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sérgio bairon

SÉRGIO BAIRON
é professor da
ECA-USP e autor de,
entre outros,
Interdisciplinaridade.
Educação, História
da Cultura
e Hipermídia
(Futura).

A comunicação
nas esferas,
a experiência
estética e
a hipermídia
RESUMO

O presente artigo analisa a relação entre a dimensão conceitual da comuni-


cação nas esferas e a dimensão comunicativa da experiência estética em sua
expressividade hipermidiática. A análise baseia-se em princípios hermenêu-
tico-fenomenológicos e propõe uma leitura particular da dimensão técnica
da hipermídia, como uma nova forma de manifestação da compreensão. A
comunicação nas esferas é compreendida como a possibilidade do alcance
do nível da reflexão analítica por parte da linguagem hipermidiática. O privi-
légio da pergunta à pergunta, à busca, ao estranhamento e à multiplicidade
de respostas é uma das características dessa nova forma de compreensão.

Palavras-chave: hipermídia, comunicação nas esferas, comunicação e expe-


riência estética.

ABSTRACT

This article analyzes the relationship between the conceptual dimension of tech-
nique as horizon and the communicative dimension of the aesthetic experience
in its hypermediatic expression. Said analysis is grounded on hermeneutic-phe-
nomenological principles, and puts forward a particular view of the technical
dimension of hypermedia as a new form through which understanding is ma-
nifested. The technique as horizon is understood as the possibility of reaching
the level of analytical reflection by means of hypermedia language. Privileging
the questioning of questions, the search, the alienation, and the multiplicity of
answers are some of the traits of this new form of understanding.

