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Fim de partida

a partir de End Game


PROCESSO DE CRIAÇÃO
MAGMA (LODO DA VIDA)

O DRAMA (AÇÀO) SURGE ANTES DA DRAMATURGIA, A IMAGEM DE UM HOMEM A BEIRA DA MORTE


NUMA SALA HOSPITALAR DE TRATAMENTO INTENSIVO (U.T.I.), ASSISTIDO POR
ESPECTADORES/MÉDICOS (RESPONSÁVEIS EM EVITAR QUE ELE DEIXE DE SOFRER FÍSICA E
EXISTENCIALMENTE), FOI O PONTO DE PARTIDA PARA A CRIAÇÃO DA PEÇA FIM DE PARTIDA.
PARA QUE O DRAMA (AÇÃO) PUDESSE LIBERTAR SEU PESO SIGNIFICATIVO, ATRAVESSAR O ESPAÇO E
COMUNICAR COM O ESPECTADOR DISTRAÍDO (MOSTRANDO O PROFUNDO SIGNIFICADO DO SEU
DRAMA), ERA NECESSÁRIO ALGUM ELEMENTO LITERÁRIO DRAMÁTICO, QUE PUDESSE FUNDIR-SE
COM A IMAGEM DO TEXTO CÊNICO DO PEQUENO DRAMA, E A PARTIR DAÍ CONSTRUIR-SE-IA UMA
DRAMATURGIA ORIGINAL PARA ESSA HIPOTÉTICA CRIAÇÃO.
REMEXENDO A MEMÓRIA, DOIS AUTORES ERAM ALVO DE INTERESSE: FERNANDO ARRABAL E SAMUEL
BECKETT. AMBOS TÊM UMA MANEIRA LÚDICA EM ESTRUTURAR SUAS CRIAÇÕES, SEUS MUNDOS
ONÍRICOS POSSUEM UM CERTO CHAMAMENTO À IMORTALIDADE.

TO PONTO DE PARTIDA
ENTRE MUITAS POSSIBILIDADES, A SORTE ENCARREGOU-SE DA ESCOLHA FINAL: FIM DE PARTIDA DE
BECKETT (TRADUZIDO DO ORIGINAL FRANCÊS PARA O CASTELHANO POR ANA MARIA MOIX,
MARGINALES, 29 EDIÇÃO 1997, TUSQUETS EDITORES, BARCELONA), MOSTROU-SE DUPLAMENTE
PROMISSOR: SE POR UM LADO TEM UMA FÁBULA DE ENCLAUSURAMENTO, DE NECESSIDADE DO
OUTRO, DO VAZIO EXISTENCIAL; POR OUTRO LADO TEM UMA POÉTICA LITERÁRIA LIBERTADORA,
PROFUNDA, SIMPLES E BELA.
A IMOBILIDADE EM FIM DE PARTIDA INVADE A CENA ASSIM QUE A PEÇA COMEÇA. DOS 04
PERSONAGENS, 03 ESTÃO PARALISADOS E O 4° MOVE-SE COM DIFICULDADE, AS RELAÇÕES HUMANAS
SÃO ABERTAMENTE HOSTIS E ESTÃO A UM PASSO DA EXTINÇÃO, HÁ UMA SITUAÇÃO OPRESSIVA DE
MÚTUA DEPENDÊNCIA.
O TEMA PRINCIPAL DESSA PEÇA É A IMPOSSIBILIDADE DE ACABAR, PERSONAGENS OU OBJETOS
ESTÃO NO FIM OU QUASE NO FIM, OS PERSONAGENS REALIZAM UMA SERIE DE MOVIMENTOS INÚTEIS
ENCAMINHADOS PARA UM FIM QUE CONSTANTEMENTE É ADIADO.
DA FÁBULA DE BECKETT O QUE INTERESSAVA ERA O TOM ATMOSFÉRICO DO ESPAÇO FECHADO
VAZIO E PESADO, QUE ENQUADRAVA-SE PERFEITAMENTE NO CONTEXTO DO HOMEM A BEIRA DA
MORTE, SEM SAÍDA, SEM VONTADE EM DETERMINAR SUA TRAJETÓRIA, AINDA DEPENDENTE DA
CORAGEM DO OUTRO. DO PRÓXIMO.
D0 SEU TEXTO LITERÁRIO, DEFINIU-SE SELECIONAR DENTRE A TOTALIDADE DAS FALAS DE TODOS OS
SEUS PERSONAGENS, O QUE REALMENTE PARECESSE VITAL PARA O ENTENDIMENTO DO TEMA
PROPOSTO CONSTRUÍDO POR BECKETT (NÃO QUE ISSO FOSSE SAGRADO. MAS A PROFUNDIDADE
PROPOSTA POR ELE PARA O RECONHECIMENTO DO VAZIO HUMANO, NÃO PODIA SER FACILMENTE
IGNORADA), E A PARTIR DESSA ETAPA COMEÇAR-SE-IA A CONSTRUIR A CRIAÇÃO DA DRAMATURGIA
DESSE OUTRO FIM DE PARTIDA, JÁ NÃO MAIS DE BECKETT.
T1 TRADUÇÃO CASTELHANO PARA O PORTUGUÊS
TRADUZIR E READEQUAR O TEXTO CASTELHANO AO CONTEXTO TEMPORAL E ESPACIAL PRESENTE,
FOI O PRIMEIRO GRANDE DESAFIO. TRABALHO QUE EXIGIU MUITA PACIÊNCIA E ALGUMA DIFICULDADE
PARA CONOTAR DETERMINADAS IDÉIAS, MESMO COM A PROXIMIDADE DA LÍNGUA.
PARA FACILITAR O PROCESSO SELETIVO, RESOLVEU-SE APAGAR DO TEXTO ORIGINAL TODAS AS
DIDASCÁLIAS, INDICAÇÕES CÊNICAS, RUBRICAS E A IDENTIFICAÇÃO NAS FALAS DOS PERSONAGENS,
QUE AGORA ERAM ELEMENTOS DISPENSÁVEIS, NÃO ERAM O ALVO DA SELEÇÃO.
O QUE IMPORTAVA NESSE MOMENTO DO PROCESSO ERA O CONSTRUIR UM LONGO MONÓLOGO SEM
DESTINATÁRIO, PLAUSÍVEL DE UMA OUTRA LEITURA, DESLIGADO DA SUA DRAMATURGIA ORIGINAL E
QUE FAVORECESSE UMA LIGAÇÃO SIMBIÓTICA E CONCRETA COM O DRAMA(AÇÃO) DO HOMEM A
BEIRA DA MORTE NUMA SALA HOSPITA(LAR). A PARTIR DESSE TRABALHO CIRÚRGICO SURGIA A
TRADUÇÃO PARA O PORTUGUÊS.

