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De: Nelson Peixoto

“Uma janela para o Céu”


@Versão 1.0 - março 2020.

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Texto para Montagem Teatral:
De: Nelson Peixoto

“Uma Janela para o Céu”


@Versão 1.0 - março 2020.

Em meados do século dezenove num panorama típico inglês, em cidade interiorana, um


jovem adolescente foge de um internato de rígidas disciplinas em busca do retorno à casa dos avós,
vivendo em abastadas propriedades rurais. Condenado ao isolamento e severas normas e métodos de
correção disciplinar a que fora submetido devido a sua facilidade em se comunicar com os mortos; ele
acreditava que, com os medicamentos, banhos e poções a que fora submetido, estar realmente curado.
Mas seu retorno ao seio da família poderia reservar-lhe profundas revelações, podendo até mesmo lhe
suscitar a dúvida de que jamais se curaria!
Envolta em clima de suspense e revelações gradativas, “Uma Janela para o Céu” é, com
certeza uma adulta e surpreendente montagem teatral que agradará ao mais simples apreciador até o
mais exigente em termo de cultura teatral.

Campo Grande – MS - 01 de março de 2020

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“Uma janela para o Céu”
Cenário essencial: uma sala com móveis antigos, predominando cores fortes.
Mostrando uma escada vindo dos quartos, piso superior, saindo na sala. Uma saída
para cozinha, uma porta de acesso da rua para o interior. Em caso de grupo amador,
pode-se substituir por um painéis coberto com panos que propicie efeitos de luz
“contra”. Móveis apropriados para a sala, arranjos, mas tudo sempre lembrando
coisas antigas e com certo ar rústico. Uma cadeira de balanço com um xale sobre si e
que misteriosamente balança de um lado ao outro como se alguém sobre ela estivesse.
Três cadeiras em estilo colonial.

Início!
/É noite. Chove muito lá fora e os relâmpagos percorrem o ambiente, trazendo raios
fortes de luz, seguidos de trovoadas amedrontadoras.
Batidas são ouvidas repetidas vezes à porta; batidas estas acionadas com antigas
gôndolas afixadas à entrada.
Permanece este ambiente cênico até o momento do início da peça. Depois de acionado
o último sinal para início do espetáculo, as batidas tornam-se mais freqüentes e
audíveis demonstrando a ansiedade da pessoa lá fora. A seguir ouve-se gritos de um
jovem rapaz/

Anthony: Abram a porta... vovó, por favor! Sou eu Anthony.. ..

/Os relâmpagos prosseguem. A chuva cai muito forte/

Anthony: /com voz um tanto rouca, demonstrando sua situação emocional/... Alguém, por favor!
Preciso de ajuda! /Mais quatro batidas na porta, com a mesma ansiedade/

/Acende uma luz no topo da escada denunciando que alguém despertou/

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/Novas batidas à porta/

Anthony: Vó Severiana, sou eu, Anthony! Abra a porta, por favor!...preciso de ajuda!
Alguém...Alguém me ajuda!

/Pequena pausa. A seguir voz do rapaz ecoa no espaço demonstrando sentimento de


dores/

Anthony: Preciso me acalmar...! Vovó deve estar dormindo... Estou melhorando!...

/Pausa. Ocorrem mais relâmpagos e trovoadas/

Anthony: Parece que a casa está abandonada!... Alguém em casa!?!...

/No topo da escada surge uma senhora aparentando aproximadamente setenta anos de
idade. Cabelos em forma de coque, grisalhos, um roupão de dormir (épico). Trás um
castiçal na mão e, ao aparecer no topo da escada, a iluminação torna o ambiente um
pouco mais visível. A Iluminação é sempre amena para demonstrar que não se trata
de luz elétrica a fornecer claridade.
A mulher desce as escadas vagarosamente, procurando se proteger para não cair e por
nenhum momento demonstra preocupação com os gritos do visitante. Sua voz é rouca
e segura/

Severiana: Já estou indo! Aguarde um instante!

/Desce as escadas. Os ruídos de chuva abrandam-se, porém, os relâmpagos


prosseguem. Ao chegar no final da escadaria: /

Anthony: /batendo mais algumas vezes na porta/ Preciso de ajuda... Alguém em casa!...Estou com
frio...!

/A velha volta-se para uma cadeira de balanço vazia, conversando com o suposto
marido/
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Severiana: Eduard, dormiste novamente nesta cadeira? Estás tão velho que nem mesmo o barulho das
batidas à porta te despertou... Devias ter atendido, afinal, tantos ruídos assim acabam por
despertar nosso querido Arthur! ... Parece a voz de Anthony... Louvado seja o Senhor, que
faz esta criança à uma hora desta, neste temporal?! (Volta-se para Eduard, Balança a
cabeça)... Tornaste verdadeiramente um velho imprestável e doente...

/A mulher dirige até um suporte, depositando o castiçal (iluminando um pouco mais o


ambiente). Aproxima-se da porta/

Severiana: Quem bate a esta hora?!

Anthony: Sou eu, vovó, Anthony!... (Entusiasmado por reconhecer a voz da avó)

/A mulher vacila por alguns instantes, volta em direção à cadeira, conversando com o
suposto marido /

Severiana: É Anthony...! (Visivelmente surpresa) É Anthony!...

/Abre a porta. Adentra Anthony com uma pequena valise de madeira contendo alguns
pertences. Seu figurino é épico: calça, camisa, jaqueta e paletó. Vestes desfeitas e
completamente molhadas. Tem algumas partes da roupa rasgadas e sujas de lama./

Severiana: Anthony! (Emocionada)

Anthony: Vovó.... (Em prantos, deixando cair pequena valise ao chão e abraçando a mulher) ...
Pensei que jamais voltaria para casa... Que jamais tornaria a vê-la...

Severiana: Ah! Anthony, porque bates a nossa casa a esta hora da noite em meio à tamanha
tempestade? Não devias estar no internato?

Anthony: Perdoa-me, vovó! Eu não suporto mais viver naquele local, longe de todos os meus.
Ademais, há quanto tempo não me mandam uma missiva sequer. Deixe-me ficar... por
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favor!...(Vacilante, caminha alguns passos, voltando-se para a avó)...Os problemas que
levaram vovô Eduard a me internar naquele lugar já não mais existem... estou curado... Eu
juro que estou curado...

Severiana: Fugistes do internato! (Concluindo com ela mesma) Sim, só podes ter fugido. O
Monsenhor não te permitiria a saída sem antes nos comunicar!

Anthony: Não, eu não Fuji. Consegui autorização do Monsenhor de St. Louis. Há muito havia
demonstrado interesse por meu pedido de retorno ao lar...

Severiana: Ah! Anthony, como podes trazer-nos tamanha preocupação; principalmente no estado em
que se encontra teu avô Eduard!

Anthony: Vovô Eduard?! (Confuso e ao mesmo tempo procurando controlar o corpo trêmulo pelo
frio)

Severiana: Vieste na carruagem de Santa Fé?

Anthony: Sim...!

Severiana: Então porque não te trouxeram até a alcova de Felício, onde poderias aguardar passar o mau
tempo? Depois ele mesmo te traria até aqui, evitando tomares toda esta chuva...

Anthony: Queria chegar logo. Não suportaria por mais tempo a ansiedade em vê-la novamente. Poder
ter a certeza que não estava sozinho no mundo... Não quero ficar sozinho, por favor!

Severiana: (Pondera por alguns instantes, depois fala um tanto irritada) Foi Jack, eu tenho certeza
que foi Jack, aquele velho imprestável quem te atormentou por toda viagem! Aquele
cocheiro infeliz... Toda redondeza reclama de sua língua maldita; mas o que podemos fazer
se sua carruagem é a única que atravessa com segurança essas estradas tortuosas!? O que foi
que ele te disse desta vez?

/ Anthony afasta-se visivelmente aterrorizado, limpa a face ainda molhada/


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Anthony: Não quero falar daquele cocheiro imundo... Ele mente... Mentiu o tempo todo! Durante a
viagem todos riam de mim... enquanto ele gritava lá de cima suas mentiras, bebendo uísque
de uma moringa suja, mascando fumo escaldante e cuspindo pra todos os lados! Por favor,
não me peça para falar mais dele...

Severiana: Não te importunes mais por aquele velho desgraçado! Jack é dessas pessoas que não
merecem muito os nossos comentários, basta uma breve pergunta: “Como está o Jack?” e
uma abreviada resposta: “Jack, Já se foi!”! /Diz ajeitando as roupas desorganizadas e
molhadas do neto//...Estás trêmulo e molhado! Precisas te recompor: um banho quente, um
chá com ervas do campo; te fará bem. Depois, contar-me-ás com detalhes como conseguiste
autorização para sair do internato... (Ajudando o garoto a retirar o paletó e jaqueta)

/Dirige alguns passos em direção à cadeira falando ao suposto marido/

Severiana: Eduard...Eduard...Ficarás aí, a dormir como se nada estivesse acontecendo, enquanto por
minha vez, estou a deparar com tamanha desventura!? É Anthony que chegou, nosso neto
Anthony! Não imaginas o que pode ter acontecido a este garoto...

