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (ADD-H), marcando
como sintoma de patologia não apenas a distração, mas também o que se entende por agitação
infantil. Para as autoras, o que está por trás do dos exames físicos e laboratoriais) (geralmente
normais) e dos rótulos, tais quais, criança que não aprende, criança com problema de
comportamento, está, na verdade, a criança que incomoda. Assim, questionam a pretensa
objetividade que justifica as mudanças de critérios – que, para elas, foram ficando cada vez
mais vagos, embasados em preconceitos - e de nomenclatura: como falar em objetividade diante
da pluralidade do comportamento humano?
Por fim, Moysés e Collares comentam o fato de que a Dislexia específica de
Evolução foi transformada em Dislexia específica do desenvolvimento, para deixar claro “que
se trata de uma entidade que surge no decorrer do desenvolvimento da pessoa e não
secundariamente a alguma doença neurológica que interrompa, ou mesmo reverta, o domínio
já estabelecido da linguagem escrita”. (MOYSÉS & COLLARES, 2011, p.10)
A última questão relevante da retomada histórica sobre Dislexia da qual tratarei
nesta pesquisa é o fato de que, desde a década de 60, quando ainda se falava em Disfunção
Cerebral Mínima, havia diversas pesquisas que investigavam e procuravam comprovar a
possibilidade de que a DCM seria um problema genético pelo fato de que há maior prevalência
entre meninos (3:1 em comparação com as meninas) e que seria mais comum em filhos de pais
com diagnóstico.
O que a reflexão de Moysés e Collares sobre a consolidação da Dislexia mostra?
Que, assim como vimos no capítulo Idesta pesquisa, a Dislexia, como os outros chamados
distúrbios de aprendizagem é um constructo ideológicoque, ao longo do tempo, mudou em
função de algumas críticas, mas nunca perdeu sua essência e propósito: marcar, no corpo, na
esfera do biológico, problemas que são de ordem política e social. Como vimos, a base deste
construto ideológico é a homogeneidade, o padrão, a garantia de corpos hígidos e dóceis, o
apagamento da diversidade, a negação das singularidades.
69
O critério A apresenta uma subdivisão em seis itens, dos quais dois tratam da leitura,
dois da escrita e dois de habilidades matemáticas. Trataremos aqui dos critérios que envolvem
a leitura e a escrita.
“1. Leitura de palavras de forma imprecisa ou lenta e com esforço (p. ex., lê
palavras isoladas em voz alta, de forma incorreta ou lenta e hesitante,
frequentemente adivinha palavras, tem dificuldade de soletrá-las).
2. Dificuldade para compreender o sentido do que é lido (p. ex., pode ler o
texto com precisão, mas não compreende a sequência, as relações, as
inferências ou os sentidos mais profundos do que é lido).
3. Dificuldades para ortografar (ou escrever ortograficamente) (p. ex., pode
adicionar, omitir ou substituir vogais e consoantes).
4. Dificuldades com a expressão escrita (p. ex., comete múltiplos erros de
gramática ou pontuação nas frases; emprega organização inadequada de
parágrafos; expressão escrita das ideias sem clareza).” (DSM V, 2013, p. 66)
psicológicas. Por fim, são apresentadas as especificidades que devem constar no laudo
diagnóstico final:
2013, p. 69). Veja-se, aqui, como o próprio texto do material parece cifrado e se mostra de
difícil compreensão para o leitor mais atento. Ademais, ressalto a inadequação do uso do termo
mapear letras com os sons da língua e a maneira pela qual esse emprego se afasta radicalmente
da descrição linguística e pedagógica que a é feita sobre e a leitura, que, em geral, usa o termo
decodificar nestes casos.
Sobre a progressão, estabilidade ou possível cura do TEA, o Manual afirma que não
há cura: o Transtorno é permanente, mas o desempenho dos sujeitos pode variar de acordo com
as tarefas com as quais se depara ao longo da vida, de acordo com a severidade do transtorno,
com as habilidades do sujeito, com as comorbidades15 e com as intervenções clínicas propostas.
De acordo, ainda, com o Manual, os seguintes sintomas do TEA podem estar
presentes já nas crianças em idade pré-escolar:
▪ Falta de interesse em jogos com os sons da língua (repetição e rima);
▪ Problemas para aprender cantigas escolares;
▪ Usam baby talk, apresentam problemas de pronúncia e têm problemas para
memorizar o nome das letras, dos números e dos dias da semana;
▪ Não conseguem reconhecer as letras dos próprios nomes e têm problemas para
aprender a contar;
▪ Não conseguem reconhecer ou escrever letras, podem não conseguir escrever
seus próprios nomes e podem inventar a ortografia das palavras;
▪ Podem ter problemas com a separação silábica;
▪ Podem ter problemas para reconhecer rimas;
▪ Podem ter problemas para conectar as letras e seus sons e podem ser incapazes
de reconhecer fonemas.
15
Comorbidade se caracteriza pela coexistência de outras doenças além de uma já determinada. É considerada
tanto a presença de uma ou mais distúrbios em adição à um distúrbio primário, quanto o efeito desses distúrbios
adicionais.
74
16
Uma análise sobre a prevalência de dificuldades de aprendizagem e de Transtorno do Déficit de Atenção em
meninos será apresentada no último capítulo desta Tese.
75
podem dificultar a atribuição do diagnóstico, já que tais transtornos interferem nas atividades
cotidianas, como o aprendizado escolar. O Manual indica que, além dos relatórios escolares e
das avaliações psicológicas, deve ser analisada também a história do sujeito para a atribuição
do diagnóstico.
Entretanto, o desempenho dos outros alunos da turma é usado como parâmetro
indicativo de que a criança apresenta alguma patologia, o que faz com que automaticamente a
singularidade e a história da criança sejam descartadas no momento de emitir o diagnóstico.
Além disso, vemos que o DSM V transfere grande parte da responsabilidade pela emissão do
diagnóstico para a escola, já que ele é feito principalmente a partir dos relatórios escolares
enviados ao médico e a partir do desempenho das crianças comparado à média de sua turma.
Lê-se, ainda, do site da ABD, uma lista de “possíveis sinais” de dislexia, tanto na
idade pré-escolar quanto na idade escolar.
“Alguns sinais
Dispersão;
Fraco desenvolvimento da atenção;
Atraso do desenvolvimento da fala e da linguagem
Dificuldade de aprender rimas e canções;
Fraco desenvolvimento da coordenação motora;
Dificuldade com quebra-cabeças;
Falta de interesse por livros impressos.
Alguns sinais na Idade Escolar
Dificuldade na aquisição e automação da leitura e da escrita;
Pobre conhecimento de rima (sons iguais no final das palavras) e aliteração
(sons iguais no início das palavras);
Desatenção e dispersão;
76
Desta forma, o diagnóstico de dislexia tal qual o define a ABD se consolida a partir
de uma concepção de leitura e escrita que se resume a decodificar letras. De forma genérica, a
ABD e a literatura médica denominam a dislexia como um transtorno ou um distúrbio
neurofuncional que envolve “troca de letras na escrita”. Seria o que essa literatura denomina
inversões, omissões, junções e repetições de letras, a segmentação não convencional, a escrita
em espelho, a adição de letras ou sílabas e a confusão de letras foneticamente semelhantes. Em
suma, podemos apreender da definição de Dislexia que o disléxico teria “um mau
funcionamento cerebral que impediria a decodificação correta das letras, o que seria revelado,
na escrita, pelas ‘trocas de letras’” (MÜLLER, 2013: 21)
77
17
O CCA foi criado em 1989, a partir de um convênio interdisciplinar entre o Departamento de Lingüística, do
Instituto de Estudos da Linguagem com o Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM),
da Universidade Estadual de Campinas (São Paulo/Brasil). O principal objetivo do CCA é possibilitar a
convivência entre pessoas afásicas e não-afásicas (familiares e amigos do sujeito afásico ou pesquisadores e
terapeutas). Nesse ambiente, a linguagem acontece em suas mais diversas formas, simples e complexas,
heterogêneas, carregadas de marcas particulares e de dizeres/escritos partilhados sócio culturalmente; é um lugar
onde se abrem as mais diversas possibilidades de construção de sentidos entre interlocutores afásicos e não
afásicos, mediados por recursos metodológicos e pelos acontecimentos de que se fala/escreve/lê/imagina na vida
social (COUDRY, 2010.).
78
Deste modo, buscamos não somente utilizar a linguagem de modo contextualizado, partindo do
interesse das crianças, mas também ampliá-los: motivar as crianças a vivenciarem situações
que as ajudem não somente a superar as dificuldades escolares, mas que também mostrem que
eles podem atuar no mundo na e pela linguagem (BENVENISTE, 1989) de maneiras diversas.
No acompanhamento individual, são privilegiadas as dificuldades de leitura e de escrita de cada
criança, através de atividades que também focam a função social que a leitura e a escrita têm.
De acordo com Coudry, o que queremos formar no CCazinho são jovens leitores e escreventes
que tenham domínio das formas da língua, que saibam lidar com os sentidos dos diferentes
textos que encontram em seu cotidiano, que tenham autonomia linguística na escola e fora dela.
Assim, o CCazinho é um espaço de formação, não só para alunos de Letras e Linguística, mas
para todos os profissionais envolvidos na aprendizagem – fonoaudiólogos, pedagogos,
psicólogos, etc. para que se preparem para enfrentara corrente hegemônica – “psicométrica,
desinformada, idealizada que ainda domina a escola pública e a clínica tradicional. Não se nega
que haja patologias de fato, mas se argumenta contra o excesso de patologização e sua
banalização - que tomam conta dos dias atuais” (COUDRY, 2007, p.3)
18
O acompanhamento de LP mostrou que algumas de suas dificuldades eram normais e constitutivas do
aprendizado de leitura e escrita e outras, decorrentes da presença marcante da fala em sua escrita, uma fala
infantilizada, marcada pela sua relação com a mãe e os outros membros de sua família. As conclusões da
dissertação mostram que em poucos meses, o acompanhamento que privilegiou as dificuldades de LP, a parceria
com a família no sentido de ajuda-lo a ler e a escrever mais, fizeram com que LP superasse suas dificuldades e
completasse o processo de alfabetização. A dissertação mostrou ainda o impacto que a escrita teve na fala, já que
LP percebeu, pela escrita, a incompatibilidade entre o que ele fala, o que todos escrevem e a fala em geral, o que
permitiu que ele ajustasse sua fala à fala de seus interlocutores.
81
ponto de tornar os professores uns dos primeiros agentes no processo que resulta em uma
avaliação clínica sobre as dificuldades de aprendizagem?
Ao longo deste trabalho, recebemos no CCazinho o encaminhamento de outra
criança cujo acompanhamento provocou, novamente, reflexões sobre o papel do professor e,
sobretudo, da formação de professores na análise das dificuldades com a leitura e com a escrita.
Apresento a seguir o caso de EF, mais uma dentre tantas crianças que foram levadas à avaliação
clínica por indicação feita pela escola. Com o caso de EF, poderemos refletir não apenas sobre
a formação de professores, mas sobre como a teorização da ND se afasta do ponto de vista
clínico sobre o que seriam os supostos sintomas de dificuldades de aprendizagem. Além disso,
o caso de EF nos permite facilitar a compreensão de fenômenos mais amplos que envolvem a
construção de hipóteses sobre a representação gráfica, comuns à todas as crianças em fase de
alfabetização. Assim, a ND mostra que EF é um caso exemplar de criança cujas dificuldades –
normais e constitutivas do aprendizado de leitura e escrita – foram patologizadas, e não uma
mera exceção.
A história EF inclui os dados recolhidos nas entrevistas semiestruturadas com seus
pais, com a própria criança, os cadernos escolares e as avaliações padronizadas as quais foi
submetida, bem como as sugestões diagnósticas que foram emitidas. Nesta parte, apresentarei,
a partir da análise dos dados, que os chamados erros – ou desvios e sintomas, como chamados
na literatura médica – são hipóteses (ABAURRE, 1997) da representação gráfica e ortográfica
construídas pelas crianças e que são, além de constitutivas do aprendizado, um processo
refletido, que depende de diversos fatores sociais, afetivos, culturais e pedagógicos que podem
facilitá-lo ou dificultá-lo.
19
Os acompanhamentos longitudinais realizados no CCazinho – incluído aqui, o de EF - têm a aprovação do
Comitê de Ética em Pesquisa da UNICAMP, protegidos pelo processo n.ao CEP -326/2008. Nesta pesquisa, o
nome do sujeito é abreviado em siglas e apagado das provas e laudos em que é mencionado.
82
não tinha condições financeiras de providenciar e manter o filho nos atendimentos sugeridos na
avaliação clínica, que envolvia o acompanhamento de uma fonoaudióloga, uma psicopedagoga,
uma psicóloga, e, se possível, um neuropsicopedagogo. Sabendo que o atendimento no
CCazinho era gratuito, SF, mãe de EF, agendou uma avaliação e levou o filho.
Na avaliação, SF contou que EF não apresentou nenhum problema de saúde
significativo ao longo da infância e sempre gostou de ir à escola. De acordo com SF, as queixas
escolares de EF começaram quando ele mudou da escola da rede municipal que frequentava
quando completou a educação infantil e entrou em uma escola particular, onde conseguiu bolsa
de estudos, para fazer o Ensino Fundamental I. Para SF, o filho teve dificuldade de se adaptar
à nova escola, aos colegas e principalmente à nova professora: ela relata que a professora
mantinha um relacionamento muito próximo das outras crianças e muito distante de EF, e ele
percebia isso: as outras crianças eram elogiadas, ganhavam adesivos e carimbos em seus
cadernos, eram abraçadas e beijadas pela professora enquanto ela só se dirigia a ele para dizer
o quanto ele tinha dificuldade e o quanto teria que se esforçar para acompanhar a turma, que,
segundo ela, era melhor que ele. SF conta que o processo de alfabetização de EF ocorreu em
meio a esses conturbados episódios, que o deixavam triste e que faziam com que ele quisesse
sair da escola e, nas palavras da mãe, “criaram um bloqueio em EF com relação a escola,
porque ele não queria ir, não queria fazer lição de casa, estudar, na verdade, nem ler, nem
escrever”.
SF conta que, ao longo do período em que frequentou os primeiros anos no EF I,
EF passava muito tempo em casa com o pai, que exercia a profissão de metalúrgico em um
período e em outro e trabalhava como pedreiro em parceria com um arquiteto, com quem
planejava casas e prédios. SF conta que EF sempre prestava atenção a tudo que o pai fazia,
gostava de ver as contas que estavam envolvidas no planejamento de uma construção, as plantas
das casas, as réguas e as calculadoras. Para ela, surgiu ali seu interesse pela matemática,
disciplina escolar na qual nunca teve dificuldades e que, segundo ele, é sua preferida. A mãe de
SF é auxiliar de cuidadores de idosos e estudou até completar o Ensino Fundamental I. No
primeiro semestre de 2018, ela estava desempregada e passando por sérias questões
psicológicas, que a levaram a procurar um psiquiatra para tratar um processo depressivo que
teve início após a perda de seu pai. EF tem uma irmã mais velha de 14 anos que estuda na
mesma escola de EF, em período integral.
Entretanto, segundo SF, no segundo ano do Ensino Fundamental, EF mudou de
turma e de professora, o que provocou uma grande transformação na relação dele com a escola.
83
Ele passou a mostrar mais curiosidade e vontade de aprender, passou a gostar muito de
matemática, de educação física, dos experimentos da aula de ciências, das atividades
extracurriculares das quais participava e, com o tempo, dos novos colegas. Ao final do primeiro
ano, SF foi alertada pela professora de que o processo de alfabetização de EF estava incompleto
e que ele precisaria fazer muitas atividades de leitura e escrita. SF conta que, apesar dessa
recomendação da professora, a escola não investiu em muitas atividades de leitura e escrita
específicas para as dificuldades de EF e disse para a mãe que ele eventualmente acompanharia
a turma. Fez o segundo, o terceiro e o quarto ano do EF I sem problemas, era muito elogiado
nas avaliações orais (uma prática recorrente em sua escola, que envolve seminários, teatro,
apresentações em grupo e individuais) apesar de saber que precisava melhorar sua escrita. De
acordo com os relatórios escolares, EF sempre se mostrou uma criança atenta, participativa,
curiosa, nunca se negou a fazer atividades escolares e não apresentava problemas para se
relacionar com professores e colegas. A única observação feita pela escola, até o quinto ano, é
que ele demonstrava certa ansiedade no momento de escrever, pois hesitava muito, olhava para
cima tentando lembrar as letras, ficava preocupado com o ritmo da turma e com o fato de
demorar mais que os outros. Além disso, a escola ressaltava que EF estava muito atrás em
relação ao progresso da turma e que ele sempre precisava de ajuda com as avaliações escritas
porque não conseguia ler os textos e enunciados e porque ele apresentava tantos problemas de
trocas na escrita que era impossível compreender o que ele escrevia.
Ao chegar no quinto ano, a professora da turma chamou sua família e apontou a
necessidade de que ele fosse avaliado por um profissional da área clínica, já que as dificuldades
de leitura e escrita dele se mostravam persistentes desde o primeiro ano e que, segundo a mãe,
nas palavras da professora, “poderiam não ser normais, poderiam ser uma dislexia”.Diante
deste problema e dos apontamentos da escola,a família de EF conseguiu, a um preço acessível,
uma professora particular que o acompanhou durante quatro meses. Ao final desse
acompanhamento, a professora concluiu que não houve nenhuma mudança significativa na
leitura e na escrita de EF e que ele precisava ser avaliado por um profissional da área clínica.
Assim, no caso de EF, duas professoras apontaram a possibilidade de uma patologia relacionada
ao aprendizado.
Na avaliação inicial, a primeira pergunta que fazemos às crianças é: o que você veio
fazer aqui na UNICAMP hoje? Essa pergunta nos revela muito: se a família fala abertamente
com a criança sobre o que eles farão ao longo do dia, sobre suas dificuldades, sobre as
necessidades de superá-las, sobre as intervenções e transformações que precisam ser feitas na
84
vida das crianças, etc. Para a ND, quando a criança sabe o que se passa em seu cotidiano, seja
escolar ou fora dele, há evidências de que a criança é tomada pela família como interlocutora,
que há uma preocupação em situá-la no tempo, nos espaços em que frequenta, na programação
futura, etc. Muitas vezes, as crianças respondem que não sabem: que a família não explicou
onde irão, com quem ou sobre o que irão conversar lá, nem ao menos o que é a UNICAMP.
À indagação, EF respondeu muito rápido, aparentando ansiedade e preocupação:
“Vim ver se eu tenho dificuldade, que história é essa que eu tenho problema, porque isso é
novo(apontando para o laudo), eu não sabia que eu tinha dificuldade”. Apesar de ser uma
criança falante e de se mostrar muito aberto a conhecer os outros, EF fala muito baixo e com
certa dificuldade: precisa de tratamento ortodôntico possa promover maior conforto
articulatório para a produção da fala, de acordo com a fonoaudióloga que o acompanhou.
Apesar de estar em acompanhamento fonoaudiológico, ainda precisa do aparelho para que sua
fala se normalize, ainda que sejam raras as vezes em que ensurdece algumas consoantes.
Em seguida, perguntei para ele se ele está indo bem na escola. Ele respondeu que
“sim, eu gosto, a única coisa que eu vou mal é português, eu amo matemática e geografia, mas
gosto das outras também”. Logo em seguida, EF muda o tópico discutido e volta a falar sobre
suas supostas dificuldades, fazendo referência à avaliação que fez no DISAPRE: “agora eu
preciso saber da dificuldade, essa coisa é nova, eu vou bem, eu não sei porque estão falando
que eu tenho problema”.
Situando a fala de EF na dinâmica de sua escola, é compreensível que ele tenha
baixo desempenho somente na disciplina de Língua Portuguesa. Apesar dos professores das
outras disciplinas corrigirem suas instabilidades ortográficas nas provas, ele não perde pontos
na nota final quando erra. A única professora que desconta pontos por problemas de ortografia
é a professora de português. A leitura de EF é muito lenta e silabada, mas os textos de suas
avaliações são curtos e ele consegue ler no tempo determinado para a prova. Além dos textos
curtos e de fácil compreensão, as respostas das questões geralmente encontram-se nos textos, o
que faz das avaliações uma atividade não tão desafiadora. Uma atividade na qual surjam as
dificuldades de EF – que consistem basicamente na representação ortográfica e na leitura lenta
– não é um problema que acarretará em notas ruins. Desta maneira, a família recebeu com
surpresa a necessidade apontada pela professora de que ele fosse avaliado por uma equipe
clínica para investigar a possibilidade de Dislexia, já que o desempenho escolar de EF era bom
e desde o primeiro ano não tinham recebido mais queixas sobre sua escrita.
85
Figura 2 - Dado de EF
o plano não tem e eu não tenho como pagar. Eu queria saber se você acha que vai ser preciso,
porque a fono disse que aqui poderiam falar se ele tem esse problema mesmo. Ela acha que ele
não tem. Eu não sei mais em quem acreditar, na escola, nesses exames, na fono”.
Disse para SF que, inicialmente, a posição dos cuidadores do CCazinho é a de
desconfiar do laudo e de trabalhar com a criança sem considerar as dificuldades e limitações
que o laudo impõe. Disse para ela que ao longo do acompanhamento o plano é investigar quais
são as dificuldades de EF e ajudá-lo a superá-las, sem levar em conta os supostos sintomas do
laudo. Neste momento, SF diz que se sente aliviada e seus olhos chegam a ficar marejados. Ela
se emociona muito e diz que espera que o filho realmente não tenha um problema de
aprendizagem pois ela não teria como pagar os acompanhamentos citados pelos profissionais
do DISAPRE. Por fim, ela me pergunta se haverá algum custo pelo acompanhamento e, quando
explico que esse é um serviço público, via universidade, ela demonstra alívio e se emociona
novamente.
O acompanhamento de EF tem início na semana seguinte, ainda no mês de abril,
conforme combinado. Na primeira sessão, ele chega muito animado mostrando seu álbum de
figurinhas da copa do mundo de 2018 que já tinha há pelo menos um mês. Começamos a folhear
o álbum e começo a perguntar o nome das seleções. Para minha surpresa, EF lê com muita
dificuldade o nome dos países. Perguntei para ele em que língua os nomes dos países estavam
escritos e ele fica confuso. Percebi, então, que EF não tinha lido os nomes dos países porque
não tinha se dado conta de que estavam escritos todos em Língua Inglesa. Abri na página da
seleção brasileira e pedi que ele lesse. Pedi que ele soletrasse Brazil e só então ele estranhou:
“Brasil com z”? Perguntei a ele se ele não tinha lido os nomes dos países e ele me respondeu
que não e que apenas estava colando as figurinhas de acordo com os números, sem ver a seleção,
o nome dos jogadores, nem as outras informações que constam sobre os estádios, as seleções
campeãs em outras copas e o país sede. Conversamos sobre a importância de saber essas
informações e fizemos o exercício de ler os nomes dos países em inglês e em português, os
nomes dos jogadores do Brasil e descobrir um pouco mais sobre a história de cada um.
Combinamos, então, que a cada sessão iríamos ler sobre os países que compõem as
chaves sorteadas para os jogos da copa, já que EF se interessa muito por Geografia. Lemos,
então, sobre a Rússia, país sede e montamos uma pequena ficha com as informações que EF
julgou mais relevantes. O que está por trás desse tipo de atividade? Primeiramente, o interesse
da criança. EF se mostra muito curioso sobre outras cultura e modos de viver, tema que pode
fazer com que ele leia e escreva mais, memorizando, pela recorrência da leitura, a imagem
91
visual das palavras e tendo a possibilidade de refletir, pela escrita, sobre as convenções
ortográficas. Desta maneira, os princípios que embasam esse procedimento são dois fatores
cruciais elencados por Possenti que constituem o aprendizado de leitura e escrita:
Figura 3 - Dado de EF
paisisi da copa
gupo a Rússia
comida dipica: peixes afes cocomelos mel panquecas
quilma: niverno louco verão curto
religião: 4 religeoes deferete
festas típica: natal
O que a escrita de EF nos revela? EF é uma criança que lê pouco: lê apenas o que é
levado a ler na escola, vive em um ambiente em que se lê pouco, não tem muito contato com
textos escritos a não ser os escolares e não lê nem mesmo os textos pelos quais se interessa e
com os quais convive, como o álbum da copa. Sua escrita, portanto, ainda aparenta ser a escrita
de uma criança recém-alfabetizada.
92
Assim, a autora indaga: “seria possível afirmar que, ao adquirir a escrita alfabética, essa mesma
ordem de dificuldade volta a se manifestar, de certa forma?”. Vemos, portanto, como os dados
contribuem para o avanço teórico e como o avanço teórico contribui, reciprocamente, para
entender as hipóteses das crianças. O dado-achado é, assim, instrumento teórico e metodológico
de avanço na teoria e na prática, já que reconhecer estas hipóteses ilumina os caminhos do
investigador no acompanhamento não só no sentido de reconhecer essa escrita como normal,
mas também de ajudar a criança a progredir no processo de aprendizado.
Na mesma direção, Cagliari (2009) reflete sobre práticas pedagógicas que podem
interferir na representação da sílaba complexa: o uso da cartilha ou de atividades cartilhescas
para alfabetizar. Prevalece nas cartilhas e nas práticas pedagógicas a sequência em que se ensina
primeiro e exaustivamente palavras com a estrutura silábica canônica. Repentinamente, espera-
se que a criança assimile as estruturas CVC e CCV. Para ele, nesta fase, as crianças aproximam
a representação de CVC e CCV de CV, já que CV é a estrutura com a qual ela está mais
familiarizada e que para ela faz sentido.
Analisando a escrita de EF, vemos que há vários momentos em que ele se vê às
voltas com a representação da sílaba complexa e como ainda está preso à representação da
sílaba canônina, estrutura que tenta aplicar em todas as sílabas. Quando escreve paisisi por
países, preenche a última posição da última sílaba com uma vogal seguindo a lógica da sílaba
canônica, representação com a qual está acostumado. Quando escreve gupo por grupo,
representa o ataque ramificado como uma sílaba CV, mantendo a estrutura silábica simples.
Retomando o dado da avaliação, vemos que EF também mantém segue a estrutura da sílaba
canônica ao escrever conota por conta, preenchendo uma posição que não existe de modo a
manter a estrutura CVCV.
Ao escrever deferete por diferente, EF novamente mantém a estrutura CV para
CVC. Entretanto, é preciso considerar que neste caso, tratava-se da representação de nasalidade:
pode-se ainda considerar a hipótese de que não preencheu a posição de coda com a nasal pelo
fato de que a vogal e já é nasalizada em diferente, o que faz com que use somente a vogal para
indicar o som nasalizado. O mesmo processo aparece no dado da avaliação inicial, na escrita
de melnasia por melancia.Ainda sobre a sílaba, este dado nos mostra outra característica
comum na escrita das crianças que nos revela a tendência da escrita inicial de produzir a sílaba
CV: EF escreve niverno por inverno, representando VC por CV. Ao escrever inverno, sussurrou
várias vezes a palavra e disse: acho que é primeiro o n e depois o i.
94
2.4.2. Hipercorreção
A hipercorreção é um fenômeno comum na escrita das crianças que já têm certa
familiaridade com a escrita convencional de algumas palavras e que já foram alertadas para o
fato de que não escrevemos conforme falamos. A criança passa a fazer generalizações e aplicar
em todos os casos o que foi levada a corrigir em outras situações. Muitas vezes as crianças
representam a tendência do português brasileiro de alteamento de vogais na coda silábica:
escrevem qui por que, tudu por tudo. Tendo em vista que essa é uma representação comum,
apoiada na fala e recorrentemente corrigida pelos professores, a criança generaliza a correção e
passa a representar com e e o em outras ocorrências, mesmo quando não há alteamento de vogal
nem quando a pronúncia não corresponde à fala: EF hipercorrige e escreve cocomelo por
cogumelo, religeões por religiões e deferete por diferente. Mais uma vez, na perspectiva da ND,
não há troca de letras, o que seria resultado de um processo irrefletido e aleatório, mas de sim
uma hipótese de representação gráfica construída a partir da vivência da criança com a escrita
e com a correção de seus textos.
alternância de representação ora com p/b, t/d, f/v, e c/g. Muitas crianças apresentam problemas
de fala que são refletidos na escrita, mas algumas não apresentam nenhuma questão
fonoarticulatória e ainda assim escrevem as surdas no lugar das sonoras ou vice-versa.
Conforme indicam Coudry e Bordin, muitas crianças que ainda não completaram
a diferença na fala e na escrita se mantêm em um conforto articulatório, uma vez que suas
alterações fonéticas/fonológicas não impedem que sejam compreendidas pelos que estão
familiarizados com a sua fala.
“Em seus balbucios, uma criança pode acumular articulações que nunca
serão encontradas em uma única língua, ou mesmo grupo de línguas:
consoantes com os mais variados pontos de articulação, consoantes
palatalizadas e redondas, sibilantes, fricativas, cliques, vogais
complexas, ditongos e assim por diante’. Para Jakobson, não há limites
para o potencial fônico da vocalização infantil, as crianças são capazes
de tudo no tangente à vocalização: podem produzir quaisquer sons – e
todos eles – contidos nas línguas humanas.” (HELLER-ROAZEN,
2005, p. 7)
Heller-Roazen aponta que “o bebê perde praticamente toda sua habilidade para produzir sons
quando passa do estágio pré-linguístico para a primeira aquisição de palavras, ou seja, ao
primeiro estágio genuíno da linguagem” (HELLER-ROAZEN, 2005, p. 8). O autor aponta que
é natural que essas habilidades se percam: o bebê deixa de usar a variedade de consoantes e
vogais que conseguia produzir e acaba por esquecê-las. O que acontece, porém, é que muitos
dos sonos do balbucio comuns à sua língua materna, ou seja, à fala dos adultos presentes no
entorno do bebê, também desaparecem. Para o autor, é somente neste momento de
desaparecimento e de esquecimento que se inicia a aquisição de uma língua particular.
O autor termina sua reflexão com a seguinte questão: “As línguas dos adultos retêm
alguma coisa do balbucio infinitamente variado do qual emergiram?”. Para o autor, se assim
fosse, seria apenas um eco e jamais se compararia à emissão desordenada do infante que ainda
não podia falar. “Seria apenas um eco de uma outra fala e de algo outro que a fala: uma ecolalia,
que guardasse a memória do balbucio indistinto e imemorial que, ao ser perdido, permitiria a
todas as línguas existirem” (HELLER-ROAZEN, 2005, p. 9).
Diante das proposições de Heller-Roazen vinculadas à reflexão de Jakobson, em
que contexto devemos entender as afirmações de Coudry e Bordin (2012) que apontam a
instabilidade da sonoridade das crianças como restos/vestígios do balbucio ou incompletude no
processo proprioceptivo? É necessário, primeiramente, compreender o processo
de propriocepção a partir da abordagem de Luria (1991).
De acordo com Luria, contamos com sensações proprioceptivas que nos informam
a respeito da posição de nosso corpo no espaço. Assim, perturbações na sensibilidade
proprioceptiva causam dificuldades na percepção das partes do corpo e no controle dos
movimentos já que não há consciência plena de sua imagem corporal. O cérebro conta, portanto,
com uma representação cortical do próprio corpo, que, de acordo com mapas obtidos em
ressonâncias magnéticas, determinados por estímulos elétricos não é fixa: ele apresenta
plasticidade de uso e desuso. Portanto, os mapas são personalizados – cada indivíduo apresenta
um mapa diferente determinado pelo uso que é dado às diferentes partes do seu corpo.
O que ocorre, porém, quando as crianças não têm nenhuma desordem nas sensações
proprioceptivas, ou seja, não apresenta em nenhuma questão relacionada a sua fala e ainda
assim tem dificuldades com as surdas e as sonoras e apresenta as chamadas trocas? Cagliari
analisa os problemas de sonoridade, principalmente o fato da prevalência das surdas, e não das
sonoras, na escrita das crianças como uma decorrência do modo pelo qual algumas atividades
são feitas nas escolas. Para o autor, a criança
Assim, esses casos não revelam que as crianças tenham algum tipo de problema
auditivo ou mesmo de atenção: eles apenas permitem ao observador atento perceber como a
criança lida com a representação da fala na escrita, da fala sussurrada na escrita. Ademais, é
preciso ressaltar que os alunos não ensurdecem todos os sons das palavras que escrevem: a
questão envolve sempre com as consoantes oclusivas e fricativas, que dispõem de pares
mínimos, caracterizados por traços distintivos de sonoridade.
Nos próximos itens, tratarei da importância da escrita espontânea como
oportunidade para que as crianças construam suas hipóteses sobre a representação gráfica das
palavras e de como as atividades de cópia ou cartilhescas podem até mesmo induzi a criança ao
erro.
Na escrita de EF, fica clara a instabilidade de representação das surdas e das
sonoras: escreve duas maneiras a palavra típica, ora sonorizando, ora escrevendo com t.
Escreve, ainda afes por aves. EF sempre sussurra para escrever e, ainda, conforme ressaltado
no início deste item, é uma criança que fala muito baixo e acaba muitas vezes ensurdecendo as
consoantes sonoras. Assim, predominam em seus textos ocorrências em que ensurdece as
sonoras, mas há ainda muitas em que acaba sonorizando onde não deveria. Dessa maneira, fica
claro que nem sempre a criança sabe quando erra ou acerta apesar de ter o direito de saber.
99
influenciada pelo acento e pela nasalidade. Assim, a pronúncia da vogal a nas palavras maçã e
banana não é a mesma, o que gera dúvida e construção de hipóteses que nem sempre
correspondem à forma ortográfica convencional. A criança toma a fala como apoio para
organizar sua escrita, conforme os escritos de Freud: fala para escrever, escuta o que diz,
formula uma hipótese de representação gráfica e escreve as palavras com fala. Ficam às voltas
com a arbitrariedade da ortografia e com a relatividade da pronúncia. É neste intervalo de
construção de hipóteses que acontecem as chamadas trocas ou o erro ortográfico, constitutivos
da alfabetização.
Vimos que EF escreve quilma por clima. Para além da representação da sílaba
complexa, vemos EF às voltas com duas maneiras possíveis de representar a oclusiva surda no
português brasileiro. Vejam-se, a seguir, outros dados de EF nos quais podemos ver outras
questões ortográficas:
Figura 4 - Dado de EF
Arabia Saudita
Geografia: há pocos rios e lagos e a maior parde é deserdo
Religião: muçulmana. Eles rezam na meca.
Coverno: monarquia rei Salman
Esporte: futebol, mergulio, windsurfe
Comida típica: farngo, carneiro, arroz. Poepido bebida alcoolica i a carne de porco.
escrever, em sua fala, ensurdece a vogal sonora b na terceira sílaba de proibido, mas não produz
a sílaba simples po em vez de pro.
Notamos, ainda nesse dado a escrita de poco por pouco, sustentada por uma regra
de variação entre [ou] e [o], que “ocorre sem ser previsível pelo contexto do som que precede
ou sucede as palavras. A forma ortográfica dessas palavras prevê uma escrita com duas letras
para os ditongos” (CAGLIARI, 1997, P.60)
Figura 5 - Dado de EF
Egito
Governo: parlamento
Religião: islã sunita
Clima: chove moito pouco. a tenperatura pode chegar a 42C.
Numeração (EF transcreve parte do sistema de numeração egípcio)
Comida: charuto poubo rechiado
automatização da escrita, ou em caso de dúvida por parte da criança, pode ser visto de forma
isolada. Desse modo, EF teria a oportunidade de refletir sobre as impressões sonoras e motoras
de sua fala: em todas as vezes que unisse os lábios reconheceria a impressão sonora e motora
de sua fala e as aplicaria à escrita, a impressão sonora e motora da letra m, do mesmo modo que
ao não unir os lábios, associaria, à escrita, a impressão sonora e motora da letra n.
