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O DEBATE ACERCA DE PESQUISAS ENVOLVENDO SERES HUMANOS NO QUE

TANGE A GRUPOS VULNERÁVEIS E A SUA NORMATIZAÇÃO NO DIREITO


BRASILEIRO.

THE DEBATE ABOUT RESEARCH INVOLVING HUMAN BEINGS WITH


REGARDS TO VULNERABLE GROUPS AND THE STANDARDIZATION IN
BRAZILIAN LAW.

Larissa Barreto Brito Bastos*


Lívia Sabino**
Márcia Correia Chagas***
RESUMO

Com os avanços tecnológicos o conhecimento científico passou a ter mais prestígio e poder.
Diante disso, as pesquisas científicas, consequentemente, também adquiram espaço, haja vista
que seriam o exercício da ciência na aquisição de conhecimento, com a figura do médico-
pesquisador em grande estima. O problema é que muitas vezes ocorria a submissão do paciente,
que deveria ser o sujeito da pesquisa, ao processo dela, ferindo a dignidade daquele em prol do
conhecimento, que muitas vezes era usado para mascarar desrespeitos à autonomia do sujeito
da pesquisa. Tais casos desdobraram-se ao longo da história, com ênfase nos episódios
ocorridos na época da Segunda Guerra Mundial. Com os relatos, que, apesar de terem ganhado
mais espaço no Tribunal de Nuremberg, não pararam de ocorrer a partir daquele momento,
desta vez com outras vítimas, mas sempre pertencentes a grupos vulneráveis, tornou-se cada
vez mais importante a implementação de balizas éticas e jurídicas no âmbito da pesquisa. O
presente artigo busca tratar das pesquisas envolvendo seres humanos, com ênfase na
vulnerabilidade do paciente, em uma perspectiva histórica até a culminação de diretrizes
jurídicas regulamentando o assunto, com leis apontando a direção da atuação médica e a
regulamentação do consentimento livre.
Palavras-chave: Pesquisa. Grupos vulneráveis. Bioética. Biodireito.

ABSTRACT

With technological advances, scientific knowledge has gained more prestige and power.
Therefore, scientific research, consequently, also acquires space, given that they would be the
exercise of science in the acquisition of knowledge, with the figure of the physician-researcher
in great esteem. The problem is that often ocurred the submission over the patient, who should
be the subject of the research, injuring the dignity of that person in favor of knowledge, which
was usuallly used to mask disrespect for the research subject's autonomy. Such cases have
unfolded throughout history, with an emphasis on episodes that took place during the Second
World War. With the reports, which, despite having gained more space in the Nuremberg Court,
did not stop occurring from that moment on, this time with other victims, but always belonging
to vulnerable groups, it has become increasingly important to implement ethical and legal
beacons within the research.This article seeks to address research involving human beings, with
an emphasis on the patient's vulnerability, from a historical perspective until the culmination of

_____________________________
*Bacharel em Direito pela UFC – Universidade Federal do Ceará. E-mail: larissabritobastos@gmail.com
**Bacharel em Direito pela UFC – Universidade Federal do Ceará. E-mail: betavianna@hotmail.com
***Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Professora adjunta da Universidade
Federal do Ceará – UFC.
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legal guidelines regulating the subject, with laws pointing the direction of medical practice and
the regulation of free consent.
Keywords: Research. Vulnerable groups. Bioethics. Biolaw.

1 INTRODUÇÃO

Com o avanço da ciência médica e da tecnologia, a pesquisa e a experimentação


ganharam, ao decorrer da História, mais espaço e poder, criando o paradigma de pôr a natureza
à serviço da ciência por meio da experimentação (Barbosa et al, 2011).