/Surge Arthur com passos lentos. Veste roupas leves e claras. Sua face transparece
muita serenidade/

Severiana: Arthur! Oh, meu caro Arthur! /Voltando-se ligeiramente para o rapaz/ Perdoa-me, não
desejava despertá-lo de descanso tão merecido; mas é que temos uma visita inesperada...

Arthur: Não te importunes por mim, Sinh’ana! Ouvi os chamados do rapaz e desejei cooperar de
alguma forma...

Severiana: Deves repousar, por tua vez! Enfrentastes longa viagem para vir ter conosco! Porquanto,
trata-se de teu primo Anthony em mais uma de suas fugas do internato... (volta-se para
Antony) ... Anthony cumprimenta teu primo Arthur!

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/Anthony faz um aceno com a cabeça, cumprimentando o primo, voltando logo a
seguir a manter-se um tanto recuado/

Severiana: (Falando com Arthur) Anthony me afirmou estar melhor. O internato fizera-lhe profundo
bem. Ele disse que está curado. Tu ouviste?!

Arthur: Não. Mas acredito nele, afinal, o primo não teria motivos para mentir! /num breve sorriso/
Não é mesmo, Antony?!.. Sinh’Ana, conduzamos Anthony a um banho quente e refazente.
Ao amanhecer conversaremos!...

Severiana: Sim, com certeza! Preparar-te-ei um banho refazente e em seguida tomarás um bom caldo,
deves estar com fome também!

/Há uma pequena pausa de silêncio. Os ruídos da chuva e relâmpagos já não mais
existem/

Arthur: Anthony... /Soa a voz com tom de mistério/

/Anthony volta-se para o primo, que lhe sorri ligeiramente/

Arthur: Acalma-te, primo Anthony, acalma-te...!!!

/Uma música profundamente melancólica invade o ambiente. Os personagens


movimentam com certa lentidão, no ritmo que imprimir a música, entrecortado com
efeitos de ventos fortes, intermitentes. Severiana sai um pouco mais rápido devido a
sua seqüência cênica. Arthur também se retira. Anthony é o ultimo a sair e o faz
ainda mais lentamente./

/Diminui a iluminação do cenário principal. Severiana já deverá estar postada numa


posição do palco onde será montado um efeito de sombras para mostrar o banho de
Anthony conforme seqüências abaixo:
Seqüência 1: Ainda com Anthony se movimentando para sair de cena, a sonoplastia
diminui o volume da música principal, para ficar nítido o barulho da água que
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Severiana despeja na banheira com uma jarra de porte médio e, o faz, repetidas vezes.
Por fim, experimenta a temperatura, mexendo o líquido com a mão, ergue-se,
dependurando uma toalha a um cabideiro, ajeitando as roupas que Anthony vestirá
depois do banho (roupas estas que deverá ser de fácil vestimenta, sem perder as
características épicas e de aspecto caseiro; apropriadas a idade de quinze/dezesseis
anos do jovem. Saí do ambiente);
Seqüência 2: Surge Anthony e, com sua aparição, volta a sonoplastia anterior ao
volume do início da movimentação primeira. O rapazola expressa profunda desolação.
Deixa cair peça a peça de sua vestimenta, ficando apenas com a ceroula épica que usa,
retirando-a por último antes de colocar os pés dentro da banheira e deixar-se
escorregar para o seu interior. Vagarosamente começa a trazer a água até o rosto,
quando a sonoplastia é eliminada totalmente a fim de ouvir somente o ruído da água
ao ser tocada pelos movimentos do banho. Aos poucos o ruído das águas da banheira
vão se misturando com o pranto profundamente triste do rapaz, ao mesmo tempo em
que a música volta, como que a acompanha-lo em sua profunda melancolia. /

/Blecaute nesta cena paralela, enquanto abre-se iluminação na cena central - sala/

/ Severiana sentada de forma lateral, debruçada sobre o suporte da cadeira.


Arthur com um dos pés sobre um pequeno banco ou cadeira, de costas, de maneira a
evidenciar a calda do fraque que lhe cobre até abaixo dos joelhos.
A cadeira de balanço, misteriosamente, vai de um lado ao outro, sem ninguém estar
sobre ela/

Severiana: ... Trago comigo alguns pressentimentos! Temo pela permanência de Anthony nesta casa...

Arthur: Anthony é apenas um adolescente em busca do próprio reequilíbrio! É justo que deseje estar
com sua família... nós somos sua família!

Severiana: Precisamos providenciar o retorno de Anthony ao internato!

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Arthur: Sinh’ana, não sejamos precipitados! É melhor avaliarmos com cuidado o que vem nos
confidenciando, mantendo-nos receptivos em ouvi-lo no que ainda tem a nos dizer. Além do
mais, até quando acreditarias poder mantê-lo naquele manicômio!?

Severiana: Internato! (com voz firme) Eduard me assegurou tratar-se de um internato administrado
pelas rígidas normas de disciplina e formação moral do monsenhor de St. Louis. Jamais
mandaríamos uma criança de seis anos para um manicômio... apesar dos problemas que
apresentava. Onde já se viu? Conversar com os mortos tal qual os bruxos que,
merecidamente, povoaram as fogueiras de Espanha...

Arthur: /aproximando um tanto entusiasmado da mulher/ Poderíamos pensar na hipótese de


aceitares definitivamente transferir-se comigo para a cidade grande, providenciarmos
tratamento para vovô Eduard, prima Endora...!

Severiana: Estamos muito bem aqui no sítio! Não permitirei que afastem Eduard deste local que
significa sua própria vida... (Voltando-se para a cadeira falando ao suposto marido.
Anthony entra vagarosamente às costas de Severiana, fixando com receio as atitudes
da avó)...Eduard, diga para Arthur que jamais se afastará de nossa casa, de nossas
propriedades... somos felizes aqui! É certo que Endora precise de tratamento... Mas, podes
ministrar-lhe os medicamentos aqui mesmo, como vem fazendo e, com ótimos resultados!
Tenho percebido que ela está um tanto mais serena nestas últimas semanas...

Anthony: Vovó! /quase num sussurro/

Severiana: Anthony!... /Visivelmente surpresa/ Venha ter conosco, Anthony. Conversávamos também
a teu respeito. Tenho, por minha vez observado que esses dias pareceram te recompor o
ânimo e a aparência. Vejo-te melhor, mais corado e disposto!...

/Anthony caminha para o centro, procurando entender com quem a avó conversa na
cadeira vazia. Fixa a avó em silêncio e intrigado/

Severiana: ...Senta-te, Anthony, senta-te!

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Anthony: Conversas com vovô Eduard!?

Severiana: Não te admires que eu converse com teu avô, e não pronuncies o seu nome. Tu sabes o mal
que podes causar a ele...

Arthur: Anthony está apenas confuso, Sinh’Ana!

/Anthony caminha para frente, fixando o público/

Anthony: Vovô Eduard está morto... eu assisti ao seu funeral...Lembro-me muito bem daquela tarde
chuvosa de outono...O cemitério, as lápides frias... e a face de mamãe por entre a chuva
fina... (Pequena pausa. Volta lentamente a face para a avó, fixando-a com certa
perplexidade)...Tenho notado por esses dias que entretém conversações constantes com o
senhor meu avô...

Severiana: Teu avô está vivo! Não percebes que ele está aqui ou ainda só consegues distinguir os
mortos!? /Ergue-se da cadeira indo em direção do neto/ endemoniado, és
verdadeiramente um endemoniado! /Segura-o fortemente pelos braços/ Esqueceste os
motivos que fizeram teu avô internar-te naquele lugar? Sim, seu convívio com os
mortos...Tuas visões da desventurada de tua mãe, que mesmo depois de morta parecia
atormentar nossas vidas! Não bastando a desgraça que semeou pra todos nós... /Volta-se
mostrando para a cadeira de balanço/ será que não percebes que sua simples presença
alterou o estado de saúde de Eduard?

Anthony: Perdoa-me, vovó! Tens razão, não devo perturba-los!

Severiana: Então cala-te! Não deves pronunciar tuas premonições diabólicas... relembrar teus dias
atribulados de infância. Não procure agravar ainda mais o estado de saúde de teu avô,
principalmente agora quando parece aquiescer-se com tua presença novamente a esta casa...
/Severiana faz brusca pausa em suas palavras e num tom preocupado, volta-se para
Arthur/

Severiana: Arthur!...
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Arthur: Não te importunes, Sinh’Ana! Prima Endora está bem, repousa, um tanto inquieta, mas
repousa!

/Anthony deixa o corpo cair lentamente sobre uma poltrona. Severiana fixa o espaço a
sua frente de maneira hipnótica. Arthur mantém o olhar voltado para Anthony,
mantendo um leve sorriso nos lábios/

/Adentra Endora apresentando olhar fixo e fala descompassada. Não percebe a


presença de Anthony///

Endora: Mamãe? ... Mamãe?...

Severiana: (Com mais suavidade) Endora, minha filha, por que abandonas teu leito de repouso sem
comunicar-me?

Endora: Mamãe, ouço vozes diferentes aqui em casa. Temos alguma visita?

Severiana: Não, minha filha, trata-se apenas de Felício dando-me pareceres sobre a administração das
nossas propriedades...