Keywords: hypermedia, technique as horizon, communication, aesthetic


experience.
obra Esferas de Peter Sloterdijk características topológicas, antropológicas
busca caminhos alternativos à e semiológicas.
filosofia contemporânea, nos Em Esferas I – Bolhas, o filósofo des-
quais a experiência estética deve creve o espaço da vida por meio do entorno
possibilitar a autocompreensão de nosso ser-juntos (Zusammen-Sein). A
das manifestações da histori- complexidade das relações entre os seres
cidade dos fenômenos. Nesse humanos resulta numa noção de interio-
sentido, a essência da experi- ridade ainda pouco explorada nas teorias
ência estética não é uma atua- da comunicação: trata-se da Microsfera,
lização transitória que manifesta uma pura que tem sua existência numa espécie de
consciência histórica, mas a manifestação sistema de imunidade do espaço anímico.
de um ser que se atualiza de forma multi- Sua expressividade mais consistente está
focal, multiperspectivista e heterárquica. calcada nos casais, nos pares, e não no
Portanto, é fundamental não criarmos sobre indivíduo. Trata-se de uma imunidade-eu
a experiência estética nenhuma perspectiva que está dirimida frente à imunidade-nós.
que pretenda o imediatismo da classifica- São espaços que definem temporalidades
ção científico-positivista, mas que aborde surreais, nos quais os valores da convivência
a historicidade dialógica de todo processo mais básicos (como a familiaridade ou o
de compreensão (Sloterdijk, 2004). senso comunitário) se traduzem em espa-
A comunicação atual pressupõe as re- cialidade, uma espécie de saber não sabido,
lações dialógicas como o centro de usinas levado adiante apenas pela experiência.
midiáticas de vias múltiplas. Os desafios Nesse ser-juntos não temos nenhum tipo de
para sua compreensão são, sobretudo, de intencionalidade a priori. Trata-se de algo
fundamento, ou seja, precisamos encontrar que acontece, involuntariamente, desde o
dimensões conceituais que sustentem a sua momento ab utero, bipolarmente e, após,
compreensão. Nessa trajetória, encontramos pluripolarmente, até alcançar o dialogismo
a obra Esferas de Peter Sloterdijk, que dia- do entrelaçamento de seres vivos. Esse mo-
loga com o caminho inaugurado por Walter mento é revelado como o manifestar de uma
Benjamin na obra Passagens, perpassando esfera do conhecimento, na qual as pessoas,
pela fenomenologia heideggeriana e por os objetos e as ações se compreendem como
uma trajetória histórico-cultural. A obra algo já dado, pois todo e qualquer encontro
de Sloterdijk, apresentada em três volumes está definido a priori. “O ser-aí leva já
(Sloterdijk, 1998, 1999, 2040), pode ser lida consigo a esfera do possível encontro; já
como uma compreensão da comunicação originariamente é encontro de…” (Heideg-
contemporânea, resultado do encontro en- ger, 1952, p. 45). Sphären I nos revela esse
tre os seguintes princípios: a historicidade caminho imersivo no labirinto ontológico,
multifocal, a linguagem hipermidiática, que define o estranho (umheimlich) como
a comunicação heterárquica e o diálogo coexistência. A origem desse momento é
multiperspectivista. nomeada de “ginecologia filosófica”, existe
A trilogia começou no ano de 1998 como uma primeiridade em forma de nicho
com a publicação de Sphären I – Blasen ecológico, manifestando o entorno do ser
(Esferas I – Bolha), teve continuidade em humano enquanto condição filosófica à com-
1999 com Sphären II – Globen (Esferas II preensão. Ao contrário do que poderíamos
– Globo), sendo o último volume, Sphären pensar, não se trata, prioritariamente, de um
III – Schäume (Esferas III – Espumas), momento histórico (da História ou do ser
publicado em 2004. Apesar dessa sequen- humano), mas uma condição de linguagem
cialidade, são inúmeros os capítulos que que, independente da época, todos vivemos
podem ser lidos separadamente assim como e levamos conosco para sempre. De certa
os volumes podem ser lidos individualmen- forma, Sphären I fala da necessidade que
te. Sloterdijk propõe Sphären como um temos de construir nossa própria habitação,
conceito que detém a capacidade de reter seja nossa casa, seja nossa rede social. Um
ambiente de familiaridade erguido mesmo a saída do monocentrismo metafísico.
em meio ao caos, uma espécie de gruta to- Identifica como terrestre a globalização que
pológica do cotidiano, que permite ao ser o seguiu a metafísica e antecedeu o advento
convívio com a diversidade a partir do seu das telecomunicações digitais. Lembra que
próprio habitat. No entanto, Sphären I age Marshall McLuhan já afirmava estar na
como um filtro frente à diversidade, pois é simultaneidade elétrica dos movimentos
preciso filtrar o múltiplo para garantir sua informativos da esfera total e oscilante do
subsistência epistemológica. espaço auditivo o princípio de que o centro
Já em Esferas II – Globo, encontramos está em todas as partes e sua circunferência
a análise do espaço vivido e habitado em em nenhuma (Sloterdijk, 1999, p. 736).
estado de expansão, como se a natureza Sphären II, portanto, é o espaço definido
estático-surreal ensaiasse um efeito de pelas condições de possibilidade da criação
animação. A ocupação imperial-cognitiva cognitiva e da compreensão de um todo.
do mundo é compreendida na forma de uma Descreve aquele globo que é produzido por
expansão do anímico em séries ininterrup- todo conhecimento que se apresente como
tas. Destaca Sloterdijk: “trata-se da ação de global. Aquele global que foi consequência
um empreendimento novelístico-filosófico do perguntar metafísico.
que constrói, por meio de narrativas e sub- Numa trajetória adversa às Esferas an-
narrativas, o arredondamento do mundo” teriores, Esferas III – Espumas oferece uma
(Sloterdijk, 1999, p. 45). Nesse sentido, compreensão da época atual, destacando que
a hipérbole domina o espaço como um a “vida” se desenvolve de maneira reticular,
processo cognitivo que se manifesta por hipermidiática e heterarquicamente. Parte de
contextos sobrepostos. Esse caminho inicia uma definição não metafísica e não holística
na familiaridade, mas inaugura a abertura da vida: sua imunização já não existe por
ao mundo e às condições para o aprofun- meio da simplificação ontológica, muito me-
damento de conexões psíquicas. Como um nos por meio da reconstrução de uma esfera-
entorno imaginário, a linguagem que temos todo. Se o cotidiano atua dinamicamente,
aqui se manifesta na saída da familiaridade sobrepondo espaços de diversas maneiras,
(a cabana), passando pela cidade moderna não é simplesmente em função das mônadas
e pelo império, até, finalmente, se expandir terem seu próprio entorno, mas, sim, porque
no espaço ilimitado e imensurável. Sphären todas estão envolvidas entre si e se definem
II é um espaço híbrido elástico, que denega em inumeráveis unidades. A comunicação
a informação de que a segurança encontra- se articula em cenários simultâneos, pois
se no maior (e somente nele) princípio que produz e consome conteúdo em oficinas
suscitou o affair da alma com a geometria, interconectadas. As espumas produzem
destaca o filósofo. Esse encontro se chama sempre o espaço no qual ela é e que é nela.
metafísica, onde a existência local se integra Somente algo está claro: onde se lamentavam
na esfera absoluta, inflando-se até a direção perdas de forma, hoje existe comunicação
da esfera-todo. O grande relato de Sphären II em mobilidade (Sloterdijk, 2004).
pretende tornar compreensível a razão pela Para Sloterdijk, a metafórica e dinâmica
qual a metafísica significou a persecução constituição das espumas serve para recupe-
da experiência estética com meios tanto rarmos pós-metafisicamente o pluralismo
teóricos como políticos (Sloterdijk, 1999). pré-metafísico das ficções do mundo. A
De acordo com a própria lógica do ob- questão central desse caminho estaria cal-
jeto, a reconstrução do delírio metafísico cada na exploração de uma experiência que
da simplificação e da unificação se fecha se direcione ao estético, pois a tradição da
com uma breve história do mundo moderno, compreensão do amontoamento, mediante
tão acentuada europeiamente como resulta globos simplificadores, não proporciona
necessário tão filosófico-universal como é mais uma justificativa que dá ao desordenado
possível. Sloterdijk entende por Moderni- um todo. Mesmo o conceito de espumas é
dade a época na qual se produz no mundo tratado como metáfora pelo filósofo. Se a