No dado a seguir, EF e eu conversávamos sobre a greve de caminhoneiros que
aconteceu no final de maio de 2018 e a importância de saber sobre quais eram as principais
questões envolvidas na greve: quais eram as reivindicações dos caminhoneiros, a posição do
governo e até mesmo a definição da palavra greve. EF não tinha nenhuma dúvida sobre a
situação e não teve problemas para explicar o que ocasionou a greve e os motivos pelos quais
ela continuava. Na ocasião da produção deste dado, a cada vez que ele escrevia em desacordo
com a ortografia convencional, eu dizia: “tem alguma coisa para arrumar nesta palavra, leia de
novo”. Em seguida, ele escrevia a palavra novamente, com a correção que julgava necessária.
Em nenhum momento apontei exatamente o que ele deveria corrigir ou em que parte da palavra
estava o problema: todas as correções foram feitas por EF após reler o que havia escrito.
Figura 6 - Dado de EF
gerfe
greve camioneiros
greve caminhoneiros
conbustível
combustível
greve: greve é condo os trabaliadoes
quando trabalhadores
parão de trabaliar para conceguir alguns
103
Antes de tratar das hipóteses de EF neste dado, é preciso ressaltar algumas questões:
se comparado ao dado produzido na avaliação, percebemos muitos avanços. EF consegue, ao
reler seu texto, perceber muitos problemas que antes não percebia e que são difíceis para as
crianças, como a representação da sílaba complexa e os dígrafos (trabaliadores por
trabalhadores), por exemplo. Vemos que a única correção que ele não fez é a retirar a
hipercorreção de dereitos/direitos, que se trata justamente de uma representação baseada na
possibilidade de correção, na generalização de uma regra que é levada em conta por EF na hora
de escrever e na hora de possivelmente reescrever.
Vemos, neste dado, a representação de param por parão. Essa representação é
comum na escrita inicial e sobre isso, é importante retomar Cagliari, que ressalta a fala artificial
dos ditados em sala de aula e que pode provocar essa representação, mas que pode ser provocada
também quando a criança se apoia na própria fala para escrever, como faz EF:
2.4.5. Leitura
Desde o início do acompanhamento, EF se mostrou empenhado em melhorar sua
leitura. Segundo ele, o fato de que lia muito devagar era o que mais o atrapalhava na escola, já
que demorava muito para fazer as provas e atividades. Além disso, disse que muitas vezes
ficava perdido na aula, porque muitos professores faziam atividades que envolviam leitura
conjunta. EF já seguia a recomendação da fonoaudióloga de ler todas as palavras que visse pela
104
rua: aumentar a frequência de leitura, por si só, já o ajudou a ler com mais fluência. Entretanto,
a leitura ainda era silabada e lenta para os padrões da escola e para os padrões que EF passou a
se impor. Conversando com EF, percebi que o que ele mais lia eram palavras isoladas, no
máximo algumas frases isoladas em placas, rótulos e propagandas. Na escola, os professores
continuavam lendo para EF, mesmo nas provas. Ressaltei a ele a importância de que lesse textos
maiores, de diferentes gêneros, que exigissem diferentes tipos de ritmo de leitura. Essa decisão
é baseada nas afirmações de Cagliari (2009), para o qual as crianças constroem hipóteses
baseadas em dois aspectos: o método a que estão submetidos e suas decisões pessoais, partindo
dos conhecimentos que têm. Assim, se a criança foi submetida ao método da cartilha, cuja base
é a sílaba, a leitura será silabada, sem o ritmo dos diversos tipos de gênero textuais – já que as
cartilhas trazem apenas textos artificiais, com períodos curtos.
No acompanhamento individual, começamos a ler textos que pudessem ajudá-lo a
perceber e a se adequar à fluência que os textos exigem, sempre levando em conta a entonação
e a pontuação. Lemos histórias em quadrinhos, pequenos contos, poesias, piadas, charadas,
rótulos e manuais. Fizemos leituras vivas, dramatizadas, encenamos alguns diálogos, fizemos
leituras de textos curtos e longos. Ao final do segundo mês de acompanhamento, a leitura de
EF estava mais fluida e sem a silabação que a caracterizava. No final de junho, ele me relatou
com muita alegria, que pela primeira vez tinha feito as provas sem que a professora lesse os
textos para que ele respondesse as perguntas e que teve desempenho acima da média da escola
(6,0) em todas as provas.
Retomando a avaliação inicial, a história de EF nos faz refletir sobre vários
problemas que o laudo gera. Primeiramente, o impacto emocional que tem uma sugestão
diagnóstica na vida de uma criança que não se percebe como alguém que tem problemas de
aprendizagem. A ansiedade de EF perante o laudo, a afirmação de que não sabia de nada disso
e que, de fato, vai bem na escola mostra a desestabilização causada na vida de uma criança que
já enfrenta vários problemas, como a depressão e o desemprego da mãe e do pai. Além disso, a
desestabilização emocional da família, que, diante de uma sugestão diagnóstica e da sugestão
de vários acompanhamentos, se vê em uma crise financeira que impede de atender às demandas
da clínica e sofre o desespero de não poder ajudar o filho em seu percurso escolar.
Ainda que o resultado final do laudo tenha sido apenas uma sugestão diagnóstica,
que poderia ser confirmada ou não nas próximas avaliações, vê-se o efeito que provoca na
família e na criança. A suspeita, acompanhada da recomendação de já providenciar os
105
acompanhamentos clínicos solicitados, gera uma mobilização na família, uma ansiedade sobre
o que fazer, a angústia de não poder pagar por aquilo que é pedido.
Vemos, ainda, que fica de fora da análise pedagógica a reflexão linguística
apresentada: no caso de EF, a persistência das dificuldades e o tipo de problema que ele
apresentava na leitura e na escrita bastaram para que fosse indicado para a clínica. Para Cagliari,
Sustentamos a hipótese de que a patologização tem servido, nos dias atuais, como
justificativa para o fracasso e evasão escolar, tão comuns no Brasil: uma vez apontada uma
patologia, retira-se toda a responsabilidade da escola, dos professores e das políticas
educacionais. A questão passa a ser individual, da ordem da patologia, devendo ser tratada com
medicamentos ou ser simplesmente aceita enquanto tal e responsável pela improdutividade do
sujeito ao longo de sua vida. Estudos recentes realizados no CCazinho, com crianças que
apresentam dificuldades no processo de leitura e escrita, mostram que as patologias com que
foram rotuladas não se confirmam e que as dificuldades que apresentam podem ser superadas
(COUDRY, 2007, 2009, 2010; BORDIN, 2008, 2010).
convidado a ler um texto diante de todos. Segundo os pais, ele não tem tempo de ler o texto
antes e lê espontaneamente hesitando apenas em pouquíssimas palavras, geralmente nas
palavras mais difíceis do texto bíblico e menos recorrentes em nosso cotidiano. Mostrei para a
professora um vídeo que eu tinha feito no final do mês de março de 2019 de EF enquanto lia
em voz alta uma história em quadrinho. Ela também recebeu com surpresa o vídeo e mal podia
acreditar que ele lia com tanta naturalidade. Conversamos sobre o fato de que EF é uma criança
que não gosta de se expor muito, que tem poucos amigos e sua sala de aula, que sente um pouco
de vergonha e ainda apresenta nervosismo, e sobre a ansiedade que apresentava no início do
ano passado quando pediam que lesse. Segundo os pais, na igreja, ele tem muitos amigos, é
querido por todos, interage bastante e vê ali um lugar de tranquilidade e conforto. Já na escola,
EF não gosta de muitas das crianças de sua turma, tem dois amigos com quem sempre faz as
atividades e, apesar de não se recusar a fazer o que a professora pede, mostra desconforto e
ansiedade quando precisa se expor. A professora revelou ainda que tem um pouco de
dificuldade em estabelecer vínculo com EF: ela busca ainda algumas maneiras de se aproximar,
mas sente que ele se mostra um pouco indiferente a ela, mesmo que não reclame nem para mim
nem para os pais da relação que têm.
No acompanhamento individual, conforme já apresentado, EF não teve nenhum
problema em estabelecer vínculo comigo, até porque o acompanhamento envolve sempre a
leitura e a escrita de textos pelos quais ele se interessa e, estando sozinho, sem colegas, fica
mais confortável em fazer perguntas, comentários e, enfim, se expor. Com relação às tarefas de
casa, a mãe de EF diz que ele não mostra tantas dificuldades (a professora de EF pensava,
inclusive, que a mãe dele corrigia as tarefas) e, apesar de ser um pouco preguiçoso, acaba
fazendo e estudando conforme a mãe pede e apresenta poucas dificuldades com a leitura e a
escrita.
A nossa hipótese é que a leitura na igreja, as tarefas de casa e a leitura no
acompanhamento representam para EF situações de conforto afetivo, em que ele não se sente
julgado ou avaliado, em que errar não é um problema. Na escola, em contrapartida, o erro é
sempre penalizado, ele é sempre avaliado em relação à turma, seu desempenho é quantificado
e isso pode gerar ansiedade, nervosismo e comprometer a leitura em voz alta. Sobre a
compreensão, todos concordamos que EF não apresenta problemas: compreende humor, ironia,
mudança de vozes da narrativa, diversos gêneros textuais e consegue responder questões de
leitura e interpretação de texto. Decidimos, por hora, que seria importante que EF não fosse
exposto em sala de aula e que as situações em que ele deve ler em voz alta fiquem restritas a
108
trabalhos em equipe em que ele se sinta mais confortável. Contudo, essa decisão não significa
que ele não precisará ler em voz alta: a professora ficou de conversar com ele, com a turma,
sobre a necessidade de não julgar as dificuldades dos colegas e, sobretudo, se comprometeu a
incentivar EF a fazer atividades com outros alunos de quem ele não é tão próximo para que
possa fazer mais amigos, conhecer melhor os colegas de sala e para que a sala de aula se torne
um ambiente menos hostil para ele.
Sobre a escrita, conversei com a professora sobre o fato de que EF está,
diferentemente dos outros alunos, ainda em processo de alfabetização. Esse processo, para ele,
começou mais tarde, como vimos, e foi permeado por uma série de questões, inclusive o trauma
da perda do avô e a situação da depressão da mãe - que ele se sente encarregado de proteger e
cuidar -, a relação com a professora e a escola nova, etc. Assim, ele ainda precisa do apoio da
fala para escrever, o que se torna inviável na escola: as provas e atividades cotidianas precisam
ser feitas em silêncio. Em sua casa e no acompanhamento, EF é incentivado por mim e pela
mãe a falar para escrever, a se apoiar na fala para verificar o traço de sonoridade, a nasal, a
verificar a posição da boca para verificar se deve usar a letra m ou a letra n antes das consoantes,
a falar em voz alta a sílaba complexa para verificar a posição dos constituintes e, sobretudo, a
ler o que escreveu para identificar e corrigir eventuais problemas. Na escola, nada disso é
possível, nem mesmo a correção individual, já que cada atividade tem seu tempo ou então a
correção é feita em coletivamente em lousa ou individualmente pela professora antes que EF
possa reler o que produziu.
As produções a seguir foram feitas ao longo do mês de abril de 2019. A primeira é
uma proposta de escrita feita em sala de aula, individualmente e em silêncio.
109
Figura 7 - Dado de EF
Já a produção a seguir é uma tarefa escolar que EF fez junto comigo, a pedido de
sua mãe. Juntos, fizemos o planejamento do texto, caracterizamos os personagens, elaboramos
o conflito e o desfecho e elaboramos as construções que seriam feitas, debatendo os melhores
conectivos e as escolhas lexicais. EF se apoiou na fala para escrever durante toda a escrita do
texto. Antes de passar ao dado, transcrevo as perguntas que ele fez sobre algumas
representações durante a escrita:
▪ Conversava é com s ou ç?
▪ Vizinhos é com s ou com z?
▪ Desempregado. É com p, né?
▪ Coleção é com ss ou com ç?
▪ Roubada, tem u?
▪ Eu não sei se quintal termina com l ou com u.
▪ ao ver. É uma palavra só ou são duas?
▪ pudesse. É com c ou ss?
▪ preso. É com s ou z?
Bob era um detetive aposentado que vivia em um bairro tranquilo nos Estados unidos. Ele só
conversava com seus vizinhos: Moley, que era colecionadora de peças antigas e Ken, que estava
desempregado. Certa noite, Bob ouviu barulhos na casa de Moley mais ele achou que eram
visitas e não voi verificar. No dia seguinte, ele bateu na porta mais ela não atendeu. Ele estranho
porque o carro dela estavala e as janelas estavam abrertas. Desconfiado, ele arrombou a porta
ver se estava tudo bem. Logo que ele entrou, já precebeu que a coleção de vasos de ouro tinha
sido roubada. Ele ficou desesperado e começou a procurar Moley pela casa. Infelizmente
encontrou Moley morta no quintal. Bob chorou muito e ligou para a polícia. Ken vendo a polícia
correu para lá e ficou triste ao ver a amiga morta. Uma semana se passou e a polícia não
descobriu nada. Bob decidiu ir na casa de Ken para ser se ele sabia de alogo que pudesse ajudar.
Checando lá ele viu vários vasos que pareciam ser de barro. Ele pensou: “será que são os vasos
da Moley disfarçados? Será que o Ken matou ela? Como farei para descobrir? Já sei! Bob teve
a ideia de pedir um copo de água para Ken e fingiu que tropeçou para derrubar água no vaso.
O baro dereteu e Bob gritou:
- Mãos ao alto. Você está preso pelo assassinato de Moley!
111
Figura 8 - Dado de EF
Figura 9 - Dado de EF
Tanto o dado quanto as questões de EF no momento da escrita nos mostram que ele
tem algumas questões relacionadas à convenção ortográfica, algumas ocorrências em que ainda
tem dificuldades com a sílaba complexa e algumas ocorrências relacionadas à segmentação.
Após o término do texto, pedi que EF relesse e ele fez as seguintes alterações: corrigiu voi por
foi, precebeu por percebeu, abrertas por abertas, alogo por algo, estavala por estava lá e
dereteu por derreteu. Indiquei para ele algumas outras correções, como o conectivo mais por
mas e baro por barro.
Em relação ao texto que EF fez sozinho, sem planejamento mediado por um adulto,
sem a oportunidade de tirar dúvidas e sem a possibilidade de reler e corrigir, é como se outra
criança tivesse escrito. EF mostra poucos problemas, especialmente de segmentação e de
representação de sílaba complexa. A atividade feita com a cuidadora mostra também que EF
113
tem plenas condições de planejar um texto a ser escrito, de reformular o que escreveu e de
identificar questões de ortografia ou de outra ordem e que a mediação do Outro ainda é
fundamental para que ele escreva como escreveu, ainda que a mediação tenha se concentrado
mais nos momentos anteriores à escrita e algumas vezes durante, nas questões de ortografia. É
inaceitável que a escola não dê oportunidades para que a criança mostre que tem condições de
fazer uma produção como essa, que desconheça o potencial das crianças e, ainda que penalize
aquelas que dão tudo de si quando as condições escolares não favorecem uma reflexão mais
profunda sobre a escrita, como aconteceu na primeira atividade. A primeira atividade era uma
prova de redação e EF tirou uma nota ruim, não correspondendo às expectativas da escola.
Entretanto, a escrita do texto com a cuidadora mostra que E não é incapaz de escrever um texto
organizado, pensando sobre as questões de ortografia e corrigindo o que precisa ser corrigido,
mas sim que escola não dá condições para que ele mostre do que realmente é capaz. Ao final
da reunião, a professora disse que não está certa ainda sobre a aprovação de EF ao final do ano.
Veja-se que uma criança que corresponde às expectativas escolares no contexto fora da escola
pode perder um ano inteiro com uma reprovação pelo simples fato de que a escola desconhece
o que ela consegue fazer com a leitura e com a escrita em outros ambientes.
Ressaltei, para a professora, que EF pode estar em um momento diferente do
aprendizado da leitura e da escrita em relação à turma, mas em relação à oralidade e repertório
lexical, ele certamente atende às expectativas da escola. EF sabe falar sobre os conteúdos que
está aprendendo em cada disciplina detalhadamente, explica conceitos de Ciências, História e
Geografia com precisão e está sempre atento às aulas. Isso não é comum entre as crianças em
idade escolar, especialmente as que têm algum tipo de dificuldade de leitura e escrita.
Concordamos que EF, de fato, apresenta dificuldades contextuais com a leitura e com a escrita
que se restringem à escola e ao modo como é organizada, bem como às sensações que a relação
entre ele, os alunos e a professora lhe causam.
Verificamos, ainda, que EF está em recuperação em algumas disciplinas não pelo
fato de não ter respondido corretamente às questões da prova, mas pelo fato de que cada
problema ortográfico gera o desconto de alguns pontos na nota final. Assim, EF é penalizado
não por não ter estudado ou por não ter prestado atenção na aula e não saber sobre os conteúdos
cobrados, mas por estar em um momento diferente da alfabetização. Ao final da reunião,
concordamos que essa penalização deve ser suspensa para que EF não precise provar na
recuperação o que já provou saber, até porque, se não puder falar em voz alta e revisar a própria
prova de recuperação, os pontos serão descontados e na nota continuará baixa. Entretanto, isso
114
não significa que ele não irá reescrever ou corrigir os problemas de sua prova: ele fará isso em
outro momento, em sua casa.
Por fim, a professora e a coordenadora quiseram saber mais sobre o trabalho
realizado no CCazinho, sobre minha pesquisa, sobre as dificuldades de EF e perguntaram se,
de fato, eu rejeito a hipótese diagnóstica de dislexia. Após minhas respostas, elas se mostraram
satisfeitas e se colocaram à disposição para ajudar no acompanhamento de EF, além de pedirem
dicas sobre o que fazer com outras crianças na mesma situação. Problematizamos o ditado, as
atividades cartilhescas, a cópia em sala de aula e elas pareceram receptivas e interessadas no
tema. Por fim, a professora relata sua maior inquietação: “é muito complicado quando a turma
está em um nível e um aluno está tão atrás”. Retomei, de novo, o fato de que precisamos
entender que ele é bom aluno, que ele acompanha sim a escola e que suas dificuldades, hoje,
envolvem a leitura em sala de aula e a escrita sem o apoio da fala. Disse, ainda, que com a
leitura recorrente, a criança deixa de precisar da fala para escrever e que naturalmente memoriza
a convenção ortográfica.
A história de EF, à luz da ND, provoca uma reflexão inevitável: o que faz com que
o professor e a instituição escolar analisem a escrita e o desempenho escolar de EF como
problemática a ponto de solicitar avaliação clínica? Que olhar é este que suspeita de patologia?
Como ele se consolida? Que processos históricos permitiram sua consolidação e que
características da contemporaneidade permitem sua manutenção?
Para finalizar este capítulo, apresentarei as etapas finais do nascimento da clínica
caracterizadas por Foucault, deixadas para este ponto da pesquisa por melhor se adequar ao
contexto da análise dos dados, que encaminhará para o estudo referente à formação de
professores. As considerações acerca desses momentos do argumento foucaultiano nos ajudarão
a verificar de que modo o raciocínio clínico permeia a análise pedagógica sobre as dificuldades
de aprendizagem e a entender melhor, no próximo capítulo, como a medicina se impõe à outras
análises.
20
O autor cita um medo generalizado de todos os aspectos que marcam a cidade, como a construção de oficinas
e fábricas, o aumento progressivo da população, o tamanho dos edifícios, as epidemias, os esgotos a céu aberto, a
construção das casas sobre covas, medo do desmoronamento das construções erguidas de maneira precária. “A
vida das grandes cidades do século XVIII, especialmente Paris, suscitava uma série de pequenos pânicos. O pânico
urbano é característico da população, da inquietude político sanitária que se foi criando à medida que se
desenvolvem a engrenagem urbana”. (FOUCAULT, 1974, p. 12)
21
Neste contexto, Foucault relaciona as ações do governo e da política de medicina urbana estabelecida às mesmas
ações tomadas na idade média diante da propagação da lepra, que envolvia a quarentena e o exílio. Na idade média,
o poder político da medicina consistia, segundo Foucault, na distribuição, asilo, vigilância, verificação do estado
de saúde e comprovação de sua morte, a fim de criar na sociedade um espaço dividido, inspecionado e totalmente
vigiado pelo registro clínico de todos os aspectos da saúde e da doença. Sem se distanciar muito dessa forma de
operar com os doentes característico da idade média, a medicina urbana estabelece alguns objetivos, tais quais: a)
análise dos espaços de superlotação urbana que, aos olhos do governo, eram espaços de perigo, confusão, caos,
sujeira e, portanto, lugar de possível proliferação de epidemias, b) não mais o controle da circulação de indivíduos,
as do que fazia parte de suas vidas, sobretudo a água e o ar, já que era uma crença característica do século XVIII
de que a má qualidade da água e do ar, uma vez comprometidos pela aglomeração urbana pelo terreno, pela falta
de ventilação nas cidades após a construção dos edifícios era uma das causas das epidemias; c) a organização dos
sistemas de esgoto e circulação da água, também responsáveis pela proliferação de epidemias.
116
as condições de vida e sobre a garantia da existência saudável, estabelecendo o que era da ordem
do salubre e do insalubre, do normal e do anormal.
Criam-se categorias de indivíduos anormais para quem é preciso destinar
intervenções de correção, padronização e esquadrinhamento a fim de que possam deslocar-se
para a categoria dos normais. Esse regime de atuação clínica, assim como de outras estruturas
de poder, é, segundo o autor, ininterrupto, já que as normas mudam e as categorias normal e
patológico são frágeis, com fronteiras que se delimitam de maneiras diferentes em diferentes
sociedades e épocas. Assim, haverá sempre os sujeitos chamados por Foucault de
inclassificáveis ou incorrigíveis, que não se encaixam em padrões que são considerados
adequados e normais a partir de premissas morais e valores próprios de uma sociedade e de
uma época– com base nas quais as estruturas de poder criam e recriam padrões de normalidade
a fim de poder classificar, corrigir, esquadrinhar e impedir que os incorrigíveis se desloquem e
façam parte desta estrutura. É desta maneira que se promove a exaltação e a compensação aos
normais, inferiorizado e castigando os anormais, em uma constante manutenção da positividade
assentada na negatividade atribuída ao anormal. Não se pode ignorar, portanto, que a
manutenção da polaridade entre normalidade e anormalidade construída a partir de premissas
históricas e culturais, tem efeito direto nas possibilidades de participação social do sujeito.
Portanto, estão em jogo “expectativas e esperanças pessoais, regras sociais, conhecimentos
legitimados como verdadeiros, estratégias de convencimento, o que envolve não só o biológico,
mas também o social, o histórico e o pessoal” (BARBARINI, 2011, p .71)
Neste processo, a intervenção da medicina não se restringiu somente às doenças
contagiosas, mas se estendeu também às doenças mentais, representadas principalmente pela
loucura, que, contrariamente às doenças vinculadas à pobreza, não demandava prevenção, mas
sim intervenção de uma área específica da medicina: a psiquiatria. A loucura se torna perigo
em potencial e um grave atentado àquilo que era convencionado como moral pública. Assim,
medidas específicas foram tomadas, como a urgente retirada o louco do convívio com os sãos
na cidade, seu isolamento em um local adequado (o hospício) e o tratamento. Para Foucault, a
necessidade de disciplinar o louco fez com que nascesse um novo poder, o poder psiquiátrico,
embasado na disciplina.
No que toca à intervenção clínica nas dificuldades escolares, a medicina encontrou,
para as crianças que não aprendiam, um destino semelhante ao que deu aos chamados loucos:
a escola de educação especial ou as instituições para os deficientes.
117
ou, melhor, seu único lugar de atuação possível é a instituição. Desta maneira, é preciso levar
em conta que a institucionalização da educação especial é geradora de concepções de
normalidade e anormalidade, integração e segregação e revela, ainda, o processo de
disciplinarização e da socialização de corpos, tratado por Foucault. Para o autor, o capitalismo
socializou os corpos em função da força produtiva, o que mostra que o controle da sociedade
vai além do controle da consciência e da ideologia, mas exerce-se no corpo. Para a sociedade
capitalista o importante era o biológico, o somático, o corporal antes de tudo. “O corpo é uma
realidade biopolítica. a medicina é uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 2007, p. 47).
A discussão sobre normalidade no âmbito da ND se apoia diversos autores,
especialmente aqueles que tratam das dificuldades normais e constitutivas do aprendizado,
como vimos neste capítulo. Entretanto, em uma perspectiva mais ampla, a ND recorre à
Canguilhem (1982) para tratar da barra que separa a normalidade da anormalidade.
Para o autor, a saúde implica agir de forma normativa e adaptar-se a qualquer
contingência. Entretanto, é proposta uma nova leitura para a palavra adaptação: não como
submissão à normas externas, mas como criação e imposição de novas normas, já que “a vida
não é indiferente às condições nas quais ela é possível, a vida é polaridade e, por isso mesmo,
posição inconsciente de valor, em resumo, a vida é, de fato, atividade normativa”
(CANGULHIEM, 1982, p. 96). Temos, portanto, uma concepção sobre o que é saúde e sobre
o estado de estar sadio que difere radicalmente dos períodos anteriores, que privilegiavam a
identificação de sintomas e classificação de doenças:
“Ser sadio significa não apenas ser normal numa situação determinada, mas
ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações eventuais. O que
caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o
normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e
de instituir normas novas em situações novas [...] em seu sentido absoluto, ela
[a saúde] nada mais é que a indeterminação inicial da capacidade de instituição
de novas normas biológicas.” (CANGUILHEM, 1982, p. 158)
Para o autor, “o doente não é anormal por ausência de norma, e sim por incapacidade
de ser normativo” (CANGUILHEM, 1982, p.148). Entretanto, mesmo que o autor defina a doença
como a incapacidade de ser normativo, não exclui que há normas na doença.
22
A reação termidoriana é uma das fases que compreende o final da Revolução Francesa caracterizado pela
marginalização política da população, a perda de direitos básicos e a anulação de diversas conquistas trabalhistas,
sociais e na área da educação.
122
reivindicações foram atendidas e alguns anos após as revoltas, o ensino da medicina foi
normalizado e os hospitais retomaram o funcionamento. Entretanto, a nova prática não estava
mais restrita à constatação, mas busca, diferentemente das etapas anteriores, a possibilidade da
descoberta, fazendo jus ao clamor popular por mais investimentos para o desenvolvimento de
uma medicina que avançasse no sentido de descobrir a cura para as doenças e maneiras de
erradicar as epidemias que ainda assolavam a França.
É preciso ressaltar que, não obstante, se manteve uma divisão que configurava o
atendimento médico: os hospitais eram destinados às classes populares e as clínicas eram
reservadas aos ricos. Neste contexto de observação das classes mais populares a partir de
premissas preconceituosas sobre suas práticas religiosas, morais, hábitos de alimentação,
moradia e vestimenta, se assenta a construção do método clínico: a observação e normatização
dos mais pobres para que se exalte e aprimore a vida dos mais ricos.
Tendo em vista que ainda mantinha firmes as raízes na medicina classificatória, o
olhar clínico não escapa de estreitar sua relação com a linguagem através da diferenciação feita
entre signos e sintomas. Grosso modo, os sintomas incorporavam tudo que era visível aos olhos
(febre, coriza, tosse, manchas etc), enquanto os signos eram todas aquelas perturbações que não
são evidentes, mas que não escapam à investigação clínica. Assim, tudo aquilo que era
enunciável poderia se tornar visível dizível e, por conseguinte, possível de ser pedagogizado e
ensinado: “o percebido e o perceptível podem ser integralmente restituídos em uma linguagem
cuja forma rigorosa enuncia sua origem” (FOUCAULT, 1980, p. 109). Moysés reforça,
entretanto, que poder ver e dizer não retiram por completo as incertezas do saber médico, o que
resulta em um movimento de constante busca por apagar essas incertezas e por buscar
neutralidade e objetividade a fim de poder prometer a garantia de saúde e de felicidade que só
a medicina poderia dar.
Ao abstrair o doente, em suas individualidades, de seu campo perceptivo, do
visível, ao considerar a doença como um acontecimento em suma série, a
medicina irá debruçar seu olhar apenas sobre o genérico, o fato repetitivo –
buscando as repetições para enxergar o genérico – afastando de seu campo
visual tudo que possa perturbar a percepção desse genérico. A individualidade
de cada sujeito, doente ou sadio, continua sendo o principal fator de
perturbação para o olhar clínico, que precisará, então, para poder exercer
silenciar o corpo do doente, fixando-se no corpo doente genérico. A medicina
ainda não resulta do encontro do médico com o doente. (MOYSÉS, 2001, p.
160-161)
lesões seriam explicações diretas para os sintomas das doenças. Para o autor, não há nada de
inovador nesse olhar: pelo contrário, nada mais é que colocar novamente em prática o olhar
classificatório, já que, segundo Foucault, o olhar era novamente um olhar de superfície, que
analisa, constata e classifica. A principal proposta de Bichat era que a medicina lançasse o
mesmo olhar que lançava para os mortos também para os vivos. “Se olham os mortos como se
olham os vivos, o reverso pode ser verdadeiro: pode-se olhar os vivos como se fossem mortos.
O sujeito, doente ou não, é definitivamente marginalizado pelo olhar médico, agora olhar
anátomo-patológico” (MOYSÉS, 2001, p. 164). Partir do estudo minucioso da lesão implicou
em certa reorganização da linguagem médica, que passou a reconhecer que a doença poderia se
manifestar de maneira singular entre as pessoas e que era um desvio das condições normais de
saúde.
Por fim, Foucault cita as pesquisas de Broussais como fundadoras do método
anátomo-clínico, tal qual é conhecido atualmente. Há o desaparecimento do ser da doença e o
olhar se volta para a sua causa. O organismo é visto como alvo de um agente irritante que
provoca uma doença. O procedimento passa a ser, então, a verificação da estrutura orgânica
afetada por uma irritabilidade, a busca pela causa, para que seja evitada, e a busca pela cura.
Assim, ainda que o olhar esteja mais atento ao corpo do doente, não escapa a um certo
procedimento classificatório. Moysés analisa, finalmente, como este percurso histórico marca
ainda olhar clínico atual e como podemos verificar os resquícios de cada uma dessas etapas até
mesmo nas consultas médicas na atualidade: “Sob o crivo do olhar médico – revelado no
discurso médico – o sujeito, doente ou saudável, continuará, até hoje, cumprindo sua sina de
ser mera perturbação, ou acidente em uma série de eventos” (MOYSÉS, 2001, p. 168). Para a
autora, a consulta médica é um exemplo da percepção do doente como uma perturbação no
processo diagnóstico, já que assume um caráter genérico, uma relação desigual, vertical, na
qual o médico está no topo da hierarquia e , sobretudo, porque a busca-se uma análise na qual
o que é da ordem do subjetivo deve ser afastado por ser considerado impreciso, não-palpável,
invisível e pode ser inútil ou prejudicial.
III
O OLHO CLÍNICO DO PROFESSOR: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
Após a apresentação das etapas do nascimento da clínica feita nos últimos capítulos,
trataremos, agora, de uma nova etapa elencada por Moysés (2001): a era dos transtornos.
Para compreender a caracterização desta nova etapa, é preciso compreender,
primeiramente, o que Coudry chama de vagueza determinística, conceito que se alinha ao de
obscurantismo reinventado (MOYSÉS & COLLARES, 2013). De que trata esse termo? Em
linhas gerais, aludem a um processo que envolve a) o raciocínio clínico que permanece
classificatório b) a classificação, conforme tratada anteriormente, pautada em generalidades, na
abstração das singularidades dos doentes que implicam em c) testes padronizados com critérios
vagos e imprecisos que avaliam o comportamento, o aprendizado, a leitura e a escrita e que
patologizam dificuldades normais enfrentadas por crianças em processo de alfabetização,
determinando negativamente seu percurso escolar, praticamente sentenciando-a a não aprender
a não ser pelas intervenções clínicas. Para as autoras, os testes, além de serem norteados por
concepções de linguagem, sujeito e cérebro puramente organicistas, que desconsideram a
determinação social e cultural complexa do sujeito, são constituídos por perguntas mal
formuladas, vagas, imprecisas, sugestivas, fora de contexto e que impõem um modelo normativo
ao qual o sujeito deveria adequar-se.
Todas essas questões, e suas respostas possíveis (geralmente as questões devem ser
respondidas objetivamente com sim, não, frequentemente e raramente), igualmente vagas e
descontextualizadas, infelizmente, são utilizadas como critérios diagnósticos, como avaliação do
aprendizado e de operações cognitivas, e, segundo Moysés e Collares, (2013) acabam por
“translocar para o campo médico os problemas inerentes à vida, com a transformação de questões
coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas” (p. 42). Para Coudry
(2007), a vagueza determinística dos testes e questionários padronizados de diagnóstico acabam
por desconsiderar questões próprias do aprendizado de leitura e escrita e analisam como
sintoma/desvio as hipóteses construídas pela criança sobre a representação da linguagem escrita,
foco desta pesquisa.
128
Este provocativo fragmento de Moysés e Collares nos inquieta e nos convida a sair
em defesa desses personagens da infância: as singularidades de cada um desses personagens
que fizeram parte do percurso de leitura dos brasileiros, e as quais acabamos por carregar em
parte conosco, que nos divertiram, que nos inspiraram e que são também parte de nós, às quais
nos mostramos saudosos e nas quais não vemos, em absoluto, sinal de anormalidade e sim, de
infância feliz; são sinal de perigo, sintoma e desvio para o olhar clínico? Infelizmente, sim. A
experiência no CCazinho com diversas crianças com laudos de supostas patologias relacionadas
à aprendizagem corrobora a afirmação de Moysés e Collares de que estamos vivendo em uma
nova era da medicina que, entretanto, quase nada tem de nova, por retomar práticas da medicina
classificatória: “uma época em que as pessoas são despossuídas de si mesmas e capturadas na
teia de diagnósticos-rótulos-etiquetas, antigos em novos, cosmeticamente rejuvenescidos ou
reinventados” (MOYSÉS & COLLARES, 2013, p. 44).
Para Foucault, trata-se da medicalização do social: a normalização médica, a
racionalidade clínica, a lógica anátomo-clínica é imposta aos indivíduos de maneira a abarcar
todo e qualquer aspecto da vida humana, “traduzindo-os em termos médicos de saúde e doença,
portanto, inscrevendo-lhes na ordem médica, ordem dotada de uma racionalidade própria onde
circula um conjunto de representações” (HORA, 2011, p. 55)
Há, ainda, outro aspecto relevante característico da era dos transtornos que não pode
ficar fora desta reflexão: a retórica da inovação científica que acompanha cada reformulação do
discurso médico acerca das patologias, especialmente as do aprendizado. Se a medicalização
avança, mesmo com a já citada vagueza determinística ou pautada no obscurantismo
reinventado, é porque se sustenta no discurso de que os novos diagnósticos e tratamentos são
resultados de revoluções tecnológico-científicas que permitem identificar doenças antes
129
desconhecidas, o que legitima o discurso médico e atrai a atenção dos leigos. O recurso às
interpretações clínicas para investigar as dificuldades escolares é justificado pelos avanços das
ciências neurocognitivas, pelos novos testes de inteligência ou mesmo pela possibilidade de
fazer exames de neuroimagem. Entretanto, é preciso lembrar que as categorias diagnósticas
mais utilizadas hoje, como, por exemplo, a dislexia, já existem há mais de um século.
evitando sua proliferação através da inspeção do ambiente - a vacinação como meio de extinguir
doenças virais e bacterianas, a investigação da cura e prevenção de doenças degenerativas
dentre inúmeras outras conquistas que garantem a longevidade e a qualidade de vida da
população23.
Paralelamente, o que esta pesquisa também não nega e, sobretudo, evidencia,
alinhada às reflexões de Coudry (2007, 2009, 2010) Bordin, (2010), Müller, (2014, 2018)
Moysés (2001), Moysés e Collares (2013), Hora (2011), Monteiro (2015) são dois processos
que parecem ficar ocultados na história médica atrás do muro que as verdades produzidas pela
pretensa cientificidade ajudaram a construir: a) a fundamentação dos procedimentos teóricos e
metodológicos da medicina em pressupostos racistas, eugênicos, higiênicos e elitistas
construtores de generalidades e silenciadores da diversidade e b) a associação entre medicina e
Estado para transformar indivíduos e práticas que fossem economicamente interessantes ao
governo, inclusive no espaço escolar, conforme apresentarei a seguir.