T2 CRIAÇÃO/SELEÇÃO LITERÁRIA E DRAMATÚRGICA


COM O TEXTO FILTRADO NA SUA ESTRUTURA DRAMÁTICA ORIGINAL, AGORA COM VARIADAS
POSSIBILIDADES DE LEITURA, JÁ SERIA POSSÍVEL ACRESCENTAR-LHE A FÁBULA JÁ ESTRUTURADA
DESSE HOMEM A BEIRA DA MORTE E CONSTRUIR-SE UMA NOVA LEITURA PARA UMA NOVA FÁBULA.
LENDO E RELENDO O GRANDE MONÓLOGO, SELECIONOU-SE FALAS QUE TINHAM O PESO JUSTO E
QUE POSSIBILITASSEM SEREM MANIPULADAS PARA ALÉM DO SEU CONTEXTO E DOS SEUS
PERSONAGENS, GANHANDO AUTONOMIA E NOVOS SIGNIFICADOS QUANDO ENCAIXADAS NA
ESTRUTURA DRAMATÚRGICA DO NOVO TEXTO CÊNICO.
ALÉM DA SELEÇÃO DAS FALAS DO TEXTO DE BECKETT, SE ACRESCENTOU A LISTA DAS FALAS DA
CONSTRUÇÃO LITERÁRIA, TEXTO ORIGINAL, MATERIAL ESSE, QUE SERVIU COMO ALICERCE PARA A
CRIAÇÃO DRAMATÚRGICA DO DRAMA DO HOMEM A BEIRA DA MORTE.
DEPOIS DE SELECIONADAS AS FALAS DO TEXTO ORIGINAL E ACRESCENTADAS FALAS E PALAVRAS
EXTERIORES A PEÇA DE BECKETT, FORMOU-SE UM LONGO TEXTO LITERÁRIO COM CARACTERÍSTICAS
POÉTICAS.
DAS 803 FALAS DOS PERSONAGENS QUE COMPÕEM O TEXTO DE BECKETT. FORAM EXTRAÍDAS 39
FALAS NA ÍNTEGRA OU PARTE DELAS, A ELAS ACRESCENTOU-SE MAIS 10 FALAS EXTERIORES AO
TEXTO.
EM 17 DAS 39 FALAS SOMOU-SE OUTROS FRAGMENTOS QUE COMPLEMENTARAM AS FALAS DO TEXTO
ORIGINAL, TOTALIZANDO 49 FALAS QUE DAQUI ADIANTE IRÃO SUSTENTAR A CONSTRUÇÃO CRIATIVA
DA DRAMATURGIA DO HOMEM A BEIRA DA MORTE, FINALIZANDO A CRIAÇÃO LITERÁRIA AO FINAL DO
PROCESSO, COM 126 TEXTOS CÊNICOS, ALGUNS PERTENCENTES AOS PERSONAGENS, OUTROS
INERENTES À ENCENAÇÃO.

T3 PROCESSO DE MONTAGEM

1ª ESTRUTURA DRAMATÚRGICA LITERÁRIA DE O FIM DE PARTIDA


DEPOIS DA SELEÇÃO REALIZADA, AS FALAS FORAM REORDENADAS E REAGRUPADAS EM 53 BLOCOS
INDEPENDENTES QUE SERVIRIAM PARA TRAÇAR O 1º ROTEIRO FÍSICO E ESPACIAL DA
REPRESENTAÇÃO. A SEGUIR FORAM ACRESCENTADAS AINDA ALGUMAS INDICAÇÕES CÉNICAS E
ALGUMAS DIDASCÁLIAS QUE POSSIBILITASSEM ORIENTAR A CRIAÇÃO DO INTERPRETE DO HOMEM A
BEIRA DA MORTE. NESSA ETAPA DO PROCESSO TEMOS UM 1º ESBOÇO DA DRAMATURGIA, QUE DEVE
SERVIR COMO REFERENCIAL PARA A CONSTRUÇÃO DA ENCENAÇÃO E DO TRABALHO CRIATIVO DO
ATOR.
DURANTE O PROCESSO DE ENSAIOS O TEXTO APRESENTADO COMO REFERÊNCIA COMEÇA A
TRANSMUTAR-SE SEGUINDO AS EXIGÊNCIAS QUE A CRIAÇÃO/REPRESENTAÇÃO NECESSITA. NESSA
ETAPA NÃO CONTÁVAMOS COM ALGUNS ELEMENTOS ( ILUMINAÇÃO, CENOGRAFIA, SONOPLASTIA,
VÍDEO, ESPAÇOS DA REPRESENTAÇÃO) QUE SÓ ENTRARIAM NA ENCENAÇÃO E NA DRAMATURGIA A
PARTIR DA ESTRÉIA, TRANSFORMANDO RADICALMENTE A APARÊNCIA DRAMATÚRGICA INICIAL DO
ACONTECIMENTO, QUE CONTINUARÁ TRANSMUTANDO-SE ATÉ A DERRADEIRA APRESENTAÇÃO DE O
FIM DE PARTIDA, NUNCA SENDO A MESMA COISA A CADA NOVA NECESSIDADE QUE O
ACONTECIMENTO APRESENTA.