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esfera globo dos textos totalitários cumpriu te em suspenso os próprios prejuízos. Na
seu tempo, surgem as esferas espumas como comunicação nas esferas, a totalidade da
experiências estéticas de voos mais discretos. suspensão de todo prejuízo ocorre diante da
Tal como Sloterdijk, parto do princípio pergunta que tem como essência o abrir-se e
de que, no universo da experiência estética, manter-se aberta às mais variadas respostas.
a imagem participa diretamente da essência Portanto, a experiência estética na hipermí-
da compreensão, pois tudo aquilo que está dia é um profundo exercício palinódico: “A
expresso volta-se a si mesmo, ou seja, está experiência é, pois, experiência da finitude
por si mesmo em sua imagem (Burdea & humana” (Bairon & Petry, 2000). Trata-se
Coiffet, 1996). É por essa brecha que come- do ser que a experimenta como aquele que
çamos a enxergar a relação inevitável entre a conhece seus limites com as palavras, não
não compreensão e a experiência estética. A se pretendendo dono do tempo. Navegar
partir daí percebe-se que os recursos digitais evitando a pergunta é colocar a comunicação
devem procurar, a todo custo, o caminho da numa função instrumental e metodológica,
experiência estética sob o ponto de vista de já que situar-se na pergunta não implica
uni-lo com a comunicação digital. Acredito estar limitando a própria liberdade do co-
que a estética deva subsumir na filosofia das nhecer, mas, ao contrário, é justamente o
esferas, assim como esta se deixou levar princípio básico de toda possibilidade de
pela experiência estética: nunca uma obra conhecimento. No mundo das espumas o
de filosofia incluiu tantas imagens como perguntar define o pensar. Perguntar sig-
Esferas de Peter Sloterdijk. Ou seja, par- nifica suspender todos os prós e contras.
timos do princípio de que a compreensão É a principal maneira de alguém estar ao
deve mostrar-se como fragmento de um mesmo tempo contra e a favor. É aqui que
sentido que se constrói em todo enunciado o método como método exibe suas limita-
identificado como experiência estética, tanto ções estruturais no âmbito da consciência
na ciência como na filosofia. Para a filoso- histórica efetiva: não há método linear que
fia das esferas, as discussões em torno do acompanhe o perguntar, pois todo perguntar
prejuízo levam à questão da antecipação do pressupõe um saber que não se sabe (Hillis,
sentido e à da circularidade da compreensão, 1999). Há um não sentido e uma não linea-
fundamentos que tenho defendido como ridade que conduzem à pergunta. Como
bases essenciais da comunicação não linear. no movimento dialógico entre pergunta
Subjacente a tais discussões está a ideia de e resposta, o interlocutor da hipermídia
que as partes que delimitam o mundo das pode aprender que a grande experiência da
espumas adquirem sentido somente como compreensão não está somente no ganhar,
fragmentos em “eterna” mutação sígnica, conclusivamente, o conhecimento dos
princípio anunciado pelo jogo infinito das fatos (Mackay & O’Sullivan, 1999). Não
fractais (Mandelbrot, 1977). A virtualidade se trata de tentar superar a deficiência da
da hipermídia, fruto desse movimento, multiplicidade de sentidos, ao contrário:
está na ampliação das unidades de sentido, “[…] justamente porque nosso intelecto
compreendidas em círculos concêntricos e é imperfeito, isto é, não se é inteiramente
na conquista, por meio disso, da congruência presente a si mesmo naquilo que se sabe, é
de cada detalhe com o todo (Darley, 2002). A que temos necessidade de muitas palavras.
circularidade da compreensão não é um cír- Não sabemos realmente o que sabemos”
culo metodológico, mas descreve a inevitável (Gadamer, 1975, p. 65). A relação sujeito/
condição dialógica da própria compreensão. objeto, tão aclamada pela metodologia
Compreender é entender-se na comunicação tradicional, tende a ver toda compreensão
heterárquica (Bairon & Petry, 2000) como algo que é o mundo e não como algo
Na hipermídia que se apresenta como que está no mundo (Heidegger, 1985).
experiência estética, a verdade começa ali, Sendo a experiência estética, ao contrário
no momento em que algo nos interpela e do instrumento, irredutível ao momento
sua exigência pode colocar completamen- de concluir, ela própria abre e funda um

