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A implicação da família no uso abusivo


de drogas: uma revisão crítica

The family implication on the drug


abusive use: a critical review

Miriam Schenker 1
Maria Cecília de Souza Minayo 2

Abstract This article presents a critical re- Resumo Este artigo apresenta uma revisão
view of the litterature about the relation- crítica da literatura sobre a relação entre
ship between adolescence, family and drug adolescência, família e uso abusivo de dro-
abusive use. Discusses the importance of in- gas. Discorre sobre a importância da inser-
serting the drugaddiction symptom in the ção do sintoma drogadicção no contexto fa-
familiar and sociocultural context for the miliar e sociocultural para o entendimento
understanding of its complexity. Family, de sua complexidade. A família é vista co-
school and peers are seen as the adolescent mo uma das fontes de socialização primá-
primary socialization sources. Family edu- ria do adolescente, juntamente com a esco-
cational practices and parenting styles, with la e o grupo de amigos. As práticas educati-
its three different types of parental control, vas e os estilos de criação da família, com
are emphasized because they can either fa- seus três diferentes tipos de controle paren-
cilitate, or not, drug abusive use. The re- tal, são ressaltados porque podem facilitar,
searches results point to the importance of ou não, o uso abusivo de drogas. Os resulta-
engaging the family in the addict treatment dos das pesquisas apontam para a impor-
and some studies enlarge the focus to engage tância de se engajar a família no tratamen-
multiple social contexts – family, friends, to do adicto e alguns estudos ampliam o fo-
school, community and legal system – in the co para engajar contextos sociais múltiplos
drug abusive adolescent treatment. The re- – família, amigos, escola, comunidade e sis-
sults of the researchs point to the family ed- tema legal – no tratamento do adolescente
1 Núcleo de Estudos
e Pesquisa em Atenção
ucational practices and parenting styles that que faz uso abusivo de drogas.
ao Uso de Drogas/Uerj, either facilitates, or not, drug abusive use, Palavras-chave Adolescente, Família, Abu-
Pós-Graduação em Saúde emphasizing the need to engage the family so de substância, Tratamento, Transtornos
da Criança e da Mulher
do Instituto Fernandes
in the addict treatment. de uso de substância
Figueira/Fiocruz. Key words Adolescent, Family, Substance
Av. Rui Barbosa, 716. abuse, Treatment, Substance use disorder
22250-020 Flamengo
Rio de Janeiro RJ.
mschenker00@hotmail.co
m
2 Centro Latino-
Americano de Estudos
da Violência, Fiocruz.
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Introdução comungam das premissas do paradigma sis-


têmico, ponto de vista metodológico da pre-
Este artigo apresenta uma revisão crítica da sente revisão bibliográfica. Em relação às dro-
literatura sobre o uso indevido e abusivo de gas, cada cultura tem diferentes formas de re-
drogas em geral e, de forma particular, por gulação (Oetting & Donnermeyer, 1998) de
adolescentes. Focaliza, especificamente o lu- tal modo que seu uso pode ser requisitado, to-
gar, o papel e a co-responsabilidade da famí- lerado ou sancionado. Cabe ressaltar que o
lia como instituição que elabora as relações termo “adicção”, – “adicto”, “drogadicção” – é
primárias. A maioria dos textos revisados tem aqui empregado no seu sentido etimológico
como objetivo socializar os conhecimentos; próprio: como um estado de submissão e de-
melhorar a qualidade do atendimento à popu- pendência do indivíduo, com restrita vontade.
lação adicta; e subsidiar a implementação de Conceito relacional que engloba um indiví-
políticas preventivas. A presente revisão duo submisso, com pouca ou nenhuma cons-
abrange o período de 1995 a 2002 e ressalta ciência de seus atos. A compreensão de seus
como temas relevantes: a) o papel da família comportamentos se dará através da aborda-
na tradução dos códigos culturais para os seus gem sistêmica que busca decodificar as pre-
membros; b) a compreensão dos significados missas relacionais ignoradas pelo adicto
e condutas relativos ao uso de drogas; c) a (Sudbrack, 2001).