A posição do cientista e do pesquisador ganhou prestígio perante a sociedade frente


ao senso comum, que passou a ser substituído pelo científico, que, dotado de certeza por conta
de sua testabilidade e sistematicidade, passou a ter maior credibilidade (Bittar, 2016). Sobre
isso, DINIZ (1988, p. 16), afirma que “em oposição ao saber vulgar, que faz constatações da
linguagem cotidiana, a ciência é um saber metodicamente fundado, demonstrado e
sistematizado. A sistematicidade é o principal argumento para afirmar a cientificidade”.

DINIZ explana também (1988, p. 16):

O conhecimento vulgar, por sua vez, não decorre de uma atividade deliberada; é
mesmo anterior a uma reflexão do pensamento sobre si mesmo e sobre os métodos
cognitivos. É um saber parcial ou fragmentário, casuísta, desordenado ou não
metódico, pois não estabelece, entre as noções que o constituem, conexões, nem
mesmo hierarquias lógicas.

1.1 Nazismo e experimentos em humanos

A busca por conhecimento e por maior evolução científica, juntamente à falta de


balizas éticas e morais, e, durante o século XIX, à influência da crença da “superioridade
ariana”, levou a pesquisas com seres humanos degradantes à sua dignidade (Lott, 2005). Por
acreditarem ser uma raça mais elevada, alemães se utilizavam de vidas judias como se
descartáveis fossem, pautando-se em permissividade e apoio às ideologias nazistas.

ALVES e TUBINO, (2006, p. 27) nos fornecem alguns exemplos de aviltantes


experimentos aos quais os judeus foram submetidos:

Foram cerca de trinta experimentos diferentes, evidentemente sem o consentimento


das vítimas, que provocaram dor intensa, mutilação, deficiência permanente e morte.
No campo de concentração de Dachau, por exemplo, os prisioneiros foram submetidos
a uma pressão de ar comparável à encontrada a 15.000 metros de altitude, na tentativa
de determinar quão alto um piloto alemão poderia voar e sobreviver. Eram imersos
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em água gelada ou deixados na neve, sem roupas, por nove a 15 horas, na pesquisa de
um método de tratamento para soldados expostos ao frio e ao congelamento.

Esses experimentos ocasionaram a morte e, quando não, a deterioração da saúde


física e mental de tais pessoas consideradas de raça inferior pelos nazistas (Guerra, 2006). Tais
atrocidades culminaram, ao final da Segunda Guerra, com o Tribunal de Nuremberg, no qual
chefes nazistas por trás de tais “pesquisas” foram julgados e condenados por meio da corte
internacional. O Código de Nuremberg, de 1947, foi elaborado por médicos buscando auxiliar
os juízes do Tribunal de Nuremberg nos julgamentos dos crimes cometidos pelos médicos e
oficiais nazistas nos campos de concentração (Mariscano et al, 2008).

1.2 A discussão acerca do tema

Entretanto, o debate gerado com a exposição do horror da Segunda Guerra não se


encerrou no Tribunal de Nuremberg. Em 1964, Associação Médica Mundial (World Medical
Association) aprovou a Declaração de Helsinque, codificação considerada de maior
abrangência que a de Nuremberg (Alves e Tubino, 2006).

Tais normatizações são essenciais para balizar as atitudes médicas. Apesar do


aumento do debate em relação ao assunto, atrocidades em pesquisas envolvendo seres humanos
continuaram a acontecer, dessa vez com outras vítimas: com o passar dos anos, a população
vulnerável à época da 2ª Guerra já não seria mais a mesma (judeus), sendo as vítimas de tais
procedimentos médicos de pesquisas imigrantes, detentos, pessoas pobres e incapazes, ou seja,
grupos político-econômico e socialmente vulneráveis.

LOTT (2005) elenca populações consideradas vulneráveis e exemplifica, em casos


concretos, as experiências realizadas com os mesmos, que incluem, por exemplo, o estudo de
Tuskegee sobre sífilis, pesquisa ocorrida entre 1932 e 1972, na qual se examinou os efeitos da
doença em 600 negros – 399 tinham a doença e 201 não a tinham –, e na qual nenhum dos
participantes foi informado do verdadeiro propósito do estudo, sendo induzindo os a acreditar
que estavam recebendo tratamento adequado.