T4 ESPETÁCULO VERSÃO CÉNICA DE O FIM DE PARTIDA

QUASE NO FINAL DO PROCESSO DE MONTAGEM. SURGIRAM ALGUNS PROBLEMAS RELATIVOS A


CONCRETIZAÇÃO DE ALGUMAS IDÉIAS PROPOSTAS PELA ENCENAÇÃO, OUTROS SURGIRIAM JÁ NO
DECORRER DAS APRESENTAÇÕES: UNS LOGO NO PRINCÍPIO, OUTROS A MEDIDA QUE O TEMPO
AVANÇAVA NO ESPAÇO.
DE CARA, NA PRIMEIRA APRESENTAÇÃO UM PROBLEMA SE FEZ PRESENTE: COMO CHEGARIA O
PÚBLICO ATÉ A SALA DA REPRESENTAÇÃO JÁ VESTIDO? QUEM OS VESTIRIA E AONDE ESSE
PROCESSO SE DARIA? E AINDA: ENQUANTO ESSE PROCESSO DECORRIA O QUE SERIA FEITO D0
PÚBLICO QUE AGUARDAVA PARA ENTRAR NA SALA DA REPRESENTAÇÃO?
A SOLUÇÃO IMEDIATA PARA ESSA 1º APRESENTAÇÃO FOI PEGAR UMA PESSOA QUE ESTAVA A MÃO,
VESTIR-LHE UMA BATA E UMA MÁSCARA HOSPITALAR E DAR-LHE A FUNÇÃO DE VESTIR O PÚBLICO
PRESENTE. JÁ PARA A 2ª APRESENTAÇÃO TENTAR-SE-IA EQUACIONAR ESSE PEQUENO, MAS
INCONVENIENTE PROBLEMA.
COMO AS APRESENTAÇÕES DAVAM-SE UMA VEZ A CADA SEMANA. TINHA-SE UM CERTO TEMPO PARA
SE PENSAR EM POSSIBILIDADES. A SOLUÇÃO ENCONTRADA FOI CONVIDAR UM OUTRO ATOR E
INCUMBIR-LHE DESSA FUNÇÃO, CRIANDO PARA ELE UM PEQUENO ROTEIRO DE MOVIMENTAÇÃO QUE
LHE PERMITISSE DAR FLUIDEZ AO PROCESSO DE ENCAMINHAMENTO DO PÚBLICO ATÉ A ÁREA DA
REPRESENTAÇÃO.
MAS COMO SERIA UM DESPERDÍCIO UTILIZAR UM ATOR SOMENTE COMO GUIA, IGNORANDO SEU
POTENCIAL CRIATIVO E INTERPRETATIVO, CRIOU-SE PARA ELE UM NOVO PERSONAGEM QUE
GRADATIVAMENTE FOI-SE INCORPORANDO A FÁBULA DO HOMEM A BEIRA DA MORTE.
PRIMEIRAMENTE UM PERSONAGEM QUE DESEMPENHASSE AS AÇÕES NECESSÁRIAS PARA A
REALIZAÇÃO DA FUNÇÃO (CHAMAR O PÚBLICO, VESTI-LO, ENCAMINHÁ-LO A SALA DA
REPRESENTAÇÃO E FILMAR O ACONTECIMENTO), QUE MAIS TARDE SERVIRAM DE SUSTENTAÇÃO
PARA CRIAR A RELAÇÃO DESSE PERSONAGEM COM O HOMEM A BEIRA DA MORTE. ASSIM NASCIA O
ENFERMEIRO; PERSONAGEM NÃO SOMENTE COM A FUNÇÃO DE MOVIMENTAR AS PESSOAS PELOS
ESPAÇOS (QUE AGORA JÁ ERAM 04), MAS PRINCIPALMENTE EM CONFLITUALIZAR COM O HOMEM A
BEIRA DA MORTE E COM O PÚBLICO; OPRIMI-LOS E ACIMA DE TUDO GARANTIR QUE OS SEUS
SOFRIMENTOS NÃO CESSASSEM PELAS SUAS PRÓPRIAS VONTADES. DEU-SE A ESSE PERSONAGEM O
PESO NECESSÁRIO PARA QUE A REPRESENTAÇÃO METAMORFOSEASSE O SEU OBJETIVO PRIMEIRO.
FORA ESSE PROBLEMA. QUE ERA O MAIS IMPORTANTE A SER RESOLVIDO, SURGIRAM OUTROS DE
ORDEM TÉCNICA, MAS QUE DE ALGUMA MANEIRA INFLUENCIARAM DE MANEIRA POSITIVA O TEOR
ARTÍSTICO DA CRIAÇÃO. ENQUANTO PERMANECEMOS COM APRESENTAÇÕES NO MESMO ESPAÇO
FÍSICO, AS MODIFICAÇÕES ERAM RELATIVAS AO TEMPO, REGISTRO INTERPRETATIVO E OUTROS
CONFRONTOS INERENTES A ENCENAÇÃO, A PARTIR DO MOMENTO QUE A REPRESENTAÇÃO SAIU
DESSE ESPAÇO INDO APRESENTAR-SE EM OUTROS LOCAIS, SURGIRAM PROBLEMAS TÉCNICOS
LIGADOS ESPECIFICAMENTE A ÁREA DA CENOGRAFIA E IMAGEM. UM DOS OBJETOS DE CENA (UMA
LAJE MORTUÁRIA) CRIAVA DIFICULDADES PARA SUA DESLOCAÇÃO, SENDO DEFINITIVAMENTE
EXTRAÍDO DA ENCENAÇÃO, PASSANDO O ATOR A FICAR DEITADO DIRETAMENTE NO CHÃO, MUDANDO
COMPLETA E RADICALMENTE A SUA CONTRA CENA E SUA RELAÇÃO COM O PÚBLICO E
INEVITAVELMENTE REFORÇANDO AINDA MAIS A CONDIÇÃO DO HOMEM A BEIRA DA MORTE. OUTRA
RADICAL MUDANÇA OCORREU QUANDO NÃO FOI POSSÍVEL A FIXAÇÃO DA CAMERA DE FILMAR QUE
REGISTRAVA E PROJETAVA EM TEMPO REAL A REPRESENTAÇÃO, PASSANDO ESSA, ÀS MÃOS DO
ENFERMEIRO, QUE A PARTIR DESSE MOMENTO TAMBÉM TRANSMUTA SUA RELAÇÃO E O SEU
CONFRONTO COM O PÚBLICO. ASSIM POUCO A POUCO A REPRESENTAÇÃO COMEÇAVA A GANHAR A
SUA FORMA DEFINITIVA.