participação das práticas educativas da famí-
lia na construção do comportamento de seus
membros; d) a implicação do sistema familiar Material e método
com o desenvolvimento do uso indevido de
drogas; e) e o engajamento da família no tra- As bases para a composição do presente ar-
tamento. tigo foram o Scielo e o Medline, entre os anos
Por família se entende uma instituição de 1995 e 2002, a partir das seguintes palavras-
privada, passível, neste mundo pós-moderno, chave: adolescente (adolescent); família (fa-
de vários tipos de arranjo, mas basicamente mily); tratamento (treatment); abuso de subs-
tendo a função de socialização primária das tância (substance abuse); transtornos de uso
crianças e dos adolescentes. Neste trabalho, de substância (substance use disorder).
parte-se do entendimento da adolescência co- Todo o material coletado, que constou de
mo um período do ciclo vital em que a curiosi- doze artigos na sua íntegra, nove resumos,
dade por experiências novas e a troca e a in- três capítulos de livro e sete livros, foi devida-
fluência do grupo de amigos são fundamen- mente fichado, analisado, comparado e avalia-
tais. O uso das drogas aqui se inclui como do quanto a sua contribuição para o objetivo
fonte de socialização e como uma linguagem já citado na introdução. Na medida em que se
do adolescer e, quando acontece de forma foi observando que as questões de abuso sur-
abusiva, constitui-se num problema que pode gidas na adolescência são plantadas desde a in-
repercutir em todo o processo posterior de vi- fância, pesquisou-se a relação entre infância,
da do jovem. adolescência, família e abuso de drogas para,
Embora a atenção do adolescente esteja em seguida, investigar a necessidade de enga-
voltada para fora do lar e centrada nos grupos jamento da família no tratamento deste sin-
de colegas e amigos, para compreendê-lo tor- toma.
na-se necessário inseri-lo no contexto fami- O ponto de vista metodológico adotado
liar e sociocultural, pois a família – nuclear e neste trabalho é o da teoria sistêmica cujas
extensa – integrada à cultura é que fornece as bases são: a) o sintoma do uso indevido ou
bases para o seu desenvolvimento. Ela é o lu- abusivo da droga irrompe quando o contexto
gar privilegiado da socialização primária familiar e sociocultural oferecem condições
(Oetting & Donnermeyer, 1998) cuja proposi- de possibilidades para o seu surgimento e de-
ção principal é o asseguramento de compor- senvolvimento; b) o comportamento de um
tamentos normalizados pelo afeto e pela cul- indivíduo afeta e é afetado pelo comporta-
tura. Por isso, a família é fundamental no tra- mento do outro numa relação de circularida-
tamento do uso abusivo de drogas de seu ado- de e não de linearidade; c) é preciso trabalhar
lescente. as interações familiares que dão suporte a pa-
O engajamento da família no tratamento drões de desajuste na organização familiar.
é enfatizado por aqueles pesquisadores que
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para a instalação de desvios. Vínculos e ajus-


Discussão teórica tes saudáveis com a família e com a escola
previnem a associação do jovem com as ditas
Laqueille e colaboradores (1995) definem co- “más companhias” na adolescência. Essas três
mo dependentes os comportamentos dos dro- fontes funcionam, para o jovem, como media-
gadictos, pois eles são movidos pelo desejo doras das outras influências sociais vistas co-
poderoso, compulsivo de utilizar uma subs- mo secundárias: a religião, a mídia e a comu-
tância psicoativa, procura que invade, pro- nidade.
gressivamente, toda a sua existência. Consi- A família tem um papel importante na
deram a dependência uma patologia que ten- criação de condições relacionadas tanto ao uso
de a se tornar crônica, porque o adicto é am- abusivo de drogas pelo adolescente quanto
bivalente com relação à abstinência, nega a aos fatores de proteção, funcionando igual-
importância de sua dependência, recusa-se a mente como antídoto, quando o uso de dro-
admitir a gravidade da situação ao evitar suas gas já estiver instalado (Liddle & Dakof,
angústias com o uso crescente das drogas, re- 1995a). Uma vez que a família é um dos elos
correndo, tardiamente, a cuidados especiali- mais fortes dessa cadeia multifacetada que
zados. forma o uso abusivo de drogas instaurado na
A idéia de que a dependência do adicto é adolescência, muitas abordagens terapêuticas
uma patologia encaixa-se numa visão corren- são “baseadas na família” e abrangem os fato-
te do adicto como doente, em que se enfatiza res intrafamiliares, intra-individuais e socio-
mais a substância psicoativa do que a relação culturais, de forma sistêmica.