Neste capítulo, recorremos às reflexões de Foucault sobre a repercussão da
sociedade disciplinar24 na escola. Segundo Foucault (2008), o poder disciplinador exercido pela
medicina e pelos médicos se expandiu para o ambiente escolar. A cultura de cura vigente se
definia como uma cultura da marginalização da parcela mais pobre da população e da negação
de seus próprios hábitos de curar, falar, trabalhar, morar, comer – todos vinculados à
proliferação e contágio das doenças, como vimos no capítulo anterior.
Conforme já tratado, o método anátomo-clínico não escapa da lógica classificatória
e se insere na perspectiva de que as individualidades e a história do sujeito eram perturbações
e obstáculos a serem vencidos no exercício diagnóstico – reduzindo a pessoa ao seu corpo
biológico, reduzindo a análise a aspectos puramente orgânicos. Nesta perspectiva, incluía-se a
aprendizagem: o sujeito é uma perturbação que impede a análise objetiva da inteligência,
23
Não negamos, ainda, a importância da escola como instância de propagação de maneiras de prevenção às mais
diversas enfermidades, sobretudo as contagiosas, tais quais a dengue, a febre amarela, o sarampo, a gripe, etc. Não
negamos a importância do estudo das ciências naturais nos mais diversos momentos da escolarização como
instrumento de compreensão do modo de funcionamento do corpo humano, dos ecossistemas, da vida em geral.
Dessa forma, a importância da investigação e atuação médica é inegável e, sobretudo, consideradas, nessa
pesquisa, imprescindíveis para que pudéssemos comemorar, na contemporaneidade, a erradicação ou a diminuição
significativa de diversas doenças, como a varíola, a tuberculose, a poliomielite, a hanseníase, dente outras. Não se
trata, portanto, de desvalorizar, desmoralizar ou descreditar a Medicina ou a Escola como importantes instâncias
de conscientização coletiva sobre as questões relacionadas à saúde.
24
Ainda que Foucault desenvolva sua argumentação e a caracterização dessa sociedade a partir das peculiaridades
da sociedade francesa e elas não possam ser literalmente aplicados no Brasil, é inegável que a sociedade brasileira
assume características e mecanismos muito semelhantes aos da sociedade disciplinar por ele descrita, uma vez que
comporta elementos que herdou de outras culturas e sociedades. Além disso, a produção intelectual brasileira teve
fortes raízes europeias, tanto pela dominância econômica e cultural europeia quanto pela formação da
intelectualidade brasileira em terras estrangeiras, especialmente na França e na Alemanha.
131
apreendida do ponto de vista orgânico, independente das relações sociais e do contexto histórico
e social no qual se insere o sujeito. A aprendizagem é vista como apenas mais uma parte do
corpo biológico, que traduz um “pensamento reducionista, que pretende tomar o todo pelas
partes. Se parte de um corpo biológico, a aprendizagem será, também, olhada como algo
biológico. Abstrata, genérica e biológica”. (MOYSÉS, 2001, p. 176). Assim, a não-
aprendizagem é tomada, neste processo de abstração, como sintoma ou anormalidade um corpo
meramente biológico cuja história deve ser silenciada em nome da objetividade do olhar clínico.
Ademais, a aprendizagem, assim como a inteligência e o comportamento são, nessa perspectiva,
tomadas com elementos inatos, abstratos, independentes do próprio sujeito.
É preciso ressaltar, aqui, o critério estabelecido para a definição de normalidade. Se
a escola era restrita às classes que incorporavam a elite, o comportamento que desvia do modus
operandi que a caracterizava já era considerado anormal e um dos alvos de controle,
normatização e disciplinarização. Na sociedade disciplinar a norma tem papel central, uma vez
que está diretamente ligada ao poder: o poder é exercido para a manutenção da norma. Nesta
perspectiva, é preciso, portanto, estabelecer, consolidar e divulgar concepções positivistas de
normalidade que não possam ser colocadas em xeque, que sejam de fácil aceitação – ainda que
a objetividade e o caráter científico da medicina abram poucos ou quando nenhum espaço para
questionamentos – e que possam ser divulgados. Assim, acontece a redução de todos a uma
única norma possível, estudos quantitativos são privilegiados enquanto aos qualitativos é
atribuído caráter duvidoso e acientífico, uma vez impossível de atestar regularidade. A
medicina, então apaga a individualidade e estabelece que tudo que se afasta da norma, do
padrão, ou que seja pertencente a outras normas é um desvio, é da ordem da anormalidade.
“Normas construídas no mundo dos homens, políticas em essência, são reificadas,
naturalizadas” (MOYSÉS, 2001, p. 230).
Para Foucault, o poder da norma pressupõe o poder dos que definem, aplicam, e
avaliam a norma. Neste contexto, surge, no interior das estruturas normatizadoras de poder, a
necessidade de instrumentos de avaliação normativos que possam ser aplicados no interior da
medicina, da psicologia e da educação como régua que mede a normalidade ou como linha que
separa os sujeitos em normais e anormais. Uma vez elaborados pelos profissionais que
constituem essa gama de ciências, o instrumento de avaliação normativa não deixa de ser,
também, o espelho dos valores, preconceitos, suposições e premissas dos que os elaboram a
partir de seu olhar hierárquico, na tentativa de medir a distância entre os que estão na média e
os que estão, segundo eles, fora dela. Para Moysés, esse olhar tem sido, ao longo dos tempos,
132
25
Professora associada e aposentada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis
(UCP). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Disciplina Escolar, atuando
principalmente nos seguintes temas: formação de professores, currículo, saúde e educação, história do currículo e
história da educação brasileira. Autora do livro O olho clínico do professor: um estudo sobre conteúdos e práticas
medicalizantes no currículo escolar, uma das principais referências dessa pesquisa.
133
espaço para remédios, avaliações clínicas e até mesmo para a contratação, peça escola, de
psicólogos e médicos.
Há a divisão das crianças desviantes em dois grandes grupos: as que são anormais
porque não aprendem e as que são anormais porque o comportamento não se alinha às normas
da escola. Assim, as primeiras são chamadas de retardadas, com déficit mental e atrasados, e as
segundas são as delinquentes, bárbaras, instáveis. Surge, então, a demanda pelas classes de
alunos especiais, nas quais ficariam os alunos que não aprendiam por razões diversas, assistindo
a aulas mais curtas e que tinham foco em conteúdos que pudessem levá-los a ter uma profissão
que não envolvesse o saber erudito, clássico, mas apenas a instrução para o trabalho braçal.
Sobretudo, o foco dessas aulas eram questões morais e comportamentais: a docilização de
corpos, nas palavras de Foucault (2008). Já nas classes nas crianças consideradas normais, o
foco era a erudição, a instrução clássica.
Para Foucault, esse era um processo disciplinatório, que inseria a disciplina dentre
as demais técnicas de poder, definidas pelo autor como um conjunto de técnicas pelas quais os
sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade. O autor
amplia esta reflexão apontando que a principal maneira de coerção das singularidades dos
sujeitos – em busca constante de homogeneização - reside na disciplinarização de seu corpo a
partir de um perfil pré-estabelecido de como todos devem se apresentar fisicamente e se
comportar social e psicologicamente de forma a se tornar tanto mais útil, quanto mais obediente.
Nesse processo, segundo Foucault, o corpo é alvo dos mecanismos de poder, de forma que tais
mecanismos os esquadrinham, desarticulam para que por fim possa recompô-los. “A disciplina
fabrica assim corpos submissos e exercitados, os chamados "corpos dóceis". A disciplina
aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças
(em termos políticos de obediência)”. (FOUCAULT, 2008, p. 119)
O autor aponta convergências entre este processo disciplinar social pautado na
medicina e o processo disciplinar escolar, também por ela orientado. O espaço escolar foi
estruturado em nome da possibilidade de vigiar, punir, disciplinar e controlar os alunos,
abrangendo não apenas as classes de alunos especiais, mas as dos alunos considerados normais
também: a separação em classes, fileiras, dispostas de modo a ficarem de frente para o centro
de poder (exercido pelo professor), a categorização dos alunos baseada no critério das
capacidades e do perfil de cada um etc. Para ilustrar esse aspecto da disciplina escolar, Foucault
remete a um fragmento bastante elucidativo de Conduite des écoles chrétiennes, de Jean-
Baptiste de La Salle:
134
“As crianças da classe dos condenados, crianças que falam a nossa língua mas
não entendem nosso sermão, aquelas que mais parecem animais selvagens e
sobre quem só se pode falar que não são capazes de nada, são exemplo
contundente de como a avaliação da escola não mira exclusivamente no
aprendizado, mas muito mais, na pretensão de um acesso privilegiado, quase
mágico, à essência de cada um, ás suas capacidades e possibilidades futuras,
a toda sua vida, passada, presente e futura. Pretensão de acesso, propósito de
controle.” (MOYSÉS, 2001, p. 208-209)
Moysés dá continuidade à sua análise e traça um outro paralelo a partir de mais uma
mudança histórica: ocorre, na França, uma mudança em relação ao que se considerava crime de
grande gravidade. Passa-se a dar mais importância aos roubos e furtos do que aos crimes contra
o Estado, como o contrabando e a inadimplência no pagamento de taxas e impostos. Assim, um
novo tipo de delinquente é delineado: o sujeito improdutivo, que furta e usurpa os bens da
burguesia. É neste panorama que a autora relaciona a improdutividade do criminoso à
improdutividade da criança que não aprende: se não aprende, está destinada a ser improdutiva,
se é improdutiva, ou gera gasto social, ou furta da sociedade. “Um homem improdutivo não
está, pois, cometendo uma infração? Não seria muito tênue a diferenciação entre esse homem e
o homem que furta” (MOYSÉS, 2001, p. 2017). Assim como aos ladrões destinam-se as
135
26
A princípio, estes serviços, por serem caros, eram destinados apenas às classes dominantes. Entretanto, a busca
por sua legitimação e ampliação de atuação e divulgação do novo ideário, e, sobretudo, de controle, faz com que
sejam destinados também às classes populares. Para Moysés, ainda que atendidas, nenhuma dessas crianças escapa
ao estigma de criança anormal: a criança que não aprende e se encontra fadada a um futuro a ela pré-determinado,
certamente muito diferente daquele que poderia viver caso não fosse classificada como anormal e encaminhada
para classes especiais/hospitais. Uma vez que a medicina passa a partir do princípio que existem as doenças do
não aprender, coloca-se como responsável pelo estudo, classificação, identificação e desenvolvimento de
tratamento para essas doenças, sendo o único eixo científico legítimo para analisar a criança que não aprende por
razões patológicas.
136
preconceituosas e elitistas sobre as dificuldades das crianças, estando assim sempre destinados
a “demonstrar cientificamente a verdade de sua infração: sua improdutividade” (MOYSÉS,
2001, p. 219). Assim, são poucos os casos que a criança terá, por meio desses testes e laudos
sua normalidade ali atestada pela própria concepção de normalidade que subjaz esses
instrumentos.
deixam de estar interacionados de alguma forma aos aspectos externos. O autor ressalta que os
aspectos externos são sempre relacionados às ideologias dominantes, que impõem pontos de
vista específicos sobre a educação e buscam estratégias de legitimação discursiva, o que nos
permite perceber, portanto, na análise dos currículos, quais são os processos políticos, sócio-
culturais e históricos dos quais resultam. Nesse processo, pode-se identificar as mais variadas
influências e até mesmo o conflito de interesses de grupos que se alinham ou se opõem, como
empresas, sindicatos, universidades, associações médicas, pedagógicas, etc.
A autora segue retomando (p. 39) as reflexões de Goodson e apresenta as três
hipóteses do autor sobre a organização curricular e as relaciona com a disciplina Biologia
Educacional:
a) Primeira hipótese: os conteúdos não são entidades monolíticas, mas uma
amálgama mutável de subgrupos e tradições. As investigações de Hora apontam que a
disciplina Biologia Educacional é produto do enlace de outras disciplinas que já buscavam
reconhecimento e espaço no meio acadêmico, tais quais a História Natural e a Higiene no fim
do século XIX e início do século XX.
b) Segunda hipótese: no processo de estabelecimento de um conteúdo escolar e
uma disciplina universitária, os grupos de base de determinado conteúdo tendem a mudar, da
promoção de uma tradição utilitária e pedagógica, em direção a uma tradição acadêmica.
Hora nos mostra que a disciplina Biologia Educacional manteve seu caráter utilitário, porém
não se distanciou da pesquisa, já que oferecia ao professor a oportunidade de trabalhar com
paradigmas científicos e enfatizava exaustivamente as bases biológicas que capacitariam o
professor a investigar o corpo e o comportamento do aluno no cotidiano. Posteriormente, a
disciplina avança da escola normal para as universidades e escolas-modelo, o que lhe confere
o caráter acadêmico citado pelo autor.
c) Terceira hipótese: a interpretação dos debates curriculares relativos às
disciplinas curriculares precisa considerar a luta por espaço, status e recursos. Destaca-se,
aqui, a luta dos médicos por espaço, status e recursos. Uma vez que a construção do
conhecimento escolar não se resume a uma luta na qual diferentes grupos reivindicam espaço
para seus saberes por julgá-los éticos, mais adequados, utilitários ou acadêmicos ou mais
científicos que outros, e, portanto, mais importantes para as futuras gerações, cabe a questão: o
que mais, para além da luta por reconhecimento, embasa a justificativa para incluir uma
disciplina na grade de formação profissional? Para Hora, a resposta está no processo em que se
vê a associação entre médicos e professores com o objetivo de partir da razão médica para
138
27
Hora aponta que atualmente ainda é possível verificar a legitimidade que a noção de cátedra confere ao médico:
vemos tantos receituários nos quais os médicos ainda exigem que conste sua titulação ou cargo de professor adjunto
em universidades nacionais e internacionais.
139
sobretudo, de sujeitos aptos a se tornarem mão de obra útil ao Estado. São os fatores externos
determinantes do currículo apontados por Goodson.
experiências familiares, adotou o saber da ciência e sua racionalidade como mediadores entre a
periculosidade do mundo e a família indefesa em sua ignorância e garantiu ao médico o papel
de orientador social da família.” (BARBARINI, 2011, p. 62)
Para Patto28 (2015), a Primeira República, especialmente a década de 20, é um
período chave na história brasileira e nos permite entender como se deu o estreitamento das
relações entre a Educação e a Medicina. Para a autora, apesar de surgirem poucas mudanças em
relação ao período anterior, escravocrata e monarquista, muitas ideias acerca da natureza
humana, da natureza miscigenada do brasileiro e acerca do que é aprender surgiram e se
consolidaram no discurso oficial da Medicina. Entretanto, a autora ressalta que nesse período
há uma distância entre o que foi proclamado e entre o que se colocou em prática em termos de
políticas públicas ou ações concretas na escola, o que não impediu que certas relações entre
aprendizado e raça, aprendizado e pobreza, aprendizado e cultura se estabelecessem e se
consolidassem, especialmente em um cenário político e econômico no qual as ideias liberais
começam a transitar. Crê-se que, uma vez abolido o trabalho escravo e com a condição de
trabalhador livre dos negros, o sucesso e a mudança de classe social era reduzido a uma questão
de aptidões naturais. Assim, nesse contexto, surgem as discussões sobre as supostas diferenças
entre raças e classes populares e o olhar se debruça também sobre as diferenças de rendimento
escolar entre negros e brancos, pobres e ricos. Patto afirma que não é coincidência, portanto, a
correspondência entre a consolidação do ideário liberal29 no Brasil e o avanço científico do que
chama de “psicologia das diferenças individuais que, aliada aos princípios da Escola Nova,
transplantou para os grandes centros urbanos brasileiros a preocupação em medir essas
diferenças e implantar uma escola que as levasse em consideração”. (PATTO, 2015, p. 78).
Nesse cenário, a educação parece ser preocupação do governo apenas na retórica política, já
que, na prática, pouco se fazia: nas primeiras duas décadas da primeira república, menos de 3%
da população frequentava a escola, em todos os seus níveis, e 90% da população adulta era
analfabeta.
28
Maria Helena Souza Patto é professora aposentada da Universidade de São Paulo, onde desenvolveu uma vsta
pesquisa sobre a história do fracasso escolar no Brasil no âmbito da psicologia social. Autora do livro A produção
do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia, uma das principais referências dessa pesquisa.
29
Ainda que a sociedade brasileira se mantivesse baseada no tripé monocultura-latifúndio-escravidão, arraigada
nos antigos costumes do Império e embora se debruçasse sobre toda a produção cultural e econômica europeia
para imitá-la, havia um grande abismo entre o Brasil escravocrata e o liberalismo europeu, que conseguia manter
as aparências de uma suposta igualdade de todos perante a lei. No Brasil, ainda que a proclamação da república
tenha sido embasada nos princípios franceses de igualdade, fraternidade e liberdade, mantinha-se o hábito de
arranjar e comprar votos para a eleição e permanência dos grandes latifundiários no poder, fazendo com que um
movimento de independência que foi disparado também por ideais democráticos e liberais nunca deixasse de ser,
de fato, elitista, autoritário, excludente e desigual, sem pretensão alguma de mudança que provocasse trânsito da
população entre as classes sociais.
141
com a pesquisa dos intelectuais brasileiros no exterior sobre as novas tendências da educação,
um novo olhar e uma nova concepção da escola, especialmente a necessidade de ampliação de
acesso e a necessidade de transformação da teoria e da prática. Mesmo que inspirados por ideias
liberais de capacitação da força de trabalho, os reformistas provocaram um movimento de
constante repensar a educação, o que se mostrou positivo ao longo dos anos e que faz com que
a Educação não seja, pelo menos em tese, uma ciência estática, conformista, congelada e presa
aos mesmos saberes e práticas.
Paralelamente à movimentação política que tinha como objeto a educação, tinha
continuidade o processo de replanejamento urbano, norteado, sobretudo, pelos médicos
(BARBARINI, 2011). Nesse contexto, o papel do médico se amplia na sociedade brasileira:
não mais a figura fria isolada no interior do hospital, mas o profissional que anda pelas ruas, se
aproxima de todos, inspeciona as casas, reconfigura o espaço urbano e, por conta dessa função,
se aproxima das famílias e passa a exercer a função de conselheiro. Conselheiro que julga, a
partir da racionalidade médica, os hábitos, a moral, a pobreza, o mérito, a religiosidade, a
moradia, enfim, todos os aspectos da população. A presença generalizada do médico no espaço
urbano passa a ser, assim, mais um instrumento de vigilância e de manutenção da disciplina, no
sentido foucaultiano.
O tratamento dispensado pelos médicos às famílias dos grandes centros urbanos e
às famílias marginalizadas era diferente e fundamentado na distância social, linguística e
intelectual que existia entre médicos e a parcela mais pobre da população, justificada pelas
práticas de cura consideradas extra medicinais recorrentemente utilizadas por elas: mistura de
ervas, simpatias, benzedeiras etc. O que se pretendia era criar mecanismos legitimados pelo
Estado, pelas classes mais altas e também pelas classes populares para que essa última fosse
controlada, vigiada30, para que deixasse de representar perigo e para que fossem sobretudo,
rentáveis e produtivos dentro do sistema econômico de trabalho, na função que lhes era
conferida.
Neste contexto, a saúde das crianças de classe popular passa a ser alvo do Estado,
já que seriam elas que, por meio do trabalho no campo e na indústria, transformariam o Brasil
em um país economicamente desenvolvido, competitivo no mercado internacional. Para tal, era
30
Diferentemente do tratamento dispensado às classes altas e médias, nos quais o contato entre médico e pacientes
era mais próximo e não tão hierarquizado, restou às classes populares, tão diferentes culturalmente,
linguisticamente e socialmente dos médicos, um tratamento baseado na imposição de ordens. Nesse processo,
descartou-se e criminalizou-se os cuidados e saberes populares sobre a saúde das crianças e dos adultos, reforçou-
se seu caráter a-científico em nome da racionalidade médica. Dessa forma, a prática puericultora tentou combater
seu inimigo (o ‘leigo’) desqualificando-o e substituindo-o por conhecimentos modernos” (BARBARINI, 2011, p.
64).
143
preciso ter uma juventude hígida, esclarecida, estudada e apta a atender as necessidades do
mercado. “A preocupação com corpos hígidos está diretamente relacionada à produção, à
fábrica, a corpos capazes e competentes para gerar trabalho e lucro para uma indústria
emergente”. (HORA, 2011, p. 50). Nada mais óbvio que dar início a este processo no ambiente
escolar, treinando o olhar do professor para realizar um processo de triagem que pudesse
garantir que nenhuma criança com as características que - de acordo com os conteúdos da
disciplina Biologia Educacional, pautada, como veremos, pela racionalidade médica – fossem
sinal de alerta para possíveis patologias ficassem desassistidas. A sociedade, portanto, se
transformaria através da ação dos educadores a favor saúde, que fortaleceriam moralmente e
fisicamente a população garantindo sua saúde, o que aumentaria a produção e engrandeceria a
pátria. O saber médico que já estava institucionalizado “sem amplia, se ratifica como uma
tecnologia disciplinar de acordo com os interesses do capital. A história da educação, segundo
essa perspectiva, pode ser pensada como a história da disciplinarização do indivíduo”. (HORA,
2011, p. 51)
A ampliação do saber médico na escola vem acompanhada de uma ampliação
curricular que pudesse capacitar o professor a dar suporte ao médico e iniciar o processo de
higienização pela simples seleção dos alunos que deveriam ser indicados ao Pelotão da Saúde
ou não: para além das disciplinas História Natural e Higiene, introduziu-se também as
disciplinas Anatomia e Fisiologia Humanas, Biologia Educacional e reconfigura-se a disciplina
Higiene em Higiene e Primeiros Cuidados Médicos, Higiene e Puericultura, Higiene e
Educação Sanitária.
Desta forma, a Pedagogia cumpre o papel que lhe fora designado no sentido de
contribuir para a manutenção da lógica capitalista vigente: para além da personalidade do
educando, era preciso, agora, contribuir para a vida social e o trabalho produtivo. As demandas
políticas e econômicas, portanto, chamaram a atenção, no início do século XIX, para o
estabelecimento de uma relação possível entre saúde e educação, e reconfigurou o papel da
escola e dos professores. Entretanto, de acordo com Hora, esse processo teve implicações
graves no debate sobre educação, já que reduziu deslocou a análise pedagógica do não aprender
a uma análise meramente biológica e despolitizou o debate sobre a educação:
31
De fato, pode-se afirmar que a fome, as más condições de trabalho, de moradia e a falta de saneamento básico
estavam diretamente relacionadas aos problemas de saúde da população, entretanto, a reflexão não pode deixar de
considerar que, ainda que as doenças possam acometer pessoas de qualquer classe social, o acesso ao saber e a
práticas de prevenção e cura de diversas doenças estão diretamente relacionadas ao poder econômico.
145
32
No início do século XX, diversas doenças contagiosas acometiam toda a população. Dentre elas, podemos citar
a febre amarela, a varíola, a tuberculose e a malária, além de casos concentrados de peste bubônica (nos grandes
centros urbanos) e de cólera.
33
É importante ressaltar que as professoras também não escapavam dessa avaliação clínica. A admissão na escola
normal dependia de uma série de exames que envolviam desde o condicionamento físico até o timbre da voz. Para
além de critérios como peso, idade, inteligência, avaliava-se também a moralidade, a adequação e compatibilidade
dos valores das futuras professoras com a teoria e a prática higienista e sanitária, que seriam, ao longo do curso
normal, aprofundados. De acordo com Hora (2011), os testes aplicados eram uma versão muito semelhante dos
testes utilizados para selecionar homens para o exército americano.
34
As escolas, na primeira república tinha estrutura precária: prédios pequenos com salas igualmente pequenas,
sem janelas, úmidas, em regiões periféricas. Via-se a necessidade de criar um espaço mais amplo, arejado, com
mais circulação de ar, com pátios maiores para a prática de esportes. Na base da necessidade dessa reforma estava
a relação direta estabelecida entre a higiene do ambiente e a higiene do corpo.
35
De acordo com Moysés, as dificuldades de aprendizagem têm sido tratadas pela ciência de forma a ver a criança
que não aprende como alguém que estaria sempre ferindo a legalidade na sociedade, ou seja, cometendo algum
tipo de infração. Não importa, assim, a classe social: a criança subtrai de certa forma o que Moysés chama de
produtividade virtual da sociedade, de modo que a criança de classe popular subtrai a alguém que lhe é externo (o
possível patrão e a sociedade em geral) e a criança de classe alta subtrai à própria classe, se mostrando elemento
de divergência, estranheza, anormalidade. Para a autora, “uma, incorrendo na legalidade de bens, tem por castigo
as escolas/ salas especiais, ditas reabilitadoras, a outra, ao incorrer na ilegalidade de direitos, deve ser corrigida
por meio de tratamentos especiais. Está preparado o chão para o surgimento da psicopedagogia”. (MOYSÉS, 2001,
p. 218)
36
É importante ressaltar que esses novos conhecimentos chegam com a afirmação de que somente eles permitirão
ao professor conhecer quem realmente é o seu aluno e assim tornar a aprendizagem efetiva e eficaz, restando ao
professor nenhum argumento contra a disciplina diante de tamanha força argumentativa que a medicina impõe.
146
85). Desta forma, nesta nova lógica, não restava aos professores outra saída que não se adaptar
e cumprir as novas demandas – não mais vinculadas à organização escolar, mas agora externa,
proveniente da medicina:
37
Para Patto (2015), os princípios da Escola Nova encontraram terreno propício para sua ampla divulgação no
Brasil, em um contexto de expansão do liberalismo e de movimentos reformistas em vários âmbitos da política
nacional: uma vez que a escola era vista como o espaço de ensaio e instituição de mudanças sociais, os precursores
do movimento escolanovista “só poderiam encontrar acolhida num país no qual a ideia de democracia, em sua
acepção burguesa, tornara-se verdadeira obsessão entre os descontentes com a correlação de forças existentes
dentro da própria classe dominante” (PATTO, 2015, p. 82).
147
Essa renovação foi construída a partir da oposição entre escola nova x escola
tradicional. Se, por um lado, a escola tradicional era aquela que envolvia memorização, na qual
o professor tinha papel central, na qual o aluno não tinha voz, que não abarcava nenhum
conhecimento que não fosse o enciclopédico, a escola nova se mostrava contrária à passividade,
à repetição vazia de fórmulas, línguas e conceitos e propunha metodologias ativas que
deslocassem o foco do professor para o aluno, instigassem a produção e não a repetição do
conhecimento científico e, sobretudo, propunha que o trabalho fosse organizado a partir das
condições de cada aluno em sua individualidade.
Surgem, então, no interior do projeto escolanovista, os termos educação ativa,
criança ativa, escola ativa. Conforme já apontado, o projeto da escola nova tinha como fonte
teórica principal as tendências americanas e europeias quando se tratava de estabelecer os
principais fundamentos do movimento. Essa atividade na qual supostamente deveria se apoiar
a prática pedagógica, parece ser, primeiramente, no contexto americano e depois no brasileiro,
o chão para que pudessem surgir os testes padronizados. Estabelecendo os limites do normal,
os testes passaram a determinar a prática pedagógica de maneira paradoxal, já que excluem a
subjetividade e a maneira pela qual as relações sociais determinam os sujeitos e criam novas
pretensas singularidades, atribuindo sua suposta capacidade de aprender à incapacidade de
realizar as tarefas dos testes conforme esperado. Atribuía-se, assim, valor à atividade dos alunos
através de teses psicométricos que mensuravam a atividade intelectual e que passaram a
estabelecer os limites entre o normal o patológico.
De acordo com Hora, à primeira vista, podemos elencar pontos positivos na
mudança que aparentemente se instaurou com a escola nova. Entretanto, é preciso olhar com
mais cuidado para o suporte teórico que direcionava o olhar para as individualidades e de que,
de fato, se falava quando buscava-se definir essas individualidades: eram observadas apenas do
ponto de vista da Biologia e da Psicologia. Mesmo que as medidas dos escolanovistas
incluíssem os interesses das crianças e suas potencialidades, “a ideia da experimentação, nos
moldes em que foi praticada, não parece a mais adequada, arriscando-se ao afastar os
determinantes econômicos a uma interpretação que, de certa forma, a aproximaria de um
processo oposto e de uma política de exclusão” (HORA, 2011, p. 97)
Ainda que os estudos sobre hereditariedade, capacidades mentais, contágio de
doenças, a divulgação científica do que supostamente era normal e do que era patológico em
termos de desempenho escolar fossem ainda muito recentes, a escola nova pegou carona nesta
tendência e a colocou em evidência como a chave para, através da compreensão de quem era o
149
3.5. Divulgação
De acordo com Viviani (2007)39, os impressos tiveram papel fundamental na
renovação, legitimação e divulgação do que era a nova pedagogia que se buscava consolidar.
Para a autora, a biologia e a higiene tiveram um papel essencial para fundamentar essa nova
pedagogia, com conteúdos que foram inseridos nos currículos da escola normal desde a
Reforma Sampaio Dória, de 1920. Por um lado, proporcionava ao professor conhecimento
sobre a “base biológica” do aprendizado e da manutenção da saúde, e, por outro, acrescentava
ao currículo do professor uma sólida base científica.
Antes de passarmos aos detalhes da consolidação e das especificidades da disciplina
Biologia Educacional nas escolas normais, é preciso traçar um breve panorama da produção do
38
Para a autora, a psicologia produziu duas distorções do projeto inicial escolanovista: colocou em xeque a
proposta revolucionária da escola nova de levar em conta as individualidades de cada aluno para reflexão e
aprimoramento do processo de ensino de forma a tratar as individualidades no âmbito da biologia, privilegiando
os testes psciométricos e impossibilitou o que, para Patto, era o mais importante no discurso escolanovitsa: o fato
de que ele era instrumento crucial de luta política por melhores condições de acesso e de investimentos em
educação.
39
Luciana Maria Viviani, autora do livro A biologia necessária: formação de professoras e a escola normal, no
qual apresenta a investigação dos registros históricos da disciplina Biologia Educacional no currículo da formação
de professores e o impacto na prática em sala de aula e com as famílias.
150
40
Patto ressalta que é preciso sempre ter em mente que, no Brasil, a psicologia nasce no meio médico: os primeiros
trabalhos realizados no âmbito da psicologia foram ralizados nos cursos medicina das faculdades de medicina da
Bahia e do Rio de Janeiro, no início do século XIX. Na Faculdade de Medicina do Rio o foco dos trabalhos era a
linha neurofisiológica, psicofisiológica e neuropsiquiátrica. Já na Bahia o cerne das pesquisas era criminologia,
psiquiatria forense e higiene mental, ou seja, os sujeitos marginalizados.
41
Médico, professor da Escola Normal Paulista, especialista em higiene e educação, chegou a ser diretor de ensino
e catedrático da Universidade de São Paulo e foi aprovado em diversos concursos públicos, o que, na época,
conferia mais legitimidade ainda aos intelectuais brasileiros. Colaborador de Fernando de Azevedo, Almeida Jr.
Tinha fortes ligações com os autores que integravam o movimento da Escola Nova e, com eles, compartilhava a
concepção da “função social que a escola deveria assumir e o caráter ativo e experimental necessário à efetividade
do ensino” (VIVIANI, 2007, p. 130). Para além da produção teórica, Almeida Jr. organizou o laboratório de
Biologia Educacional e o Centro de Puericultura do Instituto de Educação Caetano de Campos, onde também deu
aula.
151
42
Viviani (2007) destaca a importância dos boletins, os chamados impressos para a divulgação dos ideais que
passaram a embasar os conteúdos dos cursos normais e a prática das professoras já atuantes. Manuais escolares e
revistas destinadas aos professores tinham a missão de propagar os ideais da Escola Nova e de legitimar certos
saberes que deveriam embasar a prática das professoras. Para a autora, diante da impossibilidade de muitas
professoras formadas pelo curso Normal participarem de debates profundos sobre educação e teorias pedagógicas
– pela distância das universidades, pela impossibilidade de estudar, pela necessidade de dedicar o tempo em que
não estava trabalhando à família -, o impresso teve um papel fundamental para a prática e ainda uma dupla
dimensão normativa: enquanto dissemina novos saberes, também regulamenta o processo de produção, veiculação
e apropriação de tais saberes. Tais impressos constituíam uma das únicas fontes de pesquisa e principalmente de
contato das professoras com as diretrizes pedagógicas propostas pela Escola Nova.
152
com a sua transmissão. É possível identificar, assim, as raízes das tendências à biologização e
à psicologização que tomou conta das práticas pedagógicas, já que a criança e seus
desenvolvimentos biológico e psicológico passaram para o centro dos estudos das futuras
professoras. Tal eixo, alguns anos mais tarde, é reforçado e ampliado na revisão curricular
proposta por Antonio de Almeida Jr e o livro de Aristides Ricardo é substituído por ele.
Em 1938, Almeida Jr. publica o livro que se tornaria referência para a disciplina:
Biologia Educacional: noções fundamentais. O autor esclarece o que é a disciplina Biologia
Educacional e seus objetivos: “o estudo dos fatores biológicos que determinam as diferenças e
variações individuais na espécie humana, e dos meios com que o educador poderá atuar sobre
elas” (ALMEIDA JR. apud HORA, 2011, p.143). Hora aponta algumas decorrências dessa
definição:
43
É importante destacar que essa imagem ainda persiste: apesar do fato de que as péssimas condições de trabalho
às quais os professores são submetidos são mais divulgadas e estão constantemente em pauta na mídia, ainda se
crê que é fácil ser professor, especialmente de crianças: basta tornar o ambiente escolar divertido, vigiá-las,
promover brincadeiras e ensinar a ler e a escrever, como se fossem questões simples, que não exigem muito
competência e preparo, ou como se fosse uma missão de vida das professoras, algo que fariam apenas por amor.
Essa concepção é reveladora de certa ignorância que povoa o senso comum sobre o tema: primeiro, referente à
função da escola; depois, sobre a necessidade de instrumentalização do professor e de tudo que envolve a relação
professor/aluno: é como se qualquer um pudesse ensinar e como se qualquer um pudesse aprender de qualquer
forma, sem que houvesse teorização nenhuma sobre o que está implicado no processo de ensino e aprendizagem.
155
44
Não se pode deixar de destacar, aqui, que se citava a família de forma generalizante: toda a responsabilidade
pela higiene e desenvolvimento físico e mental das crianças ficava sempre a cargo das mulheres. Acreditava-se, e
ainda se acredita, que é papel exclusivo da mãe criar crianças limpas, bem-educadas e saudáveis; não raro, quando
há desajuste neste eixo de normalidade, a mulher é culpada por não conseguir dar conta daquilo que
preconceituosamente lhe era atribuído como única tarefa. Assim, da mesma forma que se eximiu o Estado da
responsabilidade pelas condições de saneamento, saúde, moradia e desigualdade social e seus efeitos na saúde,
eximiu-se, de certa forma, a figura paterna de ter um papel na educação para a saúde das crianças ao tomar a mãe
como principal agente transformador na saúde dos filhos.
156
peculiares do que era chamado ciência da educação. Foi neste contexto que buscou-se, na
racionalidade médica, a argumentação científica que institucionalizaria a profissão do professor
e lhe poderia conferir o status de ciência digna de atenção e investimentos por parte do Estado.
Hora destaca, entretanto, que há conflitos internos nessa relação estabelecida sob a égide da
razão médica: “na balança, o peso presente na associação médico-professor é deslocado para o
lado médico, desmerecendo o conhecimento do professor em relação à criança”. (HORA, 2011,
p 158). Para a autora, a intervenção médica na escola tinha um caráter repressivo de profilaxia
das doenças contagiosas. Entretanto, essa intervenção amplia seus limites na criação de um
instrumento de vigilância e intervenção mais eficaz: o exame de desenvolvimento físico da
criança.
A fim de registrar a intervenção médica na escola e na vida das crianças que a
frequentavam, bem como as estratégias pedagógicas que partiam das orientações médicas,
criaram-se as cadernetas médico-pedagógicas, onde poderiam ser anotadas regularmente e
cuidadosamente “todas as observações antropométricas, médicas, biológicas, fisiológicas e
psíquicas, todos os incidentes variações e desvios em relação aos padrões e escalas de
crescimento das crianças” (HORA, 2011, p.159).
