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A Idade Média

Portuguesa
e o Brasil:

JOSÉ RIVAIR MACEDO


(ORG.)
A Idade Média
Portuguesa
e o Brasil:
reminiscências, transformações, ressignificações

Organização de
José Rivair Macedo

2011
Copyright@2011 by

Edição: Vidráguas
Coordenação editorial: Carmen Sílvia Presotto
Capa e projeto gráfico: Ricardo Hegenbart
Finalização: ArteCerta - Propaganda Impressa
Fotografias de capa: Moisés Evandro Bauer

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca Pública do Estado do RS, Brasil)

I18
A Idade média portuguesa e o Brasil: reminiscências, transformações, ressignifi-
cações / organizado por José Rivair Macedo. -- Porto Alegre : Vidráguas, 2011.
216 p. .

1. História – Idade Média - Portugal. 2. História – Brasil.


I. Macedo, José Rivair. II.Título.

CDU 940.1(469) : 981

Rua Francisco Ferrer, 441, conj. 507


90420,140 - Porto Alegre - RS
Fone (51) 3392.3727
www.vidraguas.com.br
ÍNDICE

Apresentação ..................................................................................... 7

Sobre a Idade Média residual no Brasil, José Rivair Macedo...... 9

RELIGIOSIDADE EM PORTUGAL

1- Os regimentos de procissões do Corpus Christi no


Portugal medieval, Manuela Mendonça. .............................. 23
2- Religião de proximidade em Portugal em finais da
Idade Média: estabelecimentos religiosos seculares
locais e controlo social, Manuela Santos Silva. ..................... 37
3- Aspectos da espiritualidade dominicana em Portugal
na época medieval. Notas sobre Frei Soeiro Gomes,
Julieta Araújo. ............................................................................ 49

MODELOS RELIGIOSOS E SABERES

4- O paradigma religioso e social da morte dos santos.


Da Alta Idade Média a undecentos,
Maria Helena da Cruz Coelho. ............................................... 61
5- Cluny e a formação de Portugal, Armando Martins. ........... 79
6- Agoiros, feitiços e outras maravilhas: crença e crítica no
Portugal quatrocentista, Margarida Garcez Ventura. .......... 93
7- Paixões da alma, melancolia e medicina
(séculos XIII – XV), Dulce Oliveira Amarante dos Santos. ..... 107

IDADE MÉDIA E AMÉRICA PORTUGUESA

8- O legado português no Brasil,


Helga Iracema Landgraf Piccolo. ........................................... 123
9- A monarquia em Portugal e no Brasil – uma longa
Idade Média, Maria Eurydice de Barros Ribeiro. ................. 131
10- Serviço e benefício: relações e redes sociais na
tradição ibérica, Maria Filomena Coelho. ............................. 145
11- Dos concelhos medievais às vilas coloniais: o poder
camarário no sul da América portuguesa, Fábio Kühn. ...... 157

RELIGIOSIDADE COLONIAL

12- Cristandade medieval e cristandade colonial:


permanências e rupturas, Francisco José Silva Gomes. ....... 169
13- A missão jesuíta para o Brasil na estratégia imperial
de D. João III, João Marinho dos Santos................................ 177
14- Em defesa da virtude e em busca do martírio:
Jesuítas em missão no Guairá (século XVII),
Eliane Cristina Deckmann Fleck. ........................................... 185
15- Pelo manto da misericórdia: a obras das santas casas
no Brasil colonial, Véra Lucia Maciel Barroso. ..................... 201
APRESENTAÇÃO

Desde o ano de 2006, por iniciativa das profas. Manuela


Mendonça, atual Presidente da Academia Portuguesa de História,
e Maria Eurydice de Barros Ribeiro, da Universidade de Brasília,
formou-se o Grupo Luso-Brasileiro de História Medieval. A intenção
é permitir que pesquisadores dos dois países encontrem-se
periodicamente para discutir temas comuns, realizar intercâmbios
e contribuir para o aprofundamento das pesquisas sobre a Idade
Média peninsular, com ênfase na História de Portugal. Atualmente
tomam parte do grupo profissionais vinculados às Universidades de
Lisboa e de Coimbra, em Portugal, e as Universidades Federais de
Brasília, Goiás, Fluminense, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, no
Brasil.
Nesses cinco anos de existência, foram realizados três encontros
acadêmicos no Brasil, ocorridos na UNB (2006), USP (2008) e
UFRGS (2010), e dois em Portugal, ocorridos nas dependências da
Universidade de Lisboa e de Coimbra, e na Academia Portuguesa de
História (2007; 2009). Os temas discutidos dizem respeito aos traços
institucionais e culturais de Portugal na Idade Média1, às relações
entre monarquia e sociedade em Portugal2 e às raízes medievais do
Brasil3.
Os estudos reunidos no presente livro foram apresentados e
discutidos no V Encontro Luso-Brasileiro de História medieval,
realizado em Porto Alegre, entre 16 e 18 de novembro de 2010. Tratam
do problema das relações históricas entre a Idade Média portuguesa
e o Brasil no período colonial. Aos pesquisadores lusos, coube a
tarefa de apresentar trabalhos sobre a cristandade peninsular e os
modelos religiosos que Portugal legou ao Brasil; já os pesquisadores
nacionais incumbiram-se de refletir a respeito das continuidades e/
ou rupturas dos modelos europeus introduzidos no Brasil durante o
processo de colonização e os traços culturais, políticos e sociais daí
decorrentes. Para tal, além da participação de medievalistas, foram
convidados alguns pesquisadores especialistas em temas da História
1 - Maria Eurydice de Barros RIBEIRO (org). Instituições, cultura e poder na Idade Média ibérica. Brasília: UNB,
2007.
2 - Carlos NOGUEIRA (org). O Portugal medieval: monarquia e sociedade. São Paulo: Alameda Editorial , 2010.
3 - Raízes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa de História; Centro de História da Uni-
versidade de Lisboa; Centro de História e da Cultura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2008;
Poder espiritual/poder temporal. As relações Igreja-Estado no tempo da monarquia (1179-1909). Lisboa: Acade-
mia Portuguesa de História, 2009.

7
do Brasil colonial que atuam em universidades no Rio Grande do
Sul.
De fato, a experiência histórica da colonização portuguesa no
Novo Mundo pôs em contato diferentes tipos de sociedade (de origem
européia, indígena, africana), instituições político-administrativas
e sociais, modos de ser e de pensar os fenômenos sócio-culturais
(linguagem, arte, religião, etc). Ao estudar as maneiras pelas quais
tais modelos se relacionaram espera-se contribuir para o avanço
do conhecimento de nossas raízes, e a tomada de consciência dos
aspectos originais de nossa identidade histórico-social.
Aproveitamos o ensejo para agradecer a CAPES, através do
Programa PRODOC, pela ajuda financeira que tornou possível a
realização deste livro.
Registrem-se também nossos agradecimentos a Bárbara
Macagnan Lopes, Fernando Ponzi Ferrari, Karen Cibele Alves da
Luz Macedo, Marcos Schulz e Rodrigo Moraes Alberto, pela ajuda
na estruturação e realização da organização do V Encontro Luso-
Brasileiro de História Medieval.

O organizador

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SOBRE A IDADE MEDIA RESIDUAL
NO BRASIL.
José Rivair Macedo*

Em entrevista publicada há alguns anos na revista Signum,


da Associação Brasileira de Estudos Medievais, o medievalista
português José Mattoso sugeriu que os brasileiros pesquisassem a
Idade Média através de temas da Antropologia Histórica, da longa
duração1. De alguma maneira, é o que representa esse livro: o
resultado do diálogo entre portugueses e brasileiros acerca de temas
comuns concernentes ao medievo português vistos na perspectiva
das continuidades, rupturas e ressignificação histórica.
Há contudo um risco na proposição de José Mattoso, a
de involuntariamente fazer crer que o espaço reservado aos
pesquisadores medievalistas brasileiros seria apenas o de pensar o
que a Idade Média legou (ou não) ao Brasil, enquanto os temas de
pesquisa medieval tout court permaneceriam como lugar privilegiado
de reflexão dos pesquisadores europeus. Isto não seria bom porque
condenaria a medievalística a permanecer enclausurada nos modelos
de interpretação da realidade criados pelos próprios europeus, sem
maior possibilidade de crítica e reavaliação historiográfica a partir
de outros pontos de vista2. Dissemos involuntariamente porque,
na afirmação de Mattoso, a dificuldade dos estudos medievais no
Brasil não estaria relacionada com a competência ou originalidade
dos pesquisadores, mas com o inevitável problema do acesso às
fontes históricas, tanto que, em sua opinião, alguns dos maiores
medievalistas atuais são norte-americanos.
De fato, na esteira dos debates acirrados que os medievalistas
tem feito sobre seu próprio ofício, historiadores não-europeus tem
sido convidados a tomar parte na ampla reavaliação historiográfica
e conceitual3. Este diálogo mostra-se rico para todos os envolvidos
porque permite aos europeus avaliar o impacto de certos paradigmas
*
Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
1 - José MATTOSO. “Entrevista a Hilário Franco Jr”. Signum: Revista da ABREM, vol. 3, 2001, p. 224.
2 - Uma visão de síntese alternativa é a do francês Jérôme BASCHET. A civilização feudal: do ano mil à coloni-
zação da América. São Paulo: Ed. Globo, 2006. A obra problematiza a periodização tradicional, amplia e diversi-
fica a noção de “longa Idade Média” proposta por Jacques Le Goff , mas o enfoque privilegia a área de colonização
hispânica.
3 - Ver os resultados de diversos colóquios internacionais organizados entre 2001 e 2007 pela pesquisadora
brasileira Eliana Magnani, que atua no Centre d’Études Médiévales de Auxerre, publicados no livro Le Moyen
Age vu d’ailleurs: voix croisées d’Amérique latine et d’Europe. Paris: Presses Universitaires de Dijon, 2010.

9
conceituais e as leituras possíveis de sua própria experiência
histórica, enquanto os não-europeus, além de enriquecimento
que tais intercâmbios representam para a sua formação como
pesquisadores, vendo de mais longe e de outra perspectiva podem
oferecer alternativas diferentes para as indagações e linhas de rumo
das investigações atuais. Não por acaso, os historiadores medievalistas
americanos estão afinados com a crítica ao que tem sido denominado
uma visão “colonizada” da Idade Média4, e parte substancial de suas
preocupações tem sido dirigida a repensar as noções de “classe social”,
“nação”, “povo” e “raça” produzidas na Europa entre os séculos XVIII-
XX, que tanto impacto tiveram na gestação e desenvolvimento dos
conceitos tradicionais sobre a Idade Média5.
Considerados esses pontos, convém esclarecer o que está em
jogo ao tratarmos neste livro sobre problemas decorrentes da
historicidade das relações entre Portugal medieval e Brasil colonial.
Em primeiro lugar, é preciso tomar sempre cuidado para não incorrer
mais uma vez no que Marc Bloch qualificou como o “pecado mortal”
dos historiadores: o anacronismo. Não se trata de buscar estabelecer
acriticamente relações de continuidade entre a realidade histórica
portuguesa medieval e a realidade histórica colonial brasileira, em busca
de “sobrevivências” ou “permanências” porque isto significaria colocar
de lado um dos elementos fundamentais da equação do conhecimento
histórico, a noção de duração e temporalidade. De modo similar,
também não parece ser o caso buscar estabelecer uma visão retrospectiva
em busca de vinculações de caráter étnico, sob o risco de se cair menos
numa gênese nacional e mais numa etnogênese6.
4 - Na frase contundente de John DAGENAIS e Margareth R. GRER. “Decolonizing the Middle Ages”. Journal
of Medieval and Early Modern Studies, vol. 30-3, 2000, pp. 431-448, “the Middle Ages is Europe’s dark continent of
history, evens as Africa is its dark ages of geography” . Para estes autores, a Idade Média é um espaço colonizado
em face da história moderna, e pode dar espaço a um discurso de crítica, tal qual ocorre com as teorias pós-
-coloniais. Descolonizar a Idade Média significa também olhar para este período com outros olhos, e lhe fazer
outras perguntas.
5 - Nesse sentido, ver Paul MEYVAERT. “‘Rainaldus est malus scriptor francigenus’. Voicing national antipha-
ty in the Middle Ages”. Speculum, vol. 66-4, 1996, pp. 743-763; Robert BARTLETT. “Medieval and modern
concepts of race and ethnicity”. Journal of Medieval and Early Modern Studies (Duke University), vol. 31-1,
2001, pp. 39-56; Denise Kimber BUELL. “Race and universalism in early christianity”. Journal of Early Christian
Studies (John’s Hopkins University) vol. 10-4, 2002, pp. 429-468; Maaike van der LUGT; Charles de MIRAMON
(orgs). Héredité entre Moyen Age et époque moderne: perspectives historiques. Florença: Sismel - Edizioni del
Galluzzo, 2008; IDEM. “Pensar a hereditariedade na Idade Média: introdução e primeiros apontamentos”. In:
Nilton Mullet PEREIRA; Cybele Crossetti de ALMEIDA; Igor Salomão TEIXEIRA (orgs). Reflexões sobre o me-
dievo. São Leopoldo: Oikos, 2009, pp. 118-148; Néri de Barros ALMEIDA (org). A Idade Média entre os séculos
XIX e XX - estudos de historiografia. Campinas, SP: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas -UNICAMP;
LEME - Laboratório de Estudos medievais, 2008.
6 - O medievalista brasileiro Marcelo Cândido da Silva assume posição eminentemente crítica em relação ao
ponto de vista que defende a existência de supostas “origens medievais do Novo mundo”, partindo do pressupos-
to de que o próprio discurso em que tal ponto de vista se baseia não está isento de interferências do momento
em que foram gestadas as ideologias nacionais européias nos séculos XIX e XX. Ver o seu estudo “A Alta Idade
Média entre os séculos XIX e XX: da nação à etnogênese”. In: Nilton Mullet PEREIRA; Cybele de ALMEIDA; Igor
Salomão TEIXEIRA (orgs). Reflexões sobre o medievo, pp. 11-22.

10
Trata-se de refletir um pouco mais acerca de conceitos que
possam contribuir para o esclarecimento das dimensões de análise
implicadas na historicidade das relações entre o passado medieval
português e o passado colonial brasileiro. Mas antes será preciso
colocar em discussão a própria noção convencional de “Idade Média”.
Como os historiadores bem sabem, o termo é eivado de rótulos e
preconceitos, e continua a ser utilizado menos por convicção do que
ele de fato representa e mais por comodidade e costume7. Onde está,
onde começa e onde termina a Idade Média? Se no século XIX os
eruditos não encontrariam maior dificuldade para responder tais
questões, no século XXI as respostas mostram-se bem mais sutis e
complexas.

REMINISCÊNCIAS

O que se tem percebido é que o conceito de Idade Média não se


esgota na temporalidade tradicional que lhe atribuímos: os mil anos
que separam a Antiguidade romana da Modernidade. Para além dessa
Idade Média propriamente histórica, transcorrida essencialmente
na Europa Ocidental8, objeto de estudo dos medievalistas, existem
“Idades Médias” vistas em retrospectiva pela posteridade.
A própria denominação “Idade Média” provém da crítica que
os humanistas faziam ao que consideravam “gótico”, e a memória
dos grandes temas do medievo (Igreja, monarquias nacionais,
feudalismo, realeza) ganhou seus contornos mais definidos nos
séculos XVII e XVIII, quando os escritores iluministas e depois
os partidários da Revolução Francesa, bem conhecidos por sua
posição crítica em relação ao predomínio social da nobreza e da
Igreja, reforçaram o rótulo da selvageria, barbárie e ignorância que
acompanham a expressão “Idade das trevas”9.
No século XIX o Romantismo introduziu na história, e na
história medieval em particular, o interesse pelas raízes nacionais e
7 - Aspecto demonstrado há décadas por Geoffrey BARRACLOUGH. Europa: uma revisão histórica. Rio de
Janeiro, Zahar, esp. p. 41; para a evolução da idéia de “Idade Média”, ver Christian AMALVI. “Idade Média”. In:
Jacques LE GOFF; Jean-Claude SCHMITT (dirs). Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC,
2002, vol. 1, pp. 537-550.
8 - Embora se fale em “Idade Média no Oriente” (Alain Ducellier; Michel Kaplan), em “Idade Média no Japão”
(Kiyoaki Kito; Thomas Keirstead; Wakita Haruko) ou em “Idade Média na África” (Djibril Tamsir Niani; Paulo
Fernando de Morais Farias), não há dúvida que o conceito específico se refira diretamente à cristandade latina e
à experiência histórica da Europa ocidental, aspecto sintetizado por Miguel Angel LADERO-QUESADA. “Ca-
tolicidade e latinidade (Idade Média – século XVII). In: Georges DUBY (org). A civilização latina: dos tempos
antigos ao mundo moderno. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 119-140; e Jacques LE GOFF. A velha
Europa e a nossa. Lisboa: Ed. Gradiva, s.d..
9 - Tema desenvolvido na obra de A. GUERREAU, L’avenir d’un passé incertain. Quelle histoire du Moyen Age au
XXI siècle?, Paris, Seuil, 2001. Para a elaboração da imagem da Idade Média como “Idade das Trevas”, ver Jacques
HEERS. La invención de la Edad Media. Barcelona: Editorial Crítica, 1992.

11
uma certa visão folclórica da Idade Média ao resgatar as tradições
populares. Paralelamente aos historiadores, romancistas (como
Walter Scott na Inglaterra e Victor Hugo na França), dramaturgos,
pintores e outros artistas buscaram inspiração nas supostas
origens medievais. No mundo erudito, nasciam os conceitos de
“restauração” e de “patrimônio histórico”. Entre seus defensores
mais aguerridos estava o arquiteto francês Eugène Viollet-le-
Duc (1814-1879), um dos primeiros a se especializar em obras de
restauração, sobretudo de igrejas e castelos, e a quem se deve parte
da substancial dos monumentos preservados de Paris. Na Inglaterra,
surgia na mesma época o movimento artístico revivalista conhecido
como Irmandade Pré-Rafaelita, que enaltecia os padrões estéticos
anteriores ao Classicismo e ao Renascimento. O escritor e crítico de
arte John Ruskin (1819-1900), um dos inspiradores do movimento,
argumentava: “Destruímos a bela arquitetura de nossas cidades para
substituí-la por uma outra, desprovida de beleza e de significação,
e raciocinamos sobre o efeito estranho que produzem em nós os
fragmentos conservados, por felicidade, em nossas igrejas”10.
Assim, no mesmo instante em que floresciam os estudos
acadêmicos realizados pela medievalística nascente11, isto é, pelo
conjunto de pesquisadores especializados em diversos aspectos
objetivos da realidade histórica (história política, social, econômica
e cultural; língua e literatura; filosofia; direito; arte; arqueologia;
numismática; epigrafia e paleografia; codicologia, etc), e no mesmo
instante em que a história começava ser esboçada como disciplina
escolar, para o senso comum a memória do medievo desdobrava-
se em pelo menos duas formas de apropriação: as “residualidades
medievais” ou “reminiscências medievais” e aquilo que, na ausência
de melhor conceituação, denominamos de “medievalidade”12.
Hoje está mais do que evidente que as transformações históricas
não são unilineares nem monocausais, e nem sempre se processam
seguindo um mesmo ritmo13. Num mesmo contexto podem existir
mudanças em certo âmbito e persistências noutro. Mas o passado
não se mantém o mesmo, nem nas inércias da história. Em outras
10 - John RUSKIN. Pedras de Veneza, p. 67. Citado por Cristina MENEGUELLO. “O medievalismo na Inglaterra
do século XIX”. Anima: história, teoria e cultura (Rio de Janeiro), ano 1 n° 2, 2001, p. 74
11 - O primeiro volume da Monumenta Germania Historica apareceu na Prussia em 1826 e a Bibliothèque de
l’École des Chartes foi criada na França em 1839; em 1857 tinha início a publicação da coleção de documentos
medievais ingleses conhecida como Rolls Series e em 1850 Alexandre Herculano era encarregado pela Academia
Real de Ciências de Lisboa de recolher os documentos que seriam publicados na coleção Portugaliae Monumenta
Historica.
12 - Para o caso francês, o melhor estudo de conjunto dos estereótipos relativos ao medievo produzidos na sua
posteridade deve-se a Christian AMALVI. Le gout du Moyen Age. Paris: La Boutique de l’Histoire, 2002.
13 - Aspecto demonstrado por Fernand BRAUDEL. “Histoire et sciences sociales: la longue durée”. Annales ESC,
XIII-4, 1958, pp. 725-753.

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palavras, até os elementos que eventualmente encontrassem suas
raízes na Idade Média não seriam plenamente “medievais” na
modernidade simplesmente porque foram alterados com o passar
do tempo, e se continuaram a existir de forma residual, mudaram
de sentido.
Por “residualidades medievais” ou “reminiscências medievais”
devem-se entender justamente as formas de apropriação dos
vestígios do que um dia pertenceu ao medievo, alterados e/ou
transformados no decurso do tempo. Nesta categoria encontram-se,
por exemplo, as festas, os costumes populares, as tradições orais de
cunho folclórico que remontam aos séculos anteriores ao XV e que
preservam algo ainda do momento em que foram criados, mesmo
tendo sofrido acréscimos, adaptações, alterações. Festas como a
de Corpus Christi, as Folias de Reis e a Festa do Divino Espírito
Santo14, o Natal, e mesmo o Carnaval, foram um dia “medievais”,
e persistem... mas não da mesma forma, nem desempenhando os
mesmos papéis na Europa ou em outras partes do mundo para onde
foram levadas15.
Também constituem resíduos ou reminiscências os monumentos
arquitetônicos originados na Idade Média, embora ninguém duvide
que castelos, pontes, mosteiros ou igrejas atualmente exibidos como
“medievais” tenham sido modificados progressivamente, restando
às vezes muito pouco da construção original16. Tomemos o caso
das catedrais francesas ou alemãs (as catedrais de Reims ou de
Bamberg, para citar apenas algumas), e dos castelos espanhóis ou
ingleses (de Segóvia ou de Dover, por exemplo). Ninguém duvida
que sejam efetivamente “medievais”, mas é difícil determinar em
que proporção. Isto quer dizer que, depois da Idade Média, eles
receberam novos arranjos, às vezes novas funções. O turista ansioso
por conhecer uma cidade genuinamente medieval, como Óbidos,
na região centro-oeste de Portugal, ficará talvez decepcionado ao
verificar que o magnífico castelo, localizado na parte alta da cidade
ostenta uma janela de vidro - bem pouco “medieval”, mas muito
apropriada para a função de pousada que lhe compete na atualidade.
14 - A respeito da recepção e ressignificação das festas do Divino Espírito Santo, ver Noeli Dutra ROSSATTO
(org). O simbolismo das festas do Divino Espírito Santo. Santa Maria: UFSM/fapergs, 2003.
15 - Para o estudo de caso da festa dos “Mouros e Cristãos”, transferida para a América através das cavalhadas,
ver José Rivair MACEDO. “Mouros e cristãos: a ritualização da conquista no Velho e no Novo Mundo”. In: Le
Moyen Age vu d’ailleurs, Bulletin Du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, Hors Série II, 2008: http://cem.revues.
org/index8632.html.
16 - Em sua avaliação irônica das maneiras de sonhar com a Idade Média, Umberto ECO. “Dez modos de sonhar
a Idade Média”. In: IDEM. Sobre o espelho e outros ensaios. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1989, p: 78 afirma
que: “constróem-se e reconstroem-se as fachadas da catedral de Nápoles, da catedral de Amalfi, de Santa Cruz e
de Santa Maria del Fiore para a alegria do turista não ainda pós-moderno, em busca desesperada de autenticida-
de histórica”.

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Não obstante, ninguém colocará no mesmo patamar tais
monumentos genuínos ou parcialmente genuínos com aqueles
construídos nos dias atuais inspirados em certos clichês aplicados
ao medievo17, que participam mais de uma estética kitsch do que
da funcionalidade militar e do caráter defensivo daquele tipo de
construção no passado18.

MEDIEVALIDADE

Diferentemente dos “resíduos” ou “reminiscências”, que de


alguma forma preservam algo da realidade histórica da Europa
medieval, nas formas de apropriação denominadas “medievalidade”
a Idade Média aparece apenas como uma referência, e por vezes uma
referência fugidia, estereotipada. Assim, certos índices imprecisos
de historicidade estarão presentes em manifestações lúdicas (festas,
encontros, jogos de vídeo-game ou de computador) obras de
divulgação (músicas, histórias em quadrinhos, peças teatrais, filmes),
nas atividades de recriação histórica de torneios, feiras, festas, cutelaria
ou culinária “medieval”19, e na inspiração de temas (magos, feiticeiros,
dragões, monstros, guerreiros, assaltos a fortalezas) produzidos pelos
meios de comunicação de massa e pela indústria cultural20.

17 - Os edifícios com forma de castelo constituem uma das modas no Brasil no século XX, e em sua construção os
arquitetos e engenheiros reproduzem de modo estereotipado os elementos convencionais desse tipo de construção,
como as torres e seteiras, as portas levadiças amarradas por correntes, as muralhas com pedra e cimento industria-
lizados. Sobre um desses edifícios da cidade de Porto Alegre, conhecido como “Castelinho”, consta que teria sido
construído a mando de um político para sua amante no final dos anos 1940, tema explorado pelo jornalista Juremir
Machado da SILVA. A prisioneira do castelinho do Alto da Bronze. Porto Alegre: Artes & Ofícios, 1993.
18 - Uma boa análise das referências medievais (góticas e românicas) na arquitetura americana católica e protes-
tante durante o século XIX encontra-se em Paul FREEDMAN; G. M. SPIEGEL. “Medievalisms old and new: the
rediscovery of alterity in north american medieval studies”. American Historical Review (New York) vol. 103-3,
1998, pp. 677-704, esp. pp. 680 e segs.; Para o mesmo fenômeno na América Latina, ver Ofelia MANZI; Francis-
co CORTI, Iglesias reformadas neogóticas. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras da Universidad de Buenos
Aires, 2002; Ofelia MANZI; Francisco CORTI. “Arquitetura religiosa neogótica en Buenos Aires y alrededores”.
Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 1 n. 1, 1998, pp. 427-454; Glenda Pereira da CRUZ. “Antecedentes da
organização do espaço colonial na América ibérica”. Tese de doutorado. Porto Alegre: Programa de Pós-Gradu-
ação em História da PUCRS, 1995. A respeito do aporte da tradição islâmica na arquitetura latino-americana,
ver Estevão PINTO. Muxarabis e balcões e outros ensaios (Coleção Brasiliana). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1958; Nora Marcela GOMEZ. “La tradicion de jardines hispanomusulmanes en Argentina”. In: Celia
Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais.
Salvador: Quarteto Editora, 2005, 358-366.
19 - Considere-se, por exemplo, as atividades da Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal, integrada por um
grupo de admiradores da Idade Média que ao longo de vinte anos vem organizando inúmeras atividades de
recriação histórica de feiras e torneios em todo o território português. A prática conhecida como medieval
reenactement é difundida em diversos países europeus e na América, como hobby e forma de evasão.
20 - A capacidade de sedução da Idade Média imaginada é enorme em todo o mundo, de modo que se pode dis-
tinguir na atualidade uma “Idade Média Histórica” que é eminentemente diferente da “Idade Média fantástica”.
Embora as reflexões sobre o fenômeno das apropriações ditas “medievais” na contemporaneidade sejam ainda
muito incipientes, algumas pistas podem ser encontradas no já citado livro de Christian AMALVI. Le gout Du
Moyen Age; ver ainda Marie-christine DUCHEMIN; Didier LETT. “Moyen Age d’adolescents”. Médiévales, vol.
6 n. 13, 1987, pp. 13-34; José Rivair MACEDO; Lênia Márcia MONGELLI (orgs). A Idade Média no cinema. São
Paulo: Ateliê editorial, 2009.

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Não será preciso insistir o quanto a dita “medievalidade” tem
sido explorada na industria musical, por exemplo. A partir do
final dos anos 1960, por ocasião do fenômeno da contra-cultura e
do movimento hippie, algo do “misticismo”, ou algo da “barbárie”
medieval, tem inspirado a estética visual de diversas bandas de Rock.
Um dos antigos membros da banda inglesa Deep Purple, Ritchie
Blackmore, possui atualmente um castelo e executa canções e baladas
“renascentistas”, “medievais” e “barrocas”. Desde os anos 1980 certas
bandas de heavy metal, entre outras, a inglesa denominada Saxon, a
norte-americana denominada Manowar e a espanhola denominada
Tierra Santa reproduzem nas letras e nos acordes metálicos
vibrantes de suas guitarras idéias e sensações difusas dos supostos
guerreiros medievais21. Desde meados dos anos 1990 houve uma
recuperação das tradições musicais “celtas” e certos grupos musicais
de musica pop misturam a sonoridade “medieval” com instrumentos
eletrônicos, produzindo às vezes grandes hits para serem executados
inclusive em danceterias. É o caso do sucesso alcançado em 1990
pelo grupo Enigma com a composição Principles of lust, ao mesclar
o canto gregoriano com sintetizador e instrumentos de percussão,
criando um ritmo dançante22.
Outro filão explorado pela indústria cultural, em que se pode
identificar claramente aspectos de “medievalidade” são os jogos
eletrônicos e o RPG23. Desde os anos 1980, diversos jogos executados
em video-games e computadores incorporam formas pretensamente
medievais aos heróis que combatem em reinos distantes, às fortalezas,
templos e palácios habitados por guerreiros, magos e feiticeiros.
Certamente que estes componentes têm sido os responsáveis pela
enorme popularidade de temas e assuntos reais ou imaginados
tratados em sites ou em grupos de bate-papos virtuais na Internet.
Aos já habituais temas de uma mitologia contemporânea do medievo

21 - Ver, entre outras, as seguintes produções musicais: Blackmore’s Night, Shadows of the night, 1997; Saxon,
Crusader, 1984; Manowar. Battle hims, 1984; Tierra Santa, Medieval, 1997.
22 - Ver, entre outras, as seguintes produções musicais: Enigma, MCMXC a.D., 1990; Enya, The Shepherd moon,
1991; Dead Can Dance, The serpent’s egg, 1988; Era, The mass, 2003.
23 - Sigla de Real-Playing Game ou “Jogo de Interpretação de Personagens”. É um tipo de jogo muito apreciadona
atualidade, em que indivíduos ou grupos assumem papéis de personagens e criam situações a partir de regras
pré-determinadas. A prática teve início na década de 1970 e uma modalidade de grande sucesso, Dungeons &
Dragons, baseava-se em elementos ditos medievais. Este jogo depois viraria desenho animado com o título em
português de A caverna do dragão. A prática de RPG aparece retratada no filme norte-americano intitulado Role
models (Faça o que eu digo, não faça o que eu faço), do diretor David Wain (2009).

15
(os Templários24 e os Cátaros25, a Távola Redonda e o Graal26,
as Cruzadas27 e tantos outros28), somam-se entes sobrenaturais
e feéricos de uma Idade Média que deve muito ao extraordinário
universo ficcional criado por J. R. Tolkien em O senhor dos anéis,
que tanto impacto exerceu na imaginação do século XX29.
Tudo isto leva a pensar que esta Idade Média “sonhada”, para
usar a expressão de Umberto Eco, tenha alguma relação com o
vazio deixado pela sociedade de consumo, em que o indivíduo é
pulverizado e valores tradicionais são reiteradamente banalizados.
A evocação dos refúgios familiares de uma “floresta encantada” ou
da segurança simbolizada pelo “castelo” teria algo que ver com a
busca de um retorno às origens quase míticas. Por isso, Michel Zink,
grande conhecedor da civilização medieval, não hesita em afirmar
que no imaginário produzido pela cultura de massa atual a Idade
Média é percebida como um “refúgio frágil e infantil”30.

24 - Sobre a continuidade da existência da Ordem dos Templários em Portugal na atualidade, com o nome de
Ordo Supremus Militaris Templi Hierosolymitani, ver o estudo de José Alberto BALDISSERA. “A Ordem Sobera-
na e Militar do Templo de Jerusalém em Portugal na Idade Média e Hoje”. In: Celia Marques TELLES; Risonete
Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais, pp. 231-236; a respeito das
apropriações contemporâneas dos ideais dos templários, ver José Roberto GUIMARÃES. “Militia Templi: o
cavalheiro templário como projeto ecumênico”. Dissertação de Mestrado orientada por Antônio Carlos de Melo
Magalhães. São Paulo: UMESP/PPGR, 1998.
25 A esse respeito, ver os estudos exaustivos de Jean-Louis BIGET. “Mythographie du catharisme (1870-1960)”,
pp. 271-303; Charles-Olivier CARBONELL. “Vulgarisation et récuperation: le catharisme à travers les mass-mé-
dia”, pp 361-380. In: V.V.A.A. Historiographie du catharisme (Cahiers de Fanjeaux, 14). Toulouse: Édouard Privat,
1979. A apropriação desses temas nem sempre foi politicamente desinteressada, e às vezes assumiu conotações
racistas, como demonstrou Jean-Michel ANGEBERT. Hitler et la tradition cathare. Paris: Éditions Robert Lafont,
1971.
26 - Sobre as formas de apropriação e difusão da mitologia arturiana desde o medievo até o presente, ver os es-
tudos de W. R. BARRON. The Arthur of the English: the arthurian legend in medieval english life and literature.
Cardiff: University of Wales Press, 2001; Glyn BURGES; Karen PRATT. The Arthur of the French: the arthurian
legend in medieval french and occitan literature. Cardiff: University of Wales Press, 2006; W. H. JACKSON; S.
A. RANAWAKWAKE. The arthur of the germans: the arthurian legend in medieval german and dutch literature.
Cardiff: University of Wales Press, 2000; Elisabeth JENKINS. Os mistérios do Rei Arthur: o herói e o mito reava-
liados através da história, da arqueologia, da arte e da literatura. São Paulo: Melhoramentos, 2001.
27 - Para o exame dos desdobramentos e ressignificações da idéia da cruzada, ver os estudos de Alphonse DU-
PRONT. Le mythe de croisade: essai de sociologie religieuse Paris: Gallimard, 1997 (or. 1957), 4 vols.; IDEM. Du
sacré: croisades et pelèrinages, images et langages. Paris: Gallimard, 1992.
28 - Para Portugal, o tema que melhor se enquadra no repertório mitológico moderno diz respeito aos amores de
D. Pedro I e Inês de Castro, amplamente retratado na iconografia, literatura, teatro e cinema. Mesmo no século
XVIII, a tragédia dos amantes era encenada com grande sucesso nos teatros de Paris, conforme se pode ver no
estudo de Anna Maria RAUGEI. “Moyen Âge et siècle des lumières: l’écran du passe sur le thêatre du XVIII
siècle”. Cahiers de l’Association Internationale des Études Françaises, vol. 47, 1995, p. 17
29 - A Editora Camargo & Moraes, sediada em São Paulo, publica periodicamente a revista intitulada Universo
Fantástico de Tolkien, na qual aparecem reportagens sobre RPG, jogos eletrônicos, magia e mitologia e outros
aspectos da “Idade Média fantasia”. Na Itália, circula nas bancas a revista de divulgação de música e cultura me-
dieval intitulada Medioevalia: la prima rivista com CD di musica e cultura medioevale, editada pela empresa New
Sounds Multimedia.
30 - Michel ZINK. “Projection dans l’enfance, projection de l’enfance: le Moyen Age au cinema”. Cahiers de la
cinematheque, nº 42-43, 1985, p. 6.

16
ENFOQUES

Nas últimas décadas, em que se assiste no Brasil a emergência


de um grupo de medievalistas profissionais, alguma atenção tem
sido dada ao que se tem produzido a respeito da Idade Média e
também ao que restou da Idade Média no Brasil31. Num interessante
ensaio, Hilário Franco Jr. equaciona bem o problema dos intrincados
cruzamentos temporais na relação entre Idade Média e Brasil
contemporâneo, identificando certos traços do comportamento
coletivo brasileiro em que se podem identificar efetivamente raízes
medievais, e distinguindo de outros, que devem tudo à modernidade.
Não se trata, segundo ele, de um “Brasil medieval” ou de uma “Idade
Média no Brasil”, mas de um sistema de valores medievais no Brasil.
Aqui, tal qual Mário Martins tinha muito bem percebido, a Idade
Média é menos uma época histórica e mais uma maneira de ser no
mundo32.
Não é à toa que os vestígios mais evidentes da residualidade
medieval no Brasil digam respeito aos elementos da religiosidade e
sensibilidades populares.
Um bom exemplo é o do castelo construído em 1984 pelo
sertanejo chamado José Antônio Barreto, conhecido popularmente
como Zé dos Montes, na Serra da Tapuia, encravado na zona agreste
do Estado do Rio Grande do Norte. Aqui está sem sombra de dúvida
uma reminiscência medieval. Mas o que remonta ao medievo
não é a bizarra construção, com suas dezenas de torres brancas
sobressaindo-se em meio às rochas, com seu formato sinuoso, em
estilo naif que, com muita imaginação, nos remeteria, guardadas
as imensas proporções, às criações do espanhol Antonio Gaudi na
arquitetura urbana de Barcelona. Aquela edificação feita à mão, de
estuque, caiada, sem iluminação artificial, é a criação de um homem
simples, sem instrução, divinamente inspirado. É o fruto de uma
missão que lhe foi dada diretamente pela Virgem Maria quando ele
31 - Para uma visão de conjunto dos estudos medievais, ver Hilário FRANCO JR; Mário Jorge da Motta BAS-
TOS. “L’Histoire du Moyen Age au Brésil”. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, vol. 7, 2003, pp. 125-
133; Néri de Barros ALMEIDA. “La formation des médiévistes dans le Brésil contemporain: bilan et perspectives
(1985-2007). Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, vol. 12, 2008, pp. 145-160; Vanessa Colares AS-
FORA; Eduardo Henrik AUBERT; Gabriel CASTANHO. “Faire l’histoire du Moyen Age au Brésil: fondements,
structures, développements”. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, vol. 12, 2008, pp. 125-144; Carlos
Roberto Figueiredo NOGUEIRA. “Os estudos medievais no Brasil de hoje”. Medievalismo (Madrid), vol. 12,
2002, pp. 291-297; Ana Carolina Lima ALMEIDA; Clínio de Oliveira AMARAL. “O Ocidente medieval segundo
a historiografia brasileira”. Medievalista online (Universidade Nova de Lisboa), ano 4 n. 4, 2008; José Rivair MA-
CEDO. Os estudos medievais no Brasil. Catálogo de dissertações e teses: Filosofia, História e Letras (1990-2002).
São Paulo: EDUFRGS, 2003; IDEM. “Os estudos de história medieval no Brasil: tendências e perspectivas”. No-
tandum (USP), vol. 21, 2009, pp. 95-104.
32 - Hilário FRANCO JR. “Les racines médiévales du Brésil”. In: Eliana MAGNANI. Le Moyen Age vu d’ailleurs,
Bulletin Du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, Hors Série II, 2008: http://cem.revues.org/index8632.html.

17
ainda era menino. Na aparição, Nossa Senhora o teria encarregado
de construir o castelo com suas próprias mãos, para que depois lhe
servisse como túmulo, como o lugar de seu descanso derradeiro.
Aí está o resíduo interiorizado de uma forma de pensar e de sentir
“medieval” no mais puro sentido, pois evoca um tempo em que as
imbricações entre sagrado e profano eram maiores, e muitíssimo
mais profundas, provocando sensações e atitudes diferentes das
nossas, cativas da razão cartesiana. O grande historiador holandês
Johan Huizinga resumiu todo este estado de espírito numa bela
imagem: para os medievais, o simbolismo religioso apresentava-se
como uma espécie de curto-circuito do pensamento: “em vez de
observar a relação de duas coisas procurando os caminhos invisíveis
de suas dependências causais, o pensamento dá um salto e descobre
a relação, não como um enlace de causa e efeito, mas como uma
ligação de significado e de finalidade”33.
É o mesmo traço de comportamento notado em Zé dos Montes,
verdadeiramente “intoxicado pelo sagrado”. Nesse caso, a Idade
Média encontra-se viva, pulsante, sem qualquer compromisso com
sincronia ou cronologia. E o que dizer da experiência descrita pelo
jornalista Gilles Lapouge, correspondente francês do jornal O Estado
de São Paulo que, certa vez, durante uma viagem pelo interior do
Estado do Rio Grande do Norte, no Nordeste Brasileiro, ao ter sua
nacionalidade revelada, foi inquirido por um velho sertanejo sobre
que notícias tinha a dar a respeito de Rolando e os Pares de França34?
Entre as possibilidades de abordagem das reminiscências
medievais podem-se destacar três tipos: a) o estudo das vicissitudes
históricas de determinadas instituições sociais35, econômicas e

33 - Johan HUIZINGA. O declínio da Idade Média. Lousã: Ed. Ulisséia, s.d., p. 211.
34 - Gilles LAPOUGE. Équinoxales. Paris, 1977, p. 168. Citado em epígrafe no livro de João David Pinto COR-
REIA. Os romances carolíngios da tradição oral portuguesa. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica,
1993, tomo 1, p. 9.
35 - Sérgio Buarque de HOLANDA. A visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do
Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1959; Guillermo GIUCI. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992; José Carlos GIMENEZ. “A presença do imaginário medieval no Brasil
colonial: descrições dos viajantes”. Acta Scientiarum (Maringá), vol. 23-1, 2001, pp. 207-213; Maria Isaura PEREIRA
DE QUEIROZ. La guerre sainte au Brésil: le mouvement messianique du Contestado. São Paulo : FFLCH-USP, 1957;
Márcia Janete ESPIG. A presença da gesta carolíngia no movimento do contestado. Canoas, RS: Ed. da ULBRA, 2003;
Manuela MENDONÇA. “A tardia ocupação da região de Guanabara. Insensatez política ou mentalidade antiga?”,
pp. 279-303; Margarida GARCEZ VENTURA. “Para a compreensão da revolta de Canudos: as matrizes do mes-
sianismo político português”, pp. 261-277. In: Raízes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa
de História; Centro de História da Universidade de Lisboa; Centro de História e da Cultura da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, 2008; José Rivair MACEDO. “Reminiscências medievais: religiosidade e poder no
Extremo Sul do Brasil”. In: Poder espiritual/poder temporal. As relações Igreja-Estado no tempo da monarquia
(1179-1909). Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2009, pp. 283-306.

18
políticas36; b) o estudo do modo pelo qual elementos de origem
medieval se fazem presentes em manifestações culturais de caráter
popular – tanto na tradição oral quanto na literatura, em festas e
rituais ou na iconografia religiosa37; c) o estudo dos motivos e
condições pelas quais autores ou artistas representantes da cultura
erudita brasileira incorporam em suas obras elementos que se
poderiam considerar “medievais”38.

36 - Ver Maria Filomena COELHO. A Justiça d’além mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (século XVIII).
Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2009; uma das instituições portuguesas de origem me-
dieval mais estudadas no Brasil é a sesmaria, evidentemente devido ao seu vínculo com o regime das Capitanias
Hereditárias e com a constituição da propriedade no Brasil colonial. Sobre esse assunto, o estudo clássico conti-
nua a ser o de José da COSTA PORTO. O sistema sesmarial no Brasil. Brasília: Ed. da UNB, s.d.; um importante
estudo a respeito do instituto da almotaçaria nas cidades coloniais do sul do Brasil foi realizado por Magnus
Roberto de Mello PEREIRA. “Almuthasib – considerações sobre o direito de almotaçaria nas cidades de Portugal
e suas colônias”. Revista Brasileira de História (São Paulo), vol. 21 nº 42, 2001, pp. 365-395.
37 - Diversos estudos examinaram o significado de certos indícios “medievais” nas tradições populares brasilei-
ras, entre os quais estão Luís da Câmara CASCUDO. Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil. Porto Alegre:
PUCRS, 1963; IDEM. Mouros, franceses e judeus: três presenças no Brasil. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982;
Jerusa Pires FERREIRA. Cavalaria em cordel: o passo das águas mortas. São Paulo: HUCITEC, 1993; Elba Braga
RAMALHO. “Carlos Magno no repente nordestino”. In: Celia Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA
(orgs). Anais do V Encontro Internacional de Estudos Medievais.Salvador: Quarteto Editora, 2005, pp. 447-451;
Geraldo MOSER. “Elementos medievais na literatura popular do Brasil”. In: Homenagem a Manuel Rodrigues
Lapa. Boletim de Filologia (Lisboa), Tomo XXVIII, 1983, pp. 126-136; Maria Eurydice de Barros RIBEIRO. “Azu-
lejos: quadros da memória portuguesa”. In: Raízes Medievais do Brasil Moderno. Lisboa: Academia Portuguesa de
História; Centro de História da Universidade de Lisboa; Centro de História e da Cultura da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra, 2008, pp. 247-260; IDEM. “O bestiário medieval português, a gravura e o cordel
no Nordeste do Brasil”. In: Poder espiritual/poder temporal. As relações Igreja-Estado no tempo da monarquia
(1179-1909). Lisboa: Academia Portuguesa de História, 2009, pp. 585-594;
38 - Entre outros podem-se mencionar: Lênia Márcia MONGELLI. “Entre onças e barbatões: as maravilhas ca-
boclas de José de Alencar”. Signum: revista da ABREM, vol. 5, 2003, pp. 195-232; IDEM. “Buscando decifrar
Ariano Suassuna”. In: Celia Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Interna-
cional de Estudos Medievais, pp. 51-58; Maria do Amparo Tavares MALEVAL. “Neotrovadorismo, no Brasil?”.
Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 21 n. 102, 1998, pp. 405-426; IDEM. “O romanceiro ibérico na poesia
brasileira”. In: IDEM. Atualizações da idade Média. Rio de janeiro: PPG de Letras da UERJ, 2000, pp. 259-289;
Ligia VASSALO. O sertão medieval: origens européias do teatro de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: Livraria Fran-
cisco Alves, 1993; Tereza Aline Pereira de QUEIROZ. “Mimetismo e recriação do imaginário medieval em Auto
da compadecida de Ariano Suassuna e En La diestra de Dios Padre de Enrique Buenaventura”. Revista Brasileira
de História, vol. 18 n. 35, 1998; Henrique Manuel ÁVILA. “Sobrevivência transformação da cultura medieval em
Ariano Suassuna”. Humanas: Revista do IFCH-UFRGS, vol. 1 n. 1, 1998, pp. 65-78; Risonês de Jesus DUARTE;
Ana Camila Lima de SOUZA; Célia Marques TELLES. “A obra regional sallesiana: um encontro com o imaginá-
rio medieval”. In: Célia Marques TELLES; Risonete Batista de SOUZA (orgs). Anais do V Encontro Internacional
de Estudos medievais, pp. 323-326; Roberto PONTES. “Residuos paradigmáticos medievais e trovadorescos na
Lírica de Cecília Meirelles”. In: Angelita Marques VISALLI; Terezinha de OLIVEIRA (orgs). Atas do VI Encontro
Internacional de Estudos Medievais. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2007, pp. 397-402. Também
na literatura norte-americana a Idade Média serviu de inspiração a renomados escritores, e em algumas obras os
índios são associados ao espírito guerreiro medieval como se pode ver no romance The last of the Mohicans, de
James Fenimore Cooper (1826), e no poema The prairies, de William Bryant (1832). Ver Andrew GALLOWAY.
“William Cullen Bryant’s American Antiquities: medievalism, miscigenation, and race in The prairies”. American
Literacy History (Oxford), vol. 22-4, 2010, pp. 724-751.

19
Por enquanto, a única obra que apresenta uma visão de conjunto
das influências medievais na formação brasileira é a do mexicano
Luis Weckmann39. O problema é que em obras desse tipo o ângulo
de abordagem tende a favorecer apenas um dos componentes
essenciais de nossa sociedade: o europeu. Para uma avaliação
mais justa do porque a experiência medieval portuguesa seguiu
outros rumos no Novo Mundo seria preciso considerar o peso da
contribuição indígena40 e africana41 em nossa sociedade, resultante
das trocas e fusões durante o período colonial. Neste outro mundo
e neste novo tempo é que o legado português foi recebido, filtrado,
parcialmente assimilado e parcialmente rechaçado, enfim, revivido
e ressignificado.

39 - Luís WECKMANN. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. Deve-
-se observar todavia os limites conceituais da idéia de “herança” defendida pelo autor, que vê no processo de
conquista e povoamento da América elemento de transmissão das instituições ibéricas; sua adaptação no Novo
Mundo constituiria uma espécie de continuidade “medieval” até pelo menos meados do século XVII. Esta con-
cepção petrificada da Idade Média não permite responder duas questões que nos parecem cruciais: 1) porque
algumas instituições e/ou traços sociais persistiram, e outros não; 2) como tais elementos eram operados pelos
sujeitos históricos dos séculos XVI-XVII, nas circunstâncias específicas da sociedade colonial.
40 - O caráter híbrido e mestiço da formação cultural mexicana foi realçado no livro de Serge GRUZINSKI. A
Colonização do imaginário. Sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003; para o Brasil, Ronaldo VAINFAS. A heresia dos índios. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1995, demonstrou a maneira pela qual a fusão entre as crenças populares portuguesas e os
cultos indígenas produziram um tipo de religiosidade original, perseguida pelos visitadores do Santo Ofício da
Inquisição em 1591-1595.
41 - Inspirados na obra do pesquisador Jan Vansina, africanólogos norte-americanos tem reavaliado o papel
essencial dos povos bantu da África central na formação das sociedades americanas e considerado o significado
do cristianismo na constituição das identidades africanas antes mesmo da transferência dos milhões cativos du-
rante o tráfico internacional de escravos. Ver Linda HEYWOOD (org). A diáspora negra no Brasil. São Paulo: Ed.
Contexto, 2009; embora ultrapassada em muitos pontos de seus pressupostos conceituais e perpassada por uma
leitura marcada pela ideologia que sustentou durante décadas o mito da “democracia racial brasileira”, o livro de
Gilberto FREYRE. Casa Grande & Senzala: a formação da família brasileira sob o regime patriarcal. 51ª edição.
São Paulo: Ed. Global, 2006 (or. 1933), apresenta notável quadro das contribuições africanas e indígenas durante
o processo de colonização que alteraram o modo de ser do português e contribuíram para a criação do modo de
ser propriamente brasileiro; uma contribuição original ao debate sobre as relações entre as tradições européias
e as tradições africanas foi apresentada por Muniz SODRÉ. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no
Brasil. Rio de Janeiro: DP & A, 2005 (or. 1978); sobre o significado cultural das tradições populares de matriz
africana, ver Marina de Mello e SOUZA. Reis negros no Brasil escravista. História da festa da coroação do rei do
Congo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.

20
RELIGIOSIDADE EM PORTUGAL
OS REGIMENTOS DE PROCISSÕES
DO CORPUS CHRISTI
NO PORTUGAL MEDIEVAL
Manuela Mendonça*

O ocidente europeu, na dimensão que adquire com a terminologia


“respublica christiana” que, até ao século XVI, se estendia de Portugal
à Hungria, apresenta-se como o local por excelência da prática do
cristianismo.
Sem cuidar de seguir os processos de conversão subsequentes
ao Império Romano, registemos que, no modelo atingido pelos
designados reinos bárbaros ou, mais precisamente, germanos,
toda esta Europa se considerava como fazendo parte da mesma
cristandade. Nessa medida diremos que foi por esta marca que,
na época, o ocidente se reconheceu, conforme ficou registado em
diversos documentos. Atestam-no os cronistas portugueses que, nos
respectivos escritos, não utilizam nunca a designação “Europa”, mas
sim a de “cristandade” ou “república cristã”. É disso ainda exemplo
o Doutor João Teixeira que, quando em 1485 apresentou, em nome
do rei de Portugal, a Oração de Obediência ao novo Papa, Inocêncio
VIII, referia os “… notáveis serviços” prestados pelo “Rei João” à
“República cristã e à Sé apostólica…”1. E já no princípio do segundo
quartel do século XVI, ainda Garcia de Resende identificava o velho
continente com a mesma designação, num âmbito geográfico que
não ia além da península itálica e da Hungria. Com efeito, ao falar
dos problemas políticos dos reis do ocidente escreveu: “El Rey
Carlos de França fazendo a maior parte da Christandade liga contra
elle…”2. E na sua Miscelânea identificava, “Quinze reis, quinze
reynados/ vimos já na christandade… … castelhanos e franceses/
Alemães, Venezeanos/ Navarros, Aragoneses/ Napolitanos, ingleses/
Romanos, Cezelianos/ Italianos, Millaneses/ Soyços, e Escorceses/
vimos todos batalhar/ huos com outros se matar/ salvo Ungros e
Portugueses”3.
*
*
Presidente da Academia Portuguesa da História; Professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
1 - Oração de Obediência ao Sumo Pontífice Inocêncio VIII, dita por Vasco Fernandes de Lucena em 1485. Edição
com nota bibliográfica de Martim de Albuquerque e tradução portuguesa de Miguel Pinto de Meneses. Lisboa,
1988, p. 23.
2 - GARCIA DE RESENDE. Crónica de D. João II e Miscelânea, nova edição conforme a de 1798, com prefácio
de Joaquim Veríssimo Serrão. 2ª. Edição. Lisboa, 1992, p. 220.
3 - Idem, ibidem, p. 355.

23
Serve esta breve introdução para demonstrar como, desde
o princípio da nacionalidade, os portugueses se identificaram
com os povos que comungavam idêntica confissão religiosa,
independentemente dos respectivos projectos políticos. Assim
sendo, torna-se natural que, também no interior do reino, a
identidade religiosa seguisse a par com os objectivos régios. Basta
recordar que Portugal apenas adquiriu independência frente a
Leão e Castela quando obteve, numa opção de “enfeudamento” ao
poder espiritual, o apoio da Santa Sé. O seu primeiro rei iniciou esse
processo declarando-se inicialmente “cavaleiro de S. Pedro”, vindo a
conseguir posteriormente o respectivo reconhecimento através da
bula Manifestis Probatum, outorgada pelo papa Alexandre III, em
1179. Só então a independência portuguesa ficou definitivamente
consagrada.
Nesta perspectiva, não será para admirar que a posterior gesta do
povo luso fosse marcada, em termos mentais, pela dilatação da fé,
conforme registam os cronistas ao referirem os fins perseguidos pelos
portugueses no início dos descobrimentos. É certo que tal objectivo,
que sempre justificou as bulas de cruzada, não era único, sendo
verdade que os factores de ordem económica com ele avançaram
de mãos dadas na acção portuguesa nas zonas encontradas. Porém,
é inegável que nos modelos transferidos para as novas paragens se
incluía a opção religiosa, nas suas mais variadas formas de culto. E
quando ainda hoje observamos algumas expressões de religiosidade,
nomeadamente de religiosidade popular, não podemos deixar de
ver nelas reminiscências desse passado longínquo, qual fenómeno
de longa duração. E se isso é real no actual mundo português, não o
será menos num país como o Brasil – país moderno, mas caldeado
nos velhos modelos europeus.
*
Para o encontro que hoje nos reúne, pensei trazer um documento
que patenteia o espírito da época através das disposições oficiais
relativas a uma das manifestações do sagrado de maior adesão
por parte dos vários grupos sociais: as procissões. E de entre estas
aquela que, no século XV, se transformou em paradigma de todas
as outras. Refiro-me à Procissão do Corpo de Cristo. Para explicar
essa preponderância, recordemos que foi o papa Urbano IV que
incrementou “… a piedade eucarística, intensificando o culto do
Santíssimo Sacramento, cuja festa instituiu em 1264 sob a designação
de Corpus Christi… encomendando a elaboração do respectivo
Ofício ao grande santo e teólogo desse tempo, S. Tomás de Aquino,
que enriqueceu a piedade cristã com uma maravilhosa obra-prima
24
da liturgia”4. Contudo, a disposição papal visava apenas a instituição
da Festa do Santíssimo Sacramento, sendo certo que a respectiva
procissão apenas começou a fazer-se no século XIV, inicialmente
na Alemanha, França e Itália…, contagiando posteriormente os
restantes países da República Cristã. Isso mesmo ocorreu em
Portugal dando origem, como a solenidade exigia, a um Regimento
próprio.
A procissão medieval não é necessariamente uma expressão
religiosa, pois pode definir-se como uma manifestação de fé, de
crença, mas também de testemunho de adesão, de apoio, de fidelidade
a uma pessoa ou causa, seja ela temporal ou espiritual. Com efeito,
os povos organizavam-se em grandes manifestações de adesão, tanto
quando se impunha testemunhar uma devoção espiritual como
quando se queria aclamar uma personalidade, nomeadamente o
rei. Recordem-se as procissões que aconteciam, por exemplo, nas
entradas régias – a cidade, na primeira vez que recebia o monarca,
apresentava-se fora de muros com representantes de todos os
grupos sociais, manifestando deste modo a sua adesão ao novo
rei. E conduzia-o em procissão até ao local mais nobre da cidade,
cujos representantes ostentavam, nestes cortejos, uma pompa que
simbolizava todo o seu poder económico e social. Assim se impunha
e garantia respeito e privilégios na futura relação com o monarca.
Do ponto de vista espiritual, organizavam-se do mesmo modo os
cortejos que se destinavam a proclamar a fé em Jesus Cristo ou nos
seus santos. Neles se juntavam autoridades civis e religiosas, com
o povo em geral, como que transferindo para estas manifestações
de fé a ordem trinitária que agrupava os homens no temporal.
Todos os corpos sociais participavam, cada um no lugar que lhe
competia, de acordo com a hierarquia social. E na ordem política
vigente, os próprios monarcas estabeleciam a regulamentação de tais
testemunhos de fé. Diremos mesmo que, no caso português, os reis
se assumiam como garantes da prática religiosa, qual Carlos Magno
perante o papa, quando se afirmava responsável por fazer executar
tudo o que dizia respeito tanto ao corpo como ao espírito. Nesta
mentalidade se deve entender que, nas devoções estabelecidas, se
misturassem as opções de louvor estritamente espiritual com a acção
de graças por vitórias políticas alcançadas. A justificação é dada pelos
próprios documentos, estando também inserida no Regimento das
Procissões da Cidade de Évora, que contém o texto que nos ocupa.
Diz assim o respectivo preâmbulo,

4 - Heitor MORAIS, s.j.. História dos Papas, Luzes e Sombras. 2ª. Edição. Braga: Editorial A. O., 2005, p. 257.

25
“Como quer que por todas as coisas que de Nosso Senhor re-
cebemos lhe devemos de dar graças como lembrados de seus be-
nefícios, e especialmente os reis e príncipes o devem fazer pelas
vitórias e vencimentos que de sua mão recebem, o que os reis
destes reinos sempre muito perfeitamente fizeram e guardaram
desde o primeiro santo e glorioso rei dom Afonso até nossos dias,
segundo que por procissões e solenidades ordenadas que se em
cada um ano fazem em alguns lugares destes reinos a todos é no-
tório. E querendo nós acerca disto não menos ser grato e reco-
nhecer a Nosso Senhor o que em nossos dias e presença nos fez
de mercê em a batalha que houvemos em os reinos de Castela…”

Deste modo se justificava a intervenção do político na esfera do


religioso, legitimando-se a imposição dos instrumentos reguladores
e fiscalizadores. O documento que iremos analisar, de acordo com
o registo do escrivão, foi copiado e adaptado a partir de um texto
que fora dado pelo mesmo rei, D. João II, à vila de Santarém. Não
conhecemos a data exacta do original, mas presumimos que seja
pouco posterior a 1482, por consagrar já a procissão comemorativa
da Batalha de Toro, cujo regimento foi escrito neste mesmo ano.
Sabemos que foi elaborado especificamente para a procissão do
Corpo de Deus – paradigma de todas as procissões. Porém, em Évora,
seria cumprido noutros três actos de culto similares:
- “no dia do milagre da cera5;
- em véspera de Santa Maria de Agosto pelo vencimento da
batalha real6
- no dia em que el rei dom João nosso Senhor venceu a batalha
de entre Toro e Çamora que é aos dois dias de Março7”.
Este Regimento deveria aplicar-se em todas estas três procissões, com
uma única excepção: nesta última não iria a “arca onde vai o sacramento”.
*
5 - Segundo o Padre António Carvalho da Costa, a tradição deste milagre remonta a 24 de Maio de 1372.
Tendo-se perdido o “trigo”, em virtude do mau tempo, foi feita uma prece colectiva, com Missa cantada e sermão.
Então, diz o autor, o tempo serenou de imediato e Nossa Senhora fez outro milagre, pois “dobrou o peso da cera
que ardia diante da sua imagem todo o tempo que durou a Missa…”. (Corografia Portugueza. Lisboa, 1708, tomo
II, p. 427). Note-se que o “milagre da cera” era uma devoção específica da cidade de Évora. Noutras localidades,
o tema seria o da respectiva devoção, tal como acontece, por exemplo, em Santarém, onde se faz a procissão do
“Santíssimo Milagre”.
6 - Trata-se da batalha que, entre nós, ficou conhecida por “batalha de Aljubarrota”, ocorrida em 1385, na qual
os portugueses derrubaram o invasor castelhano, que pretendia a coroa de Portugal.
7 - A batalha de Toro, travada em 1476, foi a mais significativa operação militar, ocorrida durante a campanha
portuguesa, levada a cabo por D. Afonso V, com o objectivo de defender a coroa de Castela para sua sobrinha,
Joana. Cumprindo uma promessa feita a seu cunhado, Henrique IV, na sequência da respectiva morte o rei
português invade terras castelhanas, casa com a sobrinha e enfrenta a oposição militar de Isabel, a futura rainha
Católica, que disputava igualmente o trono. A batalha de Toro terminou sem um claro vencedor, sendo certo que
a hoste comandada por D. Afonso V foi derrotada, mas o corpo de tropas liderado por seu filho, futuro D. João
II, permaneceu no campo como vencedor. Em consequência, ambos os reinos reclamam a vitória.