A partir de tais explanações é possível vislumbrar a importância do compromisso


do pesquisador com a prática ética e de balizas normativas à atuação médica, que, no decorrer
da História, mostrou-se suscetível a falhas, principalmente na dimensão ética.
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2 JUSTIFICATIVA: A PROTEÇÃO DEVIDA A GRUPOS VULNERÁVEIS E A ÉTICA


MÉDICA FRENTE À BUSCA PELO AVANÇO CIENTÍFICO

2.1 A própria relação pesquisador-sujeito da pesquisa

É certo que, por possuir o conhecimento técnico-científico, o pesquisador pode ser


influenciado a sujeitar o paciente a uma posição hierárquica subalterna. Assim, comenta
GUIMARÃES, SPINK e ANTUNES (1997, p. 02):

faz-se necessário discutir a natureza da relação que se estabelece entre pesquisador-


pesquisado e a possibilidade de compreensão do sujeito. Parte-se do princípio de que
a situação de pesquisas envolve o contato entre o pesquisador (incluindo nessa
instância o problema da pesquisa, metodologia, etc.) e o sujeito pesquisado.
Inevitavelmente, isso implica num estabelecimento de relações que, nesse caso
particular, são baseadas em condições desiguais e, mesmo, hierarquizadas. O domínio
do conhecimento científico impõe uma desigualdade de condições a priori entre
pesquisador e sujeito pesquisado, que faz com que este permaneça, em última
instância, submetido àquele, não apenas pelas condições próprias da pesquisa como
também pela diferença social estabelecida pelo acesso ao saber – que não pode ser
esquecido nem tampouco é passível de ser anulada.

Contudo, apesar de o domínio do conhecimento em si poder trazer essa relação


hierarquizada, o certo é que a atuação do médico deve ser ética, tratando o paciente como sujeito
da pesquisa, sujeito autônomo, estando sempre compromissado com altruísmo e beneficência,
princípios clássicos da Bioética, trazidos pelo Relatório de Belmont, elaborado nos Estados
Unidos (Barbosa et al, 2011) e pondo os interesses do paciente à frente dos interesses
estritamente técnicos ou secundários (Zoboli e Ozelka, 2007).

O Relatório de Belmont, elaborado entre 1974 e 1978, também incluiu um terceiro


princípio vital na relação entre o médico-pesquisador e o sujeito da pesquisa: o da autonomia.
Nesse sentido, explica BARBOSA et al (2011, p. 258):

O princípio da autonomia significa respeitar o direito, a capacidade de a pessoa decidir, sem


qualquer forma de coação, se deseja ou não participar da pesquisa, o que determina que o
pesquisador tem a obrigação de informá-la em linguagem clara e de fácil entendimento em
que consiste o estudo.

Destarte, como forma de se manter em posições equivalentes nessa relação, o


sujeito da pesquisa deve ser informado de todos os passos que serão realizados, de forma a
manter e exercer sua autonomia – a autonomia é exercida, dentre outras formas e
principalmente, por meio do conhecimento do processo (Guimarães, Spink e Antunes).
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2.2 Vulnerabilidade

Conforme exposto, o médico-pesquisador deve atentar-se aos princípios básicos da


Bioética quando da pesquisa com o paciente; viu-se que, se aquele não mantiver uma conduta
cautelosa (explicando o processo, repassando conhecimento, incentivando a conduta autônoma
do paciente como sujeito da pesquisa), o pesquisador pode acabar por submeter o paciente à
posição não de sujeito autônomo, mas de objeto da pesquisa. Tal problemática pode ser ainda
mais grave quando a pesquisa ocorre envolvendo grupos vulneráveis (Lott, 2011).

Conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, doravante, CNS, a


vulnerabilidade refere-se a estado de pessoas ou grupos, que por quaisquer razões ou motivos,
tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao
consentimento livre e esclarecido. Como se pode observar, o termo está intrinsecamente ligado
à capacidade de autodeterminação, ao ato de decidir por si mesmo, isto é, sem influências
determinantes ou condicionantes à escolha.

Com efeito, a vulnerabilidade decorre da falta de autonomia, da capacidade


reduzida de proteger seus próprios interesses (Rogers e Ballantyne, 2008), pela falta de
informação adequada ou pela falta de opção para escolher um tratamento que realmente ache
conveniente e proveitoso para o seu caso, seja por condições econômicas, territoriais ou sociais.

Assim, pessoas ou grupos em condições vulneráveis podem vir a sofrer


consequências negativas que poderiam ser evitadas se a pesquisa tivesse sido realizada
envolvendo grupos ou pessoas com maior autonomia (Rogers e Ballantyne, 2008).

Ademais, LOTT (2005, p. 77) elucida que

todas as populações vulneráveis se encontram em relações desiguais de poder. Essas


relações podem se constituir de inúmeras formas, caracterizando diferentes
expressões de vulnerabilidade em diversos grupos. [...] O que pode ser considerado
uma pesquisa eticamente aceitável envolvendo prisioneiros, por exemplo, torna-se
inteiramente inaceitável quando aplicado a adultos mentalmente incompetentes, a
mulheres grávidas ou a crianças. Cada população vulnerável merece tratamento
individual, de acordo com suas circunstâncias particulares.

Tal fato decorre de que diferentes grupos são incentivados (ou, em determinados
casos, até coagidos) a participarem de pesquisas por diferentes motivos: enquanto o prisioneiro
pode buscar uma regalia dentro da prisão, a pessoa pobre pode estar buscando uma retribuição
pecuniária. Circunstâncias sociais injustas podem resultar em vulnerabilidade de várias
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maneiras, e cada uma das quais requer diferentes mecanismos para proteger a população de
pesquisa contra exploração e danos (Rogers e Ballantyne, 2008).

É por isso que para cada tipo de grupo o pesquisador deve estar atento, pois o limite
do eticamente aceitável não é um padrão que pode ser utilizado somente em âmbito formal, ou
apenas substituído por um formulário – ele depende de atitudes pessoais e da conduta presente
do pesquisador, atento ao que aquele específico grupo ou pessoa vulnerável (se for o caso)
precisar ou não, poder ou não aceitar (Britto, Peres e Vaz, 2011).

2.3 Grupos vulneráveis

Inicialmente, cumpre destacar que a vulnerabilidade pode ser manifestada de modo


individual ou coletivo, em diferentes grupos, culturas ou etnias, todos em condições de relações
assimétricas e desiguais, sendo importante salientar que essas esferas de vulnerabilidade podem
se sobrepor, tornando em alguns casos os sujeitos duplamente vulneráveis. (Guilhem, 2005).

Essas diferentes esferas são “interdependentes e mutuamente influenciáveis, sendo


que cada uma delas abarca uma gama variada de questões” (GUILHEM, 2005, p. 120).

Indivíduos podem ter sua vulnerabilidade relacionada a fatores biológicos,


cognitivos e comportamentais, devendo ser disponibilizada a eles informações adaptadas à sua
necessidade. Já grupos socialmente vulneráveis podem ter decorrência de questões relacionadas
ao acesso a bens de consumo e a questões econômicas e sociais, devendo-se atentar ao fato de
que, em muitos casos, podem aceitar se submeter a qualquer tipo de tratamento ou pesquisa
devido à dificuldade de acesso aos serviços de saúde e vantagens eventualmente
disponibilizadas. Ademais, populações podem ser politicamente vulneráveis devido à falta de
balizas normativas na atuação médica nas pesquisas, sendo inexistentes ou escassas a
regulamentação da prática e, com isso, deixando desprotegidos aqueles grupos. Por fim, grupos
podem ter sua vulnerabilidade culturalmente criada devido a questões de submissão a padrões
nas relações de poder, acreditando que o “sujeito técnico teria os requisitos necessários para
decidir, também, em situação de conflito moral” (GUILHEM, 2005, p. 120).