É possível identificar, nesta época, uma afirmação do âmbito do senso comum sobre
o que era preciso para ensinar bem: para ser bom professor, é preciso conhecer bem o aluno.
Conhecer bem o aluno significava conhecê-lo em todas as suas faces: física, psíquica, social,
etc. Desta forma, o fracasso escolar era atribuído, por um lado, também à formação de
professores, que não os habilitava a executar seu trabalho com excelência porque lhe faltavam
esses saberes sobre fisiologia e psicologia. Até então, o foco da formação dos professores eram
os conteúdos a serem explicados aos alunos. O que se verificou, com a entrada da racionalidade
médica nos currículos de formação de professores e na prática pedagógica, foi um
deslocamento: não mais o que se ensina, mas sim o corpo do aluno a quem a matéria era
ensinada. Hora afirma que esse deslocamento restringiu a pedagogia a aspectos biológicos
(ainda que se tenham estudado aspectos psicológicos do aprendizado), já que se passou a adotar
critérios e aparatos teóricos biomédicos para tratar de questões como a atenção, a memória e o
comportamento, considerando-se que têm apenas base fisiológica, neurológica e endócrina.
157
que, se ajudado, pode se adequar a vida urbana ou mesmo transforma-se no contexto rural de
forma a colaborar para a produção e a economia nacional.
A história do Jeca Tatu circulou no Brasil desde a década de 20 até o início dos
anos 80 e foi adaptada para as mais diversas faixas etárias, tendo inclusive uma versão para
crianças que foi distribuída pela secretaria de saúde e que foi incluída pelas escolas como parte
do material didático – o Jeca Tatuzinho. De acordo com Patto, em 1973, a última tiragem desse
exemplar atingiu mais de noventa milhões de exemplares e o fato de ter sido esse o ano da
última edição não fez com que o tema se ausentasse do currículo das escolas. A autora entende
que a difusa figura do Tatuzinho tenha contribuído para fomentar o mito da indolência das
populações pobres, especialmente rurais, tendo carregado implicações relevantes para o
discurso educacional. Essa representação transpareceria, na “crença generalizada e duradoura
na indiferença ou aversão das populações rurais pela escola, como também na crença
dominante, durante um longo período, de que a verminose seria a principal causa do fracasso
escolar das crianças de classes populares” (PATTO, 2015, p. 100)
O conhecimento de Lobato e seu Jeca Tatu, portanto, aparece como chave
importante de compreensão do discurso sanitarista, higienista e eugênico que circulava pelas
Escolas Normais. Quanto a isso, foi Artur Ramos, aluno de Nina Rodrigues, que se dedicou
mais aos estudos da infância e dos problemas de aprendizagem a partir desse discurso. Além de
fazer parte da equipe de profissionais que criou clínicas de higiene mental escolar, Ramos
lecionou durante anos nas Escolas Normais, nos cursos de Pedagogia, Psicologia e Filosofia,
sempre com a pesquisa voltada ao desenvolvimento e à aprendizagem. A questão central nos
estudos e nas proposições de Artur Ramos é que ele se afastou completamente de seu mentor:
se Nina Rodrigues fundamentava sua argumentação nas ideias de raça, Artur Ramos,
simpatizante da corrente psicanalítica, se aproxima das ideias de cultura de Levy Bruhl (1922),
buscando nos conceitos de mentalidade pré-lógica primitiva e no conceito de inconsciente
coletivo de Jung as justificativas para os problemas sociais do Brasil.
Um dos marcos de seu trabalho foi o livro A Criança Problema, de 1939, publicado
pela coleção Atualidades Pedagógicas, que se tornou leitura obrigatória nos cursos normais e
nos cursos de psicologia da época. Na análise de Patto, nesta obra (bem como em Educação e
Psicanálise, de 1934), “é a clara a influência do modelo médico na definição e na
operacionalização de uma política de higiene mental escolar nas principais cidades brasileiras”
(PATTO, 2015, p. 104). Nos livros, Ramos reconhecia a importância do meio para a
compreensão das dificuldades de aprendizagem, mas reduzia o meio ao ambiente familiar: era
159
deste a responsabilidade por desde as crianças mimadas até as crianças que mentiam, furtavam,
as que tinham questões sexuais, as que tinham dificuldades escolares e, sobretudo, a que ele
chamou de criança escorraçada e a qual dedicou maior parte de seus escritos. A criança
escorraçada nada mais é que a visão estereotipada que circulava sobre as famílias pobres. A
criança da favela, que passa os dias nas ruas, desamparada, do ponto de vista de Ramos, com
família desestruturada, com pais problemáticos tinha seu baixo rendimento escolar justificado
pela sua família e pela maneira como sua educação era conduzida. Ramos tentava, assim, tirar
o foco dos testes psicométricos, dos quais discordava, de modo a enfatizar as questões de
personalidade partindo do conceito de cultura primitiva.
Ainda que partindo de noções preconceituosas de cultura, ambiente, meio e
família45, não se pode negar a importância de Ramos no sentido de trazer à tona um outro olhar
que não o organicista, pautado na racionalidade médica, para as dificuldades de aprendizagem
e foi pioneiro ao ressaltar a importância da observação, da entrevista com familiares, de análise
de práticas pedagógicas em um contexto em que a tendência era apenas a aplicação de testes
psicométricos de inteligência para comprovar a incapacidade genética das ditas raças inferiores
e, por consequência, dos mais pobres.
45
Não quero deixar de trazer, aqui, uma interessante reflexão de Ramos enfatizada também por Patto (2015). A
autora traz a compilação que Ramos fez sobre as expressões populares que veiculam a crença da inteligência como
capacidade hereditária e que Ramos durante muito tempo tentou combater: “ é o destino; é sina; são os fados; isso
é a raça; o que o berço dá, só a morte tira; filho de peixe, peixinho é; tudo no fim da certo; o que tem que ser será;
esse menino tem boa/má estrela; é do céu, não se cria e quem sai aos seus não degenera”
160
se dissipasse e seu conteúdo fosse diluído em outras disciplinas. O currículo mínimo fixado
para o Magistério “incluía os Fundamentos da Educação, que eram vistos como um conjunto
de aspectos biológicos, psicológicos e sociológicos, históricos e filosóficos da educação”
(HORA, 2011, p. 207). Fundamentava-se a continuidade dos estudos da criança enquanto ser
biológico com a mesma premissa da disciplina Biologia Educacional: para que a aprendizagem
seja efetiva, é preciso conhecer o aluno com suas características biológicas/hereditárias que
determinam seu aprendizado.
Vemos, então, um deslocamento do âmbito das unidades de saúde para fora do
âmbito educacional. Já no meio acadêmico, de acordo com Hora (2011, p. 222), pode-se
observar um aprofundamento das discussões sobre as já consolidadas articulações entre
educação e medicina, ampliadas por congressos de ambos os setores. Além disso, surge, no
âmbito da medicina, a especialização em medicina escolar para, primeiramente, trabalhar nas
escolas. Entretanto, o número de escolas cresceu consideravelmente e, pela impossibilidade de
atender a essa demanda, transferiu-se a saúde escolar para a área da saúde.
Mesmo com a eugenia, um dos eixos centrais da disciplina em xeque ao longo dos
anos 40, o que se observou é que o discurso higiênico e a necessidade de uma interface entre
educação e saúde se mantém na formação e na prática do professor, cuja função de ajudante do
médico e fiscal da saúde já havia se consolidado independentemente da presença ou não de uma
disciplina que centralizasse esse saber normatizador que coloca a boa saúde e a normalidade
biológica como condição para o aprendizado. Nas palavras de Hora, independentemente da
permanência ou não da disciplina no currículo, o caráter científico que a medicina atribuiu à
educação instaurou o que a autora chama de pedagogia do olhar, o olhar clínico do professor.
Mesmo que outras disciplinas se consolidassem no currículo de formação de professores, como
a Filosofia da Educação, Fundamentos Sociológicos da Educação, História da Educação, o
conteúdo da disciplina Biologia Educacional sobreviveu, de certa forma, nas disciplinas
Psicologia da Educação e Fundamentos da Biologia Aplicados à Educação ou Educação e
Saúde.
O que não se pode perder de vista, em meio aos acontecimentos históricos que
possibilitaram a emergência e o desaparecimento da disciplina enquanto tal no currículo de
formação de professores, é o fato de que o saber sobre o corpo e o aprendizado veiculado na
Biologia Educacional era o mesmo que incorporava o discurso sobre saúde das elites
intelectuais e do poder, que, interessadas na manutenção do poder e do controle social, tinham,
na figura do professor, uma forma de ação direta na saúde das crianças.
Para Hora, foi na consolidação desse eixo discursivo – abrangedor do discurso da
boa saúde para a educação, da boa educação para um país melhor – que o professor se
transformou em um coadjuvante junto ao médico na luta pela saúde. Três agentes principais
constituíam este eixo: o médico, de quem se esperava a identificação e cura de problemas de
saúde que pudessem afetar a educação; a escola, instituição de onde se esperava a veiculação
de um saber sobre o corpo e sobre hábitos de higiene; e o professor, de quem se esperava, como
se esperava do médico, um trabalho de identificação inicial (triagem) e encaminhamento, já que
teve contato com um currículo que lhe permitiu agir também na área da saúde “em prol do bom
desenvolvimento da nação”, tal qual se justificava. Neste processo, a razão médica passa a ser
a fonte da qual a educação bebe, a fazer parte de práticas escolares e a determinar o currículo,
escamoteando lutas por espaços e recursos. Para Hora, isso nos revela a força do discurso
médico, que “se impõe de tal modo à percepção individual e coletiva que camufla, dificultando
outras interpretações a partir de saberes não médicos, ou mesmo a própria percepção
individual”. (HORA, 2011, p. 56)
A definição de criança, portanto, que circulou e que ainda circula na produção
discursiva docente está ancorada na biologia e na psicologia, e abarca uma definição de sujeito
a-histórica, atemporal, desconsiderando a maneira pela qual a cultura e as relações sociais
atuam no desenvolvimento humano. As justificativas para o fracasso escolar se mostram
historicamente apartadas das decisões políticas que têm efeito direto na escola, nas práticas
pedagógicas, na economia do país, no modo de vida da população, nas políticas públicas livres
dos preconceitos de classe de moradia, alimentação, saneamento e saúde. A questão está,
definitivamente, reduzida à supostos desvios biológicos, genéticos ou até culturais, mascarando
e encobrindo os atores sociais responsáveis pela educação e pela garantia de aprendizagem – o
que despolitizou e ainda despolitiza, conforme veremos adiante, o debate sobre a educação.
162
3.9. Dificuldades de leitura e escrita: pesquisas sobre a produção acadêmica que tomam a
alfabetização como objeto
O primeiro curso de pós-graduação em pedagogia foi criado no final dos anos 60,
mais precisamente em 1968. Até o final da década de 50, questões específicas do aprendizado,
como o cálculo e a alfabetização não ganharam espaço nas pesquisas e nas reflexões
pedagógicas. A primeira pesquisa no Brasil – uma tese de cátedra – que toma a alfabetização
como objeto data de 1961 e, após sua realização, apenas em 1968, já no primeiro curso de pós-
graduação em pedagogia institucionalizado, a alfabetização voltou para o cerne da pesquisa
pedagógica. Soares (2006) realizou um estudo que compreendeu o levantamento dos
paradigmas e dos focos de todas as pesquisas de pós-graduação realizadas no Brasil entre a
década de 60 e 2003. Os resultados do levantamento de Soares são relevantes para este trabalho
porque permitirão, de certa forma, rastrear de que maneira as décadas que se seguiram à
consolidação e à dissolução do conteúdo da disciplina Biologia Educacional no currículo
herdaram o olhar clínico e os procedimentos adotados na época, como o uso de testes
psicométricos e os encaminhamentos clínicos. Particularmente, recorremos à Soares porque a
autora trata da questão específica do aprendizado de leitura e escrita.
A pesquisa de Soares levantou dois principais paradigmas que embasam as
pesquisas sobre alfabetização desde os anos 60 até 2003: a) o paradigma positivista, que parte
da convicção de que a realidade é objetivamente apreensível, do princípio de que há uma
realidade externa e que pode ser identificada e analisada de forma neutra e objetiva e b) o
paradigma interpretativo, que parte da convicção de que é impossível a apreensão objetiva da
realidade e que não há uma realidade independente do sujeito que seja objetivamente
apreensível.
O ponto chave, segundo Soares, para compreender os paradigmas envolvidos na
pesquisa em educação é perceber que eles coexistem, convivem e um predomina em relação ao
outro durante certo tempo. A mudança, assim, não acontece por substituição, assim como toda
produção científica também não: em um processo de continuidade e rupturas, os paradigmas
ora parecem estar em mais evidência em relação ao outro, pesquisadores rompem com focos e
posturas teóricas do paradigma ao qual se opõem e assim por diante de modo que um se
enfraquece e outro se fortalece e vice versa, em ciclos longos ou curtos.
É possível, assim, traçar um paralelo com a produção sobre o fracasso escolar na
primeira metade do século XX: havia explicações que encontravam na biologia as justificativas
para o fracasso escolar e explicações que buscavam na teoria psicanalítica da carência cultural
163
durante a década de 30, de modo que os paradigmas coexistiam e ora um estava mais em
evidência, ora estava o outro. Soares cita, para tratar do exemplo da coexistência de paradigmas,
um exemplo que interessa a esta pesquisa:
Soares elenca, assim, três focos que caracterizam a pesquisa sobre alfabetização no
Brasil:
a) Foco individual. O pesquisador traz para o cerne da pesquisa as aptidões dos
sujeitos, as facilidades e dificuldades pessoais encontradas no processo de aquisição da língua
escrita. Assim, toma-se como premissa “a prontidão para a aprendizagem, o nível de
conceitualização da escrita, a consciência fonológica, independentemente do paradigma
assumido, põe o foco no individual”. (SOARES, 2006, p. 409)
b) Foco social. Neste caso, o que embasa os procedimentos teóricos e
metodológicos são as práticas sociais, entendidas, porém, em um contexto mais estrito,
reduzidas à situação de aprendizagem. Um exemplo utilizado pela autora é a investigação, em
sala de aula, so processo de alfabetização entre as crianças e seus pares.
c) Foco Cultural. Diferentemente do foco social, amplia-se a análise das situações
para um contexto mais amplo, ou seja, toma-se como premissa de análise as condições sócio-
históricas que determinam o contexto cultural. Para retomar o exemplo da alfabetização dado o
item anterior, neste foco considera-se, para além da situação em sala de aula, a classe social à
qual a criança pertence, suas condições culturais, seu contato com a língua escrita dentro e fora
da escola, com professores, familiares e todos os outros interlocutores.
164
Soares aponta que entre os anos 60 e 70, o foco era quase exclusivamente o
individual. Já nos anos 80, acompanhando o deslocamento em geral da educação para o foco
social, a pesquisa em alfabetização também se volta para as micro-relações estabelecidas em
sala de aula. A partir do meio da década de 90 o foco se torna, com significativa ênfase, de
acordo com a autora, cultural. Soares ressalta que, atualmente, apesar da pesquisa em
alfabetização se concentrar aparentemente apenas no letramento, este conceito faz parte do foco
cultural.
O que pode ter causado esse deslocamento de focos, de acordo com Soares, do
individual para o social é a democratização da escola, o reconhecimento de diferenças entre
alunos de camadas sociais diferentes frente às exigências escolares e ao padrão de aluno que a
escola espera receber. Entretanto, a constatação do fracasso escolar entre as camadas populares
em contextos diversos revela que os problemas da educação não se revelam apenas por questões
pedagógicas, como era pautado pelo foco social. Assim, nesta busca por respostas, pode-se
verificar o retorno aos dois outros focos: pode-se explicar o fracasso escolar pelas teorias de
foco individual ou pelas teorias de foco cultural. O que vemos, portanto, é queapesar de ser
possível identificar a mudança de focos e a predominância de um ou de outro em determinado
período, todos eles se mantêm e coexistem desde a década de 60.
de sujeito clinicamente e organicamente normal, saudável, com boa herança genética, apto à
educação formal e ao trabalho.
de origem biológica. E a escolarização será destinada de início, a uma criança que não
aprendeu ainda. Caso a escolarização não aconteça de forma adequada – processo que,
geralmente, não é levantado e analisado, a criança se torna criança que não aprendeu e pode
vir a se tornar criança com dificuldade de aprendizagem biológica.
É importante investigar, portanto, mais a fundo, que efeitos de sentido essa
dicotomia que envolve aprender e não aprender produziu no processo histórico da escolarização
e na formação de professores no Brasil. Ter dificuldade de aprendizagem remete à dependência
clínica ou a improdutividade e gera inevitavelmente um estigma que a criança carrega.
Tomaremos, para esta tese, conforme veremos nos próximos capítulos, a produção teórica da
ND sobre este tema, que abarca acompanha mentos longitudinais – individuais e coletivos – de
crianças que receberam um diagnóstico clínico de uma patologia relacionada ao aprendizado.
Analisaremos aqui os casos em que o levantamento da possibilidade de uma patologia é feito
pelo professor, tentando mostrar que o discurso medicalizante já está inscrito na memória
discursiva do docente sobre a aprendizagem. Na perspectiva da AD, não se pode deixar de levar
em conta, na compreensão das produções desses efeitos de sentido a intertextualidade, as
formações imaginárias que subjazem o discurso, a relações travadas entre os sujeitos e o efeito
do pré-construído, “aquilo que remete a uma construção anterior, algo pensado antes, em outro
lugar, independentemente – considerando que não há uma relação mecânica ou de causa e efeito
entre as marcas formais e o que elas significam no processo discursivo”. (FONSECA-SILVA,
2015, p. 63)
Assim, a história de um discurso e sua inscrição na memória discursiva não se dá
de maneira contínua e sucessiva, nem em um movimento no qual as dicotomias se mostram
claramente aliadas ou em embate. É nessa perspectiva que a AD entende o interdiscurso, noção
que trata do fato de que todo discurso remete a outro(s) discurso(s), ou seja, todo sentido é
sempre colocado em funcionamento a partir de sentidos anteriores, aos quais é filiado. Nessa
lógica, há sempre uma parte do dizer que nos é quase sempre inacessível, que não pode ou pode
ser recuperada na história, nos enunciados, nos arquivos (FOUCAULT, 2012) pelo trabalho do
historiador e do analista do discurso:
colocando no centro da discussão aquele que sabe o que fala e de quem fala.
E que será, posteriormente, apagado, recalcado, mas não deixará de significar,
de funcionar. Nesse ponto, da linguagem como lugar de memória, é que nos
encontramos também com a história, com o passado.” (FONSECA-SILVA,
2015, p. 64).
Dessa forma, se há algo que fala, sempre antes, de outro lugar, há um complexo de
formações ideológicas que funciona como aparato de determinação dos sujeitos e, sobretudo,
de produção de verdades consolidadas na memória discursiva.
IV
O OLHO CLÍNICO DO PROFESSOR NA CONTEMPORANEIDADE
46
Não poso deixar de destacar que o intuito inicial era entrevistar 30 professores. Entretanto, ao longo dos dois
anos em que reservei para a realização das entrevistas, encontrei muita dificuldade em encontrar professores com
disponibilidade para participar desta pesquisa. Muitas destas entrevistas foram feitas nas escolas, durante o
intervalo das professoras, enquanto ficam no pátio da escola observando os alunos. Algumas foram feitas no
intervalo entre as aulas e o início da reunião pedagógica. Tendo em vista que não consegui atingir a meta de 30
entrevistas, esta pesquisa analisa apenas as 20 entrevistas que o cotidiano repleto de atividades das professoras da
contemporaneidade possibilitou que acontecessem.
171
privada de ensino47. O intuito, aqui, não é gerar dados estatísticos, mas sim dar voz aos
professores que têm sido apontados como agentes do processo de patologização e investigar
melhor o que fica da formação de professores, também apontada pela ND como fator que, por
excluir questões linguísticas da alfabetização, se torna um elemento importante nesse processo.
Para iniciar a abordagem dos dados, seguem algumas informações sobre os sujeitos
entrevistados e o questionário inicial apresentado. A partir dos dados colhidos nas entrevistas,
apresento uma síntese das respostas das professoras seguida de reflexões à luz da ND sobre as
principais questões levantadas. Antes de passar a essas considerações, é preciso fazer uma
ressalva: as análises que serão apresentadas são fruto de meu olhar como linguista, partindo das
entrevistas coletadas e por isso têm caráter ensaístico, sem necessariamente um aparato
metodológico de análise de dados. O recorte feito, as chamadas sínteses apresentadas, são
categorias por mim identificadas nas entrevistas e que apresento nesta Tese, ainda que um norte
claro de metodologia de análise, para que sejam as reflexões iniciais que a ND pode apresentar
e outros trabalhos. O que não queríamos, a princípio, é que essa fosse mais uma pesquisa sobre
professores que não dá lugar às suas vozes, inquietações, angústias, limites e possibilidades.
Assim, optei por deixar as entrevistas na íntegra nesta Tese além de apresentar as categorias de
análise que identifiquei a fim de que muito se possa ainda versar sobre esse material em
trabalhos futuros.
Por fim, é importante ressaltar também a opção por entrevistar também professores
de escolas privadas em um contexto em que a pesquisa acadêmica se volta sobretudo para a
escola pública. Ao longo de minha graduação, mestrado e doutorado, participei do Programa
de Estágio Docente no IEL nas disciplinas da professora Maza, orientadora desta Tese. Sempre
aberta para alunos especiais (alunos que não são regularmente matriculados na UNICAMP, mas
que cursam matérias por alguns semestres), a disciplina recebia todos os semestres professores
de escolas públicas e privadas, mas sobretudo privadas, que procuravam uma solução para os
vários casos de alunos diagnosticados com Dislexia ou TDAH. Observamos, nesse contexto,
que a patologização incide sobretudo sobre a escola privada porque, uma vez processo
mercadológico, se instaura nos ambientes onde se concentra o público que pode sustentar
financeiramente as avaliações, os tratamentos, os atendimentos e, em alguns casos, os
medicamentos. Por fim, observamos que o que acontece na escola privada têm um efeito sobre
a pública, e que patologização como justificativa para o fracasso escolar se mostra um fator
47
Esta pesquisa está aprovada e protegida pelo Comitê de ética em Pesquisa da UNICAMP. Número do CAAE:
78761317.9.00005404.
172
real em ambas as esferas. Assim, esta Tese não poderia ignorar esfera privada, já que é lugar de
consolidação da patologização e também porque tudo que nela acontece ressoa na escola
pública.
Neuropsicopedagogia
clínica
3º ano
P20 56 32 Pedagogia - 1986
PÚBLICA
Quais são as dificuldades mais frequentes que você enfrenta, como professora que alfabetiza ou
1
que dá continuidade ao processo de alfabetização?
2 Quais são as maiores dificuldades dos alunos no processo de alfabetização?
Que tipos de dificuldades dos alunos são mais preocupantes e por quais motivos? Que tipos de
3 dificuldades fazem com que você sinta necessidade de encaminhar as crianças a um profissional
da saúde ou a uma avaliação clínica?
Retomando sua formação inicial, você se lembra de ter estudado algo sobre distúrbios da
4
aprendizagem? Se sim, o quê? Considera que o conteúdo foi importante para sua formação?
Em sua formação inicial, você se lembra de ter estudado algum conteúdo da Linguística para
5
entender questões relacionadas à alfabetização?
Nos últimos 10 anos, você participou de algum curso de formação continuada, sejam cursos
6
buscados por você ou cursos oferecidos pela sua escola? Quais?
7 Os conteúdos abordados nesses cursos têm ajudado na sua atuação em sala de aula?
Quando se trata de dificuldades de aprendizagem de leitura e escrita, há algum referencial sobre
8 este tema ao qual você recorre para estudo? Se sim, quais? Considera o conteúdo importante em
sua atuação junto aos alunos com dificuldades?
48
A taxa de fecundidade caiu de 2,38 filhos por mulher em 2000 para 1,9 em 2010, segundos os censos
demográficos do IBGE. De acordo com o instituto, a queda da fecundidade ocorreu em todas as faixas etárias.
Houve, no entanto, uma mudança na tendência de concentração da fecundidade entre jovens de 15 a 24 anos,
observada nos censos de 1991 e 2000. As mulheres, de acordo com dados de 2010, estão tendo filhos com idades
um pouco mais avançadas. A redução na proporção de adolescentes (15 a 19 anos) com filhos, que caiu de 14,8%
para 11,8% entre 2000 e 2010, é, inclusive, um fator importante para a elevação do nível de escolaridade das
mulheres. Houve um aumento da frequência escolar feminina no ensino médio de 9,8% em relação à masculina.
Em 2010, as mulheres também foram apontadas como maioria entre os estudantes universitários de 18 a 24 anos
- 57,1% do total. Não posso deixar de questionar, aqui, ainda que brevemente, a decisão tomada pelo presidente
da república Jair Bolsonaro, de retirar das escolas de educação básica o material desenvolvido no governo anterior
sobre sexualidade, que tinham como foco a prevenção de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e da
gravidez precoce. Durante a transmissão, o presidente mostrou desenhos de uma cartilha que é distribuída por
municípios através do programa federal Saúde na Escola e que detalha como usar e descartar um preservativo
masculino e como deve ser feita a manipulação da camisinha feminina. Bolsonaro também mostrou para a câmera
a figura da genitália feminina que ilustra como a higiene íntima deve ser feita de modo que as meninas não fiquem
sujeitas a infecções urinárias ou vaginais. Para o presidente, isso é imoral e não deve ser conteúdo das escolas
porque estimularia os adolescentes a terem relações sexuais. Ele criticou duramente as páginas da cartilha que
versam sobre a descoberta da sexualidade na adolescência e destacou que o material foi produzido pelo "governo
Dilma Rousseff e foi impresso 'em grande quantidade'". "São 40 páginas, tem muitas informações boas, precisas,
mas o final dela fica complicado, no meu entendimento”. Em seguida, informou que discutiu o tema com o ministro
da Saúde, Luiz Mandetta, e que seu governo produzirá uma nova cartilha sobre a saúde de meninas: "Expus o
problema e então a solução, a decisão que ele tomou: vai fazer uma nova cartilha, com menos páginas, mais barata,
sem essas figuras aqui no final, e vamos rapidamente distribuir, recolher essas anteriores." O presidente ainda
aconselhou as famílias cujas adolescentes estejam em posse da cartilha que rasguem essas páginas. Em face das
observações realizadas no ambiente escolar e dos números apontados pelo IBGE, ressalto o retrocesso que
implicará a retirada dessas instruções das escolas. A sexualidade e a prevenção da gravidez, bem como de DSTs
ainda é um tema tabu no interior da maioria das famílias brasileiras, tendo em vista a forte presença da moral cristã
no país, que atrela a relação sexual ao pecado e defende a abstinência sexual até o casamento. A tendência apontada
pelo IBGE de que as mulheres estão engravidando cada vez mais tarde, ainda que esse número tenha subido pouco,
é mudar, já que a desinformação generalizada sobre prevenção será instaurada nas escolas e o tema continuará não
sendo discutido com as adolescentes pela família. Não se pode desprezar questões que envolvem saúde pública
com base em convicções pessoais e moralistas de quem exerce o cargo de presidente da república e que ignora
dados que relacionam diretamente a escolarização feminina à diminuição dos altos índices de gravidez na
adolescência e transmissão de DST. Dessa forma, parece irresponsabilidade do presidente e ainda infração de
princípios básicos de saúde pública, que reforçam o papel do preservativo no combate à questões sociais como
mães adolescentes e incapazes de cuidar de uma criança e da proliferação de DST, principalmente da ineficácia
do discurso moralista de abstenção sexual, tendo em vista os índices de adolescentes sexualmente ativos: de acordo
com a PenSE (Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2015, a iniciação sexual já tinha ocorrido para 27,5%
dos alunos do 9º ano (cerca de 723,5 mil). Aproximadamente 39% deles (280,7 mil) não usaram preservativo na
primeira vez e 33,8% (219,2 mil) não utilizaram na última relação sexual. Das meninas que haviam tido relação
sexual, 9,0% disseram já ter engravidado, com mais frequência entre as estudantes de escolas públicas (9,4%) do
que entre as da rede privada (3,5%).
175
pelos filhos geralmente não está em posição de independência, mas sim de abandono parental
e vulnerabilidade.
Para Soares, a questão é cultural, já que ao contrastar dados sobre quantidade de
mães solteiras e pais solteiros, em 2015, as mães representavam 26,8% das famílias com filho
enquanto os pais representavam apenas 3,6%. Esses dados, para a pesquisadora, são evidência
do machismo estrutural que configura a sociedade brasileira, de forma que apenas a mãe é
culturalmente encarregada do cuidado dos filhos – mesmo nas famílias compostas por homem
e mulher na posição de pai e mãe –e do trabalho doméstico, ainda que esteja inserida no
mercado de trabalho em tempo integral.
O marco histórico em que se percebe a entrada da mão-de-obra feminina foi a
Revolução Industrial: a contratação das mulheres simbolizava redução das despesas, já que elas
ganhavam menos que os homens. Entretanto, foram a primeira e a segunda guerra mundial que
fizeram com que as mulheres assumissem o comando dos negócios da família ou mesmo a
função do marido nas empresas e ocupassem a posição de provedoras do lar. Isso se manteve
após o fim das guerras diante dos altos índices de mortos e feridos que ficaram impossibilitados
de trabalhar. A década de 60 ficou marcada pela luta pela igualdade de direitos das mulheres
em vários âmbitos, inclusive no mercado de trabalho e na participação política e social.
A especialista em políticas públicas e pesquisadora do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) Natália Fontoura explica em entrevista ao site do Senado Federal
(RÁDIO SENADO, 2015) que a sociedade brasileira assistiu a essas transformações sem
interesse sobre o que acontecia nos lares quando o casal passa a ser economicamente ativo. Para
ela, a ampliação da participação das mulheres no mercado de trabalho não significou a divisão
do trabalho doméstico, o que faz com que a mulher assuma jornada tripla49: os dois períodos
em que trabalha fora de casa, formalmente, e o período em que se encarrega da casa e dos filhos.
O machismo estrutural que configura a sociedade brasileira, portanto, caracteriza como tarefa
exclusiva da mulher o cuidado doméstico e dos filhos, inclusive a responsabilidade pelo cuidado
físico50 (higiene, alimentação, etc.) e moral (educação, valores, religião). Constrói-se, assim,
49
Em 2016, desagregando-se a população ocupada do país por sexo, as mulheres dedicavam 18,1 horas semanais
aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos – cerca de 73% a mais de horas do que os homens (10,5 horas
semanais). Regionalmente, a maior desigualdade estava no Nordeste, onde as mulheres dedicaram 19,0 horas
semanais àquelas atividades, ou 80% de horas a mais do que os homens. As mulheres pretas ou pardas são as que
mais se dedicam aos cuidados de pessoas e afazeres domésticos, com 18,6 horas semanais. Entre os homens, o
indicador pouco varia quando se considera a cor ou raça ou região.
50
Evidentemente, essa construção de ideia de masculinidade em que o cuidado da casa e dos filhos é tarefa de
mulher ou, como se diz popularmente, “coisa de mulher”, é essencialmente machista e conservadora. Além disso,
subjaz ao contexto citado no corpo desse trabalho, em que papéis de gênero são socialmente delimitados e acabam
por sobrecarregar a mulher. Nessa problemática, não se pode deixar de comentar aqui as palavras do então
176
presidenciável Jair Bolsonaro. Para o presidente, nenhum pai quer chegar em casa e ver o filho brincando de
boneca, e, até mesmo, prefere ver o filho com o braço quebrado por jogar futebol do que vê-lo brincando de dar
comida para a boneca. O presidente deu essa declaração quando opinava sobre o que acredita ser a ideologia de
gênero que estaria em vigor nas escolas, que, segundo Bolsonaro, ensina os meninos que eles devem brincar de
boneca e as meninas a jogar futebol, o que influenciaria posteriormente no que o então deputado chama de “escolha
sexual”. Com essas afirmações, o presidente apenas reforça a masculinidade vigente, que é, por muitos
pesquisadores, considerada como tóxica. Sabemos que a brincadeira infantil tem papel fundamental não apenas no
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, mas também na construção da empatia, da sensibilidade, da
solidariedade e do cuidado com o próximo. Assim, quando um menino brinca de boneca, ele se coloca na posição
de pai, que se preocupa, que cuida, que alimenta, que dá banho, que conta histórias. Assim, a criança pode
internalizar e naturalizar também a figura masculina como a incumbida do cuidado com a criança e com a casa, o
que, a longo prazo, pode significar homens que se dividem as funções com as mulheres de modo a não
sobrecarregar nem um, nem o outro. Infelizmente, na lógica do presidente, brincar de boneca na infância pode
fazer com que um menino se torne homossexual.
51
Números de maio de 2019.
177
vida por conta da amamentação e deveria envolver o pai ao longo de toda a infância e
adolescência. Para tratar do tema da terceirização da criança, trago algumas reflexões de José
Martins Filho, que, em seu livro intitulado A criança terceirizada: os descaminhos das relações
familiares no mundo contemporâneo (MARTINS FILHO, 2012), usa de linguagem simples e
sensível para retratar seu cotidiano como pediatra e como observa, de sua posição de médico
que convive com pais e filhos durante toda a infância, mudanças na responsabilização das
famílias ao longo das últimas décadas.
Em seu livro, Martins Filho faz uma crítica severa às famílias que se eximem da
responsabilidade do cuidado dos filhos. É importante ressaltar que o autor faz breves
considerações sobre a mudança do papel da mulher na sociedade, das avós, da isenção dos pais,
da necessidade de renda específica de cada família, mas esclarece a que sua crítica se concentra
às famílias de classe média, classe média alta ou alta, (com as quais mais conviveu em sua
prática clínica) apesar de reconhecer que de uma forma ou de outra, a terceirização do cuidado
da criança acontece em todas as classes sociais
Martins Filho foi um dos médicos que esteve à frente da luta por diversas das mais
profundas modificações nos hospitais-maternidades. Defendeu o alojamento conjunto para
mães e bebês no início dos anos 80, problematizou a preferência médica pela cesariana e foi
um dos principais expoentes na defesa do aleitamento materno. Todas essas bandeiras, segundo
o autor, tinham como pano de fundo pesquisas no âmbito da medicina e da psicanálise que
descobriram a importância do contato físico e do estabelecimento de vínculo afetivo entre mãe
e bebê para todo o desenvolvimento psíquico e intelectual até a adolescência. Para o autor, a
criança que é submetida a se afastar da mãe por mais de 12 horas antes dos dois anos entra em
sofrimento psíquico, em estado de ansiedade e angústia e passa por uma espécie de trauma,
sofre dor profunda por perder o corpo da mãe, fonte de tranquilidade e prazer, com quem
estabelece relação íntima, quase simbiótica pelo menos até o terceiro mês de vida. Martins Filho
cita a pesquisa da psicanalista Claudia Rodrigues, que descobriu que crianças que ficam por
mais de 12 horas em ambientes institucionais, ainda que sejam creches de alto padrão,
desenvolvem problemas afetivos semelhantes aos das crianças que vivem em orfanatos, mesmo
que tenham o contato com a família por algumas horas do dia. Para a autora, a questão não é
julgar a mãe que opta por trabalhar e terceiriza o cuidado dos filhos, mas sim problematizar as
mães culturais que a mídia ajuda a fabricar: mulheres que não sonharam em ter filhos e que não
tem interesse nem experiência em conviver com crianças acabam tendo filhos ou adotando por
pressão social ou por simplesmente ser mãe, sem saber das responsabilidades atreladas à
178
maternidade. Depois que a criança nasce, o desespero se instaura e as mulheres não sabem o
que fazer com os bebês, acham enfadonhos os cuidados físicos, brincar, ler histórias,
acompanhar o crescimento, etc.
Não podemos deixar de ressaltar que, em grande parte, a exaustão mental das mães
se deve em grande parte pelo já citado problema da construção da masculinidade, da falta de
divisão das tarefas e da falta de cuidado com os filhos por parte dos pais. Entretanto, é preciso
problematizar o que as famílias fazem ou não fazem a respeito da educação dos filhos e
responsabilizar os pais pelos problemas detectados, já que eles têm um impacto na escola, na
relação entre professores e alunos e no aprendizado das crianças, conforme apontam os
professores nas entrevistas dessa pesquisa.