26
Acompanhemos então o texto do Regimento, para observar quem
e como devia “servir” nestas procissões de Évora que, segundo o
também estabelecido, tinham um trajecto assinalado: deviam ir “pela
selaria à praça”. Quer dizer que todos estes cortejos atravessariam
obrigatoriamente o eixo principal da cidade, isto é, o que ligava a
Sé Catedral à Praça Pública, hoje ainda a principal, conhecida por
Praça do Geraldo8.
No que se refere à organização do evento, as disposições contidas
no documento impõem uma presença diferente da que conhecemos
nos exemplos estudados por Jacques le Goff. Estes parecem
incorporar apenas os indivíduos segundo a sua categoria social,
do mais importante para o menos importante. Contudo, no nosso
texto destacam-se duas camadas de intervenientes, que surgem em
crescendo, convergindo para o principal local: aquele onde vai o
“Corpo de Deus”. O primeiro grupo é constituído por “aqueles que
servem na procissão”; só o segundo corresponde então à sociedade
hierarquizada.
A ordem da procissão é a seguinte: abre com um touro, animal
que é conduzido e acompanhado pelos homens ligados ao ofício das
carnes, isto é: carniceiros e enxerqueiros, que seguem a cavalo.
Depois surgem aqueles que desempenham actividades ligadas
à terra – hortelãos e pomareiros. Estas categorias têm pendão e
bandeira, o que significa que estavam organizados. Não há qualquer
outra referência a trabalhadores da terra.
Curiosamente, o lugar seguinte é destinado a “mancebas de partido”,
ou seja, prostitutas que irão acompanhadas do gaiteiro e devem ir a
dançar. Trata-se, pois, de um grupo que se destina a “servir…”.
Em três filas sucessivas aparecem depois os ofícios de mulheres:
primeiro as que vendem peixe, depois as que vendem pão, sendo
seguidas por fruteiras, regateiras e outras vendedeiras. Este conjunto,
que não apresenta bandeira nem pendão, deve fazer-se acompanhar
pelos respectivos gaiteiros.
Não há mais representação feminina nesta parte do cortejo,
seguindo-se de imediato os representantes de outros três ofícios:
primeiro os almocreves e depois os estalajadeiros e carreteiros. Todos
têm pendão, bandeira e atabaque. Os estalajadeiros e carreteiros têm
obrigação de se fazer acompanhar de três reis magos.
8 - Os seleiros (ou fabricantes de selas e arreios) não deviam ocupar a rua toda… A importância da Rua da
Selaria reside no facto de pôr em ligação os dois centros da cidade. O primeiro… representado pela Sé, Castelo
e Açougue…é o centro da cidade enquanto esta se circunscrevia ao perímetro da muralha romana ou cerca
velha… O desenvolvimento dos arrabaldes… deslocaram o centro da cidade para a Praça. A Rua da Selaria
surge assim como o eixo de ligação da cidade medieval com a cidade moderna (cf.. Afonso de CARVALHO. Da
Toponímia de Évora, pp. 276-277).

27
Terminadas estas representações, abrem-se duas filas, nas quais
se incorporam diversos ofícios, com as respectivas bandeiras,
pendão e atabaque, para além de outras particularidades. Assim:
de um lado vão os sapateiros, que apresentarão um imperador e
dois reis “muito bem vestidos” e com eles os surradores, cortidores
e odreiros. A par irão os alfaiates, que igualmente se farão
acompanhar das bandeiras.
A seguir, continuando em alas, seguem os homens de armas: 50
besteiros do conto de cada lado, que transportarão as respectivas
bestas devidamente enfeitadas, para além da bandeira e atabaque.
Não devem levar capas.
Seguem-se, de um lado, os espingardeiros, na mesma ordem e
apresentação, ostentando as espingardas. A par entram os besteiros
da câmara do rei e os besteiros de cavalo.
O grupo seguinte é constituído por homens de armas: barbeiros,
ferreiros, armeiros, ferradores, seleiros, bainheiros, estieiros e
latoeiros. Dividem-se pelas duas alas, de cabeça descoberta e
ostentando espadas nuas, na mão. Com eles deverão levar a imagem
de S. Jorge, com um pagem e um dragão.
O conjunto seguinte é formado, de um lado, por tecelãos,
penteadores de lã e cardadores. Conduzirão a imagem de S.
Bartolomeu e um diabo preso por uma cadeia. A par irão os
correeiros, adargueiros e sirgueiros. Transportam S. Sebastião
levando quatro besteiros.
Igualmente com bandeiras, pendões e atabaques surgem, de um
lado, ataqueiros e safoeiros, que devem levar São Miguel. Do outro
perfilam-se os olheiros, telheiros e tijoleiros, que devem transportar
Santa Clara com duas companheiras.
Vêm depois, ainda distribuídos pelas duas filas, os carpinteiros,
pedreiros, taipadores, calcadores, caieiros, cabouqueiros,
molhinheiros, serradores e outros que trabalhem na construção de
casas. Deverão transportar Santa Catarina.
Cessa aqui a divisão em duas filas para voltar a uma única.
Seguem-se então sucessivos conjuntos, cujos membros transportam
tochas acesas. Primeiro vão os tosadores e cerieiros, logo seguidos de
ourives e pichaleiros. Estes levarão igualmente a imagem de S. João.
Atrás do santo são conduzidas duas bandeiras: primeiro a
da cidade, levada pelo alferes. Depois a bandeira real, que será
transportada por dois cavalos.
Seguem-se os trapeiros e os marceiros, com dois cavalinhos
fuscos. Após eles irão os mercadores de panos de cor e, depois deles,
os escrivães. Atrás destes incorporam-se os boticários.
28
De novo em duas filas, apresenta-se o restante oficialato,
transportando igualmente acesas as respectivas tochas: de um lado
os tabeliães das notas. Do outro os tabeliães do judicial. Depois os
procuradores do número e seus inquiridores, a par com o escrivão
dos órfãos e de almotaçaria. Seguem-se os escrivães do rei: o escrivão
dos contos e do almoxarifado e o escrivão dos pretos e dos vinhos.
Atrás de todos, junto do Corpo de Deus, estarão os dois juízes
do ano anterior ou, na falta deles, dois vereadores também do ano
anterior.
Todo este conjunto convergiu para a zona “nobre” da procissão –
o local onde vai a “arca com o Corpo de Cristo”. Atrás da mesma Arca
iniciam-se novos conjuntos de pessoas, precedida por representações
de Apóstolos, Evangelistas e Anjos.
Não temos descrição da sequência que levam, pois o documento
apenas diz que se segue a “Procissão”. Tal significará uma organização
inversa da anterior, sendo certa a hierarquização social por Clero,
Nobreza e Povo.
*
Como se verifica, o documento em análise dá-nos a preocupação
pelo estabelecimento de um protocolo, de acordo com o que acontece
noutras áreas da acção régia, nomeadamente na sua corte. Trata-se,
pois, de um “espectáculo-representação” disposto pelo temporal em
função do espiritual. Realcemos a manifestação social com o colorido
das bandeiras dos respectivos ofícios, qual afirmação de organização
e poder. Mas importa não esquecer que essa representação é
hierarquizada, tendo como objectivo o encontro com a mensagem
principal da procissão que, neste caso, é o Corpo de Cristo.
O modo como os grupos sociais estão dispostos no terreno permite
igualmente uma leitura da respectiva importância na sociedade local.
Torna-se então muito interessante verificar, para lá dos que abrem a
procissão (touro e carniceiros), seguidos de um grupo teoricamente
excluído, as prostitutas, que o grupo de menor prestígio social será o
dos hortelãos e pomareiros, ou seja, o que representa as actividades
ligadas à terra. No que se refere às “mancebas do partido”, importa
ainda salientar, sem cuidar de uma interpretação aprofundada desta
presença, que nesta alvorada da Idade Moderna a mentalidade era
mais tolerante. Posteriormente e progressivamente iremos assistir
à estigmatização deste e doutros sectores da sociedade. Depois,
realcemos que a representação feminina não se apresenta organizada
em confrarias: são as mulheres que vendem. Exige-se-lhe apenas
espectáculo, isto é, que se apresentem bem arranjadas e sejam
acompanhadas de gaiteiro. Só então seguirão as bandeiras, pendões
29
e atabaques, testemunhando o poder dos ofícios que é crescente,
começando nos almocreves e terminando nos ourives, que precedem
as bandeiras da cidade e real.
Os mercadores de panos, qual alta burguesia de Évora, precedem
os oficiais régios que, em crescendo, acabam nos juízes, junto dos
quais vai o Corpo de Cristo.
Poderíamos ainda fazer uma leitura a propósito do santo
conduzido por cada grupo profissional, que certamente é o respectivo
protector. Seja o caso de S. Jorge, conduzido pelos homens de armas,
de S. Bartolomeu, da responsabilidade dos que trabalhavam a lã,
ou ainda de S. Miguel, com a balança da justiça… De não menor
importância seria perguntar qual o significado do “touro” que abre
a procissão e outros que, por regimento, carniceiros, enxerqueiros e
padeiras deviam dar para esse dia. Mas esse é outro tema….
*
Concluindo esta reflexão, atentemos ainda nas disposições finais
do documento. Nelas ressalta, mais uma vez, a decisão régia de
assumir a responsabilidade pelo cumprimento, por parte de todos,
dos rituais religiosos, nomeadamente os que eram impostos por
regimento. Por isso o monarca não hesitou em determinar e fazer
registar as penas que deveriam ser aplicadas a eventuais infractores:
“qualquer que não for a cada uma das ditas procissões que pague de
pena duzentos reais para a Câmara e obras da cidade”. E “ o vereador
que não fizer vir todos os que a seu mester pertencem, assim as
bandeiras, invenções ou tochas como a cada um é ordenado se os
logo não der em rol na Câmara para lhe serem executadas as ditas
penas, que ele vereador ou mordomo pague quinhentos reais da
cadeia”. E tudo isto porque “el rei nosso Senhor quer per serviço de
Deus que nenhuma pessoa cristã de qualquer estado e condição que
seja se não escuse nem seja escuso”.
É o exercício régio, no temporal, a garantir o cumprimento do
espiritual

30
APÊNDICE DOCUMENTAL

REGIMENTO DAS PROCISSÕES


DA CIDADE DE ÉVORA9

Este é o Regimento dos que am de servir nas quatro procissões


do dia do Corpo de Deus em cada um ano: dia de quinta feira do
Corpo de Deus, e logo ao dia do milagre da cera em que vai o dito
Corpo de Deus e véspera de Santa Maria de Agosto pelo vencimento
da batalha real e o dia em que el rei dom João nosso Senhor venceu a
batalha de entre Toro e Çamora que é aos dois dias de Março.
Item, primeiramente na dianteira de todos irão os carniceiros com
um touro por cordas e todos os carniceiros e enxerqueiros a cavalo
com ele com sua bandeira de sua divisa e isto além de pagarem os
jogos dos meos touros pêra o dia do Corpo de Deus como sempre de
costume foi ordenado: os carniceiros dos meos touros dos talhos e
os enxerqueiros com os que por costume sempre deram seu jogo de
touro. E terão seu atabaque.
Item, logo irão hortelães e pomareiros da cidade e seu termo e
levarão a carreta e horta e levarão seus castelos e pendões da sua
divisa enramados e pintados e sua bandeira e atabaque.
Item, no meio da procissão virão todas as mancebas do partido
com os porteiros todos em uma dança com seu gaiteiro.
Item, as duas pélas das pescadeiras logo detrás elas bem vestidas e
arrayadas com seu gaiteiro e elas todas ali em pessoas.
Item, a péla das padeiras que é uma só, porquanto dão todas o
jogo dum touro e as padeiras ali com a dita péla por pessoas.
Item, as três pélas das fruteiras e regateiras e vendedeiras e elas
todas per pessoa com seu gaiteiro.
Item, os almocreves todos com seus castelos pintados de sua divisa
e bandeira e atabaque e pendões bem pintados, todos em pessoa.
Item, os carreteiros e estalajadeiros com seus castelos e pendões
pintados e sua bandeira e atabaques e trazerão os três reis magos em
sua invenção.
Item, os sapateiros trazerão o seu emperador com dois reis muito
bem vestidos como lhe é ordenado com seus castelos e pendões bem
pintados e sua bandeira e atabaque todos de uma banda e servirão
com eles: sapateiros, surradores, cortidores, odreiros todos em
pessoa.

9 - Transcrição de Gabriel PEREIRA. Documentos Históricos da Cidade de Évora. Lisboa: I.N-CM, 1998, II par-
te, pp 159-161.

31
Item, os alfaiates doutra banda e trazerão a serpe e seus castelos
pintados de sua divisa com pendões e bandeira e virão todos per
pessoa e seus atabaques.

BESTEIROS DO CONTO

Item, besteiros do conto tantos de uma banda como doutra que


são cento e levarão sua bandeira e atabaque todos sem capas com
suas bestas enramadas.
Item, os espingardeiros del rei nosso Senhor com suas espingardas
ao colo todos de uma banda com sua bandeira de sua divisa e
atabaque, todos sem nenhuma cobertura.
Item, os besteiros da câmara del rei nosso Senhor e assim os de
cavalo todos com pelote da outra banda e sua bandeira e atabaque.
Item, os homens de armas atrás estes todos bem armados sem
nenhuma cobertura e senhas espadas nuas nas mãos e levarão
São Jorge muito bem armado com um pagem e uma donzela para
matar o dragão, tantos de uma banda como doutra e seu atabaque e
bandeira e servirão nestes armados: barbeiros, ferreiros e armeiros,
ferradores, seleiros, bainheiros, estieiros, latoeiros, todos bem
armados sem nenhuma cobertura como dito é.
Item, os tecelães, penteadores de lã, cardadores com seus castelos
e pendões pintados de sua divisa e sua bandeira e atabaque e levarão
São Bartolomeu e um diabo preso por uma cadeia, todos de uma
banda.
Item, os correeiros, dargueiros, sirgueiros doutra banda com seus
castelos e pendões pintados e sua bandeira e atabaque e levarão São
Sebastião com quatro besteiros.
Item, os ataqueiros e çafoeiros com os ditos pendões e castelos
pintados e sua bandeira e atabaques, todos em pessoa e levarão São
Miguel o anjo com sua balança e os demos.
Item, os oleiros doutra banda e com eles os telheiros e tijoleiros
com seus pendões e castelos pintados e atabaque e sua bandeira e
levarão Santa Clara com suas duas companheiras.
Item, os carpinteiros e pedreiros e taipadores, calcadores e
caieiros, cavouqueiros, molhinheiros, serradores e assim todos os
que corregem casas, com seus castelos e pendões pintados mui bem
e sua bandeira e atabaque tantos de uma banda como da outra e
trarão Santa Catarina mui bem arrayada.
Item, os tosadores e cerieiros farão pombinha na praça e levarão
sua bandeira e atabaque e levarão suas tochas com seus castelos de
estanho acesas.
32
Item, os ourives e pichaleiros estes levarão suas tochas acesas e
sua bandeira de sua divisa e atabaques e castelos de estanho como
sempre costumaram e levarão São João.
Item, os trapeiros que são os mercadores de pano de linho e
os marceiros todos com suas tochas acesas e castelos de estanho e
levarão uma bandeira e atabaque e dois cavalinhos fuscos.
Item, mercadores de pano de cor todos pólo modo suso escrito
com suas tochas.
Item os escrivães Dante os vigários com suas tochas acesas
Item, o escrivão das armas com sua tocha
Item, os boticários com suas tochas
Item os tabeliães das notas com suas tochas todos de uma banda
Item, os tabeliães do judicial todos doutra banda com suas tochas
acesas
Item, os procuradores do número todos com suas tochas e seus
inquiridores
Item o escrivão dos órfãos e de almotaçaria com suas tochas e
assim vem os mais.
Item, os escrivães del rei nosso Senhor todos com suas tochas,
convem a saber, o escrivão dos contos e do almoxarifado e o escrivão
dos pretos e dos vinhos.
Atrás de todos, ante o Corpo de Deus virão os dois juízes do ano
passado com suas tochas dandas, e se aí não houver juízes virão dois
vereadores do ano passado.
No meio desta procissão atrás de São João virá a bandeira da
cidade e a bandeira del rei nosso Senhor, as quais trazerão a da
cidade que virá diante o alferes se o aí houver, e não o havendo aí
trazem na os almotacés que em cada uma das ditas quatro procissões
for no mês que cair.
E a bandeira del rei Nosso Senhor virá atrás de todas, e o caram
dos apóstolos e e trazê-las-ão em dois cavalos com os paramentos e
arnezes que Sua Alteza há-de dar.
E logo irão os apóstolos
E os evangelistas
E os anjos
Então a procissão
E manda el rei nosso Senhor que este regimento se cumpra em
todalas quatro procissões: na do dia do Corpo de Deus que se sempre
faz a quinta feira do dia da Trindade, e na procissão do milagre da
cera em que também anda o Corpo de Deus vai pela selaria à praça e
na procissão real que se faz véspera de Nossa Senhora de Agosto pelo
vencimento da batalha real que também vão pela selaria à praça.
33
E assim na procissão que Sua Alteza manda fazer aos dois dias de
Março pelo vencimento, quando venceu el rei dom Fernando na
batalha que houve entre Toro e Çamora assim foi ordenado.
(seguem seis regras ilegíveis)… e assim todos os outros escrivães
tabeliães e a todos os aqui escritos que todos vão per pessoas às ditas
quatro procissões como lhe aqui é ordenado e mandado, e qualquer
que não for a cada uma das ditas procissões que pague de pena
duzentos reais para a Câmara e obras da cidade, e o vereador que não
fizer vir todos os que a seu mester pertencem, assim as bandeiras,
invenções ou tochas como a cada um é ordenado se os logo não der
em rol na Câmara para lhe serem executadas as ditas penas, que ele
vereador ou mordomo pague quinhentos reais da cadeia porquanto
el rei nosso Senhor quer per serviço de Deus que nenhuma pessoa
cristã de qualquer estado e condição que seja se não escuse nem seja
escuso.
Eu Pero Estaço escrivão da câmara desta mui nobre e sempre leal
cidade de Évora, escrivão em todalas escrituras que a ela pertencem
por el rei nosso Senhor fiz este regimento e o tresladei pelo que veio
de Santarém que el rei nosso Senhor lá mandou fazer pondo aqui o
que à cidade pertence por mandado do juiz e vereadores.
(Arquivo municipal eborense. Livro pequeno de pergaminho, fl.
81, s/data)

PROCISSÃO COMEMORATIVA
DA BATALHA DE TORO10

Juizes, vereadores, procuradores e homens bons, Nós el rei


vos enviamos muito saudar. Como quer que por todas as coisas
que de Nosso Senhor recebemos lhe devemos de dar graças como
lembrados de seus benefícios, e especialmente os reis e príncipes o
devem fazer pelas vitórias e vencimentos que de sua mão recebem,
o que os reis destes reinos sempre muito perfeitamente fizeram e
guardaram desde o primeiro santo e glorioso rei dom Afonso até
nossos dias, segundo que por procissões e solenidades ordenadas
que se em cada um ano fazem em alguns lugares destes reinos a
todos é notório. E querendo nós acerca disto não menos ser grato
e reconhecer a Nosso Senhor o que em nossos dias e presença nos
fez de mercê em a batalha que houvemos em os reinos de Castela
10 - Transcrição de Gabriel PEREIRA. Documentos Históricos da Cidade de Évora. Lisboa: I.N-CM, 1998, II
parte, pp. 156-161.

34
entre Touro e Samora, porem ordenamos e mandamos que daqui
em diante em louvor de Nosso Senhor e da bem aventurada virgem
Maria sua madre e de Sam Jorge e de Sam Cristóvão que o dito dia
trazíamos por nossos padroeiros e nome, em cada um ano aos dois
dias de Março em que foi a dita batalha e vitória, a clerezia e todos
os dessa cidade façais solene procissão saindo da sé e indo per os
lugares principais com toda a solenidade, cerimónia, ofícios e jogos
assim e tão cumpridamente como costumais de fazer em dia de corpo
de Deus, tirando solamente de não ir a arca onde vai o sacramento.
E se em essa cidade houver igreja do precioso mártir e cavaleiro
sam Jorge e sam Cristóvão a procissão vá a ela onde se diga missa e
pregação em lembrança da dita vitória, segundo o teor e forma desse
caderno que vos com esta enviamos. E onde não houver casa do dito
sam Jorge e sam Cristóvão, vá a dita procissão e pregue-se onde se
costuma ir e pregar per o dito dia de Corpo de Deus. E esta nossa
carta vos mandamos que registeis no livro da câmara dessa cidade
pêra sempre se haver de fazer o que dito é, em relembrança da causa
per que a dita solenidade se faz.
Escrita em Viana da par de Alvito a XII dias de Março. Álvaro
Barroso a fez de 1482. Rey.
Por ElRey aos Juizes, vereadores, procurador e homens bons da
sua cidade de Évora
(Arquivo Municipal Eborense, Liv. 2º Orig., fl 94. Liv. 1º. De
perg., fl. 19v)

35
GLOSSÁRIO
açafoeiros (safoeiro) – o que faz ou vende safões (meia perna de pele
para aquecer)
adargueiros – fabricante de adargas (escudo de couro, oval)
almotaçaria – regulação e fixação dos preços
almoxarifado – área de jurisdição do almoxarife (cobrador de rendas
e impostos reais)
atabaque – instrumento musical. Espécie de tambor
ataqueiros – o que faz atacas (cordão de couro para vestuário)
bainheiros – fabricante de bainhas de espadas
besteiros – soldado que usa besta (arma que disparava pelouros ou setas)
caieiros – homens que têm por ofício fazer cal ou caiar
calcadores – o que coloca e calca (paredes ou chão)
cardadores – o que carda a lã
carniceiros – vendedores de carne fresca
cavouqueiros (cabouqueiros) – os que abrem as fundações de uma
construção
cerieiros – os que trabalham a cera
correeiros – trabalhador do couro que faz ou vende sobretudo
correias ou arreios
cortidores (curtidor) – preparadores de couros
enxerqueiros – vendedor de carne seca
estieiros – preparadores ou vendedores de peças de madeira ou de ferro
Latoeiros (funileiro) - trabalhador de lata ou latão
mancebas do partido - prostitutas
marceiros – Vendedor de géneros alimentícios e quinquilharias
Molhinheiros – os que molinham (misturam)
odreiros – fabricante ou vendedor de odres (saco de couro para líquidos)
pelote – veste sem mangas, com grandes abas para usar debaixo da capa
pescadeiras – peixeiras
pichaleiros – trabalhador ou vendedor de estanho
regateiras – vendedora de aves, fruta ou peixe, no mercado ou ambulante
seleiros – fabricante ou vendedor de selas para animais
serpe – espécie de espada ou faca grande, em forma arredondada na ponta
serradores – serra madeira ou palha para animais
sirgueiros (serigueiro) – o que trabalha a seda ou faz peças de seda.
Em Lisboa chamavam-se assim os vendedores de chapéus.
Surradores – trabalhar e prepara as peles
Tabardo – capote com capelo e mangas
taipadores – o que faz paredes de tabique (barro ou areia e cal)
telheiros – fabricante ou vendedor de telha
tijoleiros – fabricante ou vendedor de tijolos
tosadores – os que tosquiam as ovelhas (tirar a lã)
trapeiros - mercadores de pano de linho
36
2 - RELIGIÃO DE PROXIMIDADE
EM PORTUGAL EM FINAIS DA
IDADE MÉDIA: ESTABELECIMENTOS
RELIGIOSOS SECULARES LOCAIS E
CONTROLO SOCIAL.
Manuela Santos Silva*

Embora o período seja ainda mal conhecido pela natureza e pela


raridade das fontes sobreviventes até aos nossos dias, possuem-se indí-
cios suficientes para se poder caracterizar o modo como se processou
a expansão territorial por parte do reino de Leão, em direcção a sul, na
segunda metade do século IX. Os grupos - mais ou menos numerosos
– de povoadores anónimos, integrar-se-iam em empresas organizadas
por magnates de grande importância social no seu reino de origem ou
em campanhas mais modestas de mosteiros em busca de novas locali-
zações ou de desdobramento das originais. Alguns, mais afoitos, talvez
organizassem por si próprios a sua presúria, esperando poder resistir
perante os seus companheiros mais fortes que vinham encarregados
pelo rei de dirigir a divisão patrimonial e a distribuição de tarefas1.

IGREJAS E MOSTEIROS NO PROCESSO DE


POVOAMENTO DO TERRITÓRIO PORTUGUÊS

Apesar de se dar prioridade à ocupação ou reconstrução de cas-


telos, a forma predominante dos novos povoados era muito básica,
visando sobretudo a obtenção de terrenos agrícolas e/ou para pas-
torícia, havendo porém a tendência para a instalação das casas de
morada em pequenos aglomerados de tipo aldeia2.
Parece ter-se tornado desde logo indispensável, quase como se
fosse necessário para legalizar o povoado, construir uma pequena
igreja, perto ou no seio da aldeia, para a qual se nomeava simples-
mente um dos povoadores – que na terminologia portuguesa se tor-
naram conhecidos por herdadores – que se encarregaria de ministrar
os ofícios religiosos mais básicos3. Outra seria a preparação daqueles
*
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Academia Portuguesa de História.
1 - Salvador de MOXÓ. Repoblación y Sociedad en la España Cristiana Medieval. Rialp: Madrid, 1979, pp. 126-196.
2 - IDEM. Ibidem, pp. 53-54; J. A. GARCIA DE CORTÁZAR y otros. Organización social del espacio en la Es-
paña medieval. La Corona de Castilla en los Siglos VIII a XV. Barcelona: Ariel, 1985, pp. 60-71.
3 - Salvador de MOXÓ. Repoblación y Sociedad en la España Cristiana Medieval, p.54; José MATTOSO. Identi-
ficação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal (1096 - 1325). 2ª Edição. Editorial Estampa: Lisboa, 1986,
Vol. I – Oposição, pp.190-192; 234-235.

37
que, por vezes, em pequeníssimos mosteiros cumpririam as mesmas
tarefas ao serviço da comunidade em formação. Uns e outros, po-
rém, em espírito de grande liberdade, como um pouco por todo o
lado sucedia antes do período reformador de Gregório VII4.
Como facilmente se imaginará, uns e outros eram edifícios de
grande simplicidade, quer na estrutura que apresentavam quer
quanto aos materiais empregues não sendo fácil, de facto, que per-
durassem no tempo. Podemos pelos exemplos esparsos remanescen-
tes de épocas próximas – Dume e São Frutuoso de Montélios em
Braga, por exemplo, ou a igreja de mosteiro de São Gião – imaginar
a singeleza das construções5. Mas, de qualquer modo, a Igreja ganha-
va assim na paisagem humanizada do futuro território de Portugal
um papel de grande importância, como se conclui da documentação
iconográfica ao longo de toda a Idade Média (cf. Figuras 1 e 2)6.

Em lugares especiais surgiam pequenos santuários, onde se reu-


niam os fiéis em dias de festa, tornando-se por vezes oratórios de
pergrinação7. Mesmo eremitérios fundados em locais de algum iso-
lamento lograram, em alguns casos, transformar-se mais tarde em
igrejas paroquiais, destinadas ao serviço das populações locais.
À medida que o núcleo populacional crescia, independentizavam-
se as comunidades da alcáçova – constituída pelos mais poderosos
– e a da almedina ou arrabalde, ostentando cada uma a sua igreja8.

4 - Escolhemos entre outros os artigos de José MATTOSO, “A Cultura Monástica em Portugal (875-1200)” e
“O Monaquismo Ibérico e Cluny”. In: IDEM. Religião e Cultura na Idade Média Portuguesa. Lisboa: Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, 1982, pp. 358-363; 57-58, respectivamente.
5 - Vejam-se figuras anexas 1, 2, 3.
6 - M. Justino MACIEL. “A Arte da Antiguidade Tardia (séculos III a VIII, ano de 711)”. In: Paulo PEREIRA
(ed). História da Arte Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995-1997, vol. 1 – Da Pré-História ao Islão,
pp.127;132, respectivamente.
7 - Como lembrava C. A. Ferreira de ALMEIDA. “Religiosidade popular e ermidas”. Studium Generale. Estudos
Contemporâneos (Porto: Centro de Estudos Humanísticos), 6, 1984, pp.78-82.
8 - Como nós pudemos mostrar através dos nossos estudos sobre a vila de Óbidos, sobretudo em Manuela Santos
SILVA. Óbidos Medieval. Estruturas Urbanas e Administração Concelhia. Cascais: Patrimonia, 1997, pp. 35-37.

38
Muitos mosteiros cumpriam funções sociais do mesmo tipo das
das igrejas paroquiais. No século XI, por exemplo, eram muito nu-
merosos os mosteiros familiares patrocinados pela nobreza de “in-
fanções”. A maioria não tinha mais de 3 a 10 monges e um número
incerto de devotae. O sustento era-lhes assegurado por dotações em
bens materiais feitas pelos fundadores. Em finais do século XI qua-
se todos tinham trocado as suas regras originais pela de São Bento,
adotando os costumes cluniacenses9. (cf.Figura 3) 10.

Mas, no século seguinte, tornou-se mais complicada a manuten-


ção de instituições com estas características, tendo muitas ameaça-
do falir. As famílias nobres, que os haviam fundado e que os man-
tinham, serviam-se agora dos seus recursos quando elas próprias
desejavam aumentar os meios económicos com que contemplar os
seus membros. Em época de mudança nos hábitos sucessórios, mui-
tos foram encaminhados para Ordens Religiosas Militares ou para
Mosteiros dedicados à regra de São Bernardo de Claraval implanta-
da em Cister11.
E nas maiores cidades - como Coimbra e Lisboa – instala-se uma
nova ordem de cónegos, os Regrantes de Santo Agostinho, que pro-
põe uma nova filosofia de pastoral urbana vivida, porém, sob uma
regra em vida comunitária que, em parte, vai influenciar a estrutu-
ração da vivência dos cónegos catedralícios e dos beneficiados de
muitas igrejas paroquiais, sobretudo em meio citadino. Inseriam-
-se assim, de forma perfeita, na estrutura administrativa eclesiástica
“oficial”, compreendendo-se a estranheza, mas também o entusias-
9 - José MATTOSO. Ricos-Homens, infanções e Cavaleiros. A nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII.
Lisboa: Guimarães & Cª. Editores, 1982, pp. 95-99; IDEM. Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de
Portugal (1096 - 1325), vol. I – Oposição, pp.198-199; IDEM. “O Monaquismo Ibérico e Cluny”. In: Religião e
Cultura na Idade Média Portuguesa, pp. 62-65.
10 - M. Justino MACIEL. Op.cit., p. 133.
11 - José MATTOSO. Identificação de um País, vol. I – Oposição, pp.204-207; IDEM. Ricos-Homens, Infanções e
Cavaleiros, pp. 99-113; IDEM, “Cluny, Crúzios e Cistercienses na Formação de Portugal”. In: Portugal Medieval.
Novas Interpretações. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985, pp. 101-121.

39
mo pela novidade, que suscitaram as ordens mendicantes nos seus
primeiros contactos quer com as populações das cidades, quer com
os níveis mais elevados da sociedade privilegiada12.

CONSTRUÇÃO DE IGREJAS E FUNDAÇÃO DE


PARÓQUIAS COMO INDICADORES DE
CRESCIMENTO POPULACIONAL

O ritmo construtivo de igrejas em determinadas cidades pode


ainda ser indicativo de outros aspectos da realidade social. De facto,
já vimos que a existência de uma instituição religiosa dava enquadra-
mento a quase todas as povoações medievais. Mas a construção de
múltiplas igrejas dentro de um espaço temporal curto só se explica
pelo crescimento populacional entretanto ocorrido. Assim, um sur-
to de edificações religiosas funciona como um indicador importante
de uma migração havida para esse local. Não tem, porém, utilidade
para subsequentes alterações demográficas13.

A GEOGRAFIA DAS PARÓQUIAS PRIMITIVAS

Seguindo um paradigma instaurado durante os primeiros tem-


pos de difusão do cristianismo, dependente de cada igreja ficava
uma área territorial de maior ou menor superfície, constituída nor-
malmente por uma vila e diversas aldeias e ainda diversas unidades
agrárias que eram designadas por quintãs e casais. A recolha das
dízimas dos fiéis constituía um recurso económico de importân-
cia e materializava-se também em géneros que contribuíam para o
enchimento dos celeiros, lagares e adegas das igrejas. Apesar de a
monocultura ser escassamente praticada haveria algum interesse em
conseguir criar manchas coesas de património que permitiam al-
cançar uma administração mais eficiente. Mas não sendo as igrejas,
e consequentemente as paróquias, criadas em simultâneo, como se
dividiriam as áreas jurisdicionais entre elas? O historiador da Uni-
versidade de Coimbra, Saul António Gomes, propôs para a região de
Leiria uma distribuição espacial com base cronológica mas, em área
12 - José MATTOSO. “Cluny, Crúzios e Cistercienses na Formação de Portugal”; “O enquadramento social e
económico das primeiras fundações franciscanas”. In: IDEM. Portugal Medieval. Novas Interpretações. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985, pp. 101-121; pp. 329-345; IDEM, Identificação de um País, vol. I –
Oposição, p. 204.
13 - Como demonstrou José MATTOSO em relação à cidade de Leiria: “A Cidade de Leiria na História Medieval
de Portugal”. Ler História 4. Lisboa: A Regra do Jogo, Edições, 1985, pp. 3-18.

40
não muito distante – em Óbidos – nós encontrámos uma geogra-
fia eclesiástica muito fracturada que, ao longo dos tempos, originou
múltiplas e intensas negociações entre igrejas buscando uma maior
coesão para as suas paróquias14.

PARÓQUIA E FREGUESIA –
AS UNIDADES CONSTITUINTES DOS CONCELHOS.

Cada igreja podia administrar diversas capelas, oratórios e eremi-


térios que se integrassem na sua paróquia. Devia nomear para cada
uma delas oficiantes que aliviavam os clérigos eclesiais de algumas
das suas tarefas, nomeadamente de algumas missas semanais. Era
raro, porém, que se consentisse a estes capelães o ministério de sa-
cramentos para além, eventualmente, da comunhão.
Já vimos como eram simples as igrejas medievais; imaginemos
como seriam as capelas suas dependentes, em termos de dimensão e
de ornamentação. Dependiam para tudo das igrejas-mãe. Algumas
delas, porém, conseguiram elevar-se estatutariamente, tornando-se
elas próprias igrejas. Na maior parte dos casos tal aconteceu por ra-
zões de natureza político-administrativa e não religiosa.
Apresentamo-vos o caso do Cadaval, concelho criado a partir de
Óbidos em 1371 e que ganhou as suas freguesias administrativas a
partir da elevação a igreja das suas capelas. É que a própria geografia
administrativa laica se aproveitava das estruturas eclesiásticas para
se moldar. Mas, curiosamente, e neste caso que citámos, a elevação
das quatro capelas à categoria de igrejas não as tornou autónomas
eclesiaticamente das igrejas da vila de Óbidos de que dependiam an-
tes15.

O CONTROLO EXERCIDO PELAS IGREJAS E CLÉRIGOS:


A ORGANIZAÇÃO COLEGIAL

A maior parte das igrejas edificadas em vilas e cidades possuía uma


organização colegial, reproduzindo “à escala das suas proporções o
esquema vigente do Cabido catedralício”, como havia notado José
14 - Saul António GOMES. “Organização Paroquial e Jurisdição Eclesiástica no Priorado de Leiria nos séculos
XII a XV”. Lusitânia Sacra, 2ª série, 4, 1992, pp. 163-309; Manuela Santos SILVA. Óbidos e a sua região na Baixa
Idade Média. Lisboa: Dissertação de Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 1996, vol. I, pp. 148-158.
15 - Manuela Santos SILVA. O Primeiro Concelho do Cadaval (1371-1496). Câmara Municipal do Cadaval, 2004,
pp. 26-30; IDEM. Óbidos e a sua região na Baixa Idade Média, vol. II, pp. 174-175.

41
Marques ao estudar a arquidiocese de Braga16. Assim, cada igreja
tinha um corpo de clérigos de número variável presidido por um
prior que, como retribuição pelo desempenho de determinadas
obrigações, tinha o direito de participar no usufruto das rendas e dos
direitos que a sua igreja auferia. Na sua origem, a organização em
colegiada das igrejas urbanas também significaria certamente que os
seus beneficiados viveriam em comunidade, eventualmente segundo
uma regra, dividindo os proventos entre todos17.
Mas não de forma igualitária! Na documentação que até nós che-
gou concluímos que o maior dignitário de cada colegiada – o Prior –
podia chegar a usufruir de metade dos rendimentos da igreja, a que
acresciam por vezes outros direitos não divisíveis18.
Ao invés das rendas da Mesa Prioral, as da Mesa Capitular eram
igualmente distribuídas por todos os beneficiados ou raçoeiros – por-
que recebiam uma ração. Em alguns casos, o provento podia não
ser significativo. Por isso, com mais frequência do que esperaríamos,
encontramos raçoeiros que acumulavam prebendas em diversas
igrejas e que, consequentemente, eram contabilizados entre os au-
sentes durante as visitações levadas a cabo, com uma periodicidade
talvez anual, pelos delegados dos bispos sob cuja jurisdição se en-
contravam.
Tal acumulação de funções e proventos era, porém tolerada e até
estava prevista nas normas eclesiásticas. Numa das visitações do de-
legado do arcebispado de Lisboa à igreja de Santa Maria de Óbidos
recomenda-se que “o que for beneficiado em duas egreias serua em
huma somana em huma e outra em outra”19.
Assim era raro que o corpo de qualquer igreja se encontrasse
completo mesmo quando os ofícios dos dias santos exigiam que
maior número de clérigos se encontrasse ao serviço da comunidade.
Alguns ausentavam-se até por razões menos aceitáveis: ao que parece,
na igreja de Santiago de Óbidos, deixavam de oficiar as missas e de
cumprir as suas obrigações canónicas, mesmo aos Domingos e dias
de festas religiosas para andarem na caça20. Apesar da condenação
moral que lhes foi feita por servirem de mau exemplo aos laicos, os

16 - Cf. José MARQUES. A arquidiocese de Braga no século XV. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1988, p. 479 que notou, aliás, as grandes disparidades existentes entre as 22 colegiadas que estudou.
17 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. “Colegiadas”. Dicionário de História Religiosa de Portugal, A – C. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2000, p. 400.
18 - Como encontrámos expresso para a Igreja de São Pedro de Óbidos – Manuela Santos SILVA. “Igrejas-Co-
legiadas na Idade Média: uma linha de investigação a ser (pros)seguida”. In: Olhares sobre a História. Estudos
oferecidos a Iria Gonçalves. Lisboa: Caleidoscópio_Edições e Artes Gráficas S.A., 2009, p. 583.
19 - A.N.T.T.. Colegiada de Santa Maria de Óbidos, Lº. 1, Visitação de 24 de Fevereiro de 1424.
20 - Isaias da Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos, I (1434 - 1481)”. Lusitania Sacra (Lisboa),
Tomo VIII, 1967/69, I.

42
inspectores do arcebispado de Lisboa limitaram-se a exigir que, ao
menos, um número mínimo de eclesiásticos se encontrasse presente
nessas alturas, pedindo assim ahos clerigos e beneffiçiados da dicta
egreja que tem carego de a servir que nom leixem a dicta egreja ahos
domingos e festas e vam fora dezer missa, salvo se em a dicta egreja
forem tantos clerigos pera officiar às ditas missas na dicta egreja em tal
modo que aho menos fiquem em ella três pera officiar e huu que diga
a missa sob a pena de dozentos brancos quada vez que se assy partir21.
Para motivar à assiduidade aos ofícios litúrgicos, os responsáveis
pela administração dos recursos das igrejas e pela sua partilha – o
prioste ou prebendeiro - usavam incentivos de natureza material
como distribuições diárias em géneros aos presentes às horas ca-
nónicas, prémios conferidos aos mais assíduos, distribuições suple-
mentares em ocasiões especiais, etc.
Nos seus estudos sobre colegiadas, Ana Maria Rodrigues encon-
trou um Compromisso firmado pelo Prior e pelos Raçoeiros de São
Pedro de Torres Vedras que fazia referências directas à obrigação por
parte dos raçoeiros de estarem presentes às horas canónicas22. Mar-
garida Garcez Ventura, ao trabalhar a documentação da Colegiada
de Santo André de Mafra, encontrou, “arrumado entre duas Cartas
de Visitação dos finais do século XV”, “um assento”, onde o “aponta-
dor”, um oficial eleito da igreja, “tinha o encargo de apontar as faltas
dos beneficiados de modo a que as rendas podessem ser distribuídas
de acordo com a efectiva dedicação de cada um à igreja” 23.

OS OFÍCIOS RELIGIOSOS
A verdade é que, independentemente do número de beneficia-
dos arrolados a cada igreja, a cura das almas, isto é, a administração
dos sacramentos e da missa pro popolo aos Domingos e dias de festa
podia ser desempenhada quer pelos raçoeiros como colectivo, quer
apenas por um deles, quer por um clérigo trazido de fora, a quem o
Colégio pagava um salário24. Mais raro, mas possível, era serem os
priores a deter essa função25.

21 - IDEM. I (1434-1481), I.
22 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. “As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”. Didaskalia, XV,
1985, p. 376.
23 - Margarida Garcez VENTURA. A Colegiada de Santo André de Mafra (séculos XV-XVIII): transcrição paleo-
gráfica do fundo documental e estudo introdutório. Câmara Municipal de Mafra, 2002, p. 8.
24 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. “Colegiadas”, p. 400.
25 - IDEM. “As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”, p. 379; Joaquim Bastos SERRA. A Colegiada
de Santo Estêvão de Alfama nos finais da Idade Média: os homens e a gestão da riqueza patrimonial. Cascais:
Patrimonia Historica, 2003, p. 26.

43
Não era esse o caso na Colegiada de Santa Maria da Alcáçova de
Santarém. Ao estudar essa importante instituição localizada numa das
principais localidades do reino de Portugal, Maria de Fátima Botão
concluiu que ao prior não estavam atribuídos quaisquer deveres de
culto, sendo este cargo, segundo as suas palavras, “virtualmente hono-
rífico” e, em alguns casos, “ser mais um complemento de outros cargos
e funções”, não estando sequer obrigado quer a fixar a sua residência
na urbe escalabitana, quer a deveres concretos do foro eclesiástico e
económico”26. No entanto, em localidades de menor dimensão e im-
portância como em Torres Vedras ou Óbidos os priores deveriam ser
“personagens da classe média cujos méritos, próprios ou de parentes
zelosos, haviam despertado o interesse e favorecido a proximidade do
rei”, o qual decidira recompensá-los concedendo-lhes uma prebenda27.
Mesmo assim, em Santa Maria de Óbidos, a função pastoral do Prior
reduzia-se a seis dias por ano (“em dia de natal e em dia de epiphanja
e em dia de pascoa de Resurreyçom e em dia do penthicoste e em dia
do corpo de deus. E em dia da asumpçom de sancta Maria” e o mesmo
sucederia em muitas outras igrejas28.
Os ofícios dos defuntos eram outra das ocupações que mais tra-
balho dava aos eclesiásticos. Ofícios do dia do soterramento, celebra-
ção do oitavo dia do passamento, missa do mês, do ano e, depois dis-
so, as chamadas missas de aniversário, tomavam certamente muito
tempo aos clérigos como o parecem demonstrar os numerosos livros
de aniversário ainda remanescentes para muitas igrejas, se bem que
de difícil leitura, em muitos casos, e de ainda mais difícil tratamen-
to. Para além destas celebrações com data marcada, tornou-se ainda
hábito, todas as segundas-feiras ir sobre as sepulturas com cruz e
água benta29. A memória de todos estes falecimentos perduraria de
forma diversa: nos casos em que à celebração dos ofícios estivesse
adscrita uma renda ou um bem, o registo escrito da doação, o tes-
tamento, ou a inscrição no Livro de Aniversários ajudaria a lembrar
a obrigação; mas a instituição ligada ao culto dos mortos que tinha
mais condições de perdurar era, sem dúvida, a capelania. Contudo,
era aquela que poderia funcionar de forma mais autónoma relativa-
mente ao conjunto dos membros da Colegiada, pois embora fosse
instituída na Igreja e houvesse sempre um conjunto de rendas cres-
cente a ela associado, normalmente era administrada por familiares
26 - Maria de Fátima BOTÃO. Poder e Influência de uma Igreja Medieval. A Colegiada de Santa Maria de Alcáço-
va de Santarém. Cascais: Patrimonia, 1998, p. 114.
27 - Ana Maria S. A. RODRIGUES. As Colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV, p. 385.
28 - A.N.T.T.. Colegiada de Santa Maria de Óbidos, Maço 1, nº. 19A (16 de Janeiro de 1415); Ana Maria S. A.
RODRIGUES. “As colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”, pp. 379-380.
29 - Cf., por exemplo, Ana Maria S. A. RODRIGUES. “As colegiadas de Torres Vedras nos séculos XIV e XV”, p. 382.

44
do instituidor que nela eram obrigados a investir, e de cujas rendas
deveriam pagar a um ou mais capelães que se encarregassem dos
ofícios de sufrágio das almas, não esquecendo toda a manutenção da
capela, incluindo altares, panos, cortinados, vestes religiosas, can-
deias permanentemente acesas, imagens de santos, cálices e outros
instrumentos usados no culto, livros, etc30. Se é verdade que muitas
vezes os familiares não demoravam em deixar degradar a capela e
respectivo culto, também se pode comprovar que quer os beneficia-
dos da colegiada, quer os visitadores do bispado pressionavam os
administradores destas capelas a não descuidar as suas obrigações,
ameaçando-os com a expropriação dos bens a elas adscritos. De fac-
to, para o seu sustento diário, todos estes indivíduos contavam quer
com os rendimentos que as igrejas já possuíam, quer com a contínua
generosidade dos fiéis que incrementava incessantemente o patri-
mónio de cada igreja.
No entanto, a documentação referente às Colegiadas é mais parca
em informações sobre o papel assistencial e cultural das igrejas pa-
roquiais. Sabemos que o espaço sagrado era inviolável pelas autori-
dades civis judiciais, que muitas igrejas possuíam anexas confrarias
e albergarias, mas não sabemos a quem cabia o papel de cuidar dos
doentes, pobres ou necessitados. O mesmo sucede no que diz res-
peito ao seu papel difusor de cultura, mesmo que apenas religiosa.
João da Cunha Matos que procurou elementos para o estudo da Co-
legiada de São Cristóvão de Coimbra nos Séculos XII e XIII, encon-
trou vestígios de uma actividade escolar a nível básico infantil nessa
mesma Igreja31. Em outras é possível encontrar vestígios da existên-
cia de um Mestre Escola32. Não são difíceis de descobrir os priores
com conhecimentos de nível universitário, por vezes concluídos em
Universidades de outras regiões da Cristandade. São frequentes, po-
rém, os vários Priores e raçoeiros de Santiago de Óbidos e de Santa
Maria que durante vários anos receberam admoestações para que
aprendessem a cantar33. Mas depois da criação do Estudo de Lisboa,
30- Vejam-se os nossos artigos: Manuela Santos SILVA. “Contribuição para o estudo das oligarquias urbanas
medievais: a instituição de capelas funerárias em Óbidos na Baixa Idade Média” e “Uma prestigiada linhagem
obidense: a de Rui Nunes nos séculos XIV e XV”. In: IDEM. A Região de Óbidos na Época Medieval. Estudos.
Caldas da Rainha: Património Histórico, Grupo de Estudos, 1994, pp. 155-170; 123-154.
31 - João da Cunha MATOS. A Colegiada de São Cristóvão de Coimbra (séculos XII a XIII). Tomar: Trabalho
apresentado a concurso de Provas Públicas para Professor Coordenador, 1998, p. 24.
32 - Isaias da Rosa PEREIRA (Ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1482-1500)”. II. Lusitania Sacra (Lisboa),
tomo IX, 1972, pp. 99 (1493); p. 103 (1495).
33 - A.N.T.T. - Santa Maria de Óbidos, Lº.1: 1451 – Óbidos, 24 de Agosto: “pedre yanes prior de santiago
rraçoeiro da dicta igreia [de Santa Maria] nom sabe ler nem cantar...”; Vasco Vicente, raçoeiro “aprenda logo a
cantar e ha ler...”; 1451 – 23 de Agosto: Vasco Vicente, raçoeiro de santiago “aprenda logo a cantar”; Isaias da
Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1482-1500)”, I. Lusitania Sacra (Lisboa), tomo VIII,
1970, pp. 103-221.

45
itinerante durante os séculos seguintes entre esta cidade e Coimbra,
as Colegiadas também foram chamadas a participar com avultadas
contribuições para o sustento dos Docentes.
Em Santa Maria de Óbidos, alguns inventários das suas existên-
cias dão-nos a conhecer os Livros que a Colegiada possuía. Em 1407
conseguimos contabilizar 17 livros, como é óbvio quase todos liga-
dos ao culto e à execução dos ofícios religiosos, e ainda dois cha-
mados “cadernos de procissões” – um de pergaminho e outro de
papel34. Em 1413 os livros nomeados são em número de 15, mas no
número dos cadernos é acrescentado “um caderno de missa de Santa
Maria”35. Todas estas obras não deveriam, porém, ser de muito prés-
timo à maioria dos fiéis, incapazes de ler latim.

O CONTROLO EXERCIDO SOBRE OS FIÉIS

É através dos relatórios de algumas visitações feitas às igrejas


paroquiais que nos podemos aperceber do papel de controlo,
sobretudo em matérias relativas ao comportamento moral e
religioso, que caberia aos membros do clero paroquial36. É certo
que a maior parte dos visitadores se deslocavam às igrejas da sua
diocese com a intenção de inspeccionar o próprio clero, no seu
exemplo diário e no desempenho das suas funções. Também para
cuidar da boa manutenção das Igrejas, tanto das sedes de paróquia
como das suas dependentes, assim como para vigiar o cumprimento,
quer por parte dos administradores respectivos, quer do Prior e dos
restantes beneficiados, das normas impostas pelos instituidores de
capelas funerárias que, tendo deixado bens vários para a nomeação
de capelães, realização de missas de sufrágio, iluminação ou
ornamentação vária, se encontravam muitas vezes descuidadas por
culpa quer dos familiares que delas se deviam encarregar quer por
desleixo da própria instituição na qual estavam instituídas.
Mas a par destas preocupações internas ao próprio funcionamen-
to das igrejas suas dependentes, as visitações serviam para divulgar
Constituições Sinodais37 e normas gerais elaboradas pelos bispos
e arcebispos que depois, por esta via, chegavam a todos os locais.
De uma visitação feita pessoalmente por D. Pedro de Noronha em
34 - A.N.T.T.. Santa Maria, Maço 5, nº.100 (1407 – Óbidos, 30 de Setembro).
35 - IDEM, maço 16, nº. 311 (1451 – Óbidos, 3 de Julho).
36 - O barreganismo, na sociedade laica como na clerical, era uma das preocupações correntes.
37 - Como as que A. C. Borges de FIGUEIREDO encontrou junto com os capítulos de Visitações a São João do
Mocharro (Revista Archaeologica e Histórica. I, 1887) e Isaías da Rosa PEREIRA incluídas no códice contendo as
feitas a Santiago de Óbidos - Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481) I, pp. 103-104.

46
Junho de 1446, por exemplo, resultou a publicação de numerosas
regras aplicáveis a todas as Igrejas da Diocese38. O arcebispo preo-
cupou-se em esclarecer quais os crimes que só ele tinha poder para
absolver, em apelar à disponibilidade total dos clérigos para exercer
o ofício da confissão sempre que um dos crentes manifestasse desejo
de o fazer, em propor um comportamento mais cortês aos membros
do clero na sua relação com os fiéis, em sugerir que se usasse de
um maior cuidado em indagar as situações em causa quando fossem
chamados a ministrar sacramentos – quer se tratasse da extrema-
-unção, do matrimónio ou do baptismo – dando-lhes assim a digni-
dade devida, incentivando ainda a um papel pedagógico do clero no
ensino das orações e rituais aos leigos.

TODO O ESPAÇO É RELIGIOSO NA IDADE MÉDIA

O adro da igreja era ainda o espaço privilegiado para se


localizarem os paços dos tabeliães - tantas vezes chamados pelos
clérigos a oficializar contratos - e ainda para erguer paços para a
vereação do concelho.
Entre Igrejas fazia-se localizar muitas vezes a Judiaria, com a
sua Sinagoga incluída, procurando, quem sabe, exercer influência
cultural e religiosa sobre estes vizinhos, ao mesmo tempo diferentes
e tão semelhantes. Pretendia-se, é óbvio, conseguir a sua conversão,
mas pretendia-se que esta fosse feita de forma esclarecida e sincera39.
O ritmo dos dias marcava-o o toque dos sinos, necessário para
que os eclesiáticos celebrassem os ofícios das horas canónicas, mas
que indicavam aos laicos o passar do tempo e lhes davam a conhecer
os acontecimentos de maior importância local.
De facto, na Idade Média, todo o espaço vivia sob a influência do
Sagrado.

38 - Isaias da Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481)”, I, IV, pp. 112-131
39 - Ver conselhos sobre esta matéria em Isaias da Rosa PEREIRA (ed). “Visitações de Santiago de Óbidos (1434-
1481)”, I, IX, p. 146.

47
3- ASPECTOS DA ESPIRITUALIDADE
DOMINICANA EM PORTUGAL
NA ÉPOCA MEDIEVAL. NOTAS SOBRE
FREI SOEIRO GOMES.
Julieta Araújo*

Dentro do grande movimento reformista que sacudiu a Igreja na


Idade Média, vemos o aparecimento de Ordens religiosas imbuídas
de um forte espírito de proselitismo. Participando profundamente
desta motivação encontrava-se a Ordem de S. Domingos, cuja origem
está ligada à Península Ibérica, pois o seu fundador, Frei Domingos
de Gusmão, era natural de Calaruega, nas terras de Castela, onde
nasceu cerca de 1170. Foi cónego e subprior da igreja diocesana de
Osma. Morreu em Itália, no ano de 1221. Originário de uma família
muito religiosa, recebeu uma profunda educação cristã. Sua mãe,
Joana de Aza, foi beatificada, o mesmo merecimento alcançou um
seu irmão. Encontrando-se em Osma, foi escolhido para integrar a
comitiva do bispo Dom Diogo, participando na enviatura à corte
norueguesa, ordenada pelo rei. Esta viagem e uma outra que se lhe
seguiu permitiram-lhe contactar com os perniciosos efeitos das
heresias que grassavam no sul de França.
Impressionado com a ignorância ligada a este pecado, sentiu a
ardente necessidade de participar na pregação da palavra de Deus.
O grande entusiasmo pelo apostolado levou-o a associar-se à
campanha de missionação promovida pelo papa e pelos seus bispos,
e a defender que uma Ordem dedicada ao ensino das verdades da
Fé, tão afastadas do conhecimento do povo ignaro, seria a verdadeira
solução. Assim nasceu a Ordem de Frades Pregadores, fundada em
Tolosa, no ano de 1215. Aceite pelo Papa Inocêncio III, este ordenou
que Domingos escolhesse uma das Regras aprovadas pela Igreja, sob
a qual vivessem ele e os companheiros que se lhe juntassem, pelo que
assentaram designar para sua vivência a Regra de Santo Agostinho1.
Foi a Bula Religiosam viram, de Honório III (1217), que veio
a aprovar a Ordem de Frades Pregadores, destinada a erradicar
as heresias, uma vez que, segundo o fundador, a pertinácia na
negação de algumas verdades da fé católica resultava da ignorância
*
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Investigadora do Centro de História; Academia Portuguesa
de História.
1 - Frei Luís de SOUZA. História de S. Domingos. Introd. e revisão de M. Lopes de ALMEIDA. Porto: Lello &
Irmão Editores, 1977. In: Tesouros da Literatura e da História, vol. I, cap.VII, p. 47.

49
dos ensinamentos mais elementares da Igreja. Nos nossos dias,
para conhecermos o curriculum de um frade há que pesquisar a
documentação não só no seu convento, mas em todos os da sua
Ordem, pelo que este tipo de estudo corre o risco de se encontrar
quase sempre incompleto.
Realmente, o Frade Pregador era e é mudado frequentemente,
por princípio de obediência, e os documentos que atestam a sua
vida e obra encontram-se nos diferentes mosteiros dos territórios
para onde foi mandatado, conforme atestam as Actas dos Capítulos
Provinciais. Assim sendo, só obterá valor pleno uma investigação de
conjunto, de modo a abranger todo o núcleo documental de frades
e freiras, por onde se possam ir detectando nomes, presenças e
actividades dos diferentes religiosos.
Participando do grupo que acompanhou S. Domingos e que depois
se espalhou no exercício do seu mister de pregação, encontramos
o primeiro dominicano que chegou ao território português, o que
ocorreu no Inverno de 1217. Neste mesmo ano, o fundador dividira
os companheiros enviando-os pelo mundo, pelo que chegaram a
Portugal, na pessoa de D. Frei Soeiro Gomes. 2
Na grande obra sobre a história dos dominicanos, parcialmente
elaborada por Frei Luís de Sousa, cronista da mesma Ordem, dá-se
grande importância à sua instalação em Portugal, motivo pelo qual
devota vários capítulos a Frei Soeiro Gomes.
Em primeiro lugar, ao analisar as fontes de que se serviu, o
cronista refere “que os autores antigos, de cujos escritos pola mor parte
colhemos, e vamos tecendo esta historia todos sem exceituar nenhum,
são estrangeiros de Espanha”, isto é, nasceram fora de Espanha, e por
desconhecimento das realidades ibéricas, “são diminutos, e faltos
sobre maneira nas cousas que tocão a Espanha” .3
Este e outros motivos, serviriam de justificação para a falta de
informação sobre a implantação da Ordem em Portugal. Além disso,
o facto de muitos Autores tenderem a latinizar os nomes, acabava
por corrompê-los e apresenta como exemplo o caso de Frei Soeiro
Gomes.
Sabemos que seria companheiro de S. Domingos e que, ao
contrário de outros, não tem indicação de nacionalidade, ou seja,
«não lhe dão terra nem nascimento”,4 pelo que o cronista procura
2 - V. D. CARRO. Domingo de Guzman. Madrid, 1973; M. H. VICAIRE. Histoire de Saint Dominique. Paris,
1957; Santo Dominigo visto por sus contemporaneos. Madrid: BAC. 1966, tomo 22 (2e ed.); L. SOUZA. História
de S. Domingos. Porto: Lello & Irmão Editores, 1977. Parte I, Liv. I, Cap.1, p. 17; Frei António do ROSÁRIO.
“Primórdios Dominicanos em Portugal”. Bracara Augusta, 1962.
3 - Frei Luís de SOUZA. Op cit, liv.I, cap.IX, p.52.
4 - IDEM, ibidem.

50
demonstrar que Frei Soeiro Gomes era de nacionalidade portuguesa.
Começa por referir que o nome era comum em terra lusa, mas não
era usual em qualquer outro reino da península Ibérica. Afirma
haver registo do seu falecimento no Livro dos Óbitos de S. Vicente de
Lisboa. Por exclusão de partes, conclui tratar-se de um português.
Para atestar essa nacionalidade, Frei Luís de Sousa remete ainda
para duas escrituras que encontrou na Torre do Tombo. Uma, do rei
D. Sancho II e de suas tias, D. Teresa, D. Sancha e D. Branca, tratava
da contenda das donatárias, que as infantas haviam travado com o
anterior monarca, D. Afonso II. Neste documento encontrava-se
aposta a assinatura do Arcebispo de Braga, D. Estêvão Soares da
Silva, o prelado mais importante do reino, e, conjuntamente com
esta, aparecia a de Frei Soeiro Gomes, o que colocava o frade em
posição de evidente importância política nos negócios da política
do reino.
A segunda escritura, entre o rei D. Sancho II e o arcebispo de
Braga, versava sobre perdas e danos de que aquela igreja pretendia
satisfação contra o rei falecido, pai de D. Sancho II. O juiz escolhido
para esta questão fora Frei Soeiro Gomes, o que seria prova
inequívoca da nacionalidade e valor deste último.
Escreve o cronista: “Donde fica claro que não somente era
Portuguez, do que já ninguém pode duvidar, mas que também era
muito nobre em sangue, e homem de letras.”5
Mais adiante, explica : “ mas se alguem me perguntar porque me
afadigo a provar o que ninguem me nega, nem pode negar”, ele, cronista,
responderia com duas razões: A primeira porque lhe parecia errado
que os diferentes Autores omitissem propositadamente o facto de
Frei Soeiro Gomes ser português; e a segunda, porque “ a alma da
Historia é a Verdade e a certeza do que se escreve, convém por honra
do oficio, que indignadamente nos puseram às costas”, ou seja, que
precisa de corroborar a verdade “de sorte que fique livre de todo o
escrupulo, não só de duvida, ainda que ninguem nos encontre, nem
contradiga.”6
Para reforçar os seus argumentos, o capitulo X, foi intitulado
“Confirma-se a verdade de Frei Sueiro Gomes ser Portuguez: com
algumas rezões, com as quaes se descobre que também era nobre e
letrado”.7Considera demonstrada, mais uma vez, a veracidade da
identificação, ao remeter para o Livro de Linhagens Antigas, da
autoria do Conde D. Pedro, filho d´el- rei D. Dinis.
5 - IDEM, ibidem, p. 57.
6 - IDEM, ibidem, p. 55.
7 - IDEM, ibidem, Liv.I, cap. X, p. 55.