Endora: Pareceu-me a voz de Anthony? Já há alguns dias ouço-o conversar pelos cantos... na
dispensa, no sótão e em meus passeios matinais ao pomar da casa grande... /Senta-se num
móvel do cenário com muita lentidão. A expressão de Anthony é de muita
perplexidade diante do comportamento de sua família. Afasta-se, encolhendo-se a um
canto/...Às vezes tenho medo! Não gostaria de estar novamente com ele. Prometa-me que
Anthony jamais sairá daquele internato... mesmo se disser estar curado...ele mente, mente
como mentia Matilda...

Severiana: Endora, minha filha... (com mais suavidade na voz)... Voltes para teu quarto. Deves
descansar. Arthur, teu primo, cuidará de ti!

Arthur: /Estendendo-lhe os braços/ Venha Endora! Conduzir-te-ei aos teus aposentos!


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/Pausa de silêncio. Arthur com os braços estendidos, aguarda Endora que vai em sua
direção. De repente a mulher pára, visivelmente alterada e perturbada/

Endora: Eu sei que ele está aqui...veio se unir a Ernandes para me destruir. Ninguém pode me
enganar, Anthony voltou para se vingar de todos nós.Todos sabem que eu não tive culpa; ela
mereceu o fim que teve!....

/De ímpeto aparece Ernandes de Embaús, fixando Antony com fúria, ao mesmo tempo
em que escarnece de Endora por sua crise neurastênica. Desaparecendo em seguida/

/Arthur aproxima de Endora, procurando retirá-la da sala/

Endora: Mamãe, ordene Felício para que coloque fogo no engenho de Bilbao... aquele local é
habitado por fantasmas e demônios...

/Arthur retira Endora da sala. Há uma pequena pausa de silêncio/

Anthony: Por que tia Endora tem-me tanta aversão?

Severiana: /Sentando-se a uma cadeira/ Endora nunca mais recuperou a sanidade. Desde os últimos
acontecimentos trágicos de nossa família. Vive de crise em crise, sem poder libertar-se do
passado... Às vezes é acometida de momentos de plena lucidez, brinca e se diverte como nos
bons tempos de juventude... outra vez, parece conversar com Ernandes de Embaús, que a
persegue tal qual um demônio sagaz!....

Anthony: Tia Endora conversa com os mortos quando em crises?

Severiana: (Exaltando-se repentinamente) Engana-te! Tua tia não conversa com os mortos. Quando
em crise revive os momentos atribulados que viveu em família e principalmente com
Ernandes, por isto pronuncia o nome dele. Queres, porventura, atribuir tua maldição a todos
nós? Engana-te, somente tu eras possuído pelo poder do maligno! E só ficarás nesta casa se
demonstrares estar realmente curado, como afirmas!
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Anthony: (Dirige-se para a avó, demonstrando um pouco mais de entusiasmo) Não deves te
preocupar! Durante esses anos de internato recebi medicamentos, banhos e poções
ministrados pelo monsenhor Carlos de Imbassaí; aquele mesmo que vovô Eduard confiou-
me a sua guarda. Ademais, as penitências e os votos de obediência ao Senhor, fizeram com
que desaparecessem todas aquelas visões diabólicas. Se desejares e autorizar-me poderei até
mesmo auxiliar na recuperação de tia Endora...

Severiana: Acreditas estar realmente curado!

Anthony: Pelas graças do Senhor!

/Ernandes torna a aparecer em cena fazendo Anthony estremecer. A velha mantém-se


fixando a frente, perdida em seus pensamentos e distraída pelo diálogo que mantinha
com o neto, sem perceber sua alteração emocional/

/Ernandes aproxima apontando-lhe o dedo, ameaçadoramente/

Ernandes: Mentes a esta velha céptica e imbecil. Diga a ela que estou aqui; que jamais irei abandonar
Endora...somos amantes e cúmplices em tudo!

Severiana: (Sussurrando indiferente a presença de Ernandes) ...Às vezes me sinto cansada por ter
que administrar tudo sozinha. Se pelo menos Eduard não estivesse tão abatido e doente... Já
cheguei a pensar na possibilidade de aceitar o auxilio de Arthur, teu primo, e transferir-me
definitivamente para Santa Fé, podendo estar perto de Venância, minha irmã, ela sim, não
pode se queixar da vida, tem uma família de ouro...

Ernandes: (Voltando-se para a cadeira que movimenta de um lado ao outro) Cala-te, velho
imprestável... teu poderio de coronel de latifúndio chegou ao fim!... isto, tosse, tosse até
pensar que vai morrer... (sorri e volta-se rapidamente para Anthony, colocando-o no
diálogo)...só ela pensa que o poderoso coronel está vivo, jamais admitirá que ele morreu...

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Severiana: Anthony, teu avô tosse muito; deve ser outra crise! Chame Arthur, só ele consegue acalma-
lo... (Exaltada e preocupada com o marido invisível. Indiferente a tudo que acontece a
sua volta)

Ernandes: (Diálogo com Eduard)...Sou um bastardo, sim! Agora posso dizer abertamente que sou um
bastardo, viciado em jogos e mulheres, saraus e regalias da corte! A morte não me furtou os
desejos e eles me queimam ainda mais intensamente o peito!...

Severiana: Deus meu! Seu avô está muito agitado...

Anthony: Vovó, fique calma, está tudo bem...

Ernandes: (Diálogo com Eduard) ..Eu não lhe devo nenhum respeito e consideração. Velho imundo...

Severiana: Preocupa-me quando ele entra nestas crises. Minhas pernas doem muito...não consigo me
levantar desta cadeira...

Ernandes: (Diálogo com Eduard) ...Aceitei a mão de tua filha Matilda, sim! Mas com o fim único de
apossar de parte das propriedades de meu pai que me eram de direito depois daquela
malfadado consorcio...só não imaginava que Matilda era igualmente uma rameira, vivendo
de esfrega com aquele maldito português! E olhe o que eles te presentearam... /mostrando
para Anthony/ Um neto bastardo.... que eu vinguei com a justiça de minha honra... eu e tua
filha Endora...sim, sim, as mãos dela também estão manchadas de sangue....

Severiana: ...Não suporto presenciar teu avô nestas crises intermináveis... /Angustiada/

Ernandes: (Diálogo com Eduard)..esta é a família honrada que construíste! Podre!... Uma filha
rameira, outra assassina e um neto bastardo! (Agressivo e exaltado)

Anthony: /Abraçando a avó e encostando a cabeça da mulher ao seu peito/ Tudo vai ficar bem...
Eu estou aqui...

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Ernandes: (Diálogo com Eduard)...Pensaste que Endora fosse honrada e pura?! Engana-te novamente,
era tão podre quanto à irmã. Nunca se conformou que Matilda tivesse casado comigo; era a
sua mão que deveria ser ofertada em primeiro lugar... era mais velha e mais prendada; no
entanto, este velho esclerosado... (mostrando para a cadeira) decidiu que Matilda, sim, se
casaria primeiro...

Anthony: /exaltando-se à medida que pressiona a cabeça da avó mais forte contra seu peito/ Pare,
pare com isto!.. por favor deixem-nos em paz!

Ernandes: (Diálogo com Anthony) ...Vou repetir mil vezes e muito mais. Atormentá-lo-ei até o
inferno se for preciso...

Severiana: Anthony, quem está aí?

Ernandes: (Diálogo com Eduard) ...Queres saber o que Endora fez às suas costas?!

Anthony: Ninguém, vovó... ninguém!

Ernandes: (Diálogo com Eduard) ...Não adianta tampar os ouvidos, você me ouve do mesmo jeito!
(sorri) Foi Endora quem me contou que Anthony não era meu filho...ele não se parecia nada
comigo...não acreditei...até que ela me induziu ir ao Engenho de Bilbao e pude ver Matilda
se abraçando com aquele português desgraçado...

Severiana: /esforçando para sair da cadeira e suster nas próprias pernas/ ...Preciso me levantar
desta cadeira. Todas as vezes que Eduard entra em crises perco as forças nas pernas... não
consigo me mover para ajudá-lo...

Ernandes: (sorri ironicamente fixando o público) o português Manuel de Linhares não se suicidou
como todos pensaram e nem Matilda caiu daquele cavalo por acidente... Eu e Endora
tramamos tudo. Eles tinham que morrer ...e devam ter morrido mesmo porque sumiram de
nossos olhos. Quem sabe devem estar no paraíso do pároco de Lisboa.... /Volta-se
bruscamente para Anthony, enlaçado ainda a avó/ ... E tu...pareces assustado? Não

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queres dizer a ela que estás me vendo? que falas comigo? (sorri com certa ironia) Agora
saberás de muitas coisas que eles te esconderam por todo este tempo...

Severiana: Anthony, teu avô está se acalmando! É estranho, às vezes penso que alguém o perturba...

Ernandes: Por que não dizes a ela que sou eu?...Mesmo se disser, ela não vai acreditar... pra esta velha
não existe nada além do funeral.

Severiana: Graças ao bom São Genaro, já posso sentir minhas pernas! Veja Anthony, Eduard já está
mais calmo.... (Indo em direção a cadeira) Vou chamar Arthur para ministrar-lhe as
poções.... (volta-se para o neto) Anthony, auxilia teu avô. (saindo).