Sobre populações vulneráveis, LOTT (p. 78-92, 2005) destaca os prisioneiros, os


refugiados, pessoas incapazes, pessoas pobres e mulheres grávidas como grupos que possuem
sua autonomia reduzida por conta de variados aspectos.

LOTT (2005) explica que os prisioneiros, por temerem represálias de agentes


carcerários ou de outras figuras de autoridade, por esperarem recompensa, como regalias dentro
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da prisão ou redução de pena, ou por falta de opções, podem se submeter a participação em


pesquisas. Continua esclarecendo que já os refugiados podem ter sua vulnerabilidade destacada
por diversas razões: por muitas vezes sofrerem hostilidade dos cidadãos para os quais eles se
dirigem, por possuírem uma situação legal indefinida, carecerem de direitos e dependerem dos
governos dos países anfitriões, juntamente com a ausência de diretrizes e recomendações éticas
internacionais e por existirem diversas barreiras para obtenção de um consentimento livre e
esclarecido.

As pessoas incapazes, porém, são grupo naturalmente vulnerável, que possuindo


limitações cognitivas e psicológicas para aceitar autonomamente o tratamento ou a pesquisa.
Por esse motivo, faz-se necessário o consentimento por meio de procuração e, em alguns casos,
este torna-se, até mesmo, insuficiente para proteção dessas pessoas.

Ademais, LOTT (2005) explana que pessoas pobres podem ser amplamente
influenciadas principalmente por ganho financeiro, e que tal grupo é um problema
especialmente de países em desenvolvimento.

Por fim, as mulheres grávidas podem ser vulneráveis por questões ligadas à saúde
do feto e da mãe. Porém, estas últimas têm sido sistematicamente excluídas das pesquisas
devido à incerteza dos efeitos causados a elas pelos medicamentos testados. Contudo, quando
tais medicamentos são testados e introduzidos no mercado, são para consumo de todos,
inclusive de mulheres grávidas, sendo que, devido à exclusão destas como participantes, não se
conhece o efeito que os remédios podem causar. Diante disso, LOTT (2005) aponta que
políticas de proteção rigorosa só servem para perpetuar um círculo vicioso que em nada
protegem as mulheres grávidas.

2.4 O disfarce da busca pelo avanço científico e a baliza da Dignidade Humana

Muito foi utilizada como respaldo para exploração de grupos vulneráveis a alegação
de que sacrifícios deveriam ser feitos em prol do avanço científico (Guilhem, 2005). A crença
de que os fins a serem alcançados justificariam os meios pelos quais isso se realizaria e de que
certos impactos negativos causados a populações marginalizadas pela sociedade possibilitariam
o avanço da medicina prevaleceu e se perpetua até os dias atuais, protegendo atuações antiéticas
por profissionais que, muitas vezes, mascaram sua conduta. Com efeito, de acordo com COSTA
(2008), as próprias diretrizes elencadas no Código de Nurembeg não eram, muitas vezes,
devidamente empregadas, haja vista que os pesquisadores não se identificavam como os
médicos nazistas que praticaram condutas antiéticas. (Barbosa et al, 2011). Um exemplo de que
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tal pensamento puramente pragmático prevaleceu em grande número de casos durante anos
depois do Código de Nuremberg foram os estudos com AZT em países em desenvolvimento na
década de 1990 (Rogers e Ballantyne, 2008), data bem posterior ao final da Segunda Guerra e
ao Tribunal de Nuremberg.