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mundo, pois provoca profundas mudanças
no ser da compreensão (Heidegger, 1985).
Venho defendendo a ideia de que o
acontecer da questão central que delimita
a forma de ser da comunicação nas esferas
está localizado na construção de ambientes
gráficos que sejam mundos de acesso aos
conceitos com os quais estamos trabalhan-
do. Isso pressupõe um projeto que encampe
a imagem não mais como referência a algo
objetivo, mas como ambiente conceitual.
Ao entrarmos na hipermídia como experi-
ência estética, não estamos simplesmente
penetrando na construção de telas que não
tenham nenhuma relação com as ideias ali
propagadas, pois as imagens pressupõem
um diálogo com a verdade sob o ponto de
vista essencial (Turkle, 1997; Hansen, 2000;
Sloterdijk, 2004). Apesar de a experiência
estética ter perdido a aura identificada pela
análise de Walter Benjamin em seu artigo
consagrado, acredito que estejamos no li-
miar do nascimento de uma expressividade
que diminua a distância entre experiência
estética e compreensão, entre consciência
e historicidade. Mesmo os fractais de
Mandelbrot (1977) já revelavam não só a
irregularidade da realidade que se apresenta
contrária a qualquer modelização homogê-
nea, mas, também, a essência da descrição
da comunicação nas esferas hipermidiático-
reticulares. A dimensão fractal, ao contrário
das dimensões euclidianas, relacionou as
irregularidades, fruto da fragmentação
imagética, com o fenômeno da reprodução
tanto na natureza quanto na arte; tal como a
reprodução da imagem na obra de Arcimbol-
do, que pode nos levar à decomposição de
cada objeto enquanto condição sine qua non
à compreensão (Thames & Hudson, 1987).
A comunicação nas esferas revela, lite-
ralmente, que a soma do inacabado com o
não sentido reúne vários elementos que, no
agir de toda compreensão, tanto de quem
cria o sistema quanto daquele que o utiliza,
instauram-se na incompletude. A memória
que se constrói pela sua navegação está
muito mais próxima do imaginário fruto da
ação de uma rede de significantes do que
da tentativa de classificação sistemática
da compreensão. Nesse meio, habitamos