51
Frei Soeiro Gomes, aparentemente, não tivera qualquer
dificuldade em arranjar companheiros de missão, nem em obter
licença dos prelados do reino para pregar nas suas dioceses,
especialmente da parte de D. Pedro, bispo de Coimbra, “o qual é de
crer se lhe não concedera tão facilmente, se não fora conhecido por
natural em lingoa, e nome”.8 E acrescenta que, em pouco tempo,
já o frade tinha seguidores para povoar os seus conventos e dar
cumprimento à missão.
A situação política que encontrou não era boa. O rei D. Afonso
II envolvera-se em disputas com as irmãs. Fora o caso que seu pai,
D. Sancho I, ao falecer, repartira terras, vilas, castelos, dinheiro,
ouro e prata lavrada pelas suas três filhas, as infantas Tareja, Sancha
e Branca. Sentindo-se lesado, D. Sancho procurou apoderar-se das
terras, pegando em armas contra as irmãs. Alvoroçou-se o reino.
De Roma choviam interditos e excomunhões, que atingiam o
monarca, seus conselheiros e ministros, pelas acusações de roubos
e delapidação do património eclesiástico. Sobre todo o reino pusera
o papa um interdito, pelo que, escreve o cronista, encontrava-se
Portugal semelhante aos Mouros, seus vizinhos “em não ter Missa,
nem officio Divino, nem som de sinos, ou outra solenidade eclesiástica
(infelice e calamitoso estado)”, que, segundo o Manual de Inquisidores,
poderia levar à desagregação do Estado.9
Foi então que a misericórdia divina permitiu a chegada do
“embaixador da nova Religião, D. Frei Soeiro Gomes”.10 Começou
este por dar as boas novas ao povo, que via entristecido por tanta
igreja fechada e pelo silêncio que pesava como chumbo.
E a maior alegria era falar-lhes dos grandes bens que alcançariam
por intermédio do Santo Rosário da Virgem puríssima, “recontando os
maravilhosos effeitos que por elle vira na guerra dos Albigenses”.11Uma
vez obtida a protecção da infanta D. Sancha, ordenou esta que se
erguesse nas suas terras um convento da nova Ordem. Como era o
único frade que falava português teve mais facilidade em transmitir
a mensagem que o movia. Os seus companheiros, devido às
dificuldades resultantes do desconhecimento da língua, resolveram
partir para outros lugares onde o seu esforço alcançasse maior fruto.

8 - IDEM, ibidem, Liv.I, cap. X, p. 56.


9 - Na resposta à questão “Si los súbditus estan desligados del débito de fidelidad cuando los señores temporales han
caído bajo las cadenas de la heresia”, o Manual de Frei Nicolas Eymeric, O.P., respondia afirmativamente. Fray
Nicolás EYMERIC. Directorium Inquisitorvm. Traducción, selección y introducción de José Antonio FORTEA.
Madrid: La Esfera de los Libros, 2006, p. 95.
10 - Frei Luís de SOUZA. Op..cit., liv.I, cap. XI, pp. 59-60.
11 - Frei Luís de SOUZA. Op..cit., Liv.I, cap. XI, p.61.

52
Com o desenvolvimento apostólico, a luta contra o pecado
passou a ter em conta o sentir das autoridades civis, ordenando
alguns Capítulos Provínciais das áreas de difusão castelhana que
os religiosos não predicassem contra os vícios e defeitos desses
dirigentes.12
Frei Luís de Sousa, procura demonstrar que Frei Soeiro Gomes
teria origem nobre a argumenta que nas escrituras, é designado
com o título honorífico de Dom, contra o que era habitual usar-se
para indicar os frades, mesmo os gerais, acrescenta exemplos dessa
nomeação praticada pelo rei D. Fernando de Castela e pelo bispo de
Coimbra, como acontece nas licenças obtidas para pregar e outras
escrituras de compromisso, assinadas perante o rei de Portugal, pelo
que seria de concluir que se tratava de um membro de família nobre.
Quanto às suas habilitações literárias refere “ e como em cousas tão
antigas, e faltas de luz de historia, he forçado governar por conjeituras”,
justifica considerar que Frei Soeiro Gomes seria letrado, uma vez
que, se São Domingos o enviara para a península como prelado dos
restantes companheiros, sendo alguns deles bons letrados, e tendo
dirigido para Paris Frei Mateus, também letrado, “bem se segue que
não mandaria a sua Patria homem idiota”13.
Entrara, pois, D. Frei Soeiro Gomes em Portugal, num Inverno
frio, e triste, tornando-se testemunha e personagem de uma época
conturbada da nossa história. Mas outros se lhe seguiram. A sua
fama de santo chega a Roma e começam a surgir os milagres, pois
afirmava-se que o frade, a exemplo de Cristo, ressuscitava os mortos.
Deste odor de santidade beneficiaram também os conventos, uma
vez que ocorreram pedidos e autorizações para que se ergam outras
casas da mesma Ordem.14
Refere Frei António do Rosário que “ na verdade, esta presença
missionária dominicana portuguesa remonta à sua chegada à
Peninsula, 1217 ( ...). Logo foram impulsionados pelos dois portugueses
primeiros provinciais de toda a Península, D. Frei Soeiro Gomes e S.
Frei Gil de Santarém, promovendo escolas das línguas árabes e hebraica
para a pregação no Sul de Espanha e Norte de África”15.
O primeiro convento, conforme referimos, terá sido fundado por
Frei Soeiro Gomes na “serra de Montejunto, perto de Alenquer, sob os
auspícios da Infanta D. Sancha (...). Pouco depois outra infanta, irmã

12 - Frei Pablo FERNANDEZ, O.P.. Dominicos donde nace o sol. Barcelona, 1958, p. 156.
13 - IDEM, ibidem, pp. 58-59.
14 - Frei Luís de SOUZA. Op..cit., liv. I, cap XII a XIV, pp. 59 a 82.
15 - Frei António do ROSÁRIO. “Dominicanos no episcopológio dos descobrimentos”. Separata da Revista da
Universidade de Coimbra, Coimbra, vol. XXXVI, 1991, p. 356.

53
daquela, e que vivia junto a Coimbra, chamou Frei Soeiro Gomes e se
lhe ofereceu para edificar um mosteiro naquela cidade 16 “ .
Uma vez estabelecidos os Pregadores em Portugal os conventos
começaram a surgir e os religiosos receberam várias bulas, por
exemplo, de Inocêncio IV, a 17 de Agosto de 1245, que concede
a bula Grandi non immerito para defesa e sustento dos conventos.
A questão do sustento era controversa, pois levava a queixas e
reclamações por parte de outras entidades religiosos e laicas17.
Referimo-nos às bulas Non dine multa aos bispos e à Necessitatibus
vestris, o papa Alexandre IV. O mesmo problema é referido quanto à
Colegiada de Guimarães no início do séc. XV 18.
O convento de Santarém foi receptáculo de várias bulas como a
Curriad promerend de Novembro do mesmo ano. Um dos nomes
que se destaca é o de Frei Gil, Provincial por incentivar a pregação
aos Mouros, como ocorria noutras partes da península.
Parece-nos que este aspecto marca a acção futura da Ordem
Dominicana na epopeia portuguesa dos Descobrimentos. Este
convento manteve sempre, ao longo do século XV, entre seis a dez
frades, pelo que terá sido uma presença activa.
Seguindo o exemplo dos primeiros religiosos, o ideal dos
Pregadores depressa se espalhou pelo reino Lusitano e seguiu para
além –mar. Foi neste ambiente, nestes conventos, que se criaram
os homens e as competências que permitiram o aparecimento dos
missionários nos descobrimentos.
Uma dessas casas foi o Convento do Porto, sobre o qual frei
António do Rosário fez uma pesquisa extensiva através dos
documentos que se lhes referem. No seu trabalho investiga os anos
de 1472 a 1544, utilizando o núcleo de pergaminhos conservados
no Arquivo Distrital do Porto, nº26. 19 O antigo convento ergueu-
se desde o longínquo ano de 1238. A casa do Porto não teve, ao
que parece, uma influência preponderante, mas talvez tal aconteça
apenas por se saber muito pouco acerca da história de vida dos
seus frades. Pouco conhecemos sobre o quotidiano de estudo e de
reflexão destes religiosos.

16 - Fortunato de ALMEIDA. História da Igreja em Portugal. Porto: Portucalense Editora, vol. 1, p.139.
17 - Em 1257 Alexandre IV, envia a Non dine multa. A de Alexandre IV é de 5 de Agosto de 1257, para o prior e
frades da Ordem de Pregadores de Santarém, autorizava-os a que pudessem receber dinheiro em casos especificos.
18 - Ver Julieta ARAÚJO. Os Dominicanos na expansão portuguesa. Lisboa: Faculdade de Letras de Lisboa;
Ed.Colibri, 2009.
19 - Frei António do ROSÁRIO. “Frades do convento de São Domingos do Porto ao Dealbar da Época Moderna”.
Separata da Revista de História , Porto, vol.II, p. 5.

54
Como refere frei António do Rosário “O Episcopológio do
Ultramar Português é tido como assombroso por diversos títulos: pelo
número de dioceses, base do apostolado missionário; pela extensão
dos territórios da missão; pelo saldo altamente positivo de toda essa
epopeia de levar a Fé a tantos povos e terras; e ainda, Episcopológio
assombroso pelo bom número de nomes grados, que se conhecem,
embora não tão poucos se quedem para sempre sepultos no mais fundo
das “águas salsas” de naufrágios vários” 20.
Mas, por vezes, há referências na documentação a alguns frades
por motivos menos nobres, pois nem todos conseguiam ter um
comportamento exemplar, principalmente pelo grau de exigência
que lhes era imposto, tanto a nível intelectual como ético. Por vezes
o estudo destes religiosos faz esquecer o seu estatuto de humanos,
com todas as fragilidades que tal inclui ( ver apêndice documental).
O grau de exigência encontra-se ligado às responsabilidades e
ao poder que lhes eram conferidos, pois muitos foram os serviços
prestados pelos Pregadores à Coroa portuguesa, sendo por isso
recompensados.
A missionação, constituindo parte da política dos reis de Portugal
desde a tomada de Ceuta, estava englobada numa acção integral
que incluía aspectos económicos, militares, políticos e comerciais,
entre outros. É nesta politica visionária que devemos enquadrar a
conquista de Ceuta por D. João I. Assim, “ a missionação portuguesa
veio a estabalecer-se e progredirá através da diocese. Mais: através da
diocese à europeia. Significa isto dioceses com território delimitado,
com sés e cabidos; com bispos, cónegos e clérigos, que o Padroeiro, o
Rei de Portugal, como Mestre da Ordem de Cristo, apresentava e cuja
nomeação pedia ao papa.”21
As bulas sucederam-se, satisfazendo os desejos do rei de Portugal
que, por sua vez, era um novo cruzado, batalhando pela Fé de Cristo
. Entre os anos de 1418, data da criação da diocese de Ceuta e das
nomeações de religiosos para elevadas dignidades da hierarquia local
da Igreja, e o ano de 1436, em que algumas dessas designações ainda
tiveram lugar, seguiram-se concessões extraordinárias por parte do
Sumo Pontífice para os novos bispados. Na bula Romanus Pontifex,
de 15 de Setembro de 1436, apesar da rivalidade que separava
Portugueses e Castelhanos em relação à posse das Canárias, o Papa
Eugénio IV concedeu ao Rei D. Duarte que pudesse conquistar as ilhas
que não estivessem na posse de monarcas cristãos. A razão apontada
20 - IDEM. “Dominicanos no Episcopológio dos Descobrimentos”. Separata da Revista da Universidade de Coim-
bra, Coimbra, vol. XXXVI, 1991, p. 355.
21 - IDEM, ibidem, p. 356.

55
terá sido a premência da conversão à fé cristã dos seus naturais.
A resolução da disputa, que chegou a ser presente ao Concílio de
Basileia (1435), fez-se pelo tratado de paz de 1480, que reservou a
posse das Ilhas Canárias para Castela e a expansão para sul a Portugal.
A partir de 1419-20, o descobrimento dos arquipélagos atlânticos,
seguido da sua colonização, conduziram à existência de um número
crescente de colonos, entre os quais alguns religiosos, que se foram
instalando nas terras recém-descobertas, buscando o horizonte para
além dos limites daqueles arquipélagos. É possível que a antevisão de
novas terras, que eram apenas manchas conjecturadas na distância,
alimentasse esse sonho. Contudo, tais informações, cedidas, ao que
parece, por Pietro di Velasco, piloto de Diogo de Teive, que terá
partido da ilha do Faial pelo ano de 1452 e rumara a Sudoeste, em
busca da Antilha, terão originado as notas de Fernando Colombo.
Estas, retiradas dos papéis de seu pai, o Almirante ao serviço de
Fernando e Isabel, os Reis Católicos, serviriam, juntamente com as
navegações já encetadas por Portugueses e Castelhanos, não só de
motivação para a procura de vestígios de terras colocadas para além
dos horizontes de lendas e de brumas, mas também, de esperança
para a descoberta de um novo caminho das Índias , que fosse
alternativa do já atribuído a Portugal…

APÊNDICE DOCUMENTAL

“Dom Afomso etc. A todollos juizes justiças dos nosos regnos a


que esta nosa carta for mostrada saude. Sabede que Branca da Rosa
molher de Joham Nunez nos enviou dizer que poderia ora aver quatro
anos e mais que em a nosa cidade de Lixboa fora morto huum frei
Joham da Cerredeyra frade de Sam Domingos o quall matara huum
Lourenço Aires çapateiro porquanto ho achara de noute as desoras
com sua molher de (?) em sua casa a quall sua molher elle mesmo
matara pella quall razam foy tirada inquiriçom per bem da quall
inquiriçom ella fora presa em semdo moça solteira huuns quatro
dias e esto somente per dicto testemunho de huua Costança Piriz
lavradeira e outras pesoas que lhe nom falavam e lhe queriam grande
mall as quaees testemunharam em a dicta devasa que (apagado) ella
que a dicta estevera casada consentia em sa casa o dicto frade fala e
dormir(?) com (?) carnallmente e visto todo pellos juizes do cryme a
julgarom por solta e a mandaram soltar e nom fora apelada por parte
de justiça e ella nom fora (?) asy dello sua semtença e em sendo ella asy
solta (?) ponha e semdo ja casada e vivendo bem honestamente com o
dicto marydo os nosos desembargadores per bem da dicta emgraçom
56
mandaram prender (Folha manchada na margem) vez por quanto
nom mostrara em como desto ja fora livre e por parte da justiça se
pro... per feicto contra elle tanto que o feicto fora concluso o qual
visto per elles em rolaçom com o testemunho ... testemunhas somente
julgarom per sentença que ella fose degradada da dicta cidade e seu
...(termo) licença de livramento que dello ouvera a quall semtença fora
dada a treze dias do mes de Janeiro deste presente anno de IIIIc LXVIII
em a quall cousa diziam que era muyto agravada e desomrrada por
... taaes testemunhas nom devera de seer condenada e fora feicta ella
enxecuçam e des o dicto ... podyam manteer duas casas nos pedia por
merçe e a onra da morte e paixom de Noso Senhor Jhesus Chrispto
que lhe perdoasemos a nosa justiça e lhe levantasemos o dicto degredo
que lhe fora posto e a ouvesemos por relevada dele e nos vendo o que
nos asy dizer e pedir enviou se asi he como diz e hy maas nom ha
vista a sentença do livramento que dello ouve que perante nos enviou e
querendo lhe fazer graça e merce a onrra da <dicta> morte e paixom
de Noso Senhor Jheus Chrispto temos por bem e perdoamos lhe a nosa
justiça e avemos por relevada do dicto degredo contanto que ella pagase
mill e quinhentos reais per a piedade e por ... lloguo os dictos dinheiros
os entregou a frey Gil noso esmoller a que teemos dado carego de os
receber segundo dello fomos certo per seu asinado vos mandamos que
daquy endiante a nom prendaes nem mandes prender nem façaees
nem consentaes ser feicto mall nem alguum desaguisado canto he por
ella nom conprir e manteer o dicto degredo de que lhe asy foy posto que
nosa merçe e vomtade he de asy avermos per relevada delle pella guisa
que dicto e queremos que o nom serva mais e al nom façades. Dada
em a nosa villa de Santarem XX dias d’Abryll. El Rey o mandou per
os doutores Pero da Silva e Joham Teixeira ambos do seu desenbargo e
petiçooes. Fernam Gonçallvez a fez. Anno de mil IIIIc LXVIII.”.

(A. N./T.T.. Chancelaria de D. Afonso V , fl.18vº)

57
MODELOS RELIGIOSOS E SABERES
4- O PARADIGMA RELIGIOSO E SOCIAL
DA MORTE DOS SANTOS. DA ALTA
IDADE MÉDIA A UNDECENTOS.
Maria Helena da Cruz Coelho*

A vida dos santos, únicos mortos a quem é permitido prestar um


culto, vai possibilitar à Igreja impor um modelo de comportamento
e uma forma de vida exemplar, dignos de imitação e louvor. A sua
morte assumir-se-á, assim, como um paradigma, um exemplo que
deixa de ser heróico para poder ser vivido pelo povo cristão1. Mas
ainda que os santos se apresentem sempre como fiéis seguidores e
imitadores de Cristo e respeitadores dos ensinamentos cristãos, a
sua santidade contextualiza-se, temporal e espacialmente, de acordo
com as variações desta esfera do divino. Pois que se um santo é, antes
de mais, “um homem extraordinário habitado por Deus”, apresenta-
se, em consentâneo “como resposta às necessidades espirituais de
uma geração” e não menos se assume como “a ilustração eminente
das ideias que os cristãos de uma determinada época fazem da
santidade”2.
Assim se evoluirá do inicial culto dos mártires para o culto dos
bispos no Ocidente e dos ascetas no Oriente, dedicados à oração
e contemplação, passando-se, então, num tempo de implantação
monástica e monárquica, ao culto dos monges e dos reis, em todos
estes se aliando, no geral, à proveniência aristocrática a perfeição
moral e religiosa, na sacralização do nascimento, autoridade e
riqueza3. Mas do modelo de santidade assente na contemplação do
mistério divino se caminhará para um modelo de santidade que se
fundamenta na imitação de Cristo, no quadro do quotidiano terreno.
O santo transmuta-se, então, em exemplo de renúncia, humildade,
pobreza, privação e sofrimento, na esteira de S. Francisco. Para depois
se apresentarem como modelos, num outro passo de renovação das
formas de religiosidade, os profetas místicos e pregadores.

*
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cul-
tura; Academia Portuguesa de História.
1 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints. La scène de la mort dans les Vitae du Haut Moyen Âge”. Le
Moyen Âge. Revue d’Histoire et de Philologie, t. XCIV (5ª série, t. 2), n. 1, Bruxelles, 1988, p. 21.
2 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge d’après les procés de canonisa-
tion et les documents hagiographiques. 2ª ed.. Roma: École Française de Rome, 1988, p. 8.
3 - André VAUCHEZ. “O Santo”. In: Jacques LE GOFF (dir). O Homem Medieval, trad. port.. Lisboa: Editorial
Presença, 1989, pp. 211-230.

61
Espectro de santidade e de santos, totalmente diferentes ou
extraordinariamente próximos do homem4. Todavia, nunca se
dissocia completamente do santo, que atinge o cume da perfeição,
um certo grau de distância, de excepcional, de extraordinário. Como
se a hagiografia da santidade imitável, que se desenvolve nos séculos
XII e XIII, exigisse também o paradigma da santidade admirável,
sem renúncia ao maravilhoso que é “a transposição para o registo
literário do halo de prestígio sobrenatural que, na Idade Média,
atingia todo o homem que tinha um destino fora do comum”5.
Percorreremos essencialmente o modelo da morte admirável
entre os inícios da Idade Média e a centúria de Undecentos.

MÁRTIRES

Os mártires foram durante muito tempo os primeiros e únicos


santos dos cristãos. Mas, apesar de certas analogias pontuais, os
mártires nada têm de comum com os heróis gregos e romanos. A
morte, na Antiguidade, era uma fronteira entre homens e deuses.
Para os cristãos, os mártires morrem como seres humanos, por causa
da sua fidelidade à mensagem de Cristo, e é graças a esse sacrifício
que ascendem à vida eterna6. “O santo é um homem através do qual
se estabelece um contacto entre o céu e a terra” e o dia da sua morte
(dies natalis) “comemora o seu nascimentos ao lado de Deus” 7.
A santidade dos mártires, publicamente manifestada pela sua morte
e perseverança na fé, foi de pronto sancionada, sob o fundamento da vox
populi, vox Dei, pelas igrejas às quais pertenciam8. Os primeiros exemplos
de hagiografia medieval em território português são exactamente lendas
de mártires locais. Assim os santos mártires Veríssimo, Júlia e Máximo,
mártires de Lisboa, Vicente, Sabina e Cristeta de Évora, S. Vítor de Braga
e Santa Iria de Santarém, todos eles enquadrados na contextualização de
tempos romanos. Mas se o seu culto é antigo, já os textos hagiográficos
que se conhecem entre nós são bastante tardios, ainda que a vida de
alguns se encontre no Passionáro hispânico do século XI9.

4 - André VAUCHEZ. Saints, prophètes et visionnaires. Le pouvoir surnaturel au Moyen Âge. Paris: Albin Michel,
1999, p. 19.
5 - André VAUCHEZ. “Saints admirables et saints imitables: les fonctions de l’hagiographie ont-elles changé
aux derniers siècles du Moyen Âge?”. In: Les fonctions des saints dans le monde occidentale (III-XIII siècle). Roma:
École Française de Rome, 1991, p. 172.
6 - Gerhild Scholz WILLIAMS. “A morte como texto e signo na literatura da Idade Média”. In: Herman BRAET;
Werner VERBEKE (eds). A Morte na Idade Média, trad. bras.. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 132.
7 - André VAUCHEZ. “O Santo”, p. 212.
8 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident..., p. 15.
9 - Giulia LANCIANI; Giuseppe TAVANI (coords). Dicionário de Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lis-
boa: Editorial Caminho, 1993, s. v. Hagiografia.

62
S. Veríssimo e suas irmãs, como também S. Victor, são confes-
sores da fé em Cristo. Negam-se a adorar ídolos de “pedra e paos”
e a prestarem-lhes culto. Proclamam um Deus e abjuram os deuses.
“Confessando o nome do Senhor”, desejam padecer e morrer “com
seus tormentos por amor de Jhesu Cristo”, como seus servidores
e soldados, para se tornarem exemplo. S. Vicente e suas irmãs
enquadram-se no clima de perseguições aos cristãos. Chegam
mesmo a fugir para escaparem à ira persecutória de um imperador,
mas, apanhados, conhecerão a morte. Se todos sofrem o martírio,
na primeira situação ele apresenta-se desde logo como uma oferta,
enquanto na segunda se manifesta como uma consequência de que
os cristãos são vítimas, embora, em qualquer dos casos, as mortes
sejam voluntárias e livremente aceites. Como denominador comum
a proclamação ou vivência de uma crença monoteísta, o que, em
tempos de politeismo, acarretaria a punição com tormentos e a
morte violenta.
S. Veríssimo e suas irmãs serão encarcerados, sofrerão as agruras
do acúleo e da “aspa tornadiça” (cruz em forma de x, em que os corpos
eram esticados), para depois conhecerem o açoitamento com varas de
espinhos e os pentes de ferro a rasgarem-lhes os corpos e as entranhas.
Mais publicamente serão atados, arrastados pela cidade e apedrejados,
isto segundo Ho Flos Sanctorum, embora os tormentos ainda mais
se acrescentem noutras versões da sua hagiografia10. Por fim serão
degolados e os seus corpos, atados a pedras, lançados ao mar.
S. Vitor, depois de sofrer penas que se expõem menos desen-
volvidamente, acabará também degolado. S. Vicente e suas irmãs,
após açoitamento e as dores do acúleo, serão mortos por tanto lhes
baterem na cabeça.
Todo este desfiar de castigos parece enfatizar a prisão carnal, que
o corpo representa, para mais valorar a libertação da alma que, pela
morte desse corpo, se alcança. Mas, no caso dos santos, a glorificação
da alma não implica uma negação do corpo morto, ao qual era
mesmo permitido prestar culto. Os pagãos bem o sabiam. Logo,
para evitar o culto dos cristãos após a morte dos mártires de Lisboa,
fazem desaparecer os seus corpos no mar e, no caso dos mártires
de Évora, deixam-nos no monte para serem devorados pelas feras,
interditando o seu enterramento com honra. Mas é aqui que se faz
intervir o milagre. O mar devolve, quase de imediato, os corpos dos
mártires lisboetas, que os cristãos enterram com toda a dignidade.

10 - Mário MARTINS. “A legenda dos santos mártires Veríssimo, Máxima e Justa, do cód. CV/1-23 d., da biblio-
teca de Évora”. Revista Portuguesa de História, t. VI, vol. I, Coimbra, 1955, pp. 45-93.

63
Já os corpos dos mártires eborenses são mais misteriosamente
guardados por uma serpente e depois sepultados numa igreja
erguida em sua honra, em circunstâncias especiais, por um judeu.
Evidencia-se, pois, um cuidado com o corpo dos mártires que, por
intervenção sobrenatural, é preservado de qualquer profanação até
ser devidamente sepultado.
A vida de Santa Iria oferece-se como paradigmática do martírio
pela defesa da virgindade e consagração a Deus. Por ter negado
um pretendente e ter fugido às insídias luxuriosas de um monge,
instigado pelo demónio, será enganada, sofrendo infâmia na sua
honra, e acabará mesmo por ser assassinada com um cutelo na
garganta. O martírio advém aqui da perseverança numa virtude,
a da castidade, que é também vitória na luta contra o demónio.
Outras santas, em contexto eremítico oriental, evitaram este pecado
fugindo para o deserto, como Santa Maria Egipcíaca11. Depois de
revelada a santidade de Iria, ao seu tio abade, por mensagem divina,
e encontrado o seu corpo pelo prodígio sobrenatural das águas se
afastarem para o mostrar enxuto aos devotos, que lhe fizeram ofício
e vigílias, as relíquias dos seus cabelos e roupas serão intermediárias
do seu poder miraculoso.
Esta morte violenta dos mártires, com efusão de sangue,
símbolo da impiedade mas também da purificação, seria, depois de
consolidado o cristianismo, mais uma morte de carácter público para
admirar e venerar, reproduzindo-se no martírio a morte voluntária
de Cristo, do que um modelo para seguirem individualmente,
salvo em caso limite. Todavia, a sua perseverança na fé a na virtude
eram parâmetros comportamentais que os cristãos deviam imitar e
estavam ao alcance de qualquer um12.
A hagiografia destes mártires portugueses é similar à dos demais
mártires hispânicos, que Ariel Guiance13 estuda, e que, na sua
variedade de casos, permite um mais amplo quadro referencial e
interpretativo. Algumas páginas14 dedica aos mártires cristãos no
contexto muçulmano, à luz das obras de Eulógio de Córdova, ele
próprio também um mártir. O modelo seguido por este autor é o
11 - Cristina Maria Matias SOBRAL. Santa Maria Egipcíaca de Alcobaça: edição crítica das versões medievais
portuguesas da lenda de Maria Egipcíaca. Lisboa: Faculdade de Letras, 1991 (policopiada).
12 - Paul Albert FÉVRIER. “Martyre et sainteté”. In: Les fonctions des saints dans le monde occidental (III-XIII
siècle). Roma: École Française de Rome, 1991, pp. 51-80. Como já foi demonstrado, o culto dos mártires roma-
nos estava difundido em Portugal no século X, como o comprova a carta de doação ao mosteiro de Guimarães
por Mumadona Dias (Maria de Lurdes ROSA. “A religião no século: vivências e devoções dos leigos”. In: Ana
Maria C. M. JORGE; Ana Maria S. A. RODRIGUES (dirs). História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2000, vol. I, Formação e Limites da Cristandade, pp. 427-428).
13 - Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la Muerte en la Castilla Medieval (Siglos VII-XV). Valladolid: Junta de
Castilla y Léon. Consejería de Educación y Cultura, 1998, pp. 95-102.
14 - Ibidem, pp. 102-108.

64
dos mártires de tempos romanos, mas era inevitável fazer algumas
adaptações ao novo cenário. Assim, pela proximidade dos relatos
em relação à ocorrência das mortes, os milagres não tinham lugar,
sendo pois de demonstrar que os mesmos não eram imprescindíveis
à santidade. Mais era necessário justificar o martírio às mãos
de homens não pagãos, apresentando-se então este acto como
uma entrega pessoal dos cristãos aos muçulmanos, uma “busca
violenta de Cristo”, quase um suicídio sagrado. Morrem, então,
pela fé, maldizendo Maomé e amaldiçoando os muçulmanos. O
sobrenatural, tal como nas narrações dos mártires romanos, também
se manifesta, quer em profecias de desgraça que o mártir pronuncia
antes de morrer, quer no anúncio ou presságio que alguns tinham da
sua morte próxima e, finalmente, na milagrosa preservação dos seus
corpos que lhes permitia uma sepultura condigna15.
Em suma, por dentro das tensões e resistências que representaram
a difusão do cristianismo no mundo pagão e o choque da submissão
dos cristãos aos muçulmanos, estas mortes violentas exaltavam um
modelo de perseverança na fé, além de, em último caso, encarnarem
um enfrentamento face ao invasor, que, sob o domínio muçulmano,
respondia a um desejo social de sair da opressão, até fiscal e cultural,
que aquele impunha.
Numa linha de continuidade mais ampla, os mártires da fé em
tempos romanos prolongaram-se no martírio de muitos cristãos
submetidos aos muçulmanos e mesmo no de todos os guerreiros, os
cruzados que derramaram o seu sangue para impor a fé de Cristo e
destruir os infiéis, numa sacralização do movimento da Reconquista.
Mas noutros enquadramentos de maior acalmia, o santo não
tinha que se assimilar ao mártir, mas podia oferecer um paradigma
de morte natural. Morria, então, como um bom cristão, fiel e
respeitador das normas religiosas, o que se tornava um modelo mais
próximo e acessível do comum dos mortais. Atente-se, porém, que
o interesse pela vida dos mártires continua nos séculos da Idade
Média plena e mesmo final. Era ainda o fascínio pelo heroísmo
do seu testemunho e comportamento, pela invulgaridade da sua
experiência, pela vitória fora de comum de um ser humano, que
redimensionava a humanidade16.

15 - Sobre a difusão dos santos mártires hispânicos e moçárabes, veja-se Saul António GOMES. “A religião dos
clérigos: vivências espirituais, elaboração doutrinal e transmissão cultural”. In: História Religiosa de Portugal, vol.
I, pp. 342-345.
16 - André VAUCHEZ. “Saints admirables et saints imitables...”, pp. 170-171; Olegario González de CARDEDAL.
“Heroísmo y santidad”. Revista de Occidente, 46, Extraordinário III, Marzo 1985, pp. 75-110.

65
A MORTE DOS SANTOS EM TEMPOS VISIGÓTICOS

Mas, por norma, o quadro da morte está relacionado com o modelo


de santidade de uma época, ainda que desde tempos altomedievais
se defina uma espécie de “protótipo ideal” de morte, que se prolonga
até, pelo menos, ao século XIII17. Após a fragmentação do Império
Romano, em unidades regionais e locais, o modelo de santidade é
deslocado dos mártires e confessores para os bispos, esses “defensores
civitatis” por excelência dos séculos V a VII18, ainda que na Península
Ibérica a acção de tais prelados muito se interpenetre com a vida
monástica.
Para o período visigótico, e especificamente para o território
português, conhece-se a Vida de S. Frutuoso, bispo de Braga no
século VII, escrita por autor anónimo em torno de 670-68019. A Vida
apresenta uma estrutura biográfica de intenção panegírica, visando a
promoção do culto do santo no seu santuário bracarense. S. Frutuoso,
descendente da família real visigótica, empenhou-se na fundação
de vários mosteiros na Galiza, sobretudo na região de Bierzo, e
no Sudoeste da Andaluzia. Depois de viver algum tempo como
eremita, ascendeu a bispo da Sé de Braga, que acumulou com Dume,
fundando também no espaço bracarense o mosteiro de S. Salvador de
Montelhos, para vir a acabar os seus dias por volta de 665. A sua Vida
apresenta-o como um “modelo de santo monaquismo”, o que tem
paralelo noutras Vidas escritas posteriormente como, entre outras,
a de S. Rosendo20, também bispo e monge, e a de Santa Senhorinha,
modelo de virgem consagrada a Deus na vida monástica, não sendo

17 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, pp. 21-50. Sobre o enquadramento conciliar e litúrgico
dos rituais e culto dos mortos nesta época, leia-se Maria do Rosário BASTOS. “Testemunhos hispânicos sobre o
mundo dos mortos nos séculos IV a VIII” e José MATTOSO. “Os rituais da morte na liturgia hispânica (séculos
VI a XI)». In: O reino dos mortos na Idade Média penisular. Lisboa: Edições Sá da Costa, 1996, respectivamente
pp. 45-54, 55-74.
18 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident, p. 19.
19 - La Vida de San Fructuoso de Braga. Estudio y edición crítica de Manuel C. DIAZ Y DIAZ. Braga, 1974. A
mais completa edição crítica e estudo da Regra de S. Frutuoso e afins deve-se a Paula Barata DIAS. Os Textos
Monásticos de Ambinete Frutusiano (séc. VII). 2 vols.. Coimbra: Fundação Mariana Seixas, 2008. Sobre o
monaquismo visigótico veja-se Ana Maria C. M. JORGE. “A vida monástica na Hispânia durante a Antiguidade
Tardia”. In: História Religiosa de Portugal, I, pp. 203-206. Já depois de escrito o nosso texto publicou-se o estudo de
Maria de Lurdes ROSA. “A santidade no Portugal medieval: narrativas e trajectos de vida”. In: Santos e demónios
no Portugal medieval. Porto: Fio da Palavra, 2010, pp. 20-23, que aborda a tradição visigótica e moçárabe da
santidade, referindo-se a S. Martinho de Dume, S. Frutuoso e S. Rosendo.
20 - Vida e Milagres de São Rosendo. Texto latino, com tradução, prefácio e notas de Maria Helena da Rocha
PEREIRA. Porto: Junta Distrital, 1970. Uma nova edição da mesma autora saiu na obra de Maria Helena da
Rocha PEREIRA; Francisco Carvalho CORREIA; Álvaro de Brito MOREIRA. Rudesindus. Pastor egrégio, monge
piedoso, defensor do solo pátrio. Santo Tirso: Câmara Municipal, 2010, pp. 11-97.

66
menos de evidenciar a associação da prelazia ao monacato que, ao
tempo, era comum na literatura hagiográfica21. Mais conflui nesta
específica tipologia a de “santos condais”, uma vez que muitos deles
são membros das famílias padroeiras de mosteiros e igrejas.
A descrição da morte destes e de outros santos apresenta algumas
características comuns, até porque as hagiografias do período
preferem a tipificação à individualização, de molde a proporem o
modelo da morte ideal do cristão22. Desde logo, os santos conhecem
antecipadamente a sua morte, seja por mensagem celestial, revelação
divina ou simples pressentimento. Esse anúncio envolve um duplo
objectivo, demonstrando tanto o “valor moral” do eleito como
permitindo-lhe a devida preparação pessoal e social do passamento.
Justamente S. Frutuoso soube, com muito tempo de antecedência,
que a sua morte se avizinhava, o que lhe permitiu desde logo trabalhar
de dia e de noite para acabar as construções que tinha começado. Já
num tempo mais próximo foi atacado de febres, e avaliando o tempo
decorrido depois da predição, certificou-se de que se “acercava o dia
em que tinha de sair deste mundo”. Prepara-se, então, para cumprir
os ritos fúnebres, ainda que na Vida de S. Frutuoso eles sejam
referidos de uma forma sintética. E nessa descrição da ritualização é
o modelo que se impõe, não uma morte individual.
Na tipificação dessa ritualidade, destaca-se, como acto
fundamental, a contrição, que envolve a confissão e a penitência, a
qual exige um desprendimento total dos bens materiais. S. Frutuoso
faz-se então trasladar para a igreja, e como já tinha tomado todas
as provisões da sua casa, apenas ordena um seu servo, “impondo-
lhe a mão”, como abade do importante mosteiro de Turonio, que
alguns querem identificar com Montelhos23. Como nos esclarece
a Vida noutros passos, já se desfizera inteiramente da sua casa,
distribuindo “entre as igrejas, os libertos e os pobres, todo o capital
do seu esplêndido património”, antes de encetar uma vida eremítica.
Depois daquele acto funcional, cuidou de si. Recebeu então “a
penitência segundo o estabelecido”. A seguirmos o modelo isidoriano,
teria reclamado o cilício e as cinzas, pedindo perdão público,
primeiro a Deus e depois a todos os que o rodeassem. Santo Isidoro
tomou em seguida a comunhão, expressando uma recomendação
moral aos fiéis, e distribuindo os bens que lhe restavam pelos pobres,
21 - Michel SOT. “La fonction du couple saint évêque/saint moine dans la mémoire de l’église de Reims au Xe
siècle”. In: Les fonctions des saints dans le monde occidental (IIIe-XIIIe siècle). Roma: École Française de Rome,
1991, pp. 225-240.
22 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, p. 32; Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la Muerte en
la Castilla Medieval, pp. 83-95.
23 - La Vida de San Fructuoso de Braga, p. 117.

67
recolhendo-se depois à sua cela, onde morreu ao fim de quatro dias.
S. Frutuoso, após ter recebido a penitência, ficou prostrado perante o
altar da igreja, todo o dia e toda a noite. O seu passamento ocorrerá,
antes do amanhecer, quando “estendendo as suas mãos em oração,
entregou o seu espírito imaculado e santo nas mãos do Senhor que
coroa os seus santos depois de uma vida de bom serviço”24.
Numa outra faceta do modelo, é a morte em plena paz e
tranquilidade. Aliás o próprio fim, neste como noutros casos, nunca
é apelidado de morte, sendo aqui simbolicamente referido, no que
é bem comum, como a “entrega do espírito” nas mãos do Senhor.
Esta serenidade absoluta do moribundo já antes se atestara. Assim,
quando S. Frutuoso anunciou a sua morte aos que o rodeavam,
todos choravam e só ele estava alegre, pois não tinha dúvidas que
“marchava para a eterna glória dos céus”. E interrogado sobre o seu
temor da morte, retorquiu; “realmente não a temo, pois sei que, ainda
que pecador, vou à presença do Senhor”25, numa espera sossegada e
confiante do trespasse26.
Detenhamo-nos um pouco mais neste episódio. Nele também
a expressão do choro daqueles que ouviram anunciar a sua morte.
Será aqui a incorporação de um costume social, o do pranto fúnebre,
mas adaptado ao modelo canónico. Tem assim lugar antes do
falecimento do santo e pode encarar-se como um sentimento social
de perda de um cristão exemplar. Em todo o caso, é um traço bem
humano e próximo da mentalidade colectiva dos fiéis27. Não menos
parecem ser as palavras de S. Frutuoso. Se por um lado o discurso
hagiográfico remete para a ideia de que o santo compartilha do
sagrado e tem, portanto, assegurada a eterna glória, por outro, ao
introduzir-se na boca do santo a frase “ainda que pecador”, deixa-se
uma mensagem de esperança escatológica ao comum dos mortais.
O santo é um homem, logo a santidade está ao alcance dos homens.
E como meio de intermediação entre o santo e o homem, entre
o céu e a terra, fica o corpo do santo. Corporização da realidade
transcendente do sagrado, encerra uma “virtus”, uma energia própria,
que dá uma aparência de vida, não se decompondo ou cheirando
mal, e a capacidade de operar milagres. As Vidas relatam a inumação
desse corpo, ainda sem grandes detalhes - um “sacrantíssimo
sepulcro” para o corpo de S. Frutuoso - o qual se converte, de
pronto, num centro de peregrinações e milagres. S. Frutuoso sarava

24 - La Vida de San Fructuoso de Braga, p. 117.


25 - La Vida de San Fructuoso de Braga, p. 115.
26 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, pp. 26-27.
27 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, pp. 39-41.

68
os enfermos, afugentava os demónios ou, numa manifestação ampla
do seu poder, quem, desconsolado, clamava a sua ajuda, obtinha do
Senhor o cumprimento do seu pedido.
Como sintetiza Ariel Guiance,28 o modelo da morte da hagiografia
hispana de tempos visigóticos desenvolve-se, assim, em torno de
alguns traços comuns - “o presságio que tem o santo sobre a sua própria
morte, o abandono do temporal, o cumprimento da penitência,
segundo o estipulava a liturgia - talvez o elemento mais original deste
modelo -, a recomendação aos fiéis e o falecimento num marco de
tranquilidade e paz”. Mas a sua morte é também a de um ser humano
que se confessa pecador, dispõe do temporal e faz penitência. O
paradigma vincula-se ao real vivido. Os valores religiosos misturam-
se com os comportamentos sociais e o modelo assume-se então como
um instrumento de pedagogia, com uma força de valor dogmático
talvez superior ao do discurso doutrinal elaborado29.

A MORTE DOS SANTOS FUNDADORES

De um monaquismo peninsular de tempos altomedievos


transportemo-nos agora para um outro tempo de renovação
monástica que, em Portugal, o século XII implica, com a implantação
de novas ordens religiosas de cistercienses e agostinhos. É por dentro
desse tempo que vamos acompanhar a morte de dois santos - Telo e
Teotónio -, que se integram no quadro dos novi sancti, em especial
santos fundadores, cuja morte, como escreve Jacques Dalarun,30
deve ser a um tempo “santa e fundadora”, porque “fundar é, sem
dúvida, uma das funções essenciais da santidade”. Mas o referencial
desta santidade entronca, ainda, nas virtudes e acções dos santos
prelados, que, em harmonia, devem conciliar na sua existência os
dois aspectos complementares, mas aparentemente contraditórios,
do seu poder - serem pastores, que guardam e aconselham,
amorosamente, os membros da sua comunidade e chefes, que,
com virilidade, têm de defender o seu poder temporal e espiritual,
impondo temor e respeito, sobretudo face à autoridade real31. No

28 - Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la muerte en la Castilla Medieval, p. 95.


29 - Por isso esse modelo pode ir evoluindo ao longo dos tempos, como o estudou Ariel Guiance, anotando as
diversas variações na descrição da morte de S. Rosendo, ao longo das diversas edições da sua Vida (“Dormivit
Beatus Isidorus: Variaciones Hagiográficas en torno a la muerte de Isidoro de Sevila”, Edad Media. Revista de
História, 6, 2003-2004, pp. 33-59.
30 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”. In: Les fonctions des saints..., p. 194.
31 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident, pp. 333-340. Quanto à difusão da vivência regrante em Portugal
leia-se Hermínia Vasconcelos VILAR. “Os Cónegos Regrantes”. In: História religiosa de Portugal, I, pp. 222-227 e Saul
António GOMES. “A religião dos clérigos...”, pp. 362-366. E sobre o culto dos mortos entre os cistercienses veja-se José
MATTOSO. “O culto dos mortos em Cister no tempo de S. Bernardo”. In: O reino dos mortos, pp. 87-107.

69
plano da espacialização hagiográfica portuguesa não corresponde
menos à predominância ideológica e espiritual do mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra na condução política do reino, imprimindo-lhe
um renovado dinamismo religioso e ideal evangelizador, espelhado
no espírito de cruzada e no respeito e mesmo apropriação dos cultos
moçárabes.
Telo é um dos doze, número em si mesmo simbólico, fundadores do
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Teotónio é o seu primeiro prior.
Santa Cruz vai nascer em 1131, graças à vontade de alguns cónegos
da Sé de Coimbra, maxime de D. Telo, que pretendem revivificar
o espírito da vida apostólica. Tal desiderato exige o abandono do
século, a subordinação a uma regra e a obediência a um superior,
numa vida em comunidade. Os seus seguidores desprendem-se dos
bens individuais, para em comum os partilharem. Como irmãos e
em conjunto, devem dedicar-se à oração, à lectio divina, à caridade
e ao trabalho, em particular à difusão da mensagem evangélica. Este
outro monaquismo já não se refugia nos campos e nem se fecha em
orações e louvores a Deus, mas implanta-se nas cidades, no meio
das tensões e labuta dos homens. A sua missão pastoral é uma
prioridade, difundindo pela palavra e corroborando pelo exemplo,
o modelo e as regras de um viver terreno, que assegure aos homens
a salvação escatológica.
Num tempo de implantação de uma nova ordem, o paradigma
de vida, e sobremaneira da morte dos seus maiores, é um elemento
estruturador da sua raiz fundacional. De pronto os cónegos de
Santa Cruz, que logo nos seus primórdios estiveram envolvidos em
perigosas controvérsias com a clerezia da sé catedral, deram corpo
a uma hagiografia. Hagiografia muito característica, como faz notar
Aires Nascimento32, com “ausência de epíteto hagionímico nos
seus títulos”, assumindo-a essencialmente como “vidas”, tanto pela
proximidade entre a morte dos visados e o seu relato, que não dera
ainda origem à interiorização ou ao reconhecimento do seu culto,
como pela familiaridade dos autores com os biografados que não
criava a necessária distância do sagrado.
De facto a Vida de D. Telo deve ter sido escrita em torno de 1155,
pelo cónego Pedro Alfarde, quando aquele fundador apenas saíra do
mundo em 1136, e a Vida de D. Teotónio, que faleceu em 1162, foi
32 - Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra. Vida de D. Telo. Vida de D. Teotónio. Vida de Martinho de Soure.
Edição crítica de textos latinos, tradução, estudo introdutório e notas de comentário de Aires A. NASCIMENTO.
Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 9. O mosteiro crúzio foi estudado nas teses de Armando Alberto MARTINS. O
mosteiro de Santa Cruz de Coimbra na Idade Média. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2003
e de Saul António GOMES. In limine conscriptionis. Documentos, chancelaria e cultura no mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra. Viseu: Palimage, 2007.

70
elaborada por um discípulo, que com ela e por ela buscava minguar
as saudades do seu pastor, ainda antes da sua canonização, ocorrida
no ano seguinte. A vida e a morte dos santos fundadores estão, assim,
muito presentes na mente e no coração dos que escrevem. A tónica
biográfica é significativa, sem embargo dos autores destas obras
plasmarem algumas das suas ideias nos modelos clássicos deste tipo
de literatura hagiográfica.
Mas a Vida de D. Telo, como já foi notado, imbui-se ainda mais
de um pendor cronístico, como um relato de fundação monástico,
descrevendo não só a acção de D. Telo para esse fim - desde a escolha
do sítio, aquisição dos bens para implantar o mosteiro, recrutamento
de colaboradores até aos privilégios obtidos - mas igualmente
copiando os documentos, mormente as bulas que a corroboravam33.
A narrativa impregna-se assim de uma racionalidade e materialidade,
que não dá lugar ao miraculoso ou sobrenatural, ainda que em
algumas páginas se manifestem claramente os traços hagiográficos,
carregados de um acentuado simbolismo. Já a Vida de D. Teotónio,
se bem que seja ainda um relato hagiográfico de carácter histórico,
está menos perpassada da ideologia fundacional, abrindo-se mais à
evidência de um modelo de vida de santo, sancionado mesmo por
actos sobrenaturais, e um programa espiritual a seguir pelos cónegos
regrantes.
Desde logo, a própria origem familiar de ambos parece indiciar
as diferenças. Telo é apresentado como filho de cidadãos médios
(mediocribus civibus), esses comerciantes e artesãos laboriosos que,
como o desenvolvimento urbano, se interpõem entre os maiores
(privilegiados) e minores (humildes), sustentando pelo trabalho,
tributos e serviços a cidade e o reino, ao passo que Teotónio é dito
oriundo de pais honestos e piedosos, de uma respeitabilíssima
linhagem nobre, como que predestinadora do seu carácter religioso.
Assim Telo, ainda que casto, humilde, obediente, fiel, perseverante,
constante, paciente e justo, não esteve isento do pecado, embora
cometido na juventude ou provindo da ignorância ou fragilidade. A
própria Vida não deixar de transparecer uma certa controvérsia em
torno da sua pessoa. Bem sabemos que não foi nomeado bispo da sé
de Coimbra, como seria de esperar, nem Afonso Henriques nutria
por ele, inicialmente, grandes simpatias, como se depreende do
episódio sobre a sua sela. Sofreu uma tentativa de envenenamento

33 - Dicionário de Literatura Medieval, s.vv. Hagiografia e Vida de D. Telo. Remetemos de novo para o estudo, que
conhecemos depois de elaborado este trabalho, de Maria de Lurdes ROSA. “A santidade no Portugal medieval:
narrativas e trajectos de vida”, pp. 15-20, 27-30, que contextualiza e explana a construção dos textos sobre a
santidade de S. Teotónio e D. Telo.

71
em França e, mais genericamente, diz-se que havia alguns “que o
viam com maus olhos”. Teotónio, logo na puberdade, quando chegou
“à bifurcação da letra pitagórica”, do Y, renegou “o ramo esquerdo
com os prazeres do século” e deixou-se “atrair pelo direito com todas
as veras em desejo do céu”, simbólica apresentação de um caminho
de santidade, reflectido e escolhido desde cedo, nota ainda recorrente
da santidade altomedieva. Estes matizes repercutem-se na descrição
da Vida de Telo - um enunciar de actos fundacionais - e de Teotónio
- um agir conformador de um paradigma moral e canónico - mas,
como mais nos interessa, na notícia da sua morte. Morte que não é
apenas a passagem da terra ao céu, mas a passagem perigosa de um
carisma pessoal a uma instituição para durar, penhor da inserção da
Igreja na sociedade34.
Telo, cinco meses depois de regressado da sua viagem a S.
Rufo, “é atacado por uma doença mortal”. Doença que é dita um
tumor, referindo-se igualmente a sua designação em árabe, numa
prova manifesta dos conhecimentos médicos, em que imperava o
saber islâmico, que os cónegos crúzios possuiriam, como o atestam
os seus livros de Medicina. Tal precisão clínica é invulgar neste
tipo de literatura, sabendo-se ainda que a doença foi prolongada.
Certamente por isso, o autor da Vida não alude a qualquer presságio
extraordinário da sua morte, pois que a própria natureza física lha
anunciaria.
Logo, quando sente a “doença (como) insuportável e por
excessiva”, retira-se para o claustro. Mas, ainda aí, a agonia foi
prolongada, “ao longo de dias e de noites”, o que dá ocasião a uma
contrição individual profunda, repassada de suspiros, lágrimas e
soluços. Telo é, simbolicamente, assimilado a Madalena, que limpa
as suas máculas ao lavar os pés do Senhor com o seu pranto e ao
secá-los com os seus cabelos, numa duplicidade, que evoca pecado
e penitência, em correlação gradativa. A insistência nos gestos
purificadores, quase à semelhança dos paradigmas visigóticos, é
muito significativa. Sempre que Telo recebe o corpo do Senhor, chora
e fica em êxtase perante a cruz, imagem de sofrimento e redenção,
tão queridos dos crúzios, na sua profunda devoção cristológica, que
levará mesmo ambos os santos em peregrinação aos Lugares Santos.
E Telo persegue a sua via sacra. Isola-se no seu “monte das
oliveiras” e, no meio do claustro, entre plantações de oliveiras,
abençoa os cónegos que passam e sofre o dilema da separação.

34 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, p. 194.

72
Deseja morrer, mas oferece-se, mesmo sem forças, para continuar a
dirigir os seus discípulos. Teme-se por eles. Coloca-os à guarda do
Senhor. É o clássico topos desta hagiografia de santos fundadores,
de sentido institucional, em que o santo, no final da sua vida, anseia
pelo descanso eterno, mas, dramaticamente, preocupa-se com a
sobrevivência da sua obra fundadora. Na oposição manifesta entre
“terra plorante, cielo gaudente”35, os irmãos choram por Telo e Telo
manifesta alegria.
E o dia da morte chega, ao fim de uma longa vida de sessenta
anos, referido, como é característico desta literatura, com toda a sua
precisão - uma quarta-feira, quinto dia dos Idos de Setembro, ao
romper do dia, após a Natividade de Santa Maria, ou seja o dia 9 de
Setembro. O que nos remete para a evocação da mãe do crucificado
e para o início da Quaresma, nessa Quarta-feira de cinzas em que
o homem recorda que é pó e em pó deve tornar. Antes ainda de
morrer, o gesto antropológico, transmutado em teológico no ritual
monástico, de beijar as mãos de todos os irmãos, rogando que o
lembrassem nas suas orações, e o pronunciamento das últimas
palavras: “nas tuas mãos, Senhor, entrego o meu espírito”. Só depois
entrega realmente o seu espírito a Deus, expressão característica
das Vidas, como já vimos, que evitam a terminologia corporal da
palavra morte e empregam esta ou similar, que valora a libertação
da alma em consonância com o dies natalis, que o dia da morte do
santo representa.
Refere-se, em seguida, que o corpo de D. Telo foi lavado e
vestido “segundo o costume regular”, precisão com o corpo nada
comum noutros relatos. Na igreja, no meio do coro, decorreram
os ofícios divinos das exéquias. Exéquias públicas, amplamente
participadas, quase mundanas. Presentes os cónegos, as religiosas
(talvez as cónegas), virgens e viúvas. Acolitando o ofício estão
crianças, adolescentes, anciãos e irmãos leigos. Comparece a cidade
representada pelos cónegos da sé, os jovens, os homens da classe
média (mediocres), os nobres. No pormenor da descrição, pinta-se
o quadro.
As crianças estão sentadas à volta do féretro, os adolescentes
circulam em torno dos altares, os anciãos preparam-se para a
liturgia solene das missas, os irmãos leigos prestam as homenagens
da sepultura. Afastadas do sagrado, intermediado por homens e
clérigos, vislumbram-se as mulheres “porque não lhes era consentido
ficarem perante ou tocar no corpo sacrantíssimo”. Estão junto das

35 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, p. 197.

73
portas, de pé, ou espreitam pelas frestas, soltando lamentos e pedindo
que o santo por elas rogasse ao Senhor. Mas estas são as mulheres
conotadas com alguma impureza - a vida sexual de casadas (donas)
e a pobreza (humildes) - porque as religiosas, as virgens, as viúvas
e as matronas tomam lugar no acto. Todos choram, num pranto
em uníssono, descrito com o realismo das lágrimas a correrem, nas
crianças, até ao queixo. E não falta sequer o gesto bem secular do
lamento fúnebre36, “as nénias ibéricas das matronas”, que a igreja
anatematizava e o autor da Vida se esforça por justificar: “não direi
que seria legítimo, mas, tanto quanto o amor de piedade conjugado
com a dor tornara discreto, apropriado”.
Pedro Alfarde recria na morte de D. Telo todo um modelo de
exéquias fúnebres em que a doutrina canónica amplamente se
permeabiliza às crenças e comportamentos sociais. Modelo mais
apropriado a um leigo que a um clérigo, teria intenção de justificar a
notoriedade, respeitabilidade e honorabilidade deste santo fundador,
para mais convincentemente impor os fundamentos da sua obra,
que à morte dos fundadores não raro se seguia, como o exemplifica
Jacques Dalarun37 com Robert d’Arbrissel e S. Francisco. Logo,
depois da referência precisa à deposição do corpo, como era habitual
nestes relatos - ao lado direito da igreja, junto do altar consagrado
ao Espírito Santo -, o autor refere que os cónegos se reuniram para
se confortarem e reiterarem a sua vontade de viverem em comum,
segundo os preceitos de Santo Agostinho. É a fundação a impor-se,
para além da morte do seu fundador.
O cónego anónimo da Vida de D. Teotónio precisa desde logo
que o santo, começando a sentir-se doente, se preocupa de imediato
com a escolha de sucessor, desiderato máximo de todo o bom pastor
que quer deixar guardada a sua comunidade. E faz ainda preceder o
início da narrativa da morte do prior por duas visões. Uma consagra
a sua santidade, antevendo um ancião o seu lugar na corte celeste
e outra anuncia a sua protecção à instituição, tendo sido Teotónio
avistado a lutar pela sua eira (o claustro do mosteiro) contra a fúria
do mar (o mundo), garantindo-lhe essa boa condução das ovelhas
do seu rebanho e a “jurisdição sobre el(a)s no futuro”38.
A descrição da morte tem, pois, de confirmar esta verdade
revelada. E ela abre com o tradicional anúncio aos santos do fim
da sua vida. Numa visão em que Teotónio se figura numa torre

36 - Sobre o tema, veja-se José MATTOSO. “O pranto fúnebre na poesia trovadoresca galeo-portuguesa”. In: O
reino dos mortos, pp. 201-215.
37 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, pp. 202-211.
38 - Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, p. 197.

74
elevada no meio do claustro, tendo na mão uma lança sem ponta,
comprida e muito branca, depara-se-lhe um “venerando varão de
hábito resplandecente” (o Apóstolo Pedro) que lhe dá a entender
“ter ordens do Senhor para ele”. E logo lhe anuncia que a sua luta,
em que venceu sem ferro (lança sem ponta), está a chegar ao fim,
esperando-o “o gozo da bem-aventurança eterna”, ao mesmo
tempo que dá a saber de antemão “que Deus omnipotente fez por
ti muito bem a este local e continuará a fazê-lo”. Logo neste relato
se enuncia a problemática dual da morte do santo fundador, aqui
para a apresentar como resolvida. Teotónio pode subir a escada dos
cónegos purificados (havia-os menos perfeitos), que dava entrada
no céu.
O espírito estava preparado. Segue-se, em conformidade, todo o
ritual. Teotónio recebe o sacramento da unção, confirmando pois a
administração deste sacramento na segunda metade do século XII,
e a comunhão. Absolve e benze os cónegos e dirige-lhes uma última
admoestação - que não deitassem a perder o trabalho de tanto
tempo - e um chamamento à responsabilidade - “hoje, ficastes com o
encargo da religião nas vossas mãos”39. Muito simbolicamente, o seu
último dia será um Sábado, o sétimo dia, o dia do descanso, no qual
após as matinas em que se rezaria o ofício dos defuntos, como que na
comunhão dos santos com todos os mortos, “inclinou a sua cabeça
um tanto sobre o ombro” e benzeu mais profusamente os irmãos. É
a prefiguração de Cristo crucificado nos seus derradeiros momentos
de vida, mas é ainda o bom pastor preocupado com as suas ovelhas.
Morreu com alegria, como o provava o seu rosto sorridente e o seu
rigor mortis nada alterou à sua fisionomia grave e composta, salvo
a palidez. É, uma vez mais, a imagem da morte tranquila, que no
próprio cadáver se manifesta. Mas o autor da Vida explica que a
alegria do rosto demonstrava bem “que havia ali uma presença de
santos anjos”, para logo um pouco à frente explicitar que também
“o inimigo do género humano” se apresentou nesse acto derradeiro
e, não encontrando mácula, atormentou um criado do mosteiro. A
tentação individual, no momento do passamento, impõe-se agora
canonicamente, mesmo na morte dos santos, o que, por via de regra,
não acontecia na hagiografia altomedieva40. Com a vitória absoluta
dos anjos, que livremente conduzem as almas ao céu, relevam-se os
parâmetros de visibilidade da sua santidade espiritual e corporal.

39 - Hagiografia de Santa Cruz de Coimbra, p. 199.


40 - Michel LAWERS. “La mort et le corps des saints...”, p. 29.

75
Na igreja não se escutam prantos ou lamentos, apenas o coro
entoa salmos, orações, hinos e cânticos espirituais. É o modelo de
um ofício fúnebre estritamente religioso e canónico, próprio de um
clérigo santo. Numa santidade que a autoridade máxima terrena
reconhece, na afirmação de Afonso Henriques que “antes estará
a sua alma no céu do que o corpo na sepultura”, e a manifestação
do sobrenatural credita em pleno, pois que um dia antes do seu
falecimento foi avistado um globo de estrelas muito brilhante a
descer do céu sobre o claustro, prefiguração do resplendor da sua
santidade.
O anónimo termina com precisões de tempos e lugares. O
corpo foi sepultado no capítulo pelo bispo de Coimbra, D. Miguel
Salomão. A morte é datada pelo dia do mês (que recai a 18 de
Fevereiro), o dia da semana (Sábado e não Sexta) e pela hora (a
primeira do dia, “aquela em que Cristo ressuscitou”, mais uma vez
numa mensagem cristológica, que assim se associava e veiculava
pelo calendário litúrgico) e o ano (1162, referenciado através do rei).
O seu enterro ocorreu um dia após a sua morte e a sua vida alongou-
se modelarmente entre os setenta e oitenta anos, pois os patriarcas,
ao contrário dos heróis pagãos que morriam jovens, acabavam os
seus dias como venerandos anciãos.
Teotónio obteve a canonização, a qual o autor da sua Vida não
conheceria, já que a não refere. Teve lugar no primeiro aniversário
da sua morte (18 de Fevereiro de 1163), em concílio provincial
celebrado em Coimbra, presidido por D. Miguel Salomão, e a missa
oficiada foi celebrada por D. João Peculiar e assistida pelos bispos
de Viseu, Porto e Lamego. Estávamos ainda num tempo anterior à
reserva da canonização para os papas, o que Gregório IX virá a impor
nas Decretais, em 123441. Telo, certamente pelos fortes dissídios que
se patentearam entre o mosteiro e a catedral, logo após a sua morte,
não conheceu tais honras, embora os cónegos a ambos venerassem.
Nas Vidas de D. Telo e D. Teotónio um idêntico modelo - o do
santo fundador - com algumas variâncias. Telo é um homem de
acção, mais próximo, por isso, das controvérsias e más vontades que
um grande empreendimento humano desencadeia. A sua morte é
encenada em função da sua obra monástica, no colectivo de uma
comunidade que a deve sustentar e da cidade que a deve albergar
e respeitar. Uma morte que se quer pública e venerada, justificativa
do seu legado. É a morte do fundador que se quer santo. Teotónio
é o guia religioso dos cónegos, perfeito e virtuoso desde jovem,

41 - André VAUCHEZ. La sainteté en Occident, pp. 25-37.