que o sujeito estabelece com a droga, em con- Stanton & Shadish (1997) referem-se a
textos múltiplos de relações – família, ami- pesquisas que reforçam a idéia de que é preci-
gos, comunidade –, num determinado espaço so atingir as famílias e trabalhar os vínculos
sociocultural. As pesquisas descritas por entre seus membros, nos casos dos indivíduos
Hoffmann & Ceboneb (2002) mostram que os adictos que querem sair dessa situação: da
distúrbios no uso de drogas psicoativas estão amostra pesquisada, de 60% a 80% moravam
associados ao uso de drogas pelos adolescen- com os pais ou falavam diariamente pelo me-
tes com baixa auto-estima, sintomas depres- nos com um deles; e de 80 a 95% comunica-
sivos, eventos de vida estressantes, baixa coe- vam-se com a família toda semana. Esse fenô-
são familiar e ligação com amigos que conso- meno foi reportado para os EUA, Porto Rico,
mem drogas. Inglaterra, Itália e Tailândia. Portanto, o tra-
Liddle e Dakof (1995b) chamam a atenção tamento do adicto irá se beneficiar da inclu-
para a questão dos distúrbios provocados pe- são do sistema familiar no trabalho dos vín-
lo uso abusivo de drogas serem uma ameaça à culos familiares, uma vez que os resultados
saúde pública, trazendo ônus considerável ao das pesquisas desvelam a ligação estreita en-
adicto e à sua família, pois comumente a adic- tre o adicto e seus familiares. Considera-se
ção leva a perdas de empregos, rupturas fami- que tratar do dependente implica incluir o
liares, instabilidade financeira e abuso físico e sistema familiar para trabalhar os vínculos
psicológico. A comunidade também é onera- familiares.
da, porque há vítimas de crimes e acidentes Em relação ao universo familiar, diferen-
relacionados com as drogas, bem como altos tes autores, dentre os quais Stanton & Sha-
custos de encarceramento, no caso de subs- dish (1997), chegaram a algumas conclusões
tâncias ilegais, e tratamento. convergentes: a) uma série de fatores familia-
As normas para os comportamentos so- res tem relação com o processo adictivo; b) o
ciais (Oetting & Donnermeyer, 1998), incluin- início do abuso de drogas e de overdoses pode
do-se aí o uso de drogas, são aprendidas pre- ser precipitado pelo rompimento familiar, es-
dominantemente no contexto das interações tresse e perdas; c) o modelo dos pais no que se
com as fontes primárias de socialização que, refere ao uso de drogas e álcool é importante;
na sociedade ocidental, são a família, a escola, d) o abuso de drogas pode auxiliar a manu-
e os amigos na adolescência. Cada uma das tenção da homeostase familiar ou pode servir
conexões das fontes primárias com o jovem como uma forma de mobilizar os pais do
envolve um vínculo que provê um canal para a adicto para tratamento; e) outros membros
comunicação de normas. Vínculos frágeis en- da família podem “facilitar” comportamentos
tre o jovem e essas fontes são fatores de risco que perpetuem o abuso de substância por um
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dos seus membros. nessa etapa da vida, a questionar os seus valo-


A família, uma das três fontes de sociali- res e opiniões.
zação primária, ao construir vínculos saudá- Os amigos preenchem o vácuo do progres-
veis, comunica normas sociais salutares para sivo desprendimento da tutela dos pais e são
os seus membros. Mas, famílias disfuncionais tratados, pelos jovens, como se fossem os pri-
podem transmitir normas desviantes através meiros em importância na sua vida. Compre-
do modelo de comportamento dos pais para ender esses aspectos é fundamental para a
os filhos. Os problemas de vinculação fami- transição saudável do adolescente, podendo
liar advêm, em sua maioria, daqueles lares ser negociados, com sucesso, numa relação es-
onde faltam habilidades para a criação dos fi- truturada no afeto e apoio mútuo entre pais e
lhos, reduzindo as chances de transmissão filhos. É na ausência de cordialidade, encora-
efetiva de normas sociais saudáveis. jamento, monitoramento e colocação suficien-
O estilo de criação dos pais (Liddle et al., te de limites que os adolescentes têm dificul-
1998) é entendido como o clima emocional dade em fazer a transição entre a confiança
em que ocorre a socialização, uma vez que atos primeira colocada nos pais para uma maior
educativos específicos só terão eficácia no independência e foco cada vez maior nos ami-
contexto de uma relação emocional apropria- gos (Liddle et al., 1998).