T5 RECEPÇÃO DO ESPETÁCULO FIM DE PARTIDA

A RECEPÇÃO DO TRABALHO MOSTROU-NOS QUE A REPRESENTAÇÃO ATINGIU SEU OBJETIVO


PRIMORDIAL: PRIMEIRO O ENCONTRO PARA LOGO A SEGUIR O CONFRONTO ENTRE NOSSOS IGUAIS,
QUE AS VEZES NA BANALIDADE DAS NOSSAS VIDAS DIÁRIAS EVITAMOS FAZER, ANESTESIADOS PELO
PESO EXTERNO DO MUNDO QUE AUMENTA AINDA MAIS NOSSO SOFRIMENTO HUMANO, FAZENDO-NOS
FORÇOSAMENTE ESQUECER O QUE NÃO PODEMOS ESQUECER NUNCA; POIS ELE, O PESO QUE NOS
FADA A TODOS, NÃO SE ESQUECE JAMAIS.
PODEMOS APRESENTAR ALGUMAS REAÇÕES DO PÚBLICO EM RELAÇÃO AO TRABALHO, UMAS COM
MAIOR, OUTRAS COM MENOR IMPACTO, MAS TODAS COM PROFUNDAS REFLEXÕES A SEREM
CONSIDERADAS.
A REPRESENTAÇÃO LEVAVA O PÚBLICO POR UM ROTEIRO ESPACIAL E SENSORIAL, NOS
POSSIBILITANDO, DE ESPAÇO A ESPAÇO OBSERVAR CLARAMENTE AS MUDANÇAS
COMPORTAMENTAIS E EMOCIONAIS DO PÚBLICO PRESENTE.
QUANDO TODO O PÚBLICO ESTAVA REUNIDO NA PRIMEIRA SALA, A ESPERA QUE O ESPETÁCULO
COMEÇASSE, A NORMALIDADE SOCIAL REINAVA COM SEU DISTANCIAMENTO TERRITORIAL, A PARTIR
DO MOMENTO EM QUE AS PESSOAS ERAM CHAMADAS PARA A SEGUNDA SALA (ONDE AGUARDARIAM
SENTADAS A CHAMADA DO ENFERMEIRO), SEU COMPORTAMENTO SOCIAL SOFRE UMA PEQUENA
MAS NÍTIDA MUDANÇA, HÁ UMA CERTA CUMPLICIDADE TERRITORIAL QUE ATÉ A POUCO NÃO EXISTIA,
O VOLUME VOCAL TENDE A UMA PEQUENA CONTENÇÃO, UMA CERTA EXPECTATIVA RONDA O
ESPAÇO. QUANDO O ENFERMEIRO QUASE NU (VESTIDO APENAS COM A BATA CIRÚRGICA
TRANSPARENTE) ADENTRA A SALA E CONVOCA UMA DAS PESSOAS PARA ACOMPANHÁ-LO, HÁ DE
IMEDIATO DUAS REAÇÕES: A DA PESSOA QUE É CHAMADA E A DAS QUE PERMANECEM A ESPERA. A
PARTIR DE AGORA TODAS MUITO CURIOSAS PARA SABER O QUE SE PASSA NA TERCEIRA SALA. A
REAÇÃO QUE TEM A PRIMEIRA PESSOA A ENTRAR NA 3ª SALA É ÚNICA, COMO É ÚNICA A DA ÚLTIMA,
NOTA-SE COM FREQUÊNCIA UM CERTO DESCONFORTO NESSA PESSOA. QUANDO NA SALA COMEÇAM
ADENTRAR OUTROS SERES, O TOM DE CUMPLICIDADE NERVOSA MANIFESTAM-SE, É COMUM NESSA
PARTE DO ROTEIRO UMA CERTA DESCONTRAÇÃO COMO QUE PREPARANDO PARA O QUE HÁ DE VIR.
QUANDO O PÚBLICO, DEPOIS DE VESTIDO, É ENCAMINHADO PARA A ÚLTIMA SALA, PERCEBE-SE
DURANTE TODA A REPRESENTAÇÃO UM SILÊNCIO MORTAL E UM PESO IMENSURÁVEL NA FACE DE
ALGUMAS PESSOAS.
EM GERAL NÃO HÁ PALMAS FINALIZANDO O ACONTECIMENTO; A ESTRUTURA DA DRAMATURGIA
CÊNICA E O ESTADO PSICOLÓGICO DO PÚBLICO DÃO POUCAS POSSIBILIDADES PARA A
CONCRETIZAÇÃO DESSE RITUAL, QUE TERMINA COM O ENFERMEIRO PEDINDO À TODOS QUE «FAÇAM
O FAVOR DE SE LEVANTAR, TIRAR AS BATAS. POSAR AS MÁSCARAS E SAIR».
DURANTE AS VÁRIAS APRESENTAÇÕES O MAIS PERCEPTÍVEL ERA O ALÍVIO DE ALGUMAS PESSOAS AO
TERMINO DA REPRESENTAÇÃO. EM ALGUNS CASOS HAVIA PESSOAS QUE CHEGAVAM ATÉ A TERCEIRA
SALA E LITERALMENTE FUGIAM, UNS LOGO NA ENTRADA, OUTROS LOGO QUE O ENFERMEIRO VIRAVA
AS COSTAS; AINDA ALGUNS FUGIAM QUANDO SENTIAM O FORTE ODOR A ÉTER QUE IMPREGNAVA O
ESPAÇO. DE TODAS AS FUGAS, QUE NÃO FORAM ASSIM TÃO POUCAS, APENAS UMA PESSOA NÃO
CONSEGUIU SUPORTAR A REPRESENTAÇÃO DEPOIS DE ESTAR NA QUARTA SALA, FUGINDO NO MEIO
DA APRESENTAÇÃO.
ESSAS FUGAS JÁ ERAM PREVISTAS PELA ENCENAÇÃO, SABIA-SE QUE MUITOS DOS ELEMENTOS
PRESENTES NA CRIAÇÃO LEVARIAM A CONFRONTOS QUE PODERIAM NÃO CHEGAR AO FINAL.
TRANSCREVEMOS ABAIXO ALGUNS FRAGMENTOS DE CRÍTICAS JORNALÍSTICA E ACADÉMICA SOBRE A
REPRESENTAÇÃO DE O FIM DE PARTIDA, CRÍTICAS QUE NOS AJUDAM A COMPREENDER O GRAU DA
PROFUNDIDADE QUE ATINGIMOS COM A REALIZAÇÃO DO NOSSO SAGRADO TRABALHO, HÁ QUE FICAR
CLARO ISSO, NÃO DESPRENDEMOS ENERGIA PARA SAGRAR NOSSO EGOCENTRISMO ARTÍSTICO, O
QUE NOS INTERESSA VERDADEIRAMENTE SÃO OS OLHOS NOS OLHOS E A POSSIBILIDADE QUE ESSE
ATO REPRESENTA PARA ENTENDERMOS E ANULARMOS O SOFRIMENTO QUE NOS AFLIGE A ALMA.
Personagens O Enfermeiro
O homem
peixinho dourado