“O que estamos defendendo é, para quem pode, para as pessoas que têm
acesso a essa decisão (conhecimento, cultura, compreensão da realidade e,
claro, possibilidade de utilização de métodos anticoncepcionais), que a família
seja planejada. Que os filhos, ao chegar, encontrem pais preparados e
dispostos a se dedicarem a essa nova fase da vida, a um objetivo claro e
definido: criar os filhos, acompanha-los, compreendê-los, estar presentes nas
horas boas e más e, principalmente, saber que, depois do nascimento, há uma
mudança clara na vida da família. Há mais exigências, mais dedicação e
menos tempo livre. Esse é um problema do qual, muitas vezes, casais jovens
e pais solteiros não se dão conta. Não percebem a importância da mudança
que está para acontecer e se surpreendem. Dizem-se esgotados, cansados,
desesperados, ou seja, a função materna ou paterna parece que não estava
prevista nas considerações existenciais anteriores. Não é a criança que
atrapalha, que é difícil, exigente: são os pais que, atualmente, parecem não
estar preparados para abrir mão da correria do dia a dia, do emprego extra, dos
celulares extras, da troca do carro, daquele gasto extra, sempre influenciados
pelo marketing que os estimula a comprar, comprar, consumir, consumir.”
(MARTINS FILHO, 2012, p. 57)
52
O autor escrevia em 2012, ano em que os smartphones e a internet móvel começava a se popularizar. Talvez
por isso não tenha citado esse novo fenômeno. Não podemos deixar de ressaltar, entretanto, o aumento do uso
desta tecnologia com crianças pequenas, que passam o tempo que estão em famílias entretidas com o que o celular
tem a oferecer durante os almoços em família, salas de espera de médicos, passeios, etc.
179
conceito de transbordamento da escola, introduzido por António Nóvoa (2007), que, apesar de
tratar do contexto português, pode ser relacionado ao contexto brasileiro:
O fenômeno citado por Nóvoa que atribui à escola funções que incialmente não
eram dela é inegável. Podemos incluir, ainda, neste processo de transbordamento, as funções
de avaliação e triagem atribuídas aos professores no início do século XX já citadas nos capítulos
iniciais desta Tese. Entretanto, não posso deixar de dizer que, de certa forma, esta citação causa
incômodo. Causa incômodo porque o autor versa sobre algumas questões que já estão
banalizadas no contexto educacional brasileiro, como a educação para a cidadania, a educação
para a saúde e sexualidade, para a prevenção das drogas e, como já apontado, são temas que
são ainda um tabu no seio das famílias em geral e precisam ser debatidos e apresentados ao
adolescente. Causa mais incômodo, ainda, porque os professores brasileiros se encontram,
principalmente nos primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro, em um impasse: ao mesmo
tempo em que inconscientemente a responsabilidade pelo ensino de valores e comportamento
(pelo menos na educação infantil e no ensino fundamental I) foi transferida a escola, o governo
e as famílias cobram que professores deixem de tratá-los (ou pelo menos que tratem de maneira
conservadora) em sala de aula alegando doutrinação política e ideológica (até mesmo em
programas que lutam contra a estereotipificação de papéis de gênero desde na educação infantil
e recomendam apenas que os professores diversifiquem as brincadeiras e deixem de estipular o
que seria brinquedo ou brincadeira de menino ou de menina).
180
53
Pode-se dividir o que se entende por habilidades socioemocionais na Base em quatro frentes: a) cognitiva –
Resolver problemas, planejar, tomar decisões, estabelecer conclusões lógicas, investigar e compreender
problemas, pensar de forma criativa, fortalecer a memória, classificar e seriar; b) emocional lidar com as emoções,
com o ganhar e o perder, aprender com o erro, desenvolver autoconfiança, autoconhecimento, autoavaliação e
responsabilidade; c) Social – Cooperar e colaborar, lidar com regras, trabalhar em equipe, comunicar-se com
clareza e coerência, resolver conflitos, atuar em um ambiente de competição saudável e d) Ética – Respeitar, tolerar
e viver a diferença, agir positivamente para o bem comum.
181
cotidiano dos alunos, ensinando conceitos técnicos que permitirão o exercício de uma profissão
no futuro, e também a desperta o interesse para seu papel na sociedade, educa para a cidadania,
para a participação social ativa, desperta o interesse para a sua relação consigo mesmo, com o
outro, com o mundo e com as políticas públicas que determinam sua vida.
Entretanto, é preciso problematizar: a escola deve ser a única instância de
desenvolvimento do que se chama de habilidades socioemocionais? Quando um documento
como a Base Nacional Curricular Comum sistematiza habilidades socioemocionais e atribui a
escola e a todos os professores a função de desenvolve-las, não contribui para legitimar, de
certa maneira, o que Nóvoa chama de transbordamento da escola e Martins Filho chama de
terceirização das crianças? Não raro os professores comentam, como vimos nas entrevistas em
anexo, que passam mais tempo mediando conflitos que ensinando, que não podem contar com
as famílias para a continuidade nas orientações sobre respeito e boa convivência na escola,
sobre o desinteresse das famílias sobre a educação dos filhos, sobre a falta de acompanhamento
familiar que implica em falta de rotina de estudos, sobre a desvalorização da escola e do
professor pela família, sobre a culpabilização da escola e do professor pelos baixos resultados
dos alunos se se verem implicados no processo. Como vimos, as famílias estão no mercado de
trabalho e a criança é terceirizada (a quem nem sempre pode se responsabilizar por sua educação
ou a quem simplesmente não se interessa por isso) ou as famílias estão presentes fisicamente,
mas ainda terceirizam as crianças aos cuidados e funcionários ou às telas de celulares e
televisões.
Em suma, temos que a terceirização do cuidado da criança acontece em todas as
classes, por razões diferentes e de maneiras diferentes. Qual seria, portanto, uma solução para
essa complexidade social que caracteriza as expectativas dos pais a respeito das escolas e as
expectativas da escola a respeito dos pais? Por ora, é difícil apontar soluções em um momento
de tantas mudanças, incertezas e divergências no que se refere ao papel da escola e ao papel do
professor na sociedade, em um cenário de medo generalizado e de perseguição aos
professores54. O que se pode concluir, portanto, é que ninguém parece ter claro quem é
responsável por certos aspectos da educação da criança, o que deve ser função da escola, o que
deve ser função da família e as novas diretrizes parecem querer legislar sobre essa questão sem
dados, sem conhecimento do que de fato é a relação entre escola, família e aluno em nome de
uma cruzada ideológica. Nesse contexto, retomo as questões de Martins filho: quem, de fato,
54
Perseguição incitada inclusive pelo presidente da república, que compartilha em suas redes sociais vídeos de
alunos que gravam sem autorização os professores que se posicionam sobre temas ditos políticos e que não devem
ser tratados na escola.
182
de responsabiliza pela criança? Com quem ela passa maior parte de seu tempo? Com a família?
Na creche? Com a família que está atarefada ou distraída com as telas? Como será essa geração
que pouco conversa e interage e mais se retrai e se esconde atrás das telas? Como será seu
sistema de atenção, memória, propriocepção, raciocínio lógico? Como será o desenvolvimento
das funções psicológicas superiores? Será compatível às expectativas da escola ou da família?
O processo de culpabilizar a família pela inadequação do aluno à escola e
consequentemente ao fracasso escolar não é recente. Reduzir o problema ao descaso das
famílias para com as crianças, ainda que, em muitos casos, isso seja parte do problema em nada
contribui para que se encontre uma solução para as questões apresentadas. Como vimos, para
Vygotsky, a subjetividade é fruto de uma variedade de fatores que vão muito além do contexto
familiar e pedagógico que envolvem toda a cultura e condições sociais de maneira que nenhum
desses elementos têm atuação direta, mas sempre em síntese, em dialética entre fatores internos
e externos. Por isso, as considerações de Rego sobre a multiplicidade de configurações
familiares se fazem relevantes para esta argumentação. A autora elenca três tipos de famílias.
Os pais autoritários, os permissivos e os democráticos. Os primeiros, segundo a autora, são
extremamente rigorosos, pouco afetuosos, restritivos e controladores, definem regras sozinhos
e punem quando os filhos não as cumprem. Já os pais permissivos são caracterizados como pais
mais afetuosos, dialógicos, que levam em conta as opiniões dos filhos mas que têm dificuldades
em impor regras, limites, de dizer não quando necessário, de impor qualquer forma de
autoridade à criança. Por fim, os pais democráticos demonstram afetos, dialogam sobre as
regras que conseguem impor explicando porque elas existem e a necessidade de que sejam
cumpridas, de maneira a delimitar os problemas e as consequências caso não sejam, mantendo
os limites e conseguindo dizer não quando necessário.
Sabemos que os perfis podem variar muito e que diante de cada problemática os
pais podem ser mais ou menos autoritários, permissivos ou democráticos, mas, segundo a
autora, podemos identificar, nas crianças, traços que são consequências do tipo de orientação
que tiveram dos pais. Para ela, crianças cujos pais são autoritários geralmente são mais
obedientes e organizados, mas podem ter problemas de sociabilidade, baixa autoestima ou
mesmo dificuldades em situações que precisa agir com mais autonomia. Os filhos de pais
permissivos, por sua vez, podem ser crianças mais tranquilas, com bastante autoestima, mas
geralmente demonstram muita impulsividade e imaturidade, já que um ambiente sem regras
pode gerar insegurança ou até mesmo a sensação de que tudo lhe é permitido. Assim, podem
ter também dificuldades no trato social, dizendo o que acham que devem dizer, da maneira que
183
querem, agindo como acham necessário, sem se ater às regras pragmáticas em diversas
situações. Por fim, para a autora, os filhos de pais democráticos desenvolvem o autocontrole,
autonomia, autoestima e confiança em si mesmo, conseguem lidar com frustrações, com regras,
questioná-las com respeito quando necessário e tem mais facilidade nas relações interpessoais.
Signor e Santana (2016), partindo da reflexão de Rego, sugerem que essas mesmas
configurações familiares podem ser estendidas aos professores, que, também sendo mais ou
menos autoritários, permissivos ou democráticos, a depender do contexto, também se mostram
elementos constitutivos da subjetividade das crianças. Como já explicitado com Foucault, uma
vez que a escola é uma instituição disciplinar, sabemos que o modelo que prevalece é o
autoritário. Além disso, as autoras ressaltam o fator da reprodução do modelo, que faz com que
muitos professores reproduzam o modelo educativo ao qual foram expostos, e, em um modelo
autoritário, busca-se normatização, homogeneização, ordem e disciplina por meio de
recompensas e punições, avaliações e categorização de alunos entre bons e ruins, educados ou
mal-educados, normais e anormais. Para Rego, se um dos principais objetivos da escola é fazer
que os alunos tenham as características que a sociedade tanto almeja- e que agora fazem parte,
inclusive, das diretrizes da nova Base Curricular com o nome de habilidades sócio-emocionais
– as ações pedagógicas precisam possibilitar que os alunos saibam o que se espera dele e
sobretudo criar condições para que esses valores sejam construídos no ambiente escolar. Isso
não acontece, já que, segundo a autora, as pressões que são feitas sob os professores para que
mantenham o ambiente silencioso, limpo, organizado, sem discussões acaloradas acaba gerando
justamente o contrário: dinâmicas de turbulência, com agitação, descontrole emocional,
incompreensão, conflitos, tensão, desafios entre pares, teste de limites, etc.
A última problematização sobre este assunto que quero tratar neste item – já que
ele será retomado nos próximos itens, quando tratarmos da questão da atenção – é o discurso
docente sobre o aluno e sua família. Signor e Santana afirmam que o que se diz da criança e
suas capacidades na escola, especialmente o que é dito pelo professor tem efeito direto na
relação entre pais e filhos, especialmente na educação infantil e nos anos iniciais do Ensino
Fundamental I. Assim, é preciso refletir sobre o que se espera de uma criança que é
frequentemente desqualificada pelos professores, seja na dinâmica do dia a dia, seja nos bilhetes
para a família e nas reuniões de pais. A experiência do CCazinho e até mesmo as entrevistas
desta Tese nos mostram que a fala docente sobre o aluno é permeada por uma série de negativas:
a criança que NÃO presta atenção, que NÃO fica quieta, que NÃO escreve direito, que NÃO
respeita os pares, que NÃO aprende, que NÃO acompanha o ritmo da sala. Observamos, no
184
CCazinho, que essas crianças, uma vez estigmatizadas, se tornam muito inseguras, sem
confiança em si mesma, com baixa autoestima e continua com dificuldades de aprender em
decorrência dos dizeres a seu respeito (tanto oralmente, quanto nos pareceres pedagógicos).
Assim como os testes, o olhar docente parece valorizar o que a criança não sabe, evidenciando
o que há de ruim (aos olhos da escola) e ignorando as qualidades. O olhar pedagógico, que
estigmatiza e adoenta (SIGNOR & SANTANA, 2016, p. 120) precisa se descolar do olhar
clínico e se libertar do padrão que a medicina impõe para deixar de ser também instrumento da
patologização.
Tabela 3 - Estimativa do número de alunos, classes, total de professores, número de salas de aula, alunos/classe,
jornada diária do aluno e jornada semanal do professor por etapa da Educação Básica
Fonte: Parecer Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB) nº 8/2010 (BRASIL, 2010a).
Ainda que essas especificações tenham sido dadas para que se cumpra uma das
determinações da Constituição Federal, no artigo 25 da LDB, além da afirmação de que é
“objetivo permanente das autoridades responsáveis alcançar a relação adequada entre o número
de alunos e o professor”, consta um parágrafo único em que se estabelece que “cabe ao
respectivo sistema de ensino, à vista das condições disponíveis e das características regionais e
locais, estabelecer parâmetro para atendimento do disposto neste artigo”.
Este parágrafo único abre, assim, uma brecha na legislação: tendo em vista a
suposta escassez de recursos, é possível que se formem turmas com número elevado de alunos.
Os recursos, assim, ficam à frente de questões como as especificidades da região, o local da
escola, as necessidades dos alunos e das famílias, etc. Ainda que essa legislação tenha
estabelecido um número razoável de alunos por turma – se comparadas às turmas nas escolas
186
da rede estadual onde há turmas com mais de 50 alunos –, é preciso ressaltar que os critérios
para a estimativa de alunos por turma não foi definido com base em consulta pública aos
professores, pais e alunos, mas sim em dados estatísticos que constavam no projeto original da
LDB nos meados da década de 80.
São muitos os focos de análises, metodologias, recortes e análise de dados
envolvidos nas mais diversas pesquisas sobre a relação entre alunos por turma e a qualidade de
ensino, o que faz esse tema objeto de muitas discussões que partem de diferentes pontos de
vista. Assim, o assunto é controverso, como veremos na síntese a seguir.
Para Gomes (2005), não há nenhum dado que comprove que apenas55a redução do
número de alunos por turma garantiria melhores rendimentos, o que tornaria essa crença de que
quanto menos alunos por sala, melhor, uma afirmação do âmbito do senso comum. Entretanto,
ao tratar do que chama de clima escolar (pessoalidade no tratamento, afetividade, ausência ou
número diminuto de episódios de violência), considera que a redução de alunos por sala em
casos em que o clima escolar não é favorável poderia ajudar para que ele melhore, o que
melhoraria consequentemente o desempenho dos alunos.
O autor ressalta que apesar da literatura científica em grande parte considerar a
redução do número de alunos por sala essencial ao processo de aprendizagem. Tal redução pode
não acarretar em nenhuma mudança se o professor não mudar também a prática pedagógica, de
maneira a adequá-la ao número de alunos que tiver em sala de aula, além de outras mudanças
necessárias, como investimentos em formação de professores, em infraestrutura escolar, em
medidas para aumentar a jornada, etc.
Pode-se mencionar, ainda, a investigação realizada por Oliveira (2008), na qual são
analisados dados do SAEB de 2005 referentes as provas de matemática e português. A pesquisa
aponta que uma política de ampliação da jornada escolar se mostra mais efetiva que a redução
de alunos por turma, partindo da análise de uma jornada de quatro horas com 33 alunos ou
menos por turma. O estudo também indica, porém, que quando a turma é maior que 33 alunos
e menor que 41, a redução do número de alunos se mostra mais efetiva no aumento do
rendimento dos alunos.
Outra pesquisa, apresentada por Camargo e Júnior (2014), analisa as consequências
do processo de “enturmação”, ou seja, o aumento repentino no número de alunos por sala na
55
Gomes (2005) acrescenta que em uma meta análise de pesquisa foi verificado que o rendimento é mínimo em
turmas de 20 a 40 alunos, mas que há melhoras relevantes com turmas de 15 alunos ou menos, mas que isso teria
implicações de alto custo. Outra meta-análise verificou resultados mais favoráveis para reduções da ordem de 27
a 16 alunos. Em um estudo onde foram comparados vários países (Terceiro Estudo Internacional em Matemática
e Ciências – TIMSS) não foram encontradas evidências quanto ao benefício de turmas menores.
187
rede estadual do Rio Grande do Sul em 2007, nas turmas de 4ª série e de 8ª série. Os autores
tomaram como base os resultados da Prova Brasil e a base de dados do SAERS - Sistema de
Avaliação do Rendimento do Rio Grande do Sul. A nova organização das turmas previa
máximo de alunos por turma de 10 alunos no Ensino Fundamental e 45 no Ensino Médio. As
análises de dados mostram que não houve evidência significativa de que o número maior de
alunos tenha impactado nos resultados.
A pesquisa feira por Oliveira e Araújo (2005), entretanto, analisa dados do PISA e
diverge das pesquisas que tomam a Prova Brasil como objeto. Tomando como base a prova
aplicada no ano 2000, com alunos da 8ª série do Ensino Fundamental, foi verificado que o
tamanho da turma tem impacto tão grande quanto outros critérios de análise, como as diferenças
socioeconômicas, a formação de professores, a infraestrutura da escola, etc. Nas conclusões do
texto, apresentam que quanto melhor qualificado o professor (nível superior e pós-graduação)
e quanto menor for o número de alunos por turma, melhor foi o desempenho dos alunos no
teste. Nas escolas em que há mais de 25 alunos por turma, o desempenho é marcadamente pior.
A Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Teaching and Learning
International Survey – TALIS 2013) em que participaram 24 países da OCDE e 9 outros países,
inclusive o Brasil, traz para a discussão uma questão específica do aumento de alunos por turma:
a relação entre o tamanho das turmas e o tempo gasto pelo professor com o processo de
aprendizagem e o tempo gasto para organização da sala de aula. Nesta pesquisa, apresentou-se
uma comparação entre os dados coletados em diversos países para que se pudesse traçar um
panorama das condições de trabalho dos professores em vários contextos56. Verificou-se que os
professores gastam, em média, 79% do seu tempo no processo de ensino e aprendizagem, mas
essa proporção varia de país para país. No caso do Brasil, o tempo gasto é de 67%, enquanto na
Bulgária é de 87%.
Ainda em relação à organização do tempo em sala e aula, uma pesquisa apresentada
pelo Conselho Nacional de Educação de Portugal afirma que turmas com muitos alunos
geralmente geram problemas de indisciplina, o que prejudica o tempo gasto com o processo de
ensino e aprendizagem. Ademais, as turmas com mais alunos são aquelas com as quais o
professor passa menos tempo de aula dedicado ao processo de ensino e aprendizagem, enquanto
com as turmas com menos alunos, e, consequentemente, com mais tempo efetivo de aula, há
56
No Brasil, a pesquisa foi organizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP) e em âmbito internacional pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)
(INEP, 2014).
188
tempo hábil para que o professor aprofunde e diversifique as práticas pedagógicas, além de
poder, de fato, dedicar mais tempo aos alunos que demonstram mais dificuldades.
Acrescento, aqui, algumas outras questões: partindo da pesquisa portuguesa que
afirma que turmas com número alto de alunos tendem a ter mais problemas de indisciplina,
podemos traçar algumas consequências desse cenário: em um contexto de indisciplina,
geralmente a gestão pedagógica cobra do professor que ele tenha controle da turma, que seja
exigente, que solucione casos de desatenção ou de conflitos. Nesse contexto, a tendência
geralmente é que o professor lance mão de estratégias pedagógicas mais tradicionais, ou seja,
que envolvam menos discussões, debates, experimentos, pesquisas, seminários e fique mais
focado nas leituras individuais, na exposição de conteúdos, nas avaliações que envolvem a mera
memorização, dentre outras – oque, visualmente, garante alunos sentados em fileiras, em
silêncio, trabalhando individualmente, dando a falsa aparência de ordem, controle e
aprendizagem.
Ademais, para além do tempo que o professor gasta tentando controlar uma turma
grande, é preciso levar em conta o tempo que o professor gasta preenchendo relatórios e fazendo
registros do andamento das aulas. Se o número de alunos é alto, mais tempo o professor passará
dando conta do trabalho burocrático e terá menos tempo para se especializar, pesquisar novas
metodologias e estratégias, debater com colegas suas práticas, assistir outras aulas, ou mesmo
em atividades de lazer, tão caras à saúde mental do professor e, consequentemente, parte
essencial do processo de ensino.
Por fim, de acordo com o relatório do Conselho Nacional de Educação (2016), as
pesquisas que tomam a redução dos alunos em sala de aula em outros países indicam que não
há mudança significativa na aprendizagem dos alunos, enquanto as pesquisas nacionais indicam
que há, sim, e há mudança para melhor. Como podemos avaliar esses dados? Primeiramente,
algumas questões parecem não ter sido levadas em consideração nos estudos que concluem que
não há mudança significativa na redução do número de alunos, tais quais: a) que tipo de valor
social a escola e a escolarização têm para os sujeitos dessas pesquisas? b) quais instrumentos
de avaliação foram utilizados para medir a qualidade de ensino? c) qual é a condição de trabalho
dos professores envolvidos na pesquisa? d) o acompanhamento longitudinal para a avaliação
da melhora no desempenho durou quanto tempo?
Do ponto de vista da ND, cabe um questionamento: não seria, também, o aumento
do número de alunos por turma um dos elementos que contribui para que o professor encaminhe
alunos com dificuldades às avaliações clínicas? Uma vez sobrecarregado com a demanda de
189
trabalho que muitos alunos exigem – tanto em sala quanto fora dela, como veremos no item a
seguir, sobre a burocracia escolar – não seria uma solução fácil para os alunos com dificuldades
indicar uma avaliação clínica na esperança de que ou seja identificado um distúrbio de
aprendizagem ou de que sejam apontados caminhos? Não quero, aqui, dizer que os professores
podem agir assim por má fé ou por preguiça de fazer seu trabalho, mas sim que uma vez que a
clínica se mostra como recurso disponível para avaliação e condução do percurso de
aprendizagem, não há porque descartar que seja também um alívio para o professor quando há
profissionais outros que não ele envolvidos na aprendizagem de alguns alunos, funcionando
como uma mecanismo que tira parte da sobrecarga de trabalho e responsabilidade do professor.
Um dos principais argumentos – não apenas do Estado, mas também dos gestores
de escolas particulares – para o aumento dos alunos por classe é que dividir as turmas gera um
custo muito alto, que envolve desde a providência de espaço físico adequado até a contratação
de professores para dar conta da demanda reconfigurada em turmas reduzidas. Entretanto,
diante de pesquisas que apontam melhora na aprendizagem dos alunos epossibilidades de
qualificação e atuação diferenciada dos professores: cabe um questionamento: em face do custo
social, cultural e político que alunos com defasagem de aprendizagem causam, não seria uma
política de redução de alunos por turmas algo mais que um mero gasto, mas sim um
investimento a longo prazo?
Isso está relacionado com a patologização na medida em que tais circunstâncias
subjazem à dificuldade de conferir aos alunos um atendimento mais individualizado, solucionar
dúvidas e encaminhar pedagogicamente as chamadas “dificuldades de aprendizado”. Tais
condições de trabalho e ensino, portanto, fomentam um quadro em que as dificuldades
apresentadas por alguns alunos são perpetuadas e aprofundadas ao longo dos anos, na medida
em que a distância entre a expectativa escolar o desempenho apresentado é maior a cada ano.
ao longo de todo o ano de maneira extensa e detalhada, nos quais constem até mesmo atividades
dos alunos; b) fazer diários de classe detalhados; c) fazer planos de aula em que constem até
mesmo as questões que serão feitas aos alunos ao longo da leitura dos textos e o que a professora
dirá aos alunos ao longo das aulas; d) preenchimento de estatísticas do rendimento dos alunos,
envolvendo o número de erro e acerto por questões nas provas dentre outros dados; e) manter
um caderno com tudo que foi dado em sala de aula aos alunos; f) a produção de muitos
instrumentos de avaliação e as avaliações diagnósticas e g) a colaboração para o portfólio do
aluno com dificuldade e do aluno que pode vir a reprovar.
De acordo com Oliveira (2001), uma das principais questões que afetou o trabalho
docente a partir das reformas educacionais da década de 90 foi a descentralização
administrativa, financeira e pedagógica que trouxe maior flexibilização e autonomia na
organização do funcionamento das escolas. Se, por um lado, mais autonomia significa mais
liberdade docente para a organização de seu trabalho, por outro, confere ao professor mais
responsabilidade pelo processo educacional e, gera, portanto, necessidade de prestação de
contas antes, durante depois da prática pedagógica. Frequentemente é exigido que os
professores entreguem planos de aula detalhados, anotações sobre o desempenho dos alunos
(que geralmente acabam sendo feitas ao longo das aulas, tendo em vista a quantidade de alunos
e a necessidade de registro imediato para garantir as informações) e correções de atividades
comentas durante a aula ou relatórios extensos produzidos após as aulas e que, muitas vezes,
exigem narrativas sobre as aulas. Destaco, aqui, que esse é um processo resultou na atribuição
de uma falsa autonomia, já que o detalhamento e a documentação da prática pedagógica
conferem mais controle e fiscalização do professor57 não apenas aos envolvidos na hierarquia
escolar (coordenadores pedagógicos, diretores, diretoria de ensino), mas também aos próprios
57
Cito, ainda, outro elemento que condiciona a prática docente: os sistemas de avaliação em âmbito nacional,
estadual e municipal, como a Prova Brasil, o PISA, o SARESP (que era aplicado no estado de São Paulo), o SAEB
(Sistema de Avaliação da Educação Básica), a ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização), dentre outras. De
acordo com Oliveira, a inserção dessas provas têm modificado consideravelmente a prática escolar brasileira, já
que modifica seus valores, objetivos e traz novos significados ao aprendizado, já que não se ensina mais pelo valor
do aprendizado em si, mas para a obtenção de bons resultados nessa prova e consequentemente boas posições nos
rankings de desempenho dentre as escolas. Ademais, em alguns estados e municípios, há bonificação em dinheiro
para professores, coordenadores, diretores e escolas que apresentarem bons resultados nessa avaliação. A
experiência no CCazinho ao longo de dez anos, a convivência com professores (matriculados como alunos
especiais) nos cursos ministrados pela professora Maria Irma Hadler Coudry na graduação e na pós graduação nos
revelou a triste realidade que caracteriza a organização escolar na aplicação dessas provas: descobríamos, ao longo
de vários anos, que em certos dias era solicitado aos pais das crianças que frequentavam o Ccazinho (e que
apresentavam, portanto, dificuldades escolares) que não levassem seus filhos na escola. Indagando os motivos, os
pais descobriram que era por conta da aplicação de uma avaliação pública externa. Os alunos que perdem essas
avaliações não são avaliados posteriormente por falta de dinâmica e recursos do governo para preparar e aplicar
duas provas e, assim, avaliava-se apenas os alunos que apresentavam bom desempenho e aumentava-se a chance
de bonificação.
191
alunos e suas famílias. O registro das aulas e do desempenho dos alunos deixa o trabalho do
professor vulnerável a críticas e a opiniões de pessoas que não estão diretamente envolvidas no
contexto escolar ou que, se estão, passam mais tempo empenhadas no cumprimento de funções
burocráticas do que na empreitada de conhecer os alunos, as turmas, como aprendem, do que
precisam, os professores e seus desafios cotidianos, as práticas que dão certo ou não.
Assim, a burocracia escolar pode gerar uma série de julgamentos, mal-entendidos
e até mesmo sanções aos professores que não seguem alguma diretriz pedagógica das escolas,
seja pela sua inviabilidade, seja pelo fato do professor nem sempre concordar com tudo que lhe
é imposto. A pior questão que envolve a burocratização do trabalho docente é, entretanto, o
tempo que a produção dessa demanda exigida pelas escolas toma das professoras, que
compreende, como veremos a seguir, o tempo que seria destinado ao descanso ou ao estudo,
especialização ou dedicação à atividades que possam de fato ter efeito em sua prática em sala
de aula. Antes de passar a essas considerações outros dois pontos precisam ser levados em
consideração nesta pesquisa: o fato de que a maioria das professoras que estão na educação
básica são mulheres e que em maioria trabalha em duas escolas.
O levantamento do perfil do professor da Educação Básica, realizado pelo INEP em
2017 e publicado em 2018, apresenta um comparativo da proporção de homens e mulheres na
educação básica, entre os anos de 2009, 2013 e 2017:
Figura 10 – Quantidade de professores por sexo e por etapa de ensino – Brasil – 2009/2013/2017
58
A diferença se dá inclusive na questão salarial: a remuneração de uma professora formada em pedagogia para
uma jornada de em média 30 horas semanais gira em torno de dois mil e quinhentos reais no Em São Paulo e
regiões metropolitanas, enquanto uma professora horista recebe mais e por hora aula para dar aulas no Ensino
Fundamental II e no Ensino Médio.
193
torno de pelo menos dez horas por dia -, as tarefas domésticas, o cuidado com os filhos e o
preenchimento da burocracia exigida pelas escolas durante os finais de semana. Cito, aqui, a
pesquisa feita por Zibetti e Pereira (2010), que analisa, através de entrevistas semiestruturadas
com 80 professoras, o impacto da dupla jornada no trabalho docente e em suas vidas. Em suma,
a pesquisa aponta que todas as docentes se queixam de fadiga extrema após as jornadas de dez
aulas diárias e que o maior complicador é o fato de não contarem com momentos de
planejamento, correção ou preenchimento de burocracia dentro de sua carga horária, o que as
obriga a levar tarefas da escola para casa e que, mesmo fazendo grande parte deste trabalho no
final de semana, utilizam os horários de descanso que correspondem aos intervalos e ao almoço
para lidar com a burocracia escolar. Ademais, as professoras ressaltam que o trabalho com os
anos iniciais da educação básica, que abrange crianças de 2 a 10 anos é extremamente exaustivo,
já que requer atenção constante, muita responsabilidade e resistência física.
É inegável, portanto, que a jornada deixa de ser tripla, porque além de envolver dar
aulas em duas escolas e o trabalho doméstico, envolve também um quarto momento que deveria
ser destinado ao descanso, mas é destinado à demanda de preenchimento da burocracia escolar
e sobrecarrega as professoras. Outra questão que não pode ficar de fora dessa discussão é que,
além de evidenciar os aspectos culturais que permeiam as famílias brasileiras, essa sobrecarga
das mulheres evidencia também os baixos salários recebidos pela categoria, o que obriga as
professoras a manter dois empregos para terem um salário que possa dar conta das despesas.
Se, por um lado, outros profissionais de maior prestígio social e remuneração gozam de mais
tempo para estar com suas famílias, vivenciar momentos de lazer e investir em cursos de
aprimoramento profissional, as professoras não tem condições nem físicas nem psicológicas de
fazer o mesmo – e nem ao menos dispõem de tempo para isso, já que o tempo que deveria ser
destinado a essas oportunidades é ocupado ou com o trabalho doméstico ou com as questões
escolares. O cotidiano familiar, assim, deixa de ser momento de tranquilidade, refúgio,
descanso e de se refazer para enfrentar o dia a dia em sala de aula e passa a ser mais um
momento de tensão, no qual a professora se vê dividida entre o cuidado da família, do lar e
entre cumprir a exigência profissional.
Este contexto, além da baixa remuneração, da desvalorização do professor pelos
outros membros da hierarquia escolar, pelas famílias dos alunos, pelos alunos e a péssimas
194
condições de trabalho fazem da profissão de professora da educação básica uma das mais
vulneráveis e propensas ao desenvolvimento de problemas de saúde mental59.
Neste contexto, esta pesquisa propõe a reflexão sobre a formação continuada das
professoras que se encontram na situação de dupla jornada: tendo em vista a escassez do tempo
para a dedicação aos estudos e ao aprimoramento profissional, como julgar as professoras que
não fazem cursos de especialização ou que não dão continuidade aos estudos? Ademais, como
julgar as professoras que, tudo que conseguem encaixar em suas rotinas são cursos de curta
duração, não-presenciais ou reduzidos a um encontro semanal? Ainda que após a transição dos
governos Dilma Rousseff – Michel Temer e Michel Temer – Jair Bolsonaro permaneça o
consenso de que é necessário investir na formação de professores e coloca-los no centro das
reformas educacionais (com objetivos diferentes, de acordo com as diretrizes ideológicas de
cada governo), o que se vê em termos de formação inicial não corresponde à melhorias. Cada
vez mais os cursos flexibilizam a carga horária de forma que boa parte das aulas sejam
ministradas à distância, a duração dos cursos é frequentemente reduzida, bem como o tempo de
exigência de estágios e de formação profissional. Cada vez mais cursos de graduação não
exigem trabalho de conclusão de curso que tragam ao professor um panorama básico de
investigação científica e a motivação para a escrita e a leitura acadêmica.
A pesquisa de Zibetti e Pereira revela ainda, com os dados coletados, os conflitos
que as condições de vida e trabalho impõem a essas professoras:
59
A Associação Nova Escola fez uma pesquisa com mais de cinco mil educadores, no período entre junho e julho
de 2018 (TEIXEIRA, 2018). A pesquisa revelou que 66% das professoras e professores já precisaram se afastar
do trabalho por questões de saúde. 87% dos participantes afirmam que o seu problema é gerado ou intensificado
pelo trabalho. Dentre os problemas mais frequentes estão a ansiedade, que afeta 68% dos educadores; estresse e
dores de cabeça (63%); insônia (39%); dores nos membros (38%) e alergias (38%). Ademais, 28% dos
entrevistados afirmaram que sofrem ou já sofreram de depressão. A conclusão da pesquisa é que a falta de
infraestrutura, o excesso de alunos por sala de aula, a dupla jornada, a falta de segurança nas escolas e a má
remuneração contribuem para desvalorizar a carreira e desestimular os profissionais, causando uma série de
doenças e até mesmo o abandono da carreira.
195
Por fim, não podemos deixar de citar uma questão importante que gira em torno da
burocratização do trabalho docente e que é central para esta pesquisa: a produção de avaliações
diagnósticas e de relatórios sobre o desempenho dos alunos em relação às expectativas
escolares. Segundo algumas das professoras entrevistadas, a avaliação diagnóstica é uma
prática presente em muitas escolas, especialmente no início do ano, para que se possa detectar
as dificuldades dos alunos, traçar estratégias e, em alguns casos, solicitar à família a intervenção
de um profissional da saúde para investigar outros fatores que possam explicar as dificuldades
dos alunos. Além das avaliações, são produzidos relatórios de desempenho escolar que servem
como registro formal para que a escola fique resguardada em casos de futuros questionamentos
judiciais sobre reprovas e como informativos das dificuldades dos alunos.