É por esse motivo que, apesar dos avanços já alcançados em relação ao assunto, é
condição imprescindível o debate e a constante vigilância sobre a questão.

Acerca do assunto, BITTAR traz uma importante observação metodológica acerca


do tema (2016, p. 64/65):

Enquanto a ciência se projeta para algo, ela se destina a um fim. O seu fim não pode
estar deslocado de uma série de preocupações que circundam as ciências. É importante
afirmar que os saberes não estão isolados. Os saberes científicos são práticas sociais
de conhecimento, que racionalizam a realidade para lhe conferir sentido. Nessa
medida, a ciência deve ter um propósito, e este proposito não pode ser justificado na
base de uma despreocupação com os fins, com consequências e com desdobramentos
sociais. O cientista que conhece os riscos de seu experimento deve estancar a prática,
antes que os riscos extrapolem o ambiente da pesquisa e afetem vítimas reais, pessoas,
cujos direitos podem ser violados por conta do desvio de cálculo nos rumos da
produção de conhecimento. Essa preocupação fica ainda mais clara quando se reflete
à luz da ciência de Josef Mengele, o conhecido Todesengel, “Anjo da Morte”, que
atuou em Aushwitz, exercendo pesquisas em seres humanos, que nada justifica que o
deslimite da ciência.

Com isso, é certo que, apesar de ainda vigente, o discurso do avanço científico a
todo custo deve ser rebatido, com base no princípio superior da dignidade da pessoa humana.
A verdade é que a pesquisa é balizada e limitada por esse princípio, no qual nenhuma
intervenção médica pode trazer para o paciente efeito que fira tal valor, que é resguardado na
Constituição, em seu artigo 1º, como fundamento do Estado Democrático de Direito:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.
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Com efeito, entende-se que a pesquisa deve ser pautada na condição do ser humano
como sujeito de direitos e na vedação a práticas que firam essa condição, isso, porque “[...] a
pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo
valor que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico” (DINIZ, 2007, p.
16).

Sobre essa questão, BITTAR também comenta (2016, p. 65):

A dignidade da pessoa humana é um bom critério, aliás erigido pelas Nações Unidas,
através da Declaração de 1948, de que toda ação humana deve considerar um fim
eticamente justo, que pondera entre as conquistas das pesquisas e os limites da própria
vida humana. Assim, em nome do saber, o que é autorizado, o que é possível? Muito
importante papel cumpre a pauta axiológica contida na Declaração Universal, aliás,
lançada em seu artigo 1º (“Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade”).

Portanto, fica certo dizer que, a atuação por completo do médico-pesquisador –


balizando sua relação com o sujeito da pesquisa e, principalmente, quando este seja pertencente
a determinado grupo vulnerável – deverá ser sempre limitada por princípios éticos, não podendo
ser apenas formalmente ética (reduzida a um formulário ou apenas à assinatura de um
consentimento, sem a devida explicação do protocolo da pesquisa e dos procedimentos) mas
sim organicamente preocupada com os interesses do paciente e com a sua segurança.

3 A MATÉRIA NO DIREITO BRASILEIRO: RESOLUÇÃO CNS Nº 196/1996

No Brasil, a normatização de maior importância e impacto práticos em relação à


matéria de pesquisa envolvendo seres humanos se deu em outubro 1996, com a Resolução CNS
n.º 196 (Diretrizes e Normas de Pesquisas em Seres Humanos) (Barbosa et al, 2011).

Com isso, em 1996 foi divulgada a Resolução CNS n.º 196/96, apresentando
diretrizes básicas para os dilemas relacionados às pesquisas envolvendo seres humanos,
implementando e acompanhando protocolos de pesquisa (Guilhem, 2005).

Conforme ESTIGARA (2006) o princípio que a orienta é a salvaguarda da


dignidade humana, cujos elementos básicos são a autonomia, a liberdade e o respeito a essas
grandezas.
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3.1 Importância

A Resolução 196/1996 foi considerada um marco principiológico na Bioética do


país, visto que, primeiramente, contribuiu para sua divulgação nacional e ampliou os debates
acerca do assunto, criando sistemas de controle de pesquisas.