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como habitamos uma casa: com imagens, melhores matemáticos. […] O artista de
sons, diálogos, caminhadas, numa frequente amanhã será, sem dúvida, chamado a utilizar
interação com as coisas que ali colocamos a autonomia desses ‘seres’ intermediários
e que nos interpelam. No entanto, não como novo meio de expressão, e poderá tirar
podemos esquecer que a familiaridade partido de sua vida artificial para criar obras
com os objetos é uma construção-bolha e em constante gênese, processos quase vivos,
não algo dado. A construção, a fabricação modificando-se sem cessar eles mesmos em
e o uso de um ambiente interativo podem função do contexto” (Quéau, 1996, p.45).
tanto estar comprometidos pela técnica
como revelados e possibilitados por ela. Próximos às fantasmagorias, imergimos
Poderemos alcançar, assim, a noção de que na maré do palinódico e começamos a
o ser não só é o tempo de sua dedicação trilhar um longo caminho na convivência
para com a compreensão, como, também, com o desdito. Noutro momento tive a
o resultado infinito da ação da incomple- oportunidade de destacar esse encontro com
tude do sentido. A incompletude, que está a modernidade digital, em que o instante
sempre presente em toda compreensão, aristotélico e o agora hegeliano destruíram-
demonstra a diversidade da estranheza do se mutuamente no interior da concepção
ser consigo mesmo e da estranheza fruto do monadológica de Walter Benjamin (Bai-
uso com os “objetos” que o cercam. Numa ron, 1994). Na qual o “agora” (jetztzeit)
frequente relação dialógica com o todo e a apresenta-se como toda ação presente que
parte, vamos construindo a historicidade emerge do cotidiano em seu caráter anteci-
da compreensão (Sloterdijk, 2004). Sendo pado de futuro/passado. O tempo do agora
assim, a verdade aparece como condição de é um recolhedor de experiências, de relatos
sua própria negação, um legítimo evento utópicos e, tal como uma falsa memória,
de desvinculações entre projeções e his- alimenta-se da repetição do não realizável
toricidade. Imersos nesse meio, podemos (Benjamin, 1977).
vivenciar literalmente o vínculo entre nossas Portanto, na comunicação digital a
identidades e boa parte do mundo que as ruína passa a ser regra, uma vez que toda
cerca: “Pode-se dizer: sem a linguagem não construção imagética baseia-se em formu-
podemos nos comunicar? Isso soa como lações matemáticas que carregam sobre si a
se houvesse comunicação sem linguagem. necessidade de renovação e a necessidade de
Porém o conceito de linguagem repousa reconstrução da obra. Gadamer nos lembra
sobre o conceito mesmo de comunicação” que na semântica da palavra “obra” encon-
(Wittgenstein, 1987, p. 89). tramos a palavra “técnica”, téchne. Esta não
Cabe lembrar a reabilitação benjami- quer ressaltar, prioritariamente, o fazer ou o
niana da alegoria, na qual não existe pos- produzir, mas, sim, a capacidade psíquica de
sibilidade de manifestação de sentido sem planejar, criar, buscar, sintetizada no saber
que tenhamos o desmembramento. Há algo daquele que faz e que constrói, o érgon.
de essencial na alegoria: a transmutação. (Gadamer, 1991) Por um lado, aqui vale
Congelar as representações da estrutura salientar que todo produto valorizado na
matemática do mundo digital é reduzi-lo ao hipermídia como experiência estética não
eterno, em detrimento do efêmero. Portanto, tem nenhuma validade em si para além do
o som, a imagem, a passagem e o ambiente uso para o qual o destinamos. Por outro lado,
no mundo digital, antes que se apresentem o conceito de experiência estética associa-
tal qual, são linguagens. Como um dia já do somente à arte é algo que não atende à
disse Quéau: pergunta sobre o porquê de sua existência.
Por mais contraditório que pareça, é no
“As linguagens formais nos ‘resistem’ e encontro desses dois lados que os horizon-
contêm mais coisas do que acreditamos tes esférico-conceituais deverão atuar na
ver nelas. As matemáticas possuem uma linguagem hipermidiática que se apresente
vida estranha que fascina e surpreende os como dialógica e fruto do encontro entre as