da. O estilo de criação refere-se às atitudes Ou seja, também os amigos e colegas de
dos pais com relação aos filhos em situações escola formam grupos de intimidade, in-
diversas, podendo ocorrer sob a forma de três fluenciando, de forma marcante, a transmis-
tipos de controle: autoritarismo, “com autori- são de normas na fase da adolescência. Por dis-
dade” (authoritative) e permissivo. O estilo de porem de laços fortes e monitorarem, direta-
controle “com autoridade”, que incorpora mente, atitudes e comportamentos de seus
cordialidade e vigilância, está associado a membros têm um papel muito importante
uma adaptação positiva em diversas áreas de nessa etapa da vida. Vários autores (Oetting
funcionamento dos pais e adolescentes ao lon- & Donnermeyer, 1998) têm encontrado forte
go do desenvolvimento. Trata-se de um estilo ligação entre o uso de droga dos pares e o uso
de criação que inicia o indivíduo num siste- de droga pelo adolescente, porém, as investi-
ma de reciprocidade, correlacionando-se de gações também evidenciam que os adolescen-
forma positiva com uma série de atitudes e tes não são cooptados por amigos anti-sociais,
comportamentos adolescentes incluindo-se o mas eles se tornam atraentes pelo fato de o
desempenho e o engajamento escolar. meio familiar apresentar abundância de con-
No autoritarismo, os pais são autocráti- flitos e desengajamento interpessoal. Nesses
cos, muito exigentes e pouco responsivos ao casos, em geral, os pais não implementam
seu adolescente, que, por sua vez, mostra-se práticas efetivas de educação que equilibram
obediente às regras, porém com baixa auto- afeto, atenção e limites para os filhos.
confiança. No estilo permissivo, os pais po- O estudo de Hogue&Liddle (1999) focali-
dem ser indulgentes ou negligentes. No pri- za os problemas comportamentais destruti-
meiro caso, há maior probabilidade de uso de vos da criança e do adolescente – especifica-
drogas e desengajamento escolar; no segundo, mente agressão, desordem de conduta, uso de
em que falta aos pais tanto correspondência drogas, delinqüência e violência – como preo-
quanto exigência com relação aos filhos, estes cupações significativas que comprometem o
apresentam problemas em várias áreas de desenvolvimento saudável e colocam o jovem
funcionamento desde o autoconceito até a em risco.
competência. O estudo de Schmidt e colaboradores
A gama de comportamentos dos pais que (1996) procurou saber se há relação entre a
define a prática de criação dos adolescentes forma que o subsistema parental tem de criar
subdivide-se em categorias de monitoramen- os filhos em seus aspectos comportamentais,
to e supervisão; controle, consistência/coe- afetivos e cognitivos e o uso abusivo de dro-
rência e rigor de disciplina; apoio e comuni- gas pelo adolescente. Essa prática foi dividi-
cação. Os adolescentes buscam naturalmente da em oito categorias desenvolvidas a partir
a sua independência em relação aos pais com da literatura levando-se em conta: o apego, o
o intuito de controlar e decidir acerca de sua estilo de vida familiar, relações, percepções so-
vida. Os pais freqüentemente confundem essa ciais dos pais e observações de atitudes dos ge-
atitude com rebelião, pois os filhos tendem, nitores por meio de sessões gravadas em vi-
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deoteipe durante a terapia multidimensional patologia e características do tratamento não


de família (Multidimensional Family Therapy distinguiram o engajamento ou não do ado-
– MDFT). As categorias foram: 1) disciplina lescente no tratamento. Os resultados suge-
assertiva de poder; 2) disciplina e comunica- rem que as percepções dos pais sobre os ado-
ção positiva; 3) monitoramento e colocação lescentes são primordiais.