76
todo ele projectado para a vida espiritual e apostólica, na pregação
e prática de boas obras. As suas intervenções externas, interpelando
veementemente rainhas e reis ou auxiliando-os, servem ainda
mais para exaltar o predomínio do espiritual sobre o temporal. O
sobrenatural e miraculoso manifestam-se como provas inequívocas
da sua santidade. A sua morte é, por isso, muito mais intimista -
uma outra faceta deste tipo hagiográfico - recatada, espiritualizada e
ritualizada, segundo a mais estrita ortodoxia dogmática e normativa.
Diremos que é a morte de um santo que também foi fundador.
Mas qualquer dos relatos é paradigmático da mensagem
teológica que a morte de um santo fundador encerra, ensinando
a bem viver pelo bem morrer, numa conformidade e imitação da
vida de Cristo, e sacralizadora, pelo seu corpo, da casa que o alberga,
a qual deixa de ser um lugar comum para passar a ser um lugar
santo. Simultaneamente, numa função eclesial e social, a morte do
santo fundador combina a intersecção do mundo terreno com o do
além, pois os seus ensinamentos e exigências de vida se enraízam
na fundação de uma instituição eclesiástica, que não se separa do
mundo, mas procura responder às solicitações de uma sociedade em
mutação42. No fundo, o que se desvenda de maneira fragmentária na
morte do santo fundador é a dificuldade, o paradoxo, o desafio que
constitui a própria existência de uma sociedade cristã43.

Enfim, com estes cânones de morte e santidade atravessámos um


tempo de afirmação do cristianismo por entre correntes adversas,
rimeiro de paganismo e depois de islamismo, de difusão dos ideais
do monaquismo ibérico e das transformações reformistas vividas no
reino de Portugal sob a influência francesa e gregoriana.
Os relatos das vidas e milagres dos santos foram propondo, pois,
diversos modelos de acordo com as coordenadas sociais e mentais de
cada época. Mas essas vidas, se implicam uma forma de aproximação
ao domínio do sagrado, também envolvem um radical ideológico de
valorização e uso das mesmas.
42 - Contemporâneas destas narrações hagiográficas são ainda a Vida de S. Geraldo, composta entre 1112 e 1128
e a de S. Martinho de Soure, escrita por Salvado, na primeira metade do século XII. Quer o metropolita de Braga,
quer o presbítero de Soure são modelos das preocupações pastorais da Igreja reformadora de Undecentos, que
visava a restauração do seu quadro organizativo e a instrução e conversão de costumes e moral dos fiéis. A morte
de S. Geraldo aproxima-se muito dos paradigmas anteriormente apresentados, não fora ele o refundador do
prestígio da catedral bracarense. Já o pastor dos fiéis de Soure acaba os seus dias num contexto completamente
diferente. A sua vida e morte evocam-nos as dificuldades de implantação dos quadros eclesiásticos nas terras
reconquistadas e o enfrentamento religioso entre cristãos e muçulmanos. Acaba por morrer em Córdova, ao fim
de um longo peregrinar de cativeiro. E a sua entrega às cadeias e grilhões, para ajudar os cristãos a perseverar na
sua fé, é como que a rememoração do martírio daqueles primeiros moçárabes que, enfrentando os seguidores
de Alá, deram a vida por Cristo.
43 - Jacques DALARUN. “La mort des saints fondateurs. De Martin à François”, p. 213.

77
O procedimento do santo era um exemplo, não só a lembrar
mas também a seguir, como que humanizando o sagrado. Logo, a
sua morte carregava uma mensagem religiosa e um paradigma de
comportamento social. Abrangentemente, a imagem da morte de um
santo “configurava um esquema de valores em que a manifestação
do sagrado, a mensagem ideológica, as crenças sociais e a vontade
de imposição eclesiástica se misturavam, no desejo de demonstrar a
verdade evangélica através de gestos e palavras”44.
Mais problemática e menos conhecida é, todavia, a recepção de
toda a mensagem da Vida dos Santos, transmitidas alegoricamente
nos sermões dos pregadores ou lidas, em versões longas e breves,
pela gente culta, que poderia causar apenas um fascínio, noutros
casos um desejo de imitação e talvez mais comummente uma busca
da sua protecção e favores no mundo divino.
Na verdade, esses paradigmas de morte e santidade, para além
de um valor a alimentar a fé e a crença dos devotos, carregar-se-
iam também de implicações práticas. Fundavam em prestígio social
e religioso as casas que albergavam o seu corpo e as suas relíquias.
Atraíam, então, a liberalidade dos fiéis que, na sua sepultura ad
sanctos, procuravam a proximidade desses lugares-relicários dos
santos, entregando juntamente com o seu corpo grande parte dos
seus bens para benefício da alma.
O modelo da morte e da vida dos santos norteava, assim, a
religiosidade, a moral e o comportamento dos homens em vida, na
expectativa de que, depois dela, esses mesmos santos fossem os seus
protectores e advogados para alcançarem a salvação eterna no Além.

44 - Ariel GUIANCE. Los discursos sobre la Muerte en la Castilla Medieval, p. 82.

78
5- CLUNY E A
FORMAÇÃO DE PORTUGAL.
Armando Martins*

Falar de Cluny, na Europa ou no Brasil, em 2010 e num tão


importante simpósio universitário internacional como o V Encontro
de Estudos Luso-Brasileiros nesta encantada cidade de Porto Alegre
significa, fazê-lo, ao menos, por três razões: primeiro pelo facto de
se comemorarem, mil e cem anos da fundação do famoso mosteiro
borgonhês, cumpridos em 11 de Setembro passado1; segundo
por se atribuir àquele mosteiro importante marca na reforma do
monaquismo ocidental do seu tempo e na modelação do Ocidente
medieval em domínios como a traça dos ‘Caminhos de Santiago de
Compostela’ ou a divulgação do culto dos mortos, ao instituir, em
2 de Novembro, na liturgia monástica, a festa dos ‘Fieis Defuntos’;
terceiro pela influência da abadia e dos seus dirigentes em muitos
reinos medievais como aquele de que nasceria Portugal não sendo,
porém, consensual o resultado desse exercício. É nesta terceira linha
justificativa, e de alguma suspeita, que se insere o assunto que escolhi
para a minha intervenção, que dividirei em três pontos:
1. O conflito das interpretações na historiografia portuguesa
2. Evolução das relações entre D. Afonso VI e Cluny
3. Ligação dos condes D. Henrique e D. Teresa à ‘Cluniacensis
Ecclesia’ 2

O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES

Nos anos trinta do século vinte, quando se preparavam as


comemorações dos oito séculos da Independência de Portugal, duas
teses deram origem a uma polémica historiográfica.
*
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Academia Portuguesa de História.
1 - Em 2010 têm sido vários os eventos evocativos da efeméride por toda a Europa, especialmente os colóquios
internacionais de Junho (religião), Setembro (política e sociedade) e Novembro (17-19: arte e aspectos cientí-
ficos). A revista Dossiers d’Archéologie, dedicou o H-S n. 19, Août 2010 , a ‘Cluny et ses influences en Europe’,
destacando os sítios clunisinos e o projecto “Cluny 2010”. Como se sabe, o ano da fundação de Cluny é contro-
verso, (910 ou 909?) devido a uma ambiguidade de interpretação da indicção em que se encontra expresso: ‘Dado
a três dos Idos de Setembro, ano onze do reinado do rei Carlos, indicção treze’. Vide o texto do diploma em Marcel
PACAUT. L’Ordre de Cluny. Paris: Fayard, 1986, pp. 49-53.
2 - Vulgar, mas impropriamente chamada “Ordem de Cluny”. A organização em ordem é uma realidade, apenas,
a partir do séc. XIII; o “ordo cluniacensis” era, essencialmente, relativo à liturgia e costumes.

79
Carl Erdmann (1898-1945), investigador alemão, num trabalho
depois muito conhecido, O Papado e Portugal no primeiro século da
história portuguesa, editado em Coimbra, em 19353, defendia que o
processo de formação e a independência do país não se deviam, de
forma alguma, ao Papado ou à Igreja que, nos começos do século
XII, tudo fazia para impedir a fragmentação das forças cristãs
peninsulares, dificultando mesmo a separação do clero português
sujeito à hierarquia leoneso-castelhana.
Por sua vez, Luís Vieira de Castro, três anos mais tarde, em A
Formação de Portugal (1938)4, entendia que a vinda do conde D.
Henrique à Península não fora ocasional, mas consequência da
política que a França vinha seguindo para ‘conquistar posições que
não só lhe facultassem a necessária vigilância sobre os Sarracenos mas,
impedissem a formação de um império de inconveniente grandeza
para a jovem monarquia dos Capetos»5.
Seria, com efeito, no contexto da Reconquista, com a chegada dos
Almorávidas6 que Afonso VI lançou um apelo de ajuda e solicitou
apoio ao mosteiro da Borgonha, com quem já os seus antepassados
haviam inaugurado relações estreitas. Cluny que começara a enviar
monges reformadores, encaminhou também cavaleiros, entre
os quais os futuros condes da Galiza e de Portugal, Raimundo e
Henrique7.
Vieira de Castro precisa que a influência clunisina não se exerceu
no sentido da unidade política, argumentando com Menéndez
Pidal, que a divisão peninsular, longe de prejudicar a Reconquista,
‘multiplicava e estimulava iniciativas eficazes’8.
Entre estas ‘iniciativas eficazes’, viria a própria formação de
Portugal que, ficaria pois, a dever-se, em boa medida, à Ordem de
Cluny, instituição monástica que alcançava o máximo de prestígio e
poder, no governo do abade D. Hugo de Semur, ao longo de 60 anos,
entre 1049 e 1109. O ‘abade dos abades’, em tamanha longevidade
governativa, foi contemporâneo de nove papas e de vários monarcas
do Ocidente, de quem se tornara conselheiro religioso e político.

3 - Reimpressão, Braga, 1996.


4 - Pequeno livro, de 95 páginas, editado no Funchal.
5 - Luiz Vieira de CASTRO. A formação de Portugal. Funchal, MCMXXXVIII, p. 22.
6 - A primeira grande derrota dos cristãos contra os Almorávidas foi no ano seguinte ao da conquista de Toledo,
em Zalaca (Sacrajas), 1086. Vide E. LÉVI-PROVENÇAL; E. García GÓMEZ (ed. E trad.). El Siglo XI en 1.ª per-
sona. Las ‘memorias’ de ‘Abd Allah, ultimo rey ziri de Granada, destronado por los Almorávides (1090). Madrid:
Alianza Editorial, 2010 (1.ª, 1935-1936).
7 - O Cronicon Compostelanum, sem indicar a data, refere que fora D. Afonso VI que mandara vir Raimundo:
‘Reimundo Burgundiae Comite Palatino, quem rex A. a Burgundia in Hispaniam venire fecerat’. Ver E. FLÓREZ.
Hispania Sacra, tomo XX, M. Ed. Revista Agustiniana, 2006, p. 831.
8 - R. MENÉNDEZ PIDAL. La España del Cid, vol. II, p. 688.

80
A tese da influência prioritária das instituições da Igreja ou dos
factores religiosos na autonomização portuguesa, com pequenas
variantes, teve como defensores nos anos imediatos, entre outros,
Bernardo Xavier Coutinho, Acção do papado na fundação e
independência de Portugal, (Porto, 1939) ou Miguel de Oliveira,
‘Factores religiosos da independência de Portugal’ (CMP,1940).
Mas, em 1948, Avelino de Jesus da Costa em A Ordem de Cluny
em Portugal, esclarecia bem que: ‘não há documento algum que
permita afirmar que a Ordem de Cluny defendia a fragmentação
da Península em diversos Estados’ (…); ‘estes monges defendiam os
interesses religiosos das terras onde se encontravam, como se delas
fossem naturais e não para favorecer a política francesa’9.
O principal opositor às teses de uma acção política de vanguarda
de Cluny em Portugal foi José Mattoso que acha exagerado e sem
fundamento, querer atribuir-se, quer ao papa, quer à Ordem, tão
determinante papel: ‘seria um anacronismo excessivo atribuir ao
abade de Cluny uma estratégia tão precisa e tão particularista’10.
A preparação do reino e do processo de independência foram,
essencialmente, obra do conde D. Henrique - de quem já, de facto,
Herculano escrevera que ‘veio à Espanha para ser o fundador da
independência dos Portugueses’11!
Nesta mesma linha, com ou sem divergências, se situam Torquato
de Sousa Soares (‘O governo de Portugal pelo conde D. Henrique
da Borgonha’12(1974) e Formação do Estado Português13 (1989);
Maria Helena da Cruz Coelho, em ‘A génese e afirmação do reino
de Portugal14’ (1994); Oliveira Marques15 (1996), ou, ainda, Geraldo
Coelho Dias, (2000)16.
Esta convergência de argumentos, encontra uma mais exigente
hermenêutica de pesquisa sobre a real influência de Cluny, no
historiador americano, Charles Julian Bishko (1930-1989). No
aprofundar das suas investigações sobre as relações entre a monarquia
leoneso-castelhana com aquela abadia, em ‘O conde D. Henrique

9 - Avelino de Jesus da COSTA. A ordem de Cluny em Portugal. Braga: Ed. Cenáculo, 1948, p. 10.
10 - José MATTOSO. “Cluny, crúzios e cistercienses na formação de Portugal”. In: IDEM. Portugal Medieval,
novas interpretações. Lisboa: INCM, 1985, p. 106.
11 - A. HERCULANO. Opúsculos, vol. V, p. 50, cit. por Avelino de Jesus da COSTA. Oc., p. 9.
12 - RPH (1974), pp.
13 - T. Sousa SOARES. Formação do Estado português (1096-1179). Trofa: Sòlivros de Portugal, 1989.
14 - Maria H. da Cruz COELHO. “La génesis y afirmación del reino de Portugal”. In: Pueblos, Naciones y Estados
en la Historia. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1994, pp. 11-27. Deixamos aqui um especial
agradecimento à autora, que teve a gentileza de nos enviar o texto deste seu excelente trabalho de síntese, que
nós não conhecíamos.
15 - A. H. de OLIVEIRA MARQUES. Nova história de Portugal. Lisboa: Ed. Presença, 1996, vol. III, pp. 13 s.
16 - Geraldo Coelho DIAS. “Cluniacenses”. In: Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2000, vol. A-C, pp. 381-385

81
de Portugal, Cluny e os antecedentes do Pacto Sucessório’ (1971)17
Bishko é, a meu ver, verdadeiramente inovador, explorando pistas
até então desvalorizadas, para reforçar o entendimento da estratégia
política do marido de D. Teresa18.
O que poderemos, então, acrescentar? Situando-me na esteira
do autor do Portugal Medieval, (1985), aproveitando as sugestões
interpretativas de Bishko, tentarei mostrar como a acção do conde
D. Henrique buscou e encontrou naquela abadia apoio para algumas
decisões da sua acção governativa e das possibilidades oferecidas
pelas circunstâncias.

CLUNY NA PENÍNSULA IBÉRICA

A relação entre Cluny e a Península Ibérica datava de começos do


século XI, quando o rei Sancho III da Navarra doou ao abade Odilão
(994-1049) parte do saque da taifa de Dénia19. Por essa altura no
mosteiro de S. Juan de la Peña se introduziria a reforma gregoriana:
com o rito romano, a substituir o moçárabe, vinham também os
Costumes de Cluny.
Novo e importante passo, segundo a Historia Silense20, deu-o
Fernando Magno, rei de Leão e Castela (1035-1065), quando, com
sua mulher, criou para a abadia, provavelmente em 1063, um censo
anual, de mil miticales de ouro, provenientes das párias muçulmanas.
É provável, diz Charles Bishko, que tenham sido estes os fundamentos
da coniunctio censitaria que iria ligar, estreitamente, a abadia e a
política ibérica, permitindo ao abade tantas das suas intervenções.
Com efeito, o herdeiro do rei Magno, D. Afonso VI (1072-1109),
se não manteve o censo paterno, em 1073, fez a Cluny a doação do
mosteiro de S. Isidro de Dueñas21 e recomendou aos seus magnates
que lhe seguissem o exemplo. Ao renovar, em 1077, a obrigação do
censo, que duplicava para duas mil peças de ouro, tinha boas razões
para estreitar os laços com o ‘abade dos abades’22: por um lado,

17 - Ch. Julian BISHKO. “Count Henrique of Portugal, Cluny and the antecedents of the Pacto Sucessório”. RPH,
1971, pp. 155-188. Veja-se, do mesmo autor, “Liturgical intercession at Cluny for the king-emperors of Leon”.
Studia Monastica, vol. 3, 1961, fasc. 1, pp. 53-76.
18 - Vide outros estudos desta temática por Ch. BISHKO coligidos em Spanish and portuguese monastic history
(600-1300). London: Variorum Reprints, 1984.
19 - C. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Los prioratos de la província y sus redes sociales (1073-ca.
1270). León: Centro de Estúdios e Investigación “San Isidoro”, 2008, p. 146.
20 - Crónica o Historia del Silense. In: J. E. CASARIEGO (intr. y notas). Crónicas de los reinos de Asturias y León.
Madrid: Editorial Everest, s/d.; Ch. J. BISHKO. “The liturgical context of Fernando I’s last days according to the
so called Historia Silense”. Hispania Sacra, XVII-XVIII, Madrid-Barcelona, 1964-1965, Miscelánea en Memoria
de Don Mario Férotin (1914-1964), pp. 47-59.
21 - Carlos M. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Oc., pp. 690-692, doc. n. 1.
22 - PL 159, cols. 938-939: (1077) “… ego, anuente Deo, in diebus vitae meae duplicabo”.

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atendia às insistentes súplicas do monge Roberto, representante de
D. Hugo na Corte afonsina; por outro, necessitava do seu auxílio de
mediação diplomática, pois havia que responder às pressões papais
que reivindicava para si a soberania temporal23 sobre os territórios
reconquistados na Hispania; havia que resolver, negociadamente,
a questão da mudança dos ritos litúrgicos24 e havia que impetrar
a aceitação do novo casamento que o monarca, viúvo, estava para
contrair.
Cluny, tão ricamente recompensada, considerou o monarca
como ‘fidelis amicus’ e fê-lo ‘socius confraternitatis ‘ e ‘benefactor’25,
isto é, com direito a especiais benefícios espirituais nas orações
da comunidade, de solenidade igual à que era concedida à família
imperial germânica26; prometeu-lhe, eficaz intervenção junto do
papa em todos os tipos de litígio. Para melhor selar esta amizade
com aquele que considerava, no dizer do rei, ‘patronus’ ou protector
da dinastia navarro-vasca, D. Afonso VI reforçava a ligação, com
laços de consanguinidade, escolhendo contrair o novo casamento,
com D. Constança da Borgonha, sobrinha do abade D. Hugo27.
Porém, nem tudo quanto fora solicitado e prometido foi possível
alcançar-se do papa, pois, em Roma pontificava o intransigente
Gregório VII (1073-1085). Em 1080, no concílio de Burgos, presidido
por um Legado, decretava-se a substituição do rito moçárabe (e
pouco depois, da escrita visigótica) pelos usos romanos, ameaçando-

23 - A reivindicação territorial era «in jus et proprietatem». Demetrio MANSILLA. La documentación pontificia
hasta Inocencio III (965-1216). Roma: Instituto Español de Estudios Eclesiasticos, 1955, doc. 13 (28 de Junho de
1077), pp. 21-25.
24 - IDEM, ibidem, docs. 8 (1074) e 12 (1076), pp. 15-16 e 20-21; PL 159: “Sciatis nostram terram admodum deso-
latam esse: unde vestram deprecor paternitatem, quatenus faciatis ut domnus papa nobis suum mittat cardinalem,
videlicet domnum Giraldum, ut ea quae sunt emendata emendet, et ea quae sunt corrigenda corrigat”.
25 - Ch. BISHKO. “Liturgical intercession”. Art. cit., 1961, p. 54.
26 - O estatuto concedido ao rei, na vida e na morte, seria especificado, provavelmente em 1090, numa determi-
nação do próprio abade de Cluny, cujo texto está publicado na PL 159, c. 945-946 e em C. Reglero de la Fuente,
Cluny en España, oc., 2008, p. 697, doc. n. 5. Assim, ‘porque nos ajudou na construção da nova igreja dos apóstolos
Pedro e Paulo, aí num dos altares principais (destes havia o altar-mor e quatro outras no presbitério) por ele se
farão orações e sufrágios’:
Em vida e diariamente:
Um salmo: ‘Exaudiat te Dominus…’ (Sl. 19) na hora de Tercia;
Uma oração colecta na missa maior (cantada): ‘Quaesumus omnipotens Deus…’;
Uma prebenda no refeitório, na mesa maior, como se um pobre comesse connosco;
Quinta-Feira Santa: estarão, por ele, 30 pobres na cerimónia do Mandato (Lava-Pés);
Domingo de Páscoa: 100 pobres serão, por seu benefício espiritual, alimentados pelo camareiro;
Na morte:
Num dos altares principais, sufrágios durante um ano, com missa cantada; o mesmo em cada dia do aniversário
(tal como pelo imperador Henrique III);
Em vésperas e na missa: por ele toquem todas as campainhas e seja cantado o tracto com capas; sejam alimenta-
dos 12 pobres e dêem-se-lhes 7 dias de ‘justiça’ (refeição breve) e uma prebenda na mesa maior.
O mesmo se faça à rainha, tal como se faz à imperatriz Inês: por elas, 12 pobres sejam alimentados in Coena
Domini.
27 - Pierre DAVID. Études historiques sur la Galice et le Portugal du VIe au XIe siècle. Lisbonne, 1947, pp. 366;
388-390.

83
se o rei e o reino de excomunhão, se resistissem28. O monarca via,
igualmente ser exilado da Espanha o seu amigo monge Roberto, até
então representante de Hugo na Corte e que, elevado a abade do
importante mosteiro de Sahagún, era suspeito, aos olhos do Legado,
de impedir a reforma, defendendo as tradições locais29. Esquecia-
se, no entanto, a reivindicação do domínio territorial e aceitava-se,
como lícito, o casamento com D.ª Constança (1079-1093), apesar de
parente da esposa anterior!
Segundo estudos recentes (1997-199830; 199931; 200832 e 2009-
201033) de historiadores hispânicos, membros dos ‘Ateliers clunisinos’,
os fracassos negociais coincidiram com as novas e mais agressivas
campanhas dos Almorávidas, que haviam conseguido unificar, outra
vez, o Al-Andalus. Anulando totalmente os abundantes proventos das
párias cobradas por Afonso VI, as doações em ouro interromperam-
se, deixando de ser tão intensas as relações entre o abade e o rei.
O famoso diploma de 1090 - ‘perpetua lege servandum’ (!) -,
apenas encontrado nos arquivos de Cluny, mas de que não há rasto
algum na chancelaria real de Leão e Castela, segundo o qual o
abade Hugo teria ido a Burgos, agradecer ao rei o cumprimento das
promessas de 1077 e a oferta de dez mil peças de ouro em 1088, bem
como obter a confirmação do censo antes duplicado, suscitou, nos
últimos anos, alguma desconfiança em termos de autenticidade34!
Um dos membros investigadores dos ‘Ateliers’, Júlia Montenegro, da
Universidade de Valladolid, com bons argumentos, conclui tratar-se
de um documento falso35, produzido no mosteiro borgonhês. Teria
sido, nessa mesma circunstância, que a redacção da Vida de S. Hugo36,
28 - D. MANSILLA. Oc., doc. 19, pp. 32-33.
29 - D. MANSILLA. Oc., doc. 21, pp. 35-36.
30 - Andrés GAMBRA. Alfonso VI. Cancilleria, cúria y império. I. Estudio. León: Centro de Estúdios e Investi-
gación “San Isidoro”, 1997 (Colección ‘Fuentes y estúdios de Historia Leonesa’); Alfonso VI. Cancilleria, cúria y
império. II. Colección diplomática, León, 1998.
31 - Patrick HENRIET. “Cluny en Peninsule Ibérique (XIe-XIIIe siècles). Ateliers clunisiens (Septembre 1999)”.
Révue Mabillon, 2000, pp. 285-286.
32 - C. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Oc., León, 2008.
33 - Júlia MONTENEGRO. “La Alianza de Alfonso VI con Cluny y la abolición del rito mozarábe en los reinos
de León y Castilla: una nueva valoración”. Separata de Jacobus, 25-26, 2009, pp. 47-62; “La Crisis sucesoria en
las postrimerías del reinado de Alfonso VI de León y Castilla: el partido borgoñon”. In: Estúdios de História de
España, XII, 2010, pp. 369-388. Agradecemos aqui a esta ilustre historiadora espanhola a simpatia que teve em
enviar-nos alguns dos seus trabalhos acerca desta temática, fruto das suas recentes investigações.
34 - PL 159, cols. 973-974, “Testamentum domni Adefonsi regis Hispaniarum ad Cluniacum”.
35 - Júlia MONTENEGRO. Art. cit., 2009, p. 61. Segundo a autora são várias as razões que apontam a sua fal-
sificação, quer a partir da crítica interna, quer do ambiente político vivido em 1090: o reino estava em difícil
situação económica; muitos dos reinos taifas tributários já tinham caído sob o poder almorávida ou estavam na
iminência de cair; Afonso VI, tão cauteloso, não iria comprometer os seus sucessores a tamanho peso (Bishko
interroga-se se, desta forma, não ficaria “vassalo” de Cluny); o evoluir das relações entre Afonso VI e D. Hugo
já não justificava tamanha dádiva. Por outro lado, acrescentamos nós, este diploma vinha alterar radicalmente a
doação de 1077, feita “in diebus vitae meae”, não sendo assim mera confirmação daquela mas, enorme inovação!
36 - PL 159, Vita Sancti Hugonis, cols. 845-894. A referência a Afonso VI vem no capítulo II, ‘Alphonsus rex
Hispaniarum e carcere liberatus’.

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como peça do seu dossier de canonização, ficara enriquecida com
a legenda da sua intervenção miraculosa, em 1072, quando Afonso
jazia na masmorra em que seu irmão Sancho o prendera. Bastaram
as orações do abade para acontecer a libertação; e esse ficou, desde
então, em Cluny a ser igualmente celebrado, em memória do grande
‘Rex Hispaniae’37.
Porém, a contrario sensu e pelas razões acima indicadas, as
relações entre o rei e o abade, conclui ainda Júlia Montenegro, devem
ter ficado ‘seriamente deterioradas a partir de 1080 e feridas de morte
dez anos mais tarde’38.
Esta nova interpretação das relações entre Cluny e D. Afonso VI,
na segunda etapa do reinado, ajudaria a perceber melhor as razões
da intervenção do abade Hugo no Pacto Sucessório feito, por sua
iniciativa, em 1105. O Pacto é um texto em que os dois condes da
Galiza e de Portugal, genros do monarca, face a uma ameaça comum,
e porque não aceitaram a decisão do soberano de designar como
herdeiro no trono ao infante Sancho, nascido da sua relação com a
moura Zaida39, secretamente, com o apoio e mediação de D. Hugo,
se comprometem a conluiar-se para dividir entre si o reino40.
Ora, o Pacto Sucessório não era, uma peça isolada mas, parte
importante de uma série de intervenções do abade D. Hugo com
base na conjunctio fraternalis e censitária que o fizera patronus da
dinastia do Imperium Hispaniarum. Por essas intervenções podemos
documentar os verdadeiros objectivos e passos de tão audaz acção de
D. Henrique que acabaria expulso da corte, caindo na ira régia de seu
sogro, como diz a contemporânea Crónica Anónima da Sahagún41.
No longo reinado de D. Afonso VI (1072-1109), porém, as
relações entre Cluny e a Espanha não se limitaram aos aspectos que
acabamos de referir nem às relações com o rei, rompidas ou não em
1090. A generosidade régia incluíra a doação de mosteiros e igrejas
para serem, na categoria de priorados dependentes, reformados
segundo os Costumes de Cluny, num total de mais de trinta, um terço

37 - Ch. BISHKO. art. cit., 1961, pp. 65-66.


38 - Art. cit., 2009, p. 62.
39 - Zaida era nora do rei Al-Mutâmid de Sevilha, viúva de um filho seu, que se refugiou em Toledo quando da
chegada dos Almorávidas. Sancho teria nascido em 1093. Vide Pierre DAVID. “Le Pacte sucessoral”. Bulletin
hispanique, 1948, p. 285; El Siglo XI en 1.ª persona. Oc., pp. 346-347.
40 - DMP, DR, I, doc. n. 2, pp. 3-4. Em importante e extensa nota o editor dos DMP, Rui de Azevedo discute
a data do diploma e o seu alcance, vol. II, pp. 547-553. Pierre DAVID. “Le Pacte Sucessoral entre Raymond de
Galice et Henri de Portugal”. Bulletin Hispanique, 1948, pp. 275-290.
41 - Las Cronicas anónimas de Sahagún. Ed. A. UBIETO. Zaragoza, 1987. Damião PERES. Como nasceu Portugal.
Porto: Portucalense Editora, 1970 (7.ª), p. 94, n. 2 e 3. Agradecemos ao Prof. João Marinho dos Santos, da Uni-
versidade de Coimbra, o ter-nos recordado que, ainda no século XVI, João de Barros, na Crónica do Imperador
Clarimundo, invocava D. Henrique como ‘Imperador’, o que vem corroborar esta nossa interpretação.

85
das quais feitas por parte da ‘nobreza de infanções, ‘filocluniacense’42
que, assim, melhor se ligava com o monarca, e obtinha benefícios
pro anima.
Em nenhum país europeu Cluny se radicava tão profundamente,
sendo a primeira parte do reinado de Afonso VI a ‘época de ouro’ de
tão grande influência. A moderna historiografia espanhola, desde o
século XVII, insurgir-se-á, com mais ou menos frontalidade, contra
essa ‘invasão’43, desvirtuadora do que chamou o autêntico ‘carácter
nacional da identidade hispânica’44.
Vejamos, agora, comparativamente, as relações de Cluny com
Portugal: se a abundância e a tipologia das doações, ou a qualidade
e intensidade do relacionamento, correspondem ao que se fazia fora
do condado.

PROJECTOS E REALIZAÇÕES
DE D. HENRIQUE (1096-1112)

É indiscutível que foi no contexto das guerras da Reconquista que


vieram para a Península, Raimundo e Henrique, com o apoio de
Cluny, talvez motivados pelo parentesco com a rainha D. Constança45.
Vêm para o extremo Ocidente, onde será ajustado o seu casamento
com duas das filhas de Afonso VI: Raimundo, talvez em 1087, casa
com Urraca, a mais velha e legítima; a Henrique coube Teresa,
ilegítima, em 1095. O primeiro recebe o condado da Galiza (que
incluía o de Portugal e Coimbra, unificados, até ao Tejo, visto o rei da
taifa de Badajoz ter negociado com Afonso VI a entrega das cidades
de Lisboa, Sintra e Santarém). Melhor cavaleiro do que Raimundo,
que deixaria perder Lisboa e Sintra em 1094, Henrique destacara-se
na luta contra os Almorávidas e, ao casar, o sogro recompensa-o,
em 1095-1096, com o condado de Portugal, desligado do da Galiza,
doado como tenência hereditária, constituindo-o apenas vassalo do
rei, hierarquicamente em pé de igualdade com o primo e cunhado46.
42 - C. Reglero DE LA FUENTE. Oc., p. 240.
43 - Uma visão global da historiografia espanhola acerca da influência de Cluny nos reinos de Leão, Castela,
Navarra e Aragão, é-nos dada por Patrick HENRIET. “Moines envahisseurs ou moines civilisateurs? Cluny dans
l’historiographie espagnole (XIIIe-XXe siècles)”. Revue Mabillon, t. 11 (t. 72), 2000, pp. 135-159. O autor deixa no
ar um interessante desafio: ‘Il faut par ailleurs souligner le vraisemblable fécondité d’une étude historiographique
portant sur le Portugal’ (p.137, n. 5).
44 - M. MENÉNDEZ Y PELAYO. Historia de los heterodoxos españoles. Madrid, 1992, (1877), p. 570.
45 - A. H. OLIVEIRA MARQUES. Nova História de Portugal. Lisboa: Presença, vol. II, pp. 16-17. Pierre David
põe a hipótese deste casamento ter sido em 1092 (considerando falso o documento de 1087) e justifica: deve ter
sido arranjado por D. Constança, quando esta percebeu que não podia dar filhos ao rei. P. DAVID. Art. cit., 1948,
p. 283, n. 1.
46 - Paulo MERÊA. “De ‘Portucale’ (civitas) ao Portugal de D. Henrique”. In: Estudos de história de Portugal.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, pp. 235-275. A primeira edição deste trabalho foi publicada na
revista Biblos, XIX, 1943.

86
Desde logo, distanciando-se de D. Raimundo, o conde D.
Henrique, que então devia rondar os vinte anos, se mostrou bom
militar e político sagaz, praticando uma estratégia em duas linhas:
alargamento do seu território, para Sul e para Leste, no reino de Leão
e, progressiva autonomização. Empenhou-se em cuidar da defesa e
do povoamento por um lado e, por outro, em fortalecer instituições
e meios que lhe permitissem um governo mais eficaz.
Para os primeiros objectivos, inaugura uma política de concessão
de forais e protecção de igrejas e mosteiros, através de coutos com
privilégios de atracção, começando em 1096 com Guimarães,
Constantim, Panóias, S. Tirso e, sobretudo, a Sé de Braga.
Para os segundos, é ele que introduz em Portugal os clunisinos.
Adepto da implantação da reforma gregoriana, em articulação
com D. Bernardo, arcebispo de Toledo, primaz das Espanhas, D.
Henrique colocou à frente das dioceses do seu território dois bispos,
simultaneamente dois conselheiros, clunisinos e franceses: em
Braga, retomando o programa restaurador da diocese, iniciado pelo
bispo D. Pedro (1071), colocou, para futuro metropolita, Geraldo,
que viera de Moissac e fora cónego de Toledo; em Coimbra, colocou
D. Maurício, que, em 1109, haveria de transitar para Braga, quando
Geraldo morreu47.
Os laços com Cluny fortalecem-se, em 1100, quando Henrique e
Teresa lhe doavam (através do priorado de La Charité-sur-Loire), a
igreja e o termo coutado de S. Pedro de Rates, não longe de Braga,
para serem transformados num centro monástico. Acrescentavam-
lhe a doação dos dízimos do pão, vinho e linho, dos seus bens
‘reguengos’, em toda a vasta zona de entre Douro e Mondego48. Por
estas doações era concedido aos condes de Portugal, à semelhança
dos reis de Leão e Castela, o estatuto de ‘benefactores et socii’, de La
Charité, colocando-os, portanto, sob a protecção da ‘Cluniacensis
Ecclesia’ e do seu abade.
Em 1102, por sua vez, o bispo D. Maurício doava a D. Hugo, ‘pater
venerabilis’, pelo mesmo mosteiro de La Charité, a igreja de S. Justa
de Coimbra, com toda a jurisdição episcopal, para ser convertida em
priorado, oferta que, certamente, fora concertada com a que fora feita

47 - Carl ERDMANN. Oc., pp. 14-20. José MARQUES. O Conde D. Henrique e os alvores da nacionalidade.
Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, Palácio da Independência, 2003, pp. 19-24. Apro-
veitamos esta nota para agradecer ao senhor professor José Marques a gentileza da oferta do presente trabalho,
verdadeiramente inovador em muitos aspectos.
48 - Avelino de Jesus da COSTA. A Ordem de Cluny. Oc., pp. 27-28, doc. nº 1.

87
pelos condes anteriormente49. Doação urbana singular, por parte de
um bispo, com total cedência de direitos, de que não encontramos
outro caso comparável! D. Maurício tornar-se-ia, ele e a sua cidade,
mais próximos de Cluny quando, numa viagem à Palestina e
Constantinopla, dali trouxe uma relíquia da Vera Cruz que ofereceu
ao mosteiro, o que lhe alcançou uma ‘memoria perpetua’ e especial
protecção da sé conimbricense50.
Nenhuma doação semelhante encontramos feita a Cluny por D.
Raimundo no seu condado da Galiza. Conhecemos, ao invés, a grande
soma de mil solidi, por ele oferecidos a uma abadia borgonhesa,
mas não clunisina: Saint-Bénigne de Dijon. Também o seu nome
não figura no Necrológio de S. Zoilo de los Condes, onde Henrique
e Teresa estavam registados entre os familiares como ‘amici’, com
direitos à protecção de sufrágios anuais e sendo aí D.Henrique
intitulado ‘comes Hyspaniarum’51!
Tal comportamento divergente dos condes na direcção das
benfeitorias pode ser significativo de relações menos estreitas
entre D. Hugo e D. Raimundo, (que não eram parentes) em relação
às que mantinha com seu sobrinho-neto Henrique e a sua terra.
Mesmo, mais tarde, por parte de D. Urraca, viúva de Raimundo, não
encontramos doação de terras, igrejas ou mosteiros e, quando em
1109, tiver lugar a única doação galega (S. Vicente de Pombeiro),
fá-lo-á na qualidade de Infanta, a pedido de seu pai. Raimundo não
parece jamais ter beneficiado do estatuto de Henrique de socius ou
benefactor e, por isso, pode não ser mera retórica de chancelaria, nem
é de leitura linear, a desconcertante titulação que os dois condes se
atribuem quando a D. Hugo endereçam o texto do Pacto Sucessório,
em 1105: Raimundo dirige-se ao abade, na qualidade de ‘filius’,
enquanto Henrique o faz na de familiaris52.

49 - Ibidem, pp. 39, doc. n.º 17. Rui de AZEVEDO. DMP, DP, III, 445, doc. 523. C. Reglero DE LA FUENTE.
Cluny en España, pp. 699-700, doc. n. 6. Note-se o “caso notável” e único desta doação, perigosa cedência de um
bispo face ao “ordo monachorum”. Não serão poucos os futuros problemas de jurisdição, quer em litígios com a
Sé, quer com o vizinho mosteiro de Santa Cruz. Cfr. ANTT. Santa Cruz de Coimbra. Livro de D. João Teotónio,
fl. 14v.: “Habuimus non minimas altercationes cum monachis de Caritate …”
50 - C. Reglero DE LA FUENTE. Oc., p. 704, doc. n.º 9 e p. 338. A presente carta mostra como a relíquia da
“Tábua de S. Basílio” com o fragmento da Vera Cruz, que D. Maurício trouxera da viagem de 1104-1108, foi
solenemente entregue em Cluny em 28 de Julho de 1112.
51 - C. Reglero DE LA FUENTE. Cluny en España. Oc., pp. 646; 668.
52 - Ch. BISHKO. Art. cit., 1971, p. 180; IDEM. Art. cit., 1961, pp. 53-76. Importa esclarecer o vocabulário que li-
gava os leigos com a abadia clunisina e os seus priorados, numa graduação mais ou menos estreita de parentesco
espiritual, entre frater noster, quasi unus ex-nobis, familiaris, amicus, benefactor, socius e filius. Numa sociedade
de tipo contratualista, notem-se dois modos distintos: em pé de igualdade e em subalternidade: Raimundo colo-
ca-se neste; Henrique, no primeiro. D. Afonso VI estava entre os familiares, benfeitores e sócios, acima de todos
os reis, “neminem regum…” (Regelro de la FUENTE. Oc., p. 698; 305-309), beneficiando de um especial estatuto
em vida e post mortem. Vide PL 159, cols. 945-946. Ao contrário da nossa crítica documental, Ch. Bishko não
pôs em dúvida a autenticidade do “diploma imperial” de 1090. Não o seguimos, por isso, nas afirmações decor-
rentes de raciocínio dedutivo a partir dessa fonte.

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A data do Pacto Sucessório, que não é um acto isolado, como
dissemos, tem sido objecto de várias controvérsias: mais provavelmente,
será 110353, ano que na chancelaria começa a figurar o nome de Sancho,
antecedendo os de Raimundo e Henrique ou, 110554, quando o dois
condes conferenciaram, em Burgos, com Dalmácio Geret, delegado
e camerarius do abade Hugo, chegando a um entendimento na
preocupação comum que os afligiria, e numa outra em que divergiam,
e de que Raimundo, com boas razões, suspeitava.
Em Janeiro desse ano de 1105, D. Henrique tinha feito, ao mosteiro
leonês clunisino de Dueñas55, uma solene doação dos dízimos de
Sanábria (Zamora) e de outras suas quatro igrejas em território
leonês-castelhano, documento que fez autenticar por um invulgar
número e qualidade de confirmantes: quarenta e dois! Destes,
muitos (27) eram magnates da sua corte, figurando aí a principal
aristocracia portucalense; mas, 15 eram leoneses: três bispos, três
abades, três priores, um conde, três tenentes de terras e dois oficiais
da alta burocracia da corte régia - ou seja, a elite do alto clero e da
alta nobreza portucalense e leonesa!
Por outro lado, os termos em que a doação era feita mostram bem
como o conde pretendia estreitar mais a sua ligação à abadia de D.
Hugo, sem mediação da Corte e afastando-se dos comportamentos
de seu primo a esse respeito.
É, provavelmente, por tudo isto que, pouco depois, D. Hugo recebe,
na sua qualidade de ‘patronus’ da dinastia, um pedido de ajuda por
parte do conde da Galiza, mostrando-se duplamente ameaçado:
pelos ‘sanchistas’ e pela política de ligações do conde de Portugal! É
nesse contexto que o abade, no dizer do prólogo do Pacto, envia o seu
representante, a fim de que, entre os primos, se faça um acordo.
O estudo minucioso dos nomes e funções constantes do diploma
das doações henriquinas da Sanábria mostra como o conde
apontava, muito para além das fronteiras do condado de Portugal,
em estabelecer uma rede mais alargada de relações, verdadeira
tentativa de frente luso-leonesa para a qual importa encontrar o
objectivo. E este parece claro no contexto crítico do triénio 1103-
1105: só podia ser o problema da ameaça de sucessão no trono régio.
Com esta rede, Henrique, não pretendia apenas opor-se a Sancho
mas, também, ao primo, cujo factor clunisino de apoio, na luta pelo
poder, sabia ser menor que o seu! Para isso tinha preparado o terreno,
projecto no qual estas diligências se incluem; mas também outras.
53 - Torquato de Sousa SOARES. “O governo de Portugal pelo conde D. Henrique de Borgonha: suas relações
com as monarquias leonesa-castelhana e aragonesa”. RPH, 1974, pp. 365-397.
54 - Ch. BISHKO. Art. cit., 1971, p. 186-188.
55 - IDEM, Ibidem, pp. 156 s.

89
Internamente, em 1103, juntamente com o bispo D. Geraldo,
conseguira do papa o reforço do poder eclesiástico de Braga56,
confirmando-a como metrópole, criando assim uma igreja
portucalense autónoma, que sujeitava a si nove sufragâneas: as quatro
do seu condado (Coimbra, Porto, Viseu e Lamego) e cinco da antiga
Galécia (Astorga, Lugo, Tui, Mondonhedo e Orense). A atribuição
de Coimbra, sufragânea da antiga metrópole da Lusitânia foi, para
Portugal, como diz Erdmann, ‘da maior transcendência’57 pois, sendo a
maior cidade de Portugal e estando na fronteira, teria papel promissor
nas futuras conquistas. Por outro lado, ao aceitar esta divisão, o Papado
e a Cúria procediam à alteração do secular agrupamento provincial
dos bispados, que datava do Império romano!
D. Henrique contribuiria, pouco depois, para melhoramentos
em Coimbra: para obviar às carências materiais da sua sé, faz-lhe
generosas mas acauteladas doações. Entre estas a do velho e rico
cenóbio de S. Mamede do Lorvão, que ‘nem rei nem conde’ poderiam
anular, intitulando-se no diploma de um poder de justificação nova:
‘Eu Henrique, pela graça de Deus, conde e senhor de todo o Portugal’,
fórmula, que deveremos ler como nítida reivindicação da ‘potestas
regia’, mais do que formulário de chancelaria!58
É certo que a definição do poder metropolitano de Braga, depois
da morte do conde, sofrerá muita contestação, quer por Toledo,
quer por Compostela. Mas, em 1114, a D. Maurício é confirmado o
título de arcebispo e consegue ligação directa com Roma, sem laços
de dependência do primaz de Toledo. Os novos perigos virão da
Compostela de Diego Gelmírez59 e da aventura em que D. Maurício
se deixou enredar, aceitando do Imperador germânico a eleição
papal (1118-1121). Caberia a D. Paio Mendes da Maia (1118-1138)
a difícil negociação com Calisto II para conseguir o regresso das
antigas sufragâneas. E se, apesar de tudo, Coimbra (1124) acabaria
por se ligar a Toledo, o precedente da tenaz luta eclesiástica por uma
‘igreja portucalense’, por impulso dos clunisinos, era significativo
manifesto para a luta política!
Nem com a morte de D. Raimundo (1107), nem com a de Sancho,
herdeiro designado (1108), nem mesmo com a do rei e do abade
56 - C. ERDMANN. Oc., pp. 16-18. José MARQUES. Oc., pp. 20-23, onde justifica este reforço de poder, sobre-
tudo a partir da doação de 12 de Abril de 1112, com a instituição do senhorio. Mais tarde, no primeiro semestre
de 1128, o infante D. Afonso Henriques doaria a D. Paio Mendes e ao seu cabido o direito de cunhar moeda, o
título de chanceler e a ampliação do couto.
57 - Idem, ibidem, p. 18.
58 - Livro Preto, cartulário da Sé de Coimbra. Ed. Manuel A. RODRIGUES; Avelino de Jesus da COSTA. Coim-
bra: Arquivo da Universidade de Coimbra, 1999, n. 59, doc. datado de Viseu, 29 de Julho de 1109, pp. 99-101.
Entre os 42 confirmantes incluía-se D. Bernardo, arcebispo de Toledo e primaz das Espanhas!
59 - Historia compostelana. Ed. Emma Falque REY. Madrid: Ediciones Akal, 1994, passim.

90
(1109), D. Henrique dará por caducadas as disposições do Pacto.
Pelo contrário, na indefinição dos primeiros anos do governo de D.
Urraca, aproveitando um certo vazio de poder, começa a agir como
único soberano no seu condado, deixando de comparecer na Cúria
régia e realizando actos de soberania.
Caído na ira regia de D. Urraca, coube a D. Teresa conseguir um
outro pacto (em Palência) recebendo a sua parte da herança paterna,
alargando o território com os senhorios de Zamora e Astorga. D.
Henrique começou, então, a intitular-se, provavelmente com orgulho
e esperança, ‘Comes in Alçamora et Asturica et in Portugal’60.
Parece, pois, bem clara a importância do factor Cluny e não
apenas na génese do Pacto Sucessório. Quando os laços de amizade
com o Imperador das Espanhas tinham afrouxado e, quando com D.
Raimundo nunca se tinham estabelecido muito fortes61, D. Henrique
era deles o maior beneficiário, não podendo desse entendimento
excluir-se o benefício directo para as suas tendências secessionistas.
As sucessivas investidas dos Almorávidas levaram D. Henrique
a voltar-se para Coimbra, onde acabava de surgir um levantamento
interno contra os seus homens: o foral de 1111 reconhece a
personalidade do concelho, prestigia a sua estrutura municipal e dá
mais valor à cavalaria vilã da região62. Mas, quando Santarém cai
nesse mesmo ano, a fim de guarnecer melhor a fronteira sul, tenta
recrutar novas forças em Astorga, onde a morte o surpreende, em
1112: tinha 37 anos63. Alargara, como se propusera, o condado que
lhe fora doado e levara até onde foi possível a sua autonomia; deixava
um projecto impossível de travar e, à frente do condado, D. Teresa,
viúva e jovem, com duas filhas e um filho de tenra idade.

A POLÍTICA DE D. TERESA

No seu governo do condado, D. Teresa ainda fará a Cluny, uma


última doação: o mosteiro de Vimieiro (1127), no território de Braga,
Nela nenhuma memória é feita do conde D. Henrique, mas, entre os
dezassete confirmantes figuram, o conde galego D. Fernando de Trava
60 - Ch. BISHKO. Art. cit., 1971, p. 175.
61 - Segundo Rodrigo XIMÉNEZ DE RADA. De Rebus Hispaniae, D. Afonso VI teria expulsado da corte o seu
genro D. Raimundo, por suspeita de reivindicação indevida do poder.
62 - LP. Oc., n. 623, pp. 836-837. Maria Helena Cruz COELHO. Homens, espaços e poderes, sécs. XI- XVI, I –
Notas do viver social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 109 s.
63 - Bernard F. REILLY. Cristianos y musulmanes (1031-1157). In: História de España, VI. Barcelona: Editorial
Crítica, 1992; IDEM. El Reino de León y Castilla bajo el rey Alfonso VI (1065-1109). Toledo, 1988. Segundo o
autor, o conde D. Henrique teria morrido em Astroga, vítima dos ferimentos recebidos na defesa da cidade, onde
se encontrava com sua mulher D. Teresa e a rainha D. Urraca, cercados por Afonso, o Batalhador, rei de Aragão.
Sobre a acção do conde D. Henrique veja-se ainda o belo estudo de Damião PERES. Como nasceu Portugal.
Porto: Portucalense Editora, 1970 (1.ª, 1939).

91
e a filha de ambos, D. Sancha: nesta data, tendo-se a ‘rainha’ afastado
da orientação autonómica de D. Henrique, Cluny é, tão só, objecto de
devoção privada da rainha e já não acto de qualquer plano de governo64.
Desviada daquele objectivo, não conseguiu manter a coesão com os
barões, que na corte henriquina tinham sido a sua base de apoio com
os mosteiros de que eram patronos ao receber os Costumes de Cluny
e, no espírito gregoriano, fazer unidade na sua restituição aos bispos,
sem perda dos benefícios e sufrágios espirituais65. Assim acontecera
com as famílias da Maia, Sousa, Riba Douro, Baião e os Braganções,
respectivamente nos mosteiros de Santo Tirso, Pombeiro, Vila Boa do
Bispo, Ansede e Castro de Avelãs66.
Com eles, Cluny aparecia, ainda que indirectamente, a contribuir
para a coesão do seu grupo, como, mas com severidade excessiva,
reconhece Mattoso: ‘a influência cluniacense na formação de Portugal
terá, portanto, de se procurar no terreno, ao mesmo tempo mais vago
e mais profundo, da atitude mental da classe dominante portucalense,
sobre a qual os mosteiros exerciam tão grande papel’67.
A partir de 1121 subalternizada D. Teresa à influência galega liderada
pelo clã dos condes de Trava, emerge a figura de D. Paio Mendes da
Maia, arcebispo de Braga, como pólo aglutinador da coesão colectiva
dos muitos dirigentes que se mantém fiéis e levam ao enfrentamento
em S. Mamede, prélio que a tradição situa junto a Guimarães e os Anais
de D. Afonso Henriques dizem travado em 24 de Junho de 1128, na
festa de S. João Baptista, o santo Precursor.. Mítica ou real, como refere
Maria Helena da Cruz Coelho68, ou ambas as coisas, a data marcava o
que já um artista plástico denominou com alguma propriedade, e os
historiadores consagraram, ‘A Primeira Tarde Portuguesa’69.
O papel que Cluny tivera no alvorecer desse primeiro dia não
deve ser supervalorizado, mas também, não pode ser ignorado.

64 - A doação de 1127 viria a ser anulada, um século depois, em 1227 quando o arcebispo de Braga invocou
nulidade do acto, por não ter sido feito com o consenso da Igreja bracarense. Procedeu seguidamente a nova
doação, mas acautelando a reserva de direitos episcopais.
65 - Alguns magnates resistiam aos bispos gregorianos. Segundo a Vida de S. Geraldo, Soeiro Mendes, enfrentou-
-o com aspereza! Em Leão e Castela foram os infanções (mais que a velha nobreza) que se mostraram mais
cultos e mais abertos às correntes europeias e mais generosos nas doações, imitando o rei. Mas, não parece
ter sido também assim entre nós. No entanto, segundo o testemunho da Cronica Adefonsi Imperatoris. Ed. M.
Pérez GONZÁLEZ. León: Universidad de León, 1997, I, 87, pp. 88-89, alguns «nobres de sangue, portugueses»
temporariamente ao serviço do imperador, acabaram por regressar ao serviço do rei mas, o conde Gomes Nunes,
fez-se monge de Cluny!
66 - José MATTOSO. A Nobreza medieval portuguesa: a família e o poder. Lisboa: Estampa, 1987, p. 270.
67 - IDEM, ibidem, p. 107.
68 - Maria Helena da Cruz COELHO. Art. cit.. In: Oc., p. 18.
69 - Painel de Acácio LINO (1878-1956). Lisboa: Palácio da Assembleia da República. José MATTOSO. “A pri-
meira tarde portuguesa”. conferência realizada em Guimarães, em 24 de Junho de 1978, nos 850 anos da efemé-
ride. In: IDEM. Portugal Medieval. Oc., pp. 11-35.

92
6- AGOIROS, FEITIÇOS E OUTRAS
MARAVILHAS: CRENÇA E CRÍTICA NO
PORTUGAL QUATROCENTISTA.
Margarida Garcez Ventura*

O fascínio que a Idade Média exerce sobre a gente comum dos


nossos dias radica, porventura, na imagem de um universo povoado
de forças enigmáticas, sombrias ou luminosas, que disputavam entre
si o domínio de almas e corpos. Cabe ao historiador de profissão
desmontar essa concepção, contrapondo-lhe um universo mental
muito mais matizado, pois, ao mesmo tempo que constata e descreve
a crença e a utilização de poderes “maravilhosos”, constata frequentes
recuos na admissão dessas forças.
Repare o leitor que logo neste primeiro parágrafo cada palavra
é uma armadilha. Sabemo-lo bem… É verdade que o rigor da ciência
histórica passa pelo rigor vocabular. Por isso – dizemo-lo com ironia -,
não basta colocar aspas para obter o perdão… Mas, como há que
prosseguir o trabalho, avancemos, na esperança de que, no final,
consigamos alguma definição conceptual: senão filosófica, pelo
menos em termos operacionais.
Também é certo que o tema proposto se configura de extrema
complexidade, a qual não devemos escamotear em prol da brevidade
do tempo de exposição ou das páginas concedidas… Tentaremos,
pois, respeitar a complexidade pugnando pela clareza.
Apesar das dificuldades, valerá a pena explorar neste Colóquio a
questão enunciada, pois é larga a posteridade brasileira dos “agoiros,
feitiços e outras maravilhas” da medievalidade lusa e europeia em
geral, bem miscigenados com elementos índios e africanos…: tudo
isso permaneceu ao longo dos séculos, apesar da constante didáctica
eclesiástica, dos processos canónicos e civis, das grandes correntes
filosóficas do racionalismo, do iluminismo e do positivismo…
Comecemos pelas fontes. Mais do que textos literários – leia-se
ficcionais – usaremos textos normativos, quer de índole jurídica, quer
de intencionalidade didáctica no plano moral, religioso ou político:
actas de sínodos, manuais de confessores, ordenações do reino;
recorreremos a documentos da chancelaria régia, em particular
às cartas de perdão; usaremos a cronística, com a sua intencional
selecção e narrativa dos factos; estarão presentes algumas das obras
*
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Academia Portuguesa da História.

93
produzidas pelos príncipes de Avis, obras nas quais a reflexão moral e
política são o objectivo ou suportam outra finalidade mais explícita.

O campo é vasto e há que conhecê-lo e delimitá-lo. Veja-se como


no título colocámos agoiros e feitiços entre as “maravilhas”, pois, sob
esta categoria, cabe tudo quanto – ao quebrar as regras da ordem
natural das coisas -, suscita o nosso olhar de espanto, de dúvida, de
admiração ou de medo. Por isso, a primeira tarefa será percepcionar
o que cabe neste espectro.
O clássico estudo de Jacques Le Goff revela-se curto… Mas,
o trabalho basilar está feito desde que os Padres da Igreja se
confrontaram com práticas remanescentes do sagrado pré-cristão.
Depois, ao longo da Idade Média, o seu inventário (com alguma
sistematização) foi sendo realizado para servir as necessidades
pastorais ou judiciais. Por isso, andam a par a enumeração dessas
“maravilhas” – ou melhor, como dizem os textos, “falsas maravilhas”
– com os fundamentos e com a proposta de emenda dos que as
praticam ou delas colhem benefícios.
O rol dessas práticas é bastante estável pois tem uma origem única,
de acordo com a enumeração agostiniana continuada, no espaço do
noroeste peninsular, por São Martínho de Dume1: a humanidade
abandonou o Criador e, instigada pelo demónio, prestou culto às
suas paixões e às forças da natureza; tendo sido quebrado o laço
de confiança entre Deus e o homem, ficou alterada toda a relação
da humanidade com a natureza e com o tempo. A intervenção de
Deus na história, através da vinda de Cristo, libertou a humanidade
dos enganos do demónio, reequacionando a sua posição nos planos
divinos e no conjunto da natureza criada por Ele criada. Por isso, só
por acção do diabo podem os homens voltar a cair nos antigos erros
mencionados pelo apóstolo dos suevos: entre outros, a adivinhação
através do voo ou do piar das aves, exame de vísceras e das chamas
sagradas… E conclui: “não mandou Deus que o homem conhecesse
o futuro, mas que, vivendo sempre no seu temor, esperasse d’Ele
orientação e auxílio para a sua vida”.

1 - Cfr. Martínho de BRAGA. Instrução pastoral sobre superstições populares. De correctione rusticorum. Edição,
tradução, introdução e comentários de Aires A. NASCIMENTO. Lisboa: Edições Cosmos, 1997, pp. 55s e § 11,
12 e 13; Cfr. José LEITE DE VASCONCELOS. Religiões da Lusitânia, 4 Vols. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1988-1991, Vol. III; Carlos Alberto FERREIRA DE ALMEIDA. Paganismo - sua sobrevivência no ociden-
te peninsular. Sep. de In Memoriam António Jorge Dias. Lisboa, 1974. Cfr. a recente análise, descritiva e positiva,
de Ana Maria RODRIGUES (in História religiosa de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, pp. 43-45).

94
Como ficou dito, quer os conteúdos quer o fundamento da
condenação (e mesmo da crítica) da prática das “falsas maravilhas”,
prolongam-se com enorme estabilidade ao longo dos séculos.
Tendo em conta a economia deste nosso trabalho, comecemos por
nos fixarmos na preciosa fonte histórica que é o Libro de las confesiones
escrito entre finais do século XIII e inícios do século XIV pelo
salamantino Martín Pérez. Trata-se de um dos manuais de confessores
mais divulgados não só nos meios eclesiásticos, mas na corte do
Portugal quatrocentista. Constava da biblioteca de D. Duarte2, que o
conhecia bem e se lhe referiu no Leal ConselheiroI3. Julgamos que é um
bom ponto de partida para esta reflexão, pois nada escapa à análise
do autor, que por diversas vezes faz referência à adivinhação e outras
“maravilhas falsas”, colocando-as entre os pecados mortais4. Tomemos
boa nota das razões dadas para a condenação dessas práticas.
Martín Pérez começa por afirmar que aqueles que praticam diversas
formas de adivinhação desprezam o poder e a sabedoria de Deus,
pois desejam saber as coisas que Ele guardou para si e não revelou
ao homem5. Segue-se a listagem dessas formas, todas realizadas por
conjurações e obras do diabo: necromancia, geomância, escritos para
chamar o demónio, hidromância, aeromância, piromância; também
existem outras maneiras a que chamam feitiços ou malefícios, que
costumam fazer-se com rãs, cristas de galo ou imagens de cera;
outras a que chamam sortilégios, que se fazem deitando sortes com
algumas palavras de esconjuras, encantamentos e evocação do diabo;
o “prestigium”, que é uma forma de encantamento que faz as coisas
parecer o que não são (por exemplo, um outeiro parecer um castelo,
ou uma corda parecer uma serpente), coisa grave pois escarnece da
capacidade natural dos sentidos; também se pode adivinhar através
das estrelas, constelações e sinais dos planetas, prática que dá pelo
nome de mathesis; também através do voo e do canto das aves ou
das entranhas dos animais; através da consideração de determinados
dias, horas e lugares; também as falsas profecias inspiradas pelo
diabo; outra forma é ter um espírito pitónico6; adivinhar através de
2 - D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Transcrição
de João José ALVES DIAS, Introdução de A. H. de OLIVEIRA MARQUES e João José ALVES DIAS. Lisboa:
Editorial Estampa, 1982, p. 208, em que se menciona “dous livros de martiym PÉREZ”, sem que saibamos a que
partes se refere ou se estavam traduzidos.
3 - D. DUARTE. Leal Conselheiro [L. C.]. Actualização ortográfica, introdução e notas de João MORAIS BAR-
BOSA. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, Cap. XXVI, p. 138 - “um livro que chamam Martim
PÉREZ” - e Cap. LXVII, p. 319, “um livro que fez um que se chama Martim PÉREZ”.
4 - Martín PÉREZ, op. cit., pp. 585-588.
5 - Classificamos a adivinhação e práticas concomitantes como “crimes contra Deus” e não “contra a moral e os
bons costumes”, como escreveu Luís Miguel DUARTE na sua notável obra Justiça e Criminalidade no Portugal
Medievo (1459-1481). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 368.
6 - Act., 16, 16.