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instituições artísticas e científicas. A respeito perguntar pelo significado de cada passo na
da experiência estética, Gadamer inspira-se hipermídia, segundo as intenções da equipe
na noção heideggeriana de verdade, em que criadora, nem de exigir de si mesmo uma
temos não só a promoção do encontro entre compreensão única enquanto interlocutor.
desvelamento e enunciado, mas também na Trata-se da morte do receptor no interior
produção da verdade que se define como do reconhecimento da transformação de
resultado da relação entre conhecimento e horizontes que se entrecruzam na suspensão
reconhecimento. Compreendemos porque do momento de concluir.
muito já tínhamos compreendido. É daí que Devemos nos acostumar com a ideia
a verdade, a partir da experiência estética, de que o sentido não emerge de uma situa­
seja compreendida como algo que emerge ção de contemplação frente à falta, mas
e irrompe e, não, prioritariamente, como multiplica-se na continuidade da busca que
fruto daquilo sobre o que refletimos meto- anula tanto o inaugural quanto o constituinte.
dologicamente (Heidegger, 1952). No mundo das espumas, temos a chance de
O que tenho procurado esclarecer é oferecer o exercício da condição movediça
que na comunicação hipermidiática, a da linguagem, contrária a qualquer fixidez
irrupção da verdade ocorre pela revelação de significado. A cada novo sentido, surge
não de ideias, mas de ambientes, de mora- uma nova configuração de horizonte que nos
das, onde as coisas emergem sem que sua convida a experimentar a própria variação.
principal ontologia esteja na sequência de O provisório se transforma em efetivo e,
aparecimentos ao mundo. Nesse contexto, assim, toda efetividade só sobrevive na efe-
a linguagem deve assumir sua condição meridade. Tal como o mundo se apresenta
de expressividade poética à busca da ex- a nós, a experiência estética nos absorve,
periência. Essa pertença ao mundo não se nos envolve, nos encasula, literalmente.
revela em sua atuação ou produção, mas, A mensagem se dilui na contradição de
sim, no acontecimento da abertura de novos vozes, imagens e sons. Na esfera-espuma a
horizontes a cada nova compreensão. Na mensagem está frequentemente em perigo.
navegação não vivencio um mundo que está Um sentido, a qualquer hora, pode perder o
ou não presente no ambiente, mas a relação rumo, desaparecer e nunca mais voltar. Assim
de meus horizontes com os horizontes que como pode retornar repentinamente, como
se apresentam a mim. Mais que o acontecer aquele Shakespeare que foi resgatado pelo
de uma simples interpretação, trata-se de Sturm und Drang do século XIX (Auerbach,
um ambiente midiático que trabalha com a 1970). O caminho ou código não são mais
possibilidade de respeitar o tempo da espera, os meios, ou vice-versa; o meio é o mundo,
que pacientemente se coloca à disposição o sentido está dependente de sua dimensão
da compreensão ou da emergência de um palinódica, assim como aquelas experiên-
sentido. Esperar, demorar e refletir não é cias com o que convencionamos chamar
perda de tempo, ao contrário, trata-se da de arte, que nunca terminam de significar,
hiperbolização da surra que a leitura dá na que nunca cessam de se inscrever. O “ób-
televisão tradicional. Enquanto a primeira vio”, o “coerente”, o que “tem sentido”, o
respeita o ritmo de cada um, a televisão que “está claro” devem significar apenas o
tradicional, que nos aprofundou na esfera- caminho dos desbravamentos contínuos de
globo, atropela a compreensão, pois não dá novos horizontes. A técnica nesse universo
tempo a qualquer respiração e nos impõe se sente subjugada, domesticada pelo con-
seu discurso. A demora para compreender ceito, assim como o lápis que se entrega à
é fruto do desdobramento de uma relação mão. Compreensão circular, perpendicular,
dialógica que não tem prazo para terminar, oblíqua, transversal, jamais linear, jamais
pois seu sentido cronos primeiro é durar até de acordo com o objeto. Portanto, o mundo
que seja levado ao seu fim. com o qual interagimos não se apresenta
Mesmo com a emergência da compre- mais como o resultado da soma dos objetos
ensão não se trata, prioritariamente, de que nos cercam, como que numa descrição