A experiência no CCazinho (MÜLLER, 2013, 2018, ANTONIO, 2008; BORDIN,
2008; BARTHELSON, 2014; MOUTINHO, 2014; COUDRY, 2010) nos trouxe a oportunidade
de ler os relatórios de desempenho escolar de crianças que frequentam escolas públicas e
privadas de todos os tipos e de entender melhor não apenas como eles são produzidos, mas
também as expectativas das escolas com relação as crianças. Em geral, são textos curtos e com
muitos problemas de escrita, ainda que tenham sido escritos por professores. São textos que
descrevem o comportamento de aluno no cotidiano escolar, ressaltando os momentos em que
estão desatentos ou indisciplinados e como ele se relaciona com colegas e professores. Não
estão acompanhados de textos ou atividades da criança, de modo que sempre é necessário que
os cuidadores do CCazinho solicitem o caderno escolar, as atividades avaliativas e os textos
espontâneos. Quero chamar a atenção, aqui, para o que há em comum a todos os relatórios que
lemos que é o fato de que só se relata o que a criança ainda não sabe fazer. Frequentemente
aparecem nos relatórios as expressões não sabe, não consegue, não aprende, não senta, não
presta atenção, não copia, troca letras, erra muito, não lê bem, não segue instruções, não se
interessa pela aula. No caso dos alunos com mais dificuldades, vemos que predominam termos
como não aprende apesar do reforço, não aprender mesmo com as atividades adaptadas, não
aprende mesmo depois de fazer atividades extras. O que vemos, aqui, é, portanto, uma
tendência da escola à queixa e o olhar voltado para o déficit, como vimos nos capítulos
anteriores.
Nos relatórios, não há nenhum tipo de ponderação ou consideração sobre o contexto
da criança na prática escolar, há apenas um conjunto de generalidades que não permite a um
investigado mais atento saber quase nada sobre a criança. Como vimos com o caso de EF e com
os outros casos que acompanhamos no CCazinho, é preciso saber mais sobre a criança: o que
197
ela já sabe que pode fazer com que ela aprenda novos conceitos? O que ela já consegue fazer e
o que pode estar barrando novos aprendizados? Em quais situações não fica sentada: quando é
exigido atenção para algo com que ela tem dificuldades e não tem condições ainda de associar
a aprendizados anteriores (VYGOTSKY, 2007) ou durante a exibição de um filme, quando
assiste uma peça de teatro, quando pode jogar com os colegas? A que ela não presta atenção?
Aos conteúdos que não entende, às aulas metalinguísticas, às longas e exaustivas cópias de
lousa ou às histórias, ao cotidiano, aos jogos, filmes ou aos outros objetos de seu interesse? Que
letras a criança troca? Quais ela não troca? Que tipo de representação gráfica ainda está sendo
sistematizada? Quais já foram? O que é não ler bem? Leitura silabada, hesitante? A leitura
acontece com ou sem compreensão?
O caso de EF é bastante representativo desta questão, pois, como vimos, bastou que
acontecesse uma reunião entre cuidadora, escola e família para que pudéssemos esclarecer que
as dificuldades que ele ainda tem são contextuais, ou melhor, geradas pela dinâmica escolar.
Em suma, quero problematizar o aumento da burocracia escolar e apontar duas
maneiras pelas quais ela pode aparecer como um dos fatores que pode levar uma criança com
dificuldades escolares a ser encaminhada pela professora a uma avaliação clínica: por um lado,
a professora sobrecarregada pela burocracia escola (além de todas as outras atribuições que o
papel de gênero lhe impõe, como vimos), se vê praticamente impedida de buscar outras soluções
para os alunos com dificuldades (seja a busca por novas práticas, seja a busca por teorias sobre
o aprendizado ou as dificuldades escolares). Por outro lado, a burocracia exigida parece ser pré-
formatada para evidenciar o déficit: avaliações diagnósticas que mostram apenas um recorte
limitado e artificial de como os alunos se relacionam com a leitura e a escrita (em uma avaliação
não se pode perguntar, consultar outras fontes, usar a fala como apoio, como vimos no caso de
EF) e relatórios escolares que evidenciam sempre o que a criança não consegue fazer sem se
preocupar em ressaltar o que ela já sabe. O relatório de desempenho escolar se torna, assim, um
perigoso instrumento de patologização, já que, como explicitado nos capítulos anteriores, o
percurso avaliativo do DSM V toma esses textos produzidos pelos professores como principal
referência para consolidar o diagnóstico.
professor está prevista na lei da inclusão, como veremos a seguir. Entretanto, é preciso
problematizar também algumas destas ações que se pretendem inclusivas. Segundo Signor e
Santana, (2016), é comum que este professor se sente ao lado da criança diagnosticada com
Dislexia ou com TDAH para chamar sua atenção para a aprendizagem ou para garantir que ele
faça todas as atividades.
Além disso, este recurso pode trazer muitas questões de autoestima para as crianças,
que passam a ser marcadas como aquelas que não conseguem aprender sozinha. Ter alguém
que chame sua atenção o tempo todo também não ajuda a criança a desenvolver autonomia em
sala de aula, criando uma relação de dependência com o adulto que está sempre de prontidão
para ajudá-la.
a vida em sociedade determinam seu funcionamento, bem como a capacidade humana e cerebral
(neuroplasticidade) de reconfigurar o sistema de atenção a depender das diferentes situações
em que o sujeito se insere,
De acordo com Luria, são três os elementos que constituem o estado de atenção: “a
seleção da informação necessária, o asseguramento dos programas seletivos de ação e a
manutenção de um controle permanente sobre elas” (LURIA, 1991, p. 1). A combinação destes
três elementos está na base do que Vygotsky chama de atitude de atenção e define como a
adaptação dos órgãos dos sentidos de maneira que estejam trabalhando para que a atenção possa
acontecer. A atenção, segundo o autor, sempre começa com um caráter motor, que envolvem
reações-atitudes e movimentos dos órgãos receptivos, ou seja, para prestar atenção em algo,
levantamos a cabeça ou inclinamos o pescoço em direção ao que queremos nos atentar,
voltamos os olhos para o que queremos analisa, etc. Para o autor, entretanto, as reações motoras
da atenção vão além da percepção e adequação dos órgãos externos, já que a atenção envolve,
também, a suspensão dos demais movimentos e reações que não estão diretamente vinculados
ao objeto da atenção, como a inércia e o repouso dos órgãos desocupados, ou fechar os olhos e
bloquear a visão para ouvir mais atentamente.
Partindo destas considerações, Vygotsky situa a atenção no âmbito das funções
psicológicas superiores e ressalta seu caráter social, a maneira como as relações entre a criança
e o outro irão determinar o desenvolvimento e o funcionamento da atenção. Para o autor, a
atenção da criança tem, inicialmente, um caráter não-arbitrário/voluntário e está direcionada a
estímulos exteriores que se mostram novos ou impositivos, se mostrando, segundo Luria,
instável, de volume estreito/pequeno. Como exemplo, Luria cita as crianças em idade tenra e
pré-escolar, que perdem muito rapidamente a atenção e se voltam aos novos estímulos que
surgem, mostrando que o reflexo orientado é muito volúvel.
Já a atenção arbitrária/voluntária envolve a interioridade do sujeito e não envolve
os estímulos externos, mas sim a vivência, as vontades, os pensamentos. O movimento de tentar
se recordar de onde colocamos um objeto, assistir a um filme, planejar uma atividade são
exemplos da atenção voluntária. A partir da diferenciação destes dois tipos de atenção,
Vygotsky pontua que a atenção não-arbitrária tem um caráter inato, envolve o reflexo
incondicionado e a atenção arbitrária é adquirida, socialmente condicionada, mediada pela
linguagem. Primeiramente, a criança se volta para os objetos que o outro nomeia (atenção
involuntária) até que depois consiga, por si só, nomear e se movimentar em direção ao objeto
que deseja (atenção voluntária). Luria ressalta que o processo, além de social, é cultural, uma
200
vez que o outro direciona a atenção da criança para os objetos de sua cultura, atribuindo assim
valor aos elementos que rodeiam a criança, determinando aquilo que geralmente será objeto de
sua atenção, consideração e apreciação por mais ou menos tempo. É desta maneira que entende-
se que, na perspectiva histórico-cultural, sem a atenção conjunta do adulto e da criança para o
mesmo objeto, não seria possível desenvolver a linguagem: sem a linguagem,
consequentemente, não é possível desenvolver a atenção voluntária, que se mostra resultante
de um processo complexo de desenvolvimento, que tem relação de dependência com a
linguagem.
Do que Luria está tratando quando aborda a comunicação entre o adulto e a criança?
De quando o adulto orienta a criança a observar um passarinho na árvore e a imitar o seu cantar,
a guardar seus brinquedos, a cumprimentar as pessoas que a rodeiam, a observar o caminho das
formigas em um parque, a observá-las levando folhas ao formigueiro, a bater palmas. Sobre
quando o adulto toma objetos da cultura que exigem atenção em uma relação de interação, de
brincadeira e descontração, como quando jogam jogo da memória, pega-palitos, damas, ou
quando brincam de esconde-esconde e precisam se atentar ao momento certo de chegar ao ponto
de partida. De quando o adulto mostra para a criança que a fumaça que sai da comida evidencia
que ela ainda está quente e é preciso esperar para comer. De quando o adulto lê histórias
recorrentemente para a criança, levando-a a observar as ilustrações, a fazer perguntas, a criar
expectativas sobre a história. Ou sobre quando o adulto orienta a criança a observar o
comportamento dos demais em certos tipos de ambientes para que a criança regule suas próprias
atitudes, colaborando para um sistema de atenção mais estável, possibilitando que a criança
consiga manter a atenção por mais tempo.
Movimentos na direção contrária também precisam ser citados: mesmo quando não
faz nada disso, o adulto condiciona o sistema de atenção da criança, colaborando para que a
atenção não-arbitrária predomine, para que a criança não se atente ou reflita sobre sua posição
em relação ao espaço, em relação ao outro, em relação a si mesma. Quando não faz nada disso,
o adulto colabora para a formação de um sistema de atenção mais instável, que foge do controle
da criança, especialmente em situações em que é exposta a elementos pelos quais não se
interessa. Assim, é na e pela linguagem, em um processo cultural complexo e singular que a
201
Não se trata, aqui, de culpar pais, muito menos professores, mas sim de afirmar,
com a teoria histórico-cultural, que a qualidade da atenção é resultado das interações.
Precisamos compreender, também, o que leva muitos professores a agirem desta maneira: nas
escolas, sobretudo nas escolas particulares, é cobrado que o professor mantenha a ordem, o
silêncio, a disciplina, a sala limpa e certo ritmo de produtividade que faça com que os alunos
consigam corresponder, posteriormente, às expectativas de desempenho nas avaliações
estabelecidas para o professor. Tendo em vista que o processo avaliativo de muitas escolas
ainda é tradicional, requer memorização e reprodução de conteúdos e muitas horas de exercícios
de repetição para que o aluno seja bem-sucedido, a prática pedagógica é organizada para que o
aluno tenha o resultado esperado nas avaliações e o professor cumpra suas metas de aprovação.
O que vemos, entretanto, são os diversos problemas que surgem dessa dinâmica,
como a desinteresse a consequente desatenção do aluno ao que lhe é proposto na escola e,
muitas vezes, a patologização do seu comportamento. Ademais, temos os problemas da
estrutura das escolas, sobretudo a escola pública a superlotação das salas, como já debatemos
202
nos itens anteriores, a falta de material (carteiras, giz, impressão, livros, uniformes), a falta de
professores, a desorganização do calendário, a precarização da merenda e os tantos outros
problemas da escola pública que fazem com que as crianças e famílias desvalorizem a educação.
Esse processo atinge e desgasta a imagem da escola, do professor, o estudo como meio de
ampliação do repertório cultural ou mudança de nível social/econômico e não cria condições
para que a criança tenha um ambiente favorável à manutenção da atenção e à aprendizagem.
Não podemos, portanto, responsabilizar apenas os professores pela prática que não desenvolve
a atenção, mas as condições de trabalho à que são submetidos, com suas peculiaridades nos
sistemas públicos e privados e como elas têm efeito direto na vida psíquica dos alunos.
Se a criança não tem, no contexto familiar, práticas ou relação com os adultos que
possibilitem o desenvolvimento da atenção arbitrária, inicia-se um conflito. Ela se mostrará
desatenta ao que a escola quer que ela se atente e buscará o que é de seu interesse: desenhar,
observar a paisagem, dormir, conversar com os colegas, levantar o tempo todos e qualquer outra
atitude que será sempre considerada inadequada, que atrapalha professores e alunos, que é
desrespeitosa, que é indisciplinada.
Tocamos, aqui, na questão central da atenção tanto para Luria quanto para
Vygotsky: o interesse das crianças como motivador e disparador da atenção arbitrária. Para
Vygotsky, o processo de atenção acontece em duas fases: na primeira, o corpo se adapta para
favorecer a atenção e, na segunda, o corpo suspende todos os outros processos que possam
atrapalhar a atenção e sua manutenção. Esse processo de ativação e suspensão só acontece,
segundo Vygotsky, se o objeto que pode ser alvo da atenção fizer parte dos interesses,
necessidades e objetivos – que podem tornar certos objetos mais ou menos relevantes, mais ou
menos dignos da atenção e faze-la mais ou menos estável. Assim, a determinação sócio-
histórica dos interesses das crianças e o processo pelo qual se deu a construção de sua atenção
arbitrária é central para compreender o que faz com que ela se atente ou não na escola.
Desta maneira, a prática escolar tradicional, que envolve sobretudo a cópia, a
atenção prolongada no professor, o silêncio, a manutenção do mesmo tópico, a permanência no
mesmo ambiente se mostram desinteressantes e até mesmo desestruturante da atenção, ainda
que o objetivo inicial desta organização didática seja também a manutenção da atenção mas
cause, paradoxalmente, a desatenção/distração à aula. Entretanto, é importante trazer para este
ponto da reflexão as considerações de Vygotsky sobre a distração. Para o autor, a distração é
constitutiva da atenção, já que ser atento a algo pressupõe estar distraído em relação às outras,
já que faz parte do mecanismo de atenção a suspensão de outros estímulos que possam interferir
203
no volume de atenção que está acontecendo. É com base nestes pressupostos que uma série de
profissionais da educação e da clínica que se afastam das abordagens positivistas e meramente
organicistas questionam o que se chama popularmente de falta de atenção, déficit de atenção,
ou a queixa escolar de que as crianças não conseguem prestar atenção. Vemos que a criança
está desatenta à aula, mas atenta a outras coisas que estão ao seu redor: ao jogo do celular
embaixo da mesa, ao que os outros colegas fazem, ao que estão desenhando, ao barulho da rua,
aos próprios pensamentos. Não raro, os professores alegam que a criança tem déficit de atenão
porque não consegue prestar atenção na aula e fica horas desenhando. Nesta concepção, o fato
de que há atenção em questão, mas voltada ao desenho, não é levado em consideração. Qulquer
atenção que não seja a atenção na aula é invalidada e não percebida pela escola, que suspeita
do déficit. É equivocado afirmar, portanto, que as crianças não têm atenção: elas não têm
atenção, em geral, àquilo que o adulto/professor gostaria que ela tivesse.
Para Vygotsky, quando maior é a força da atenção, maior é a força da distração.
Nesse sentido, é necessário não falar de luta contra a distração, mas de uma educação
simultânea de ambos (MÜLLER, 2018, p. 58) que possa transitar entre interesses diversos, já
que toda educação é uma educação da atenção e a aprendizagem sem atenção simplesmente não
existe.
“(...) único ponto de vista correto segundo o qual educar não significa
simplesmente seguir as inclinações naturais do organismo nem desenvolver
uma luta estéril contra essas inclinações. A linha da educação científica se
estende entre esses dois extremos e exige sua unificação em um todo único.
Nenhuma educação é exeqüível de outra forma senão através das inclinações
naturais da criança; em todas as suas aspirações ela parte do fato de que toma
como ponto de partida precisamente as inclinações(...). Outra aprendizagem
não existe” (VIGOTSKY, 2010, pp. 162-163)
essenciais, silenciando o que interessa às crianças. A escola deve, portanto, partir dos interesses
das crianças para ampliá-los, aprofundá-los e relacioná-los a outros temas que fazem parte dos
conteúdos escolares. Para tal, é essencial que a escola compreenda o caráter cíclico da atenção,
cujos turnos podem ser alongados ou encurtados pela interiorização da atenção, pela instrução
verbal (VYGOTSKY, 1926; LURIA, 1979) e pela proposta pedagógica da escola. Se “o ato de
atenção deve ser entendido como um ato que se autodestrói constantemente e torna a surgir,
que se extingue e entra em autocombustão a todo instante”(VYGOTSKY, 1926, p.160), o
professor deve estar atento à forma como o aluno reage ao que lhe é proposto e identificar que
tipos de práticas e temas fazem com que a atenção do aluno se sustente e a aprendizagem
aconteça.
O que constatamos, porém, nas entrevistas realizadas nesta pesquisa e nos relatórios
das crianças analisados no CCazinho é que, no discurso docente, a lógica se inverte: um
componente biológico seria responsável pela falta de atenção e impediria o aprendizado,
quando, na perspectiva histórico-cultural, são as condições familiares, culturais e pedagógicas
que cada vez menos possibilitam a construção do sistema de atenção com o qual a escola conta.
Além disso, “as atividades propostas produzem “sintomas” de desatenção porque não instigam
descobertas; talvez seja essa a razão do alheamento dos alunos” (SIGNOR & SANTANA, 2016,
p. 117). Os professores, desamparados e partindo de formação inicial e continuada que lhes
conferiu um olhar clínico, encaminham os alunos às avaliações clínicas como válvula de escape
em uma situação caótica, da qual ninguém – nem professores, nem família – parece ter controle.
O profissional da saúde surge, assim, como um alívio, como alguém que irá dizer o que se deve
fazer. As crianças, uma vez diagnosticadas, tendem a corresponder às características
sintomáticas que a clínica diz que ela apresenta e não conseguem mais mudar, se tornando ainda
mais difíceis aos olhos dos que lidam com ela.
Assim, vemos o excesso de diagnósticos de Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade (MOYSÉS E COLLARES, 2011; SIGNOR & SANTANA, 2016). Não é
objetivo desta pesquisa a análise minuciosa das pesquisas que se problematizam o diagnóstico
de TDAH, os testes padronizados que estabelecem o diagnóstico ou a discussão sobre se de fato
o transtorno existe ou não. O que queremos discutir é que a questão da atenção é mais uma
justificativa para o fracasso escolar e mais um problema para o qual o olhar clínico do professor
está voltado e por isso, dentre as diversas problematizações elaboradas em torno da questão,
cabe destacar, nesta pesquisa, uma das incoerências do diagnóstico do TADH: a corrente
organicista alega que é um distúrbio que se manifesta na idade escolar e na escola. Como vimos,
205
a escola se mostra um lugar com regras sem sentido, que impõe um silêncio que sufoca a
subjetividade das crianças e exige delas atenção prolongada a conteúdos que nem sempre ela
consegue assimilar.
Cabe questionar: como um distúrbio mental pode se manifestar apenas na escola?
Ademais, como pode se manifestar apenas com os elementos da cultura pelos quais a criança
não se interessa, conforme sugere um dos critérios diagnósticos do roteiro de perguntas para a
família e escola sobre a criança avaliada? Não raro, professores e familiares se queixam de que
as crianças conseguem passar horas atentas aos jogos de vídeo game, mas não conseguem
assistir as aulas com atenção, ou que ficam sentadas em silêncio enquanto assistem a um filme
ou jogam em seus celulares, mas não conseguem ter a mesma atitude por muito tempo em sala
de aula. Como poderia, então, um distúrbio que afetaria a atenção prejudica-la apenas em certos
contextos? Signor e Santana (2016) propõem refletir se o transtorno seria uma rejeição ao que
a escola tradicional propõe. Em suma, quando as dificuldades da criança envolvem a atenção,
a centralidade da linguagem no processo de constituição da atenção como função psicológica
superior deve ser levada em conta para que professores e profissionais da área clínica não
corram o risco de cair na armadilha fácil organicista de explicar questões sociais complexas
pela simples classificação ou rotulação de uma criança como portadora de patologia. O que
ocorre, na perspectiva da ND, é que esses chamados problemas de atenção são construídos
socialmente e podem ser modificados em processos interacionais, sem a prescrição desenfreada
do metilfenidato, como acontece atualmente.
Para finalizar este item, abordamos a relação que se faz na literatura médica entre
o TDAH e as dificuldades de leitura e escrita: de acordo com pesquisas reproduzidas inclusive
nos sites das associações brasileiras de Dislexia e TDAH, o déficit de atenção teria impacto
direto na capacidade da criança de construir memória grafêmica, o que comprometeria a
apropriação do sistema ortográfico e situaria os erros de ortografia das crianças no âmbito das
consequências da desatenção patológica, o que tornaria a Dislexia uma das comorbidades do
TDAH e vice-versa. Começam a surgir, então, pesquisas que ressaltam o papel do
metilfenidato60 na melhora dos problemas de leitura e escrita da criança diagnosticada e
medicada. Cito, aqui, parte das conclusões da pesquisa de Clay Brites, divulgada no site da
Associação Brasileira de Dislexia:
60
O metilfenidato é um estimulante do sistema nervoso central e é a base das drogas desenvolvidas para os supostos
problemas da atenção, conhecidas no Brasil como Ritalina e Concerta. Sua indicação e uso são muito criticados
mesmo no interior da medicina, já que o remédio apresenta efeitos colaterais graves e muito comuns, como a
dependência, o efeito zoombie-like, aceleração dos batimentos cardíacos, morte súbita, surtos de insônia,
sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e o risco de cometer até o suicídio
206
Sobre a formação inicial, as professoras criticam o fato de que o foco dos conteúdos
está sempre na identificação das dificuldades e transtornos e não no processo de aprendizagem
da criança, além de também se reduzir a pensar na elaboração das avaliações para crianças com
dificuldades e não nas atividades do dia a dia, na maneira pela qual a criança aprende. Para as
professoras, os cursos trazem muita teoria e poucos direcionamentos para prática pedagógica
No caso de algumas professoras que atuam há mais tempo, há a percepção de mais
diagnósticos e mais tipos de dificuldades de aprendizagem identificadas atualmente em relação
ao início da carreira. Algumas professoras mostraram uma visão crítica sobre esse processo,
mostrando reconhecer a banalização dos diagnósticos, enquanto outras apontam o progresso da
ciência e a descoberta de novas doenças e instrumentos diagnósticos como responsáveis pelo
aumento dos diagnósticos.
É relevante também, para a reflexão proposta nesta Tese, o fato de que o debate
sobre patologização/medicalização e excesso de diagnósticos é desconhecido pelas professor
entrevistas, exceto por uma delas, que, por não ter conhecimentos sólidos sobre o tema,
considera que o que ela ouviu falar sobre isso pode tanto fazer sentido (já que ela identifica
excesso de alunos diagnosticados em relação ao início de sua carreira) quanto também pode ser
teoria da conspiração. Vemos, assim, a distância entre o conhecimento produzido na
universidade e o conhecimento do professor em exercício da profissão. O debate sobre a
patologização já acontece no âmbito da Linguística (protagonizado por Coudry e Cagliari), da
própria medicina (protagonizado por Moysés) e da Pedagogia (protagonizado por Patto e
Collares), mas, para as professoras entrevistas, não chegou ou ainda é visto como algo que, por
desafiar a medicina, parece teoria da conspiração.
A ausência dos estudos de temas da área da Linguística ao longo da formação dos
professores entrevistados é, sem dúvida, uma das questões centrais da argumentação desta
pesquisa. Nos capítulos anteriores e sobretudo na análise do caso de EF, vimos que, do ponto
de vista da Linguística, o que é tomado como sintoma pela literatura médica são hipóteses
comuns e esperadas no processo de aprendizagem e envolvem, em geral, a representação da
sonoridade, a representação da sílaba complexa e algumas questões de convenção ortográfica.
Vimos, ainda, que esse tipo de análise, de base linguística, e a oportunidade de um
acompanhamento que privilegie as dificuldades da criança se mostram essenciais para
desconstruir o olhar clínico que é estruturante da formação de professores, conforme
apresentado nos capítulos iniciais dessa pesquisa. Nos parece estranho e até mesmo inaceitável
que, no percurso de um estudante que se tornará professor e alfabetizador, questões básicas de
209
linguística fiquem de fora e não embasem a prática pedagógica. O que estudam, portanto, os
professores61 ao longo da formação inicial quando se trata de ensino e aprendizagem de leitura
e escrita?
A primeira questão para a qual quero chamar a atenção é que a maioria dos
professores nem ao menos sabe o que é do domínio da linguística e acabam por confundir com
letramento. As reflexões sobre o letramento começaram a despontar nos cursos de pedagogia
em meados da década de 80, quando, pela primeira vez, Mary Kato cita o termo letramento no
livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística (1986). Uma primeira distinção
entre alfabetização e letramento foi proposta em 1988, por Leda Verdiani Tfoni, no livro
Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. A reflexão se ampliou em 1995, com o livro Os
significados do letramento, de Angela Kleiman e, posteriormente, em 1998, Magda Soares
publicou aquele que seria o livro referência em letramento no Brasil: Letramento: um tema em
três gêneros.
Não é objetivo desta pesquisa uma longa retomada das diferentes definições de
letramento e as divergências ou convergências que apresentam, até por que, nos capítulos
iniciais, apresentei a concepção de letramento adotada pela ND e a maneira pela qual o
letramento está diretamente relacionado ao aprendizado da leitura e da escrita. O que queremos
ressaltar é que resgatar e entender quais são as práticas de letramento da criança dentro e fora
da escola, apesar de crucial, por si só não basta para uma argumentação contrária ao processo
de patologização das crianças com dificuldades escolares, especialmente quando se trata da
discussão da escrita das crianças, dos dados propriamente ditos. Como vimos no capítulo
anterior, a análise proposta pela ND envolve um olhar técnico para o a escrita da criança, um
olhar de detetive, como propõe nossa metodologia, um resgate heurístico de levantamento das
hipóteses de representação gráfica que as crianças constroem. Assim, a descoberta das práticas
de letramento da criança é constitutiva da investigação da ND, mas não se reduz a ela, porque
conseguimos ver mais, já que o referencial nos permite ver, no processo, onde a criança está
barrada (COUDRY, 2013a).Esse olhar só vê o que vê porque dispõe de um referencial teórico
composto por autores diversos e porque resgata conceitos básicos de praticamente todas as áreas
da linguística: sociolinguística, fonética, fonologia, morfologia, sintaxe, etc. O que vemos,
portanto, é que o olhar do pedagogo para a escrita da criança muitas vezes não dispõe de
61
Para esta Tese, não foi feita a opção de analisar os currículos dos cursos de pedagogia das universidades. Apesar
do fato de que parte dos currículos quase sempre são determinadas pela instituição e parte pelo professor que
assume a disciplina, precisamos considerar sua fluidez e impossibilidade de rastreamento preciso de temas dada a
troca constante de professores e os diferentes enfoques dados aos textos propostos.
210
referencial teórico que o permita levantar hipóteses sobre a representação gráfica que a criança
constrói e compreender os fenômenos que são comuns à todas as crianças em processo de
alfabetização, em maior ou menor intensidade e frequência, sem relacioná-los com as listas de
sintomas de patologias relacionadas ao aprendizado. O olhar da pedagogia, desprovido de sólida
base linguística, não alcança a reflexão que o olhar da Linguística permite alcançar.
Chama a atenção, também, o fato de que as professoras entrevistadas que não
relacionaram o termo Linguística à alfabetização, mas sim ao estudo da morfologia como parte
do currículo do Ensino Fundamental I, no qual os alunos aprendem as classes de palavras.
Sabemos, entretanto, que não faltam estudos no âmbito da Linguística sobre a escrita inicial
(ABAURRE, 1997, COUDRY, 2009, 2010, CAGLIARI, 1989, 2009, SOARES, 2016), mas
esta bibliografia parece ficar restrita aos cursos de Letras ou Linguística, já que são
desconhecidos pelas professoras atuantes. Qual é, portanto, o referencial teórico predominante
na formação de professores sobre o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita? Inseri,
praticamente em todas as entrevistas, a questão: “retomando sua formação inicial, quando você
pensa em alfabetização, leitura e escrita, qual autor é referência para você”? e a resposta dada
por muitos dos entrevistados foi Emília Ferreiro. Desta maneira, dedicarei este item a
apresentar brevemente a perspectiva de Ferreiro e Teberosky (1986) a partir do livro
Psicogênese da língua escrita, o mais lido e o marco na produção das autoras.
Primeiramente, quero ressaltar aqui que Ferreiro e Teberosky trazem uma proposta
inovadora com relação à alfabetização no contexto teórico sobre o tema nas décadas de 70 e 80,
a partir do estabelecimento de níveis no processo de progressão da compreensão da
representação do sistema alfabético. Assim como Luria, as autoras se voltam para o período
que corresponde à pré-história da escrita infantil, mas, apesar de analisarem crianças mais ou
menos da mesma faixa etária (3 a 5 anos nos estudos de Luria e 4 a 6 anos nos estudos de
Ferreiro e Teberosky), o objeto de pesquisa dos autores é diferente, já que Luria se debruça
sobre o rabisco/desenho da criança como apoio para a memória, ou seja, a escrita como
instrumento e Ferreiro e Teberosky analisam quais processos cognitivos estão implicados na
maneira pela qual a criança se aproxima do princípio de representação alfabética.
Antes de passar a perspectiva das autoras, quero fazer algumas considerações sobre
a difusão e a recepção de sua obra no Brasil. Por romper com algumas teorias vigentes nos anos
70 e 80, como veremos adiante, a obra foi amplamente difundida e acabou por ser consolidada
no currículo sobre alfabetização como novidade e tendência. O que ocorreu, entretanto, é que a
perspectiva passou a ser chamada, de modo geral, de construtivista ou ficou conhecida por
211
Ainda que Ferreiro e Teberosky tenham dedicado a maior parte do livro Psicogênse
da língua escrita à leitura (quatro dos cinco capítulos), foi o processo de aprendizado da escrita
que ganhou destaque na obra das autoras e que as tornaram referência desses estudos no Brasil.
Para Ferreiro, é possível que o aprendizado da escrita seja alvo de mais estudos porque, para
ela, conceituar a leitura é mais complexo que conceituar a escrita, já que a escrita tem uma face
observável, classificável, com marcas permanentes. A leitura, por sua vez, não deixa registro,
não é palpável. Para a autora, ainda, a escrita é privilegiada em sua perspectiva por que é um
ato completo, repleto de oportunidades de conhecer e enfrentar conflitos, um ato que “supõe a
leitura, mas não o inverso; como ato resultativo produz um objeto específico que transcende
limites temporais do ato e, por esta razão, permite confrontos que a leitura não permite”
(FERREIRO, 1992, p. 75). Em suma, é possível, como fez a autora, estabelecer níveis de
evolução no aprendizado da escrita, mas não no aprendizado da leitura. Soares aponta que a
212
consequência disso é que grande parte da pesquisa brasileira a partir dos anos 80 toma a
Psicogênese da língua escrita como referencial e acaba por se concentrar mais na escrita que
na leitura.
As investigações sobre a leitura feitas por Ferreiro e Teberosky estão assentadas no
método clínico piagetiano, orientadas por uma perspectiva evolutiva. As autoras ressaltam que
antes de aprender a ler62 as crianças já estabelecem uma relação com os textos, de modo que se
atentam a quantidade e variedade de letras que caracterizam as palavras, diferenciam
desenhos/rabiscos de letras e textos, diferenciam letras de números, de sinais de pontuação,
percebem a orientação espacial necessária para a leitura, reconhecem diferentemente portadores
de texto, etc. É a partir desses aspectos que as autoras identificam níveis de desenvolvimento
do aprendizado da leitura e da escrita a partir das diferentes relações da criança com a leitura.
Assim, diferentemente da sistematização proposta para a escrita, não há sistematização para
níveis de leitura. Passo, adiante, a uma breve caracterização dos níveis de desenvolvimento da
escrita propostos pelas autoras:
▪ Nível 1: neste nível, as crianças diferenciam desenho de escrita, usam grafismos
na tentativa de imitar as formas básicas da escrita, como o domínio de linhas onduladas quando
a criança convive com a escrita cursiva ou linhas curvas e retas se a criança convive com a
escrita de imprensa. A autora caracteriza esse nível também como o momento em que a criança
reconhece a arbitrariedade e a linearidade do sistema de escrita.
▪ Nível 2: neste nível a criança usa letras sem correspondência com os valores
sonoros por si só nem com os valores sonoros da letra na palavra, mas já sabe respeitar as
hipóteses que faz sobre o que as autoras chamam de quantidade mínima de letras para se ter
uma palavras (e que seria três), bem como reconhece que uma palavra é composta por letras
diferentes. Este nível passou a ser chamado de pré-silábico63 pelos estudiosos da alfabetização
que tomam Ferreiro e Teberosky como referência.
62
Não podemos esquecer, aqui as considerações feitas por Cagliari e já apresentadas nessa tese: é preciso deixar
de generalizar a experiência das crianças antes de entrar na escola tendo em vista o contexto de desigualdade social
que caracteriza o Brasil e em que muitos não tem acesso à cultura letrada. Ferreiro e Teberosky tratam, em seu
livro, de uma criança ideal, que vive em um contexto letrado, com pais alfabetizados, que leem para ela, que
convive com livros, textos, que tem acesso às palavras, que tem a curiosidade despertada para o mundo das letras.
No CCazinho, já chegamos a avaliar e a acompanhar crianças cujos pais, analfabetos, não tinham nem ao menos
papel e caneta em casa. Entende-se, portanto, que nem todas as crianças têm as mesmas experiências antes do
aprendizado formal da leitura e da escrita e que, como já afirmamos com Faraco (2012) e Cagliari (1989) a prática
escolar é construída a partir da expectativa de que essas experiências com a cultura letrada já tenham acontecido e
que sejam recorrentes.
63
É importante ressaltar que o termo pré-silábico não foi utilizado nem autorizado pelas autoras: como não havia
um nome para este nível como havia para os outros, os leitores e estudiosos da obra passaram a utilizá-lo,
aparentemente, apenas para não o chamar apenas de nível 2. Em outras obras, Ferreiro faz uma crítica do uso do
termo dizendo que ele deu ao nível um caráter negativo e que isso nunca foi sua intenção. Para alguns autores,
213
▪ Nível 3: Neste nível, a criança usa uma letra para expressar cada uma das sílabas
da palavra – de maneira aleatória, em um primeiro momento, sem preocupação com o valor
sonoro e, em um segundo momento, representando um dos fonemas da sílaba. Este nível é
chamado de silábico.
▪ Nível 4: neste nível, há a passagem da hipótese silábica para a alfabética. A
criança começa a analisar a sílaba em unidades menores e começam a combiná-las para formar
palavras. Neste nível, a criança pode ainda alternar de modo a representar sílabas com uma letra
ou sílabas que já representam os dois ou mais fonemas. Esse nível é chamado de silábico-
alfabético.
▪ Nível 5: Este nível corresponde ao final da evolução do desenvolvimento da
escrita, já que a criança já compreendeu o que as autoras chamam de barreira do código porque
entendeu que cada um dos caracteres da escrita corresponde a valores sonoros que são menores
que a sílaba, podendo fazer uma análise dos fonemas que vai escrever. Para as autoras, a partir
desse momento, as crianças ainda terão dificuldade com a ortografia e não com o sistema da
escrita, porque já compreenderam o sistema alfabético.
Partindo dos níveis do desenvolvimento da escrita, quero ressaltar algumas
concepções que embasam o entendimento das autoras sobre aprender a escrever. Nesta
perspectiva, os níveis foram identificados a partir do ponto de vista da criança, ou seja, das
hipóteses e generalizações que ela constrói a partir de sua convivência com os textos que
circulam em seu cotidiano e com a prática de brincar de escrever. Assim, o ponto de partida
para a aprendizagem é a própria criança e sua capacidade de assimilar, categorizar, generalizar
e não o método de ensino, a língua, a relação entre professores e alunos, as condições escolares
nem a problematização do que de fato a criança faz antes de aprender a ler e a escrever, ainda
que seja central para o aprendizado na argumentação de Ferreiro e Teberosky. Aprender o
princípio alfabético é, para as autoras, resultado da exploração dos materiais portadores de
escrita com os quais convive, o que, de certa forma, podemos entender como decorrência do
letramento, ainda que esse termo não faça parte das reflexões das autoras. Assim, o aprendizado
é tratado como algo natural – o que faz sentido, tendo em vista que as autoras partem da
concepção piagetiana da aprendizagem.