de limites positivos; 4) monitoramento e co- O monitoramento e a supervisão dos pais
locação de limites negativos; 5) inconsistên- em relação aos filhos são sinais das expectati-
cia interparental; 6) afeto negativo e desenga- vas que têm de que se cumpram as normas fa-
jamento; 7) afeto positivo e compromisso; 8) miliares, protegendo-os de se associarem a
inflexibilidade cognitiva (Schmidt et al. pares desviantes, reduzindo, assim, a chance
1996). Já o estilo de criação foi classificado co- do uso de drogas (Oetting & Donnermeyer,
mo “com autoridade”, autoritarismo e confli- 1998). A família, como já se mencionou, é a
tuado-desengajado. fonte primeira da maioria das crenças e com-
Schmidt e colaboradores (1996) analisa- portamentos relativos à saúde, transmitidos
ram o uso de drogas pelo adolescente através às crianças e aos adolescentes. O estudo de
de relatório pessoal e análise de urina. Os re- Hogue e Liddle (1999) fornece subsídios para
feridos autores observaram 16 sessões de te- se pensar a terapia de família com crianças
rapia de família pelo método multidimensio- como instrumento de prevenção de proble-
nal (MDFT). Mais de dois terços dos pais me- mas futuros.
lhoraram a forma de criar seus filhos e essa Alexander e Gwyther (1995) entendem o
forma foi significativa para mudanças no uso abusivo de drogas como desordem biop-
comportamento do adolescente. sicossocial séria e complexa que gera proble-
O estudo de Schmidt e colaboradores cor- mas sistêmicos em níveis variados, passando
robora a premissa de Oetting e Donnermeyer da célula para a família, a escola, o trabalho e
(1998) e de Alexander e Gwyther (1995), que a sociedade. Por considerarem que o melhor
também descrevem a família em seu papel de tratamento deverá envolver o adolescente e
decodificação central dos processos sociais sua família, os autores utilizam uma aborda-
para os seus membros, evidenciando-se que o gem focalizada na família para a avaliação e
uso indevido de drogas passará pelo filtro da administração de problemas referentes ao
família. abuso de drogas. Ver a criança ou o adolescen-
Dakof e colaboradores (2001), numa pes- te como parte e não à parte do sistema fami-
quisa sobre o pré-tratamento, buscaram iden- liar é um passo fundamental. O abuso de dro-
tificar fatores demográficos dos pais e dos ado- gas tende a incluir outros membros da famí-
lescentes que influenciariam o engajamento lia e sabe-se que a adicção, por um dos pais,
dos jovens na terapêutica para o abuso de afeta todos os membros do grupo, podendo
drogas. Duzentos e vinte e dois adolescentes ser mais bem avaliado dentro do contexto fa-
de famílias urbanas participaram da pesquisa miliar.
em que a maconha era a droga de eleição. Os O modelo utilizado por esses autores é se-
resultados mostraram que o engajamento no melhante ao Modelo de socialização primária
tratamento se relacionou, em ordem de im- de Oetting & Donnermeyer (1998), porque,
portância, com as expectativas parentais posi- também para eles, as atitudes concernentes à
tivas com relação à realização educacional de drogadicção ou ao não envolvimento com
seus adolescentes; a observação acurada nos elas são socialmente aprendidas, e é no seio da
relatórios dos pais sobre o sintoma externo família que ocorrem as primeiras aprendiza-
do jovem (comportamento delinqüente e gens. Além disto, a família é o canal através do
agressivo); e os maiores níveis de conflito fa- qual influências fundamentais se fazem notar
miliar percebido pelos jovens. Isso lhes propi- pelo adolescente. Portanto, no caso de qual-
ciou o forte argumento de que os adolescentes, quer um do núcleo familiar fazer uso abusivo
filhos de pais que apresentaram a combinação de drogas, recomenda-se que a família busque
de reconhecimento de problemas e a crença tratamento para que possa lidar com o im-
que seu filho pode ultrapassá-los através da pacto deste comportamento em seu funciona-
realização na escola, engajaram-se no trata- mento, tornando explícitos os mecanismos
mento. As variáveis: renda familiar, sexo, sta- inconscientes desse processo autodestrutivo.