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gunta pela técnica por meio da linguagem
hipermidiática (Bolter, 1991; Sloterdijk,
2004). A polifonia dessas tecnologias da
comunicação só pode apresentar-se como
um conhecimento que se constrói a partir
de si mesmo. Sua crítica ou sua análise,
de alguma forma, sempre deve se colocar
como autocrítica sabendo, no entanto, que a
plenitude nunca poderá ser alcançada (Bai-
ron, 2002). É uma espécie de condenação
da metodologia científica tradicional e uma
ascensão do diálogo como valor principal,
que só pode ser vivenciado por meio do
perguntar, mesmo que seja a pergunta pela
técnica a partir da própria técnica.
O problema básico de alguns dos críticos
das linguagens hipermidiáticas, que não
cognitiva de tradição analítico-kantiana produzem sua crítica nelas, é que pretende
(Heidegger, 1985). O mundo é a soma infinita adquirir um saber das coisas (daquele tipo
de horizontes em que habitam as coisas, os que só existe no empírico) anterior ao seu
seres e os conceitos, é a própria condição uso. Justamente por ser um utensílio é que
de existência do ser-aí, do estar-aí, mas a potencialidade do mundo dos programas
agora com a possibilidade de o ontológico interativos só pode aparecer pelo seu ma-
se manifestar por meio do ôntico. Tal como nuseio. O intramundano está no uso, nunca
o inconsciente freudiano-lacaniano, o mundo na descrição da ferramenta. Como podemos
comunicacional não pode ser um objeto falar da importância do metrônomo para
analisável, não é redutível a um método. Sua a música se não experimentamos nada
experiência mais própria está na abertura, na de música e, nem mesmo, do utensílio?
busca, no desvelamento, na irredutibilidade Como poderemos avaliar as mudanças e
à presença de um sentido. Sentido é o que potencialidades que tal recurso trouxe?
se constrói na abertura da compreensão, diz Se, de alguma forma, não nos tornamos
Sloterdijk. Há sempre uma visão prévia que mestres frente ao utensílio, este passa a nos
possibilita que algo se torne compreensível atingir animicamente e metafisicamente. O
como algo. Extensão do homem, sim, mas uso é a forma mais primitiva de acesso à
do homem no mundo (Heim, 1998). compreensão do mundo que se apresenta a
McLuhan viu na eletricidade o corte nós por meio das ferramentas presentes no
na sequência linear da palavra impressa. A cotidiano. Nesse sentido, o maior desafio
simultaneidade da compreensão tornou-se concentra-se no desenvolvimento da criação
possível, assim como o imaginário da criati- e da reflexão analíticas, que pode emergir
vidade se sobrepôs ao mundo das sequências da experiência com o mundo técnico da
e dos encadeamentos lineares. Sem dúvida dialogia digital (Hansen, 2004).
o tema dos meios de comunicação como ex- Em plena inauguração de um novo mun-
tensão do humano nos possibilita pensar no do conceitual, a comunicação nas esferas
encontro da compreensão da comunicação provoca um rol de problemas filosóficos,
nas esferas com a forma de ser reticular do exatamente a partir de seu uso na dimensão
estar no mundo. Novidade? Não, no âmbito estética. Esse momento é o que chamo de
conceitual; sim, nas possibilidades digitais autofundação da comunicação digital. A
do encontro da experiência estética com a autofundação possibilita o equilíbrio entre
técnica, num caminho que deve se desdo- o universal e o particular, pois se evidencia
brar da primeira em direção à segunda. A que, concomitantemente, a partir do parti-
experiência estética deve responder à per- cular, toda a universalidade se abriga e que