95
oráculos ou de sonhos; adivinhar com cera, pez, chumbo ou outro
metal; também através de palavras dos salmos ou dos evangelhos
apontadas ao acaso; adivinhar com facas ou punhais…
Martín Pérez insiste que estas e outras formas de adivinhação e
de operar falsas maravilhas são formas, suscitadas pelo demónio,
de desprezar e desonrar a inatingível sabedoria de Deus. Segue-se
a enumeração de outros conhecimentos com origem diabólica:
esconjurar os diabos, nuvens ou enfermidades, usar fórmulas para
forçar amores ou ódios, fazer encantamentos com objectos para
curar, deitar cartas ou trazer nóminas com palavras ou sinais não
cristãos; colher ervas e pendurá-las ao pescoço…
O panorama não poderia ser mais completo, nem os fundamentos
para a condenação mais claros. E, segundo Martín Pérez, doutores
e letrados seriam dos mais tentados – por causa da soberba que
costuma atacá-los - a praticar as “ciências de adivinhar”, praticando e
ensinando a nigromância e a “arte nicoria”, fazendo encantamentos,
evocações e escritos para chamar os demónios7.
Martín Pérez testemunha também a existência de homens e de
mulheres que fazem da adivinhação o seu ofício8.
Enfim, um mundo povoado destas práticas, em que as “falsas
maravilhas” roçavam o território do milagre; também um mundo
com zonas de fronteira, em que frequentemente o ilícito se separava
do lícito consoante as palavras inscritas ou pronunciadas…

Sigamos o comportamento de homens e mulheres que praticavam


o que acima foi enunciado, os quais, no quotidiano concreto, são
objecto das preocupações da Igreja. Disso dão testemunho as actas
das assembleias sinodais. Não esperemos encontrar novidades, mas
sim a renovação justificada da condenação desses actos e alguma
achega para a clareza conceptual e vocabular que tentamos obter.
Respiguemos alguma informação.
A 64ª constituição do sínodo da Guarda de 15009, já nos limites
da Idade Média, começa por afirmar que só Deus pode conhecer
o que não está patente, assim como as coisas futuras. Porém,
alguns homens e mulheres contra a sua consciência e ofendendo
Deus, tentam chegar a esse conhecimento, “fazendo-se feiticeiros,
adivinhadeiros, encantadores, sorteiros, agoureiros, benzedeiros,
usando de outras semelhantes artes”.

7 - Martín PÉREZ, op. cit., p. 441.


8 - Idem, Ibidem, p. 445.
9 - Synodicon Hispanum. Dir. António GARCIA Y GARCIA. II – Portugal, por Francisco RODRIGUEZ, Aveli-
no de JESUS COSTA e Isaías da ROSA PEREIRA. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, pp. 257-258.

96
Como seria de esperar, tais comportamentos são identificados
noutras assembleias sinodais anteriores e havidos por extremamente
graves (frequentemente no mesmo plano da heresia), sempre com
absolvição reservada ao bispo ou seu vigário.
Assim, por exemplo, no sínodo de Lisboa de 140310, estão
mencionados os que adivinham e lançam sortes, assim como os que
fazem “escritos” para evocar os demónios. Também no sínodo de
Braga de 147711 se recomenda aos abades, priores e outros que têm
cura de almas que saibam se na sua freguesia existem “feiticeiros,
benzideiros e adivinhadores”.
É ainda do contacto com os fiéis nas suas paróquias que saem
as profícuas fontes de informação que são as Visitações pastorais.
Entre vasta possibilidade de escolha, apontamos as preocupações de
correcção manifestadas pelo célebre D. Jorge da Costa, cardeal de
Alpedrinha. Por volta de 1460 recomenda aos párocos da diocese
de Lisboa que denunciem publicamente por excomungados os
feiticeiros, adivinhos, encantadores, benzedeiros, agoireiros e
sortilheiros12.
As Ordenações régias contêm expressa condenação da feitiçaria,
assim ficando incluída entre os vários impedimentos para o normal
gozo de alguns direitos13. Efectivamente, este é um dos casos em que
a gravidade da ofensa a Deus, assim como o prejuízo para todos,
impõe a intervenção régia, quer na adequação da lei do reino às
exigências da Igreja, quer agindo como braço secular.
O rei terá, por dever de ofício, de castigar tudo e todos que se Lhe
oponham e, por conseguinte, a “arte de feitiçaria e todos aquelles,
que della usarem”. Estamos a citar as palavras da ordenação de D.
Afonso V, que torna mais abrangente e confere justificação teórica
a uma lei de D. João I, datada de 140314. Esta estava especialmente
direccionada ao achamento de tesouros e só castigava com prisão
e açoites públicos; a lei afonsina, para além da já mencionada
justificação baseada nas obrigações da função real, não só penaliza o
uso da feitiçaria para o achamento de ouro ou prata como prevê, para
certos casos, o degredo para Ceuta e mesmo a pena de morte. De
10 - Synodicon…, p. 321.
11 - Synodicon…, p. 119.
12 - Margarida GARCEZ VENTURA. A Colegiada de Santo André de Mafra (séculos XIV-XVIII). Transcrição pa-
leográfica do Fundo Documental e Estudo Introdutório. Mafra: Câmara Municipal, 2002, Doc. LXXX “[Cap. 12],
idem. As Visitações Gerais de D. Jorge da Costa. Notícia e breve análise. Sep. das Actas do III Congresso Histórico
de Guimarães - “D. Manuel e a sua época”. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2004, idem em Estudos
em Homenagem ao Professor Doutor José Marques. 4 vols., Porto: Faculdade de Letras, 2006, Vol. 3, pp. 201-225.
13 - Para herdar, p. ex. Ordenações Afonsinas [O. A.]. Nota de apresentação de Mário Júlio de ALMEIDA COSTA
e nota textológica de Eduardo BORGES NUNES. 5 Vols., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, Liv. 5,
Tít. 100.
14 - O. A., Liv. 5, Tit. 42 (“Dos Feiticeiros”).

97
resto, as práticas mencionadas são idênticas: lançar varas ou sortes,
fazer evocações do demónio através de escritos, ver em espelhos ou
noutros elementos.
As práticas com a finalidade de achar tesouros eram muito
frequentes, tanto que são previstas na listagem dos Direitos Reais,
encomendada por D. Duarte ao Doutor Rui Fernandes e depois
passada a ordenação do reino15. Aqui podemos aumentar o nosso
léxico: fala-se de “industria” 16usada para achar tesouros, em
particular “arte mágica, ou feitiçaria”.
Seguido de uma crítica global (que mais adiante mencionaremos)
apresentamos, para finalizar, um rol de D. Duarte17: profecias, visões,
sonhos, prever o futuro, “virtudes das palavras”, pedras e ervas,
sinais dos céus e na terra, em pessoas e animais, terramotos, graças
especiais outorgadas por Deus a alguns, astrologia, necromância,
geomância e “outras semelhantes ciências, artes, experimentos e
subtilezas” e fazer prestidigitação…

*
Até agora movemo-nos na constatação da realidade dos agoiros, feitiços
e outras maravilhas… nas várias formas que tomava, na justificação da
sua condenação, e nalgumas consequências para os culpados.
Não vamos explorar a casuística. Como mais adiante se dirá mais
pormenorizadamente, são poucos os protagonistas conhecidos e
estável a tipologia dos que chegaram até nós.
Contudo, vamos trazer-vos um protagonista colectivo: o povo
de Lisboa. Estava eminente uma grande batalha entre os exércitos
do rei de Castela e de Portugal, essa que se iria travar nos campos
de Aljubarrota nas vésperas do 15 de Agosto de 1385. Segundo o
testemunho de Fernão Lopes18, ambos os reis tinham quem pedisse
a Deus que estivesse com o seu “bando”. Por João I de Castela
rezava a esposa, donas e donzelas. Como D. João de Portugal não
era casado, nem tinha irmã ou parente feminina que intercedesse
por si, é a cidade de Lisboa que irá assumir essa missão. Foram
chamadas “pessoas religiosas, doutores e mestres em theologia”
para darem o seu parecer sobre a forma de realizar tais deprecações.
Ora, para conseguir que Deus os ajudasse e aplacasse a ira que
porventura merecessem os seus pecados, disseram ser necessário

15 - O. A., Liv. 2, Tít. 24, § 30.


16 - Note-se a contribuição para a história deste conceito.
17 - L. C., Cap. XXXVII, p. 184.
18 - Fernão LOPES. Crónica del Rei Dom Joham I de Boa Memoria e dos Reis de Portugal o Décimo, Parte Segunda
por William J. ENTWISTLE. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1977, Cap. XLI.

98
que o povo não perseverasse nas suas “maldades”. Que “maldades”
eram essas, bem sabiam os oficiais e homens bons dos mesteres que
prometeram extirpa-las para sempre: pecados e danados custumes
dos gentios”. O cronista vai especificando: idolatria, feitiços e
ligamentos, evocar diabos, sonhos, lançar roda, sortes, e outras
coisas coisa que não possam acontecer naturalmente19. Fica também
proibido cantar janeiras e maias ou outro mês do ano, adivinhar
com águas ou lançar sortes, carpir e bradar sobre os finados.
Como dissemos, não vamos entrar pela exposição de
comportamentos particulares. Aliás, para o século XV, os casos estão
escassamente documentados20. Faltam-nos, de facto, as sentenças
emitidas pelos tribunais eclesiásticos. Os testemunhos só abundam
no espólio do Tribunal do Santo Ofício instituído em Portugal, como
é sabido, em 154721.
Nas nossas andanças de investigação temos percorrido
sistematicamente as chancelarias de D. João I, D. Duarte e parte da
de D. Afonso V. No que diz respeito ao tema em estudo, encontrámos
somente um caso não mencionado por Baquero Moreno: um tal João
Negreiro, preso por feiticeiro, que foge quando está a ser transferido de
Arcozelo, onde morava, para a cadeia da comarca de Trás-os-Montes.
Desconhecemos o que fizera, mas não era o mais grave previsto das
Ordenações Afonsinas, isto é, da prática da feitiçaria não causara
morte ou desonra de ninguém e a notícia chega-nos através da
carta de perdão da fuga22. Os nove casos descritos por Baquero
Moreno envolviam como agentes activos quase sempre mulheres
“mundanas” e alcoviteiras, que praticavam a feitiçaria a pedido de
esposas com a intenção de forçar o amor de maridos desatentos…
Nos raros casos em que a carta de perdão descreve em que consistia
a feitiçaria, lemos práticas de magia simpática (figuras de chumbo
e de terra lançadas à água ou atadas com um cordel sobre as quais
diziam orações e outras palavras), de utilização de mezinhas e de
lançamento de água, farinha e ramos de oliveira.

*
19 - Menciona ainda outras práticas que não conseguimos identificar: “nem descantaçoões nem dobra de vedeira
nem carautollas”. Note-se a referência à natureza, de que adiante falaremos.
20 - Vd., entre outras obras, Humberto BAQUERO MORENO. A Feitiçaria em Portugal no século XV. Sep. de
Anais, 2ª série, 29. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1984; Maria Helena da CRUZ COELHO. Supersti-
ção, fé e milagres na Idade Média. Coimbra: INATEL, 1995; Maria da Conceição FALCÃO FERREIRA. Breves no-
tas sobre feitiços no Portugal de Quatrocentos. Sep. de Água Mole, 3. Braga,1989; algumas indicações interessantes
em Isabel Maria de MOURA RIBEIRO QUEIRÓS. Theudas e mantheudas: a criminalidade feminina no reinado
de D. João II através das cartas de perdão. 1481-1485. 2 Vols. Tese de mestrado em História Medieval (exemplar
policopiado). Porto. Universidade do Porto, 1999.
21 - Isaías da ROSA PEREIRA. Processos de Feitiçaria e de Bruxaria na Inquisição em Portugal. Sep. de Anais, 2ª
série, 24. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1977.
22 - Carta de perdão de 20 de Abril de 1446, TT, Chanc. D. Af. V, Liv. 5, fl. 27v e 43v.

99
Ponderados os conteúdos de todo esse universo afim à
adivinhação e à feitiçaria, ponderadas as razões da sua condenação
e vislumbrados alguns casos particulares, fica-nos a certeza da sua
omnipresença na sociedade medieval.
Seguidamente, o que nos importa é verificar a existência de
alguma crítica à admissão generalizada sobre a real existência
desses fenómenos, assim como perceber algum alargamento das
justificações para a sua censura para além das explicitamente
mencionadas pelas autoridades eclesiásticas.
As respostas não são simples.
Os textos parecem admitir tacitamente a possibilidade de
discernir o que só Deus conhece ou de alterar o curso da natureza.
A dificuldade - nossa e deles - começa na subtil destrinça entre a
alteração da ordem natural das coisas realizada por Deus – é isso o
milagre – e aquela que é produzida sob influência do demónio. Mais:
há que entender, em termos de consequência, como é que na Idade
Média se foi colocando a questão de natureza ou da ordem natural,
em correlação com o “artifício”23 e o acaso e, muito mais, na sua
relação com a Graça divina. Em muitas das fontes atrás referidas não
está omissa a licitude de detectar as regularidades ou as constantes
da ordem natural para as usar em proveito do homem. Uma ténue
linha separa esta prática da tentativa de manipulação da natureza,
linha que se vai consolidando ao ritmo do conhecimento empírico e
científico para a separação entre prognóstico e ciência24.
Sabemos que no Portugal quatrocentista, em particular na Geração
de Avis, está presente toda uma reflexão sobre a natureza, na sua
correlação com Deus. Aquilo a que chamamos natureza, escreveu D.
João I no Livro da Montaria, é a natura naturanda, criada por Deus e
por ele ordenada. Deus imprime na natureza uma ordenação regular
dependente de uma causa exterior, da qual participam, de diversos
modos, todas as criaturas. Do mesmo modo o infante D. Pedro – ou
Frei João Verba - analisa os conceitos de natureza, acaso e artifício25
Estes pressupostos são de extrema importância, nomeadamente
no que diz respeito à chamada astrologia judiciária. Por aqui
caminhamos para a crítica e para o recuo que o título prometia…
De facto, é necessário lembrar que a astrologia judiciária estava em
23 - Vd. supra n. 17.
24 - Martim de ALBUQUERQUE. Maquiavel e Portugal (Estudos de História das Ideias Políticas). Lisboa:
Aletheia Editores, 2007, p. 153.
25 - Livro de Montaria feito por El-Rei D. João I de Portugal. Introdução, leitura e notas de Manuela MENDONÇA.
Ericeira: Mar de Letras, 2000, Cap. XVIII; Livro da Virtuosa Benfeitoria, In: Obras dos Príncipes de Avis.
Introdução e revisão de Manuel LOPES DE ALMEIDA. Porto: Lello & Irmão-Editores, 1981, Livro Primeiro,
Cap. XI; Cfr. Pedro CALAFATE. “O conceito de ordem natural no Livro da Virtuosa Benfeitoria”. In: Biblos, Vol.
LXIX (1993), pp. 253-263.

100
uso por toda a Europa, fruto da convicção na estreita correlação
entre o homem, o céu e a terra26 e, por isso, na influência dos corpos
celestes sobre a natureza terrestre e sobre o homem. Em Portugal, ela
foi usada ou registada por médicos famosos e cronistas, como Rui
de Pina e Zurara; e, na corte, conhecem-se obras de astrólogos cujas
obras figuram nas livrarias dos príncipe se Avis27.

A normal utilização da astrologia judiciária nas cortes da cristandade


da baixa idade média torna mais digno de interesse qualquer recuo ou
crítica a esta prática. É este o caso de textos da autoria de D. Duarte
ou que se lhe referem. Textos tanto mais preciosos quanto não são de
eclesiásticos ou letrados, antes significativos de uma cultura média, se
não plural, pelo menos não unívoca no Portugal quatrocentista. Se
cruzarmos trechos da prosa eduardina, conseguiremos uma coerência
de pensamento apoiada na observação concreta que os tornam fiáveis
como fonte para a mentalidade da corte e mesmo de certos sectores da
sociedade em geral28.
Vejamos como Rui de Pina relata o que se passou no dia em que
D. Duarte subiu ao trono29. Passemos ao lado da heurística sobre as
intenções gerais da obra de Pina, e centremo-nos no episódio. No dia
15 de Agosto de 1433, depois de se ter confessado e comungado, D.
Duarte estava prestes a ser levantado por rei quando foi interpelado
por Mestre Guedelha, um judeu seu médico e grande astrólogo. O
aviso não podia ser mais claro: que deixasse passar o meio dia, pois
a hora marcada para a cerimónia era muito perigosa, pela posição
de Júpiter e do Sol e por outros sinais do céu. O infante respondeu-
lhe que não duvidava que a astronomia era uma das ciências
aprovadas, como não duvidava que os astros – “corpos sobrecelestes”
- influenciavam os “corpos inferiores”. Todavia, o que ele acredita
26 - Bernard GUNÉE. L’Occident aux xive et xve siècles. Paris: PUF, 1971, pp. 108s.
27 - D. João I, no seu Livro de Montaria, cita de obras de astrólogos, não só de Ptolomeu, mas do catalão João
Gil e de Aly Aben Ragel, autor árabe que Afonso X mandara traduzir para castelhano; D. Duarte possuía dois
livros de astrologia (Aires A. NASCIMENTO. “As Livrarias dos Príncipes de Avis”. In: Biblos, Vol. LXIX (1993),
pp. 267-287, p. 286). É no plano que se aproxima da astrologia geográfica que seguem mestres astrólogos na frota
que levou para Itália D. Leonor, filha de D. Duarte, aquando do seu casamento com Frederico III, assim como
outros muitos ao serviço do infante D. Henrique.
28 - Cfr., entre outros, os nossos D. Duarte, o Eloquente. Lisboa: QuidNovi / Academia Portuguesa da História,
2009, A Corte de D. Duarte. Gijón: Editorial Trea (no prelo) e “Uma lâmpada de prata e muito mais. Testemunhos
de D. Duarte sobre a santidade de Nuno Álvares Pereira”. Comunicação apresentada ao Colóquio O Condestável
S. Nuno de Santa Maria, organizado pela Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa em conjunto
com a Academia Portuguesa da História (Nov. 2010, no prelo).
29 - Rui de PINA. “Chronica do Senhor Rey D. Duarte”. In: Crónicas de Rui de Pina, Introdução e revisão de
Manuel LOPES DE ALMEIDA. Porto: Lello &Irmão-Editores, 1977, Cap. II (“Como ho Ifante Dom Duarte foy
alevantado por Rey, e como foy aconselhado, que naquella ora se nom alevantasse”).

101
é em Deus, que tudo governa e espera com a sua graça e ajuda de
Nossa Senhora, bem governar. Insiste Mestre Guedelha que não vê
inconveniente em se adiar um pouco a cerimónia para se realizar
“prosperamente”. Mas D. Duarte declara que não o faz porque não deve
fazê-lo, quanto mais não fosse para não parecer que tem pouca esperança
e fé em Deus. O diálogo termina com a profecia de Mestre Guedelha:
que ele reinaria poucos anos e com grandes fadigas, e trabalhos.
Rui de Pina, que escreveu já em tempos de D. Manuel, diz que os factos
confirmaram a profecia… e ajudou a criar a lenda. O cronista não descura
também assinalar que a lição fora aprendida pelo infante D. Pedro, que,
já regente, chama mestre Guedelha para regular, “segundo as ynfluencias
e cursos dos Planetas, a melhor ora e ponto” para o levantamento de D.
Afonso V30. E apesar de disto, dizemos nós, aconteceu Alfarrobeira.
Do aviso de Mestre Guedelha, constam os elementos da
adivinhação através da observação dos astros, com vista à definição
de dias e horas favoráveis ou desfavoráveis; da resposta de D. Duarte
consta, por um lado, a crença na influência dos astros sobre a vida na
terra e, por outro, a proclamação do senhorio de Deus no decorrer
dos acontecimentos.
Convém perceber a que influência se refere o monarca, tanto mais
que declara saber que a “astronomia” é uma das ciências permitidas
e aprovadas. De facto, D. Duarte, desejando uma explicação cabal
sobre o assunto, de acordo com a doutrina da Igreja, solicitara-a ao
Doutor Diogo Afonso Mangancha31. A resposta vem fundamentada
nos canonistas e em São Tomás de Aquino: é lícito tentar prever
fenómenos naturais e a tendência de uma ou outra pessoa para
determinada doença; quando, porém, a previsão incide sobre as
“obras dos homens que tem liure arbitrio”, aí é proibido pela Igreja;
em assuntos importantes ou perigosos dever-se-ia, sim, usar a
astronomia com prudente consulta de três peritos. O Doutor conclui
conferindo a Deus o poder supremo sobre tudo e todos.
É bem perceptível a informação fornecida pelo grande jurista no
pensamento de D. Duarte registado por Rui de Pina, assim como em
vários escritos eduardinos. Não é possível estabelecer uma cronologia
certa entre o parecer do Doutor Mangancha esses escritos. Porém,
é pouco provável que o parecer seja anterior a 1431, data em que
Mangancha é mencionado como “doctor utrius que iuris et magister
in artibus”32.

30 - Rui de PINA. “Chronica do Senhor Rey D. Affonso V”. In: Crónicas…, Cap. II, pp. 588-589.
31 - Livro dos Conselhos…, pp. 204-205.
32 - Judite Antonieta GONÇALVES DE FEITAS. A Burocracia do “Eloquente” (1433-1439). Os textos, as normas,
as gentes. Cascais: Patrimonia, 1996, p. 171.

102
Assim, se o comportamento de D. Duarte no dia da sua subida
ao trono e se alguns escritos adiante mencionados e que constam do
Leal Conselheiro, puderam beneficiar do magistério de Diogo Afonso
Mangancha, tal não sucedeu com um testemunho de 1429 que merece
a nossa atenção. Trata-se de um esclarecimento inserido na “carta
de crença” que D. Duarte escreve ao infante D. Fernando para ser
entregue ao infante D. Pedro33. Em causa estavam desavenças entre
D. João I e os filhos, e de estes entre si, com origem em vários mal-
entendidos e agravos relacionados com o casamento de D. Duarte
com a infanta D. Leonor de Aragão (Setembro de 1428). A certa altura
D. João I teria exigido que a festa de casamento não se realizasse em
Évora, como estava previsto, porque havia peste. Pelas palavras de D.
Duarte percebe-se que o monarca tinha tomado a peste como sinal de
Deus para alterar o local e data da cerimónia, que desejava ver adiada.
Para além da peste, em si mesma um sinal divino, o desencontro entre
D. João I e o infante teria sido interpretado como determinado pela
influência dos astros. Ora D. Duarte reduz o acontecimento a factos
puramente naturais e racionais: não foi ao encontro do pai porque o
mensageiro tardou por causa da peste que grassava na zona de Évora
e porque seu pai lhe escrevera dizendo que iria para Trás-os-Montes
na data em que ele estaria em Coimbra. E dá o toque final: é bom
que se lembrem que “o homem sabedor se asenhorea das estrelas”, que
não podem mais do que sugerir-nos alguma tentação, inclinação ou
desejo… mas Deus tem poder sobre todas as coisa e nós participamos
desse poder, através do livre arbítrio que Deus nos deu… 34Por isso,
confia que D. João I, como bom homem, não fará caso das estrelas
nem da astrologia.
Verdade seja dita que constava ser D. João I muito céptico acerca
de profecias e feitiços. A informação é de Zurara35, quando descreve
a reacção do rei à forma como o pior do Hospital e o capitão
Afonso Furtado, enviados para espiar o ancoradouro de Ceuta, lhe
comunicam a forte possibilidade de uma rápida conquista: um,
transmitindo-lhe uma profecia moura que ouvira ainda em tempos
de D. Pedro, outro pedindo-lhe duas cargas de areia, um novelo
de fita, meio alqueire de favas e uma escudela. Quanto à primeira
informação, diz Zurara, que o rei “tijnha em pequena comta
33 - Margarida GARCEZ VENTURA, D. Leonor de Aragão. A Triste Rainha. 1402 (?) – 1445. Lisboa: QuidNovi
/ Academia Portuguesa da História, 2011, p. 24; Monumenta Henricina. XV Vols. Coimbra: Ed. Comissão Exe-
cutiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960-1974, III, pp. 300-304, doc.
142; Livro dos Conselhos…, pp. 50-55.
34 - D. Duarte define assim o livre arbítrio (L. C., Cap. VI, p. 53): “A quarta [vontade], do livre alvidrio, como
Senhor entre todas manda connosco o que se faça em todas as cousas que por nosso escolhimento fazemos” .
35 - GOMES EANNES DE ZURARA. Crónica da Tomada de Ceuta por El Rei D. João I. Publicada por Francisco
Maria ESTEVES PEREIRA. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1915, Caps. 17 e 18 (pp. 56-59).

103
semelhantes juízos”. E quando lhe pediram o material acima descrito
– que afinal se destinava à construção de modelos do porto e da
fortaleza - exclama: “huũ me falla em estrollomia, outro me falla em
semelhança de feitiços. Quem auia de cuidar que taaes dous homees ~
ouuessem de trazer semelhamte rrecado”.
Voltemos a D. Duarte, como ponto alto do recuo e da crítica. Não
que nos diga algo muito diferente do que lemos como atribuído a D.
João I ou escrito por ele, pelo infante D. Pedro ou muito diferente
do que era doutrina da Igreja. Todos se movem, afinal, somente no
plano da astronomia/astrologia como conhecimento da influência
dos astros nos comportamentos previsíveis dentro da ordem natural.
Fixemo-nos, pois, em D. Duarte, seleccionando dois temas: recusa
em submeter-se ao determinismo apontado pela conjugação dos
planetas; desconfiança na possibilidade de manipular a vontade e os
sentimentos humanos. Os seus veementes escritos, nesta matéria,
encontram-se integrados noutros contextos não menos estruturantes:
o da fé na providência divina e o da defesa do livre arbítrio.
No capítulo XXXIX do Leal Conselheiro36 D. Duarte diz-nos
como se forma e se altera a condição humana. O soberano conjuga
os vários elementos, que em linguagem actual se situam no âmbito
da pertença a um país ou a uma linhagem, assim como a influência
do que comemos ou aquilo que aprendemos com as doenças,
acontecimentos ou amigos. No meio de todas estas condicionantes
aponta ainda: “das planetas, constelação”. Seguem-se esclarecimentos
e críticas com recurso a exemplos quotidianos e apelo às questões
teológicas que levantavam. Quando chega “às planetas” tem
especial cuidado em explicar que os “planetas” nos apontam o que
chamaríamos condições, nos induzem a inclinação do bem e do mal,
ao modo de tentações, mas nunca de tal forma que não as possamos
contradizer com a graça de Deus. Se assim não fosse, não teríamos
livre arbítrio: “Fica tudo em poder de nosso livre alvidrio, não nos
constrangendo a predestinação nem por ciência de Nosso Senhor
Deus.” É a recusa da “necessidade” que permite a cada um escolher e
aproveitar as influências inerentes à vida em sociedade. Mas é a graça
de Deus que permite transformar em bem todas as circunstâncias,
mesmo as mais adversas, pois “está escrito” que para aqueles que
«amarem o Senhor» “todas as cousas se lhes tornarão em bem”37.
D. Duarte não rechaça a “astronomia ou outras ciências ou artes”38:
só pede alguma ponderação antes de lhes dar crédito. Mas não assim
36 - A mesma listagem consta, de forma autónoma, no Livro dos Conselhos (p. 157).
37 - A mesma ideia no L. C.,Cap. V, p. 177.
38 - L. C., Cap. XXXVII, p. 187-188.

104
com “agoiros, sonhos, dar de vontade, sinais do céu e da terra”:
nenhum homem bom deverá tê-los em conta, pois é difícil discernir
se são obra de Deus ou do diabo. De resto, o conselho é sempre não
se preocupar com estas coisas, mas colocar a sua confiança em Deus.
Esta passagem, de grande profundidade teológica e vivencial,
terá de ser lida em interacção com outras. Conhecendo o modo
como as obras de D. Duarte foram escritas ou compiladas, a
custo se poderá estabelecer uma cronologia sequencial. Mas não
importa, pois o que interessa é a insistência no tema. Assim, por
exemplo, a explanação e o louvor da virtude da Prudência vêm
acompanhados com indicações sobre a consulta dos astros, sempre
com alguma desconfiança e dentro dos parâmetros outorgados pela
Igreja39; a listagem dos elementos intervenientes na formação e na
transformação dos homens, acima referida como integrado o Leal
Conselheiro, consta também do conjunto de papéis conhecido por
Livro dos Conselhos40 os argumentos e as citações da Escritura são
paralelos aos usados, mais resumidamente, na citada carta para o
infante D. Pedro, essa, sim, datada de 1429.
Com referência explícita ou simplesmente aludido41, é o livre
arbítrio, fruto da graça divina e por ela sustentado, que permite ao
homem conduzir a sua vida para além das circunstâncias, isto é,
“disposição dos corpos, idades e virtudes a que naturalmente cada
um nasce disposto, ou segundo o dito dos astrólogos que as planetas
por ordenança de Nosso Senhor o dotaram”42.
De tudo isto se deduz a responsabilidade individual. D. Duarte
critica aqueles que “têm desejo de cumprir suas más vontades” e
não se corrigem porque dizem que “os bens na vida presente vêm
da ventura e não por ordenança de Nosso Senhor”. E afirma que
para os “bons” tudo se converterá em bem… e termina afirmando
que, se buscarmos o Reino de Deus e trabalharmos com esforço e
perseverança, alcançaremos “o que Deus, direito e piedoso Senhor,
quiser de nos ordenar”, e não “pensar que virão por fortuna nem
constelação de planetas”, mencionando a propósito o exemplo de
Nuno Álvares Pereira43. Esperando sempre na misericórdia de Deus,
há que perseverar no bem, sem ligar a sinais ou sonhos44.

39 - L. C., Cap. LIII, p. 267.


40 - Livro dos Conselhos…, p. 157. Vd. supra n. 37.
41 - P. ex. no L. C., Cap. LXXVI, p. 339 ou no Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela que fez El-Rey
Dom Eduarte de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta. Edição Crítica por Joseph M. PIEL. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, p. 97.
42 - L. C., Cap. XXI, pp. 114-115.
43 - L. C., Cap. XXV.
44 - L. C., Cap. VI, p. 53.

105
Nunca é demais insistir na importância das afirmações de
alguns textos dos príncipes de Avis, sobretudo de D. Duarte, pelo
esclarecimento, equilíbrio e integração do uso da astronomia numa
visão sistémica do Homem perante Deus e o universo. D. Duarte
fica assim entre os grandes filósofos medievais – Nicolau de Oresme,
Gerson ou Pico de la Mirandola - que combateram a astrologia
porque “reduz a nada a liberdade humana”45.
A par com a salvaguarda do livre arbítrio, também o apego à
racionalidade fundamenta a crítica eduardina a crenças e profecias.
Como atrás foi dito, D. Duarte dá-nos uma lista de “virtudes e
ciências” a que muitos dão fé46: profecias, visões, sonhos, prever o
futuro, poder de certas das palavras, pedras e ervas, sinais dos céus e
na terra, em pessoas e animais, terramotos, astrologia, prestidigitação,
necromância, geomância e “outras semelhantes ciências, artes,
experimentos e subtilezas”. O monarca dá o conselho para ser seguido
por quem quiser: é melhor duvidar do que atrevida e estupidamente
acreditar. Mais: acredita no que a Igreja manda acreditar, não acredita
no que proíbe. Contudo, há acontecimentos tão estranhos aqui e ali
que só se podem explicar, não pela razão, mas porque são virtudes que
Deus quis conceder a certas pessoas47, e então entramos já em alguma
grande maravilha que para os cristãos é “mui evidente milagre”48.
Tudo o resto, diz, é mais que certo ser “engano e burla”.
Quanto aos “feitiços” que fazem com que um homem ou uma
mulher tomem a figura de animais aos olhos do respectivo cônjuge,
tal engano dos sentidos não lhe parece possível. Como também não
pode acreditar que algo que se dê para comer ou beber possa forçar
a vontade de amar: para matar, ou enlouquecer, ou ficar doente,
é possível, mas não para amar, pois nunca tal viu, a razão não lhe
consente crer e a Igreja não o manda acreditar.
Apelo ao uso da razão, defesa da correspondência entre o real
existente e o real apercebido pelos sentidos, crença no senhorio do
homem sobre a natureza, valorização do livre arbítrio… tudo isto
fundamentado na fé como instrumento da liberdade. Julgo ser esta
a importante proposta que germinou no século XV português,
no limiar do nascimento do espírito científico, no limiar de um
generalizado contacto com a natureza desconhecida e ameaçadora,
no limiar de uma não menor batalha que foi a da autonomia da
vontade frente a todas as formas de predestinação.
45 - Cfr. a lúcida análise de Luís Miguel DUARTE, op. cit., p. 137-138.
46 - L. C., Cap. XXXVII, p. 184.
47 - Sobre o tema da ordália do ferro em brasa, vd. Nuno Espinosa GOMES DA SILVA. “Uma referência de D.
Duarte ao ferro caldo, no Leal Conselheiro”. In: Actas das “Iªs Jornadas de História do Direito Hispânico. Lisboa:
Academia Portuguesa da História, 2004, pp. 195-202.
48 - D. Duarte conta a história dos dois corvos do Cabo de São Vicente, com breve teorização (L. C., Cap.
XXXVI). Deixamos de fora deste trabalho a questão tangente do maravilhoso e do milagre.

106
7- PAIXÕES DA ALMA, MELANCOLIA E
MEDICINA (SÉCULOS XIII-XV).
Dulce Oliveira Amarante dos Santos*

“Quando o medo ou a tristeza duram muito tempo,


há um estado melancólico”.
Hipócrates, Aforismo 6, 23

Na Idade Média, as emoções e os sentimentos humanos nas diversas


formas de manifestações, de contenção, de equilíbrio ou de excesso
eram designados pela expressão paixões da alma. Constituíram-se em
objetos de discussões intermináveis em uma ampla gama de textos
literários, filosóficos, teológicos, religiosos e médicos ao longo do
período. Tanto nos textos religiosos quanto nos textos médicos nota-
se uma preocupação em compreender, analisar, teorizar e ordenar
o universo emocional humano numa busca contínua de minorar
o sofrimento e controlá-lo. Sobretudo, porque os sentimentos em
transbordamento configuravam-se como o ponto de cruzamento
entre o corpo e alma, já que para os eclesiásticos eram o caminho em
direção ao pecado e para os físicos (médicos) eram a via em direção
às enfermidades. No enquadramento filosófico, desde o V século,
com Santo Agostinho que propôs o esquema das quatro paixões
principais, desejo, medo, alegria e dor até o século XIII, quando São
Tomás de Aquino organizou um sistema mais complexo, percebem-
se as tentativas de ordenação da matéria emocional1. Por outro lado,
nos primeiros séculos da organização da instituição eclesiástica no
Império romano, os religiosos, Evrágio Pontico (345-399) e João
Cassiano (360-435) foram os primeiros responsáveis pela composição
da lista de pecados capitais, posteriormente complementada por
Gregório Magno(540-604). Tratou-se de um sistema bem articulado
de normatização das consciências para combater os vícios humanos2
sobretudo entre os clérigos e monges. Essa lista incluía: vanglória,
ira, inveja, tristeza ou acídia, gula, fornicação e avareza. Foi mantida
por muitos séculos no ensino tradicional dos monges para incentivar
*
Depto. de História e PPG de História da Universidade Federal de Goiás.
1 - C. CASAGRANDE. & S. VECCHIO (orgs.) Introduzione. In: idem. Piacere e dolore. Materiale per una storia
delle passioni nel Medioevo. Firenze: Sismel, 2009. pp. 3-11. Em 1649, Descartes lança sua obra, As paixões da
alma, em que desqualifica todo o pensamento anterior médico e filosófico sobre o tema.
2 - Siegfried WENZEL. “The seven deadly sins: some problems of research”. Speculum, XLIII-1, 1968. pp. 1-22.

107
a busca da perfeição espiritual e moral na vida religiosa, ou seja,
criar modelos de comportamentos virtuosos para o mundo do clero
regular e secular, que pudessem funcionar como marca identitária
distintiva do mundo dos laicos. Nesse sentido, havia convergências e
diferenças entre os discursos filosóficos, religiosos e os médicos em
relação às emoções humanas.
A partir do século XIII, como a medicina universitária teorizou,
sistematizou e tratou as paixões humanas?
A base de toda teoria médica medieval sobre as paixões ou acidentes
da alma encontra-se na autoridade das obras de Cláudio Galeno (130-
200?), médico que viveu e escreveu sua extensa obra no II século,
na Roma imperial. Os 83 textos remanescentes chegaram até nós,
sobretudo, pela via das traduções árabes do médico e filósofo persa
Avicena (980-1037). Galeno, filho de pais gregos, nasceu em Pérgamo,
na Ásia Menor, estudou também na Grécia e em Alexandria, no Egito,
e após breve período como médico dos gladiadores estabeleceu-se em
Roma e tornou-se médico da corte do imperador Marco Aurélio (161-
180). Ele consolidou e sistematizou as teorias hipocráticas anteriores, a
partir das quais criou as suas próprias, que, por sua vez, influenciaram
junto com as obras da filosofia natural de Aristóteles, a medicina
universitária da Europa medieval. Dentre seus conceitos, destaca-se
o de compleição (em latim, complexio; em grego, krasis), que engloba
a constituição física, a disposição do espírito e o temperamento dos
indivíduos3. Esse conceito estrutura, de certa forma, as tendências
para as diversas paixões da alma. O entrelaçar dos quatro elementos
constituintes do universo (terra, água, ar e fogo), os humores corporais
(sangue, bílis amarela, bílis negra e fleuma) e a mistura das qualidades
(quente, frio, seca e úmida)4 integram a compleição ou temperamento
individual, igualmente em número de quatro: sanguíneo, colérico,
fleumático e melancólico. No entanto, essa compleição se alteraria ao
longo da vida, por isso seria necessário também levar em consideração
a variável idade. A compleição é quente e úmida na infância, quente e
seca na juventude, fria e úmida na maturidade e fria e seca na velhice5.
No século XIII, outra conexão teórica foi estabelecida entre as
emoções (na perspectiva somática e não psíquica) e o campo da
dietética ou medicina preventiva, considerando-as como um dos
fatores a serem controlados individualmente para a manutenção do
3 - N. G. SIRAISI. Medieval & Early Renaissance medicine. Chicago: The University of Chicago Press,1990. pp.
84-84.
4 - O sangue é quente e úmido como o ar, a fleuma é fria é úmida como a água, a bile amarela quente e seca
como o fogo e a bile negra, fria e seca como a terra.
5 - Carmen PENA; Fernando GIRÓN. La prevencion de la enfermedad en la España bajo medieval. Granada:
Editorial Universidad de Granada, 2006. p. 23.

108
equilíbrio dos humores e conseqüentemente da saúde corporal6. È
importante ressaltar que o princípio organizador da saúde, desde a
Antiguidade até a Idade Média, era o do equilíbrio ou da moderação,
o mesmo valendo para o campo das emoções. Assim a obra galênica
de medicina preventiva, De sanitate tuenda7 influenciou essa parte
da teoria médica sobre as paixões da alma, já que nela Galeno
elaborou a teoria das seis coisas naturais (fisiológicas) e das seis não
naturais (externas) necessárias ao bom funcionamento do corpo e à
preservação da saúde humana. No primeiro grupo, o das seis coisas
naturais incluiu os quatro elementos que compõem o universo (terra,
água, ar e fogo); as compleições; os humores; as partes sólidas do
corpo; as operações fisiológicas internas e as faculdades ou grandes
funções biológicas8. No segundo grupo, o das seis coisas não naturais,
encontram-se as paixões da alma como uma das partes constituintes
do conjunto externo à natureza do corpo humano, mas igualmente
fundamental na manutenção da saúde corporal. Cinco das quais
estão organizadas em pares: o ar e o meio ambiente; o exercício e o
repouso; os alimentos e as bebidas; o sono e a vigília; a retenção e a
expulsão e a sexta parte, as paixões da alma.
Essa teoria médica defendia a relação estreita entre corpo e alma.
Assim, as paixões da alma ou ainda os acidentes da alma (outra expressão
encontrada em obras médicas) eram considerados movimentos
psicossomáticos afetivos relacionados diretamente ao corpo e
indiretamente à alma. Elas se desencadeavam no plano do espírito ou
da imaginação, com efeitos imediatos sobre o corpo, no qual produziam
uma série de reações vitais ou enfermidades. O órgão central desse
processo era o coração. Assim, a dinâmica emotiva era desencadeada
pela entrada ou saída do calor e dos espíritos no coração, seguida
por mudança no sangue e manifestações somáticas características:
avivamento da cor da pele e aceleração da respiração e do batimento
cardíaco, por exemplo9. No rastro de Galeno, no Liber de conservanda
sanitate, atribuído ao físico Pedro Hispano, afirma-se, no século XIII:

6 - Alessandro ARCANGELI. “Gioia e tristezza nella tradizione galenica”. In: C. CASAGRANDE; S. VECCHIO
(orgs.) Piacere e dolore…, op.cit., pp.171- 185.
7 - GALENUS. A translation of Galen´s Hygiene (De santitate tuenda) by Dr. Henry Montraville Green with an
introduction by Henry E. Sigerist. Springfield, III, Thomas (1951), xxvii.
8 - No século IX, o médico árabe Hunayn Ibn Ishaq, conhecido como Johanitius acrescentou a sétima coisa
natural ao esquema acima, em sua obra Ysagoge (ou Introdução), o pneuma ou espíritos: o espírito animal do
cérebro, o espírito vital do coração e o espírito natural do fígado. Esses espíritos veiculam as três faculdades e
correspondem à tripartição da alma de origem platônica e aristotélica O espírito animal ou psíquico subdivide-se
em três partes do cérebro: a racional, a sensorial e a motora.
9 - Pedro Gil SOTRES. “Les régimes de santé”. In: M. D. GRMEK; B. FANTINI (dirs.). Histoire de la pensée
médicale en Occident. Paris: Le Seuil, 1995. V. 1. Antiqüité et Moyen Age, pp. 276-277; IDEM, «  Los regimina
sanitatis ». In: IDEM, Arnaldi de Villanova Opera Medica Omnia. Barcelona: Publicaciones de la Universitat de
Barcelona, 1996. pp. 473-480.

109
O coração é o órgão côncavo, cavernoso em baixo, amplo em
cima, e é o termo de todas as operações da alma racional, segundo
o testemunho de Galeno. As operações do espírito começam no
cérebro e recebem seu complemento no coração.10
Assim, a doença faz parte da natureza na medida em que ela
provém de causas naturais, mas também é, de certa maneira, um
acontecimento contrário ao percurso natural da vida
Do ponto de vista da prevenção, classificavam-se como paixões
positivas para a saúde, a alegria e a esperança e os fenômenos fisiológicos
relacionados ao prazer, estados que podiam ser favorecidos, segundo
alguns conselhos dos físicos, com alimentação propícia, com o convívio
dos amigos e com a harmonia com seu grupo. As paixões negativas
para a saúde, tais como, a tristeza e a ansiedade, trazem a dor e a
doença, portanto, tratam-se de dois estados contrários ao dinamismo
vital, que resfriam e secam o corpo e o coração. Igualmente, o medo e
a cólera produzem também efeitos péssimos no corpo, como arrepios,
frio, palidez e muitas vezes, diarréia. No entanto, o quarto acidente da
alma, a ira ou cólera provoca, entre outros, os sintomas de taquicardia
e vermelhidão na face. Ela dividia a opinião dos físicos medievais, pois
alguns a consideravam, em certas circunstancias, benéfica e perniciosa
em outras. Para apaziguá-la, prescreviam música, leitura e, sobretudo,
um sono reparador.

A MELANCOLIA NA MEDICINA UNIVERSITÁRIA E NO


DISCURSO ECLESIÁSTICO

E a melancolia? Como era descrita, avaliada e tratada pelos físicos


e pelos eclesiásticos? Quais os pontos de contato entre esses dois
discursos ao longo da Idade Média?
Melancolia, humor melancólico, estado melancólico. Muitos são
os vocábulos ou expressões que tentam explicar o estado de espírito,
a doença ou o temperamento melancólico. Muitos significados
divergentes parecem coexistir, criando ambivalências e ressonâncias
através dos séculos, da Antiguidade até o início do século XX, quando
perdeu seu caráter cultural agregador11. Mas de qualquer forma, a
primeira definição é médica, como o aforisma de Hipócrates12(V
séc. a. C) citado na epígrafe confirma. O termo melancolia remonta
ao vocabulário da medicina antiga, do grego melas (negra) e khole
10 - Pedro HISPANO. Liber de conservanda sanitate. In: Obras médicas de Pedro Hispano. Ed. crítica por Maria
Helena da Rocha PEREIRA. Coimbra: Por ordem da Universidade, 1973. p. 462.
11 - J. RADDEN. “From melancholic states to clinical depression”. In: IDEM (ed.), The nature of melancholy.
From Aristotle to Kristeva.Oxford: Oxford University Press, 2000. pp. 3-5.
12 - HIPÓCRATES. Aforismos. São Paulo: Martin Claret, 2004. p.102;

110
(bile), depois atrabilia em latim. A bile negra, mais imaginária que
real, era um dos quatro humores ou líquidos constituintes do corpo
humano na teoria humoral da escola hipocrática sistematizada
por Galeno já referida anteriormente. Apenas a partir do II século
a. C. foi definida com mais precisão a bile negra, cujo excesso no
organismo era responsável pelos estados melancólicos13.
Na explicação galênica, o humor ou temperamento melancólico
possui duas qualidades, é frio e seco. Atribui-se esse humor ao
excesso da bile negra secretada pelo fígado, que provoca problemas
em diversas partes do organismo, sendo que em cada uma variam
os sintomas. Pode ocorrer no encéfalo, no sangue das veias de todo
o corpo ou no estômago e órgãos digestivos atingindo o encéfalo
por meio dos vapores. Dessa maneira esses vapores ofuscam a
inteligência e podem possibilitar visões e delírios. A estação do ano
mais propícia para a manifestação dessa enfermidade era o outono.
Essa descrição do humor melancólico como predisposição física
individual (compleição) para a doença foi autoridade na medicina
universitária a partir do século XIII14.
A obra salernitana clássica de dietética, Regimen Sanitatis
Salernitanum15, na parte da caracterização dos temperamentos, o
artigo IV trata das características dos melancólicos:

“Falta ainda dizer da cólera negra as qualidades.


Torna as pessoas tristes, disformes, de poucas palavras.
Esses fazem vigília a estudar, não é dado sono a mente.
Conservam os seus propósitos, julgam que nada é seguro.
É invejoso e triste, cúpido, de mão persistente,
Não isento de dolo, tímido, e do loto tem a cor” (p. 78)

A grande quantidade de traços torna a melancolia difícil de ser


caracterizada. Pode ser avaliada, tanto como um estado normal quanto
um sinal de perturbação mental, tanto um conjunto de sentimentos,
tristeza, apatia, abatimento, desespero, angústia, exaustão quanto
formas de comportamento, tais como, inércia, prostração, ociosidade.
A melancolia possibilita o contato ao mesmo tempo com o fato
biológico e com uma das tradições mais antigas da cultura ocidental.

13 - Jennifer RADDEN (ed.). The nature of melancholy…, op.cit., p. 68.


14 - GALEN. On the affected parts. Tradução inglesa de Rudolf E. SIEGEL. Basiléia: S. Karger, 1976.
15 - Regimen sanitatis salernitanum. Trad. de Maria Helena da Rocha PEREIRA. Prolóquio de Luís de Pina.
Porto: Centro de Estudos Humanísticos, 1963.

111
Duas obras científicas ibéricas do século XIII propõem terapias
diversas para a prevenção e a cura da melancolia, entendida tanto
como predisposição física quanto como enfermidade: O Liber
conservanda sanitate (Livro sobre a conservação da saúde)16 , atribuída
a Pedro Hispano e o Lapidário ou Tratado de las piedras17 traduzido
no scriptorium de Alfonso X, do reino de Castela. Dois gêneros de
textos: o primeiro um regimento de saúde com três opúsculos18 com
informações e conselhos para a preservação da saúde e prescrições
de terapias de banhos, de sangrias e de dietas especiais conforme as
épocas do ano; e o segundo a tradução de um tratado sobre as pedras
da natureza com as virtudes preventivas e curativas das doenças
advindas das influencias da posição dos astros no firmamento.
Na primeira obra, o autor segue os princípios galênicos
relacionando os dois órgãos, o cérebro e o coração e associando as
enfermidades do coração e a melancolia. No primeiro opúsculo,
na parte que estabelece a dieta para as diversas estações do ano,
aconselha no outono a purgação da melancolia com ungüento
de sena e no verão banhos secos e sulfúreos.19 Outra prescrição
para combater a melancolia e as doenças do coração indica o
odor agradável dos pomares e prado na estação da primavera:
“Calaminta, orégano, mentrasto e casca de cidra em vinho do
melhor, e tudo o que for azedo e aromático e quanto purgar o
cérebro e fortalecer o estômago e todo cheiro aprazível que há
nos pomares e prados, na estação da primavera, faz bem aos
melancólicos e aos cardíacos”.20
Ao coração fazem mal peixes sem escamas, fumo ... tristeza,
preocupações e qualquer causa que provoque a síncope. Excesso de
estudo e meditação, coito frequente e tudo que fizer mal ao baço faz
mal ao coração ... e o que quer que faça a alma entristecer-se, porque
o coração é o princípio da vida e o termo da morte.21
Por outro lado, no Lapidário alfonsino, destacam-se dezessete
pedras que possuem poderes para agir em relação à melancolia:
ouro, ailiaza oscura, aliaza entreverada, adehenich de dos colores,
bezebekaury, caberdic, bezahar (bezoar), zarocan, maduz, zexegt,
caldamuquida, ceminez, poleo, azul, rezcuiden, yamez e menefix. O
uso de algumas é preventivo na forma de talismãs (para pendurar

16 - Pedro HISPANO. Liber de conservanda.... Op. cit., pp. 446-491.


17 - ALFONSO X. Lapidario. Madrid: Ed. Castália, 1997.
18 - Summa de conservanda sanitate (Suma da conservação da saúde), De his que conferunt et nocent ( Das coisas
que fazem bem e mal) e Qui vult custodire sanitatem (Preservação da saúde).
19 - Pedro HISPANO. Summa de conservanda.... Op.cit., p. 452.
20 - Pedro HISPANO. Summa de conservanda.... Op.cit., p. 462.
21 - Pedro HISPANO. De his que conferunt .... Op.cit., p. 464.

112
no pescoço e trazer junto ao corpo) ou na utilização de vasilhas
confeccionadas com algumas pedras para os alimentos, que previne
as doenças oriundas da melancolia, como é o caso da aliaza oscura
: “[..] De esta piedra hacem vasos y escudillas em que comen y
beben; mas tiene tal vertud que a quien usa comer o beber em ellos
lê crecen cuidados y las enfermedades que vienen por melancolia.22
(LA, p.111).
É recorrente em várias pedras a referência às doenças relacionadas
à melancolia. Outra pedra, poleo, apresenta o efeito contrário da
anterior, pois provoca o aparecimento da doença: “Piedras son
grandes, de que hacen vasos y escudillas, pero son malos para comer
em ellos porque hacen enfermar de melancolia”.23
No discurso eclesiástico sobre os pecados capitais, estabeleceram-
se relações entre a acídia e a melancolia. Da mesma maneira que a
acídia enquanto pecado capital propicia o aparecimento de outros
vícios, a melancolia também produz outras enfermidades. Trata-se
assim de uma doença cujo poder é, por vezes, de autodestruição.
No contexto de João Cassiano o termo acídia ou acedia (grego)
designava um conjunto de sentimentos (tristeza, apatia, abatimento,
desespero, angústia, exaustão) e comportamentos (inércia,
prostração, ociosidade) considerados indesejáveis e necessitando
de emenda. Todos muito semelhantes aos sintomas dos estados
melancólicos, pois esse religioso utilizou-se de metáforas médicas
para caracterizar uma desordem da alma não do corpo. A primeira
imagem associada à acídia era a dos eremitas ou os monges cenobitas
do deserto inóspito, que se isolavam do convívio social e eram
tentados pelo demônio24. Ressentiam-se da falta de companhia,
sentiam um torpor, dormiam o tempo todo, nada faziam, portanto,
perdiam o prazer da vida espiritual. Assim, a acídia foi uma das
tentações de Santo Antão, tema pictórico freqüente na arte medieval.
O remédio proposto pelos Pais da Igreja era o trabalho, incluído no
lema ora et labora da regra de São Bento (VI séc.), ou seja, o trabalho
manual como forma de combater a ociosidade, que permitiria a ação
demoníaca. A acídia permaneceu na lista dos pecados capitais até
os séculos XIV e XV, quando foi paulatinamente substituída pelo
pecado da preguiça25, já que um dos seus componentes, a indolência
passou a ser o ponto de destaque. Essa transformação revelou uma
22 - ALFONSO X. Lapidario.... Op. cit., p. 111
23 - ALFONSO X. Lapidario.... Op. cit., p. 121.
24 - Stanley W. JACKSON. “Acedia: the sin and its relationship to sorrow and melancholia in medieval times”.
Bulletin of the History of Medicine, 55, 1981. pp. 172-185.
25 - Teresa Aline P. de QUEIROZ. “Melancolia e acídia na composição do pecado da preguiça no século XV”. In:
Atas do I Encontro Internacional de Estudos Medievais, São Paulo, USP/ UNICAMP e UNESP, 1995. pp.108-116.

113
tendência de considerar os outros elementos emotivos da acídia,
agrupados sob a designação de melancolia, como uma desordem
mental no enquadramento médico26. Nesse caso, enquanto doença o
tratamento seria da competência dos físicos, ou mesmo no caso que
fosse considerada uma tendência geral humana27 a responsabilidade
individual diminui e começa a ser julgada menos severamente.
No Libro de las confesiones28, do canonista Martim Perez (1316) da
Universidade de Salamanca, o pecado da acídia ainda apareceu com
essa designação mas com as características da preguiça, desta vez
no sentido da negligência tanto do aprendizado das coisas para a
salvação da alma quanto da falta de devoção. Assim, talvez isso tenha
ocorrido pela valorização progressiva do trabalho na sociedade do
final da Idade Média29.
Outro autor do século XIV, o canonista galego Álvaro Pais, em
sua obra, Status et planctus Ecclesiae,30, redigida a partir de 1330,
na época em que foi penitenciário da cúria papal de João XXII em
Avinhão, encontra-se igualmente a acídia como um pecado próprio
dos religiosos. Assim, investigou exaustivamente todas as concepções
cristãs medievais, recorrendo às autoridades, com citações bíblicas,
dos Pais da Igreja e de São Bernardo (sem citar Tomás de Aquino).
Em seu texto, nota-se grande ênfase no combate à ociosidade, e na
valorização do trabalho monacal como remédio. Assim, evidencia-
se o processo lento de transformação da acídia, mais voltada para o
universo clerical, em pecado da preguiça, cujo âmbito da reflexão
amplia-se para o mundo laico.

D. DUARTE: UM TESTEMUNHO DA MELANCOLIA


NO SÉCULO XV

Conforme exposto acima, há um grande número de escritos


médicos e religiosos medievais que buscaram teorizar e explicar as
paixões ou acidentes da alma, ou seja, as diversas emoções humanas,
e dentre elas, a melancolia. Contudo, há poucos testemunhos de
pessoas melancólicas ou daquelas que vivenciaram e sofreram a
tristeza e outros sentimentos correlatos na vida quotidiana. Nesse
sentido o relato da experiência melancólica do rei D. Duarte (1433-
26 - Stanley W. JACKSON. “Acedia…. Op. cit., p. 182.
27 - Stanford M.LYMAN. The seven deadly sins: society and evil. New York: St. Martin´s Press, 1978.
28 - MARTIN PÉREZ. Libro de las confesiones. Una radiografía de la sociedad medieval española. Edición crítica,
introducción y notas por Antonio GARCIA Y GARCIA; Bernardo Alonso RODRIGUEZ; Francisco Cantelar
RODRIGUEZ. Madrid: BAC, 2002.
29 - Ver Teresa Aline P. de QUEIROZ. “Melancolia e acídia ...”. Op.cit., pp. 108-116.
30 - Álvaro PAIS. Estado e pranto da Igreja. Estabelecimento do texto e tradução de Miguel Pinto de MENEZES.
Lisboa: Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1998, vol. 8.

114
1438), no Portugal quatrocentista, em sua obra, Leal Conselheiro
(1438)31 e no Livro dos Conselhos de El-rei D. Duarte ou Livro
da Cartuxa32 constitui-se em uma fonte valiosa para o estudo da
melancolia no período. O primeiro texto régio é uma coletânea de
103 ensaios morais cristãos com ênfase nos pecados capitais, que
revela a erudição religiosa do rei, por meio das referências às Sagradas
Escrituras, aos filósofos clássicos, aos primeiros autores eclesiásticos
da Patrística e às hagiografias33. Tudo entremeado com seu relato das
próprias vivencias, reflexões e conselhos morais. Essas características
da obra, sobretudo a cultura religiosa de D. Duarte, já foram muito
analisadas por historiadores da literatura e filósofos. No entanto, até
o momento não houve uma leitura do texto na perspectiva da análise
da doença melancolia e da memória na escrita de si e das concepções
presentes na medicina portuguesa no século XV.
A partir do capítulo X ao XVIII do Leal Conselheiro, D. Duarte
tece reflexões sobre as paixões da alma como pecados capitais, dentre
elas a tristeza, que nos interessa particularmente. Considera essa
paixão de forma ambivalente, como pecado e ao mesmo tempo como
doença do corpo: o humor menencórico (melancólico). No capítulo
XIX, trata a melancolia como enfermidade como indicado no
próprio título, “Da maneira que fui doente do humor menencórico,
e dele guareci”. Nesse sentido, o excesso da bile negra (o humor
corporal imaginário) em seu organismo teria sido responsável pelo
acometimento do conjunto de emoções diversas, tais como a tristeza
intensa, o medo da morte, a prostração e a ausência do prazer
de viver34. Continua a refletir sobre o tema nos quatro capítulos
seguintes, do XX ao XXIII, tratando dos remédios e aprofundando
mais a discussão sobre outra ambivalência da tristeza, como pecado
e virtude e o enfadamento: “Com a tenção que primeiro escrevi, de
alguns desta breve e simples leitura filharem proveitosa ensinança e
avisamento, propus escrever o começo, prosseguimento e cura que
dele ouve, por tal de minha experiência a outros seja exemplo”35.
Esse é o mote do capítulo XIX, em que se percebe o esforço
de racionalizar, a posteriori, a experiência da enfermidade vivida

31 - D. DUARTE. Leal Conselheiro. Introdução de João Morais BARBOSA. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da
Moeda, 1982. Ver Lenia Márcia MONGELLI. (org.) A literatura doutrinária na corte de Avis. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
32 - D. DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D.Duarte. Livro da Cartuxa. Lisboa: Estampa, 1982.
33 - Margarida G. VENTURA. D. Duarte. O eloqüente. Lisboa: Academia Portuguesa de História, s.d.
34 - No capítulo XXIV, dá conselhos médicos sobre a matéria ao seu irmão, o infante D. Pedro. Esse capítulo é de
redação anterior ao Leal Conselheiro: “[...] Do sobrepojamento dalguns humores que desgovernam o corpo, que
a este poder de sua governança pertence, convém resguardar, porque algumas vezes vem por ele a tristeza, mas
não sempre, porque erram muitos querendo-se logo purgar ou sangrar como são tristes.” IDEM, p. 123.
35 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p.100.

115
durante três anos (1413-1416) até a recuperação do prazer de viver
perdido nesse período. Esse esforço de ordenar e selecionar no
tempo a memória dos sentimentos e dos sofrimentos, tais como a
tristeza intensa e o medo da morte, tinha, entre outros, os objetivos
de compartilhar com outros suas experiências e, ao mesmo tempo,
de servir de exemplo a cura alcançada. Sua narrativa adquire um tom
vivo e pessoal, em suma, uma auto-reflexão acerca da experiência
vivida, com a construção de uma memória por intermédio da escrita
de si. Trata-se de um testemunho de sua juventude de príncipe
quando seus tormentos se iniciaram ao ser associado ao governo
régio de seu pai, D. João I (1385-1433), com a idade de 22 anos,
quando aquele partiu para Ceuta. Nessa época, passou a vivenciar
uma rotina árdua de trabalho de manhã à noite, com muito pouco
lazer, sobretudo o costumeiro da montaria e da caça.
Na descrição das várias manifestações da tristeza, sobretudo no
capítulo XXII, merecem destaque as aflições, que podem até levar à
loucura:

“Além das maneiras da tristeza em cima escritas, é uma mais


forte, que tira o dormir e grã parte do comer. E traz dor ao coração
com grandes tremores e agastamentos. E aquesto se faz por algum
mui especial fundamento de grandes desventuras, males e perdas e
outras por arrebatamento dalgumas desconcertadas fantasias vêm a
este mesmo sentimento[...] E muitos caem em sandice”36.