Cenário Uma Sala de Convívio, qualquer


Uma sala de Espera, vazia
Uma sala de Troca de roupa, negra
Uma sala UTI (unidade de tratamento intensivo), com cadeiras, tubos e garrafas penduradas pelo
ar

Figurino Batas descartáveis de cirurgia

REGISTRO
INTERPRETATIVO HIPERNATURALISTA (ENERGIA BUTOH)

ESTÉTICA EXPRESSIONISTA

Linguagem SIMBÓLICA

Iluminação Sala Convívio Branca


Sala de Espera Branca Contra luz
Sala de Troca de roupa Azul
Sala UTI Vermelha e foco Branco

Sonoplastia Música instrumental espacial

Tema O Vazio da existência Humana

CENA PRIMEIRA

unidade 1

1. O público aguarda o início da representação numa sala CONTÍGUA. O ticket de entrada é uma senha
numerada.
CENA SEGUNDA

unidade 1

2. O público é encaminhado para uma segunda pequena sala totalmente vazia. Aguarda por mais alguns
instantes. O espaço é preenchido de luz vermelha. Um homem vestido somente com uma roupa
descartável de sala de cirurgia invade o espaço. Carrega a tiracolo um calendário e uma caneta
pendurada no pescoço. Tem nos olhos olheiras profundas e vermelhas. Examina seu calendário e chama
um número.

3. Enfermeiro- NÚMERO 13, NÚMERO 13 POR FAVOR.

4. Uma pessoa do público com o respectivo número caminha até ele.

unidade 2

5. Enfermeiro- O SEU TICKET POR FAVOR.

CENA TERCEIRA
unidade 1

6. A pessoa entrega seu ticket à ele. Os dois desaparecem no interior da terceira sala. Um som ensurdecer
se faz presente. A terceira sala é escura e longa, tem uma luz azulada preenchendo seu vazio, uma das
paredes é lisa e uma outra repleta de aventais descartáveis cirúrgicos e máscaras também descartáveis.
O enfermeiro pega num avental e numa máscara. Tem uma postura mecânica, indiferente.

unidade 2

7. Enfermeiro (mecanicamente dando instruções) - ESTIQUE OS BRAÇOS...PARA FRENTE...PARA


DENTRO DA BATA...VIRE-SE ...PONHA A MÁSCARA... ENCOSTE-SE...NA PAREDE...AO FUNDO POR
FAVOR...

unidade 3

8. Ele encosta-se junto dessa pessoa e segreda alguma coisa no seu ouvido esquerdo. São fragmentos de
um poema.

9. Enfermeiro (sussurra amavelmente) –


NÓS QUE HABITAMOS ESTE MUNDO
QUE SABEMOS QUE A INTERNET LIGA O MUNDO
QUE SABEMOS DA VIDA PRIVADA DE CELEBRIDADES
QUE SABEMOS QUE NEGROS MORREM EM ÁFRICA AOS MILHARES COM FOME
NAS GUERRAS DOS HOMENS QUE ALIMENTAM SEUS BANQUETES COM O SANGUE DOS QUE
PERDERAM SUAS IDENTIDADES
SABEMOS TAMBÉM QUE AQUI OUTROS TANTOS SOFREM OUTROS MALES
NÓS QUE SABEMOS SOBRE A LEI QUÂNTICA
QUE DUVIDAMOS DOS OLHOS AZUIS DE CRISTO
SERÁ QUE SOFREMOS TANTO?
DIGO, TANTO QUANTO PODEM SOFRER OUTROS semelhantes SERES
ABANDONADOS PELA SORTE DE SEUS DESTINOS TORTOS
CONTROLADOS POR MENTES QUE NÃO SE ENGANAM
QUE CONTROLAM A NÓS TAMBÉM
MENTES DESCONHECIDAS É VERDADE
QUE CONSTRÓEM COMUNIDADES DE SERES LARGADOS NOS SEUS CANTOS
E NÓS
NÓS MESMOS, LARGADOS NUM CANTO
GEMENDO NOSSA DOR SOLITÁRIA.

unidade 4

10. Abandona a pessoa e dirige-se para a segunda sala. Examina seu calendário e chama outro número.

11. Enfermeiro- NÚMERO 4, NÚMERO 4 POR FAVOR.

12. Outra pessoa do público com o respectivo número caminha até ele.

13. Enfermeiro- SEU TICKET POR FAVOR.

14. Vão os dois para dentro da terceira sala e o ritual repete-se. O enfermeiro depois de vestir cada pessoa
segreda no seu ouvido esquerda um fragmento de um poema. Entra na sala entra a última pessoa. O
enfermeiro veste-a, dirige-se para a extremidade da pequena sala, e abre uma terceira porta.

CENA QUARTA
unidade 1

15. Enfermeiro- FAÇAM O FAVOR DE ENTRAR E OCUPAREM O LUGAR COM O VOSSO NÚMERO,
FAVOR DE ENTRAR E OCUPAREM O LUGAR COM VOSSO NÚMERO, DE ENTRAR E OCUPAREM O
LUGAR COM VOSSO NÚMERO, E OCUPAREM O LUGAR COM O VOSSO NÚMERO, LUGAR COM O
VOSSO NÚMERO, COM VOSSO NÚMERO, VOSSO NÚMERO, NÚMERO, NÚMERO, NÚMERO...

16. O espaço é uma sala margeada por cadeiras cobertas com panos brancos e sujos de sangue, com
garrafas penduradas pelo espaço, cheias de líquidos coloridos, com tubos transparentes que rasgam o
espaço vazio a caminhão do solo. O chão é também forrado com panos brancos sujos de sangue. De
frente para as cadeiras um televisor ligado a uma camera de filmar que projeta no ecrã televisivo imagens
do público presente. O cheiro a éter impregna o espaço.

unidade 2

17. enfermeiro invade a cena, agacha-se e dobra um pano que tapa alguma coisa no chão. Debaixo do pano
um homem nu ligado aos tubos transparentes pendurados em garrafas pelo espaço. Seu corpo está
coberto por sangue e hematomas. Dos seus olhos, narinas, ouvidos, punhos e pulsos escorre sangue. O
enfermeiro coloca o pano dobrado embaixo da cabeça do homem nu e vai sentar-se numa cadeira ao
seu lado. Pega a camera sobre a TV e começa registrar as imagens da representação. O homem nu tem
sobre a face um velho trapo encardido que esconde toda a sua cara. Gradativamente ele vai-se
destapando, retirando lentamente o trapo que esconde seu rosto. Seus movimentos são lentos e
inergéticos. Sua respiração ofegante e pesada. A música baixa ao fundo gradativamente.