Também foi de suma importância na proteção do paciente, com a elaboração de um


Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), norteando a aquisição desse termo.

Conforme CLOTET, o TCLE,

trata-se de uma decisão voluntária, realizada por pessoa autônoma e capaz, após um
processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico
ou experimentação, sabendo da natureza do mesmo, das suas consequências e dos seus
riscos.

Segundo a resolução, o termo deve ser elaborado após explicação completa e


pormenorizada sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos,
potenciais riscos e o incômodo que esta possa acarretar.

Com isso, percebe-se que o TCLE é um meio de execução da autonomia do


paciente, com vistas a resguardar sua dignidade e defender sua vulnerabilidade.

A Resolução também criou a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e


os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), instâncias, respectivamente, nacional e local. Com
isso, permitiu-se, por meio dos CEPs, a análise de toda pesquisa envolvendo seres humanos por
meio do trabalho voluntário de membros pareceristas (Barbosa et al, 2011).

3.2 Críticas

Apesar de a Resolução 196/96 representar um grande avanço no debate brasileiro


acerca do tema, é certo que ainda há críticas a serem feitas, haja vista que o Sistema CEP-Conep
por ela trazido ainda está em desenvolvimento e aperfeiçoamento (Guilhem, 2005).

GUILHEM (2005) aponta, dentre outras críticas, há a necessidade de uma maior


capacitação dos membros dos CEPs, para que estes estejam aptos a desempenhar a sua tarefa,
elencando também a subnotificação de resultados problemáticos. Sobre esse último ponto,
BARBOSA (2011) também aponta que apesar de a Resolução especificar que os resultados dos
estudos devem ser divulgados mesmo se forem desfavoráveis, muitos órgãos de fomento à
pesquisa e periódicos dificultam ou não permitem a publicação desses resultados, se
desfavoráveis.
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Ademais, também aborda a questão da grande demanda e a falta de CEPs para supri-
la, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país.

Porém, deve-se destacar que, apesar de ainda existirem críticas, é certo dizer que a
Resolução trouxe grandes avanços, principalmente na proteção aos sujeitos da pesquisa, tendo
o Sistema CEP/Conep colocado o Brasil à frente dos outros países da América Latina e de
muitos países menos desenvolvidos (Barbosa et al, 2011).

4 CONCLUSÃO

Cumpre destacar que, com o Tribunal de Nuremberg, foram expostas as atrocidades


realizadas por médicos nazistas em pesquisas com judeus, tornando mundial o debate acerca de
pesquisas envolvendo seres humanos e criando, por meio do Código de Nuremberg, balizas
para a realização de tais atividades. Contudo, a História mostrou que atividades antiéticas não
pararam de ocorrer contra pacientes em pesquisas, muitas vezes com a desculpa do avanço
científico para tanto.

Assim, fez-se necessária a criação de limites normativos que direcionassem a


atuação médica, principalmente em pesquisas que envolvessem pessoas de autonomia reduzida
devido a quaisquer fatores, isto é, vulneráveis.

Diante disso, o presente artigo tinha por fim discorrer acerca das pesquisas
envolvendo populações consideradas vulneráveis e os limites da atuação ética para a proteção
de tais indivíduos, vindo a esclarecer os aspectos históricos e normativos que culminaram na
percepção de que tais pessoas possuíam sua autonomia reduzida e, por isso, precisavam ser
protegidas.

Ademais, frisa-se a importância da Resolução CNS nº 169/1996, e dos CEPS que,


apesar de ainda apresentarem falhas na sua execução e na sua abrangência, levam o Brasil a
uma posição de destaque acerca do controle de pesquisas envolvendo seres humanos em relação
a outros países da América Latina.
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