/Anthony tampa os ouvidos/

Ernandes: Não tampes os ouvidos, Anthony! / Anthony tira as mãos dos ouvidos/ tu estás curado,
lembra? Já não possui o poder de conversar com os mortos! (Sorri com ironia) Não foi isto
que disse a tua avó? E, além do mais, eu sou teu pai, não era assim que me chamavas
quando criança? Nem tu mesmo sabias que eras um bastardo... (Pára por alguns segundos,
coloca a mão ao queixo)... Sabes, Anthony, mesmo sabendo que não eras meu filho, nunca
consegui te odiar...(sorri ligeiramente, indo para uma das saídas, volta-se para
Anthony) tu pareces muito com tua mãe: mentes...mentes sempre...e pretendes viver na
mentira, alimentar-te dela... só que ela não resiste por muito tempo ao sol escaldante e o
vento árido do tempo....!

Anthony: /sussurrando/ Deixa-me em paz. Tu não és meu pai, és o demônio tentando se passar por
ele....

Ernandes: Pobre Anthony...(Irônico e excessivamente calmo) Eu te vi na carruagem...

Anthony: (Responde aos gritos, Afastando alguns passos, nervoso) Estás mentindo...estás
mentindo!

Ernandes: O velho Jack conversa muito, não achas!?


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Anthony: Não... não! (aos gritos) Não quero ouvir mais nada de ti.... Cala tua boca maldita, seu
fantasma miserável. És tão desprezível quanto aquele velho porco e mentiroso!

Ernandes: Por que não quiseste acreditar no velho Jack, Anthony?

Anthony: Ele mentiu pra mim, mentiu o tempo todo! Velho imundo, não se cansava de repetir a
mesma coisa... repetia...repetia....repetia.../de maneira hipnótica: olhos fixos e fala
sussurrada, deixa-se cair suavemente de joelhos ao chão/

Ernandes: Por que condenar o pobre velho amante de um bom uísque e de uma boa tasca de fumo? Só
por que não tem bons modos cuspindo e gritando para todos os lados? ...As pessoas podem
se enganar, brincar com nossos sentimentos, querer se divertir... mas as pessoas também
dizem verdades, até mesmo alguém desprezível como Jack! (sorri, sumindo a seguir)

Anthony: (Quase aos sussurros) Ele quis convencer-me que eu ainda era um doente, desejou
enlouquecer-me, mas não conseguiu seu intento porque estou curado... eu sei que estou
curado!

/Efeito de iluminação com fade out - fade in. Música suave ou com tema sacro invade o
ambiente. Anthony está de joelhos, numa outra posição do palco, tentando orar.
Começa a perturbar-se, move a cabeça e seus lábios sussurram trêmulos/

Anthony: Mamãe!?... (conversando com ele mesmo)... o mesmo perfume... o perfume de minha
mãe...

/Ergue-se com certa dificuldade /

Anthony: Mamãe... eu sei que estás aqui! Sinto sua presença! (demonstrando ligeira alegria)

/Começa a surgir efeitos de fumaça e um túnel de luz se forma, Matilda surge com
expressões suave e terna, num leve sorriso. Anthony se emociona indo às lágrimas.
Tenta ir ao encalço da mãe, mas uma força parece impedi-lo/
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Anthony: Mamãe... há quanto tempo! Tiraram-me tudo, até mesmo o direito de estar contigo. Hoje
todos me condenam por acreditar que não morreste...

Matilda: (Emocionada) E não morri mesmo, meu filho! Velo por ti, a todos os instantes e tenho
acompanhado-te em todos os teus caminhos...

Anthony: Mamãe, por que me deixaste tão cedo?

Matilda: Nossa existência na terra é como as águas límpidas da nascente de um riacho; impedi-la de
seguir seu curso natural e podar-lhe o dom divino de fertilizar e multiplicar as bênçãos da
vida...

Anthony: Há quanto tempo não surgias em minhas visões. Pensei que tinhas abandonado-me, como
todos, naquela sela solitária do internato...

Matilda: Desde que elegemos como morada para nossos filhos, o próprio coração, é-nos impossível
abandona-los, seja qual for a situação! Se não te busquei de forma direta, era a fim de evitar-
te maiores padecimentos...

Anthony: Todos me condenam por conversar com os mortos! Crendo-me possuído pelo demônio.
Vovô Eduard condenou-me a viver naquele internato a peso de penitências intermináveis!
Todos fugiam de mim...com medo!

Matilda: Não os condenes, Anthony! Eles apenas não compreendem o que para ti é tão natural; por
tua vez ama-os intensamente e jamais ofenda ninguém, meu filho, a vida é tão passageira;
quando percebemos já passamos e, quem nos ofendeu sentirá, muitas vezes, saudades de
nosso silêncio...

Anthony: Mamãe, tenho tanta saudade de ti... gostaria de ir contigo!

Matilda: Por enquanto não, Anthony! Eles precisam de ti...

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Anthony: Vovó parece estranha: ora me trata com extremado carinho ora me agride com violência
temendo que eu ainda possa apresentar as crises de antes. Ao mesmo tempo ela parece
enlouquecida acreditando conversar com vovô Eduard todo o tempo... ele está morto, tu
sabes disto! Lembras que no enterro dele você me apareceu la no cemitério me acenando
com um lenço branco?!

Matilda: Tua avó Severiana e Endora estão muito doentes; precisam de auxílio...

Anthony: Primo Arthur tem cooperado muito...

Matilda: Sim, teu primo Arthur, é um bom rapaz e se preocupa com todos eles. Tu, por tua vez, deves
colaborar com ele....

Anthony: Como posso auxiliar?

Matilda: Ama, meu filho...

Anthony: Vovó Severiana, tia Endora e o fantasma daquele homem... todos parecem me odiar...

Matilda: E tu, o que sentes por eles?

Anthony: Não... eu não os odeio...

Matilda: (num sorriso) ... Então não te preocupes! Por tua vez, eleja o amor como teu principal
instrumento de cooperação e auxilia-os!

/O foco de luz sobre Matilda vai se desfazendo e Matilda desaparece/


Anthony: (Procurando pela mãe) Não vá ainda...Fique um pouco mais comigo! Juro que quando
apareceres novamente, ninguém saberá! Eles acreditam que estou curado, mas não quero me
curar, não vou me curar pois só assim poderei estar sempre contigo...

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/A música volta a invadir o ambiente.Anthony procura ainda pela mãe. Caminha
alguns passos e desanimado da procura, dirige-se a mesma posição de antes, buscando
a postura de oração anterior. Blecaute/

/Ao voltar a iluminação Arthur encontra-se em cena, mais ao fundo sentado ou


posicionado num móvel ou cadeira do cenário, enquanto Anthony anda de um lado ao
outro, durante o diálogo/

Anthony: ...Ela me condena por conversar e ver os mortos, por sua vez, passa o tempo todo falando
com vovô Eduard, que acredita conviver conosco... Vovó Severiana deve estar realmente
doente...

Arthur: Anthony, Sinh’Ana está abalada com todos os acontecimentos que abateram sobre sua
família...

Anthony: Mas que acontecimentos são esses que todos parecem querer ocultar de mim, já não sou
nenhuma criança.

Arthur: Tu sabes que nunca foste uma criança normal perante a concepção de teus avós; posso te
afirmar isto porque recebíamos as inúmeras cartas de tia Severiana à minha mãe em Santa
Fé; comungávamos, apesar da distância, os problemas e as dores que se abatiam sobre vós...

Anthony: (Sentando) Lembro-me perfeitamente do corre-corre daquele dia quando me disseram que
mamãe havia sofrido um acidente enquanto cavalgava e, que eu deveria, durante o tempo
que estivesse impossibilitada de zelar por mim, passar alguns dias no sítio vizinho, aos
cuidados de dona Eugênia, para gozar de alguns momentos de lazer junto aos seus netos.
Ninguém imaginava que eu sabia, de uma maneira estranha, mas eu sabia que mamãe tinha
morrido... e que sua morte não foi um acidente! Enquanto cavalgávamos rumo ao sítio
vizinho... eu vi... (Um tanto apreensivo)...Eu não queria ver mas, quanto mais fechava os
olhos, mais nítido se fazia para mim: o Senhor Manuel de Linhares caído ao chão; muito
sangue a sua volta e uma arma em sua mão inerte. Uma mulher gritava que ele se matara...
mas eu também sabia que ele não havia se matado... Senti um aperto enorme no peito, pois

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sabia que estaria perdendo alguém que me amava e protegia, bem mais que meu próprio
pai...

Arthur: Depois daqueles dias amargos quando a família procurava de alguma forma se recompor e
esquecer; ninguém poderia imaginar que tu irias ameaçar a todos confessando que
conversavas com os mortos...

Anthony: Por que me perseguiram tanto? Vovô Eduard impunha-me castigos intermináveis, tia
Endora por várias vezes surrava-me sem qualquer motivo, enquanto que Ernandes, meu pai,
evitava-me constantemente e, por várias vezes o vi embriagar-se na adega, gritando como
um louco que os demônios o perseguiam. (Pára de repente, volta-se para frente, fixando
o público)... Foram eles: Tia Endora e meu pai que exigiram de Vovô Eduard que eu fosse
mandado a um internato e que lá ficasse para sempre...

Arthur: Esqueças os dissabores do passado, Anthony! Transforme tuas mágoas em desejo de ajudar.
Se alimentares em teu coração os sentimentos nobres para com todos de tua família em
breve conquistarás dias melhores, ao passo que, se entregares aos ressentimentos,
candidatar-te-ás a esterilidade das próprias emoções...