CENA QUINTA

unidade 1

18. HOMEM (retirando o trapo e olhando a sua volta lenta e gradativamente) - É o fim
Isto vai acabar
Os grãos juntam-se grãos Um a um
E um dia de repente é um monte
Um montinho
o monte possível

unidade 2

19. HOMEM (olhando para o trapo já junto a sua face) - Velho trapo haverá miséria maior que a minha
Talvez tenha havido Sem dúvida noutros tempos
E hoje Será que sofro tanto como sofrem meus semelhantes seres
Isto quer dizer que nossos sentimentos equivalem-se
Sem dúvida que sim
Tudo é tão absoluto
Quanto maior se é mais cheio se está
Ou quanto mais vazio

unidade 3

20. Seu corpo é rasgado por uma dor física qualquer.

21. HOMEM- Basta


22. Relaxa ofegantemente tentando aliviar a dor.

unidade 4

23. HOMEM- Já são horas que isto acabe e no entanto hesito em chegar ao fim
Em todo o caso ainda vacilo em acabar
Que terei eu hoje
Seria melhor que eu voltasse a dormir
Fora daqui é a morte

unidade 5

24. Novamente uma pequena dor invade seu ser.

25. HOMEM- Malditos progenitores


Ah os velhos Só pensam em comer Não pensam noutra coisa
Cada um com a sua especialidade

unidade 6

26. A dor intensifica-se.

27. HOMEM- Isto não vai depressa


Mas é sempre assim no final do dia
Um final de dia como todos os outros

unidade 7

28. Progressivamente a dor aumenta até chegar ao insuportável.

29. HOMEM- Isto progride

unidade 8

30. Tentando relaxar.

31. HOMEM- ah se eu dormisse


Se eu dormisse talvez eu amasse
Talvez eu e alguém iríamos pelos bosques
Veríamos o céu e a terra
Correríamos atrás dos nossos sonhos perdidos
Mergulharíamos no riacho doce dos nossos desejos esquecidos
E eu fugiria

unidade 9

32. Volta seu corpo para a posição inicial tentando adormecer.


Violentamente uma dor aguda invade sua cabeça, como querendo estourá-la.

33. HOMEM- Há uma gota de água na minha cabeça


Há um coração de sangue vermelho na minha cabeça cega
Ah se eu dormisse
Talvez sonhasse e nossos corações seriam tranquilos
Seria um sonho

unidade 10

34. Relaxa por completo na sua dor e pouco a pouco volta a sua normalidade.

35. HOMEM- Mas quando é que isto acaba


Do que será que ainda se pode falar
Não há pressa

unidade 11

36. Lentamente começa a sentar-se.

37. HOMEM- A minha ira recai

unidade 12

38. Olhando a sua volta com determinação

39. HOMEM- Tenho vontade de fazer xixi


Tenho vontade de fazer xixi
tenho vontade de fazer xixi...

unidade 13

40. Procura desesperadamente seu pênis. Encontra-o.

41. HOMEM (angustiado) - Mas também não tenho pressa


unidade 14

42. Pausa

43. HOMEM- Pela manhã nos dão estimulantes Pela tarde estupefacientes
Ou ao contrário Tanto faz

unidade 15

44. Alguma coisa fora desse tempo chama a sua atenção e ele tenta ouvir o mais além.

45. HOMEM (colocando as mão no ouvido esquerdo) - Mais além está o outro inferno
Ouçam

unidade 16

46. Olhando para trás fixando-se por algum tempo em algo e retornando a olhar pra frente.

47. HOMEM- Ouviram

unidade 17

48. Tempo.

49. HOMEM- Tudo isto é oco

unidade 18

50. A dor ausente retorna para marcar sua presença.

51. HOMEM- Basta

unidade 19

52. Olhando a sua volta angustiado.

53. HOMEM- Isto é duma tristeza


Nada mexe
É tudo tão cinzento
Preto claro
Todo o universo
Nunca se sabe
unidade 20

54. Tentando recuperar-se lentamente.

55. HOMEM- Esta noite vi meu peito aberto sangrando


Tinha uma ferida muito grande
Parecia uma coisa viva
Nessas noites quando meu peito aberto vermelho Pulsa meu coração infantil
Meus olhos parecem ver além das estrelas
Não sei

unidade 21

56. Começa lentamente a tentar ficar em pé. Não consegue.

57. HOMEM- Não estaríamos na hora de significar alguma coisa

unidade 22

58. Tenta novamente e com muito esforço assume uma posição quase ereta.

59. HOMEM- Se uma inteligência regressasse a terra


Não estaria tentada a formular idéias a custa de nos observar

unidade 23

60. Olhando a sua volta, como esperando respostas.

61. HOMEM- Até mesmo nós


Nós por momentos

unidade 24

62. Olha para uma garrafa que está a sua frente e tenta apanhá-la. Esforça-se exaustivamente. Não
consegue. Cai.

63. HOMEM- E pensar que tudo isto talvez não tenha servido para nada
unidade 25

64. Tempo.

65. HOMEM- Isto demora


Alguma coisa segue seu curso

unidade 26

66. Ele volta a se deitar.

67. HOMEM- Partirei só a caminho do sul a procura do mar


Construirei uma jangada
As corrente marítimas conduzir-me-ão longe
Muito longe
Até outros mamíferos
Partirei só
E vocês um dia ficarão cegos como eu
Ficarão sentados em algum canto escuro na plenitude do vácuo
Para sempre na sombra
Como eu
Um dia dirão
Estamos cansados
Vamos nos sentar um bocadinho
E sentarão
E depois dirão
Temos fome
Vamos nos levantar e fazer nosso comer
Mas não se levantarão
E dirão
Fizemos mal em nos sentarmos
Mas visto que sentamos Continuaremos sentados mais um pouco
Levantaremos depois e faremos o nosso comer
Mas vocês não se levantarão E nem farão o vosso comer
Olharão por um instante a parede branca E dirão:
Vamos fechar os olhos
Talvez dormir um pouco
e Depois pensam vocês
tudo ficará melhor
E fecharão os olhos
E quando voltarem a abri-los já não haverá parede branca
Apenas o vácuo da incerteza vazia
o infinito os rodeará E nem todos os mortos de todos os tempos Bastarão para preencher o vazio das vossas
certezas
E como uma semente no deserto árido Estarão vocês sós
Sozinhos
Um dia saberão o que é
Saberão como eu
Exceto que vocês não terão ninguém
Porque não tiveram piedade de ninguém
à parte que não haverá mais ninguém por quem sentir piedade