tus de grupo minoritário, status na justiça ju- Em resumo, as abordagens que envolvem
venil, estrutura familiar, idade da mãe, psico- a unidade familiar nos problemas relativos ao
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de tratamento por uso abusivo de drogas são belece uma conexão entre as relações familia-
consideradas mais efetivas do que as aborda- res e a formação e o uso contínuo do abuso às
gens de tratamento individual (Alexander & drogas. As segundas são vistas como mais
Gwyther, 1995). O tratamento da família no uma das áreas de intervenção e, além disto,
caso de comportamentos anti-sociais na in- envolvem a família somente em diferentes
fância possui ampla base de suporte empírico formas de auxílio ou de provisão de informa-
(Hogue e Liddle, 1999). Na psicoterapia de ção.
crianças, o treinamento dos pais, através dos Há uma variação na perspectiva baseada
princípios de reforço do comportamento, in- na família (Liddle & Dakof, 1995a) que vai
clui ensinamentos para a utilização tanto de desde modelos com raízes comportamentais
disciplina quanto de comunicação de forma (behavioristas), passando pela terapia funcio-
consistente. Hoje, os diferentes tipos de trata- nal da família advinda da teoria da aprendi-
mentos de família estão equipados para lidar zagem social, até a terapia de família estrutu-
com problemas reconhecidos como previsí- ral. Outra abordagem é a dos modelos inte-
veis do comportamento anti-social: monito- gradores multissistêmicos e multidimensio-
ramento parental frouxo; vínculo e ligação nais, cujo foco é a ecologia do adolescente que
pais-criança pobres; e hostilidade e conflito faz uso abusivo de drogas, avaliando e inter-
nesta relação. vindo na sua rede de influências – família,
Sabe-se, por experiência e através de pes- cultura de amigos, escola e sistema de justiça
quisas (Liddle et al., 1998), que os pais conti- juvenil. Cada uma dessas partes é considera-
nuam influenciando seus filhos adolescentes da um holon, tanto uma par te como o todo.
ainda que, nesta fase, o grupo de amigos se Os indivíduos são considerados organismos
torne muito importante. O conflito intenso biopsicossociais bem como membros de ou-
entre pais e adolescentes, além de não ser a tros sistemas como família, trabalho, grupos
norma, dificulta o desenvolvimento da identi- de amizade, comunidade, grupos étnicos. Se-
dade desse ser em formação. A transição posi- ria um pensamento ou uma intervenção re-
tiva para a adolescência se faz através da nego- ducionista se somente uma dessas perspecti-
ciação de mudanças nas relações entre pais e vas fosse utilizada em detrimento das outras
filhos, em busca da autonomia. Quando isto (Liddle, 1999).
não acontece, o adolescente poderá se distan-
ciar dos pais de forma hostil para conseguir
manter o controle sobre sua independência. Conclusão
Desta forma, um dos principais objetivos das
intervenções baseadas na família com adoles- As questões relativas ao uso abusivo de dro-
centes envolvidos com uso abusivo de drogas gas pelo adolescente e a co-participação da fa-
deve ser o da reconstrução do vínculo emo- mília levantadas no presente artigo estão em
cional dos pais em relação ao jovem, de forma consonância com a minha prática clínica co-
a atender às necessidades de ambos. mo terapeuta de famílias adictas.