Anthony: (Aproximando do primo com maior interesse) Algo me diz que tu sabes muito sobre
meus pais, minha infância e os fatos que culminaram com as desventuras que fizeram
desmoronar nossa família em todos os sentidos...

Arthur: Creio que sei um pouco mais que tu...

Anthony: Então fala-me do que sabes! (Exaltando-se)

Arthur: Saberás um pouco mais sobre tua família depois, quem sabe, poderás cooperar no
soerguimento de todos. Venha comigo...(Caminha para uma das saídas, depois ao
perceber que o primo vacila em segui-lo, volta-se, estendendo-lhe a mão)... Venha,
Anthony, não tenha medo... eu vim de Santa Fé, por solicitação da senhora minha mãe,
auxiliar os componentes desta família... Só agora compreendo que tu podes ser meu grande

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aliado para convencer tia Severiana e Endora a se transferirem definitivamente para Santa
Fé ou Porto de São Genaro e entregar para Felício a administração do sítio...

/Anthony, que se encontra do lado oposto ao primo, caminha em direção ao mesmo, e


enquanto ocorre o efeito intercênico de iluminação. Anthony e Arthur saem de cena e
ao voltar a iluminação Endora, Ernandes e Severiana já estão em cena, sentados em
cadeiras de estilo colonial e posicionados de forma bem visível para o público.
Expressão de Endora: Nervosa, inquieta na cadeira, esfrega as mãos a altura dos seios,
ficando assim até sua vez no diálogo. Expressão de Ernandes: irritado, impaciente e
com certa dificuldade respiratória. Expressão de Severiana: demonstra alheamento a
tudo, olhar longínquo e movimentos vagarosos ao voltar-se para os componentes em
cena/

/Música especial invade o ambiente/


/Seqüências que ocorrem de maneira encadeada: De repente um foco de luz é
projetado numa posição bem destacada do cenário, trazendo a imagem de uma janela
aberta (pode-se utilizar efeitos em datashow), a música é retirada abruptamente,
Ernandes move-se na cadeira como se estivesse levado um pequeno choque e um tanto
confuso, começa o primeiro diálogo/

Ernandes: ...Não fiz nenhuma objeção em aceitar o combinado entre o senhor meu pai e o coronel
Eduard Menfhis em consorciar-me com sua filha Matilda; apesar de sabê-la vivendo uma
vida mesquinha nas lidas do campo, era-me uma saída rápida para o acesso definitivo a
minha parte na herança da família. Sonhava com as regalias que poderia usufruir nos
inúmeros festejos da corte imperial, bem como nos cabarés refinados regados a vinho de
safra nobre e mulheres com muitos decotes. Mal eu imaginava que ali estava se fechando as
portas dos prazeres e regalias e dando início a minha desgraça e ruína. Casei-me, nutrindo
certa simpatia por Matilda com seus olhos tristes, mas misteriosamente amáveis. Porém eu
Jamais imaginei que...

Endora: ...Matilda mentia e continuava se encontrando às escondidas com Manuel de Linhares,


aquele português imprestável a qual papai acolhera dando-lhe guarida e confiança a ponto
de entregar-lhe a administração de parte das nossas propriedades. Foi por causa deste
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maldito romance que o senhor meu pai decidiu consorcia-la às pressas com Ernandes de
Embaús , um homem de fino trato e que poderia proporcionar a mim todas as regalias das
grandes províncias. Eu era a filha mais velha, era a minha mão que deveria ser dada em
primeiro lugar...mas por causa deles, Matilda e Manuel, eu fui relegada a segundo plano,
uma outra oportunidade, quem sabe!... Aproximei-me de Ernandes, conhecia suas
inclinações, seus sonhos e desejos; se o conquistasse poderíamos fugir para a cidade do
porto e lá sermos felizes...

Severiana: ... Eduard e eu percebíamos que nossa família, antes casta e conservadora, agora banhava-se
num mar de intrigas e traições. Endora perseguia a irmã, tornando sua vida um inferno; por
outro lado, Matilda procurava conciliar seu casamento numa luta interminável com os
impulsos que a levavam aos braços de Manuel de Linhares. Após seu casamento com
Ernandes de Embaús, estivera uma única vez, a sós com o capataz, numa de suas idas ao
engenho de Bilbao... e parece que o destino lhe fora cruel, o filho que colocou no mundo em
nada lembrava o marido...

Endora: ...Contei, contei sim. Ernandes precisa acreditar em mim...

Ernandes: ...Era meu filho! Anthony era meu filho. Que me provassem o contrário...

Endora: ...Perdi noites e noites de sono planejando. Era necessário forçar um novo encontro entre
Matilda e Manuel... apesar dele ter sido transferido por ordem do senhor meu pai para uma
de nossas propriedades mais distantes. (sorri um tanto perturbada) Pedi a Samuel, um
negrinho que servia a casa grande, que fosse avisar Manuel de Linhares para estar no
engenho de Bilbao na tarde do dia seguinte a fim de tratar dos assuntos pertinentes a
administração do Engenho Novo, que tratava-se de ordens do senhor meu pai; quanto a
Matilda, na tarde seguinte pedi ao mesmo negrinho que entretece o pequeno Anthony em
brincadeiras na beira do lago, para a seguir comunicar a minha irmã que o pequeno havia
afastado demasiadamente da casa grande, em direção ao engenho de Bilbao em companhia
do negrinho Samuel. Depois...

Ernandes: ...Endora avisou-me que Matilda estava novamente a me trair, que fosse até o Engenho de
Bilbao que certamente teria as provas que precisava. (Fica um tanto alterado) ...Eu os
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avistei juntos: Matilda e o maldito português. Pareciam nervosos, conversaram por alguns
instantes, depois despediram num breve abraço. Certamente estavam combinando novos
encontros...aguardei que ela se retirasse e então o alvejei com um único disparo. Fiquei ali
parado diante àquele corpo distendido...Desejei gritar, correr...acho que estava beirando a
loucura...Por que eu não evitei aquele ato selvagem?! Estaria eu arrependido?...Não! Endora
chegou logo a seguir e elogiou meu ato de bravura, abraçou-me, beijando-me os lábios e
sugerindo uma saída brilhante para seus planos de nos unirmos num futuro próximo...

Severiana: ...Densa noite começava a cair sobre nossas vidas. O suicídio de Manuel de Linhares, nos
arrebaldes do engenho de Bilbao trouxe a todos um profundo abatimento. Todos sabiam que
Matilda era culpada, mas o silêncio era o melhor caminho a seguir. Alguns dias depois,
Matilda fora encontrada morta...um trágico acidente quando cavalgava próximo ao lago de
Serra Negra. (Com mais altivez e um tanto alterada) Ela procurou o mesmo fim que o
amante; menosprezou a própria família, entregando-se a desatinos por um capataz rude e
inconseqüente...

/O foco da janela continua ativo. Um foco suave fica sobre Severiana, enquanto
Ernandes e Endora ficam sem nenhuma iluminação/

Ernandes: ...Ah! Fora impossível esquecer. Por mais me embriagasse...lá estavam eles...Matilda e
Manuel de Linhares transformaram-se em fantasmas a atormentar minha alma... eu os via
em todos os locais...ora gritavam aos meus ouvidos ora sorriam e levitavam sobre minha
cabeça. (Emocionado e ligeiramente exaltado) Ah! Onde os meus sonhos primeiros?....

Endora: ...(No mesmo ritmo emocional de Ernandes, continuando sua frase) ...Onde meus
desejos de felicidade?... Estaria condenada a loucura? Não, eu não ficaria louca! Fugiríamos
para Cidade do Porto. Matilda estava morta, quanto aos meus pais, estavam velhos e
decadentes, a morte não tardaria a consumi-los... mesmo que tivéssemos que mata-los, ali
não nos aprisionariam mais...
/Ocorre um silêncio brusco/
Ernandes: Anthony!?... Anthony!? Onde estará Anthony?...

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Endora: ...Anthony se parece muito com Matilda...seu jeito de falar, seu olhar... é como se ela usasse
o próprio filho para nos acusar...para afirmar que continua viva e estará sempre viva em
nossas consciências...

Severiana: (Mantendo sempre a postura segura e altiva) ...Era uma criança profundamente triste e
misteriosa. De repente passou a dizer que tinha visões da falecida mãe que parecia vir
confortá-lo em sua solidão... Sim, Anthony tinha a mesma maldição que a mãe: o poder de
se comunicar com os mortos!

Ernandes: ...Caro coronel Eduard Menphis...Anthony precisa de cuidados especiais. Tu como


responsável maior por nossa família deverá cuidar do destino deste menino... Não quero vê-
lo condenado pela igreja; antes tê-lo albergado em internato ou manicômios...sim,
manicômios... lá que devem ficar os loucos de toda sorte....os bruxos de todos os tempos!

/pausa de silencio/

Endora: Há quanto tempo estarei neste lugar? Às vezes sinto-me profundamente doente e cansada...

Ernandes: Onde estará Endora? Teria ela encontrado seu destino? (Sussurra)

/Suave túnel de luz se faz, surgindo a figura de Matilda e Manuel de Linhares. Ela
dirige-se para a irmã, enquanto ele vai à direção de Ernandes. Tocá-os com suavidade/

Endora: Quem és, bondosa senhora? Acaso já não te conheço de algum lugar?...

