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Data: 18/07/17 Autor: Milena O. Reis In: Signorini, I. e Fiad, Raquel S. (orgs.) Ensino de
língua: das reformas, das inquietações e dos
Orientadora: desafios. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011,
Gabriela Grande p. 283-303.
Tema: Introdução
● O geral objetivo do artigo é apresentar e discutir a questão dos letramentos próprios dos
ambientes multi e hipermidiáticos, os chamados novos letramentos, em função de dois
aspectos importantes para a questão, tal como ela se apresenta hoje para a formação de
professores de língua. Considerando esses dois aspectos, fica mais fácil compreender
porque a questão dos letramentos multi-hipermidiáticos tem permanecido submersa, ou pelo
menos invisível, nos cursos de formação em Letras.
● Tal inserção poderá contribuir para uma melhor qualificação dos futuros profissionais que
enfrentarão (ou já estão enfrentando) o desafio de levar seus alunos a se apropriarem
desses letramentos enquanto cidadãos e não apenas enquanto consumidores de produtos
tecnológicos.
● A premissa mais geral que orienta a autora é a de que a mediação tecnológica não é fato
novo na cultura e seus efeitos são bidirecionais. Sendo assim, em última análise, o desafio
que se coloca hoje para professores e formadores de professores é o da ação crítica, pois é
toda “criação, autoria, produção” em contexto de análise. É preciso ajudar os alunos a ver
como poderiam criar multimídia diferente da que é vendida para eles, ou que lhes é
oferecida ‘de graça’.
● Conforme também apontado pelo New London Group, as TIC deram visibilidade à
multiplicidade e à dinamicidade dos modos de representação e de produção de sentidos e
favoreceram o surgimento de novos canais e espaços (multimídia e hipermídia) susceptíveis
de darem voz a minorias e subculturas.
● Com o uso de dispositivos e tecnologias, se tem muitas vezes um trânsito intenso e cada
vez mais bidirecional entre práticas antigas e novas. Nesse sentido, a autora acha melhor
usar da metáfora espacial da borda (espaço comum e fluido entre domínios), ao invés da
fronteira (linha nítida de demarcação entre domínios), para descrever as relações que vão
se construindo nesses processos. Se o uso do telefone celular plugado à internet, por
exemplo, continua sendo basicamente o mesmo do celular convencional, isso não impede
que se torne ao mesmo tempo uma espécie de prótese que reconfigura por completo as
relações espaço-temporais de seu usuário e, consequentemente, o próprio conceito de
comunicação à distância.
● No caso dos usos da linguagem verbal nos multiletramentos, o que se pode verificar é que
ao mesmo tempo em que os multiletramentos, não são uma somatória de letramentos de
base grafolinguística, há sobreposições e complementaridades entre eventos e práticas de
diferentes tipos. O melhor exemplo nesse sentido é o da passagem da “página” Web (Web
1.0) para o “portal” (Web 2.0): no caso do portal, a analogia aponta para a subversão desse
objeto familiar (a página escrita), na medida em que realça a tridimensionalidade criada com
a interseção de múltiplos espaços ou planos acessíveis através dos pontos de linkagem que
constituem o portal e fazem dele um pórtico de passagem para o chamado ciberespaço.
● Uma consequência disso é que categorias de descrição e análise utilizadas para o estudo
dos letramentos de base grafolinguística podem não iluminar aspectos importantes de um
objeto como o portal, assim como de eventos e práticas emergentes desde o advento da
hipermídia. Braga (2004) aponta a multissemiose (multimodalidade + hipermodalidade)
como um desafio para as categorizações de gênero até então produzidas pelos estudos
linguísticos. Segundo Braga “O texto hipermodal, ao relacionar dentro de uma estrutura
hipertextual unidades de informação de natureza diversa (texto verbal, som, imagem), gera
uma nova realidade comunicativa que ultrapassa as possibilidades interpretativas dos
gêneros multimodais tradicionais. (Braga, 2004, p. 149-150)”.
● De fato, as categorias de descrição e análise da língua, do texto e do discurso produzidas no
âmbito dos estudos linguísticos são problematizados pelos objetos próprios da hipermídia de
diferentes formas e em diferentes graus, em eventos e práticas específicas. Por exemplo, o
modelo topográfico das estruturas multiniveladas articuladas em redes ilumina os
componentes dos objetos semióticos próprios da hipermídia, no caso as estruturas
hipertextuais, ao mesmo tempo em que problematiza e reconfigura o conceito propriamente
linguístico de texto como estrutura auto-consistente de contornos definidos e recuperáveis
através da leitura.
● A noção de interface hipermidiática, enquanto espaço topológico de interação com a
máquina ou a tecnologia, ou de interação social mediada pelo objeto tecnológico é uma
alternativa mais produtiva à de superfície gráfico visual no estudo das ecologias da escrita
próprias da hipermídia. A escrita de interface é outra escrita em relação à das mídias
convencionais: “dividida em dois espaços (tela e memória), a escrita passa a ser
ambivalente: invisível e legível, fugaz e durável...” (Souchier, 2004). Trata-se, na verdade,
como enfatiza Manovich (2001), de uma escrita sujeita aos efeitos dos processos de
transcodificação próprios do computador: transcodificar’ algo é traduzi-lo em outro formato.