O seu quadro complicou-se com a epidemia de pestenença no


reino com muitas mortes de súditos, inclusive da rainha, sua mãe, D.
Filipa de Lencastre (1359-1415), de quem cuidou até o fim:

“[...] Em esta grande doença durei o tempo suso escrito calando-


me com ela, porque a poucos e pessoas certas de autoridade falava.
E de fora em toda minha maneira fazia pequena mudança, nem
mostramento do que sentia. E estando em tal estado, a mui virtuosa
Rainha, minha senhora e madre, que Deus haja, de pestilência se
finou, do que eu filhei assim grande sentimento que perdi todo
receio, a ela em sua infirmidade sempre me cheguei e a servi sem
algum empacho, como se tal dor não sentisse. E aquesto foi o começo
da minha cura, porque sentindo ela, deixei de sentir a mim”.37

36 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 116.


37 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 104

116
Dois fatores foram preponderantes na cura: o cuidado com a
mãe enferma e a fé inabalável no poder de Deus. A seguir, reclama
assim de todas as outras tentativas infrutíferas, já que, segundo ele,
nem conselhos de confessores e amigos e nem remédios dos físicos
produziam os efeitos desejados:

“[...] E por tal temor se pode bem dizer o dito do Catão: “quem
teme a morte, perde o prazer da vida”. E de feito não houvera conselho,
remédio nem esforço que me valera, segundo entendo, porque com
físicos, confessores e amigos falava, e não prestava cousa. Ca dos
remédios, das curas, não sentia vantagem”38.
“Em esta tenção fui assim forte, que os conselhos dalguns físicos,
que me diziam que bebesse vinho pouco aguado, dormisse com
mulher, e deixasse poucos cuidados, todos desprezei, havendo toda
minha esperança em o Senhor e sua mui Santa Madre”39.

É sabido igualmente que as pestes foram um grande desafio para


os médicos da época, que davam conta mais da prevenção com a
dietética, ou seja, a elaboração de regimentos e ou de conselhos de
saúde do que da terapêutica da cura por meio de remédios eficazes.
D. Duarte revela seus conhecimentos dos conselhos e prescrições da
medicina da época, que ele confessa que não seguiu. A recomendação
de beber vinho era comum, sendo igualmente este um dos principais
ingredientes da composição das mezinhas e outros remédios. O outro
conselho para ter relações sexuais com mulheres comprova mais uma
vez que essa era uma das prescrições para a manutenção da saúde
corporal. Mas a fé em Deus e Nossa Senhora era seu foco principal
para obter de volta o prazer de viver perdido com a melancolia.
Em outros momentos da obra essa cultura médica também se
manifesta. Por exemplo, sobre o capítulo C, “Do Regimento do
Estômago”, poder-se-ia dizer que se trata de um texto de um físico
medieval e não do rei eloqüente, com todas as prescrições dietéticas
da alimentação adequada para a manutenção da saúde do estômago.
Como os outros textos da obra, o ponto de partida é a sua experiência
pessoal: “Segundo a prática que por mim passei, este acho bom
regimento brevemente escrito para quem tal estômago tem que
lhe cresça freima40, e alguma vez se destempera por ela41.” Chama a
atenção, a familiaridade no uso dos termos do vocabulário médico
da época: regimento de saúde, compleição, humor menencórico etc.
38 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 103.
39 - D. DUARTE. Leal.... Op. cit., p. 104.
40 - Azia.
41 - D. DUARTE. Leal .... Op. cit., p. 437.

117
No capítulo LIV, “Das razões por que me parece bem fugir a
pestilência”, defende o conselho dos físicos sobre a fuga dos locais
infectados pela pestenença: [...] porque sou por requerimento da
vontade e por razão muito inclinado a seguir o conselho dos físicos,
e lhe fugir cedo longe e tornar tarde42. Assim, discorre sobre essa
fuga e procura justificá-la de todas as maneiras para poder por meio
da racionalização enfrentar o mal. Mas, em 1438, com o retorno da
epidemia de peste em Évora, seguindo o conselho da fuga, a corte
mudou-se para Avis e depois se dispersou. A família real foi para
Ponte de Sor e daí, o rei seguiu para Tomar, quando no caminho
adoeceu e em doze dias faleceu no dia nove de setembro do ano
referido.
Uma das razões desse domínio das questões médicas era o
ambiente da corte de seu pai, D. João I, onde havia muitos físicos
que também eram astrólogos, com quem o príncipe dialogava e
tomava conhecimento de obras do campo da medicina. Pois, em
sua livraria (biblioteca) pessoal composta de 86 títulos, poucos são
aqueles relacionados à área: Viatico, Segredos de Aristotiles, Livro da
Lepra, Livro de Estrologia e Dialectica de Avicena. O físico e astrólogo
mais renomado era o judeu, Mestre Guedelha, com quem o príncipe
provavelmente consultou, emprestou obras e conversou a respeito
de seus sintomas da melancolia. Mas, segundo o cronista Rui de
Pina, não seguiu o conselho astrológico de Mestre Guedelha para
retardar a hora da cerimônia de entronização, em virtude da posição
dos astros e muitos atribuem a esse fato um reinado breve de apenas
cinco anos.

Em suma, ao longo da Idade Média, percebem-se as tentativas


de ordenamento e controle das paixões humanas, em suas diversas
manifestações, tanto por parte dos médicos quanto da parte dos
eclesiásticos. Essa preocupação de entendimento das emoções na
perspectiva médica procurou enquadrá-las, com base no galenismo
medieval, como predisposição física na teoria dos temperamentos
ou compleições ou em alguns casos como enfermidade. No caso da
perspectiva religiosa da Igreja, criou-se inicialmente um conjunto
de pecados capitais, que abrigava essas paixões numa tentativa de
normatização das consciências, sobretudo para o mundo clerical.

42 - D. DUARTE. Leal .... Op. cit., p. 271.

118
Dentre as paixões humanas, buscou-se analisar a melancolia,
nomeada na Antiguidade, como um conceito médico complexo, que
engloba uma predisposição física de um dos quatro temperamentos,
o melancólico e também como uma doença causada pelo excesso da
bile negra, um humor corporal imaginário. Duas obras científicas do
século XIII, o O Liber conservanda sanitate (Livro sobre a conservação
da saúde), atribuída a Pedro Hispano e o Lapidário ou Tratado de las
piedras, traduzido no scriptorium de Alfonso X, do reino de Castela,
buscam lidar com a melancolia como doença e aflição humana,
prescrevendo terapias com ervas, banhos, bons ares, dentre outros.
Houve correspondências entre a melancolia na óptica médica e o
pecado capital da acídia no discurso religioso, depois transformado
no final da Idade Média no pecado da preguiça. Essas duas tradições
não ficaram indiferentes entre si, pois houve um intercâmbio
de noções médicas incorporadas pelo discurso religioso e vice-
versa. Os estados melancólicos têm assim, ao longo da história,
preocupado os homens, que desde a medicina antiga e medieval,
passando pela teologia cristã e chegando até a psicologia e psicanálise
contemporânea, tentam explicá-los e controlá-los.
D. Duarte constitui-se em um testemunho valioso para
compreender o universo cultural de um príncipe e depois rei
português e letrado do século XV. Ao relatar sua experiência ímpar,
a posteriori, como enfermo da melancolia por três anos, revelou a
construção racional de uma memória, em que ordena o conjunto de
sofrimentos oriundos da tristeza profunda e aponta o caminho para
a cura. Assim, em seu depoimento há o entrecruzar de elementos da
cultura religiosa com outros da cultura médica, que o torna singular
e isso motivou o presente estudo.

119
IDADE MÉDIA E
AMÉRICA PORTUGUESA
8- O LEGADO PORTUGUÊS NO BRASIL:
DA COLÔNIA À EMANCIPAÇÃO
POLÍTICA. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES.
Helga Iracema Landgraf Piccolo*

Da análise feita da obra A História da Independência do Brasil, de


autoria de Francisco Adolfo de Varnhagen, a historiadora Lúcia Maria
Bastos Pereira das Neves afirma que o autor “procurou demonstrar
a continuidade entre o passado colonial e o novo projeto nacional,
enfatizando a influência civilizadora da colonização portuguesa
sobre o novo país nos trópicos”1.
Tendo o caso brasileiro como exemplo, é inegável a existência
de resquícios coloniais que precisam ser tomados em consideração
quando se analisa o processo de Independência e sua consequente
institucionalização político-administrativa.
Assim sendo, sempre que for pertinente, as Ordenações Filipinas
que se basearam nas Manuelinas, serão mencionadas, objetivando
apontar para algumas permanências e não só rupturas após a
Independência, mostrando, assim, um legado português mesmo
tendo sido superado o estatuto colonial.
Algumas observações são, de imediato, necessárias, porque o que
foi legado não correspondia exatamente ao que estava na legislação
portuguesa que vigorava, teoricamente, no período colonial. A
historiografia produzida mais recentemente no Brasil o demonstra.
Se “um dos pilares do exercício de poder e da organização social
no Brasil foi a legislação metropolitana” ela, no entanto, não deve
ser supervalorizada porque “havia um abismo entre o país formal,
existente nas normas jurídicas públicas e privadas, e o país real
da Colônia, onde as leis eram frequentemente inaplicadas ou
mal aplicadas por causa da força dos proprietários rurais e dos
comerciantes, além da venalidade dos funcionários”. É o que nos
ensinam Arno Wehling e Maria José C. de Wehling2. Os autores
citam João Francisco Lisboa para quem as leis eram “profusas e
confusas”, o que facilitava a corrupção e o patronato.

*
Professora Emérita do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UFRGS.
1 - Lúcia M. Bastos P. NEVES. “Estado e política na Independência”. In: Kaila GRIMBERG; Ricardo SALLES
(orgs). O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, vol. 1: 1808-1831, pp. 97-136.
2 - Arno WEHLING; Maria José C. de WEHLING. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Frontei-
ra, 1994, p. 302.

123
É pelo sistema administrativo que começamos com as nossas
considerações, enfatizando o papel das Câmaras.

“Modelo quase universal e relativamente uniforme de organização


local em todo território da monarquia portuguesa e suas conquistas, as
câmaras foram, segundo Charles R. Boxer, instituições fundamentais
na construção e na manutenção do Império Ultramarino”3.

Na História Administrativa do Brasil, vol. 1, entendeu um dos


colaboradores – Hélio de Alcântara Avellar – começar o seu estudo
pelo que ele denominou de “Preliminares Européias”, quando aborda
os aspectos jurídico-administrativos, destacando o municipalismo4.
Para ele, “o município, que é a divisão territorial fundamental
administrativa e cujo papel na formação nacional foi essencial,
representa uma herança do municipalismo peninsular”. A instituição
foi transplantada a partir de Martim Afonso de Souza.
Discorrendo sobre a vigência no Brasil das Ordenações, tanto
Manuelinas como Filipinas, lembra que estas últimas “tiveram
impressionante longevidade no sistema jurídico brasileiro. Como
direito penal, transpuseram os umbrais da Independência política
e só caducaram com a promulgação do Código Criminal (1830).
Como direito civil, chegaram até a promulgação do Código Civil
em plena República (1915)” . E, citando Waldemar Ferreira5, cujo
comentário transcreve: “Por mais paradoxal que pareça, a história
do direito brasileiro é muito mais antiga do que a História do Brasil”.
Começa com o direito português, que vigorou desde os primórdios
da colonização. É uma visão eurocêntrica do processo jurídico, como
não podia deixar de ser.
Foi sobre o regime das Ordenações que viveram, teoricamente,
as Câmaras municipais no período colonial. Não nos interessando
neste momento discutir a origem delas no municipalismo português,
devido às diversas e divergentes interpretações a respeito. Mas, falar
de Câmaras aponta, logicamente, para o município.
Mais algumas observações sobre as Ordenações nos parecem
necessárias.
Como leis gerais, vigoraram no período colonial as Ordenações
Manuelinas (de 1521 a 1603), quando da reforma que institucionalizou
3 - Maria Fernanda Baptista BICALHO. “As Câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: João FRAGO-
SO; Maria Fernandes BICALHO; Maria de Fátima GOUVEIA (orgs.). O antigo regime nos trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 191-221.
4 - Hélio de Alcântara AVELLAR. “Preliminares Européias”. In: História Administrativa do Brasil, 3 ed.. Brasília:
Ed. da Universidade de Brasília/Fundação Centro de Formação do Servidor Público, 1984, vol. 3, pp. 15-16; 43.
5 - Waldemar FERREIRA. Op. cit., p. 43.

124
as Ordenações Filipinas. Como consolidações legais, estabeleceram
os princípios e dispositivos de direito civil sobre a família, sucessões,
obrigações, contratos e propriedades, além do direito penal e do
direito processual. Além dessas leis gerais, como fonte do direito,
existiam as chamadas leis extravagantes. Conforme José Honório
Rodrigues, em “Teoria do Estado”6, elas se compunham de toda a
legislação posterior às Ordenações, constando de “leis propriamente
ditas, de cartas de leis ou cartas patentes”, nas quais eram expressas
providências a serem tomadas. E o autor chama a atenção para
uma das poucas leis promulgadas pela Assembléia Constituinte
Legislativa antes de ser dissolvida por D. Pedro I em 12 de novembro
de 1823. É a lei de 20 de outubro de 1823, pouco presente nas
análises historiográficas, que mandava vigorar no Brasil, além das
Ordenações, no caso as Filipinas, as leis, os regulamentos, os alvarás,
os decretos e as resoluções sancionadas por D. João VI e pelos quais
o Brasil fora governado até 25 de abril de 1821, quando o rei voltou
para Portugal. Conforme José Honório Rodrigues, “esta lei assegurou
no país à antiga legislação portuguesa e ao Código Filipino uma
vitalidade mais prolongada”. Com a Carta Constitucional de 1824,
leis (destacamos a Lei de 1º de outubro de 1828, que criou em cada
cidade e vila do Império Câmaras Municipais, e a Lei de 12 de agosto
de 1834, que fez algumas alterações e adições à Constituição Política
do Império) e, em relação à Justiça, o Código Criminal de 1830 e o
Código de Processo Criminal de 1832 com a sua Reforma de 1841.
João Camilo de Oliveira Torres, no seu clássico A Democracia
Coroada (o que não dispensa o historiador a fazer à obra críticas),
afirma, no capítulo XII, sobre o Poder Judicial: “Grande parte do que
viera da Colônia, a velha organização judiciária da Idade Média que
se prolongava indefinidamente sofreu, durante o primeiro reinado e
a Regência, uma remodelação completa” 7.
Vale a pena acrescentar o que afirma Hélio de Alcântara Avellar
em obra já citada:

“Observa-se na expansão do Estado português, resultante do


Condado portucalense [...] a associação entre realeza e o elemento
popular. Influências feudais presidem o nascimento do novo reino, cujo
soberano se coloca em posição de vassalagem para com a Santa Sé [...].
Estas influências transluzem, também, nas limitações do poder real [...]”.

6 - José Honório RODRIGUES. Teoria da História do Brasil (Introdução Metodológica). 3. ed.. São Paulo: Cia.
Editora Nacional, p. 158.
7 - João Camilo de Oliveira TORRES. A Democracia Coroada (Teoria Política do Império do Brasil). Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, p. 245.

125
E, valendo-se de Galvão de Souza, transcreve a sua opinião:
“Se Portugal não reproduz todos os traços do feudalismo, em
compensação oferece um exemplo bem frisante de municípios e
agremiações locais com um vivo sentido das suas autonomias” 8.
Esta opinião, evidentemente, não pode ser tomada ao pé da letra,
pela generalização implícita.
Voltando a falar das Câmaras, lembra-se que sua organização
deveria seguir o que nas Ordenações Filipinas consta no Livro I,
títulos 65 a 769. Um sistema eleitoral complicado escolhia os seus
oficiais: um juiz (a princípio ordinário e depois de fora) que presidia
a Câmara, três ou quatro vereadores, um escrivão, um procurador e,
por vezes, um tesoureiro.
As eleições eram realizadas de três em três anos, na época das
oitavas de Natal.
Enquanto os juízes ordinários, de quem não se exigia formação
especializada, eram eleitos pelos homens bons, os juízes de fora eram
magistrados indicados pelo rei.
Conforme Arno Wehling e Maria José de Wehling: “A complexidade
crescente de atividade judicial, bem como o interesse em tornar mais
presente a autoridade real, determinaram a introdução, em 1696, dos
juízes de fora, cargo que já existia em Portugal desde a Idade Média”10.
Quando hoje se fala das Câmaras Municipais, fica em aberto – ao
menos para mim ficou – a questão dos juízes de paz que adquiriram,
no Primeiro Reinado e no período Regencial, um papel político-
institucional importante se o pesquisador se ativer às fontes oficiais
de que dispõe. Mas ele existia ou não já no período colonial sendo,
pois, dele um legado?
Sobre a importância social extraordinária dos juízes de paz
apresenta-se-nos o Tobias Monteiro na sua História do Império
uma série de considerações muito pertinentes e justas: “Manteve
a Constituição o juízo de paz (vide o Art. 162) ainda arraigado às
tradições da Colônia. Antes da descoberta do Brasil já ele aparecia
nas Ordenações Afonsinas [...]”11.
Na lei de 1º de outubro de 1828 que criou as Câmaras Municipais
no pós Independência, fala-se profusamente em Juízes de Paz, o
mesmo acontecendo no Código de Processo Criminal de 1832.

8 - Hélio de Alcântara AVELLAR. Op. cit., pp. 38-39.


9 - ORDENAÇÕES FILIPINAS. Texto com introdução, breves notas e remissão redigidas por Fernando H.
Mendes de ALMEIDA. São Paulo: Saraiva, 1957, VOL. 1.
10 - Arno WEHLING; Maria José de WEHLING. “O Funcionário Colonial entre a Sociedade e o Rei”. In: Mary
DEL PRIORE (org). Revisão do Paraíso. Os Brasileiros e o Estado em 500 anos de História. Rio de Janeiro: Cam-
pus, 2000, p.146.
11 - João Camilo de Oliveira TORRES. Op. cit., pp. 255-256.

126
Deixemos de lado esta questão polêmica e nos fixemos em outro
assunto no qual as Ordenações foram pródigas. O assunto são as
sesmarias e o latifúndio.
Quero deixar claro que não tenho condições de abordar o regime
jurídico das sesmarias. Neste sentido, indico a já clássica obra
Sesmaria e Terras devolutas, de autoria do Prof. Rui Cirne Lima e
editada em Porto Alegre pela Editora Globo em 1935. Apesar de ter
sido há muito publicada, não perdeu a sua importância. Insiste o
autor na expressão “maninho” para as terras não aproveitadas para o
cultivo, ou seja, terras incultas.
O instituto da terra, cuja finalidade inicial era a cultura efetiva da
terra, já havia sido perdido. As exigências de medição e demarcação
judicial já não eram mais cumpridas. Consequentemente, a
confirmação régia das doações feitas seja por governadores,
seja por capitães generais, também não era efetuada. Além do
que o limite das doações (máximo de três léguas) há muito fora
ultrapassado12. Depoimentos feitos apontam para os problemas
básicos de propriedade da terra com a concentração de “grandes
áreas despovoadas e improdutivas nas mãos de particulares e do
Estado, e a existência nas diferentes Capitanias de contingentes
populacionais que não tinham possibilidade de acesso legal à terra e
que habitualmente contornavam esta situação optando pela simples
ocupação”. Se até os fins do século XVIII o sistema sesmarial vigente
na Colônia era, teoricamente informado pelas Ordenações tanto
manuelinas como filipinas13, posteriormente são baixadas normas
como o Alvará de 5 de outubro de 1795, suspenso em 10 de dezembro
de 1796, em vista dos “embaraços e inconvenientes” da sua imediata
execução. A grande concentração de terras nas mãos de particulares
resultou em latifúndios muitos deles improdutivos. A situação
caótica além de complexa com a coexistência de sesmarias, posses
e terras devolutas explica a resolução de 17 de julho de 1822, pouco
antes da proclamação de Independência que mandou suspender
“todas as sesmarias futuras até a convocação da Assembléia Geral,
Constituinte e Legislativa”, na qual nada foi decidido a respeito. A
solução (se de solução se pode falar) foi adiada, sendo a Lei das
Terras de 1850 a medida mais importante mas a sua implementação
mostrou como o governo central foi incapaz de aprovar medidas que
contrariavam os interesses de proprietários.
12 - José Murilo de CARVALHO. “Modernização frustrada: a política de terras no Império”. Revista Brasileira de
História( São Paulo), março de 1981.
13 - Leia-se de Nanci LEONZO. “A Propriedade”. In: Maria Beatriz Nizza da SILVA (coord.). O Império Luso-
-Brasileiro 1750-1822. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, pp. 63-83. Falar das Ordenações, no caso da propriedade,
é apontar para o 2º volume, títulos XLV, LXIX e L, da obra redigida por Fernando H. Mendes de Almeida.

127
Quanto ao latifúndio, são pertinentes as observações feitas
pelos Wehling na sua obra Formação do Brasil Colonial14, embora
algumas interpretações possam hoje ser questionadas pelo avanço
da historiografia pertinente. Para ficarmos com o Rio Grande do
Sul colonial leia-se, entre outras, as pesquisas de Helen Osório – no
caso é a sua tese de doutorado, transformada num livro de leitura
obrigatória: O Império português no Sul da América. Estancieiros,
lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
E, alem dessa obra, todos os trabalhos de Fábio Kuhn.
O latifúndio se caracterizou economicamente pela monocultura
e socialmente pela mentalidade aristocrática do proprietário rural,
especialmente o senhor de engenho. Alguns fatores gerais explicam
a existência dessa grande propriedade, tanto canavieira como
pecuarista: a abundância de terras, permitindo integrar às primitivas
sesmarias novas áreas, com relativamente pouca dificuldade
(obstáculos físicos pequenos, baixa resistência indígena), agricultura
e pecuária extensiva, tecnicamente atrasadas, exigindo áreas cada
vez mais amplas[...].
A questão do latifúndio exige duas observações: A 1ª: ele não deve
ser confundido com a expansão territorial. Por exemplo, o latifúndio
canavieiro [...] foi responsável pela ocupação de uma estreita faixa
litorânea. A grande expansão territorial verificada na Colônia se
deve ao latifúndio pecuarista e a outras formas de penetração (com
a apropriação de terras sem base legal).
A 2ª observação: o latifúndio não foi a única forma assumida
pela propriedade rural da Colônia. Com ela coexistiram a pequena
propriedade,dedicada ao cultivo do tabaco, na Bahia, a produtora
de artigos para o abastecimento urbano em Salvador e no Rio de
Janeiro, e a dos casais açorianos na ilha de Santa Catarina e em
Porto Alegre no século XVIII. É certo que a existência secundária
de pequena propriedade não elimina a existência dominante do
latifúndio, mas estabelece algumas nuances importantes na História
econômica e social de determinadas regiões.
E falar em latifúndio remete, no período colonial, à escravidão,
seja ela africana ou indígena. Ambos, grande propriedade e sistema
escravista, foram um legado português. A escravidão, até 1888, e sua
abolição, não alterou a estrutura judiciária vigente até hoje.

14 - Mais uma vez apelamos para a obra já citada, cujos autores são Arno e Maria José de WEHLING , p. 191.

128
Mas aspectos do sistema judiciário, questões relacionadas com a
propriedade da terra, não são o único legado do período colonial na
História do Brasil. Muitos outros aspectos poderiam e deveriam ser
lembrados. Apenas a título de exemplificação, deveria ler lembrado
o padroado e a inviolabilidade real que aparece nas Ordenações e
informa o Art. 99 da Carta Constitucional de 1824. O certo é que a
condição colonial do Brasil permaneceu apesar do 07 de setembro
de 1822.
Se os “homens bons” transformaram-se em cidadãos, a cidadania,
no entanto, foi restrita a poucos no Império e na República.
Permanece, pois, a pergunta: em relação a ela – cidadania – o que
mudou?

129
9- A MONARQUIA EM PORTUGAL E NO
BRASIL – UMA LONGA IDADE MÉDIA.
Maria Eurydice de Barros Ribeiro*

O título acima pode sugerir uma visão pragmática do estudo


da história de Portugal, em particular, da Idade Média para a
compreensão da história brasileira. Aparentemente, um raciocínio
simples se pensarmos a história como um processo que se desenvolve
em um tempo linear e progressivo. Em outras palavras, o medievo
português se prolongaria no Brasil, pelo viés da colonização,
permanecendo até os tempos atuais. O propósito deste trabalho
é analisar o contexto sócio-político que propiciou a implantação
do regime monárquico no Brasil, considerando que o conceito
de longa Idade Média não implica em linearidade, mas, sim em
rupturas. Pretende-se, partindo das cerimônias e rituais próprios ao
regime monárquico, concebidos na idade média, compreender os
significados de monarquia e dinastia real no Brasil.
Sérgio Buarque de Holanda, na coleção por ele organizada e que
formou várias gerações de historiadores brasileiros, tornando-se um
clássico da nossa historiografia1, afirmou que desde o século XVI
registrou-se uma animosidade entre os portugueses da Europa e do
Brasil. Dois séculos mais tarde, sob influência do liberalismo francês
e da emancipação das colônias inglesas da América do Norte,
esta animosidade ganhou força adquirindo um caráter de revolta
localizado, que como sabemos, nunca constituiu sentimento capaz
de fecundar um movimento nacional. Uma série de circunstâncias
nas quais se misturava interesses regionais, o modelo administrativo
da coroa e a vasta extensão territorial, impediu que no Brasil, o
sentimento de nação não se desenvolvesse concomitantemente,
com o de independência favorecendo a canalização dos sentimentos
para uma via dominante: o regime monárquico. De fato, a partir da
transladação da corte portuguesa e principalmente, depois do seu
retorno para Portugal, as hostilidades entre os súditos de um mesmo
rei manifestadas nas inconfidências regionais, foram, identificadas
como “infidelidade a Coroa”, conforme se definia na época, a palavra
*
Depto. de História e PPG de História da Universidade de Brasília.
1 - Os parágrafos iniciais que permitem introduzir o tema, são muito conhecidos por isso, nos baseamos na co-
leção dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, em especial no capítulo I, A herança colonial – sua desagregação,
que é de sua autoria. Procurou-se enfatizar os sentimentos dos portugueses que viviam ou nasceram no Brasil
com relação a monarquia. Sérgio Buarque de HOLANDA. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo:
DIFEL, 1970, tomo II, vol. I, pp. 9-39.

131
inconfidência.2 Note-se, porém, que tal infidelidade a Coroa lusa,
não questionava, o regime monárquico. No século XVII (1645-
47) os pernambucanos ressentidos pela indiferença de D. João IV,
buscaram a proteção de outro rei católico, no caso o rei da França.
Alguns anos depois, em 1692, os moradores da capitania, segundo
denúncia do reitor do Colégio de Olinda, juntamente com os de
Itamaracá pretendiam entregar “aquelas terras” ao rei francês. No
início do século seguinte, em1710, mais uma vez os pernambucanos
buscaram o apoio do soberano da França para o projeto de libertação
da capitania. Ainda, na segunda metade do mesmo século, chegaram
do Pará, notícias de conjuras que dividiam os moradores entre os
que eram contra a soberania portuguesa e os que se manifestavam a
favor da soberania francesa. Em 1755 quando se pensa em entregar
toda a Amazônia, consta que os principais envolvidos teriam escrito
ao rei da França por meio das autoridades de Caiena.3
Tais inconfidências, embora não tenham alcançado êxito e nem
mesmo possam ser tidas como representativas considerando a sua
expressão exclusivamente local, possuem um significado importante
para o que me interessa neste estudo. Não como “antecedentes da
independência”, como algumas vezes a historiografia brasileira
referiu-se ao nativismo, exaltando-o em publicações acadêmicas e
manuais escolares. São antes as pontas de um iceberg que foi ao longo
de quase dois séculos, rompendo as barreiras do gelo, para exibir
os picos de um paradoxo, expresso na convivência de sentimentos
contraditórios, como o apego ao regime monárquico representado, no
início do século XIX por um monarca português aclamado no Brasil.
Sabe-se que antes da emancipação colonial na América
Espanhola, os reinos ibéricos haviam caído no descrédito, na medida
em que o cenário na Europa se modificava e que os argumentos
para a manutenção das colônias perdiam consistência. Esta situação
não escapava aos brasileiros letrados que haviam estudado nas
universidades portuguesas, mas, também, nas universidades
francesas e inglesas, possibilitando a formação de uma consciência
acerca das riquezas do Brasil e das perspectivas futuras que tais
riquezas possibilitariam. Porém, tais reflexões só, começaram a
emergir a partir de 1808, visto que o grupo de intelectuais que as
abrigava não tinha como até então, meios para expressar-se. Se a
vinda da corte, mudou o estatuto da colônia acalmando o nativismo
ou quiçá, o ressentimento nativista, não possuiu peso suficiente para
modificar o olhar dos brasileiros letrados em relação a Portugal. Ao
2 - Sérgio BUARQUE DE HOLANDA. História Geral... Op.cit. p. 9
3 - IDEM, pp. 9-10

132
contrário, a corte lusa desembarcou em um país onde o número de
europeus de outras nacionalidades – espanhóis, franceses, ingleses e
suíços – era expressivo e se destacava no Rio de Janeiro pelos ofícios
que exerciam. Era impossível evitar a comparação e mesmo aqueles
que não faziam parte do seleto grupo dos letrados, que formariam
em breve a elite política brasileira, passaram a observar mais
atentamente os portugueses. Os proprietários de terra instalados em
sobrados no Rio de Janeiro viam a aristocracia portuguesa com certa
antipatia, embora não pudessem esconder a satisfação, ou mesmo
certa vaidade, pela presença da corte e posteriormente do rei nas
terras brasileiras4.
Estes sentimentos contraditórios se evidenciaram após o
Congresso de Viena quando, uma nova ordem européia reclamou
o retorno da família real para Portugal. D. João VI, então, parecia
ter outros planos políticos e permanecia no Brasil criando uma
situação que desagradava os súditos portugueses que viviam em
Portugal. Em 1820 a eclosão da revolução do Porto obrigou o
monarca a tomar uma decisão. Imediatamente, a eventualidade do
retorno do rei, opôs uns aos outros. Os portugueses, principalmente
os comerciantes, reuniram-se no que se denominou “partido
português” e se pronunciaram a favor do retorno de D. João VI. Os
brasileiros como se denominavam os portugueses nascidos no Brasil,
se posicionavam contra a partida de El Rei, pedindo por meios de
cartas a sua permanência. Esta correspondência tinha a sua origem
nos setores políticos mais influentes, isto é, os liberais e os franco-
maçons do Grande Oriente que defendiam o regime monárquico 5.
Viriam se juntar a esta correspondência, as brochuras publicadas
em Lisboa 6 e no Rio de Janeiro testemunhando como os dois grupos
pretendiam atingir a opinião púbica, ainda que, muito restrita na
época. A primeira brochura foi editada em francês. O título - O Rei
e a Família Real de Bragança devem nas circunstâncias presentes,
retornar a Portugal ou permanecer no Brasil? - revelava sem dúvida,
a oscilação do monarca, mas, ao mesmo tempo revelava também, o
apreço pela instituição monárquica naquele momento representada
por D. João VI. Um dos argumentos mais fortes da brochura consistia
em afirmar a superioridade do Brasil sobre Portugal. Tal argumento
repousava no fato de que havia treze anos que o Brasil, era o centro
4 - Ibidem, pp. 10-12
5 - Retomo alguns aspectos da análise desenvolvida no livro de minha autoria, Os símbolos do poder, em espe-
cial, os dois capítulos iniciais. Maria Eurydice de BARROS RIBEIRO. Os símbolos do poder. Cerimônias e Imagens
do Estado Monárquico no Brasil. Brasília: Ed. UNB, 1995.
6 - Anônimo. Rio de Janeiro: Impremèrie Royale, 1822. In: Raimundo FAORO. O debate político no processo de
independência,. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973, pp. 1-10.

133
do Império Português. Além disso, acrescentava o autor, era mais
extenso e mais rico. Ora, um documento vale mais pelo significado
que possui, do que literalmente, pelo que diz. O que se pode ler da
brochura em francês era a sua fidelidade monárquica, de coloração
absolutista, mas, que, almejava romper com as amarras do pacto
colonial. A resposta não tardou, em Lisboa e na Bahia apareceram
as Considerações sobre a integridade da Monarquia Portuguesa e o
“Exame analítico-crítico e a solução da questão: o rei e a família real
de Bragança devem nas circunstâncias presentes, voltar a Portugal
ou ficar no Brasil?” 7 O segundo documento redigido na Bahia era
também, anônimo, mas é evidente que expressava os interesses da
maioria da população livre constituída de comerciantes portugueses.
Não hesitando em condenar a brochura em francês, seu autor
afirmava que esta era contrária aos interesses do rei e da nação e
que os laços que uniam o Brasil a Portugal e Algarves deveriam ser
preservados. A defesa da instituição monárquica caracterizava-se
aí pelo temor que a maioria de comerciantes portugueses nutria
com relação ao rompimento do pacto colonial. Acrescentando, em
uma clara referência ao republicanismo, que a Pátria e o Estado
encontravam-se ameaçados e os exemplos da América não eram
bons para o Brasil. O discurso do anônimo evidenciava ainda, que
só existia uma nação, a portuguesa. A nação e o rei formam uma
só pessoa e o Estado é a mãe pátria8. Em última palavra, no regime
monárquico se “fundem a Nação, o Estado e a Pátria”.
Nas Reflexões sobre a necessidade de promover a união dos estados
de que consta o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves nas quatro
partes do mundo 9, no número 16 das bases, Reflexão 17, declarava
claramente que a nação portuguesa são todos os portugueses de ambos
os hemisférios, e numerava os prejuízos que sofriam a indústria e o
comércio português pela abertura dos portos as nações amigas e pelos
Tratados de 1810 com a Inglaterra, sublinhando a necessidade de
Portugal deixar para trás o lugar subalterno que vinha ocupando na
Europa. As Reflexões expressavam a preocupação com a emancipação
do Brasil, argumentando que a maioria da população era constituída
por escravos negros e por minoria civilizada. Esta mesma reflexão
se repetiria em outros documentos da época, como um obstáculo
capaz de barrar a independência. O autor da Justa retribuição dada ao
compadre de Lisboa em desagravo dos brasileiros ofendidos por várias
acusações...10, identifica-se como sendo ao mesmo tempo, português,
7 - IDEM.
8 - Maria Eurydice de BARROS RIBEIRO. Os símbolos do poder.... Op. cit. pp. 31-32
9 - Raimundo FAORO. O Debate político.... Op. cit.
10 - IDEM.

134
logo, vassalo do rei, e brasileiro, por habitar no Brasil, obrigado a
defender o seu país e seu povo ofendido. A mãe pátria não era apenas
Portugal, visto que o Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves,
é composto das possessões da Ásia e África, das Ilhas da Madeira,
Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, finalmente, o Império
Português do qual para o autor, o Brasil era a parte mais importante.
Ao evocar o regime monárquico representado por D. João VI
a documentação explicita a importância política da monarquia,
defendendo o status quo que o Brasil adquirira com a presença do
rei. D. João VI, que desembarcara no Brasil, como príncipe regente,
fora aclamado em terras brasileiras como rei de Portugal, a cabeça
de todo o império português que naquele momento, juntamente
com a sua corte, se encontrava no Rio de Janeiro. Era dali, que
segundo a documentação que se acabou de fazer referência, deveria
ser salvaguardada a ordem que a revolução do Porto ameaçava. O
restante do império eram os membros deste corpo cuja cabeça era o
rei. O que o grupo político formado de forças heterogêneas almejava
de fato, e julgava ser o seu direito, era manter a cabeça do Reino Unido
no Brasil. A permanência do rei no Rio de Janeiro, soava essencial e
seria graças a continuidade da corte no Brasil, que Portugal poderia
se tornar uma das maiores monarquias do mundo composta de vários
territórios no ultramar, constituindo uma união econômica e social
onde as necessidades eram, todavia recíprocas, conforme declaravam
as Reflexões. Em última palavra, caberia a cabeça, a partir do Rio de
Janeiro, (como de fato já ocorria) garantir a harmonia, assegurando
as necessidades recíprocas, isto é, necessidades próprias a cada uma
das partes do império português, conforme afirmam as Reflexões.
Para isto, recorria-se a estruturação de imagens mentais que vinha
de um passado remoto e que imprimiam continuidade a figura real,
vinculada a idéia de ordem, lembrando que todos, tanto de um lado,
como de outro do oceano, eram súditos do mesmo rei. São como
súditos de El Rei, que os brasileiros se reconheciam e assumiam um
papel na ordem política do momento. Este apelo a figura real remete
D. João VI a própria história da monarquia em Portugal. A cerimônia
da aclamação vivenciada pelos seus antepassados, inspirada
inicialmente, no ritual germânico de levantamento e aclamação de
Afonso Henriques no campo de Ourique, não apenas rememorava a
imagem do rei guerreiro, mas, entre rupturas e adaptações repetia-se
em Portugal e se aclimataria no Rio de Janeiro. Assegurava ao rei o
direito, de onde ele se encontrasse, de governar o seu reino, o que já
ocorria desde 1808, quando o príncipe regente, governava do Rio de
Janeiro, todo o império.
135
A gravura produzida por Jean Baptista Debret 11 por ocasião,
da aclamação de D. João VI, enfatiza o momento da aclamação.
Enfocando em primeiro plano a multidão; e no fundo, o palácio de
onde se distinguia com dificuldade a sacada e a minúscula figura
do rei – contrasta com a mesma representação produzida pelo
mesmo artista, por ocasião da aclamação de D. Pedro I em que o
imperador aparece claramente na sacada, acenando para a multidão.
Na primeira, o artista valorizou a cena externa da aclamação do
rei enfatizando a participação pública constituída na época pelos
súditos. Na mesma ocasião, produziu outra gravura retratando
a cena no interior do palácio, quando o rei foi aclamado. Diante
das autoridades eclesiásticas, portando as insígnias reais, tal
representação comparada ao retrato de seu filho, aclamado, sagrado
e coroado permite entrever pelo porte das insígnias, em particular
pelo cetro, o que aproximava e separaria um monarca do outro,
assinalando o momento de construção de ambas as imagens reais
com que ambos seriam projetados na posteridade. D. João VI entrou
para a História do Brasil como espécie de rei fraco, o rei bufão de
uma corte decadente que perdera o poder; enquanto de D. Pedro I
ficou a imagem de um príncipe viril, temperamental a quem coube
os louros da independência, ao ponto que se chegou a transplantar,
quando das comemorações dos 150 anos da independência, os restos
mortais que foram então, depositados no monumento do Ipiranga.
A imprensa registrou os sentimentos provocados no Brasil nos
momentos que se sucede a partida do rei para Portugal, assinalando
dois sentidos aparentemente opostos, um, a favor, e outro contra a
política das Cortes de Lisboa. Neste contexto, três tendências políticas
se delineavam: uma favorável a monarquia absoluta; outra apoiava a
monarquia constitucional; e a terceira constituía-se de republicanos
e democratas. O cenário político tornara-se mais complexo a
qualquer observador uma vez que, se podia ser hostil as Cortes de
Lisboa sem ser a favor da independência. Não havia nacionalismo
e muito menos nacionalismo separatista, uma vez que conforme
já apontado, as conjuras permaneciam locais e não colocavam em
questão o regime monárquico. O sentimento que dominava era o
medo de que a separação trouxesse consigo a desagregação territorial
e consequentemente, a anarquia e a guerra civil. O exemplo de países
vizinhos freava os ímpetos de independência. Esses sentimentos que
sublimavam o desejo de emancipação, foram bem avaliados por
Hipólito da Costa, em 5 de junho de 1821, no Correio Braziliense,
11 - Jean Baptiste DEBRET. Voyage pittoresque et historique au Brésil, ou séjour d’um artiste français au Brésil
depuis 1816 jusqu’en 1831. Paris: Firmin Didot Frères, tomo III, prancha 6.

136
quando registrou o desejo de união com Portugal manifestada pelas
províncias que passaram a reconhecer o sistema constitucional sem
que ao mesmo tempo, se pudesse impedir que alguns julgassem ser
tempo do Brasil se emancipar da antiga metrópole.
Aos poucos, a idéia de independência foi se desenvolvendo
principalmente, na imprensa e nas sociedades secretas, sem
que, a primeira expressasse uma posição separatista inequívoca.
Ajustando-se ao contexto político da época, a imprensa só contribuiu
na repercussão da idéia de emancipação quando esta já era um fato
evidente. Parte dela, como o Correio Braziliense era conservadora
e a favor da monarquia constitucional defendendo sempre, a união
dos reinos e declarando fidelidade ao Príncipe D. Pedro. Ao mesmo
tempo, nas sociedades secretas, em especial na maçonaria, vencia a
idéia da independência monárquica, como meio de criar um estado
de ordem representado pelo príncipe regente. A idéia de república,
ligava-se a desordem e a guerra civil. Assim, em torno do príncipe D.
Pedro, representante legítimo da ordem, os ideais da emancipação
política do Brasil, gravitavam. O príncipe era considerado como
a única possibilidade de reação contrária ao mesmo tempo as
Cortes de Lisboa - que exigiam o seu retorno – e ao republicanismo
latente, porém ameaçador. Duas imagens mentais se estruturaram
evocando o passado monárquico. Ambas apareciam inseparáveis:
Inicialmente, a legitimidade do príncipe que provinha do direito de
nascimento inerente ao titulo real por transmissão da sua linhagem
de sangue, a quem cabia manter a ordem. Ele surgia então, como a
única possibilidade capaz de evitar o caos tanto frente as Cortes de
Lisboa, quanto as idéias republicanas que ameaçavam a desagregação
territorial.
Foi muito expressivo para a época, o número de pessoas que
assinaram a representação pedindo ao príncipe que não deixasse o
Brasil. Via-se na regência de D. Pedro a única forma de impedir a
perda do Brasil, fosse para uma outra monarquia estrangeira mais
forte ou para o republicanismo. O documento se referia também,
a Constituição vendo nela o instrumento capaz de unificar as
províncias e conceber a união dos dois reinos, Brasil e Portugal.
A política das cortes precipitava as articulações políticas na
medida em que a exigência do retorno do herdeiro favoreceria a
autonomia das províncias que provavelmente, se separariam. Nas
Representações que à Augusta Presença de Sua Alteza Real, o Príncipe
Regente do Brasil levaram o Governo da Câmara e clero de São Paulo
por meio de seus respectivos deputados, rogavam,
137
“A V.A.R. que para bem seu e nosso, satisfaça as nossas súplicas
tão bem fundadas na Religião, que também padecerá da ausência de
um Príncipe tão religioso e formado conforme o coração de Deus.
Segundo se explicam as Sagradas Escrituras: não nos deixe órfãos,
sujeitos a tantos infortúnios”12.

Vou me deter na última frase do documento que apelando


para a bíblia insiste com força para o sentimento de orfandade de
quem perde o Pai. Lembrava assim ao príncipe os deveres sagrados
próprios a um rei que estabelecidos desde a idade média, associavam
o monarca ao estabelecimento da paz e da justiça. Funções estas,
que o envolviam originalmente, em uma auréola messiânica
onde a figura paternal se confundia com o do salvador. Todavia,
D. Pedro I era um príncipe moderno, dizia-se mesmo, liberal e a
favor da constituição, portanto, convém investigar de que forma o
papel de salvador lhe foi atribuído. Sem dúvida, o passado dos seus
ancestrais estimulado pela memória coletiva emergia, porém, não
sem, importantes rupturas. O exame dos últimos acontecimentos,
em particular daqueles narrados pelos manifestos de agosto de 1822;
a proposta feita pela maçonaria e aceita pelo príncipe; a convocação
de uma Assembléia Constituinte e finalmente, como tudo isto foi
narrado e divulgado pela imprensa, forjou um discurso sobre quem
era, e, sobretudo quem viria a ser o príncipe herdeiro da dinastia
de Bragança. Assinale-se que foi aí que o discurso fundador sobre o
primeiro imperador do Brasil, começou a ser escrito. A imagem do
salvador revivida, respondia a um momento de temor e instabilidade.
Como se sabe, foi momentânea e teve curta duração, interrompida
posteriormente, pela própria abdicação de Pedro I, embora a
historiografia e os manuais escolares tenham preservado, o título
de “Defensor Perpétuo do Brasil”. Seja como for, esta imagem nos
momentos que antecederam a independência, sensibilizou a opinião
pública, preparando-a para os acontecimentos do Ipiranga, ou mais,
foi capaz de captar o apoio e a esperança coletiva.
Raul Girardet, em Mythes et Mythologies Politiques, mostra como
os momentos de efervescência mitológica sempre correspondem aos
fenômenos de crise, mutação, ou de ruptura, momentos em que se
formam o que ele denomina de constelações, isto é, grandes conjuntos
político-mitológicos. É neste contexto que surge a figura do salvador.
Inspirando-se em Bachelard e Lévy Strauss, ele descreve os temas,
12 - Cartas e mais peças oficiais dirigidas a Sua Majestade o senhor D. João VI pelo príncipe real o senhor D. Pedro
de Alcântara e juntamente os ofícios e documentos que o general comandante da tropa expedicionária existente na
província do Rio de Janeiro tinha dirigido ao governo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1822

138
analisando essas estruturas no contexto de determinada sociedade
e cultura13. Uma das primeiras advertências do autor consiste na
necessidade de distinguir a parte real daquela que diz respeito ao
imaginário político, o que implica em distinguir a espontaneidade
criativa, da construção intencional.
O imaginário atribui, no ocidente, desde o medievo, ao rei uma
função messiânica, mensagem fácil de passar aos brasileiros católicos
e sensíveis no momento, ao apelo nostálgico portador de esperança.
Lembre-se que o documento em questão encaminhado ao príncipe,
citava as Escrituras e vinha assinado pelo bispo de São Paulo, o que
aponta para a atuação da Igreja, a qual se acrescenta as intenções da
maçonaria e do grupo em torno dos Andradas, que tinham plena
consciência de que uma independência sem perdas territoriais,
teria que ser monárquica. Ao mesmo tempo em que a imagem do
salvador foi construída, a história se processava marcada pelo jogo de
manipulação de peso significativo no processo de elaboração mítica.
Isto é, a partir do momento onde todo mito deste tipo toma certa
amplidão coletiva e tende a combinar vários sistemas de imagens e
representações; e a se constituir em outros termos em uma espécie
de encruzilhada do imaginário onde se cruzam e se afrontam as
aspirações e as exigências as mais diversas, ou até mesmo, as mais
contraditórias14.
A independência monárquica se construiu assim, em oposição à
república e envolvida como se mostrou, em várias contradições que
misturavam idéias conservadoras e liberais. Recorrer ao passado é
uma prática repetitiva histórica. Independente do lugar ou da época,
todo regime monárquico, repousa nos laços de família, valorizando
os ancestrais. Qualquer família política se considera necessária,
quando se trata de afirmar sua legitimidade ou de assegurar sua
continuidade, apelando para o passado sacralizado.
Foi afirmando a legitimidade de assegurar a continuidade
da dinastia de Bragança no poder, que em 9 de janeiro de 1822,
escrevendo ao pai, narrando os acontecimentos do dia, o príncipe
concluiu, “Deus guarde a preciosa vida e saúde de Vossa Majestade,
como todos os portugueses o hão mister e igualmente – Este seu
súdito fiel e filho obedientíssimo, que lhe beija a Sua Real Mão
– Pedro” . Mais do que desejar vida e saúde, votos próprios a um
filho dedicado, D.Pedro despede-se beijando a mão do soberano.
Este ato, porém, vai além de um simples gesto de um filho que
quer ser abençoado pelo pai. Ao beijar a Real Mão, é o príncipe
13 - Raul GIRARDET. Mythe et mithologies politiques, Paris: Flammarion, 1986, p 72
14 - IDEM, 72-73

139
que reconhece a autoridade do rei, reconhecendo que lhe deve
submissão. É o pronto reconhecimento de que o Brasil é uma das
partes do corpo que constitui o império português, cuja cabeça, é
o rei, conforme referência acima. O dia 9 de janeiro entrou para a
história como o dia do Fico. A imagem do príncipe como salvador
se fortaleceria na medida em que ele salvaria o Brasil das inovações
perigosas assegurando os direitos sagrados da Coroa Bragantina.
Neste contexto político, sabiamente, a maçonaria ofereceu o título
de “Protetor e Defensor Perpétuo do Brasil,” título que para alguns
soava uma provocação as Cortes de Lisboa, mas, que não impediu
que o príncipe o aceitasse, embora, com uma ressalva; ele só acataria
ser o Defensor, pois segundo ele, o Brasil não precisava da proteção
de ninguém; era capaz de proteger-se. Com audácia, um grupo de
políticos solicitou ao príncipe que convocasse uma Assembléia Geral
dos Representantes das Províncias do Brasil.
As Cortes de Lisboa evidentemente não apreciaram os últimos
acontecimentos, exigindo o retorno imediato do príncipe. Os
manifestos de agosto, que ao mesmo tempo explicaram ao povo da
guerra travada com o governo de Portugal, justificaram os atos do
príncipe em aceitar o título de Defensor e convocar uma Assembléia
Constituinte. Em correspondência ao pai, D. Pedro expressava
preocupação em salvaguardar a monarquia e, com ela, os direitos da
Casa de Bragança:

“Julguei então indigno de mim e do grande rei de quem sou filho


e delegado desprezar os votos de súditos tão fiéis; que sopeando
talvez desejos e propensões republicanas desprezam exemplos
fascinantes de alguns povos vizinhos, e depositaram em mim todas
as suas esperanças, salvando deste modo a realeza, neste grande
continente americano, e os reconhecidos direitos da augusta Casa
de Bragança15. ”

A preocupação em assegurar os direitos dinásticos não se


restringia apenas ao próprio príncipe. Antes do Fico, no Manifesto
do Povo do Rio de Janeiro encaminhado a V.A.R., os suplicantes
se diziam “persuadidos, como os demais Cidadãos amigos do
sossego e boa ordem, que o Reino do Brasil se conservaria sempre
regido pelo primogênito, ou sucessor do trono português, como foi
assentado em um Conselho de Estado em Lisboa no mesmo ano de
180716. Ora, esta lembrança ao mesmo tempo em que confirmava
15 - Cartas e mais peças.... Op. cit., p. 22
16 - IDEM.

140
a legitimidade do príncipe em ocupar o trono do Brasil, aludia ao
direito de sangue e de progenitura que caracterizaram as dinastias
portuguesas desde a fundação da monarquia, fazendo prevalecer
a idéia de que ao primogênito caberia herdar a coroa. Por isto, D.
Pedro jurou fidelidade ao pai, mantendo o sentimento dinástico,
base da sua legitimação. Enfim, recoloca e põe em cena um modelo
de realeza e império.
A independência monárquica se instalou ao mesmo tempo
pressionada pelos atos da Corte de Lisboa e se contrapondo a
possibilidade de uma separação republicana. Embora alguns, menos
conservadores preferissem olhar para D. Pedro como um rei novo,
escolhido pelo povo e sem ancestrais. A realidade apresentava-se
outra; o príncipe regente simbolizava uma independência indolor,
e tinha legitimidade, descendendo de uma dinastia que reinava do
outro lado do Atlântico. Em 16 de setembro, mais uma declaração
escrita por Ledo, recordava o êxito da união em torno do príncipe,
defendia as razões que haviam conduzido a independência, mas,
insistia na união territorial do Prata ao Amazonas.
A gravura de Debret que retrata a aclamação de D. Pedro I
permite compreender o conteúdo popular que lhe foi atribuído.
Segundo o artista, a cerimônia teve lugar no Campo de Santana, e
representa o imperador, tendo do seu lado esquerdo, o presidente do
Senado da Câmara, José Clemente Pereira, que pronuncia o último
viva após erguer no ar o ato que fez de D. Pedro, imperador do Brasil.
Em resposta, a tropa por meio de descargas de artilharia, imprimiu
grande júbilo ao momento marcado também, por gritos de vivas.
Na primeira fileira da sacada, junto a D. Pedro, ao lado de Clemente
Pereira, encontrava-se o porta- estandarte que, sustentando a nova
bandeira com as armas do império, saldava a multidão. Do lado
direito, a família real, D. Leopoldina e a princesa Maria da Glória
erguida nos braços pelo Capitão da Guarda, permitindo assim,
que o povo a visse. A segunda fileira era formada pelos ministros,
distinguindo-se José Bonifácio, imediatamente atrás do imperador.
Ao seu lado, os demais ministros. Todas as autoridades civis e
militares espremiam-se no interior do Palácio17.
Jean Baptiste Debret imprimiu em imagens toda a solenidade
que marcou a aclamação do imperador. A quantidade de pessoas
presentes no interior e no exterior do palácio, expressou com êxito
o significado popular buscado para o momento: o imperador era
sem dúvida, aclamado pelo povo com grande euforia. Assim como
17 - Jean Baptiste DEBRET. Voyage Pittoresque et historique…. Op. cit., prancha 47

141
os gestos que sustentavam o ato e a bandeira saudavam o novo
império, a jovem princesa, ainda uma criança, era também exibida,
demonstrando que a continuidade dinástica estava garantida e o
império consolidado. Não por acaso, José Bonifácio, encontrava-
se atrás do imperador, como uma sombra que o protegia revelando
o papel de líder da grande articulação política que resultara na
independência monárquica.
Comparada a cerimônia de seu pai, que obedeceu ao modelo
dinástico dos Bragança, a aclamação de D. Pedro trouxe várias
inovações. Precedendo as cerimônias de Sagração e Coroação, a
Aclamação deixava claro, que D. Pedro não seria rei por vontade
divina, mas imperador constitucional por vontade popular.
Contraditoriamente, porém, o ritual que se seguiria – Sagração
e Coroação – assim como o porte das insígnias, em particular a
coroa por D. Pedro I permite constatar que o império do Brasil seria
muito mais sacralizado que a monarquia portuguesa, a qual o jovem
imperador devia a sua legitimidade.
O quadro em que Debret retratou a sagração do primeiro
imperador foi considerado por Pedro Calmon 18 como um
documento, por excelência, do ato litúrgico. Mas, convém notar
que tal ato, não se restringia apenas a um ritual religioso, mas,
também político, inaugurando uma liturgia nova inexistente na
corte portuguesa, rompendo assim com o cerimonial lusitano, que
apenas aclamava o rei. Embora a historiografia portuguesa busque
demonstrar a existência do ritual de sagração e coroação em Portugal,
segundo as fontes, nenhum rei português foi sagrado e coroado, o
que faz do imperador do Brasil, o primeiro príncipe português a
sustentar na cabeça uma coroa. Conforme a tradição, desde D. João
IV, o fundador da dinastia de Bragança, os monarcas portugueses
haviam consagrado a coroa a N. S. da Conceição, padroeira do
Reino. Esta tradição rompida no Brasil, onde o plano das cerimônias
foi antecipadamente planejado, aprovado e publicado inspirando-
se paradoxalmente, no cerimonial de Napoleão19, enfatizava a
importância da dinastia na escolha da data, 1 de dezembro, que
segundo a Gazeta do Rio, foi data tão célebre nos anais da nação
portuguesa,

18 - Pedro CALMON. Apud Guilherme SCHUBERT, introdução. “A coroação de D. Pedro I”. Comunicação
apresentada durante o Congresso de história da independência do Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1972, p. 13.
19 - Aparentemente, parece paradoxal que D. Pedro I tome as cerimônias napoleônicas como modelo conside-
rando que, Bonaparte foi a razão da corte portuguesa ter deixado as pressas Lisboa para refugiar-se no Brasil. No
entanto, é importante lembrar que Debret, membro da missão artística francesa, era parente próximo de David,
pintor de Napoleão.

142
“... por haver neste dia sacudido o jugo opressivo dos intrusos
Felipes, reis da Espanha, elevando ao solio da monarquia ao senhor
D. João, oitavo duque de Bragança e quarto entre os reis de Portugal,
daquele nome; depois de 182 anos torna ainda mais celebre em que
os anais do Brasil, por se haver nele sagrado e coroado e colocado
no áureo trono deste vastíssimo império o augustíssimo senhor,
D. Pedro, seu quinto neto, que fora aclamado primeiro imperador
constitucional e perpétuo defensor dele em 12 do passado mês de
outubro”.

O sentimento dinástico, garantido no direito de sangue, era


rememorado na sua continuidade histórica, sublinhando a data
escolhida para a Sagração e Coroação. Era a mesma do nascimento
da dinastia, em analogia com a separação de Portugal da Espanha,
assim como o Brasil, se separava de Portugal; rememorava-se o ato
heróico da fundação da dinastia de Bragança fundada por D. João, o
quarto, que imprimira pela continuidade do nome, a continuidade
monárquica. Dela, D. Pedro, seu quinto neto, quarto do nome
e primeiro do Brasil, descendia, alimentando do outro lado do
Atlântico, a sucessão real, defendo a Igreja e promovendo a justiça
conforme, mais uma vez, a distribuição dos lugares atribuída aos
personagens, registrada por Debret permite compreender. Dos dois
lados do trono, o clero, representando “a concórdia estabelecida entre
o Poder e a Fé; no acordo ostensivo da Igreja com a independência”
20
mais abaixo, à direita, de bastão em punho, o velho Andrada regia
a festa. Entre ele e o clero, os magistrados e a nobreza; na platéia,
dentre os que assistiam a cerimônia, o corpo diplomático21. Tratava-
se evidentemente de mostrar com toda a pompa possível, fazendo-
se ungir e coroar, o nascimento do novo império que não usurpava
o trono, ao contrário, era ocupado pelo primogênito que herdava
parte do reino 22.
Concluindo, é possível afirmar que a continuidade monárquica
no Brasil constituiu-se em um movimento de longa duração, que
não implicou em continuidade, mas em rupturas importantes, nas
quais remetendo a tradição medieval – da transmissão de pai para
filho primogênito, do reino como herança baseada no direito do
sangue – a dinastia de Bragança reinou no Brasil até 1889 como uma
stirps regia, isto é, uma dinastia real.

20 - Guilherme SCHUBERT. A coroação... Op. cit. pp. 13-14


21 - Jean Baptiste DEBRET. Voyage Pittoresque et historique…. Op. cit., prancha 47
22 - Ver para detalhes da cerimônia de sagração e coroação de Pedro I, Maria Eurydice RIBEIRO. Os símbolos do
poder... Op. cit..

143
10- SERVIÇO E BENEFÍCIO: RELAÇÕES E
REDES SOCIAIS NA TRADIÇÃO IBÉRICA.
Maria Filomena Coelho*

O propósito deste encontro é refletir sobre “a persistência


de tradições históricas nascidas no período medieval, em solo
americano”. Felizmente, começam a difundir-se as iniciativas deste
tipo. Recentemente, o Programa de Estudos Medievais (PEM) da
UnB propôs também uma discussão sobre a “longa duração”, que
reuniu diversos especialistas para discutir a longevidade dessas
tradições, da “antiguidade tardia” à “longa Idade Média”. Na ocasião,
medievalistas, historiadores da arte, pesquisadores de Brasil colônia
apontaram para a necessidade de se aprofundar o diálogo, por
considerar que se abria um importante canal de compreensão do
passado1.
Embora muitos medievalistas brasileiros insistam na necessidade
de que a área História Medieval seja autônoma com relação a outras
cronologias, parece-me, entretanto, que essa precaução está ainda
vinculada à necessidade de se afirmar a existência da disciplina, frente
aos ataques ideológicos das décadas de 60, 70 e 80 do século passado.
Naquela época, estudar o período medieval somente se justificava
se isso estivesse a serviço de uma causa maior, ou seja: por meio
do conceito de modo de produção, decidir, finalmente, a posição
que o período colonial brasileiro ocupava na marcha inexorável
em direção ao socialismo do século XX. Assim, era importante
conhecer a Idade Média ibérica, mas em estreita relação com o Brasil
colônia. Aqueles historiadores que insistiam em estudar o período
medieval de outras geografias e períodos, como a França carolíngia,
eram fortemente estigmatizados, assim como aqueles que escolhiam
abordagens culturalistas. Sob os mais diversos pretextos - todos de
caráter ideológico - eram acusados de conservadores, burgueses,
alienados... Essa discriminação gerou uma espécie de trauma no
medievalismo brasileiro, que, ainda hoje, resiste à possibilidade de
empreender estudos de longa duração que juntem as cronologias
baixo-medieval ibérica e colonial americana. Mas, a pouco e pouco,
as iniciativas vão surgindo, sobretudo nas gerações de medievalistas
que não viveram diretamente o confronto acima mencionado.
*
Depto. de História e PPG de História da Uiversidade de Brasília.
1 - C. FONSECA; M.E. RIBEIRO; M.F. COELHO (Eds.). Por uma longa duração. Perspectivas dos estudos me-
dievais no Brasil. Atas da VII Semana de Estudos Medievais. Brasília: PEM-UnB/Casa das Musas, 2010.

145
Permito-me, aqui, fazer um pequeno relato pessoal, de uma
trajetória acadêmica que acabou por transitar nessa longa duração.
Brevemente, tratarei de expor a conexão entre duas pesquisas
realizadas entre o final da década de 1980 e o início da década de
2000. A primeira, sobre o poder feudal no antigo reino de Leão, com
base em arquivos monásticos; a segunda, sobre conflitos de poder
em Pernambuco (1745-50), a partir de um discurso apologético
que registra o embate entre diversas jurisdições. A proposta, que
inicialmente pode parecer descabida, tem um fio condutor que une
os dois momentos, e que foi inspirada por alguns problemas que o
estudo da História me apresentou já na graduação.
Nessa época, eu gostava de ler os documentos coloniais dos
séculos XVI e XVII, verdadeiras epopéias de homens que cruzavam
o Atlântico e que, mesmo distantes do poder do rei, teimavam
em obedecer-lhe. Eu lia as cartas de Duarte Coelho a d. João III e
pensava: como dava trabalho obedecer! Teria sido muito mais fácil,
para esse nobre português, comportar-se como aqueles da capitania
da Bahia, de quem ele vivia se queixando, que desassossegavam o
povo, eram maus vassalos, mas a quem Sua Majestade não alcançava
e, ainda assim, dava mercês! Nesse penoso processo da obediência,
até o rei atrapalhava. Porém, contra tudo e contra todos, Duarte
Coelho, carta após carta, pacientemente, repetia, reafirmava sua
obediência. A própria narrativa dá valiosas pistas ao historiador
sobre as raízes dessa tradição política. O capitão-donatário explica
que ela foi passada de geração a geração, desde tempos imemoriais2.