Matilda: Venha, te levarei para repousar!

Endora: Uma casa de repouso me seria de grande alento, mas não posso deixar minha mãe sozinha;
ela está muito doente e impossibilitada dos comezinhos afazeres...
Manoel: Há muito te espero meu amigo e agradeço a sublime harmonia da vida que possibilita-me
zelar por ti, nos preparando, com isto, para novas e futuras experiências juntos, buscando
reconciliar nosso passado e nossos corações!

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Ernandes: ...Tu te pareces muito com Manuel de Linhares! (sorri ligeiramente) Não poderia sê-lo; ele
está morto e sepultado!

Manoel: Sim, deixemos os mortos enterrar os seus mortos e com eles as mágoas e ofensas no jazido
da compreensão e entendimento do perdão que liberta e impulsiona para a luz!

/Entra música suave. Cria-se uma fotografia onde visualizamos: Matilda (em posição
de preces) ao lado de Endora, Manuel - Em posição semelhante a de Matilda - ao lado
de Ernandes. Desaparece o efeito de luz da janela. Severiana mantém o olhar fixo no
horizonte, sem qualquer alteração/

Severiana: Eduard?... Eduard?... Por que te emudeces?... Ah, Eduard! Não devias aceitar me abandonar
desta forma! Vivemos tantos anos juntos, nossas juras... nossas confidências... nossos
sonhos! (Pausa)... Não, eles não entendem os sentimentos que nos manteve unidos por todo
este tempo... (Suspira, enxugando as lágrimas que descem da face, sem alterar sua
altivez e austeridade natural)... Eles jamais conseguirão avaliar a dor de uma separação e
o vazio cruel e cinza... da solidão...

/Blecaute lento na cena/

/Enquanto decorrer o efeito de blecaute: saem todos os personagens, exceto Severiana.


Anthony sentado numa posição do palco (sua expressão é de alguém que se encontra
sozinho numa grande casa abandonada)/

Severiana: Arthur... Arthur! Por que te demoras tanto?!... Não vês que já é tarde; precisamos nos
recolher...

/Pequena pausa de silêncio. Adentra Arthur com uma bacia esmaltada nas mãos, uma
pequena toalha jogada ao ombro. Usa roupas épicas, próprias para os adolescentes:
bermuda abaixo dos joelhos, camisa, sobre-camisa e colete/

Arthur: Estás melhor a senhora minha tia?! (aproximando)

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/Enquanto Severiana fala o diálogo abaixo, Arthur põe-se a lavar-lhe os pés/

Severiana: Um pouco mais! Ainda sinto muita falta de teu tio! Eduard foi meu grande companheiro...
Sonhamos construir uma família e naufragamos num pesadelo de frustrações. Talvez a
morte tenha lhe sido um grande alívio...

Arthur: Acreditas mesmo que as pessoas morram?

Severiana: Os outros sim, mas quem amamos não! Eles nunca morrem em nossos corações....

Arthur: Não seria este sentimento uma prova intuitiva de que eles vivem?

/Pequena pausa. Suspira/

Severiana: Talvez...!

/Pausa de silêncio/

Severiana: (voltando-se lentamente para Anthony)... Anthony! (Com suavidade e voz rouca)

/Anthony não se move, indiferente/

Severiana: ..Não queres mais conversar com tua avó e com teu primo Arthur?!...(pausa) Acreditas que
teu primo Arthur esteja a te mentir?

Anthony: (Sem se mover. Fala com indiferença) Não, primo Arthur não tem motivos para mentir!
Neste instante lava teus pés!... É um gesto muito bonito... Mamãe certa feita se referiu a um
homem que lavou os pés de seus amigos!

Severiana: Como podes adivinhar-lhe o gesto se ao menos olhou em nossa direção!?

Anthony: Não sentes medo em viver nesta casa sozinha?!

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Severiana: Arthur me faz companhia!

Anthony: Se vês e falas com Arthur....!

/Arthur ergue-se, após ter secado o pé de Severiana, fixa a mulher e o primo por
alguns instantes, depois sai em silêncio/

Severiana: Desde que levaram Eduard para o hospital de Santa Fé, tenho me sentido muito só!

Anthony: Vovô Eduard te fazia companhia?

Severiana: Sempre foi meu grande companheiro!...

/Anthony ergue-se quase que abruptamente virando-se para Severiana. Sua respiração
torna-se ofegante, depois volta as costas para a avó, balançando as mãos e a cabeça,
num gesto característico de fúria, voltando-se novamente para a mulher/

Anthony: Como consegues alimentar-te de tamanhas utopias?! Vovô Eduard está morto, morto,
entendeste? Quando me enviaram para aquele internato maldito, lá eu recebi missiva de tia
Endora comunicando-me que ele havia morrido, prostrado numa cadeira de balanço. Como
se eu não soubesse, não tivesse ido ao seu funeral. Fazia questão de contar-me como fato
novo, demonstrando-me muito bem a demente em que se transformara. E sabe o que ela
disse naquela carta: que a causa da morte de vovô Eduard tinha sido desgosto; desgosto por
ter construído uma família doente: uma filha vadia, um genro bastardo e uma mulher
ensandecida! E sabes porque ele te afirmava louca? Porque tu, igual a mim, igual a minha
mãe... tu também falavas com os mortos... Sempre condenaste minha mãe, condenaste a
mim, sendo a primeira a incentivares minha prisão naquele manicômio disfarçado de
internato, enquanto por ti mesma, disfarçavas a maldição que jamais conseguiste botar
término... És igualmente uma louca... (Sentando-se numa cadeira, com expressões de
fúria, colocando uma mão no queixo, como que a aguardar um revide da avó)

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/Há uma pausa de silêncio. Severiana ergue-se da cadeira com muita dificuldade, após
ter calçado uma sandália de couro leve. Escora uma das mãos no suporte da cadeira,
depois dá alguns passos rumando para sair, quando Anthony volta a agredi-la/

Anthony: Mentes!...Tu também mentes. És uma mentirosa tanto quanto eu e minha mãe Matilda...

/Severiana volta-se vagarosamente para o neto, fixa-lhe os olhos, depois sua voz soa,
rouca/
Severiana: Sim, Anthony...eu também minto!

/Sai vagarosamente de cena arrastando as sandálias e ajeitando as enormes roupas que


lhe cobre o corpo/
/Blecaute/
/Ao retornar a iluminação Anthony encontra-se sentado na mesma posição e com a
mesma expressão de quem está sozinho numa casa abandonada. Trás ao colo um prato
estilo cerâmico com comida, uma colher à mão; colher esta que leva a boca
vagarosamente, sorvendo o alimento. Sua expressão é de quem enquanto alimenta-se,
navega em infinitas meditações. Fazendo mecanicamente os movimentos/

/Entra fundo musical: a mesma melodia utilizada para o banho de Anthony, na


primeira cena do enredo, agora será utilizada para o banho de Arthur, utilizando os
mesmos recursos cênicos/

/Diminui a iluminação do cenário principal, ficando suave foco sobre Anthony. A


música vai diminuindo, ficando próximo de zero para ficar nítido o barulho da água
que Severiana despeja na banheira com uma jarra de porte médio e o faz repetidas
vezes. Por fim, experimenta a temperatura, mexendo o líquido com a mão, ergue-se,
dependurando uma toalha a um cabideiro, ajeitando as roupas que Arthur vestirá
depois do banho (as mesmas roupas da última cena: bermuda abaixo dos joelhos,
camisa, sobre-camisa e jaqueta). Não haverá necessidade de arruma-las perfeitamente
ao corpo, pois o ator poderá faze-lo na seqüência cênica, quando saí do efeito de
sombras e entra em cena ativa com Anthony. Movimentação de Arthur após Severiana
ter preparado a água para o banho: A figura de Arthur surge no efeito de sombras e
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com sua aparição volta a sonoplastia anterior ao volume do início da movimentação
primeira. O rapaz despe peça a peça de suas roupas, em seguida coloca os pés dentro
da banheira e deixa-se escorregar para o seu interior. Vagarosamente começa a trazer
a água até o rosto, quando a sonoplastia é eliminada totalmente para ouvir somente o
ruído da água ao ser tocada pelos movimentos do banho. Aos poucos o ruído das águas
da banheira vão se misturando com o pranto profundamente triste de Anthony
sentado à cadeira. A música volta ao nível normal do início da cena. Arthur termina o
banho, ergue-se da banheira, seca-se com a toalha, vestindo a bermuda e primeira
camisa. Desaparece o efeito de iluminação cênica do banho, a música extingue-se e a
luz sobre Anthony se faz mais forte/

/Arthur aparece em cena ativa, ajeitando as roupas. Senta-se numa cadeira vestindo as
sandálias/

Arthur: Por que te deixas envolver em profunda melancolia!? Devias passear um pouco, ir à casa
grande; há frutos saborosos em todo pomar lateral. A convivência com Sinh’Ana parece
coloca-lo em profunda morbidez...

Anthony: O jantar já está servido. Vovó te aguarda... (esfrega ligeiramente o nariz) Desculpa-me não
tê-lo esperado, mas preferi jantar aqui...sozinho!