Sendo assim, as categorias culturais e conceitos são substituídos, em nível de significação
e/ou de linguagem, por outros novos, derivados da ontologia, epistemologia e pragmática
computacionais.
❖ No exemplo de Gilberto, ele tinha 12 anos e estava na quarta série, repetido duas
vezes, vindo de família de baixa renda. O aluno tinha dificuldade em fazer textos,
mas conseguia fazer colagens de imagens recortadas e capas. É preciso dizer que
Gilberto integrava o grupo de alunos retardatários e marginalizados daquela turma e
que a primeira versão de seu relatório de experiência sobre bons e maus condutores
de eletricidade não tinha como referência os modelos textuais que haviam sido
estudados em sala de aula e sim um gênero multimodal, a exemplo das capas que
costumava fazer. No caso, ele reproduziu um tipo de tabela.
❖ Na primeira versão de seu primeiro relatório, para produzir um texto adequado aos
padrões da escola, Gilberto usa primeiramente a repetição como estratégia, e depois
representa graficamente a experiência através de uma espécie de diagrama (...). Os
resultados colocados no quadro durante a experiência são transformados em tabela.
A segunda versão, orientada por um bilhete da professora, é mais próxima de um
texto convencional, mas com estrutura muito particular na avaliação da professora.
Na terceira e última versão de seu relatório, também orientada por um bilhete da
professora, Gilberto organiza melhor o texto e tenta articular o verbal escrito ao
desenho. O fato novo está justamente nessa melhor articulação, sendo que a função
do desenho não é meramente decorativa, como se costuma aprender na escola.
● No segundo relato, tão ou mais importante que o episódio em si, acredita ser a
contextualização do relato, inicialmente oral, numa discussão entre pesquisadores.
❖ Como afirma o autor, são alunos que veem menos interesse no que lhes oferece a
escola que nas inúmeras bugigangas que carregam nos bolsos. A razão apontada –
não só por Prensky (2005), como também pela maioria dos autores que têm a
dinâmica dos jogos (games) como objeto de estudo – é a incapacidade da escola de
envolvê-los de fato, uma vez que eles já demonstraram que quando se envolvem são
capazes de controlar sistemas “dez vezes mais complexos” que qualquer conteúdo
ensinado na escola, sem contar que não apresentam déficit de atenção quando
estão jogando, vendo filmes ou surfando na internet. E para Prensky, envolvê-los não
é uma questão de pirotecnia visual ou tecnológica, renovação do “plano de aula” ou
currículo on-line, e sim de ideias.
● Outra implicação a ser considerada, como também aponta Helsper (2008), é a de que essa
divisa seria constitutiva das relações intergeracionais, uma vez que o desenvolvimento
tecnológico acelerado transformaria sistematicamente nativos em imigrados ao mesmo
tempo em que faria surgir novos nativos numa cadeia interminável.
❖ Nesse cenário, uma escola nos moldes que conhecemos não estaria apenas
paralisada, como no cenário anterior, mas tenderia a desaparecer, conforme de fato
prevê Prensky (2008). Num trabalho mais recente, porém, Prensky (2009) reorienta a
discussão inicial, considerando que num futuro bem próximo todos terão crescido na
era digital e que a dicotomia entre “nativos” e “imigrantes” perderá seu poder
explicativo das “diferenças culturais” entre gerações.
❖ Nessa nova ordem, a sabedoria digital “transcende” a divisa geracional descrita pela
dicotomia entre “nativos” e “imigrantes”, na medida em que o digitalmente sábio, nos
termos do autor, é todo aquele que expande sua capacidade de discernimento,
avaliação e planejamento em qualquer campo (prático, teórico, ético, político)
valendo-se das possibilidades abertas pelas TIC para o acesso a dados de memória
e ferramentas analíticas de alcance muito superior ao que dispõe hoje o homem não
“incrementado” [enhanced] pela associação entre cérebro e “inteligência” de base
computacional. Ainda segundo o autor, o grande desafio do sábio digital é colocar as
TIC a serviço de suas necessidades, ou seja, controlá-las: “Os digitalmente sábios
também compreendem que a habilidade para controlar a tecnologia digital, fazê-la
adequar-se às suas necessidades, é a habilidade chave na era digital”.
❖ Estamos compreendendo a crítica no sentido proposto por Lemke (2006, p.13): Ser
crítico (...) não é só ser cético ou identificar operações de interesses ocultos. É
também criar alternativas, fornecer bases analíticas para a criação de novos sentidos
que possam encarnar as esperanças e sonhos de quem escolher não aceitar
convenções tradicionais de letramento, gêneros comerciais, ou o modelo consumista
de futuro. Um currículo de letramento multimidiático crítico não terá sucesso entre os
alunos se for apenas sobre análise e crítica. (...) Letramento multimidiático crítico
precisa ser ensinado como criação, como autoria, como produção em contexto de
análise dos modelos e gêneros já existentes.