unidade 27

68. Tempo.

69. HOMEM- Só temos uma solução


Aniquilarmo-nos
Que tal
Gosto das velhas perguntas
Das velhas respostas que lançam novas perguntas
Não há nada melhor

unidade 28

70. A dor volta avassaladoramente profunda. seus músculos ENRIJECEM. Sua respiração comprime-se

71. HOMEM- Isto progride

unidade 29

72. Tempo.

73. HOMEM- Sigo meu curso


unidade 30

74. Tempo. Senta-se.

75. HOMEM- Ah as pessoas


Tem-se que lhes explicar tudo
Bom vamos lá
eu conheci um louco que julgava que o fim do mundo tinha Chegado
Ele pintava
Eu gostava dele
Ia visitá-lo ao hospício
Pegava-lhe na mão e arrastava-o até a janela
Olha ali, dizia eu
Os girassóis cortando o espaço Colorindo o céu azul
E ali as mulheres alegres cantando a beira do riacho das pedras pontiagudas
Ele soltava-se da minha mão E retornava ao seu canto
Ele só havia visto cinzas e devastação

unidade 31

76. Tempo.

77. HOMEM- Parece-me que esses casos não são assim tão raros

unidade 32

78. Tempo.

79. HOMEM- Eu gostava dele


Ele era pintor
Pintava

unidade 33

80. Tempo.

81. HOMEM- Não vos parece que isto já durou o bastante

unidade 34

82. Tenta levantar e acaba por ficar de joelhos.

83. HOMEM- Silêncio por favor


CENA SEXTA

unidade 1

84. Silêncio. o homem levanta-se e seu registro interpretativo muda por completo, seu corpo ereto ocupa todo
o espaço com seus músculos rijos, sua voz que aparentava a fragilidade do fim, das forças que acabam,
preenche o vazio sonoro do espaço com força e determinação. tem um tom irônico no falar.

85. HOMEM- Onde estava eu


Ah sim
o homem aproximou-se lentamente
Arrastando-se de barriga para baixo
De uma palidez e uma magreza admiráveis
Um longo silêncio se fez ouvir
Eu enchia calmamente o meu cachimbo de madrepérola
Acendia-o
Soltava uma baforada na sua cara
Vamos dizia eu
Sou todo ouvidos
Fazia nesse dia recordo-me perfeitamente Um frio extremamente vivo
Zero no termómetro
Mas como estávamos na véspera de natal Isso não tinha nada de extraordinário
Um clima de estação como costuma ser
Vamos dizia eu
Que mau tempo trouxe-te aqui
Ele levantou a cara completamente suja de porcarias
Borrada com suas lágrimas paternas
Olhou-me nos olhos
Não, não me olhe
Ele baixou a cabeça Murmurando desculpas sem dúvida
Diga logo
Eu estou muito ocupado com os preparativos da festa como deve calcular
Mas qual é o objetivo dessa invasão
Fazia um dia maravilhosamente esplêndido
sol gélido dos ventos do norte queimavam nossos lábios serenos
Vamos, vamos diga alguma coisa
Foi então que ele tomou a sua decisão
É o meu filho disse ele
Como se o sexo tivesse importância
De onde viria ele
Meio dia mais ou menos a cavalo disse ele
Não me venha dizer que ainda há população por aí
Era o que faltava
Expliquei-lhe que não havia almas vivas nos próximos 2 milhões de Kms
Informei-lhe sobre a extinção total de toda a espécie animal sobre a face da terra
Nem um gato revirando restos de comida
Bom, então quer fazer-me acreditar que deixou seu menino lá
Completamente só
E ainda por cima vivo
Fazia nesse dia recordo-me um vento uivante que gelava nossas espinhas
Vamos, vamos que quer de MIM afinal
Um pão disse ele
Um pão para o meu menino
Um pedinte como sempre
Pão
Mas eu não tenho pão
Então trigo
Trigo realmente tenho em meus celeiros
Mas reflita
Eu dou-te o trigo
Um K
Um K e 1/2
Leva-o ao teu filho e prepara-lhe se ele ainda estiver vivo
Uma boa papa
Uma boa papa e 1/2
Ele retoma suas forças
Talvez
E depois
Zanguei-me
Raciocina Estamos na terra o que espera você
Que a terra renasça em primavera
Que os mares e os rios voltem a encherem-se de peixes
Que ainda exista no céu um lugar para os imbecis
Para o senhor
Pouco a pouco acalmei-me
o suficiente para lhe perguntar quanto tempo demorou para chegar aqui
03 dias completos
em que estado tinha deixado a criança
mergulhado no sono disse ele
mas que espécie de sono
um sono infantil
infantil como
como os anjos que disfarçam a imortalidade em sorrisos com asas sem fim
enfim ele tinha me comovido
propus-lhe que trabalhasse para MIM
depois imaginava eu que ele não ficaria por muito tempo
aqui se tiver cuidado pode-se morrer uma bela morte
naturalmente confortável
então disse ele
a criança, posso trazer a criança
se ainda ela estiver viva é claro
era o momento que eu esperava
se eu posso recolher a criança
revejo-o de joelhos
as mãos no chão
fixava-me com seus olhos de louco apesar de ter-lhe avisado para não mirar meus olhos
unidade 2