DA IDADE MÉDIA...

Foi assim que, há algumas décadas, tomei a decisão de estudar


o poder na Península Ibérica, na Idade Média. Porém, inspirada
pelos vassalos da conquista do Brasil, mais do que interessada em
compreender por que e como se exercia o poder - coisa que de resto
se fazia de sobra - eu queria entender por que aqueles homens e
mulheres se submetiam ao poder, queriam obedecer, mesmo quando
o próprio senhor ‘atrapalhava’. Confesso que minha abordagem não
foi acolhida com grande simpatia, sobretudo numa época em que era
pecado mortal imaginar que os de baixo não se revoltassem frente
aos poderosos e não rompessem as amarras sempre que aqueles
baixassem a guarda. Entretanto, parecia-me que a ‘livre’ obediência
2 - José Antônio Gonsalves de MELLO; Cleonir X. de ALBUQUERQUE. Cartas de Duarte Coelho a El Rei.
Reprodução fac-similar, leitura paleográfica e versão moderna anotada. Recife: Massangana, 1997. (Primeira
edição, Imprensa Universitária,1967).

146
era, sim, uma chave importante para compreender as lógicas do
poder medieval.
Escolher um corpus documental foi a etapa seguinte. Precisava
de um universo razoável de atores e de situações que oferecessem a
possibilidade de pensar o poder em todas as suas facetas. Fui colocada
diante da documentação de três mosteiros femininos cistercienses do
reino de Leão, com um recorte de duzentos anos, entre meados do
século XII e do século XIII 3. Refiro-me aos mosteiros de Gradefes,
Carrizo e Otero de Las Dueñas. Há que dizer que no final da década
de 1980, o monacato medieval estudava-se na Espanha pelo “modelo
dos domínios monásticos”, ou seja, interessava, sobretudo, entender
o mosteiro como uma unidade feudal de poder, com a capacidade
de feudalizar o seu entorno, por meio de uma eficiente formação e
exploração dos domínios senhoriais. Entretanto, apesar do que então
se dizia quanto ao mutismo das fontes, os documentos aportavam
muitas informações que permitiam descobrir a complexidade das
relações de poder dentro dos domínios, para além do próprio poder
exercido pelos mosteiros sobre seus dependentes. Claro que não se
tratava da narrativa colonial, rica em detalhes, mas, ainda assim, a
diversidade dos documentos e a leitura paciente, atenta, permitiram
descobrir algumas das lógicas que fundamentavam a dinâmica do
poder.
Sem dúvida, e em todos os níveis sociais, o princípio da
obediência aparecia ligado ao reconhecimento da autoridade, e
só tem autoridade aquele que é investido desse poder. Para além
da proveniência mágica ou sagrada do poder, há outro elemento
que aparece aos olhos de todos como evidência da capacidade de
exercer o poder: beneficiar, recompensar os que servem, aqueles que
prestam serviço. Assim, a todo serviço corresponde um benefício,
a todo benefício corresponde um serviço. Esta dinâmica, se não
explica todos os aspectos das relações pessoais em sociedade na
Idade Média, certamente abarca um universo que se aproxima muito
da totalidade. Somente pode ser obedecido, ser reconhecido como
superior, aquele que reconhece generosamente e com justiça os
serviços que prestam os dependentes.
Essa estreita relação entre serviço e benefício desenhou-se
claramente no conjunto documental dos mosteiros que estudei.
E a questão da obediência parecia-me claramente vinculada à
harmonia entre os dois pratos da balança. É mais. O próprio serviço
confundia-se com a obediência. Somente se presta serviço àquele
3 - Maria Filomena COELHO. Expresiones del poder feudal. El Císter femenino en León (siglos XII-XIII). León:
Universidad de León, 2006.

147
a quem se reconhece superioridade e autoridade, ato do qual se
desdobra a obediência como conseqüência natural. Neste sentido, é
preciso dizer que a documentação permite reconstruir vários níveis
hierárquicos dentro da dinâmica serviço-benefício e de seus atores
sociais.
Foi possível encontrar evidências de pequenos camponeses que
recebiam, quer dos mosteiros, quer de senhores laicos, terras para
serem exploradas sob várias condições, coisa que a historiografia
interpreta como laços de dependência e até mesmo como servidão.
Sem desmerecer este aspecto, o discurso dos documentos também
permite entender que o ato jurídico é visto como um benefício que
o senhor daquele patrimônio entrega ao camponês e à sua família
em troca da prestação de uma série de obrigações entendidas
como serviço. Não são incomuns os documentos que formalizam
a entrega de prestimonia a solariegos ou vassalos e em cujos textos a
motivação se explicita pelo amor que o senhor tem pelo beneficiado
e pelo serviço que este já lhe prestou e que se espera continuará
prestando. O que quero frisar é que além da dimensão econômica
que estes laços supunham, há uma outra, igualmente importante,
e que ajuda a entender por que as ordens inferiores se submetiam
às superiores. Embora a exploração seja um dos elementos da
relação, ela certamente não teria durado tanto no tempo, se não
existissem outros elementos que lhe dessem sentido. Do ponto de
vista político e jurídico, esta sociedade organizava-se em ordens,
com funções e responsabilidades claramente definidas, dentro do
corpo social. A hierarquização das ordens é da natureza do corpo,
e os conflitos e a concorrência entre os seus membros resolviam-se
pelo pacto, pela composição, pela reforma. Portanto, ser dependente
de um senhor não é estar sob o jugo de um inimigo explorador e, da
mesma forma, ter um camponês sob sua jurisdição não é criar um
inimigo explorado. Ao contrário. Esses laços de dependência são a
teia social, são a garantia da coesão da sociedade, entre as ordens
inferiores e as superiores. Eles estabelecem-se numa perspectiva
positiva da coesão, e não no pressuposto negativo do confronto e da
ruptura. Evidentemente, outra coisa é que houvesse senhores que
não cumpriam o pacto, mas isso era entendido como a corrupção
do modelo.
Os arquivos monásticos permitem igualmente esquadrinhar essa
lógica do serviço e do benefício com relação às ordens superiores.
Os mosteiros usaram também o prestimonium para beneficiar a
pequena nobreza local, entregando-lhe patrimônios de diferentes
envergaduras fundiárias. Frequentemente, os documentos referem-
148
se, para além das terras, a vassalos, solariegos, collazos, casas,
moinhos e igrejas. Os pactos variam quanto às cláusulas do desfrute
do benefício, mas sempre se explicita que finda a vida do beneficiário
e/ou de sua mulher, o patrimônio deve ser reintegrado à posse do
mosteiro livre e quite de qualquer embargo. O serviço, neste caso,
consiste na proteção e exploração do prestimonium e, sobretudo,
em seu acrescentamento, como a construção e/ou restauração de
casas e arroteamento de terras. Invariavelmente, estes prestimonia
acompanham-se de declarações de amor, bom serviço e benefício.
A encomienda é outra das instituições pelas quais se pode
comprovar a importância da relação serviço-benefício. Os mosteiros
encomendaram-se, com alguma freqüência, à proteção da nobreza
do reino, mas é interessante notar que aquele que protege recebe
também um benefício: ser encomendero com todas as benesses que
aparecem estipuladas no documento que sela o pacto. Neste caso,
aquele que protege não é o senhor da relação, mas o que presta o
serviço de proteger. Embora a questão da proteção apareça aqui
deslocada com relação à polarização clássica senhor-vassalo,
superior-inferior, o fato que nos interessa salientar é tratar-se de mais
um laço social importante mediado pelo serviço e pelo benefício.
Por último, no que diz respeito aos mosteiros, assinalo a
importância da familiaritas, fórmula amplamente utilizada pelos
cenóbios em questão. Por meio dela, camponeses e nobres entregavam
seus corpos e seus haveres ao mosteiro e eram recebidos pela
família monástica, passando a ter uns direitos que variavam desde
a alimentação em vida, à sepultura depois da morte. Dependendo
da situação econômica dos familiares e do interesse do mosteiro,
o patrimônio poderia ser devolvido aos doadores sob a forma de
prestimonium, seguindo a lógica já mencionada. Os documentos que
registram os vários exemplos de familiaritas recorrem, tal como nos
outros casos, à linguagem do serviço e do benefício, revelando ser
esse o motor que incentiva ao ato. Neste caso, é também explicitado
por parte do doador o desejo de salvar a alma, o que não deixa de
sublinhar tratar-se de um serviço muito especial que os mosteiros
estavam em condições de prestar.
Ora, toda esta rede de serviços e de benefícios não era promovida
por uma ‘instituição impessoal’, como muitas vezes a historiografia
entendeu a ordem de Cister. Na realidade, há uma vida jurídica que
se institui por meio desses mosteiros, que são reconhecidamente
autoridades eclesiásticas, mas que justamente se afiançam porque
recorrem à dinâmica dos laços pessoais. É preciso dizer que a própria
fundação dos mosteiros não é fruto de uma decisão institucional
149
emanada do centro político da Ordem religiosa, no intuito de se
difundir pela Europa. O nascimento desses mosteiros foi fruto da
decisão da elite local de fundar uma casa religiosa para responder
a várias necessidades. A primeira, como ato natural da nobreza
cristã que deve mostrar-se piedosa e prover os domínios de seus
senhorios ou a sua região de influência com esse tipo de fundação
religiosa. A segunda, de caráter político, como forma de dotar a
parentela de mais um palco para a representação de seu poder. A
terceira, econômica, para rentabilizar o patrimônio fundacional e,
sobretudo, aumentar e canalizar outros benefícios para a linhagem.
Do ponto de vista formal, os mosteiros analisados seguem a regra
beneditina, são filiais do Mosteiro das Huelgas de Burgos, recebem
a visita de correição estipulada pelas codificações, organizam-se
hierarquicamente de acordo às normas da ordem de Cister, enfim,
são instituições monásticas. Entretanto, desde a abadessa às demais
dignidades conventuais, observa-se uma ampla rede social com
conexões estreitas que têm por base o parentesco biológico e artificial.
Essa rede estende-se muito além dos muros dos mosteiros e forma
verdadeiras malhas de coesão social, alimentadas pelas cessões
patrimoniais, pelos benefícios e serviços. É possível deslindar essa
intrincada trama por meio da pesquisa cuidadosa nos arquivos e,
principalmente, pela análise prosopográfica dos atores que deixam
seus nomes registrados nos documentos. Os resultados mostram
que longe de serem instituições que se assentaram ali para dominar
e feudalizar seu entorno, como um corpo estranho, os mosteiros
nasceram das dinâmicas políticas e sociais da própria região e sua
existência estará marcada pelos movimentos dos grupos sociais e
políticos, de suas composições e recomposições.

... AO BRASIL COLÔNIA

Inspirada pelas abordagens de longa duração, decidi há alguns


anos realizar um estudo sobre o conflito jurisdicional ocorrido em
Pernambuco, em meados do século XVIII, que enfrentou o bispo de
Olinda e Recife, frei Luís de Santa Tereza, ao juiz de fora, Antônio
da Mata 4. O documento que registra o conflito foi redigido sob a
forma apologética, com 900 fólios5. Além disso, foi possível contar
com documentos complementares do AHU, que elucidam esses
acontecimentos. O objetivo era tentar entender como se viviam
4 - Maria Filomena COELHO. A justiça d’além-mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (século XVIII).
Recife: Ed. Massangana/Fundação Joaquim Nabuco, 2009.
5 - IANTT - Manuscritos do Brasil, livros 34 e 35.

150
as instituições no Brasil nesse período, e de que forma se punha o
problema da obediência no cenário do poder, transcorridos tantos
séculos.
O que primeiro nos salta aos olhos , na leitura dos documentos,
é a lógica do serviço e do benefício, que se espalha por todos os
níveis das hierarquias sociais. A começar por Sua Majestade, que
distribui ofícios régios como benefícios a serem desfrutados, e não
como cargos burocráticos. Por sua vez, os próprios oficiais régios
recorrem às lógicas do serviço e do benefício para tecer suas redes
de influência que podem até mesmo unir as redes portuguesas
àquelas a que eles se integram no Brasil. A Igreja também precisa
ser analisada de forma complexa, pois está longe de aparecer como
instituição única. Chamam atenção as posições divergentes entre
a Sé de Olinda e as diferentes ordens monásticas da região. Mas,
ainda assim, sequer podemos falar de posições homogêneas de
cada um desses atores institucionais, pois as diferentes redes sociais
que lhes dão vida, os cindem internamente numa lógica de bandos
e fidelidades. A fidelidade, neste caso, alimenta-se da dinâmica
do serviço e do benefício, e a ruptura e/ou a traição – segundo a
parcialidade - recorrem à mesma estratégia discursiva. Ou porque o
benefício não corresponde à qualidade do serviço, ou, ao contrário,
porque não se prestou o serviço pactado.
Este salto cronológico implica entender tratar-se de um período
histórico diferente da Idade Média, com especificidades próprias do
final do Antigo Regime. Entretanto, há aspectos do campo político,
mais especificamente da cultura política, que se mantêm ao longo do
tempo e, atrever-me-ia a dizer, com o mesmo sentido. Depois de ler
o Discurso Apologético, riquíssimo em detalhes, com uma narrativa
viva e por cujas páginas desfilam dezenas de personagens dos mais
variados níveis sociais e políticos, torna-se clara a importância do
serviço e do benefício como a argamassa que une a sociedade. Assim,
não é um fenômeno anacrônico, arcaico, uma herança, sobrevivência
medieval que teima em não desaparecer. É um fenômeno vivo,
pleno de sentido, adotado naturalmente como lógica política pela
sociedade portuguesa de meados do século XVIII.
Nessa perspectiva, quero ainda refletir brevemente sobre
aquilo que classificamos hoje como desvios ao modelo racional
burocrático do Estado, ou seja, a corrupção e o suborno, e que,
surpreendentemente, a historiografia, de forma anacrônica, se
encarrega de aplicar a qualquer época histórica.
Conseguir um ofício na administração burocrática do império
português requeria, quase sempre, conhecer as pessoas certas
151
que apadrinhariam a candidatura, além de possuir os cabedais
necessários para a compra do cargo. Métodos esses que, hoje em
dia, só podem ser classificados como corrupção e suborno. Muitos
ofícios eram arrematados em leilão, o que, teoricamente, poderia
denotar uma política preocupada pela solvência econômica dos
proprietários, pensando no benefício fiscal da coroa. Mas, não deixa
de ser interessante observar como é que em Recife se manipulava
esta política. O resultado do leilão dos ofícios que se fazia em
Lisboa não era garantia imediata do exercício do ofício no Brasil.
Uma vez transposto o oceano, a Câmara Municipal tinha também
algo a dizer nessa matéria, e não era estranho que o arremate de
um ofício realizado em Lisboa por determinado indivíduo fosse
preterida em Recife, por outro de menor quantia, mas que tinha
a seu favor argumento muito mais poderoso: o arrematador mais
modesto ser protegido dos vereadores da Câmara. Como exemplo,
um arrematador ‘lesado’ recorreu ao Tribunal da Relação da Bahia,
que lhe deu ganho de causa, mas o fato é que a Câmara do Recife
não acatou a decisão do tribunal, por considerar que os laços que
a uniam ao segundo indivíduo eram argumento suficiente para
justificar a preferência6.
Essa dinâmica que afetava o arremate dos ofícios pode parecer um
sintoma de fraqueza do poder central. Entretanto, ela assume outros
contornos se analisada do ponto de vista da lógica da tradição. Com
base na própria linguagem das fontes, compreendemos que aqueles
que arrematavam um ofício, faziam-no dentro da idéia da prestação
de serviço. João de Oliveira Gouvim arrematou, em 1751, o ofício de
escrivão do Crime e Cível, Judicial, Notas e Juízo de Fora de Olinda.
Pela leitura do documento sabemos que isto está classificado na
categoria das mercês, pelo que o monarca lhe faz mercê da serventia
do ofício. Em troca, João Gouvim entregou ao tesoureiro da Casa da
Moeda, trezentos mil réis, que “offerece de donativo” à Real Fazenda
de Sua Majestade. Teoricamente, isto não é uma compra, uma vez que
os atores explicitam que se trata de uma oferta para o bem comum
(Real Fazenda). Por outro lado, é bom salientar que se este tipo de
transação fosse classificado como venda, poria imediatamente em
xeque uma das principais funções da monarquia: a distribuição dos
dons, neste caso, a distribuição dos ofícios 7.

6 - IANTT – Manuscritos do Brasil, livro 35, cap. 13.


7 - AHU – Manuscritos avulsos de Pernambuco, cx. 72, doc. 6077. Ver a análise que deste tema faz Antó-
nio HESPANHA. “Les autres raisons de la politique. L´economie de la grâce.” In: J.F. SCHAUB. Recherches sur
l´histoire de l´Etat dans le monde ibérique (Xvème-Xxème siècles). Paris: Presses de l´Ecole Normale Supérieure,
pp.67-86

152
Lembro aqui a idéia de Perry Anderson, de que a compra dos
ofícios remete à “caricatura monetarizada de um feudo” 8. Seguindo
as tradições feudais, se antes se punham os exércitos a serviço do
senhor, agora põem-se os cabedais. Aquilo que hoje classificamos
como abusos e corrupção, nem sempre foi entendido assim. O
paradigma que orientava a classificação era o bem comum, e muitas
vezes os ‘abusos’ eram considerados direitos dos que os praticavam,
o que finalmente redundava no bem da respublica, porque fortalecia
a posição da aristocracia. Os ‘abusos’ poderiam ser interpretados
como ressarcimento pelos serviços prestados. Portanto, dependia
muito de quem os praticava e em que condições. No século XVIII, em
Pernambuco, embora sejam as instituições do centro a dar a última
palavra sobre a participação da aristocracia local nas instâncias do
poder, o fato é que ela continua dominando um determinado espaço
e se apropria do vocabulário fornecido pelo próprio centro para
legitimar o exercício do seu poder local.
Exemplo do que acabo de dizer é a maneira como Francisco do
Rego Barros se beneficiou do ofício de provedor da Fazenda e como o
exerceu, com direito à formação de uma corte de oficiais subalternos
que davam ainda maior dimensão à rede de solidariedades,
fidelidades e serviço a seu dispor. O ofício já tinha sido praticamente
patrimonializado pela família, e apesar da forma pouco ´racional`
com que tratava a coisa pública, o centro permitia que o ofício
permanecesse na família. Aliás, Francisco era irmão de João do Rego
Barros, que se casou com herdeiras dos maiores donos de engenho
da região, de cujas uniões nasceram dois futuros provedores da Real
Fazenda. Francisco e João eram filhos de Francisco do Rego Barros,
conhecido como o primeiro coronel do sertão, dono de dois dos
maiores engenhos da região e presidente da Câmara de Olinda 9.
Não é difícil imaginar até onde se estendia o poder da família e como
a provedoria era importante dentro das suas estratégias econômicas
e sociais. Este tipo de trajetória, tão comum no Antigo Regime, é
muitas vezes analisado, sublinhando-se excessivamente os objetivos
de ascensão do grupo familiar, o que leva à conclusão de que a luta
pelo controle dos ofícios estava muito longe das motivações do bem
comum. Na realidade, cremos que a coisa era bem mais complexa.
Dentro daquela cultura política, a liderança dos Rego Barros, por si
só, já garantia o bem comum. Assim, o fato de que eles almejassem a
ascensão social por meio dos ofícios não estava em contradição com
o bem comum. Para completar o panorama, dentro dessa cultura,
8 - Perry ANDERSON. Linhagens do Estado Absolutista. Porto: Ed. Afrontamento, 1984, p.35.
9 - Francisco Pereira da COSTA. Anais Pernambucanos. Recife: Fundarpe, t. IV, p.119.

153
compreende-se que os Rego Barros não se sentissem presos pelo
dever à figura de um Estado despersonalizado, mas sim, à figura
concreta de um soberano a quem deviam fidelidade 10.
Seguindo a proposta de Jean-Claude Waquet para analisar o
problema da ‘corrupção’, compreendemos que, se de um lado são
perceptíveis os danos que a atitude dos Rego Barros causaria às
engrenagens de um Estado racional, por outro, também é evidente
que para ambos os lados esta ‘corrupção’ do sistema permitia que
ao nível local a aristocracia pudesse se utilizar das estruturas desse
mesmo Estado para manter o seu status quo 11. Ao pensar que os
Rego Barros infringiam a lei e que deveriam sofrer um processo
punitivo, esquecemos que estamos em uma época em que o campo
da política, que tem no exercício da justiça sua principal área de
atuação, norteia-se pela máxima do Digesto: a cada um o que lhe
é de direito. Uma filosofia que entronca perfeitamente com a
concepção de uma sociedade assentada na hierarquia e no privilégio.
Assim se explica uma engenharia social calcada nos privilégios das
ordens superiores e um sistema estamental orgânico, perfeitamente
justificado à luz da moral e da religião da época. Dentro dessa visão
de mundo, até mesmo a ‘corrupção’ poderia justificar-se. Perdura
a concepção pela qual o monarca desempenha o papel de executor
da justiça distributiva que outorga doações em troca da fidelidade
demonstrada, esperando-se que atue com a máxima generosidade.
Isto não impede que seja precisamente no âmbito dessa faceta do
poder, a da compensação, que se possa comprovar documentalmente
o crescimento do autoritarismo régio, ou, paradoxalmente, uma
atitude laxista que compreende e fecha os olhos à ‘corrupção’.
A luta pelos ofícios e pelas jurisdições transforma o serviço ao
Estado no palco onde se desenrola a competição pela proeminência.
Os benefícios feudais que outrora eram patrimonializados são
agora substituídos pelos ofícios que vão passando de pai para filho,
com as bênçãos do monarca. Por mais que as leis estabeleçam o
controle do Estado sobre o sistema e que se desenvolvam técnicas
administrativas inovadoras, elas revelam-se inócuas diante de
uma cultura que olha para o rei como a fonte dos privilégios e das
mercês. O próprio monarca é também presa das exigências de seus
aristocratas e burocratas, pois sem eles é impossível tomar conta do

10 - Sobre este particular é interessante a comparação com a América Espanhola. Ver Horst PIETSCHMANN.
“Corrupción en las Índias Españolas. Revisión de un debate en la historiografía sobre Hispanoamérica Colonial”.
In: Instituciones y corrupción en la Historia. Valladolid : Inst. Univ. de Historia Simancas, 1998, pp. 33-52.
11 - Jean-Claude WAQUET. De la corruption. Morale et pouvoir à Florence aux XVII ème et XVIII ème siècles.
Paris: Fayard, 1984, p.32.

154
império e, o que é mais importante, sem eles a própria monarquia
perde o sentido 12.
A lógica da distribuição dos ofícios é orientada pela expectativa
dos serviços que se hão de prestar, mas também sobre aqueles que já
se prestaram, o que ajuda a explicar o ´à vontade` com que a maior
parte se apropria dos benefícios que advêm do seu exercício. As
relações entre o poder central e os poderes locais são uma das facetas
desse jogo, no qual se prevêem as trocas e os compromissos, mas
também a patrimonialização do poder, o que nem sempre era visto
como usurpação da jurisdição da coroa.
No que respeita ao peso da administração real na configuração
do poder local, comprovamos como essa estrutura terminou por
potencializar as dinâmicas clientelares e as lealdades pessoais.
Entretanto, insistimos em que essas redes clientelares não podem
ser analisadas a partir da lógica estatal-burocrática racional, o que
as reduziria a um sistema corrupto. As instituições administrativas
eram um arcabouço que contribuía para dar consistência às redes
de caráter pessoal que uniam os diversos níveis de poder e sobre os
quais se apoiava o governo da monarquia.
No universo das disputas, a jurisdição constituía não só um
meio formal de poder político, mas era também, ao nível local, um
dos principais pontos de apoio institucional das redes clientelares
da aristocracia. As lutas das facções locais pelo controle do poder
levavam os habitantes a procurar, conforme a situação, a proteção de
um dos bandos ou da coroa. O recurso a um tribunal real podia servir
de meio de pressão de uma facção contra a outra a fim de obrigar a
uma repartição diferente de favores, equilibrando as relações de dom
e contra-dom locais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de redes é hoje amplamente utilizado pela


História, sobretudo como desdobramento da microhistória. No que
se refere à Idade Média e à Idade Moderna ibéricas recorre-se cada
vez mais a essa abordagem por considerá-la instrumento de análise
privilegiado para explicar as lógicas discursivas e as práticas sociais
das sociedades tradicionais. A análise das redes sociais revelou-
se especialmente interessante para estudar família e parentela, 
mobilização e movimentos sociais, mundo das elites, cultura política,
12 - Isto também parece claro para quem estuda a América Espanhola. Ver Joseph PÉREZ. “El Estado Moderno
y la Corrupción”. In: Instituciones y corrupción en la Historia. Valladolid: Inst. Univ. de Historia Simancas, 1998,
pp. 11-129.

155
constituição e governo dos impérios... Essa abordagem propicia ao
historiador a possibilidade de propor análises de longa duração,
como no caso da junção do medievo ibérico com a América colonial.
Parece-me haver uma profunda relação entre serviço-benefício
e as redes sociais no mundo ibérico. No âmbito da política, tal
relação é uma chave privilegiada para entender como se constituem
as instituições, ou seja, com que lógica elas vão ganhando forma
e se afiançando ao longo do tempo. Portanto, a principal questão
que quero deixar é se, realmente, do ponto de vista da interpretação
do passado político da sociedade ibérica, o historiador deve
permanecer ancorado às definições da ciência política, que a
classifica como um “modelo paroquial” e/ou “modelo de sujeição”
13
, ou ancorado às definições da sociologia weberiana que a vê como
um modelo tradicional14. O problema, evidentemente, é que se trata
de classificações que têm como ponto de partida outra realidade,
o modelo cívico/participativo e o modelo do estado racional
burocrático, e transforma-se tal realidade em padrão de medida para
julgar as realidades políticas do passado, que acabam sentenciadas
como imperfeitas, corruptas, inferiores. Esta interpretação, por ser
evolucionista e de sofrer do “pecado das origens”, é anacrônica. É
fundamental entender que as instituições e as autoridades públicas
medievais ibéricas e da conquista do Brasil não sabiam que deveriam
pensar e se comportar de acordo com um paradigma racional
burocrático que só viria a nascer depois do século XVIII.

13 - G. ALMOND.; S. VERBA. The civic culture. Princeton: Princeton Univ. Press, 1963; IDEM. The civic culture
revisited. Boston: Little & Brown, 1980.
14 - Max WEBER. “Os três tipos puros de dominação legítima”. In: Metodologia das Ciências Sociais, vol.2. São
Paulo;Campinas: Ed. Cortez; Ed. UNICAMP, 1992.

156
11- DOS CONCELHOS MEDIEVAIS
ÀS VILAS COLONIAIS: O PODER
CAMARÁRIO NO SUL
DA AMÉRICA PORTUGUESA.
Fábio Kühn*

Costuma-se dizer – para o bem ou para o mal - que os


portugueses não inventaram nada de muito novo ao sul do Equador,
tratando de reproduzir no contexto colonial, em suas linhas gerais,
o funcionamento da administração metropolitana. É bem verdade
que as formas administrativas poderiam ser muito variadas,
consoante o tipo de inserção lusa nos territórios conquistados1, mas
alguns elementos apontam para a recriação no Império português
de práticas muito antigas. Práticas estas que remontam ao período
medieval, quando foram constituídos os primeiros concelhos em
Portugal. Conforme Mattoso, estes concelhos caracterizavam-se
pela sua capacidade deliberativa, cuja autonomia se exprimia “pelo
direito de eleger seus magistrados, de criar um direito próprio
(mesmo que se lhe chame ‘costume’), de estabelecer o regime fiscal e
o regime judicial e de organizar as suas forças militares”.2

UM TRANSPLANTE ADMINISTRATIVO:
DOS CONCELHOS ÀS VILAS

Características que reproduziram-se durante a Idade Moderna,


pois como observou Nuno Monteiro, “a municipalização do espaço
político local constitui uma das heranças medievais mais relevantes”
durante o Antigo Regime.3 De fato, no que se tratava dos poderes
concelhios, os modelos do Reino foram incorporados ao cotidiano
da América lusa desde muito cedo (notadamente com a criação das
capitanias hereditárias). Assim, a partir da década de 1530, foram

*
Depto. de História e PPG de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Gradu-
ação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
1 - António Manuel HESPANHA. “Estruturas político-administrativas do Império português”. In: Outro mundo
novo vimos. Lisboa: CNCDP, 2001.
2 - José MATTOSO. Identificação de um país – Ensaio sobre as origens de Portugal (1096-1325). Lisboa: Editorial
Estampa, 1985, p. 337.
3 - Nuno G. MONTEIRO. “A sociedade local e seus protagonistas”. In: César OLIVEIRA (dir.) História dos
Municípios e do Poder local. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 30.

157
criadas as primeiras vilas coloniais, com seus respectivos oficiais
camarários, ainda que subordinados ao donatário das capitanias.4
Em meados do século XVI seria estruturado o Governo Geral, que
significaria em tese um maior controle por parte da Metrópole no
processo de criação dos novos núcleos urbanos, muito embora
algumas capitanias de jurisdição privada tenham sobrevivido até
o século XVIII. Na América portuguesa, a medida que surgiam
as povoações e estabeleciam-se seus foros de vila, os principais
das terras passavam a disputar o controle da Câmara, que além
de permitir tomar as rédeas da administração local, possibilitava
ainda a comunicação direta com o centro político da monarquia.
Conforme notou Luis Weckmann, ao referir-se aos funcionários
coloniais da América lusa, “todos eles continuaram no Brasil os
modos e costumes que haviam sido iniciados em Portugal medieval
por uma monarquia originalmente feudal, porém cada vez mais
centralizadora e absolutista”.5
Mesmo que levemos em conta a contribuição da historiografia
que vem questionando a forma tradicional de caracterização do
absolutismo monárquico em Portugal, isso não invalida a tese da
reprodução das formas administrativas reinóis em solo americano,
pois elas seriam perfeitamente adaptadas às lógicas de uma sociedade
de Antigo Regime nos trópicos. Assim, como assinalou Maria
Filomena Coelho, “se olharmos os primeiros séculos da formação
do Brasil através da lente feudal, desfaz-se a visão ‘esquizofrênica’
de um poder central que titubeia entre a modernidade econômica
e o arcaísmo mental”, caracterizando-se “uma monarquia que
compreende a particularidade de dominar um Império com pouca
uniformidade”.6
A dinâmica da negociação entre o centro imperial e
as periferias envolvia certamente a prática de concessões, mas
igualmente compunha-se de elementos conflituais. Nestes momentos
de conflito, as Câmaras apareciam como instâncias de intermediação
imprescindíveis no universo político colonial. Daí a importância
do domínio destas instituições pela “nobreza política”, na medida
em que “não apenas as principais famílias da vila, cidade ou região

4 - Na carta de doação da capitania de Pernambuco a Duarte Coelho (1534), consta que o donatário “poderá per
sy e per seu ovidor estar à enliçam dos juízes e oficiaes alympar e apurar as pautas e pasar cartas de comfirmaçam
aos ditos juízes e oficiaes”. Cf. Doações e forais das capitanias do Brasil, 1534-1536. Lisboa: Instituto dos Arquivos
Nacionais/Torre do Tombo, 1999, p. 12.
5 - Luis WECKMANN. La herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 246.
6 - Maria Filomena COELHO. A Justiça d’além mar – Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco (século XVIII).
Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2009, p. 167.

158
eram representadas na câmara, mas ainda que a câmara advogava,
articulava e protegia os interesses das elites locais”, como anotou
Russel-Wood.7 Ao se referir às câmaras ultramarinas, Charles Boxer
questionou se estas instituições de poder local seriam exemplos
de “oligarquias autoperpetuadoras”, como aquelas que dominaram
alguns dos cabildos na América Espanhola.8 Segundo o autor, as
Câmaras eram uma forma de representação e refúgio para todas as
classes da sociedade portuguesa, particularmente para as elites locais.
Representação na medida em que o exercício do poder político local
dava vazão às reivindicações das comunidades ou de setores mais
privilegiados. Mas também de refúgio, visto que os conselhos eram
espaços de resistência às imposições do poder central.9
Estudos mais recentes tendem a destacar a importância destas
instituições do poder local, evidenciando a centralidade dos cargos
camarários não apenas enquanto espaço de distinção e hierarquização
dos colonos, mas principalmente enquanto espaço de negociação
com a Coroa. Em função disso, ser membro da Câmara transformava
os ocupantes destes cargos em “cidadãos”, habilitados a participar
do governo político do Império. Conforme Bicalho, “a ocupação
de cargos na administração concelhia constituíra-se, portanto, na
principal via de exercício da cidadania no Antigo Regime português.
(...) Os cidadãos eram os responsáveis pela res publica que, traduzida
por ‘coisa pública’, articulava-se à governança da comunidade”.10
Outros autores, como Nuno Monteiro, vão mais longe ainda, ao
afirmar que “talvez seja mais adequado pensar o espaço político
colonial como uma constelação de poderes, (...) na qual as elites locais
brasileiras se exprimiam politicamente, sobretudo por intermédio
das câmaras municipais”. Esta leitura do Império como um “sistema
de poderes” ressalta a “centralidade do centro” e não a centralização
como fundamento básico da administração portuguesa, segundo
o qual a comunicação política quase universal com a Corte era o
“pressuposto decisivo da flexibilidade do sistema”.11
7 - A. J. R. RUSSEL-WOOD. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”. Revista Brasileira de
História. Vol. 18 nº 36, 1998, p. 208.
8 - C. R. BOXER. Portuguese Society in the Tropics – The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda.
1510-1800. Madison and Milwaukee, The University of Wisconsin Press, 1965, p. 4.
9 - C. R. BOXER. O Império Marítimo Português. Lisboa, Edições 70, 2001, p. 286. Na verdade, este autor afir-
mou que “de maneiras diferentes, a Câmara e a Misericórdia forneceram uma forma de representação e de
refúgio para todas as classes da sociedade portuguesa”.
10 - Maria Fernanda BICALHO. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: João FRAGOSO; Maria
Fernanda BICALHO; Maria de Fátima GOUVÊA (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 204-205.
11 - Nuno Gonçalo MONTEIRO. “Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre os vice-
-reis e governadores gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII”. In: João FRAGOSO; Maria Fernanda
BICALHO; Maria de Fátima GOUVÊA (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séc. XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 283.

159
Por fim, um aspecto a ser considerado em perspectiva comparada
é o âmbito geográfico das vilas coloniais, muito mais amplo do que
aquele das suas congêneres metropolitanas. Diante da imensidão do
território brasileiro, a expansão urbana foi relativamente modesta.
No século XVII, até o final da União Ibérica, Portugal havia criado
na América lusa apenas 36 núcleos urbanos, enquanto que nos
territórios da América espanhola estes eram 330 na mesma altura
(1630). De fato, até 1822, foram criadas somente 208 vilas e 13
cidades em todo o território da colônia americana, sendo a maioria
delas constituídas após o final do governo de Dom João V (1750).12
Este é um número muito inferior em relação às vilas existentes no
Reino, onde a rede concelhia já estava plenamente consolidada
desde o início do século XVI, atingindo 762 municípios em 1527-
1532, para depois crescer muito lentamente durante três séculos até
chegar a 816 conselhos ao final do Antigo Regime (1826).13

O PODER LOCAL NO SUL DA AMÉRICA PORTUGUESA

Sendo região de povoamento tardio, ocorrido somente no


século XVIII, o poder local no sul da América Portuguesa somente
foi organizado com a criação da Câmara do Rio Grande de São
Pedro, que funcionou na vila de Rio Grande (1751-1763), no
arraial de Viamão (1763-1773) e em Porto Alegre (1773-1810). A
conjuntura na qual isso ocorreu, correspondeu a um período no
qual se verificou o processo final de transição de uma monarquia
de tipo corporativa (com relativa autonomia dos poderes locais)
para uma do tipo absolutista, com todas as implicações resultantes,
em especial a emergência de uma nova “razão de Estado” e o
decorrente aumento da centralização política.14 Neste sentido, para
compreender adequadamente as relações estabelecidas entre o
centro e a periferia no Império português, deve-se levar em conta
que “as vilas refletiam uma resposta régia a uma situação resultante
de um povoamento anterior e espontâneo, promovido por colonos
individualmente, e cujo crescimento até determinado ponto fazia
com que a Coroa julgasse necessário prover a organização de um
governo municipal”. A principal intenção da Coroa seria favorecer
a estabilidade administrativa, social e econômica destas localidades.

12 - Pedro PUNTONI. “Como coração no meio do corpo: Salvador, capital do Estado do Brasil”. Laura de Mello e
SOUZA; Júnia F. FURTADO; Maria F. BICALHO (orgs.) O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 383
13 - Nuno Gonçalo MONTEIRO. “A sociedade local...”, p. 40.
14 - Martha ABREU, Rachel SOIHET e Rebeca GONTIJO (orgs.) Cultura política e leituras do passado - historio-
grafia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 131-154.

160
Por isso, durante a segunda metade do século XVIII intensificou-
se o povoamento na América Portuguesa, tendo sido criadas 95
novas vilas entre 1750 e 1808, “justamente como forma privilegiada
pela Coroa para enquadrar politicamente a população e atenuar os
conflitos, mais freqüentes em zonas periféricas, onde não existia
qualquer tipo de autoridade reconhecida pelo rei”.15
Naquela conjuntura se fez sentir de maneira mais incisiva a
atuação da Coroa no sentido de cercear a autonomia das Câmaras
do Império. A partir dos finais do século XVII e durante o século
seguinte, o poder monárquico passou a interferir cada vez mais
diretamente nos conselhos municipais. Uma das primeiras medidas
foi uma alteração nos procedimentos eleitorais das câmaras, que
nas vilas principais passaram a ter seus oficiais designados pelas
autoridades régias. Além desta intervenção, teriam aumentado
o número de ouvidores, possibilitando uma prática correcional
mais freqüente, que visava enquadrar justamente os conselhos
municipais. Outra medida foi a criação do cargo de “juiz de fora”, um
oficial letrado, com formação universitária e que passou a presidir
as câmaras das vilas mais importantes, em substituição aos juízes
ordinários. Todas estas medidas significavam essencialmente a
mesma coisa: um aumento da interferência dos “poderes do centro”
no poder local.16
Entender o funcionamento do poder local em uma pequena
povoação ultramarina e periférica que nada tinha da riqueza ou
importância política de cidades como Salvador, Olinda ou o Rio
de Janeiro, nos parece fundamental para compreender a própria
conquista e colonização portuguesa na região meridional da
América, que garantiu a expansão do Império lusitano até as margens
do Rio da Prata. Durante toda a primeira metade do século XVIII
o território do atual Rio Grande do Sul não conheceu a presença
da instituição típica da representação do poder local no Império
português, qual seja, uma Câmara municipal. Desde a criação da vila
de Laguna em 1714, todo o território meridional estava sujeito às
“justiças” emanadas do pequeno burgo catarinense. Teoricamente, os
moradores de Rio Grande – fortaleza militar e núcleo populacional
fundado em 1737 - também deviam estar submetidos à jurisdição
da Câmara lagunense. Todavia, as contendas entre os comandantes
militares do Rio Grande e os oficiais de Laguna foram bastante
15 - A. J. R. RUSSEL-WOOD. Centro e periferias. p. 217; Francisco BETHENCOURT. “As Câmaras e as Miseri-
córdias”. In: Francisco BETHENCOURT; Kirti CHAUDHURI (dirs). História da Expansão Portuguesa. Lisboa:
Temas & Debates, 1998, vol. 3, p. 276.
16 - Dauril ALDEN. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley; Los Angeles: University of California Press,
1968, pp. 423-424; Maria F. BICALHO. Op. cit. pp. 199-200.

161
comuns, o que leva a pensar que a criação de uma Câmara em Rio
Grande tenha sido uma decorrência destes conflitos jurisdicionais,
que envolviam impedimentos na “execução das justiças”.17
De fato, parece que houve alguma resistência à criação de uma
vila no presídio sulino, já que a provisão régia datada de 17 de julho
de 1747 determinava a imediata instalação de uma Câmara, o que
somente aconteceu mais de três anos depois, em dezembro de 1751.
Uma explicação para esta demora pode estar no peso político dos
oponentes. Um adversário da criação da vila era ninguém menos do
que por Gomes Freire de Andrada, governador do Rio de Janeiro.
Respondendo a uma consulta do Conselho Ultramarino, ele procurou
dissuadir a Coroa da pretensão, afirmando que “a maior parte de que
se forma o presídio do Rio Grande de São Pedro são as tropas de sua
guarnição que se tem povoado, mas os moradores paisanos vivem
muitos nas estâncias ou sesmarias, em que se estabeleceram, que ser
ou não ser vila aquele estabelecimento pouco aumenta o bem público e
o serviço de V.M.”. Todavia aos conselheiros pareceu ser conveniente
a criação da vila, devido à “grande distância em que o Rio Grande de
São Pedro fica da vila de Laguna”. A primeira vila sul-riograndense
somente foi instalada sob os auspícios do novo ouvidor da comarca
de Santa Catarina, criada no final de 1749.18
A atuação da primeira Câmara estabelecida em Rio Grande
sucedeu ao longo de pouco mais de uma década (1752-1763), até que
a invasão espanhola transferisse o poder local para Viamão. Temos
pouca informação a respeito deste período inicial, especialmente
devido ao fato de não terem sobrevivido as atas da Câmara em função
da ocupação militar castelhana da vila em 1763. Se em Rio Grande o
conselho ainda se reunia regularmente, com a ocupação espanhola,
os oficiais foram obrigados a transferir-se, devido às contingências
da guerra, para a freguesia de Viamão (criada pelo bispo do Rio de
Janeiro em 1747), onde existia um pequeno arraial que passou a ser
a sede do poder local no Continente do Rio Grande.19
Instalada em Viamão, percebe-se a emergência de uma forte
defesa das prerrogativas da Câmara, o que levou a novos conflitos
jurisdicionais, especialmente com os ouvidores da comarca, cuja
sede ficava na ilha de Santa Catarina. Um dos casos mais graves
aconteceu nos anos de 1767/1768, quando o então ouvidor Duarte
17 - Carta do Ouvidor da comarca de Paranaguá ao Conselho Ultramarino, 24.07.1745. Documentos Históricos,
vol. 94, p. 123.
18 - Márcia Eckert MIRANDA. Continente de São Pedro: administração pública no período colonial. Porto Alegre:
CORAG, 2000, p. 55; Documentos Históricos, vol. 94, pp. 130-131.
19 - A conjuntura internacional que permitiu a ocupação militar espanhola no Rio Grande está relacionada às
vicissitudes da Guerra dos Sete Anos (1756-1762), que levou ao retorno das hostilidades entre as Coroas ibéricas.

162
de Almeida Sampaio teve a sua correição suspensa em função de
uma articulação que envolveu a Câmara, o provedor da Fazenda e
o governador da capitania. Revoltado com o fato, que tomou como
uma afronta á sua jurisdição, o ouvidor escreveu uma longa carta ao
vice-rei Conde de Azambuja, onde relatou os sucessos que tiveram
como conseqüência a sua retirada do Continente do Rio Grande.20
Para tanto, historiou ao vice-rei uma sucessão de irregularidades,
que tiveram início já em 1763, quando tentou pela primeira vez
fazer correição na remota capitania meridional. Naquele ano, fora
desaconselhado pelo governador Inácio Elói Madureira, que alegou
que a região “era fronteira e existiam guerras entre o nosso Reino e o
de Castela”. De fato, naquele mesmo ano a única vila existente seria
ocupada militarmente pelos espanhóis, o que inviabilizou qualquer
tentativa de fiscalização.
Transferida a Câmara para a “Aldeia de Viamão”, notou o ouvidor
que “continuaram aqueles juízes ordinários no exercício de seus
ofícios e continuariam ainda hoje se os deixassem”. Conforme a
denúncia, os oficiais camarários estavam mancomunados com o
antigo escrivão da Câmara, Inácio Osório Vieira, que tinha sido
nomeado em 1765, como provedor da Fazenda pelo governador José
Custódio de Sá e Faria. Segundo o ouvidor, continuou “sempre o dito
Inácio Osório sendo o cabeça de toda aquela parcialidade, fazendo
com que dela, fossem sempre conservados os juizes, para eles os
dirigir”. O mais grave eram as irregularidades nas quais o “bando”
estava envolvido, pois era preciso “prover sobre as arrecadações dos
bens dos ausentes e dos órfãos de que me fizeram várias queixas
e registros, assim como sobre as mesmas Justiças, por eles terem
perdido na invasão do Rio Grande os Livros, em que existiam os
Provimentos das correições, tanto meus, como de meu antecessor”.
Em setembro de 1767, o ouvidor Sampaio solicitava à Câmara
“aposentadoria em sua chegada”, mas diante do seu afã investigativo,
logo ele seria visto como persona non grata pelos poderosos locais.
Segundo o magistrado, “se resolveu o dito Governador impedir-
me não só a referida Correição, mas todo o exercício da minha
Jurisdição naqueles Continentes”, escrevendo à Câmara “ordenando-
lhe me não obedecesse”. Revoltado com a desobediência dos oficiais
camarários e do governador, ele achou mais conveniente retirar-
se “instantaneamente” do Continente, certamente em função das
ameaças que deve ter sofrido. Sem entender os motivos que teriam
levado à sua suspensão pelo vice-rei, o ouvidor desabafou, dizendo
20 - ANRJ. Fundo Vice-reinado, cx. 749, pct. 3. Carta do Ouvidor de Santa Catarina Duarte de Almeida Sampaio
para o Vice-rei Conde de Azambuja. Desterro, s/d [1768].

163
que “persuado-me que nenhuma daquelas Representações, foram
feitas pelo dito Governador com Zelo do Serviço de Deus, e de El
Rei, só sim para comprazer com aquela parcialidade de que é Cabeça
o dito Escrivão Ignácio Osório Vieira, [...] por não querer este, que
fossem vistos os seus procedimentos, e os dos seus serventuários,
por ele determinados, naqueles tempos, e as faltas dos inventários
tantos dos órfãos, como dos ausentes”. Por fim, informava ainda que
“o mesmo Inácio Osório Vieira é devedor aos Órfãos, que tirou do
Cofre no Rio Grande três mil cruzados, além dos juros; o Juiz dos
Órfãos que ali elegeram, e daquela mesma parcialidade Domingos
de Lima Veiga, deve aos mesmos Órfãos (...), mais de quatro mil
cruzados”. Assim, justamente por tentar combater tais desvios,
o ouvidor teve sua correição impedida, numa demonstração de
força do poder local, ainda que em articulação com as autoridades
régias. Antes de estranhar tais envolvimentos, deve ser lembrado
que a construção de redes de relações pessoais sobre uma base local
eram um dos principais recursos utilizados pelos representantes da
Coroa para assegurar o funcionamento das estruturas formais da
autoridade imperial.21
Outro conflito grave aconteceu no ano de 1772, quando os
cidadãos expressaram ao governador interino Antônio Veiga de
Andrade, através de uma representação, o seu desconforto com a
situação militar do Rio Grande, ainda sob ocupação castelhana.
Quando vice-rei Marquês do Lavradio ficou sabendo do teor da
petição, chamou os oficiais de rebeldes e perturbadores da paz
pública, acusando-os de crime de conspiração por estarem agindo
em concerto, além de criticar a leniência do governador. Enfurecido,
o vice-rei determinou que os cinco signatários da petição fossem
enviados presos ao Rio de Janeiro para receberem uma exemplar
punição. Mais tarde, Lavradio esfriou os ânimos e perdoou os
“rebeldes”, determinando ao governador Veiga de Andrade que
usasse de “toda vigilância possível” para evitar novas situações
similares.22 Como decorrência desta rebeldia (entre outros fatores,
tais como sua posição estratégica), em 1773 o vice-rei determinaria
a transferência da Câmara de Viamão para Porto Alegre, que seria
assim a nova capital. Com o translado definitivo do poder político
local para a nova freguesia portuária, a Câmara ali se fixaria pelos
próximos anos, até que no período joanino fossem criadas as novas

21 - Z. MOUTOUKIAS. “Réseaux personnels et autorité coloniale: les négociants de Buenos Aires au XVIIIe
siècle”. Annales ESC, junho/outubro, nº 4 e 5, 1992, pp. 889-915.
22 - Dauril ALDEN. Op. cit. p. 426. Sobre este episódio, ver também Adriano COMISSOLI. Os homens bons e a
Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, pp. 55-56.

164
vilas. Cabe lembrar que, na prática, a Câmara sediada no antigo Porto
dos Casais tratava-se da única corporação municipal existente no
Rio Grande de São Pedro, o que lhe conferia poderes muito amplos,
com jurisdição sobre todo o território lusitano do Continente.

Para concluir, resta dizer que no início do século XIX, o sul da


América portuguesa vivia uma situação insólita do ponto de vista da
administração local, pois continuava existindo (até 1810) somente uma
única vila na capitania do Rio Grande; no entanto, esta vila não era sede
da Câmara, que permaneceu estabelecida em Porto Alegre, uma simples
freguesia... Os governadores pediam solução para este estado de coisas,
mas não eram atendidos: em 1791, Rafael Pinto Bandeira, ponderava ao
ministro Martinho de Melo e Castro que, além de Rio Grande, “era bom
[...] Porto Alegre ser uma vila e Rio Pardo, outra”. Anos depois, em 1803,
o governador Paulo Gama escrevia ao Visconde de Anadia, propondo
a criação de quatro novas vilas, proposta que seria atendida pela Coroa
somente no final daquela década.23
Esta timidez da Coroa portuguesa na constituição de novos
municípios no Continente do Rio Grande teve sua contrapartida
eclesiástica na criação de diversas freguesias, tendo sido eretas dezesseis
paróquias entre 1737 e 1779. Depois deste surto de povoamento,
novas freguesias seriam criadas a partir de 1810, justamente no
período joanino. Somente depois da chegada da família real ao Brasil
é que a Metrópole “interiorizada” passou a prestar maior atenção às
necessidades administrativas do Rio Grande de São Pedro. 24 Já no
final de 1807 o Rio Grande de São Pedro seria elevado à categoria
de capitania-geral, tendo sido nomeado Dom Diogo de Souza como
primeiro governador e capitão-general. No período compreendido
entre 1811 e 1822, mais cinco Câmaras foram constituídas: Rio
Grande, Rio Pardo, Porto Alegre, Santo Antônio e Cachoeira. Na
verdade, parece que houve mesmo uma certa resistência da Coroa em
reforçar os poderes concelhios no Sul, numa região de fronteira ainda
indefinida (o mesmo vale para a praça da Colônia do Sacramento, que
jamais foi vila). Assim, a maioria das medidas tendentes a criar uma
estrutura administrativa mais apropriada se deu no período joanino
(1808-1821), quando passou a prevalecer uma nova orientação
política, onde a fronteira meridional passaria a ter uma importância
crescente para o Império luso-brasileiro e seus renovados intentos
expansionistas na região platina.
23 - AHU-RS, Cx. 3, doc. 252 e Cx. 7, doc. 487.
24 - Maria Odila Leite da Silva DIAS. “A interiorização da metrópole”. In: IDEM. A interiorização da metrópole e
outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005, pp. 7-37.

165
RELIGIOSIDADE COLONIAL
12- CRISTANDADE MEDIEVAL
E CRISTANDADE COLONIAL:
PERMANÊNCIAS E RUPTURAS.
Francisco José Silva Gomes*

A Cristandade Colonial no Brasil é uma herança medieval,


transplantada de Portugal, remodelada e resignificada na situação
colonial. Não se entende aqui Cristandade como sinônimo de
Cristianismo. Enquanto o Cristianismo se refere a um sistema
religioso específico, a Cristandade significa um sistema de relações
da Igreja e do Estado numa determinada sociedade.
A relação bipolar Igreja e Estado só se torna significante se
se leva em conta a Sociedade como um terceiro elemento mais
abrangente. A relação bipolar serve, outrossim, de mediação à
relação tridimensional e está nela contida. As relações estruturais
da Igreja e do Estado medeiam assim a relação de cada uma destas
instituições com a Sociedade.
A Cristandade iniciou tardiamente na História do Cristianismo.
No Império Romano, em particular, iniciou com a Pax Ecclesiae, no
século IV, por ocasião da “conciliação constantiniana”. O sistema
de Cristandade apresentou várias modalidades no decorrer da
História do Cristianismo e da Igreja. As modalidades que podem
ser denominadas de “constantinianas” apresentam certos traços
constantes, aqueles da Cristandade que se constituiu, no século IV, no
“Império cristão”. Estas modalidades perduraram até as revoluções
liberais, até o advento do capitalismo.
Nelas, a Cristandade apresenta-se como um sistema único de
poder e de legitimação da Igreja e do Estado. Neste sistema, o Estado
assegura à Igreja uma presença privilegiada na sociedade. A Igreja,
por sua vez, assegura ao Estado e aos grupos sociais dominantes a
legitimação da sua dominação.
Uma Cristandade “constantiniana” apresenta as características
seguintes: um regime de união da Igreja e do Estado; uma religião
oficial que busca a unanimidade religiosa; um código religioso de
base, considerado o único admitido, mas diferentemente apropriado
pelo clero e os leigos, pelos letrados e os iletrados, pelos diversos
grupos sociais. Uma situação histórica “constantiniana” aumenta
1
*
Professor Associado de História Medieval do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro

169
geralmente o poder institucional da Igreja, já que ao seu peso
específico, o religioso, acrescenta-lhe um peso político-ideológico e
econômico. Não se deve descartar a possibilidade, numa Cristandade
“constantiniana”, de movimentos de contralegitimação da ordem
vigente, baseados porém num capital religioso comum.
Na Cristandade Medieval, a Igreja detinha um quase monopólio
sobre a produção dos bens simbólicos. Os clérigos tendiam, até certo
ponto, a monopolizar o papel de intelectuais. As representações, os
discursos e as práticas que os intelectuais elaboravam e veiculavam,
permitiam ao sistema obter o consenso social. Para tanto, a
Igreja criou uma extensa rede clerical e paroquial. Havia, é óbvio,
outros tipos de intelectual como, por exemplo, os líderes de certos
movimentos milenaristas de protesto social ou de certas correntes
religiosas consideradas, pela Igreja, como heréticas.
Nesta modalidade de Cristandade, a religião cristã tendia a
ser uma religião de unanimidade mas com caráter polivalente. A
religião fornecia, simultaneamente, a ideologia e as normas sociais.
A ideologia religiosa explicava e justificava as relações sociais. A
religião agia, outrossim, sobre as normas de conduta (numa ética),
fornecia as motivações para a ação e forjava a esperança mobilizadora
(numa utopia).
Além de polivalente, a religião era também multifuncional.
Religião de unanimidade, o cristianismo provocava, contudo,
diferentes expectativas nos diversos grupos sociais. Max Weber
afirma que, se por um lado, os grupos dominantes buscam na
religião a confirmação da sua posição social, por outro, os grupos
dominados encontram na religião a compensação para a sua
situação presente, na esperança de uma salvação futura. Temos, pois,
a função integradora e de coesão social da religião. A esperança,
todavia, apresenta um caráter ambivalente: tanto pode ser fonte
de resignação e conformismo, quanto pode constituir uma utopia
mobilizadora de conotações religiosas. Temos, pois, a função de
protesto social da religião. Não se pode, evidentemente, restringir as
funções da religião, na Cristandade Medieval, somente a estas duas
dimensões.
A Cristandade Medieval propiciava, com efeito, situações
de conformismo que um consenso social homogeneizador e
normatizador gerava. A religião sacralizava o poder, as autoridades,
a ordem vigente. A ideologia tinha um caráter eminentemente
religioso. Assim sendo, as práticas sociais eram vistas não como
uma imposição, mas como atos voluntários ou como deveres
morais e religiosos. Neste universo mental, a ordem natural e a
170
ordem social eram percebidas como equivalentes e garantidas pela
ordem sobrenatural (divina) e as relações sociais acabavam, na
consciência dos agentes sociais, naturalizadas e sobrenaturalizadas
simultaneamente.1
A Cristandade Medieval conheceu uma séria crise, no século XIV
e XV, a qual recebeu uma dupla resposta: a da Reforma católica e a da
Reforma protestante. Ambas ocorreram no contexto do surgimento,
na Europa, de uma pluralidade de Estados soberanos e do Antigo
Regime. A Cristandade tridentina permitiu a reelaboração do ideal
“constantiniano” de Cristandade no interior de cada Estado católico
numa Europa fragmentada numa pluralidade de Estados católicos e
protestantes segundo o princípio: cuius regio, illius est religio.
Nos Estados católicos, no contexto da Cristandade tridentina,
os conflitos da Igreja e do Estado ocorreram em torno do aparelho
eclesiástico no interior de cada Estado. A Santa Sé teve de enfrentar as
ingerências de Estados soberanos com monarcas absolutos de direito
divino e que adotaram uma política jurisdicionalista com relação
aos aparelhos eclesiásticos. No entanto, os aparelhos religiosos
propriamente ditos permaneceram assunto da exclusividade da
Igreja.2
Entre permanências e rupturas, continuidades e descontinuidades,
o sistema de Cristandade Medieval foi redefinido como uma
Cristandade tridentina no âmbito da “longa duração” de uma
Cristandade “constantiniana”.
A questão historiográfica da “longa duração” foi muito debatida
na historiografia brasileira a propósito do sentido da colonização:
esta teria sido medieval ou moderna? Na medievalística, Jacques Le
Goff lançou a questão da “longa Idade Média”. Para este historiador,
o conceito de modernidade aplicado à Idade Moderna (séculos
XVI a XVIII) dever ser descartado. O Renascimento não constituiu
uma ruptura no século XVI. A Idade Média conheceu sucessivos
renascimentos: o carolíngio, o do século XII, o dos séculos XIV e XV.
Em vez de opor “medieval a renascentista” ou “medieval a moderno”,
trata-se antes de dar conta das continuidades e descontinuidades na
“longa Idade Média” que perdurou até o advento do capitalismo,
até a ideia moderna da História na linha de um Reinhart Koselleck.
Esta perspectiva foi adotada por Jerôme Baschet em sua obra “A
civilização feudal. Do ano Mil à Colonização da América”. Nela, a

1 - Francisco GOMES. “A Igreja e o poder: representações e discursos.” In: Maria Eurydice RIBEIRO (org.). A
vida na Idade Média. Brasília: UnB, 1997, pp. 33-38.
2 - IDEM, p. 53-54.

171
Colonização é perspectivada na “longa Idade Média”.3 Esta questão
historiográfica demandaria extensas considerações que não cabem
aqui.
Passo a tratar da política jurisdicionalista do Estado absolutista.
Segui nesta temática a conceituação de Giacomo Martina, jesuíta
que foi docente de História da Igreja na Pontifícia Universidade
Gregoriana. Na sua obra, em quatro volumes, intitulada “La Chiesa
nell’età dell’Assolutismo, del Liberalismo, del Totalitarismo”, Martina
desenvolveu uma reflexão sobre o jurisdicionalismo de Estado em
matéria eclesiástica. Para este autor, o jurisdicionalismo realizou-
se historicamente de dois modos diversos: no Antigo Regime, com
a finalidade teórica de defender a Igreja e a religião, consideradas
pelo Estado indispensáveis à sociedade e à monarquia; na época
liberal, com a finalidade de defender o Estado das ingerências e
perigos que a Igreja constituía para a sociedade civil. Enquanto na
primeira fase, o jurisdicionalismo foi confessional, na segunda fase,
foi aconfessional.4
No Reino de Portugal, os conflitos do poder temporal e do poder
espiritual remontam aos reinados da dinastia de Borgonha desde a
sua fundação no século XII. Com a dinastia de Avis, cresceram as
tendências jurisdicionalistas do Estado.
O jurisdicionalismo confessional esteve sempre presente na
Cristandade Colonial no Brasil. Aos inacianos coube a tarefa de
defender, em todo o Império português, as prerrogativas da Santa
Sé. A partir de 1690/1700, quando se deu a arrancada da mineração
nas Gerais, o Brasil tornou-se a principal colônia no Império. Em
1750, o Tratado de Madrid reconhecia a Portugal a posse deste quase
continente que é o Brasil. Com a morte de D. João V, ascendia ao
trono D. José I. O Antigo Regime foi então reforçado em todo o
Império com as reformas implementadas pelo Marquês de Pombal.
A política jurisdicionalista foi mais rigidamente acentuada com
as doutrinas do Regalismo. Para eliminar, do Império, o principal
obstáculo ao Regalismo, foi decretada, em 1759, a expulsão dos
jesuítas. Afastados os inacianos, o Marquês aproveitou para proceder
à reforma da Universidade de Coimbra que recebeu novos Estatutos
em 1772. A “viradeira”, com a ascensão ao trono de D. Maria I, em
1777, em nada modificou a política regalista do Estado, levando o
clero a habituar-se, como fato natural, às doutrinas jurisdicionalistas

3 - Jerôme BASCHET. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, pp.
44-45.
4 - Giacomo MARTINA. La Chiesa nell’età dell’ assolutismo, del liberalismo, del totalitarismo. Brescia: Morcellia-
na, 1980, vol. III, pp. 47-48.