Arthur: Gosta da solidão, Anthony?

Anthony: De estar só!

Arthur: O que pretendes fazer? És um jovem cheio de vida! (pausa) ...Felício veio falar-me que
gostaria de convida-lo para auxiliar na administração do sítio; já que todos de nossa família
se foram e quanto a Sinh’Ana, creio que em questão de pouco tempo convencê-la-ei em
seguir comigo para Santa Fé... (Sorri ligeiramente) É claro que, o convite também se
estende a ti; gostaria muito que seguisse comigo para uma província maior, melhor que ficar
isolado nestas propriedades rurais afastadas de regalias que sua juventude requer. Por outro
lado podemos arrendar definitivamente a propriedade para Felício, é um homem justo e
honesto...(esfrega as mãos) ... Parece que vai esfriar!... Ontem mesmo recebi missiva
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carinhosa de minha mãe, anseia por meu retorno e reza muito para que Sinh’Ana vá morar
igualmente com ela...

Anthony: (Fixa o primo) Acreditas mesmo que podemos nos comunicar com os mortos?

Arthur: (Faz alguma pausa, olha fixo o horizonte, respira profundamente) ...O clero de Espanha
instituiu as fogueiras inquisitoriais acreditando fechar para sempre a janela para o invisível,
queimando os bruxos...

Anthony: E o que eles fizeram com as cinzas?

Arthur: Cometeram um grande erro não lhes dando maiores atenções... as cinzas se espalharam com
o vento, multiplicando os bruxos aos milhares... (Num breve sorriso).

Severiana: (Soando sua voz rouca, vinda das coxias)... Arthur, o jantar já esta sobre a mesa....

/Arthur ergue-se da cadeira, vai até Anthony. Recolhe o prato e a colher, gentilmente
do colo do primo, caminha vagarosamente para sair, dando dois ou três passos. Pára,
volta-se novamente/

Arthur: Anthony! (quase num sussurro) ... Sinto suave perfume... o mesmo perfume que irradiava-
se pelo ambiente quando dizias conversar com tua mãe...

Anthony: Eu mentia... Desejava conversar com ela, tê-la novamente ao meu lado; por isso as visões...
fruto de minha imaginação... de meus mais profundos desejos! Aquelas visões cessaram
todas desde o primeiro instante em que pisei naquele internato...

Arthur: Acreditas mesmo na eficácia dos métodos utilizados por Monsenhor de St. Louis aos
internos especiais daquele manicômio?

/Anthony ergue-se da cadeira abruptamente indo para a outra extremidade e fixa o


primo com expressões alteradas/

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Anthony: Nunca mais eu conversei com os mortos! Estava doente, mas agora estou totalmente curado.
Aquele homem estranho, Minha mãe, meu avô Eduard.... todos estão mortos... e os mortos
não existem... (Começa a se emocionar, quase a lágrima)... Eu quero ter uma vida
normal... Eu sou uma pessoa normal... por que não me deixam em paz?!

Arthur: Acalma-te, primo Anthony, acalma-te! Na verdade ninguém te persegue, tu que te sentes
perturbado com o que nos parece natural... (intencionando aproximar do primo)

Anthony: Não te aproximes de mim!

Arthur: Sou teu primo e, acima de tudo teu amigo! (Com voz enigmática) Nós nunca te deixaremos
sozinho, Anthony...

Anthony: Eu quero ficar sozinho... Preciso ficar sozinho. Será que não me entende?

/Faz-se pausa de silêncio, Arthur fixa em direção ao público, falando consigo mesmo/

Arthur: A solidão é um dos poucos momentos em que estamos plenamente acompanhados de nós
mesmos... É quando percebemos que nem sempre somos nossa melhor companhia. Ás vezes
é preferível estar com alguém que ouvir o discurso interminável da consciência esmiuçando
o real!

/Entra uma música suave. Enquanto isto Arthur sai de cena, levando prato e colher/

/Anthony começa a sentir frio, caminha de um lado ao outro, esfrega as mãos, assopra
sobre as mesmas, abraça o próprio corpo, sentindo-se trêmulo. Dirige-se até uma
poltrona do cenário, vai se ajeitando como se estivesse num banco de praça aberto ao
relento e procurando ocultar-se do frio. Vai se encolhendo, se ajeitando. Enquanto ele
faz estas expressões efeito sonoro de chuva com relâmpagos e trovões invadem o
ambiente/

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/A iluminação entra em fade-out e fade-in mais longo e demorado consumando num
blecaute total, quando Antony sai de cena. Os mesmos efeitos de iluminação e
sonoplastia da abertura voltam a predominar: chuvas, trovões e relâmpagos/

/Batidas são ouvidas repetidas vezes à porta de entrada, demonstrando a ansiedade


da pessoa lá fora. A seguir ouve-se gritos desesperados de uma mulher/

Sara: Abram a porta... por favor! Preciso de ajuda... ..

//Os relâmpagos prosseguem. A chuva cai muito forte./

Sara: /com voz um tanto rouca, demonstrando um desgaste em sua situação emocional/...
Alguém, por favor!... Socorro!

/Mais quatro batidas na porta, com a mesma ansiedade/

/Acende uma luz no topo da escada ou num local restrito do cenário denunciando que
alguém despertou/

/Novas batidas à porta/

Sara: Abram esta porta, por favor!... Alguém...alguém me ajuda!

/A voz expressa sentimento de dores/

Sara: Preciso me acalmar...! Devem estar dormindo... ja me sinto melhor, mas não posso
continuar aqui fora... eles precisam abrir a porta!

/Pausa de diálogos. Ocorrem mais relâmpagos e trovoadas/

Sara: Parece que a casa está abandonada!...(refletindo) Alguém em casa!?!... (grita)

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/No topo da escada ou numa das entradas do cenário surge Severiana, trás um
candelabro á mão, e, ao aparecer em cena ilumina um pouco mais o ambiente,
tornando a caixa cênica mais visível para o público. A Iluminação é sempre amena
para demonstrar que não se trata de luz elétrica a produzir melhor claridade.
A velha aparece no topo da escada munida de um castiçal. Passos lentos e, por nenhum
momento, demonstra preocupação com os gritos da visitante, sua voz é rouca e segura/

Severiana: Já estou indo! Já estou indo! Aguarde um instante! (Descendo as escadas)

Sara: Preciso de ajuda! Alguém em casa!?...estou com frio! (Voz trêmula)

/Severiana chega ao fim da escada, caminha com dificuldade como a arrastar as


cansadas pernas, rumando em direção a porta, onde neste instante ouve-se mais três a
quatro batidas. De repente ela se volta para a entrada oposta, como a adivinhar a
entrada do neto alguns instantes depois e, para onde ela fixa o olhar surge Anthony,
vestido de pijama, fixando a avó com olhar suplicante e cheio de medo, respiração
ligeiramente ofegante como se tivesse andando apressadamente/

Anthony: Não abrirás esta porta! Prometa-me que não abrirás!

/A mulher caminha até um suporte, colocando o castiçal. Depois volta-se para o neto.
O efeito de chuva forte diminui, ficando apenas os ruídos de chuva fina com esparsos
relâmpagos/

Severiana: (Com voz exaltada, aproximando do neto) Anthony... (agarrando-o pelos braços) Por
que você não me diz a verdade? Vamos, Anthony! Até quando acreditarás alimentar-te de
mentiras? Confessa-me que ainda vês e conversa com os mortos, que temes uma nova crise
a cada instante...

/Aparece Arthur repentinamente/


Arthur: Sinh’Ana! (com voz carinhosa) É preciso que compreendamos Anthony!

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Severiana: Ele deve confessar perante todos nós! Não podemos permitir que continue pensando poder
convencer-nos de suas mentiras!

/Mais algumas batidas na porta e a voz sofrível da mulher/

Sara: ...Estou ferida, preciso de ajuda!

Arthur: Por que te exaltas tanto? Anthony quer apenas que não abramos a porta...

Severiana: Por que, Anthony? /com voz firme/

/Anthony emudece fixando à frente. Severiana agarra-o pelos braços, sacudindo-o


fortemente/

Severiana: Vamos, Anthony, diga porque não queres que eu abra a porta?

Anthony: Jack! (sussurra)... Porque Jack mentiu para mim...

/Severiana para de repente, soltando os braços do neto/

Severiana: Esqueça aquele velho desgraçado! Não quero que fales dele nunca mais e não me interessa
suas mentiras! (Exaltada)

Arthur: O que te disse Jack naquela noite, Anthony? (com suavidade)

Severiana: (Procurando evitar que Anthony fale) Não deves ficar a repetir mentiras de um velho
demente, Anthony!

/Anthony caminha para frente, um tanto trêmulo, vacilante com as palavras. Arthur
leva as duas mãos a altura dos lábios, num gesto natural, volvendo o olhar para o alto.
Severiana permanece tensa, levando as mãos à boca, apavorada/

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Anthony: (Com voz vacilante e um tanto trêmulo) ...Fazia já algum tempo que não recebia
notícias... nenhuma carta, um recado por algum cocheiro. Anos e anos naquele internato...
Precisava fugir, voltar para casa. Roubei algumas moedas destinadas a manutenção do
internato, pegando a primeira carruagem pra São Vicente...