As reflexões de Ferreiro e Teberosky na obra Psicogênese da língua escrita foram
frequentemente discutidos na universidade e divulgados em pesquisas acadêmicas na década
dentre entres Cagliari (1998) o termo pré-silábico não diz muito da relação da criança com a escrita e apenas
reforça a importância do próximo nível.
214
64
Na região de Campinas, diversas escolas de Ensino Fundamental I promovem uma espécie de vestibulinho para
avaliar crianças cujos pais desejam fazer matrículas na instituição em questão. As provas classificam as crianças
– mesmo aquelas que acabaram de sair da educação infantil – a partir da classificação de Ferreiro e Teberosky - e
servem como argumento para a escola efetivar a matrícula (no caso de bom desempenho) ou rejeitá-la.
215
ditadas? Como é sua escrita quando ela escreve em silêncio e quando ela pode falar para
escrever?
Além de serem utilizados por si só para categorizar as crianças em relação ao
aprendizado da escrita, os níveis de Ferreiro e Teberosky parecem não dar conta dessas últimas
questões, já que elas ultrapassam a representação da sílaba e têm outro tipo de origem, como as
apresentadas nos capítulos anteriores com o caso EF. O que quero destacar, em suma, é que,
se por um lado, a obra de Ferreiro e Teberosky não incorporam algumas problematizações sobre
os efeitos das desigualdades sociais e culturais na fase anterior a entrada da criança na escola,
por outro, essas mesma teoria, desprovida de contextualização social, tem sido utilizada pela
escola e pela clínica como parâmetro e expectativas do que seria um chamado tempo normal
para a alfabetização. Assim, o uso que se faz da teoria parece menos atrelado a sua proposta
inicial, que era compreender como a criança, nas palavras da autora, se apropria da escrita, e
mais voltado à verificação das expectativas de aprendizagem, à serviço de um olhar clínico que
permanece e que encontra meios de se atualizar com e a cada nova proposta de análise ou de
intervenção na aprendizagem, como foi feito com a teorização de Ferreiro e Teberosky.
Esse processo de nivelamento dos alunos e rotulação daqueles que estão em um
nível considerado inadequado para a sua idade – e sua possível patologização – desconsidera
as idas e vindas do aprendizado, os picos e platôs e, sobretudo, a vivência dos alunos como
condições para a consolidação de novos conhecimentos. Esse procedimento de nivelação revela
o raciocínio de enquadramento disciplinar explicitado por Foucault que denuncia o apagamento
das subjetividades para dar lugar à busca pela padronização, pelo mesmo ritmo, pelo mesmo
desempenho, comportamento e homogeneidade.
Para finalizar este item, trago alguns apontamentos feitos por Andrade sobre o
impacto dos estudos do letramento na formação inicial e continuada de professores. De acordo
com as pesquisas realizadas pela autora, até o início dos anos 2000, os cursos sobre letramento,
assim como a perspectiva de Ferreiro e Teberosky, também deixaram a questão dos métodos
de alfabetização de lado.
Por fim, é relevante trazer para esta pesquisa uma análise feita por Righi-Gomes
sobre algumas das consequências do que se chamou de construtivismo no Brasil a partir da obra
de Emilia Ferreiro e Teberosky e Ferreiro (1996) e, sobretudo, sobre os efeitos de sentido do
que se considerou sujeito ativo e passivo nesta teorização. Na perspectiva ferrereana, a crítica
das metodologias tradicionais gira em torno do fato de que o aluno assume uma relação passiva
porque está implicado e uma relação assimétrica com o professor (que deve reproduzir
conhecimentos para que o aluno armazene). A partir dessa crítica, surgem metodologias nas
quais considera-se que a criança deve ter um papel ativo, a partir do qual constrói
conhecimentos de acordo com a faixa etária.
Para Righi-Gomes (2014) esse conceito de caráter ativo usado por Ferrero gerou
muitas incompreensões, como “a necessidade de liberdade no processo de aprendizagem, a
possibilidade de auto-organização do aluno, a não intervenção do professor; e elas acabaram
por desconstruir a escola” (RIGHI-GOMES, 2014, p. 32) e afetaram o que se entendia como a
função do professor. Nesse contexto, é como se o professor passasse a ser apenas um facilitador,
já que o protagonista (outro termo que faz parte desta perspectiva e adotado pelas políticas
públicas) da aprendizagem era só o aluno. As consequências disso, segundo Righi-Gomes, são
que:
“A partir dessa interpretação, surgiu nos PCNs de 1997 o lema construtivista
aprender a aprender (Duarte, 2004; Saviani, 1997). Tal lema era
fundamentado na crença de que o professor não poderia e nem deveria intervir
nas dificuldades, sob o risco de reprimir o processo ou humilhar o aluno,
baseando-se na visão de que o próprio aluno se auto-organizaria e construiria
seu conhecimento utilizando material didático ou paradidático, com os quais
eles, também, poderiam corrigir seus “erros”. O único papel possível para o
professor seria o de facilitador; termo muito aceito e valentão, o facilitador de
219
Esta é mais uma das muitas incompreensões da obra de Ferreiro que culminaram
na crítica não só da autora, mas das políticas públicas que se nela se fundamentaram. No último
capítulo, veremos como a imposição do método fônica via decreto presidencial é não apenas
uma resposta a tais incompreensões, mas também uma maneira de marcar uma posição
ideológica contra o ensino de leitura e de escrita assentado nas teorias do letramento ou nas
concepções de Paulo Freire.
Tendo em vista que são esses cursos que aproximam o professor de um discurso
clínico e, como veremos adiante, majoritariamente patologizante, destaco a importância de
resgatar aqui, ainda que brevemente, o papel que os cursos de formação continuada têm na
formação do professor de educação básica.
Como vimos nos primeiros capítulos desta pesquisa, nas décadas de 1920 e 1930 o
movimento da Escola Nova trouxe para as escolas normais uma série de conteúdos que
atribuíam um caráter mais científico ao curso e à prática das professoras e gerou uma série de
reformas educacionais que, dentre outros objetivos, propunham que a formação do professor
tivesse como foco a experimentação pedagógica alicerçada em bases científicas de diversas
esferas. Neste contexto, observa-se um movimento constante de renovação do programa
pedagógico e curricular das escolas normais até que se criassem os cursos de nível superior de
Pedagogia e as Licenciaturas.
Entre 1946 e 1971, ainda permanecia o modelo de escola normal que era dividido
entre os ciclos ginasial e colegial, de modo que o primeiro formava regentes e o segundo
formava professores. Entretanto, com o golpe militar de 1964 e a mudança nas legislações
ocorridas em 1968 e 1971, a organização da educação mudou: o ensino básico foi dividido entre
primário e médio e as escolas normais desapareceram com a instituição da habilitação
específica de segundo grau para atuação no magistério. Para Saviani (2005), tantas mudanças
em tão pouco tempo fizeram com que a formação dos professores ficasse reduzida a uma
habilitação dispersa em meio a tantas outras e que ninguém tivesse clareza de qual seria a
formação adequada. Gerou-se, assim, um grande número de professores atuantes com formação
muito diversificada. Ademais, segundo o autor, o foco das reformas educacionais se manteve
apenas nas alterações da formação inicial e faltaram mecanismos que assegurassem o que se
chamou de reciclagem65 periódica os professores.
Diante deste contexto, nos anos 60 e 70, algumas medidas foram tomadas pelo
governo para oferecer formação continuada aos professores, o que contribuiu para a
consolidação do discurso da importância de que o professor estude continuadamente e se
atualize em termos de tendências sociais, culturais e pedagógicas.
65
É comum que se problematize os termos utilizados para os cursos de formação continuada: reciclagem
capacitação, atualização, aperfeiçoamento, e treinamento foram as mais utilizados na década de 90 e, segundo
algumas pesquisas (Hypolitto, 2000), responsáveis por certa resistência de certos professores a realiza-los. Os
termos evocam, de certa forma, sentidos que diminuem a prática atual dos professores, como se fossem incapazes,
desatualizados, não-treinados e, com o termo reciclagem, a prática era associada ao lixo, ao que se pode jogar fora
ou reaproveitar. Assim, diante dessas críticas, passou-se a utilizar o temo formação continuada.
221
com Gatti (2008), o período que se seguiu à publicação da LDB foi de muitos investimentos
em cursos de formação continuada e, consequentemente, um aumento dos cursos oferecidos
não apenas pela rede pública66, mas também pelas inciativas privadas.
“No que diz respeito à educação profissional de modo geral, a lei coloca a
educação continuada como uma das estratégias para a formação para o
trabalho (art. 40). Com os debates realizados em torno das novas disposições
dessa lei, com os esforços dirigidos para sua implementação nos três níveis da
administração da educação no país, e com a ampliação das responsabilidades
dos municípios em relação à educação escolar, houve, por iniciativas de
gestões estaduais ou municipais, por pressões das redes e sindicatos, pelas
propostas de instituições ou pelo tipo de recursos alocados ao setor
educacional e sua regulamentação – especialmente, à época, o Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério (FUNDEF) –, um incremento forte em processos chamados de
educação continuada. A lei que instituiu o FUNDEF deu, pela primeira vez na
história educacional do país, respaldo legal para o financiamento sistemático
de cursos de formação de professores em serviço, prevendo recursos
financeiros para a habilitação de professores não titulados que exerçam
funções nas redes públicas.” (GATTI, 2008, p.64)
Gatti ressalta que a aprovação desta lei provocou uma escalada enorme de cursos
de formação continuada, dentre eles, não apenas os cursos livres, mas também os cursos de
especialização – como os de psicopedagogia, como discutiremos mais adiante. Segundo Gatti,
a questão principal a ser explicitada quanto aos cursos de especialização dos professores é que,
em sua maioria, eles não possibilitam que o professor tenha outra área de atuação na escola
(com exceção dos cursos de gestão) e apenas somam conhecimento à formação ou pontuação
no ranking de professores nas redes públicas.
Pode-se citar, ainda, como resultado da LDBEN, a instituição do Sistema Nacional
de Certificação e Formação Continuada de Professores da Educação Básica em 2003.
O artigo 1º prevê “programas de incentivo e apoio à formação continuada de
professores, implementados em regime de colaboração com os entes federados”, e a criação de
uma rede nacional de institutos de pesquisa sobre a educação que deve buscar “desenvolver
tecnologia educacional e ampliar a oferta de cursos e outros meios de formação de professores”.
O documento do MEC que acompanhava esta portaria era intitulado Sistema
nacional de formação continuada e certificação de professores – toda criança aprendendo
66
Citamos, aqui, um bom exemplo de curso de formação continuada oferecido como extensão pela UNICAMP e
que era voltado para os professores de Educação Básica da rede pública e da rede privada. Trata-se do Centro de
Formação Continuada de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem que, com apoio financeiro do
Ministério da Educação, disponibilizou uma série de cursos sobre a temática Linguagem e Letramento, abordando
temas como o trabalho do cérebro e da linguagem, o letramento e a variação linguística na sala de aula, a escrita
criativa e outras teorizações que, muitas vezes, ficam restritas ao interior da universidade.
223
(Brasil, 2003) e continha planos de ação e estratégias para a valorização dos professores e para
o oferecimento constante de formação continuada. Nos anos que se seguiram esta portaria foi
transferida para a Secretaria da Educação a Distância com o objetivo de articular todas as
iniciativas para a formação continuada em andamento no país e centralizá-las em apenas uma
Secretaria. Entretanto, de acordo com Gatti, observou-se uma mudança na oferta dos cursos,
que passou a ser mais a distância que presencial. Para o autor, isso pode ter acontecido por
vários motivos:
Não encontrei, no período de pesquisa bibliográfica para esta Tese, nenhum tipo de
levantamento sobre os cursos de formação continuada mais buscados pelos professores na
iniciativa privada. Entretanto, a análise que fazemos, tanto pelos dados recolhidos com relação
a especialização dos professores entrevistados quanto pelo tipo de tendência que podemos
225
verificar nos tipos de publicação no mercado editorial, é que a adesão aos cursos de formação
continuada parece se caracterizar por ondas/tendências.
Já nos anos 90, como vimos no item anterior, a tendência dos cursos de formação
continuada se volta para os estudos da obra de Ferreiro e Teberosky sobre a aquisição da leitura
e da escrita e, por ser chamada de construtivista, os cursos desta temática parecem ter ficado
em evidência. Entretanto, os cursos de psicopedagogia se mantém no mercado e parecem se
consolidar junto com o curso de Educação Especial, que surgiram principalmente após 2015,
quando foi sancionada a Lei da inclusão, que, como veremos, provocou diversos
desdobramentos e mudanças que ainda estão em curso nos currículos dos cursos de pedagogia
e das licenciaturas diversas. A lei da inclusão se relaciona com esta pesquisa de um modo geral,
mas convém destacar aqui alguns trechos sobre a formação continuada de professores.
Uma das implicações desta lei na iniciativa privada e na pública foi a Resolução nº
2 do Conselho Nacional de Educação, que estabeleceu novas diretrizes para a formação inicial
e continuada de professores. No seu artigo 13, parágrafo 2º, o documento diz que “Os cursos
de formação [inicial] deverão garantir nos currículos [...] conteúdos relacionados [à] Língua
Brasileira de Sinais (Libras), educação especial [...]” (BRASIL, 2015).
226
para a elaboração dos cursos de formação continuada que capacitarão o professor para o
diagnóstico certamente serão a literatura médica, representada pelo DSM V (2013) e as
associações brasileiras de dislexia (ABD) e de TDAH (ABDA). A ABD, pautada também na
literatura médica, conforme vimos, toma a leitura e a escrita como decodificação e codificação
de letras, exclui as questões sociais, afetivas, pedagógicas e políticas que envolvem a
alfabetização e, estrategicamente, assume o papel de dispositivo que encobre tais questões,
deslocando para o corpo da criança a causa de seu fracasso escolar. Conforme vimos nas
entrevistas com os professores, não há, nos cursos de formação, a discussão de questões
linguísticas (fonológicas, morfológicas, sintáticas, dentre outras) que podem ajudá-los a
conhecer e a analisar as hipóteses que as crianças usam na escrita. Assim, a troca de letras, tão
enfatizada na literatura médica, se torna sintoma e o corpo da criança a causa do fracasso
escolar.
Se, diante da ausência deste saber, o discurso médico presente na mídia e na
instituição escolar como mero apoio para entender as dificuldades de leitura e de escrita das
crianças já causava nos professores a sensação de negligência caso não encaminhassem seus
alunos a uma avaliação clínica, surge um questionamento: o que poderá acontecer uma vez que
a literatura médica se tornará embasamento oficial e institucional na formação do professor,
conforme determina a lei supracitada? Não é preciso ser especialista em currículo para saber a
resposta: diante do determinismo médico, questões políticas e sociais que têm efeito no
processo de alfabetização perdem a força e abrem espaço para um mercado67 que se impõe e
que busca se manter; nesta lógica, o professor não tem mais condições de, por si só, garantir o
aprendizado da criança que é apresentada como portadora de uma patologia, já que só poderá
aprender com a ajuda de um profissional da área clínica e com materiais específicos.
Se, conforme apontam os professores, os cursos de formação inicial e continuada
apontam a necessidade de observação das dificuldades e encaminhamento para avaliação
clínica, após este projeto de lei, a literatura médica se consolidará como norteadora desses
cursos e, consequentemente, do olhar do professor para a aprendizagem da criança: o
encaminhamento se tornará obrigação institucional do professor e direito da criança, sob o custo
67
Moysés e Collares (2010) abordam a forma pela qual a abertura de mercado que emerge a partir da medicalização
de dificuldades normais de leitura e de escrita ou do comportamento vai além da venda de medicamentos que
favorece a indústria farmacêutica: o mercado se abre quando há investimentos para pesquisas acadêmicas na área
(muitas financiadas pela indústria farmacêutica ou associações de dislexia e TDAH), para o lançamento de livros
sobre diagnóstico e intervenção, materiais para fonoaudiólogos e psicopedagogos, cursos de formação e formação
continuada e, sobretudo, a necessidade de acompanhamento a longo prazo por um profissional da área clínica que
é sempre apontado como única saída para que a criança aprenda.
229
68
A autora ressalta que: “ONGs que “defendem” pessoas com dislexia e TDAH são parceiras da indústria
farmacêutica, o que compromete sua idoneidade por um claro conflito de interesses” (Viégas, 2014, p.134)
230
O autor relaciona esses cursos aos dados disponibilizados pela ABD sobre as
avaliações feitas no ano de 2013. Dentre as 264 crianças encaminhadas, 52% foram
diagnosticadas com dislexia. Dentre as outra 44%, apenas 4% não foram diagnosticadas com
algum outro transtorno relacionado à aprendizagem. Os transtornos identificados nas outras 126
crianças foram: Distúrbio da aprendizagem (33%), Transtorno do Déficit de Atenção (3%),
Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (9%), Transtorno Psiquiátrico (4%),
Discalculia (8%), Deficiência Auditiva (2%), Deficiência mental (2%), Problemas de memória
(1%) e outros problemas neurológicos (1%). Dentre os 4% não diagnosticados, 8% foram
consideradas crianças de risco e encaminhadas à tratamentos profiláticos. Para Geraldi, o
aumento do número de diagnósticos, seja de dislexia, sejam esses outros que explicam as
dificuldades dos alunos está relacionado não só com a organização escolar, baseada no aluno
padrão, na crença de que todos devem aprender da mesma maneira e ao mesmo tempo, mas
também dos cursos que ensinam o professor a identificar patologia onde não há e não a repensar
a própria prática:
Os dados que coletamos nas entrevistas desta pesquisa nos mostram, entretanto, que
os professores se mostram de certa forma críticos a estes curso, já que foi apontado que, em
geral, esses cursos não ajudam muito porque tratam do diagnóstico/identificação e
encaminhamento, e que, depois, o professor fica desamparado pela equipe clínica que
acompanha a criança. Há pouca ou nenhuma orientação sobre a prática pedagógica para esses
alunos (que, muitas vezes, acaba esquecido em meio a uma turma de em média 35 alunos),
sobre a forma como aprendem e sobre o instrumento de avaliação mais adequado. As instruções
envolvem, geralmente, provas com conteúdo reduzido, questões mais simples, o uso de mais
imagens e menos textos e o fato de que o professor deve relevar alguns erros, dado que os
alunos com dislexia ou com outros transtornos da aprendizagem não necessariamente chegarão
ao desempenho que os outros alunos terão. Para Coudry, esse processo faz da criança o que
popularmente se chama de café com leite (COUDRY, 2010) nas brincadeiras populares: ela
235
tudo pode, tudo dela é perdoado, compreensível, seu fracasso é facilmente explicado pela
patologia e dela passa-se a exigir pouco ou quase nada.
O foco dos profissionais não é, portanto, o cotidiano escolar, a prática pedagógica,
o que o professor deve, de fato, fazer com o aluno para que ele aprenda, mas sim os diagnósticos
e as avaliações escolares, de forma que sejam elaboradas para garantir a aprovação do aluno.
As entrevistas mostraram também que, para as professoras avaliadas, apesar das críticas, os
cursos se mostram importantes para lidar com os alunos em dificuldades. A hipótese da ND é
a de que o diagnóstico, uma vez estabelecido, chega como um alívio para a família e a escola e
exime todos pela responsabilidade de fazer a criança aprender, já que, diante dos fracassos, a
patologia estará sempre presente como um recurso que justifica o fracasso que é da escola, da
família, das políticas públicas e privadas de ensino e não da criança.
Não negamos, aqui, que a relação entre os profissionais de saúde e a escola não
pode ser positiva. Do contrário, sugerimos o trabalho de Signor e Santana (2016) que, além de
elencarem uma série de maneiras pelas quais o fonoaudiólogo pode contribuir para a reflexão
pedagógica, retomam também que tipo de concepção de linguagem, ensino e aprendizado
devem embasar tanto a formação dos professores quanto a dos profissionais da área clínica:
Para que esta relação entre escola e profissionais da área clínica seja possível, é
preciso repensar a formação dos cursos de fonoaudiologia, para que ela não seja
predominantemente na saúde, mas também na Linguística. Pode-se mencionar, quanto a isso,
os cursos de fonoaudiologia da UNICAMP e da PUC de São Paulo como pioneiros na
empreitada de trazer uma formação mais voltada para as humanidades e para a linguagem para
os estudantes de fonoaudiologia. Na UNICAMP, por exemplo, oito das disciplinas do curso são
oferecidas pelo Instituto de Estudos da Linguagem, nas quais os alunos podem repensar as
236
orientações tradicionais para a clínica de afasia e para as intervenções nas dificuldades de leitura
e escrita, especialmente nas disciplinas Neurolinguística Discursiva e Análise do Discurso. O
modelo de curso oferecido é um exemplo a ser seguido por outras instituições, já que traz para
a formação do fonoaudiólogo questionamentos que permitem que o profissional questione a
corrente hegemônica de tratamento, revolucione a prática clínica e exerça, sobretudo, a clínica
de responsabilidade (COUDRY, 2018). Para Coudry, é papel da Neurolinguística Discursiva
denunciar os dispositivos de patologização, como os cursos e palestras de profissionais da área
clínica para professores abordados nesse item. Partindo de Forbes (2012), a autora ressalta que
a compreensão das características da contemporaneidade do saber técnico resultante da
articulação dos autores que integram a teorização da ND implicam na responsabilidade do
pesquisador em analisar, questionar, criticar e denunciar as práticas patologizantes que apagam
o sujeito da avaliação e da intervenção na linguagem e reivindicar a centralidade da linguagem
e da subjetividade nas relações estabelecidas entre professor e aluno, entre fonoaudiólogo e
paciente, entre todos os profissionais envolvidos na educação e as crianças que nem sempre
correspondem ao que se espera dela.
Em suma, os cursos de formação continuada oferecidos pelas escolas, sobretudo os
que estão formulados com base na literatura médica ou que envolvem a Associação Brasileira
de Dislexia e outros profissionais da área clínica se mostram, ainda, predominantemente
voltados para o diagnóstico e não para a prática docente, conforme apontaram as professoras
entrevistadas.
publicações sobre o tema. Nas redes sociais, organizações clínicas também aproveitam do
sucesso da procura de cursos sobre neuroeducação e fazem o gerenciamento de páginas ou sites
independentes em que divulgam seus cursos, linhas teóricas, oferecem acompanhamentos
clínicos para crianças e orientações a pais e professores.
No site do portal de vendas Amazon, é possível fazer uma busca dos livros mais
vendidos por tema. No tema Neuroeducação, no primeiro trimestre de 2019, os cinco livros
mais vendidos eram, respectivamente, do primeiro para o último: Neurologia e aprendizagem
– abordagem multidisciplinar (organizado por Rotta, Bridi Filho e Bridi), Neuroeducação – a
relação entre saúde e educação (organizado por Heber maia), Neurociência e transtornos de
aprendizagem, (livro esgotado, escrito por Marta Pires Relvas), Neurociência, Neuroeducação
e Neuropsicopedagogia (escrito por Salete Anderle e Roberto Rodrigues) e Neurociência e
aprendizagem: processos básicos e transtornos (escrito por Bruna Brandão Velásquez e Pedro
Ribeiro). Os títulos das obras e o fato de que dentre estes cinco, dois abordam os chamados
transtornos, nos dão indícios de que esta nova tendência que relaciona neurociências e educação
parte da literatura médica, que acaba se impondo aos saberes pedagógicos. Para análise nesta
Tese, foi escolhido um capítulo do primeiro livro mais vendido - Neurologia e aprendizagem –
sobre Dislexia.
O livro Neurologia e aprendizagem conta com um capítulo sobre Dislexia: Dislexia:
varlendo contra o vento, de Asta Altreider. A autora é fonoaudióloga, psicopedagoga,
especialista em Alfabetização pela Federação de Estabelecimento de Ensino Superior de Novo
Hamburgo (Feevale) e consultora em transtornos da aprendizagem em escolas da região
metropolitana de Porto Alegre.
O capítulo começa com algumas problematizações da autora sobre a precarização
da escola contemporânea e a inadequação de algumas práticas pedagógicas. Entretanto, na
contramão da análise da ND, para a autora, não é a desorganização escolar e a inadequação das
práticas que geram o fracasso escolar: esses fatos são os impeditivos para que os professores
reconheçam alunos disléxicos e para que possam dispensar práticas adequadas aos alunos
diagnosticados ou que deveriam ser diagnosticados. Como vemos, a escola é onde se
manifestam, para a autora, dificuldades resultantes da Dislexia e não das desigualdades sociais:
Aqui, a autora faz uma série de pré-julgamentos e mostra seus preconceitos com a
criança que têm dificuldades. O prazer pela leitura e o interesse pelo aprendizado de leitura e
escrita são, aqui, indícios de dislexia e critério diagnóstico, o que acaba sendo também,
portanto, ponto a ser observado pelo professor que eventualmente lê este livro. Não há, aqui,
nenhuma consideração sobre os fatores sociais que determinam o interesse pela leitura já
citados nesta tese: a pré-história da escrita (LURIA, 2001), fica de fora de reflexão e apenas
questões orgânicas que provocariam a dislexia seriam determinantes do interesse e do prazer
em aprender. Nem mesmo a prática pedagógica é considerada pela autora, apesar de ser fator
determinante do comportamento da criança na escola se motivadora, interessante, organizada a
partir dos princípios vygostkyanos da expectativa, como visto nos itens anteriores. Além disso,
a autora mostra desconhecer o que está envolvido na leitura em voz alta ao afirmar que o
240
disléxico não entende o que lê e isso é sintoma de patologia. O caso de EF é muito ilustrativo
disso: em sala de aula, onde sofria com as pressões do ambiente afetivo desfavorável para ele,
sua leitura é muito lenta e cheia de hesitações. Com a cuidadora, em sua casa ou na igreja,
situações em que se sente desconfortável, a leitura é outra e não sofre com julgamentos alheios.
Ao ler em voz alta, a criança que tem dificuldades concentra sua atenção e esforço no ritmo, na
entonação, na tentativa de fazer uma leitura precisa. Assim, a compreensão fica em segundo
plano, já que a criança ou mesmo o adulto se preocupa, de fato, em possibilitar que o ouvinte
compreenda o texto que ele lê. Já no terceiro ano, “o grupo lê com fluência pequenos textos e
começa o desafio da ortografização da escrita. O aluno potencialmente disléxico ainda se
embaralha com a diferença do /O/ e do /A/ e com o mistério do /p,q,d,b/” (ALTREIDER, 2016,
p. 231).
Por fim, no quarto ano, entrariam em ação as estratégias de compensação, como a
cola das atividades dos colegas, a atenção mais atenta à expressão fisionômica do professor e o
“balbuciar em voz baixa enquanto escreve”. Sobre essas afirmações, a ND aponta que as
crianças se apoiam na fala para escrever desde o início do processo de alfabetização, não
podendo isso ser uma estratégia de compensação usada apenas no quarto ano, quando a criança
já tem 10 anos. Além disso, chamo a atenção para a inadequação do emprego do termo
balbuciar para escrever. O balbucio é sonorização feita pelos bebês e é analisado por Heller
Roazen (2010) como uma das questões-chave para o desenvolvimento da fala e para a
consolidação das impressões proprioceptivas (LURIA, 1991). Como vimos com Cagliari
(1989), a criança sussurra para escrever, o que, inclusive, faz com que em muitos casos a
criança ensurdeça muitas consoantes e gera o que se chama de trocas de letras, uma das causas
da patologização, como já apresentado nesta Tese. Segundo Altreider, o diagnóstico deve ser
feito somente no 3º ano do Ensino Fundamental, já que muitas dificuldades acabam sendo
solucionadas no percurso escolar e no 3º ano é possível identificar melhor as crianças que
persistem com problemas. Vemos, novamente, a persistência das dificuldades como fator chave
para o diagnóstico e nenhuma problematização sobre a prática pedagógica e outras questões
afetivas, sociais e culturais, e como elas podem contribuir para que as dificuldades persistam.
Sobre o diagnóstico, vemos que na mesma direção do DSM V, os relatórios escolares também
tem um papel importante no diagnóstico.
Assumimos, aqui, que a autora esteja tratando de hipóteses como sapu por sapo e
peixi por peixe, comum na escrita inicial e representativo da representação do alteamento dessas
vogais em final de palavra na maioria das variedades do português brasileiro. Não conseguimos
rastrear, porém, de que conflitos a autora esteja tratando quando fala de problemas/trocas entre
“O” e “A”. Ressaltamos, ainda, que as diferenças entre essas vogais em final de palavra não são
simples e óbvias para todos: todas as crianças, não apenas os que demonstram mais
dificuldades, em algum momento do processo de alfabetização não escapam a esta hipótese
pelo fato do apoio na fala para escrever. A intervenção do professor, nesse momento, é crucial,
de forma que explicite as diferenças entre a escrita e oralidade e chame a atenção do aluno para
o fato de que não escrevemos como falamos, e que leva tempo, e exposição à língua escrita,
escrita e reescrita de textos para que essas diferenças sejam automatizadas. Do ponto de vista
da ND, não se tratam, portanto, de um problema de memória fonológica associado à Dislexia,
como trata a autora, mas de um fenômeno comum a todas as crianças em fase de alfabetização,
242
e cuja persistência pode depender das práticas pedagógicas, da qualidade da relação que a
criança tem na escola e fora dela com a língua escrita, do valor social que ela atribui à
aprendizagem, etc.
Chamo a atenção, ainda, para o erro conceitual e o desconhecimento de questões
básicas de linguística que a autora demonstra ao dizer que D/T e P/B são “sons homófonos”,
além do erro de representação fonética. Tanto [d] quanto [t] são oclusivas alveolares que se
distinguem justamente pelo traço de sonoridade, enquanto [p] e [b] são oclusivas bilabiais que
se distinguem pelo mesmo fator. É grave, ainda, a afirmação de que a criança não percebe a
diferença entre esses pares pelas dificuldades de percepção e orientação espacial associadas à
dislexia se o que as diferenciam é justamente o traço de sonoridade, que nada tem a ver com
orientação espacial. Vemos, também, que linguagem para a autora se reduz à comunicação
gráfica e questões primordiais para entender o processo de alfabetização como as variedades
linguísticas são, nesta perspectiva, vícios de linguagem. Podemos também destacar alguns
termos usados pela autora de maneira muito inadequada e irresponsável, como dizer que as
vogais são inimigas mortais dos disléxicos, e que as crianças entram em colapso diante de
algumas consoantes.
A autora segue citando um estudo italiano sobre a Dislexia chamado “O iceberg
submerso da Dislexia”, feito pela Comissão Nacional sobre Epidemologia de Dislexia. Cabe
aqui, ressaltar o uso do termo epidemia de Dislexia, duramente criticado por Moysés quando
utilizado para tratar de problemas que incidem sobre a aprendizagem por que são, na
perspectiva clínica da autora, decorrentes de questões sociais, culturais e pedagógicas. O uso
do termo localiza cada vez mais a questão da aprendizagem na esfera clínica e afasta a
problematização feita pelas ciências humanas. Segundo o estudo, a hipótese inicial de que há
mais crianças com Dislexia do que as já diagnosticadas na Itália foi corroborada. A aplicação
de testes padronizados de leitura e escrita em escolas italianas apontou que a prevalência de
Dislexia na Itália é de 3,1% e que duas dentre três crianças disléxicas entre 8 e 9 anos não
tinham o transtorno identificado. A autora cita essa pesquisa para ilustrar sua hipótese sobre o
Brasil: “a ciência mostra que a base neural é a mesma em diferentes línguas e mesmo assim
ocorrem diferentes prevalências na comparação cruzada dessa pesquisa com o resultado de
pesquisas feitas com crianças de língua inglesa”. (ALTREIDER, 2016, p. 234). Mais uma vez,
a autora não problematizas as diferenças significativas entre os sistemas de ensino de países
diferentes, nem as condições sociais e afetivas que determinam a aprendizagem. A constatação
de que há duas entre três crianças disléxicas não identificadas reforça o quanto a dislexia é
243
subestimada no universo escolar, na opinião da autora. “Os resultados dessa pesquisa permitirão
alocar recursos específicos para diagnóstico e tratamento do transtorno de dislexia, além de
servirem como referência para estudos posteriores”. (ALTREIDER, 2016. p. 235).
Por fim, a autora apresenta um estudo de caso que interessa muito a esta pesquisa,
pois traz a anamnese realizada, o histórico escolar e dados de escrita da criança. A criança
avaliada é uma menina de 8 anos e nove meses cuja família buscou avaliação neurológica por
orientação escolar. A professora definiu a menina como alguém que tem “dificuldades de
concentração, impulsividade, não segue instruções, entra em conflito com colegas e não
reconhece o alfabeto” (Altreide, 2016, p. 235). Os resultados da tomografia computadorizada
acusaram normalidade e, por isso, o médico prescreveu apenas um ansiolítico. Veja-se o que
foi coletado na anamnese:
“Na anamnese, a mãe relata que a gravidez e o parto foram normais. Ana
Maria pesou 2,450 kg e mediu 47 cm. Nasceu com um rim maior e logo foi
medicada. Mamou até os 3 meses e passou para mamadeira porque a mãe “não
tinha paciência”. Somente aos 5 anos passou a ter peso normal. Andou com 9
meses, falou cedo e “perfeitamente”, largou fraldas (controle esfincteriano)
aos 2 anos, aprendeu logo a andar de bicicleta e skate, prefere brincar na casa
de árvore a ver televisão. Teve sono agitado até a entrada recente da
medicação. Dorme com a irmã mais velha (em cama de casal) e
frequentemente pede para dormir com os pais, no que não é atendida.”
(ALTREIDER, 2016, p. 236)
“Ana Maria era dispersa, não mostrava interesse nenhum nas letras e números
e tinha uma atitude de quem não se importava com a insistência da professora.
Temas passaram a ser um problema. Nunca queria fazê-los, e a família
montava uma logística de revezamentos para ajudá-la. No 2º ano, regrediu
mais ainda. Referia não querer ir para a escola. No 3º ano, atualmente, ainda
não sabe ler e não mostra interesse em escrever. Só brigando com ela. A
professora atual pensa que a família protege demais a menina, que fazem tudo
que ela quer, que é “mimada” demais e recomenda retirar as bonecas dela.
Costuma chegar em cada e contar que chorou na escola porque a professora
gritou com ela. (...) Ela é, “esperta e carismática, afetuosa, afetuosa, mas
impulsiva, tem dificuldades de seguir instruções, não consegue concentra-se
por muito tempo, fala quando não é sua vez, exige que prestem muita atenção
nela, reconhece o alfabeto, porém não atribui ainda valor sonoro a todos os
signos do sistema alfabético, nas palavras a orientadora.” (ALTREIDER,
2016, p. 236)
244
de que a hipótese se sustenta. A mãe de Ana Maria, por sua vez, abandonou a escola porque
engravidou. Não há, aqui, nenhum tipo de menção ao fato de que tinha dificuldades escolares,
mas não há também nenhuma problematização do fato de que as mulheres, quando engravidam
na adolescência, sofrem uma série de pressões que fazem com que deixem a escola: no caso das
famílias menos favorecidas, a mulher precisa parar de estudar para trabalhar e conseguir arcar
com os custos da gravidez e da criança, bem como estar disponível para cuidar dela depois do
nascimento. Vemos, também, que a família provavelmente lê pouco e assiste muita televisão,
o que é compreensível em um contexto de dificuldades escolares, pouco valorização da
escolarização (o pai se orgulha de ganhar muito sem ter diploma) e, consequentemente, poucas
práticas de leitura e escrita no ambiente familiar. Do ponto de vista da ND, esse contexto tem
efeito nas percepções de Ana Maria sobre a escola, sobre o sentido aprender a ler e a escrever,
sobre o que ela mais prefere fazer (brincar do que ler ou ficar sentada vendo televisão) e,
associados ao ambiente hostil que as novas exigências escolares fizeram da escola, entende-se
o desinteresse de Ana Maria no percurso de alfabetização. Entretanto, na perspectiva da autora,
esses fatos servem para corroborar a hipótese de Dislexia: a situação de Ana Maria é resultante
de uma herança genética e não dos contextos social, cultural e pedagógico que ela integra.