As estratégias de tratamento para o com- Observa-se que os pais, ou figuras substi-
portamento anti-social são as abordagens tutas, têm dificuldade em passar normas e li-
ecológicas, que lidam com contextos sociais mites para seus filhos. Há pouca habilidade
múltiplos – família, amigos, escola, comuni- para criá-los e educá-los, advindo daí uma má
dade e sistema legal –, vistos como influen- qualidade de vínculos familiares. Em relação
ciando e sendo influenciados por tal compor- aos jovens isso se manifesta na falta de asser-
tamento. Tendo em vista que a família é a co- tividade e na ambigüidade com relação às leis
nexão dessas esferas sociais que se entrecru- e normas. Observa-se primeiro na conduta da
zam nas vidas das crianças e dos adolescentes criança e, posteriormente, do adolescente,
(Hogue e Liddle, 1999), as terapias de família que os limites do que lhes é concedido estão
aparecem como possibilidade para o trata- esgarçados, havendo grande prejuízo para a
mento de problemas de abuso de drogas sua formação e sérias conseqüências para a
(Stanton & Shadish, 1997) e de transtornos de vida em família e em sociedade. As crianças e
comportamento. os adolescentes aceitam a autoridade dos pais
Para Liddle e Dakof (1995b) existe uma – o estabelecimento de regras claras e coeren-
distinção entre terapia de família e interven- tes e a imposição de limites – quando há uma
ções que envolvem a família. A primeira esta- relação de confiança e afeto entre eles.
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Percebe-se que as famílias adictas buscam amigos – peers – e não se posicionam como educado-
“terceirizar” suas responsabilidades com re- res, figuras de autoridade, de confiança e de respeito
lação a seus filhos. Cultivam um tipo de com- para os adolescentes.
portamento irresponsável, como se o dever de É verdade também que a família passa os seus va-
monitorar e supervisionar o comportamento lores e as suas crenças através das gerações, sendo a
dos adolescentes fosse algo mecânico, robóti- fonte primeira de acolhimento para os seus membros.
co, sem a necessidade de construção prévia da Pelo fato de ser co-responsável pela formação dos in-
relação de confiança. Quanto mais a família é divíduos, a família está diretamente implicada no de-
“desengajada” (Minuchin, 1974) nas suas re- senvolvimento saudável ou adoecido de seus mem-
lações interpessoais maior risco seus filhos bros.
correm de desenvolver comportamentos anti- É importante ressaltar que todas as intervenções
sociais. baseadas na família (Schmidt et al., 1996) partem do
Premissas contemporâneas do paradigma princípio de que a mudança no indivíduo de um uso
sistêmico (Grandesso, 2000) indicam que as abusivo de drogas para a diminuição deste abuso,
relações entre os indivíduos são co-construí- agregado a um funcionamento socialmente saudável,
das, processo que os tornam co-responsáveis resulta da mudança no sistema familiar. A forma de
pela criação, desenvolvimento e qualidade criar os filhos é fundamental na constituição do indi-
dessa relação. Crescer, passar de uma etapa do víduo desde a infância até a adolescência. As práticas
ciclo vital da família para a seguinte, implica de criação características do meio familiar de adoles-
negociações que resultam em modificações centes que apresentam desordens de conduta e abuso
nas relações previamente estabelecidas. Famí- de substância são: administração insatisfatória da fa-
lias disfuncionais geralmente têm pais ainda mília, criação omissa, disciplina e monitoramento pa-
imaturos na forma de relacionar-se com os fi- rental inadequados, irritabilidade dos pais, processos
lhos. Inúmeras vezes, os pais são mais adoles- familiares coercitivos. Por outro lado, dado o papel do
centes que os filhos, pois se apresentam como meio familiar em proteger a criança de fatores de risco
e a contribuição central da criação dos pais neste sen-
tido, são dignas de nota as mudanças que hoje ocor-
rem na cultura dessa instituição de raiz, seja em rela-
ção à vida a dois, e também aos diferentes arranjos que
influenciam a convivência, os hábitos e costumes.
O pensamento sistêmico-ecológico, diversamente
daquele que privilegia a dinâmica do indivíduo, foca-
liza no contexto das relações as questões vividas pelo
ser humano, entendendo que todos os fenômenos se
inter-relacionam, com maior ou menor intensidade,
na teia que conforma a sua existência. Por isso, o com-
portamento do adolescente que faz uso abusivo de
drogas é entendido no seu contexto de influências, no
meio sociocultural em que estiver vivendo.
A terapia de família, então, passa a ser uma indica-
ção permanente. Os tratamentos que envolvem a eco-
logia do jovem que usa droga de forma abusiva abran-
gem ainda melhor a complexidade do fenômeno da
adicção em nossos dias. O diálogo intercontextual for-
nece a riqueza de condições de possibilidade para a co-
construção de um contexto saudável para o adolescen-
te.
306

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