/Surge o efeito de luz formando uma janela/

Anthony: (Confuso, procurando se recordar) ...Quando na carruagem, vínhamos em quatro pessoas:


uma senhora de meia idade, um senhor que se identificou como seu esposo, uma garota com
aproximadamente dez anos que logo deduzi ser a filha do casal, eu e o cocheiro que foi logo
se apresentando como o velho Jack... (nervoso) ... Ele conversava muito, gritava lá de
cima, mostrando-nos a paisagem! Sua voz era irritante... falava o tempo todo... Começou a
chover forte, mas deduzi que estávamos próximos...ele quis saber qual o meu destino...

Severiana: (Exaltada e nervosa) ...Ele mentiu quando falou de nós, eu sei que ele te mentiu. Hei de
destruí-lo... aquele verme maldito!

Anthony: ...Eu disse que era neto da família Menfhis... de Eduard Menfhis... que eu era Anthony
Menphis... ele riu.. ele ria o tempo todo... e disse-me que...todos...

Severiana: Cala-te! Não blasfemes contra tua própria família. Acaso desejas enlouqueceres também?

/Um foco de luz começa vir forte sobre Arthur. A cena é tensa/

Anthony: (Visivelmente exaltado e falando quase em lágrimas) Ele bebia seu uísque nojento,
mascava e cuspia para todos os lados... (Bastante exaltado, quase aos gritos) Gritou que eu
deveria voltar de onde vim, que todos, que todos estavam mortos. Todos!

/Severiana solta um gemido profundo de dor, deixando-se cair ao chão, num pranto
convulsivo/

Anthony: Eu não acreditei; ele estava mentindo. Pedi que parasse para que eu descesse. Ele gritou que
me devolveria ao internato, donde eu nunca deveria ter saído. Esperei que diminuísse a
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marcha e nunca curva eu saltei. Eles gritaram, tentaram me pegar de volta à carruagem, mas
chovia muito e já era noite alta. Corri, queria chegar logo até aqui para ter certeza que
aquele velho imundo mentira...

/Anthony caminha alguns passos. Fixa a avó caída ao chão, inconformada, volvendo o
olhar para o público, quase de maneira hipnótica/

Anthony: Só agora compreendo que não estou curado... que nunca me curei... (Caminha
vagarosamente até a cadeira, postando-se em expressão de profunda solidão,
sussurrando consigo mesmo) Estou sozinho... Sozinho nesta casa abandonada... Tenho
medo de não poder mais vê-los... (Ajunta as pernas, abraçando-as).

Severiana: Eu não quero morrer...eu não quero morrer! (aos prantos).

/Anthony fixa a frente e continua em quase sussurros/

Anthony: ... a morte não existe! Tu vives...e viverás sempre!

/Música suave invade o ambiente/

Arthur: (Com voz suave, sob um foco azul muito tênue) Sinh’Ana, Anthony tem razão... estou
aqui há quanto tempo esperando o teu despertar, contando com a colaboração de inúmeros
outros corações que trabalham a fim de despertar os que dormem além do túmulo! Por que
não aceitar a realidade e abraçar definitivamente os corações que te amam em silêncio,
aguardando respeitosamente o teu despertar para a vida plena e imortal...?

/Matilda adentra num leve sorriso/

Matilda: Mamãe!

Severiana: Matilda! Novamente as visões... Oh, Deus meu, viverei atormentada para sempre!?

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Anthony: (Perplexo, soltando as pernas) ...Onde está minha mãe?... mamãe? estás aqui!? Não
consigo vê-la! Mas ainda posso sentir teu perfume...(olhando ao redor e até mesmo em
direção de Matilda sem percebe-la)

Arthur: Sinh’Ana, morreste para o mundo, mas não morreste para a vida! Venha, nós te amamos!

Severiana: Como vieste me socorrer, a mim que sempre te persegui dando predileções a desditosa de
tua irmã, acusando-te culpada por todas as nossas desgraças...?

Matilda: Esqueças o passado e as mágoas! Guardemos apenas as luzes do perdão que registramos em
nossos corações no mundo das experiências...

/A música suave envolve o ambiente. Enquanto Arthur enlaça Severiana com carinho,
sendo seguido por Matilda, saindo. Anthony se inquieta por todos terem desaparecido
de seus olhos/

Anthony: Vovó?... Arthur?... (procurando pelos mesmos, estes estão à sua frente, saindo, mas sua
visão não mais os alcança)... Eu não consigo vê-los mais... (procurando recordar e
voltando a pronunciar quase aos sussurros) ...Sim, Jack também falou que esta casa
estava abandonada há anos... Estou sozinho ... meu Deus! Não... não vou voltar para aquele
manicômio... eu não sou louco... não quero ficar naquele lugar...

/Volta os efeitos de chuva e alguns relâmpagos. A moça volta a bater à porta,


chamando/

Sara: Abram a porta.... Ajudem-me...Vejo meu corpo ensangüentado à distância... Ah, Meu Deus!
Estarei ficando louca?...Não posso acreditar...Eu estou morta!... Abram esta porta, alguém
me ajude...por favor! (Em gritos entrecortados de angústia, dor e medo).

/Novas batidas. Anthony tampa os ouvidos por várias vezes, procurando não ouvir. De
repente estaca-se, abrindo ligeiramente os braços, vedando a porta de entrada/

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Antony: Não...ninguém vai abrir a porta! (enxugando as lágrimas dos olhos e o nariz ao mesmo
tempo)

/Aparece Arthur de ímpeto /

Arthur: Anthony... Por que não queres abrir a porta? Acreditas que, realmente alguém bate à porta?

Anthony: (Vacila)... Sim, eu ouço alguém chamando!

Arthur: Então me permita abri-la, Anthony!

Anthony: Não! Não precisa que tu abras. Eu... eu mesmo abrirei a porta! (rumando em direção a
porta)

Arthur: Anthony...

/Anthony volta-se para o primo, que vacila numa pequena pausa/

Arthur: A moça que bate à porta também saltou de um veículo em velocidade...

Anthony: Como?

Arthur: Sim, Antony, Só que ela... olhou para trás!

/Música de suspense. Anthony paralisa, com os olhos fixos a frente e os lábios


ligeiramente entreabertos, envolto na mais profunda surpresa e perplexidade/

/A chuva e os relâmpagos invadem o ambiente. Algum tempo depois sai do interior da


casa um homem e uma mulher. Agem como se estivessem saindo de uma reunião
mediúnica. Tiram do pequeno armário guarda-chuvas, cruzando por Anthony
estático no meio do palco, ignorando-o completamente. Ajeitam as capas de chuvas/

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Helena: Apesar do mal tempo com esta noite chuvosa, a sessão mediúnica da noite de hoje foi muito
proveitosa, não é mesmo Mauro?

Mauro: Graças a Deus! Conseguimos juntos com os bons espíritos, cooperar com o esclarecimento
de vários irmãos desencarnados!

Helena: (Suspira profundamente colocando as mãos no peito em respeitosa atitude de


contemplação) A mediunidade com Jesus é, e será sempre, uma janela para o céu! Boa
noite, Mauro! Fecha as janelas e apague as luzes, por favor!

Mauro: Acho que a chuva já está passando!

Helena: Venha, te dou uma carona em meu guarda-chuvas até seu carro! (sorrindo ligeiramente)

Mauro: Obrigado, Helena!

/Os dois saem de cena - a musica suave mixa-se com efeitos de suaves de chuva fina. A
iluminação vai restringindo a figura inerte de Antony estático, no meio da caixa cênica
e por entre o blecaute lento que vai se fazendo ainda ouvimos, o casal se despedindo a
distancia, lá fora/

Helena: Até a próxima sessão, meu amigo, tenha uma boa semana!

Mauro: Pra você também, Helena! tenha uma boa noite e até a próxima sessão!

/Ouve-se o ruído de batida de porta de automóvel, logo após um veiculo em movimento


se afastando indo-se à distancia/

Fim.

Personagens: (Características) - As indicações de idade dos personagens é apenas para auxiliar o ator a
compor o personagem, não havendo necessidade do mesmo ter a idade indicada.
 Severiana = Aproximadamente setenta anos, voz rouca e firme.
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 Arthur = O texto sugere um rapazote entre 17 a 19 anos. A montagem original foi feita com
ator aparentando idade entre vinte a trinta anos. Sereno, equilibrado e às vezes enigmático e
misterioso.
 Anthony = Idade entre treze a quatorze anos.
 Matilda = Idade entre 40 a 50 anos. Serena e equilibrada.
 Endora = Idade entre 40 a 50 anos. Perturbada, neurótica. Ora apresenta calma, ora
extremamente irritada.
 Ernandes de Embaús = Idade entre 35 a 40 anos. Irônico, às vezes agressivo ou visivelmente
desequilibrado.
 Manoel - Idade entre 35 a 40 anos. Sereno, equilibrado.
 Helena - Médium em aparição na cena final.
 Mauro - Médium em aparição na cena final.
 Sara = voz de uma atriz em off.

Espetáculos Teatrais Espaço SAE - Rua Laguna, 83 - Cabreúva - Campo Grande - MS. Contato > E-
mail: ndesouza25@gmail.com ou espacosae@gmail.com
Autor: Nelson de Souza Peixoto. - CP/DRT 0009813/MS.

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