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o primeiro não pode ser entendido sem o que ofereça a demonstração dos contextos
segundo (Gadamer, 1977). cotidianos da contemporaneidade. Por um
Em grande parte, a compreensão trans- lado, o mundo das tradições midiáticas
forma-se num ser que não está lá adiante, analógicas e analíticas pode ser apreendido
passível, aguardando sua finalização, mas por essas mídias digitais tecnofágicas. Por
situa-se na condução e na perspectiva de outro lado, é justamente a possibilidade
um ser projeto. Um projeto predisposto, de construção desse mundo que revela o
preconcebido, mas, também, um projeto nascimento de uma comunicação como
indeterminado, incompleto, encontrando espumas. A essência dessa nova maneira
na incompletude e na infinitude suas po- de conhecer/comunicar localiza-se não so-
tenciais identidades. Esse encurtamento do mente no fato de ela comportar uma relação
ser ao espaço do interminável, por um lado, com tudo que já está aí, de uma maneira
ainda não pode ser captado por nenhuma ou de outra, revelado, mas também porque
estrutura técnica de comunicação, por outro comporta sempre uma possibilidade estética
lado, sempre teve seu espaço garantido na que desvela tanto sua identidade quanto
experiência estética. seu próprio desvelamento. De nada adianta
Ser e linguagem são a mesma coisa. ficarmos numa contemplação melancólica
Não há como instrumentalizar os signos frente ao fenômeno, como costumam, por
para entendermos sua essência, assim como vezes, fazer alguns críticos das comunica-
não podemos pensar sem signos. Nenhum ções. O fenômeno atual das ferramentas e
pensamento precede o império dos signos, o mundo da utensilagem digital não estão
pois é sempre o resultado de uma semiose aí para contemplação, seja lá qual for a
ilimitada, tal como na rede lacaniana de sig- intenção. É uma típica tecnologia que, para
nificantes. O sentido próprio da constécnica ser reconstruída e/ou desmistificada, só é
está no fato de esta pertencer ao signo; está possível fazê-lo imerso no seu mundo. Ins-
à mercê desse e lhe dá consistência. trumento, ferramenta, utensílio, máquina,
objetos, coisas, plástico e energia, eis sua
“Uma vez que o homem só pensa por essência “cóisica”, que se situa muito aquém
signos e outros símbolos exteriores, esses de suas potencialidades comunicacionais, já
poderiam retorquir: ‘Tudo o que você diz que não estão, primordialmente, localizadas
aprendeu-o conosco, e sempre precisará de em seu estar-no-mundo.
uma palavra como interpretante de teu pen-
samento’. De fato, os homens e as palavras “É em nosso comércio com o utensílio que
educam-se mutuamente; cada aumento de nós realizamos unicamente conhecimento
informação humana envolve e é envolvi- com ele. Longe de possuirmos um saber das
do por um aumento de informações das coisas anterior ao seu uso, é, ao contrário, a
palavras. Não há elemento na constécnica utilização enquanto tal que constitui aqui o
que não tenha correspondente na palavra. modo de tomada do conhecimento primário
É por esse caminho que devemos entender e adequado, um modo primário e apropriado
que o signo é o próprio homem: ‘A minha de descoberta do ente intramundano. Da
linguagem, assim, é a soma de mim próprio; mesma forma, não é refletindo sobre a natu-
porque o homem é o pensamento’” (Peirce, reza que a desvelamos na potencialidade de
1967, p. 58). seu reino, mas combatendo-a, protegendo-
nos dela e tornando-nos mestres frente a
Em síntese, a hipermídia deve atuar ela” (Heidegger, 2001, p. 98).
como uma comunidade de comunicação,
reconstruída a cada instante como o mundo Portanto, as discussões em torno do
da linguagem partilhada. diálogo da técnica com o modo de ser da
Esse é o ponto fulcral de Sloterdijk na compreensão não podem deixar de lado esse
obra Esferas III – Espumas: a possibilidade encontro entre a comunicação nas esferas, a
de construção de um mundo multifocal experiência estética e a hipermídia.

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