Foram vários os testes padronizados aplicados à Ana Maria, mas, para esta
pesquisa, cabe mais atenção aos testes de leitura e escrita. Veja-se o resultado:
Ana Maria faz o que todas as crianças em estágio inicial de alfabetização fazem: ao ler, dizem
o nome da letra e depois juntam formando sílabas. Comum a todas as crianças, esse processo
requer a mediação do adulto, que ajudará a criança a conhecer a sílaba e depois, compreender
a recursividade da escrita, ou seja, como ela pode escrever outras palavras a partir do seu nome,
247
do nome de seus pais, etc. Ana Maria já dá indícios de que está no início desse processo quando
já mostra que consegue ler algumas sílabas. Quando à sua escrita, vemos uma criança às voltas
com a sílaba complexa, como todas em fase inicial de alfabetização, além de uma escrita
aparentemente infantilizada (evidenciada em SETATEIA e BOECA), que pode estar
relacionada com o fato de que sua família também trata Ana Maria de maneira infantilizada,
como denunciado pela professora que afirma que ela é mimada. Mas esta é apenas uma
hipótese. Podemos considerar, ainda, os estudos de Amaral, Freitas, Chacon e Rodrigues sobre
a representação da sílaba na escrita inicial. Para os autores, há uma oscilação na construção de
hipóteses da representação da sílaba porque as crianças “ora se sustentam em informações que
extraem de como as palavras são pronunciadas, ora em informações que extraem de como as
palavras são grafadas – sem que, necessariamente, os aspectos fonético-fonológicos das
palavras tenham prevalência sobre os aspectos visuais”. Com relação à omissão da coda, os
autores consideram que:
conhecimentos que ganha nas práticas pedagógicas. Segundo os autores, a criança “se ancora
não apenas no que falam e o no que ouvem, mas, também, no que escrevem e lêem – fato que
demonstra a importância que (também) os aspectos visuais da escrita têm para as crianças”.
(AMARAL, FREITAS, CHACON E RODRIGUES, 2011, p. 853)
da escrita, já que os resultados sugerem queOutros testes acusaram problemas de memória,
problemas de aspectos perceptivos, defasagem gnósica e problemas de raciocínio matemático.
A hipótese diagnóstica de Dislexia foi levantada e as indicações foram a de atendimento
psicopedagógico, avaliação neuropediátrica e, se necessário, acompanhamento psicológico em
caso de persistência das dificuldades. A psicopedagoga que acompanhou Ana Maria elaborou
dois quadros comparativos sobre a evolução da leitura e da escrita, que reproduzo a seguir:
(...) Perceber que com todo conhecimento disponível nas mais diferentes
mídias e, mesmo assim, não evoluirmos de forma consistente no
enfrentamento de oferecer recursos aos portadores de dislexia é desalentador.
A maioria dos casos continua não identificada. Os identificados dependem de
um conjunto de boas vontades e não de um padrão de atendimento, mesmo
que isso seja um direito adquirido” (ALTREIDER, 2016, p. 243-244).
A autora ainda milita pela consolidação do diagnóstico o mais breve possível, para
que Ana Maria receba atendimento específico na escola – o que a tornará uma criança café com
leite (COUDRY, 2010) naquele ambiente cujo laudo justifica atividades que exigem menos
dela e dela tudo toleram. A análise deste caso e da teoria que embasa este capítulo em
contraposição à análise proposta pela ND nos mostra a interincompreensão
(MAINGUENEAU, 2005) que existe entre o entendimento clínico e o entendimento da
Neurolinguística Discursiva sobre as dificuldades de Ana Maria. Patrícia Aquino, em sua Tese
de doutoramento, apresenta a semântica global envolvida nos discursos da área clínica
(chamados, pela autora, de S/M), representado por médicos, psicopedagogos, alguns
fonoaudiólogos, por um lado, e nos discursos da linguística e de alguns médicos militantes do
movimento anti-medicalização (chamados pela autora de E/L), por outro.
O levantamento feito por Aquino mostra que, na perspectiva clínica, os indivíduos
são vistos como sujeitos biológicos e são considerados em sua normalidade ou anormalidade.
A aprendizagem é um processo regular, com ritmo pré-estabelecido, e, quando não corresponde
a uma série de expectativas, as dificuldades são desvios, evidências de distúrbios e passíveis de
diagnóstico, tratamento e reabilitação. A língua e a linguagem são sistemas regulares, que são
transmitidos para os aprendizes pela gramática tradicional. As pesquisas são qualitativas e
apresentadas com gráficos, tabelas exames, sempre realizadas por autores específicos.
Já na perspectiva da Linguística/Educação, os sujeitos são diferentes, determinados
sócio-historicamente. O processo de aprendizagem é variável, com ritmo variável e as
dificuldades são naturais, intrínsecas ao processo de aprendizagem e os erros são hipóteses
sobre a escrita. A língua e a linguagem são sistemas de signos e constituem os sujeitos
adquiridos na interlocução, no discurso, no texto. As pesquisas são qualitativas e envolvem
estudos de caso, partem de um paradigma indiciário, sempre realizadas por autores de áreas
diversificadas. Após a apresentação da semântica global, ela conclui, sobre suas análises:
fenômeno das neurociências não é tão recente assim no debate educacional, já que sempre
esteve presente com outras nomenclaturas. Entretanto, a partir de 2010 a terminologia
neurociência ganhou força por conta do avanço das técnicas de exploração do cérebro e de
exames que supostamente avaliam que áreas estão envolvidas na aprendizagem.
Na perspectiva do autor, algumas linhas de pesquisa no interior das neurociências
aplicadas a educação, por conta de críticas que as acusaram de privilegiar o determinismo
biológico, durante algum tempo se abriram para entender melhor o papel da plasticidade
cerebral na aprendizagem e a capacidade do cérebro de se modificar pelas interações sociais.
Esse movimento fez com que se adotasse um discurso integrativo que leva em conta o que se
chama de fatores biopsicossociais que determinam a aprendizagem. O problema é que, segundo
a análise do autor, as neurociências, ao invés de coordenar as diferentes abordagens que
articulou para tratar da aprendizagem, estabeleceu entre elas uma hierarquia na qual as ciências
biológicas estão em primeiro lugar.
Assim, as “neurociências aplicadas à educação” relativizam os questionamentos
ontológicos sobre o fracasso escolar para privilegiar um pragmatismo biológico que traz
respostas mais práticas e simples para explicar as dificuldades e para indicar a solução, como a
repetição dos exercícios, a correção sistemática dos erros, as maneiras de se memorizar mais
rápido a partir de estudos sobre o cérebro e até mesmo maneira de se melhorar a autoestima dos
alunos partindo de estratégias de repetição de auto afirmações e de frases de otimismo. No
Brasil, estas estratégias de melhora da autoestima são também muito abordadas pelas práticas
de coaching, que se baseiam nas neurociências para afirmar que é possível corrigir
comportamentos ditos negativos - e até mesmo a depressão - com estratégias de repetição de
autoafirmações que modificariam conexões cerebrais e trariam otimismo e bem-estar.
Na perspectiva de Morel, o avanço das neurociências na educação é incontornável,
já que prometem trazer soluções práticas para os 150.000 alunos que saem do sistema
educacional francês sem saber ler e escrever e para o baixo desempenho dos alunos no Pisa. A
escola francesa, para o autor, é extremamente desigual e instrumento de reprodução das
desigualdades sociais. A conclusão do relatório do Pisa é que os alunos mais fracos estão se
tornando mais fracos e a diferença entre os mais fracos e os mais fortes tende a aumentar. Para
o autor, essa observação é ainda mais alarmante, porque é formulada em um contexto em que
a escola nunca ocupou um lugar tão importante. É uma escola que deve garantir a justiça social,
mostrar aos alunos o seu lugar em uma sociedade onde a ligação entre o nível de educação e o
tipo de trabalho nunca esteve tão próxima. Ademais, a instituição escolar também é incumbida
253
da tarefa de resolver todos os problemas sociais, desde o assédio até o comportamento de risco
e o terrorismo. Nesse contexto, o que provavelmente explica em parte a atratividade à
neurociência é que, com ou sem razão, muitas pessoas hoje acreditam que ela é uma a disciplina
de vanguarda capaz de fornecer soluções para problemas escolares e sociais.
Morel segue explicando motivos pelos quais a crítica aos neurocientistas é de difícil
construção e difusão. Por um lado, o discurso dos neurocientistas enfatiza o rigor e a avaliação
"objetiva" dos resultados dos experimentos e das atividades escolares e está muito alinhado
com o direcionamento das políticas públicas. Uma vez que são formuladas através de avaliações
nacionais e conclusões são tiradas a partir dos indicadores de desempenho, as neurociências e
suas conclusões parecem atender às expectativas do governo. Além disso, os neurocientistas
geralmente têm atitudes muito ofensivas em relação a disciplinas concorrentes (como as
Ciências Sociais, que, como aponta Morel, nem na França nem em outros lugares do mudo são
encaradas como áreas do conhecimento suficientemente científicas) ou certas profissões (como
professores, criticadas do ponto de vista de suas práticas, que também não são muito científicas
justamente por não partirem ainda da abordagem neurocientífica). Entretanto, Morel aponta que
em outros contextos os neurocientistas adotam posturas ecumênicas e cautelosas, com as quais
exibem uma abertura multidisciplinar e apelam para as competências de cada um. Por causa
dessa ambivalência no discurso, a crítica da neurociência é difícil, assim como a construção de
uma troca científica de longo prazo, que exigiria uma boa compreensão das posições de cada
um.
Morel afirma que as neurociências parecem ser, atualmente, um mecanismo de
confirmação de soluções ou métodos pré-existentes e que não há, de fato, muitas novidades.
Para exemplificar, ele cita o fato de que o novo secretário apontou que o método fônico deve
ser o privilegiado em sala de aula pela eficácia comprovada e pela rapidez que ele promete na
aprendizagem. Segundo Morel, isso não é novidade para os professores, que conhecem esse
método e já o aplicam em vários contextos. O que é realmente novo é a maneira de administrar
a prova da eficácia das práticas pedagógicas, baseando-se nas ciências experimentais de um
universo escolar que, por seus detratores, afundara na ideologia. E é a partir do efeito de
alavanca criado por essa forte legitimidade científica que os neurocientistas puderam remontar
de maneira muito poderosa recomendações que eles mesmos admitem não serem
particularmente revolucionárias. É inegável que o Brasil, depois de um ano, repete a história
francesa com a indicação das ciências cognitivas para embasar a alfabetização e também com
a determinação de que se adote do método fônico, como veremos nos últimos itens. Assim, o
254
pano de fundo que garante e legitima essas decisões governamentais é a suposta blindagem da
análise científica, a crítica recorrente da prática que ela busca substituir – uma vez que julga
que o que se faz sem embasamento neurocientífico é ineficaz - e o apagamento da análise das
ciências socias neste cenário.
Quando questionado sobre o fato de que as recomendações feitas pelas
neurociências para a escola parecem exigir recursos e investimento, Morel afirma que a
neurociência, desse ponto de vista, tem um discurso duplo muito eficaz. Por um lado, os
neurocientistas propõem métodos que são supostamente aplicáveis a todos os contextos e, por
outro, ao abordar transtornos de aprendizagem específicos os neurocientistas contribuem para
o discurso sobre a necessária individualização das práticas pedagógicas por conta das
dificuldades dos alunos – o que gera gastos com recursos específicos. Eles trabalharam na
constituição de patologias como a dislexia, discaulculia e hiperatividade como um problema de
saúde pública que deve ser analisado pelo governo e por instituições particulares. Na visão de
Morel, por um lado, alguns alunos se beneficiam do apoio diferenciado que lhes é dado, por
outro, a neurociência contribui para o processo de medicalização do tratamento da dificuldade
acadêmica, cujo alcance preocupa toda a comunidade educacional.
Nesse contexto, Morel ressalta o papel da família das crianças com dificuldades
escolares. A neurociência forneceu-lhes diagnósticos percebidos como mais interessantes do
que os que prevaleciam até então (deficiência intelectual, disfunção familiar, etc.). Se
considerarmos o que hoje chamamos de "nebulosa" de distúrbios específicos de aprendizagem,
a palavra mais importante é "específica": apenas um processo cognitivo é afetado, e para o
resto, a criança é normal, mais inteligente que as outras. Além da questão de sua validade
científica, são, portanto, diagnósticos quase recompensadores, que fazem com que os pais se
sintam menos culpados e acabam se tornando também sejam muito lucrativos no mercado
escolar. A necessidade de lidar com crianças portadoras dessas patologias, como observa Morel,
gera a contratualização de professores especializados em dificuldades e também ajustes
pedagógicos que envolvem cursos para os professores em geral. Isso explica, em parte, que
houve uma explosão desses distúrbios e o fato de que as instituições clínicas que lidam com
isso estão com alta demanda.
O autor finaliza suas considerações concluindo que as neurociências, na
contemporaneidade, se colocam como ciências de vanguarda, o que mobiliza o mercado e os
pesquisadores na promoção da disciplina, bem como os consumidores que se interessam sempre
em saber o que há de novo em termos de educação. Entretanto, com Morel, a ND alerta para o
255
fato que a onda das neurociências – a chamada neuroeducação e a obsessão que essas disciplinas
têm pelo desempenho escolar, pelos resultados de avaliações padronizadas de larga escala –
não são apenas um dispositivo de patologização mas também um dispositivo de despolitização
do debate sobre a educação.
Deslocando o foco do debate para o cérebro, o sujeito biológico, os resultados das
provas, o que envolve a codificação e a decodificação (já que, para essas ciências, essas palavras
são sinônimos de aprendizagem) e os supostos transtornos, as neurociências apagam as
desigualdades sociais, a precarização das escolas, a formação pedagógica do professor (para
defender sua formação na neurociência do aprender) e o sujeito histórico, social, cultural e
psíquico que mantém uma relação singular com a linguagem. Silenciar esse debate pela
imposição de uma teorização e prática meramente organicistas exime governo, escolas,
professores e família pela responsabilidade do aprendizado da criança. Ademais, na
contemporaneidade, a neurociência, com sua suposta efetividade comprovada em pesquisas
internacionais e a multidisciplinaridade que aparentemente a constitui parece blindar-se das
críticas provenientes das ciências humanas, das ciências da linguagem e da pedagogia.
A ND aponta, assim, para a necessidade de que as ciências humanas e sobretudo a
Linguística reivindiquem seu protagonismo na pesquisa e na análise do fracasso escolar e
problematize constantemente as investidas (que não são recentes e constituem o olhar clínico
do professor) da medicina na educação, que, como vimos, na contemporaneidade, estão
representadas também pela chamada neurociência.
(pedagoga) e Clay Brites (médico). No site, consta que a missão da página é “capacitar pais,
professores e profissionais para que sejam instrumentos de potencialização do desenvolvimento
de crianças e adolescentes”.
Os responsáveis pela página organizam diversos cursos – online e presenciais -
sobre a relação entre as neurociências e a aprendizagem, vendem apostilas, livros e divulgam
pequenos vídeos diariamente sobre algum tema que relacione as neurociências e as dificuldades
de aprendizagem. São muitos os materiais presentes na página que poderiam ser
problematizados à luz da ND, especialmente por se dirigirem a pais e professores no sentido de
oferecer “pistas e sintomas” de que as crianças com dificuldades escolares podem ter, na
verdade, um distúrbio. Entretanto, escolhemos aqui uma postagem sobre Dislexia que foi feita
em outubro de 2018. A postagem envolvia a imagem a seguir e o texto que a acompanha:
Se você marcar sete ou mais dessas perguntas da imagem (para você ou seu filho),
isso pode indicar #dislexia. Considere procurar a consulta de um especialista ou uma
avaliação diagnóstica formal de um médico qualificado. #Neurosaber”
das áreas cerebrais que estariam prejudicadas na Dislexia – ainda que não esteja claro como
essas informações são obtidas – e um série de definições de Dislexia cuja fonte não é citada. A
reportagem chama a atenção ainda para a necessidade do diagnóstico precoce - já que as
dificuldades que a Dislexia gera podem ser identificadas já na Educação Infantil – e para a
necessidade de atenção individualizada. Uma vez que a reportagem coloca a Dislexia como um
transtorno que impõe obstáculos ao aprendizado, a escola aparece como instância que deve
facilitá-lo, providenciando adequações às necessidades especiais dos alunos. Sobre as
definições de Dislexia apresentadas no quadro Nuances do Transtorno, vemos que se estabelece
uma correlação entre área cerebral e dificuldade, o que reforça ainda mais o suposto caráter
biológico da Dislexia. Vemos, ainda, que todos os tipos de dificuldade com a leitura e a escrita
estão ali expressos – ainda que de maneira cifrada, de difícil compreensão para professores,
pais e leigos – o que pode gerar uma relação direta do leitor entre quaisquer dificuldades e o
transtorno.
Essa leitura confusa, cifrada, cheia de definições pouco claras e repleta de uma
linguagem científica que cita constantemente áreas cerebrais pouco conhecidas de professores
e leigos gera algumas projeções. O professor ou a família de uma criança com dificuldades,
diante deste tipo de texto que leva imediatamente à relação das dificuldades ao transtorno sem
fazer nenhuma ponderação sobre o que seriam dificuldades normais e patológicas – e, ao
contrário, reúne todas as dificuldades em nuances de dislexia – não raro se sentem alarmados e
compelidos a pelo menos buscar uma avaliação clínica.
A revista, parece, assim, na tentativa de trazer informações suficientes, acaba por
trazer pouca informação compreensível o que gera o encaminhamento clínico, contribuindo
para a tendência de patologização das dificuldades normais de aprendizagem e se colocando
também como dispositivo (AGAMBEN, 2009) de patologização.
Para além da questão das reportagens, é relevante analisar também como são
apresentados os cursos desta área. Veja-se a seguir uma propaganda de um curso sobre
neurociência nas escolas veiculada pela revista NeuroEducação, da Editora Segmento (mantida
pelo Grupo Tiradentes e pelo Instituto Ayrton Senna).
262
Veja-se que a propaganda assume que as escolas têm fronteiras que a neurociência,
por ser considerada uma ciência inovadora, pode expandir. Ademais, as neurociências, aqui,
263
trazem soluções para o que se considera uma potencialização dos alunos que só acontece se
utilizado o material adequado vendido pelo curso. Sobretudo, o fato de que integram a equipe
profissionais de diversas áreas, o que parece bastante atrativo para as escolas porque é uma
estratégia mercadológica, que convence as famílias e a própria instituição escolar de que a
criança está sendo analisada de diferentes pontos de vista. Além disso, dentre os principais
temas apresentados na palestra, está a pressuposição de que as neurociências devem ir para a
escola, bem como alguns termos que, por conta de polítics públicas, como habilidades, técnica
metacognitivas, habilidades socioemocionais e consciência fonológica também são uma
estratégia de mercado se presentes no discurso educacional. A propaganda mostra ainda que as
neurociências dominam dois conceitos que são novos e, por isso, alvo da atenção dos
educadores: as funções executivas e a consciência fonológica para a alfabetização. O cérebro
também está em questão e parece ser mais um dos atrativos que fariam das neurociências um
atrativo para o educador, já que, em tese, a formação inicial em pedagogia não contemplaria o
estudo do funcionamento cerebral, nem a prática escolar.
Neste contexto, os cursos da própria revista NeuroEducação, também merecem
destaque. A revista foi publicada mensalmente até 2018 e abordou temas em geral que
relacionam saúde e educação, de modo que em todas as edições consta alguma reportagem,
ainda que pequena, sobre os transtornos de aprendizagem. A revista disponibiliza em sua página
no Facebook um curso online para professores sobre NeuroEducação que se revela bastante
atrativo, primeiro pelo preço, (R$ 499,90, que podem ser pagos em dez parcelas) e também pela
comodidade de ser online e de dar um certificado de NeuroEducador – o que confere ao
professor uma posição privilegiada no mercado de trabalho por estar em tese atualizado nas
tendências pedagógicas. Os 6 módulos abordam: Leitura e Escrita, problemas e Transtornos de
Aprendizagem, Funções Executivas, Memória, Atenção e Aprendizagem e o TDAH. A
chamada para o curso corrobora as afirmações de Morel, que identificam, no discurso das
neurociências sobre sua própria relevância, a posição de vanguarda que procuram assumir, de
maneira a convocar os professores para a realização do curso. Além disso, esse tipo de curso é
mais um exemplo da investida mercadológica e discursiva da medicina na Educação que
configura a contemporaneidade e renega o saber pedagógico a segundo plano.
264
crianças diagnosticadas, mais trabalho há para as clínicas, mais cursos são vendidos, mais
palestras e congressos promovidos e mais o mercado editorial se alimenta.
69
No ano de 2016, estive presente na Bienal do livro de São Paulo. O stand da editora WAK me chamou a atenção
pela quantidade de pessoas que ali estavam e pelos temas dos livros que a editora expunha nas prateleiras
principais. Eram várias as publicações sobre Dislexia, avaliação psicopedagógica, Neurociências e aprendizado e
muitos outros itens cuja análise seriam relevantes para esta Tese. Entretanto, o livro que me chamou mais a atenção
foi Dislexia na Educação Infantil pelo interesse que ele despertava nas pessoas que passavam por ali. Fiquei no
stand da editora por mais ou menos uma hora e neste intervalo, vi uma pilha destes livros que era formada por ao
menos 50 exemplares ser reposta 4 vezes. Pelo volume de vendas e pela curiosidade que ele despertou nas
professoras que por ali passavam, ele foi selecionado para integrar essa pesquisa.
270
escrita, relacionando, assim, de forma limitada e equivocada, a fala e a escrita. Sobre este fato,
cabe aqui a reflexão já apresentada nessa pesquisa sobre a representação da sílaba complexa
desenvolvida por Abaurre (2001). Na hipótese da autora, as crianças demonstram dificuldades,
na escrita, em preencher a posição de coda silábica, bem como a segunda posição nos ataques
ramificados. Para ela, isso indica que, no processo de aprendizagem da escrita, a criança
enfrenta dificuldades com relação ao reconhecimento da estrutura interna da sílaba, o que
parece refletir o processo que ocorre na aquisição da linguagem oral, quando a criança constrói
as estruturas CV e V antes de CVC e de CCVC. Assim, a autora indaga se seria possível afirmar
que, ao adquirir a escrita alfabética, essa mesma ordem de dificuldade voltaria a se manifestar,
de certa forma.
Na EI, criança ainda está no processo de ajustar sua fala em relação à fala do adulto
e enfrenta dificuldades para falar a sílaba complexa. Este ajuste se dá nas relações sociais, seja
entre crianças e familiares, que corrigem quando a criança fala de forma distante da fala adulta,
seja entre crianças e professores, seja sem correção explícita: este ajuste ocorre naturalmente, à
medida que a criança convive e conversa com os outros. Assim, tomar a fala infantil como causa
e trocas na escrita como efeito é uma visão reducionista de todo o processo que envolve
aprender a falar, ler e escrever e, ainda, reduzir a escrita a uma mera reprodução da fala,
desconsiderando todas as especificidades da representação ortográfica, como a memória
etimológica, as relações unívocas e biunívocas, etc.
Não podemos deixar de mencionar que esse suposto sintoma elencado por
Capovilla revela uma visão extremamente preconceituosa em relação à linguagem: o autor
desconsidera que o que ele chama de migração de letras na fala é, quase sempre, marcas da
variedade linguística dos falantes, reveladoras de sua origem, identidade, condição
socioeconômica, cultural e do acesso que teve à variedade padrão ou ainda a fala infantil, que
será ajustada na interação com o Outro. Mais uma vez, questões sociais exaustivamente
discutidas no interior dos estudos linguísticos correm o risco de serem banalizadas como
sintoma de patologia.
c) Impulsividade no agir
Provavelmente, a impulsividade, para Capovilla, indicaria Dislexia por estar
relacionada à atenção que o ato de ler e escrever requer. A ND recorre aos estudos de Vygotsky
sobre a atenção e a impulsividade para buscar compreender o motivo pelo qual elas são alvo
dos manuais de diagnósticos e observações clínicas e são apontadas como problemas orgânicos.
272
De acordo com o autor, é possível verificar certa impulsividade nos bebês e nas crianças
pequenas. Tal impulsividade, porém, é inibida e controlada pelos adultos via linguagem, o que
faz com que a criança internalize e assuma comportamentos mais estáveis. Basta observar o
processo pelo qual a criança entende o sentido da palavra “não” dita pelos adultos quando se
aproxima de objetos que oferecem perigo. A criança passa a desenvolver, neste processo,
mecanismos inibitórios:
“Nesse processo, os familiares têm papel importante. Por exemplo, quando a mãe
diz ao filho: “Espere sua vez de falar, ainda não terminei”; “Deixe seu irmão falar,
depois você fala”; “Agora estamos vendo o filme, depois você conta isso”.
“Agora você termina a lição e depois você brinca”, entre outros enunciados, age
no sentido se fazer com que a criança aos poucos perceba que há o momento de
falar, de ouvir, de esperar, de brincar, etc.” (SIGNOR & SANTANA, 2016, p.76)
conceitos se desenvolvem. A palavra dá forma ao conceito que, por sua vez, se torna mais
diferenciado e subsequentemente requer palavras ou combinações diferentes para expressar o
significado (EISENBERG, 2011). Desta forma, à medida que a criança se envolve
cotidianamente em narrativas sobre o passado e o futuro, há, primeiramente, uma noção
rudimentar das palavras que retomam o tempo, mas que serão modificadas ao longo das
interações e oportunidades que a criança terá para diferenciá-las (BARTHELSON, 2014). A
compreensão do tempo pela criança não é, portanto, igual à do adulto: sua compreensão parece
estar presa ao contexto, o que faz com que muitas crianças usem palavras dêiticas como ontem,
hoje, amanhã e os dias da semana para expressar noções mais gerais de presente, passado e
futuro.
brincadeiras, inventiva, etc. A perspectiva deste artigo assume que desenhar, montar quebra-
cabeças, montar construções com blocos, utilizar brinquedos que envolvem tecnologia ou jogos
eletrônicos, ouvir histórias (e gostar ou não disso) são práticas culturais que podem ou não fazer
parte do cotidiano das crianças, o que explicaria seu sucesso ou seu fracasso nestas atividades.
Chega a ser triste e desanimador que características como criatividade aguçada seja, hoje,
sintoma de uma patologia que, se atribuída equivocadamente, pode estigmatizar a criança e
marcar sua vida afetiva, escolar e profissional para sempre. Nos perguntamos como seria uma
intervenção para este sintoma: podar e silenciar a criatividade da criança como medida
profilática para a dislexia? Este suposto sintoma revela o modelo de criança com o qual a clínica
e principalmente a escola esperam lidar: crianças que apresentam corpos dóceis, conforme
Foucault, padronizadas, pouco inventivas, que respondem sempre o que a escola espera e da
forma que a escola espera, que não tenha perfil questionador e transgressor, que aceita de bom
grado a educação que lhe é oferecida e nem ao menos contempla a oportunidade de transformá-
la. Crianças que são o futuro sujeito desejado pelo capitalismo: dessubjetivados e assujeitados.
Buscamos mostrar uma análise neurolinguística sobre a lista de sintomas que devem
ser identificados ao longo da EI e que evidenciariam a presença de dislexia. As análises
revelaram que os chamados sintomas são, para a ND e para a teoria histórico-cultural,
singularidades - social e culturalmente determinadas - apresentadas pelas crianças. Apontamos,
assim, para um processo de patologização em curso: questões de ordem social são analisadas
do ponto de vista orgânico e interpretadas como doença a partir de critérios quantitativos (listas
de sintomas) e testes padronizados. Cabe aqui uma última observação sobre como Capovilla
entende a avaliação dos sintomas de dislexia na EI. Para ele, devem ser feitas avaliações
qualitativas e quantitativas:
V
ALFABETIZAÇÃO E NOVAS/VELHAS POLÍTICAS PÚBLICAS
5.1. A questão dos métodos: imposições do governo e o que se faz em sala de aula
Após eleito e empossado, o presidente Jair Bolsonaro e os quadros que assumiram
o Ministério da Educação no primeiro semestre de 2019 fizeram uma série de declarações
polêmicas sobre a educação pública - desde o ensino básico ao superior – que vieram
acompanhadas de vários ataques aos professores. Os ataques envolvem temas como a suposta
280
70
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, Nadalim fez várias especializações na mesma
universidade: História e Teorias da Arte, Filosofia Moderna e Contemporânea e mestrado em Educação. Fez
também cursotécnico-profissionalizante em Técnico de Segurança no Trabalho pelo Colégio Polivalente (1999).
Foi professor de Filosofia do Centro Universitário Filadélfia, professor de Música do Colégio Londrinense,
professor de Violão do Centro Educacional La Salle e coordenador pedagógico do Ensino Médio em um colégio
de Londrina.
71
Olavo de Carvalho é ensaísta e autointitulado professor de filosofia. Já atuou como jornalista e astrólogo e hoje
se diz o principal representante do conservadorismo brasileiro, influenciando fortemente políticos de extrema-
direita e o presidente eleito.
281
compreenda a função social da leitura e da escrita e que transforme sua realidade pela
compreensão e ação política que pode protagonizar, e a despreocupação com os métodos.
Entretanto, não podemos deixar de ressaltar que a questão que gera implicância do governo
com Paulo Freire é, sobretudo, ideológica, já que o autor é repetidamente dito comunista pelo
presidente e por Olavo de Carvalho. A hipótese se confirma com as declarações de Jair
Bolsonaro no discurso de posse do então ministro Vélez Rodrigues “Queremos uma garotada
que comece a não se interessar por política, como é atualmente dentro das escolas, mas comece
a aprender coisas que possam levá-las ao espaço no futuro (...) Ninguém quer saber de jovem
com senso crítico. Eles precisam saber fazer regra de três” (cf. LINDNER, 2019).
A alternativa para este contexto, segundo Nadalim, é o método fônico, definido por
ele como método que “apresenta as crianças às letras e aos sons da fala antes de iniciá-las em
atividades com textos” (NADALIM, 2016). Em um de seus vídeos, o autor explica que primeiro
a criança precisa ser exposta a atividades que tenham como foco a relação entre as letras e os
sons das letras, já que assim irão aprender o que é mais relevante segundo Nadalim: “a
decodificação e a codificação da linguagem escrita, para depois evoluir aos textos”
(NADALIM, 2016). Nos vídeos, o autor ressalta que há estudos internacionais que comprovam
a superioridade dessa metodologia e criticam duramente os chamados métodos globais e o
conceito de letramento. Nadalim apresenta, em alguns vídeos, exemplos de como usar o método
a partir do livro "O Batalhão das Letras", de Mario Quintana, cujas ilustrações mostram as letras
do alfabeto. Ao abrir a página do "F", ele fala os nomes correspondentes a desenhos dando
ênfase o início das palavras: "Ffffrades, ffffformigas, ffffiga, fffflor".
Desta maneira, o discurso oficial legitima o método fônico e o que chamam de
consciência fonológica e se esforça para demonizar as teorias vigentes, envolvendo Emília
Ferreiro, Magda Soares e Paulo Freire. Para tal, o governo lançou, no dia 2 de janeiro de 2019,
um decreto que versa sobre as novas políticas de alfabetização e enfatiza o método fônico como
o ideal para ser utilizado em sala de aula, adota o termo literacia para marcar posição contrária
ao termo letramento, e define o que entende como alfabetização, analfabetismo absoluto e
funcional e outros conceitos:
Dentre as diretrizes, que cito a seguir, não posso deixar de destacar a identificação
precoce dos transtornos de aprendizagem, já problematizados nesta pesquisa no caso da dislexia
“VII - incentivo à identificação precoce de dificuldades de aprendizagem de leitura, de escrita
e de matemática, inclusive dos transtornos específicos de aprendizagem”. (BRASIL, 2019a)
Antes de apresentar o ponto de vista da ND sobre a perspectiva fônica em si, quero
chamar a atenção para algumas questões colocadas por Andrade que ultrapassam a sala de aula
e que envolvem a imposição deste método. Em 2010, no artigo “O professor alfabetizador
imantado entre propostas teóricas: o letramento e a metodologia do fônico”, a autora já chamava
a atenção para alguns interesses mercadológicos que estavam envolvidos na propaganda que se
284
fazia em torno do método fônico, especialmente por instituições privadas de ensino. Na época,
algumas secretarias de educação de alguns estados e municípios começavam a adotar o método
fônico como embasamento teórico por influência de algumas instituições privadas. Andrade
nos mostra alguns desdobramentos:
A análise deste exercício da apostila levanta uma série de questões: como já vimos,
a fala, a leitura e a escrita funcionam como um tripé para a entrada da criança no mundo das
letras (COUDRY & BORDIN, 2012) e, sobretudo no início do processo de alfabetização, a
criança se apoia muito na própria fala para escrever. Uma criança que faça essa atividade,
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apoiada na própria fala, estará diante de uma série de questões: primeiramente, a imagem que
mostra a boca não corresponde ao fenômeno de alteamento de vogais que ocorre em final de
palavra na maior parte das variedades do português brasileiro, como vemos em abelha, ovo e
elefante. Não raro, as crianças escrevem ovu por ovo ou elefanti por elefante, reproduzindo a
fala na escrita. Se ela seguir a instrução dada de posicionamento da boca, ela reproduzirá uma
fala artificial (isso se conseguir seguir as instruções, que não são claras), que não corresponde
a sua, a de seus pares e se verá diante de uma grade confusão.
Parecem muito estranhas também as atividades que seguem: o que é esperado que
a criança preencha na tabela? Como diferenciar, apenas com a foto da boca, o i e o e, que, a
depender da posição, estrão sujeitas a diferentes processos de alteamento?
A atividade a seguir nos parece ainda mais confusa:
Que tipo de relação há entre a ficha de leitura e as palavras que devem ser
completadas? Por qual motivo a criança faria a leitura desses segmentos isolados, que, em
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conjunto, nada significam? E, novamente, ao final da página, uma instrução confusa, mal
escrita: a criança deve ligar uma imagem à boca que supostamente mostraria o som da palavra
representada na imagem, mas a instrução é simplesmente ligar o desenho ao som. Outra
atividade da apostila nos levanta a seguinte reflexão: para além da leitura dos enunciados, a
criança não precisa saber ler para realizar os exercícios, que envolve pintar apenas as vogais,
sem passar necessariamente pela leitura.
É preciso, apenas, circular as vogais e pintar os espaços entre as palavras. Fica, aqui,
o questionamento: qual é o sentido de pintar os espaços entre as palavras? Em que outro
momento da vida cotidiana isso é exigido da criança e com que fim? De que maneira essa
atividade pode suscitar o interesse de uma criança que está sendo alfabetizada para a leitura e
para a escrita? Sem recuperar em momento algum a função social da leitura e da escrita ou
mesmo o prazer de ler e escrever, essas atividades, propostas pelo principal defensor do método
fônico no Brasil parecem ignorar o uso real que se faz da leitura e da escrita: a leitura de placas,
propagandas, revistas, jornais, textos em redes sociais, a escrita de comentários na internet,
listas de supermercado, respostas em avaliações, recados, etc.
Veja-se, ainda, atividade a seguir:
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A criança deve, aqui, verificar a posição da boca e escrever a palavra que está, em
tese, sendo dita. Como diferenciar o e e o i? Como diferenciar o f e o v se são labiodentais e se
diferenciam apenas pelo traço de sonoridade? Vemos, na atividade a seguir, que a imagem para
a representação de v é a mesma:
O mesmo acontece com a representação dos outros pares sonoros. Como vemos,
ignora-se, neste material, questões importantes e básicas da linguística, como o ponto e o modo
de articulação e produção da fala que envolvem língua, palato, lábios e o traço de sonoridade.
Do ponto de vista da ND, isso é muito grave, sobretudo porque é justamente essa uma das
questões relacionadas à alfabetização que, se a criança demonstra dificuldade, essa dificuldade
é entendida como sintoma de Dislexia. Essa atividade praticamente induz a criança ao erro,
deixando-a ainda mais confusa e torna ainda mais difícil compreender a diferença que o traço
de sonoridade impõe. O método fônico e o método das boquinhas, assim, pode ser um dos
elementos do processo de patologização de dificuldades normais. É como se a lógica fosse a
seguinte: se a criança não consegue avançar, o problema não está no método – que parece ser
inquestionável dada seu suposto sucesso internacional e validação científica – mas sim na
criança que teria um