(deixando a narrativa de lado, voltando gradativamente ao seu registro original)


chega por hoje
não terei por muito mais tempo esta estória
a não ser que acrescente personagens
mas onde encontrá-los
ai meu deus tende piedade de mim

unidade 3

86. Ajoelha-se em posição de oração.

87. HOMEM- agora rezemos a deus


silêncio (mirando a sua volta) um pouco de compostura senão não chegamos a nada (olhando para os céus)
Pai nosso....amém

unidade 4

88. Lentamente desmancha a posição de oração.

89. HOMEM- Fim da palhaçada

CENA SÉTIMA

unidade 1

90. Deita-se relaxadamente.

91. HOMEM- Sinto-me um pouco vazio


o esforço criativo prolongado suga-me todas as forças
Se eu pudesse arrastar-me a beira do mar Faria um travesseiro de areia
e durante a noite No meio de sonhos selvagens a maré viria-me acordar
eu acenaria para os navegadores perdidos
E depois nadaria até terras distantes
Ah se pudesse me arrastar
unidade 2

92. Chora compulsivamente.

93. HOMEM- que é que eu vou fazer


que é que eu vou fazer
É isso
Agora eu represento

unidade 3

94. Senta-se.

95. HOMEM- Chora-se para nada


Para não se rir
E pouco a pouco uma verdadeira tristeza nos ganha

unidade 4

96. Tempo.

97. HOMEM- Todos aqueles que eu poderia ter ajudado


Ajudado
Salvado
Mas raciocinem
Estamos na terra
Não tem remédio

unidade 5

98. Olhando fixamente as pessoas a sua volta.

99. HOMEM- Vão-se embora e amem-se


Lambam-se uns aos outros
Voltem aos vossos bacanais
Mas por favor deixem-me em paz
unidade 6

100. Tempo.

unidade 7

101. HOMEM- Tudo isto é uma grande merda


Nem sequer um cão verdadeiro
o fim está no começo e No entanto continua-se
Eu poderia talvez continuar a minha estória Acabá-la e começar outra
Talvez atirar-me ao chão
Enterrar minhas unhas nas ranhuras e arrastar-me com meus pulsos

unidade 8

102. Tempo.

103. HOMEM- Isto será o fim


E eu me pergunto quem poderá tê-lo trazido
Por que demorou tanto

unidade 9

104. Tentando levantar-se.

105. HOMEM- Eu estou aqui neste refúgio só contra o silêncio e a inércia


Se eu puder calar-me e ficar imóvel será coisa arrumada
Chamaria pelo meu pai e pelo meu filho
Chamaria 03 vezes para o caso deles não terem ouvido nem na 1ª nem na 2ª

unidade 10

106. Tempo.

107. HOMEM- Passos


Ratos
Olhos
o suspiro que se retém
Depois falar depressa
Não parar de falar
Falar como a criança Que se multiplica em 3, 4 para estar acompanhada
E falar em conjunto Na noite Na madrugada morta
E como grãos 1 a 1 soma-se e espera-se
para que toda a vida nos faça uma vida
Então que isto acabe
Que isto rebente com o resto No fim com as sombras Com os murmúrios e com todo o mal

unidade 11

108. Tempo.

109. HOMEM- Para acabar apenas uma coisa


Uma última graça
Compete-me representar

unidade 12

110. Posiciona-se.

111. HOMEM- Velho fim de partida perdida


Deitar fora
Tirar
Tornar a repor
Tu chamavas o tempo
Tu reclamavas a noite
Ela veio
Ela desceu
HEI-LA
E depois
Momentos nulos
Sempre nulos
Mas se querem fazer a conta
A conta ai está
E a estória acaba

CENA OITAVA
unidade 1

112. Levanta-se lentamente e com muito esforço em direção a garrafa presa por tubos a sua cabeça.

113. HOMEM- Se ele poderia ter o filho com ele


Era o momento que eu esperava
Não quer abandoná-lo
Quer que ele cresça enquanto o senhor vai minguando
Ele só conhece a morte o frio e fome nos seus extremos
Mas o senhor
o senhor deve saber o que é a terra presentemente
Coloquei-o perante suas responsabilidades

CENA NONA

unidade 1

114. A dor retorna com intensidade cruel, levando seu corpo ao solo.

115. HOMEM- Bem cá estou eu


E para acabar
Deitar fora
Arremessar distante
Visto que isto é assim
Não falemos mais nisto
Não falemos mais

unidade 2

116. Agarra decididamente o trapo.

117. HOMEM- Velho trapo


Tu ficas comigo

unidade 3

118. Enfia o trapo na boca tentando sufocar-se.

119. Black’out. A música invade o espaço. Tempo. A música baixa gradativamente até desaparecer.
Silêncio.
CENA DÉCIMA

unidade 1

120. Começa-se ouvir ao fundo uma pesada respiração. Na escuridão do silêncio ouve-se a voz do
enfermeiro.

121. Enfermeiro- Ah a juventude


com seus músculos rijos
com suas mente embrulhada
que grita por todos os cantos suas inquietações precisas
que sabe o valor da sua vida oprimida
que só viveu até o presente
a liberdade plena da vida
herança recém perdida na infância preciosa
lúdica
liberta
juventude maioritariamente absoluta
ah a juventude
que foge de seus pais aflitos
que faz o seu pão no mercado negro do ócio
que cresce e conhece o patrão da vida eterna
que bate cartão
e esquece o passado ainda tão presente em seu coração infantil
que envelhece na amargura da sua vida forçada
forjada
e que num futuro próximo
ainda não velha
reclama em frente a TV
da vida
do nada
do tudo
e envelhece
mas nunca deixa de reclamar
há que deixar bem claro isso
e assim molda sua poltrona
com suas amarguras futuras.
CENA DÉCIMA PRIMEIRA

unidade 1

122. A música e a luz voltam gradativamente preenchendo todo o vazio do silêncio. O homem
lentamente senta-se, abre seus olhos que até o momento estavam fechados, mira seu olhar nos olhos ao
seu redor, assustado começa a chorar suas tristezas terrenas, até seu choro torna-se compulsivamente
pesado.

unidade 2

123. enfermeiro levanta-se do seu lugar e caminha em direção do homem. O homem assusta-se
aumentando seu choro. O Enfermeiro aproxima-se do homem, e fraternalmente pousa a cabeça do
homem sobre seu peito tentando acalmá-lo. Fixa-se seu olhar em todos os presentes.

unidade 3

124. Enfermeiro (energicamente) - Façam o favor de se levantar, tirar as batas, pousar as máscaras e
sair.

CENA décima segunda


unidade 1

125. som alegre e festivo de uma canção popular invade a cena.

126. público gradativamente abandona o espaço.

the end

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