172
e regalistas que lhe eram ensinadas em Coimbra e nos seminários.
Foi o caso, por exemplo, do ensino no Seminário de Olinda, criado,
em 1799, pelo bispo D. José Joaquim de Azeredo Coutinho.5
Passo agora a outra herança medieval na Cristandade Colonial.
Trata-se do patrocinium e da “Igreja privada”. Os poderosos, quer os
aristocratas, quer os reis e imperadores, detinham frequentemente o
patrocinium sobre igrejas, paróquias, mosteiros que eles dotavam e
consideravam como “Igrejas privadas”. Esta tutela dos leigos sobre as
instituições eclesiásticas ia desde o Papado até as paróquias, passando
pelos bispados, os cabidos, as abadias, os mosteiros. Os poderosos
“deste mundo” aproveitavam o seu papel de patronos das “Igrejas
privadas” para tutelarem e/ou se apropriarem dos bens eclesiásticos
e para designarem os seus “eleitos” para os cargos eclesiásticos
tanto do clero secular, quanto do regular. Os abusos foram tais que
provocaram reações como as reformas monásticas dos séculos X a
XII e as reformas papais, iniciadas com a Reforma gregoriana no
século XI.
O Papado percebeu a tutela dos leigos como uma mundanização,
como uma escravização da Igreja. Daí a sua luta pela libertas
Ecclesiae. Mas esta tinha de ser complementada com uma reforma
na e da Igreja. Tratava-se, neste caso, de lutar contra os pecados e
as misérias dos cristãos, clero e leigos: uma reforma na Igreja. Mas
era opinião corrente que a reforma na Igreja só se viabilizaria com
mudanças necessárias nas instituições eclesiásticas: a reforma da
Igreja. Assim sendo, esta última passou a ser considerada condição
sine qua non para haver reforma na Igreja. A reforma gregoriana,
a partir do século XI, operou a síntese destas duas dimensões de
reforma, implementada esta com dois processos concomitantes:
o de clericalização e o de romanização. O primeiro reforçava o já
tradicional monopólio clerical na Igreja. O segundo preconizava
o monopólio jurisdicional da Igreja romana e do Papado sobre as
Igrejas particulares.6
Nos séculos XIV e XV, a Coroa em Portugal foi-se apropriando
do aparelho eclesiástico, de sua direção e controle. E isto graças ao
jurisdicionalismo e ao Padroado. Há uma certa homologia entre o
exercício do patrocinium na Cristandade Medieval e o regime de
Padroado na Cristandade Colonial. Ocorrem, contudo, duas grandes
diferenças. O Padroado consistia num conjunto de concessões feitas
à Coroa pela Santa Sé. Mas a Coroa foi-se apropriando do Padroado,

5 - Tarcísio BEAL. “As raízes do regalismo brasileiro”. Revista de Cultura Vozes, vol. 71, abr. 1977, n. 3, pp. 37-50.
6 - Francisco GOMES. Op. cit., pp. 47-51.

173
transformando-o em direito régio num contexto de uma política
jurisdicionalista cada vez mais rígida.
Os papas dos séculos XV e XVI não puderam ou não quiseram
arcar com o ônus para implantar instituições eclesiásticas nas terras
descobertas, nem tampouco com o das atividades missionárias.
Concederam, então, o Padroado à Coroa portuguesa. Em que
consistiu afinal o Padroado? Eram direitos concedidos pela Santa
Sé aos reis de Portugal em bulas sucessivas: o ius patronatus et
praesentandi dos benefícios maiores e menores; a organização dos
objetivos e meios da Missão; a subsistência do clero; a construção
e a manutenção dos edifícios de culto. O Patronus régio era,
simultaneamente, em Portugal, o Grão-Mestre da Ordem de Cristo.
Enquanto administrador da Ordem no temporal e no espiritual, o
rei tinha a plenitude do vicariato de Tomar, sede da Ordem. Este
vicariato era um territorium nullius dioecesis e dele dependiam as
colônias portuguesas.
As concessões do Padroado, entendidas pela Coroa como
direito régio, tornaram o aparelho eclesiástico de certo modo um
instumentum regni. Por isso, a Coroa criou, em 1532, a Mesa de
Consciência e Ordens. Esta decidia a criação de dioceses e paróquias,
a instalação de Ordens Religiosas, a fundação de mosteiros e
conventos, a nomeação para os benefícios maiores e menores,
deixando tão-somente à Santa Sé a confirmação dos bispos. Todas
as comunicações diretas com Roma foram dificultadas, quer as
visitas ad limina, quer a circulação dos documentos pontifícios
no Império. Alguns agentes eclesiásticos eram remunerados pela
Folha Eclesiástica. Podiam também postular subvenções, dotações,
em suma favores reais. A Santa Sé concedeu à Coroa o direito de
perceber, no Brasil, os dízimos e a Bula de Cruzada como uma forma
de compensação pelas despesas efetuadas com a gestão do aparelho
eclesiástico e com as atividades missionárias.7
O Padroado, como direito régio, foi reforçado com as reformas
pombalinas e as doutrinas regalistas do século XVIII. Após 1822, o
Padroado foi incorporado ao Império brasileiro. O Padroado só veio
a ser abolido com o decreto de Separação da Igreja e do Estado em
1890. As características do Padroado no século XIX e outras questões
a ele referentes não cabem nos objetivos desta comunicação.
Entre as muitas outras permanências da Cristandade Medieval na
Cristandade Colonial, vou tratar ainda de mais uma delas, a saber: a

7 - Francisco GOMES. Le projet de néochrétienté dans le diocèse de Rio de Janeiro de 1869 à 1915. Tese de Dou-
torado, Toulouse, 1991, Tomo I, pp. 38 e 66-68.

174
relação da clericalização e do catolicismo prescrito com o catolicismo
vivido de matriz leiga. Na Cristandade Colonial, o catolicismo foi
a única religião efetivamente admitida. Em virtude do Padroado, a
Coroa exercia um grande controle sobre o poder eclesiástico sem
que jamais tivesse exercido o poder religioso. A religião católica não
era unicamente a religião do Estado, mas igualmente a religião dos
súditos.
Na Cristandade Colonial, juntamente com a Cristandade foi
também transplantado e resignificado o catolicismo tradicional
português. Tratava-se do catolicismo permeado pelas representações
e práticas religiosas que dependiam muito pouco da intervenção
direta das autoridades eclesiásticas. Esta dimensão do catolicismo
tradicional constituía-se numa autoprodução religiosa, fruto de
um trabalho anônimo e coletivo de leigos, iletrados, de certos
grupos sociais. Distinguia-se, com efeito, da produção religiosa
dos especialistas, dos clérigos, a qual era destinada ao conjunto da
sociedade.
Não havia oposições absolutas e excludentes entre estas duas
dimensões do catolicismo tradicional português. Na verdade, o
conjunto das representações e das práticas religiosas autoproduzidas
não estavam cortadas, de maneira absoluta, da produção dos
especialistas. Eram dimensões complementares e dialéticas, elaboradas
a partir de um mesmo código religioso de base. A autoprodução
religiosa incorporava elementos do catolicismo prescrito e tentava
não se afastar dos seus significantes, dando-lhes, contudo, outros
significados. Assim sendo, o mesmo código religioso de base era
diferentemente interpretado e apropriado pelo catolicismo vivido.
Num Brasil de tradições portuguesas, africanas e indígenas, elementos
provenientes de outros sistemas religiosos eram redefinidos no interior
do código religioso cristão, e eram tolerados tão-somente dentro de
certos limites aceitáveis para a religião prescrita.8
O Regalismo pombalino, no século XVIII, reforçou o
jurisdicionalismo de Estado. O clero e os fiéis ficaram então
virtualmente submetidos ao poder jurisdicional do Estado nos
assuntos eclesiásticos e distanciados, consequentemente, da Santa Sé.
No entanto, foi neste período pós 1759 que o episcopado tentou, de
uma maneira mais intensa, implantar a Reforma tridentina no Brasil.
A falta de clero secular e de clero regular, este último controlado por
medidas restritivas da Coroa, retardou mais uma vez a generalização
deste movimento reformador na Cristandade Colonial.

8 - IDEM, pp. 55-57; Francisco GOMES. “A Igreja e o poder...”, pp. 36-37.

175
Na mesma época, manifestou-se um pujante catolicismo
tradicional que conheceu então uma importante fase de expansão
com suas múltiplas apropriações e variedades regionais. O catolicismo
vivido e nas mãos de lideranças leigas estava organizado em torno
de santuários, capelas, ermidas de beira de estrada, Irmandades e
Confrarias. Estas duas últimas eram lugares de devoção e caridade,
de solidariedade e convivialidade. Este catolicismo tradicional de
matriz leiga atingia toda a população: livres, alforriados e escravos;
brancos, pardos e negros; indivíduos de tradição portuguesa,
africana e indígena; letrados e iletrados; clero e leigos.9
Tratei tão-somente de algumas permanências e rupturas da
herança medieval no âmbito da Cristandade Colonial. Outras tantas
teria de analisar, mas os limites desta comunicação o não permite.

9 - Francisco GOMES. Quatro séculos de Cristandade no Brasil. Comunicação apresentada no Seminário Inter-
nacional de História das Religiões da ABHR, junho de 2001, Recife, pp. 3-4 (no prelo).

176
13- A MISSÃO JESUÍTA PARA O BRASIL
NA ESTRATÉGIA IMPERIAL DE
D. JOÃO III.
João Marinho dos Santos*

A 7 de Abril de 1541, Mestre Francisco Xavier, com dois padres


e um irmão jesuítas, está a embarcar em Lisboa na frota em que ia
por Governador do “Estado da Índia“ Martim Afonso de Sousa. No
primeiro dia do ano seguinte, escreve, da ilha de Moçambique, ao
seu Superior, Mestre Inácio de Loiola, e informa com entusiasmo:
«El Señor Gobernador me tiene dicho que tiene esperanza muy
grande en Dios nuestro Señor que adonde nos ha-de mandar, se han
de convertir muchos cristianos»1.
A 1 de Fevereiro de 1549, sai, também de Lisboa, o P.e Manuel da
Nóbrega, juntamente com dois Padres e três Irmãos da Companhia
de Jesus na frota em que ia o primeiro Governador do Brasil, Tomé
de Sousa. De Pernambuco, a 11 de Agosto de 1551, informará o
seu Provincial em Portugal, Pe Simão Rodrigues: «O Governador
determina de ir cedo a correr esta costa [do Brasil] e eu irei com ele,
e dos Padres que Vossa Reverência mandar, levarei alguns comigo,
para deixar as Capitanias providas. El-Rei Nosso Senhor escreveu ao
Governador que lhe escrevesse se havia já Padres [da Companhia] em
todas [as Capitanias]...»2.
A que se devia o interesse (leia-se a necessidade) da Coroa /
Estado de Portugal solicitar a presença missionária dos Inacianos
em algumas parcelas do seu Império Ultramarino? Vamos
procurar responder através da invocação de outros acontecimentos
temporalmente próximos daqueles.
Em 1538, mais propriamente no dia 8 de Maio, os reis de Portugal
e de Fez, por meio dos seus procuradores, celebram, em Arzila
(Marrocos), um tratado de paz válido por onze anos3. Ao aperto
político-militar de D. João III (como iremos explicitar) associava-se
idêntica situação da parte do monarca de Fez, já que os designados
Xarifes do Suz (uma região no sul de Marrocos e onde principiara
um movimento proselitista muçulmano, fundamentalista e
*
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Academia Portuguesa de História.
1 - Selectae Indiarum Epistolae nunc primum editae. Florentiae: Ex. Typographia S.S. Conceptione, 1887, p. 5.
2 - Cartas do Brasil e mais escritos do Pe Manuel da Nóbrega (opera omnia. Ed. Serafim LEITE, S.I..: Coimbra:
Por Ordem da Universidade, 1955, p. 88.
3 - Capitolação das pazes d’el rey de Fez com el Rey noso senhor. In: Robert RICARD.. Les Sources Inédites de
l’Histoire du Maroc, 1.º série , Portugal. Paris: Paul Gauthner, 1984, tome III, pp. 158-165.

177
xenófobo) pretendiam unificar, na pessoa de um deles, os reinos e
senhorios Marroquinos. Mais propriamente, Mulay Ahmed el A‘redj
já se intitulava rei de Marraquexe e, militarmente, ia progredindo
para Norte, com prejuízo das posições territoriais dos Reis de Fez e
de Portugal. Compreendia-se, portanto, claramente, a necessidade
do referido tratado de não agressão mútua. Mas, havia outras
preocupações, e até maiores, do lado português. Explicitemo-las.
Nesse ano de 1538, os turcos otomanos estavam a desencadear
feroz ataque à fortaleza portuguesa de Diu, postada à entrada do
Golfo de Cambaia, no Oceano Índico, pondo em risco o controle
da rica região do Guzurate por parte dos lusos. Era, enfim, uma
consequência lógica da amplificação do poderio regional dos
otomanos, quer pela via do Mar Vermelho (nesse mesmo ano de 1538,
haviam tomado a estratégica cidade de Adem), quer pelos caminhos
terrestres e fluviais que davam acesso ao Golfo Pérsico (Bagdade
caíra em 1534), até então controlados pelos turcomanos, sobretudo
durante a governação do Xaha ou Xeque Ismael. Com o filho deste,
Tahmasp, os portugueses continuavam a manter razoáveis relações
político-diplomáticas, mas a fragilidade militar dos turcomanos,
perante a concorrência otomana, deixava mais desprotegida a
fortaleza portuguesa de Ormuz, com repercussões, como se disse,
no controle do Guzurate. Assim, em 1546, os otomanos apoderar-
se-ão de Bassorá, enquanto Ormuz logrará resistir, mas Diu voltará
a sofrer novo e terrível cerco.
Eis, portanto, alguns sinais mais visíveis da convulsão político-
militar que sacudirá o Império Português entre 1538-1552, sem
esquecer a sua progressiva asfixia económico-financeira, já que os
juros da dívida pública não pararão de crescer nas praças da Flandres
e da Itália, a ponto da pimenta da Índia, mesmo com o reforço dos
direitos do açúcar da Madeira, do pastel dos Açores e dos escravos
da “Guiné”, ficar longe de cobrir o deficit. Que fazer?
A 12 de Março de 1541, a fortaleza portuguesa de Santa Cruz
do Cabo de Guer será praticamente oferecida aos mouros do Norte
de África, seguindo-se as perdas (em parte voluntárias) de Azamor
e Safim. Porém, Portugal continuará territorialmente presente em
Marrocos até 1769, ano da queda da fortaleza de Mazagão. Contudo
(insista-se), no plano geo-estratégico, D. João III teve de sacrificar o
domínio parcial do Norte de África, para preservar outros espaços
vitais do Império e valorizá-los até. Concretizemos o suficiente.
Em Novembro de 1540, D. João III dá instruções ao seu novo
embaixador em França que divulgue, oficialmente (como resultado
do incremento da pirataria e do corso), que do Brasil «[…] não se
178
traga nem hum pao [brasil] sem a minha licença de que me pagão
direitos aquelles a que a dou para o trazerem, e, se isto não fora,
elle não valeria nada em França nem em Portugal […]»4. Eis um
indicador da preocupação da Coroa/Estado português em valorizar,
ao máximo, as receitas públicas, lançando mão, inclusive, do vulgar
pau-brasil, ao procurar convertê-lo em monopólio ou exclusivo real
e colocá-lo ao abrigo dos assaltos de piratas e corsários. Ainda não
chegara a hora da afirmação do açúcar brasileiro, embora fosse já
promissora a sua rentabilidade nos mercados europeus, capaz (como
se veio a verificar lá para finais do século XVI) de se equiparar ou
até ultrapassar, em valor financeiro e à escala da Fazenda Pública
portuguesa, os réditos das especiarias do Índico.
Mas, que reacções de outra natureza revelou o Poder Central
português, perante as graves e intensas ameaças que atingiam o
corpo e a alma do seu Império Ultramarino, em praticamente todos
os domínios da realidade? Antes de respondermos, façamos algumas
considerações de cariz sociológico.
Em qualquer sociedade e mais ainda nas “sociedades plurais”
(considerando a sua diversidade étnica e cultural), a integração
social é fundamental, podendo fazer-se ou por consenso (em torno
de valores centrais, comummente aceites) ou por coerção (no caso de
persistir um perigoso dissenso). É verdade que a coerção ou a coação
física pode chegar para manter aparentemente unida a sociedade
plural, mas apenas durante algum tempo. Nunca por períodos
longos, até por falta ou desgaste de recursos físicos e financeiros.
Impõe-se, sempre, portanto, a vantagem de adoptar o consenso em
torno de valores tradicionais e inovadores, susceptíveis de serem
minimamente aceites.
Esclareça-se, ainda e a propósito, na esteira da interpretação
de Edward Shils (Centro e Periferia, Lisboa – Difel, em tradução
portuguesa), que nas sociedades plurais há, por regra, uma cultura
consensual (dominante) e uma ou mais culturas dissensuais, que
fragilizam o todo social, mas que também o podem enriquecer. Nestas
circunstâncias, o Poder que insiste em gerir, permanentemente,
em exclusão social é um Poder ameaçado, sobretudo tratando-
se de franjas importantes da sociedade. Foi o caso dos regimes
escravocratas, designadamente o do Brasil colonial.
Ainda outra observação com aplicação no Império Português
e, explicitamente, no Brasil: não foi só a religião que concorreu,
de forma mais pacífica, para a integração das sociedades plurais.

4 - Instruções para D. Francisco de Noronha, B.N.L., cód. 886.

179
Também o direito, a aculturação, o funcionamento do mercado
(interno e externo), o carisma dos governantes, ou a língua ao serviço
do Império foram factores importantes de uma relativa coesão social.
Mas, vamos procurar relevar, agora, o papel fundamental da religião.
Conhecedor da importância dos princípios de integração social
que acabamos de enunciar e consciente de que as armas para suster
um Império não eram só as bélicas, D. João III, além da adopção
de outras medidas (como o recurso à Inquisição), decidiu solicitar,
em 1538 (e já vimos como este ano foi denso em acontecimentos
político-militares), através do Dr. Diogo de Gouveia (ex-Reitor
da Universidade de Paris e Principal do Colégio de Santa Bárbara
na mesma cidade), a presença em Portugal dos auto-designados
“Clérigos reformados”, para lhes confiar a tarefa do revigoramento
da evangelização. Como é sabido, em 1539, os “clérigos reformados”,
com Inácio de Loyola à cabeça, constituíram-se em “Companhia”
ou ordem meio-regular e meio-secular e, em 1540, saem, de Roma
para Portugal, os primeiros jesuítas em que se destacarão Francisco
Xavier e Simão Rodrigues.
O primeiro partirá, de Lisboa para a “Índia”, como se disse, em
1541 e o segundo encarregar-se-á de fundar o Colégio de Coimbra,
viveiro de jesuítas, entre os quais registamos Manuel da Nóbrega e os
seus companheiros de 1549.
Quanto ao que se esperava da Companhia, penso que este excerto
de uma carta do Infante D. Luís (irmão do rei D. João III), para o
Vice-rei da Índia, suscita uma imagem impressiva e inequívoca: «Sua
Alteza vos manda este anno [1555] doze padres da Companhia de
Jesus que são para converter o mundo e certo que os deveis mais de
estimar que muita gente de guerra…»5.
À pólvora das armas para reforçar o Império deveria associar-
se, portanto, a força da palavra e a pedagogia do exemplo dos
que, clérigos ou leigos, tinham por missão anunciar aos pagãos
ou gentios, mas também aos judeus e aos “mouros” (embora estes
fossem praticamente inconversíveis), a mensagem do Evangelho.
Por outras palavras, a integração social, através da conversão ou
da reconversão religiosa, segundo o modelo jesuíta, deveria ser um
fenómeno total, em qualquer sociedade e, mais ainda, nas sociedades
plurais. Recordemos, a este propósito, as preocupações de Manuel da
Nóbrega em carta, para o ex-governador do Brasil Tomé de Sousa,
datada de 5 de Julho de 1559: «Des que nesta terra [Brasil] estou, que

5 - Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente – Insulíndia, vol. 6, Lisboa, 1988,
p. 22.

180
vim com Vossa Mercê, dous desejos me atormentarão sempre : hum,
de ver os christãos destas partes reformados em bons costumes,
e que fossem boa semente transplantada nestas partes que desse
cheiro de bom exemplo; e outro, ver disposição ao gentio para se lhe
poder pregar a palavra de Deus, e eles fazerem-se capazes da graça
e entrarem na Igreja de Deus […]. Porque pera isso fuy com meus
Irmãos mandado a esta terra, e esta foy a yntenção de nosso Rey [D.
João III], tam christianissimo que a estas partes nos mandou»6.
Que entraves ou pecados dificultavam a correcta integração social
dos colonos? A prática da poliginia (vulgarmente com as escravas
índias), o mau exemplo religioso que davam, mas, sobretudo, o
«odio geral que os christãos tem ao gentio […]», já que «louvão e
aprovão o comerem-se huns a outros, e já se achou christão mastigar
carne humana pera dar com isso bom [mau] exemplo ao gentio […].
Deste mesmo odio que se tem ao gentio, nasce não lhe chamarem
senão cãis e tratarem-nos como cãis […]»7. Enfim, o Missionário
condenava, veementemente, a antropofagia como ritual das guerras
inter-tribais e, mais ainda, os que acicatavam essas mesmas guerras
para gerarem escravaria no quadro da economia mercantil do Brasil.
Definidos os objectivos da missionação jesuíta, em particular
quanto à necessidade de reformar espiritualmente os colonos ou
“cristãos”, a estratégia escolhida por Nóbrega foi, fundamentalmente,
solicitar a ida de um bispo, ou seja, estabelecer, no Brasil, o aparelho
eclesiástico completo. Por sua vez, o gentio deveria ser «sujeito
e metido no jugo da obediência dos christãos», justificando deste
modo a medida: é que, « […] se o deixão em sua liberdade e vontade,
como hé gente brutal, não se faz nada com eles, como por experiencia
vimos todo este tempo que com ele tratamos com muyto trabalho,
sem dele tiráremos mais fructo que poucas almas ynnocentes que aos
ceos mandamos»8. Por outras palavras e se bem interpretamos, no
plano estratégico de Nóbrega a integração social dos índios pela via
coerciva era, num primeiro passo, inevitável, ainda que orientada por
princípios de humanidade, de respeito e de aculturação. Esclareça-se
não haver nesta posição nada de novo, já que, durante a Idade Média
Europeia e até quase finais da Moderna, a evangelização pressupõe a
conquista e esta subentende a evangelização.
Para lograr uma missionação sólida dos gentios, Nóbrega será
um fervoroso adepto do ensino dos «meninos da terra» em escolas
e colégios (com reflexos no teor das Constituições da Companhia de
6 - Cartas do Brasil e mais escritos do P.e Manuel da Nóbrega, pp. 316-360.
7 - Ibidem, pp.316-360.
8 - Ibidem, pp.316-360.

181
Jesus, de 1558) e, quando possível, enquadrados ou aculturados por
meninos provenientes do Colégio dos Órfãos de Lisboa. Por tal, e
contra a vontade do Bispo Mestre Pedro Fernandes, chegado pelo
S. João de 1552, manterá a designada “Confraria dos Meninos de
Jesus”, com a qual esperava fazer muito fruto catequético junto dos
índios. Concretizemos um pouco mais. Em carta, para D. João III,
com data de 14 de Setembro de 1551, Nóbrega informara que «Ho
sertão está cheeo de filhos de christãos grandes e pequenos, machos
e fêmeas, com viverem e se criarem nos costumes do gentio…». Para
os catequizar, a eles e aos meninos índios, era necessário adoptar
uma estratégia de aculturação, que funcionasse nos dois sentidos,
porque, como observará Nóbrega, «a semelhança hé cousa de
amor». Concretamente, preconizará: « Se nos abraçarmos com
alguns custumes deste gentio, os quais [costumes] não são contra
nossa fee catholica, nem são ritos dedicados a ídolos, como hé cantar
cantigas de Nosso Senhor em sua lingoa pello seu toom e tanger seus
instrumentos de musica que elles [usam] em suas festas quando
matam contrairos e quando andão bêbados […], e passeando e
batendo nos peitos como elles fazem quando querem persuadir
alguma coisa e dizê-lo com muita eficácia; e assi tosquiarem os
meninos […]», certamente daria grande fruto9.
Sobretudo, por não terem com que os alimentar e vestir, os
representantes da Companhia de Jesus no Brasil tiveram que
optar, à semelhança do que era feito na missionação Oriental, por
seleccionarem os filhos «dos grandes e principais», destinando
os mais capazes à ordenação sacerdotal ou à sua utilização como
“línguas” (intérpretes).
Esclareça-se que esta última função, ou seja, a de intérprete,
principalmente em acto de confissão, será inaceitável para o bispo
D. Pedro Fernandes, naturalmente por atentar contra o princípio do
sigilo confessional. Registe-se, a propósito, que, quando possuído por
dúvidas do âmbito dos Direito Canónico e Civil, Manuel da Nóbrega
não hesitava em expô-las aos Superiores do Colégio de Coimbra.
Nem outra atitude seria de esperar, porque o que distinguia a missão
jesuíta era a preocupação do rigor, a observância da qualidade,
a fuga à vulgarização ou à massificação, a cedência ao facilitismo,
muito embora a gente da Companhia procurasse encontrar uma
metodologia eficaz, ou seja, adequada à cultura dos conversos e
buscasse os mediadores ajustados. Exemplificando, é sabido que
Nóbrega quis servir-se, na sua acção catequética, de João Ramalho

9 - Carta de finais de Agosto de 1552, para Simão Rodrigues, Op. cit., pp. 138-146.

182
e dos seus filhos nascidos de mulheres índias, ou que fez guerra aos
clérigos que então exerciam o seu múnus no Brasil, «porque lhes
somos contrários a seus maus costumes e não podem sofrer que
digamos as missas de graça, em detrimento do seu interesse»10.
Mas, não vamos particularizar mais o modelo da missão dos
Inacianos, até porque é matéria suficientemente conhecida. Frisamos,
porém, que se trata de um modelo, ou seja, de práticas com validade
em todo o terreno social em que a Companhia pretendia desenvolver
a evangelização. Exemplifiquemos:
No Oriente, tal como no Brasil, os meninos que se destacavam
pela inteligência e que integravam as elites locais eram os escolhidos
para servirem de intérpretes (“línguas” ) aos Padres. Por exemplo,
em Coulão e no ano de 1547, um Pedro Luis, filho de um brâmane,
fez-se cristão com a idade de 15 anos e, depois de ter frequentado o
colégio jesuíta de Goa e de ter servido de “língua” a Padres nas suas
várias missões, pediu para entrar na Companhia, «por ser cousa nova
e não acostumada e começar-se em mim» a ordenação sacerdotal
de gentios11. Aliás, já em carta redigida, de Goa a 20 de Novembro
de 1545, Juan de Beyra informava o reitor do Colégio de Coimbra:
«En este colégio llamado casa de Santa Fe hay bien sesenta mozos
de diversas genraciones, que son de nueve lenguas diferentes y muy
apartadas unas de las outras; los más dellos leen y escriben nuestro
vulgar [o português] tambien saben leer y escribir suas lenguas ;
algunos entienden razonable [el] latim…»12.
Nóbrega leu, possivelmente, esta e outras cartas anualmente
redigidas pelos seus confrades e reteve (ao menos, através de
conversas) a experiência dos seus irmãos jesuítas empenhados
na missionação da “India”. Por outras palavras, através das cartas
ânua também se foi forjando a apurando o modelo catequético dos
Inacianos, como resultado do que se ia experimentando nas suas
muitas e diversas missões.
Para terminar, voltemos à macro-história, relevando alguns
princípios estruturais da Expansão Ultramarina Portuguesa e
algumas adequações conjunturais, de natureza política e geo-
estratégica, que se traduziram, designadamente, na secundarização
da importância económica do Norte de África (Marrocos), a partir,
sobretudo, dos anos 30 de Quinhentos, em benefício da “Índia”
das especiarias e do Brasil do açúcar, do algodão e do tabaco. Ao
imprescindível, mas desgastante, poder das armas, associou-se,
10 - Carta para Simão Rodrigues, de 21 de Agosto de 1551, Op. cit., pp. 86-90.
11 - Selectae Indiarum Epistolae…, pp 193-195.
12 - Ibidem, pp. 7-9.

183
então, a intervenção mais activa e decisiva da religião cristã, da
divulgação do português (sem minimizar, antes pelo contrário,
outras “línguas de cultura”), da vantagem do uso do direito escrito,
da busca de costumes similares que favorecessem a aculturação, da
complementaridade dos comércios regionais e da sua integração
na “economia-mundo europeia”, da relevância dos agentes laicos e
sagrados que fossem portadores de carisma, da unicidade bipolar do
poder temporal e do poder espiritual…
A propósito, e porque (em meu entender) ajustada à realidade do
Império Ultramarino Português (em particular à do Brasil Colonial),
releve-se o contributo da religião cristã para o favorecimento do
processo civilizacional à escala do orbe, citando Norbert Elias: «La
antitesis decisiva en la que se expresa la autoconsciencia occidental
durante la Edad Media es la antitesis entre cristianismo y paganismo
o, dicho com mayor exactitud la antitesis entre el cristianismo
romano – latino de una parte y el paganismo y la herejia de la otra
(comprendiendo aqui a la cristiandad griega-oriental»13. Foi escudado
na importância desta «antítese decisiva», a do cristianismo versus
paganismo, que, modestamente, decidi apresentar esta comunicação
no “V Encontro Luso-Brasileiro de História Medieval”.

13 - Processo de la Civilización. Investigaciones Sociogenéticas e Psicogenéticas, trad. castelhana, México – Ma-


drid: Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 99.

184
14- EM DEFESA DA VIRTUDE E EM BUSCA
DO MARTÍRIO: JESUÍTAS EM MISSÃO
NO GUAIRÁ (SÉCULO XVII).
Eliane Cristina Deckmann Fleck*

O fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola1, imprimiu


à escolha dos membros da Companhia e ao ingresso de jovens nos
colégios um cuidado todo especial. Para isso, as Constituições (1558)
alongam-se na determinação de quem podia e quem não podia ser
jesuíta. Segundo Loyola, somente seriam admitidos aqueles “cuja
vida, por longas e cuidadosas provas, for bem conhecida e aprovada
pelo Superior Geral”2. Na verdade, o intento de Inácio de Loyola
era o de admitir pessoas capazes de reproduzir a sua experiência
pessoal e de se identificar com sua concepção de prática apostólica,
condições que considerava essenciais para a dilatação do Evangelho
para maior glória de Deus3.
Ele acreditava, ainda, que todos os dons humanos que pudessem
ser válidos para este fim, tinham de ser aproveitados, uma vez que
o “homem foi criado para bendizer, fazer reverência e servir a Deus
Nosso Senhor e, mediante isso, salvar sua alma”4. Para alcançar a
salvação da alma, os valores sensíveis e voluntários deveriam ser
dominados e o “chamamento de Cristo Rei, que [...] convoca ao
combate contra as potências de Satanás, sob o estandarte da Cruz”
deveria ser aceito5.

A VOCAÇÃO DE SERVIR: A COMPANHIA DE JESUS

A vocação de servir, idealizada por Loyola, foi transformada,


então, na idéia de missão, que passou a moldar indiscutivelmente o

*Curso de Graduação em História e PPG de História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
1 - Inácio de Loyola nasceu em uma família espanhola nobre em 1491. Fez carreira militar, interrompida no
cerco de Pamplona, em 1521. Após uma peregrinação para Roma e Jerusalém, empreendeu estudos em Barce-
lona, Alcalá e Salamanca, finalizando-os em Paris, onde, juntamente com outros companheiros, fez os votos da
Companhia em 1534, tendo-a dirigido até sua morte em 1556.
2 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus. Lisboa, 1975, p. 175
3 - As dores torturantes sentidas por Inácio de Loyola, em decorrência dos ferimentos sofridos no cerco de Pamplo-
na, são referidas como motivadoras de suas meditações e resoluções espirituais durante a convalescença, fornecendo
um modelo de conduta pautada pela paciência e fé devota que ficaria regulamentado nas Constituições da Ordem.
4 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus... Op.cit., p. 34.
5 - William BANGERT. História da Companhia de Jesus. São Paulo: Editora Loyola, 1985, p. 20.

185
pensamento e a prática da Companhia de Jesus. Destacando o caráter
apostólico que Inácio pretendia imprimir, ficou estabelecido que “[…] o
fim desta Companhia é não somente ocupar-se da salvação e perfeição
das almas próprias com a graça divina, mas também com a mesma,
procurar intensamente, ajudar à salvação e perfeição dos próximos”6.
As Constituições esclarecem que aqueles que pretendiam entrar
na Companhia, “antes de começar a viver sob a obediência numa das
suas residências ou colégios, devem distribuir todos os bens materiais
que possuem e dispor de todos os que esperem vir a ter...”7, e ainda que
“se quiser seguir a Companhia, há de comer, beber, vestir-se e dormir
duma maneira própria de pobres”8. Deveria também estar “pronto[s]
e decidido[s] a aceitar e sofrer pacientemente, com a graça de Deus,
todas as injúrias, escárnios e opróbrios que andam associados
às insígnias de Cristo Nosso Senhor...”9. Ao definir as condições
de ingresso de um postulante a membro da Companhia, Loyola
estabeleceu que, embora a enfermidade do corpo devesse incitar a
prática de “cosas espirituales”, estes não deixassem de obedecer “con
la misma humildad a los médicos corporales y enfermeros, para que
gobiernen su cuerpo; pues los primeros procuran su entera salud
spiritual, y los segundos toda su salud corporal”10.
As Constituições tratam também dos procedimentos a serem
adotados nas Casas de provação – locais onde aqueles que almejavam
ingressar na Ordem deveriam passar um tempo, geralmente, dois
anos. Nelas, o futuro jesuíta deveria passar por um período de
mortificação, desligando-se do mundo (glórias, honrarias, pompas e
estima pessoal), através da realização de seis experiências principais,
as quais consistiam de: 1) realização dos Exercícios Espirituais, no
período de um mês; 2) servir em hospitais, também pelo período
de um mês; 3) peregrinar por outro mês sem dinheiro, vivendo de
esmolas e 4) depois de ter ingressado na Casa, exercitar-se com
inteira diligência e cuidado em diversos ofícios baixos e humildes;
5) ensinar a doutrina cristã a crianças ou a outras pessoas rudes
em público ou em particular e 6) já estando provado, procederia
predicando, confessando ou realizando qualquer outro trabalho
dentro da Companhia.
6 - Inácio de LOYOLA. Op. cit, 1975, p. 307.
7 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., pp. 46-47.
8 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., p. 55.
9 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., p. 62. Na biografia de Inácio de Loyola
escrita por Pedro Ribadeneyra (1594), sua vida é apresentada como aquela que atualiza o exercício cristão primi-
tivo de misericórdia e paciência, face ao sofrimento, como um espelho para o devotamento à salvação da alma.
Os males do corpo são tomados, nessa perspectiva, como oportunidade para a conversão e a cura da alma.
10 - I. IPARRAGUIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1952, p. 388.

186
A relação entre virtude e humildade aparece claramente na
orientação quanto à execução de ofícios considerados baixos, o
que está relacionado com o treinamento da obediência, tão bem
expresso nos números 84 e 284 das Constituições, que prevêem: “Y
no solamente en la exterior execución de lo que manda, obedezcan
y prontamente con la fortaleza y humildad debida,sine xcusaciones
y murmuraciones, aunque se manden cosas difíciles y según la
sensualidad repugnantes”11. A obediência é, assim, entendida como
o comportamento máximo de abnegação de si, constituindo-se, em
grande medida, na forma para “unir los repartidos con su cabeza
entre si” [...] “Así que la caridad y en general toda bondad y virtudes
con que se proceda conforme al spíritu [...] y por consiguiente todo
menosprecio de las cosas temporales en las cuales suele ordenarse el
amor propio, enemigo principal desta unión y bien universal”12.
O espírito da Companhia pode ser, portanto, assim definido: “Todos
sean personas que se han desnudado del amor con propósitos de servir
a Dios, su Criador Senõr, y sus prójimos en perpetua pobreza, castidad
y obediencia”13. A fim de que os pretendentes a efetivarem-se na Ordem
não descuidassem de tal matéria, as Constituições orientavam que
existissem pregações constantes nas Casas de Provação: “alguna hora
después de comer […] tratando a menudo de lo que toca a la abnegación
de si mismos y de las virtudes y toda perfección” e que “algunas veces
entre año todos ruegen al Superior les mande dar penitencias por la
falta de observar las reglas”14. No geral, as mortificações deveriam ser
realizadas para que o jesuíta mais se assemelhasse a Cristo e aos pobres,
para maior abnegação e proveito espiritual. Para tanto, as Constituições
orientavam inclusive comedimento no comer, beber, calçar e dormir, a
exemplo dos primeiros inacianos.
Partidário da concepção tomista de que o conhecimento penetrava
no intelecto pela via dos sentidos, Inácio de Loyola recomendava:
“Todos tengan especial cuidado en guardar con mucha diligencia
las puertas de sus sentidos, en especial los ojos y oídos y la lengua,
de todo desorden”15. O domínio dos sentidos pelo intelecto – a
mortificação das paixões – deveria expressar-se nos mínimos
detalhes: na maneira de falar, de andar, de olhar, devendo “guardarse
de todo tocamento indecente y de la divagación de los ojos y ansí de
todos los otros sentidos; también refrenar la lengua […] conciértense
bien las vestiduras, ni descubran cosa no honesta”16.
11 - I. IPARRAGUIRRE, Obras completas de San Ignacio de Loyola… Op. cit., p. 435.
12 - I. IPARRAGUIRRE, Obras completas de San Ignacio de Loyola… Op. cit., p. 525.
13 - I. IPARRAGIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 579.
14 - I. IPARRAGIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 434.
15 - I. IPARRAGIRRE. Obras completas de San Ignacio de Loyola…, Op.cit., pp. 427-428.
16 - I. IPARRAGUIRRE. Obras Completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 614.

187
Para que se evitasse todo e qualquer perigo para a alma, as
Constituições orientavam um cuidado especial em relação às
mulheres, consideradas fonte latente de pecado, e que lhes fosse
dificultado o acesso aos recintos dos jesuítas: “por la honestidad y
decencia, es bien que las mujeres no entren en las Casas ni colegios,
sino solamente en las iglesias”17. Na verdade, o prazer maior deveria
estar na busca da vontade divina, através do ideal de despojamento
total de si, quer dizer, da vivência da santidade no apostolado. Seriam
os momentos de maior sofrimento humano que possibilitariam aos
missionários exercerem toda a sua caridade mediante penitências
internas ou externas. As primeiras se referem à dor que o penitente
deveria sentir pelos pecados cometidos, acompanhada do propósito
de não mais cometê-los; já as externas se davam quando houvesse o
emprego de asperidades ao corpo – castigos à carne – ou privações
no comer e no dormir.
Quanto à autoflagelação, esta era entendida como “castigar
la carne, es saber, dándole dolor sensible, el cual se da trayendo
cilicios o sogas o barras de hierro sobre las carnes, flagelándose o
llagándose”18. Havia, contudo, a orientação para que essas asperezas
fossem utilizadas comedidamente a fim de não debilitar as forças
corporais. Essas penitências, segundo Loyola, deveriam servir para
“buscar y hallar la voluntad divina en la disposición de su vida
para la salud del alma”19, que poderia também ser obtida através do
martírio, isto é, da busca pela imitação de Cristo.
Nas correspondências jesuíticas que analisamos há uma relação
direta entre a prática dos Exercícios Espirituais e a preparação para
o martírio dos missionários diante de situações como os ataques dos
bandeirantes às reduções, e que se pode verificar na necrologia do
Padre Diego de Alfaro – inserida na Carta Ânua de 1637-1639 – e
que registra que ele “se retiró a la soledad para recobrar las fuerzas
físicas y espirituales, haciendo los Santos Ejercícios. Allí gozava
las delicias del amor a Jesús y se preparaba a su cercana y gloriosa
muerte”20. Neste mesmo sentido é que o Padre Tomás de Ureña
percebe o martírio de Roque González, numa carta remetida por ele
a Nicolás Durán, em 20 de novembro de 1628: “Oh, que feliz vida y
muerte. No se puede desear cosa más grande que en medio de los
trabajos apostólicos y después de haber sufrido tanto dar la sangre
17 - I. IPARRAGUIRRE. Obras Completas de San Ignacio de Loyola…. Op.cit., p. 431.
18 - Inácio de LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus.... Op.cit., p. 26.
19 - DHA - Documentos para la História Argentina. Tomo XIX. Buenos Aires: Talleres Jacobo Peuser S.A., 1924,
p. 9.
20 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639). Buenos Aires: FECIC,
1984, p. 149.

188
por la Verdad que anunciamos y ofrecer nuestra vida a aquel el cual
dio la suya primero por nosotros”21. A descrição feita pelo Padre
Zurbano na Ânua de 1637-1639 parece confirmar esta percepção:
“Tiene tal celo que no me parece exageración cuando afirmo que
ellos buscan la salud de la almas con tanto fervor como si se tratara
de salvar su propia alma”22.
Os jesuítas, em função de seu ideal salvacionista – para si e para
os outros – ansiavam pelo martírio pessoal, a maior glória que se
poderia almejar, daí o registro de situações como a do Padre Roque
Gonzalez que saía a predicar “como quien no temia la muerte, ya
ofrecida la vida por atraer a Dios Nuestro Señor a esta desamparada
gente”23. A Província Jesuítica do Paraguai será para muitos o local
para encontrá-lo, como se constata na solicitação feita pelo padre
Martín Urtasún que, segundo Diego de Torres Bollo – o primeiro
Provincial – “Quiso entrar en la Compañía por el deseo de hacerse
mártir […] Su antigo deseo de hacerse mártir le hizo pedir la
provincia del Paraguay, convencido de que allí más seguramente
podía conseguir el anhelado martírio”24.

SOBRE O CENÁRIO DOS MARTÍRIOS


E DA CURA D’ALMAS

Em 1593, ano em que a Província Jesuítica do Paraguai é


desmembrada da Província do Peru, chegaram ao Paraguai quatro
padres e dois irmãos coadjutores. A extensão da Província e as
dificuldades encontradas para o sustento dos missionários forçaram
a retirada de todos os padres do Paraguai e Tucumã, permanecendo
apenas um padre em Assunção. O padre Diego de Torres Bollo foi
então enviado à Espanha em 1601, tendo retornado ao Peru em 1607,
na condição de Provincial da nova Província criada pelo Superior
Geral. Para discutir as diretrizes básicas da ação a ser adotada pela
Companhia na nova Província, o Pe.Torres Bollo organizou no ano
seguinte a Primeira Congregação Provincial, na qual foram definidas
as primeiras Instruções aos missionários25.

21 - DHA - Documentos para la Historia Argentina. Tomo XX. Buenos Aires: Talleres Jacobo Peuser S.A., 1924, p. 379.
22 - Ernesto MAEDER, (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639).... Op.cit., p. 30.
23 - DHA - Documentos para la Historia Argentina .... Op. cit., p. 163.
24 - DHA - Documentos para la Historia Argentina.... Op. cit., p. 454-455.
25 - A primeira Instrução datada de 1609 teve como destinatários os padres José Cataldino e Simão Maceta,
missionários enviados ao Guairá. A segunda, de 1610, foi dirigida a todos os missionários jesuítas que atuavam
entre os indígenas do Guairá, do Paraná e entre os Guaicuru.

189
Da 1ª Instrução, destacamos o segundo artigo que refere os
cuidados que os missionários deveriam ter com a sua própria saúde,
ressaltando que os mesmos deveriam acreditar na justiça e bondade
divinas e confiar na proteção dos santos e anjos:

“Cuidarão Vossas Reverências de sua saúde e cada um pela de seu


companheiro; e guardarão a devida prudência nos jejuns, vigílias
e penitências, bem como em abraçar e acometer os perigos, sem
faltar, contudo em que for necessário na confiança que devem ter na
Bondade divina e paternal Providência, e na intercessão da Soberana
Virgem e dos Anjos da Guarda […]”26.

Na 2ª Instrução do Pe. Torres para todos os Missionários do


Guairá, Paraná e dos Guaicurus há recomendações que reforçam a
crença na intercessão divina:

“E que, enquanto mais cuidarmos de nossa perfeição, tanto


mais nos faremos instrumentos aptos de alcançarmos a de nossos
próximos, a sua salvação e a conversão dos índios, sendo que esta
a havemos de negociar (conseguir) principalmente com orações
contínuas, com sacrifícios e penitências”27.

O desamparo, o apego às orações e o enaltecimento do martírio


ficam evidenciados na Carta Ânua de 1613: “o padre Baltazar faleceu
muito jovem depois de apenas seis anos de Companhia e três como
missionário entre os índios. Sucumbiu aos calores excessivos da
terra, que lhe causaram uma febre grave e disenteria. Sofreu sua
enfermidade com edificante paciência. Tão extrema era sua penúria
que não havia nem uma crosta de pão para lhe ser oferecida como
alento [...] tanto que se pode dizer – com razão – que sua morte foi
semelhante a de São Francisco Xavier.”28
A vinculação entre penúria – sobretudo aquela decorrente da
falta de alimentos – e martírio fica evidente numa outra passagem,
da Ânua de 1614, em que o missionário relata que “nos encontramos
ambos muito fracos e para reparo e regalo não havia outras comidas,
que milho cozido ou tostado, batatas, brotos e algumas ervas sem
sal, e entreolhando-nos um ao outro, rezamos e louvamos a Nosso
Senhor que nos dava ocasião para padecer algo por seu amor.”29. Já
26 - Arthur RABUSKE S.J. “A Carta Magna das Reduções Jesuíticas Guaranis”. Estudos Leopoldenses (São Leopol-
do), vol. 14 nº 47, 1978, p. 23.
27 - Arthur RABUSKE, “A Carta Magna das Reduções Jesuíticas Guaranis”.... Op.cit., p. 30.
28 - DHA - Documentos para la Historia Argentina.... Op.cit., p. 464.
29 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 57.

190
na Ânua de 1637-1639, encontramos menção a um padre que para
manter-se afastado do pecado:

“maltrató su cuerpo de una manera increíble, comendo por


muchos años sólo mendrugos de pan ya casi mohoso, yndo rara
vez y sólo por mandato de los Superiores a la mesa común. A esto
añadió crueles austeridades corporales [para guardar la castidad
con la perfección exigida por el Instituto de la Compañía], tanto
que resultó en su espalda derecha una grande llaga gangrenosa, a la
cual curaba a veces con una teja muy caliente, o con fierro candente,
rehusando cualquier otro remedio, estando ya maduro para el cielo
por sus virtudes”30.

Nem sempre o sofrimento – encarado com “edificante paciência”


e fé – resultava em “morte ditosa” ou martírio, como se depreende
deste registro que refere a cura do missionário por intercessão divina:

“Caiu enfermo o Padre Mateo, por causa dos muitos sofrimentos.


Que remedio lhe poderia proporcionar? Que alivio? Lhe fiz uma
comidinha bem leve, preparando-lhe uma sopinha com um pouco
de farinha das hóstias – por certo, um banquete exquisito! Com o
favor de Dios se compôs prontamente”31.

A preocupação com o restabelecimento dos missionários


adoentados fica atestada na Carta Ânua de 1635-1637, na qual o
Padre Diego Boroa informa que em face da “enfermidade do Pe.
Graciano [...] se lhe fizeram muitos e grandes remédios com todo
cuidado [contudo] não foram bastantes para que não viesse a
falecer”32.
Muitas das doenças que acometiam os missionários decorriam
do seu envolvimento com os indígenas adoentados, pois “recorriam
as casas dos enfermos, tanto para levar os consolos espirituais,
como para ver se estavam bem assistidos, procurando que não lhes
faltasse o alimento conveniente ao seu estado e para administrar as
medicinas possíveis e, às vezes, também atuavam como médicos
e enfermeiros, manejando a lanceta por suas próprias mãos”33. A
Carta Ânua – referente ao período de 1635 a 1637 – informa que o
Padre Ho Blas Gutierres “[…] havia aprendido, lido e experimentado
30 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639). ... Op.cit., p. 49.
31 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 382.
32 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 467-469.
33 - Pablo HERNÁNDEZ, S.J.. Organización Social de las Doctrinas Guaraníes de la Compañía de Jesús. Barcelo-
na: Gustavo Gili Editores, 1913, p. 16.

191
medicamentos, para poder acudir os enfermos e necessitados […]
sendo juntamte. médico e enfermeiro […]”34.
A avaliação das condições de saúde dos indígenas orientava o
cotidiano dos missionários, como se depreende destes relatos: “e
mesmo sendo um só, recorre todas as casas do povoado para verificar
se há algum enfermo [e continua] temos feito algumas saídas rio
acima para ver se podíamos ajudar alguns doentes, não sem muito
trabalho, caminhando por montes e arroios […]”35.
Na Ânua de 1626, O Pe. Nicolas Mastrillo Duran reforçaria o
envolvimento dos missionários em atividades, “[…] que consistem,
não somente em cuidar das almas dos indios senão também (e não
com pouco trabalho) de seus corpos e de tudo o que pertence à
indústria, trato e policía humana”36. A dedicação incondicional dos
missionários pode ser constatada nestes registros que selecionamos:

“O Pe. Marcial de Lorenzana – mesmo estando doente – saiu de


casa para acudir a todos os indígenas adoentados, apesar de todos
os incômodos, porque os da terra não queriam tratar com outro37.
Acudia a todos o Pe. Graciano […] sendo necessário algumas
vezes ficar muito próximo do enfermo pa poder ouví-lo […] sem
temer o perigo e nem o contágio da peste […] continuou o padre
com esta prática […] o que fez com que tempos depois se sentisse
mal e com febre […]”38.

Esta dedicação incondicional em “atender aos apestados”


incorria, muitas vezes, na “morte ditosa” dos missionários, que
mesmo enfermos – e suportando dores e febres – acudiam a todos
com “admirável paciencia”, provocando “grande sentimento entre
os da casa com seu exemplo”; “[…] morreu dois anos e oito meses
depois de haver entrado na Companhia […] durante seus últimos
meses de noviciado exerceu o ofício de enfermeiro, […] contraiu
uma enfermidade e exercendo sua atividade morreu […]”39; “Hº Blas
Gutierrez [...] acudindo aos enfermos com caridade, veio a morrer
aos 72 anos de idade e 22 de Companhia, exercendo a atividade de
enfermeiro”40.

34 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 472 – 474.
35 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 266, 289.
36 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp.264 – 265.
37 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 426.
38 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., pp. 476 – 479.
39 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 460.
40 - DHA – Documentos para la Historia Argentina. ... Op.cit., p. 469.

192
A estes registros que dão conta do intenso envolvimento dos
missionários com enfermos – e que, em determinadas situações,
provocava sofrimento e, inclusive, a morte –, se somam alguns em
que os jesuítas ressaltam sua imunidade ao contágio:

“Uma terrível epidemia se abateu sobre a cidade, causando


grandes estragos […] também abateu a todos os sacerdotes, menos
aos da Companhia, para que pudessem assistir aos moribundos.
Não fizeram somente isto, pois repartiram medicamentos para os
enfermos e esmolas aos pobres”41.

Essa percepção, mais do que justificar a prática da medicina pelos


jesuítas na ausência de outros capacitados para fazê-lo – “tratando-
se de misericórdia para com os pobres quando não existisse médico
ou cirurgião”42–, parece apontar para uma outra crença: a da
predestinação da Companhia de Jesus para o exercício do apostolado
entre os indígenas.

O IMAGINÁRIO CRISTÃO A SERVIÇO DA CATEQUESE E


A CORREÇÃO DAS CONDUTAS MORAIS DOS INDÍGENAS

Nas cartas Ânuas que analisamos chamam a atenção os recorrentes


registros de visões e de sonhos vinculados tanto às “mortes sonhadas”
e às “ressurreições aparentes”, quanto às “curas milagrosas” e à boa
morte, das quais resultava, quase sempre, a alteração das condutas
dos indígenas nas reduções. É inegável que os sonhos relatados
evocaram nos missionários a sua formação teológica – orientada, em
grande medida, para experiências meditativas místico-sensoriais – o
que permitiu uma aproximação entre linguagens e sua interpretação/
tradução43.
Se na sociedade guarani, o prestígio e o poder de um profeta
guarani decorriam do valor atribuído a sua capacidade de sonhar
e de verbalizar os sonhos44, nas reduções jesuítico-guaranis, essa
41 - D. H. A., Tomo XX …. Op. cit., p. 523.
42 - Carlos LEONHARDT. “Los Jesuítas y la Medicina en el Rio de la Plata”. Estudios (Buenos Aires), n. 57. 1937,
p. 103.
43 - Contribuem para isso, o treinamento e a formação teológica dos jesuítas, em especial, a prática dos Exercí-
cios Espirituais que induziam o praticante das meditações a experimentar visões e sensações que materializavam
o céu e o inferno.
44 - De acordo com Bartomeu MELIÀ. El Guaraní – Conquistado y Reducido. Asunción: Universidad Católica,
1986, p. 158: “la religión guaraní aparece sacramentalizada en el canto y en la danza, bajo la inspiración chamáni-
ca […]”. Ao xamã cabia a exteriorização dos sonhos e das visões que tinham, em grande medida, função premo-
nitória. Suas técnicas curativas também incluíam viagens imaginárias ou alucinatórias que tinham “la finalidade
de rescatar el alma del paciente o de interceder por ella” (Alfredo VARAH. La construcción guarani de la realidad.
Asunción: Universidad Católica, 1984, p. 103 – 104).

193
capacidade continuou sendo valorizada, como se pode constatar
neste registro que dá conta da pregação que uma mulher faz após
sua aparente ressurreição:

“Ia chamando essa boa mulher a todos os do povoado, a homens


e mulheres, exortando-os ao amor e caridade e dizendo-lhes que
sempre assistissem à missa, fizessem boas obras, dessem toda esmola
possível aos pobres e cumprissem os preceitos de Deus. Falava-
lhes maravilhosamente bem da fealdade do pecado, da formosura
da virtude, do horror do inferno, do temor do Juízo, bem como da
conta exata que Deus pede e da beleza da glória”45.

O Pe. Montoya, autor do registro, refere o ocorrido como


“espetáculo de suma devoção”, pois “uma moça […], presentemente
feita pregadora e apóstola de sua gente […] esteve falando durante
dez horas: o que me provocou não pouca admiração, a saber, o vê-la
de contínuo pregando e anunciando o Reino de Deus”46.
Aspecto recorrente nos registros sobre estas “ressurreições” – e
que assegura a prática tradicional – é a solenidade que revestia o
momento da verbalização e da divulgação do sonho sonhado. O
registro que selecionamos encontra-se na Ânua referente aos anos
de 1641 a 1643, e ressalta a receptividade dos indígenas à “nueva
predicadora”.

“Entre os muitos que morreram nesta redução desta peste


está uma indígena [que] foi atingida de forma fulminante pela
enfermidade, de sorte que morreu em oito horas. Decorrido algum
tempo, a indígena voltou a si. Acudiram os congregantes e também
aqueles que não faziam parte da congregação para ouvir o que dizia
a nova predicadora, que produziu tão grande efeito e comoção entre
seus ouvintes, que a partir de então se enchia todos os dias a igreja,
como se fossem dias de festa e aumentaram as confissões como se
fosse tempo de jubileu”47.

Em outro registro fica atestada a compreensão do missionário de


que os sonhos desempenhavam papel fundamental num processo
de exame de consciência e purificação espiritual pela confissão dos
pecados:

45 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1985, p. 151.
46 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 156.
47 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1641-1644). Resistência: Instituto de
Investigaciones Geohistóricas, 1996, p. 86.

194
“Uma índia de má vida fugia sempre da confissão. Deus teve
misericórdia dela. Viu ela em sonho, como depois contou, a um
menino muito bonito que a conduziu através de uns precipícios até
um poço muito profundo e terrível de onde saíam tristes gemidos e
horríveis gritos. Viu ali a uns monstros negros, que dançavam em
meio à espessa fumaça e ao fogo que se encontrava nestes abismos.
Então disse o menino à indígena: É aqui que te jogarão, caso não
te arrependas de teus pecados tão sujos e caso não venhas a te
confessar. Desapareceu o menino e a índia despertou. Ao amanhecer
se apressou para ir à igreja, contou ao padre o que havia visto e com
grande dor de alma, confessou seus pecados”48.

O inferno “experimentado” em sonho por esta indígena, ao


ser, primeiramente, relatado e, posteriormente, registrado pelo
missionário, nos leva a refletir sobre o medo que ela deve ter sentido
de experimentá-lo concretamente49. Nos relatos dos missionários, a
ameaça do inferno e do assédio por demônios levava, na maioria das
vezes, a resultados surpreendentes em termos de conversão.
Há, ainda, o registro que refere uma moça que, dada como
morta havia três horas, “deu sinais de estar com vida”. Ao relatar sua
experiência ao padre, descreve a visão de “uma tropa de demônios
muito feios” que teriam vindo ao seu encontro “munidos de uma
espécie de garfos” com que queriam prendê-la, “mas um Anjo de
grande formosura” a teria defendido e “com uma espada de fogo
pôs em fuga os demônios”50. A moça continua, dizendo que “Esse
Anjo guiou-me ao inferno, para que visse o fogo espantoso, que os
condenados padecem. [...] Ali cheguei a ouvir, grandes uivos de cães,
bramidos de touros e silvos de serpentes, que davam aos demônios
[...]”51.

48 - Ernesto MAEDER (org.). Cartas Ânuas de la Província del Paraguay (1637-1639). ... Op.cit., p. 96.
49 - Os Exercícios Espirituais recomendam: “É muito conveniente que nós entremos no Inferno e sintamos em
nossos mesmos sentidos o que nele padecem os réprobos”; “Verei com a vista da imaginação como a cratera de
um vulcão, aquela imensa caverna de muitos mil quilômetros de diâmetro, e mergulhadas naquele oceano de
fogo as almas dos condenados como em corpos ígneos num número incalculável de todas as raças e classes da
sociedade, e no mais profundo daquele mar-morto o Dragão infernal cercado da sua Guarda negra, composta
de anjos rebeldes e dos mais abomináveis pecadores da terra”; “Ouvirei com os ouvidos da imaginação prantos,
alaridos, vozes, blasfêmias contra Cristo Nosso Senhor, contra a Virgem e contra os Santos. […] O Inferno é
a região do pranto”; “Quanto melhor é chorar neste mundo os nossos pecados, e sofrer os males da vida com
resignação na vontade de Deus, a fim de evitarmos um choro eterno e sem mérito”; “Sentirei pelo olfato, fumo,
enxofre, exalações de coisas imundas e pútridas”; “Aplicando o meu tato ao fogo do Inferno, procurarei ter a
sensação das chamas que abrasam as almas”; “É um fogo que não mata, mas conserva viva a vítima, porque no
Inferno não há mais redenção. Procurarão a morte, mas a morte fugirá deles”. (Apud Alexandrino, MONTEIRO.
Exercícios de Santo Inácio de Loyola. Petrópolis: Vozes, 1950, pp. 71-78). Diante dos procedimentos envolvidos
neste Exercício Espiritual de Meditação compreende-se a mística que envolvia a atuação dos missionários na
Província do Paraguai, bem como os reflexos da mesma sobre os indígenas.
50 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 154.
51 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 154.

195
Contrastando com as descrições dos demônios e do inferno, as
dos santos, dos anjos e do céu, presentes nos relatos das experiências
oníricas ou visionárias registradas pelos missionários, procuram
sempre transmitir a idéia de tranqüilidade, beleza e harmonia, em
situações que envolviam a absolvição dos pecados, o alcance da cura
ou a garantia da boa morte, como nestas passagens extraídas da
“Conquista Espiritual” do Padre Antônio Ruiz de Montoya:

“Chegando a meia noite, viram eles que a defunta dava sinais


de vida, pois se movia [...]. Logo que deixei esta vida, fui levada ao
inferno, onde vi um fogo horrendo, que arde e não dá luz, e causa
grande temor. Nele vi alguns dos que morreram, mas tinham estado
em nossa companhia e a quem todos conhecíamos. Padecem eles
muitas dores. Logo mais me levaram para o céu, onde vi Nossa Mãe,
sendo ela tão formosa, resplandecente e linda, tão adorada e servida
de todos os bem-aventurados, e achando-se em sua companhia
inumeráveis Santos belíssimos e brilhantes [...]. Lá é tudo formosura,
beleza e riqueza [...]”52.

Com relação à aparição de santos aos indígenas, destacamos esta


passagem em que o missionário não descuida de relacionar a visão/o
sonho com a admissão de culpa, a confissão e o arrependimento:

“Certa mulher desejava sua admissão, mas, fazendo o exame de


sua consciência, para purificá-la com uma confissão geral [...] ela
adormeceu e, em sonhos, pareceu-lhe ver a Virgem e ouvir que a
admoestava quanto a certos pecados. [...], Despertou com isso e
achou que a advertência fora correta. Arrependida, alegre e grata à
Virgem, confessou as suas culpas”53.

Em vários registros se observa a insistência em associar figuras


iluminadas e suaves às visões e sonhos tidos por indígenas já
convertidos e com conduta exemplar:

“Estávamos dedicando, em Loreto, um novo templo à Virgem


Soberana, em dia que vinha a ser uma de suas festas. Na noite
anterior, à claridade do luar, estavam mais de 60 pessoas celebrando
com alegria a festa quando todos viram que da velha igreja, situada
em frente da nova, saíam três figuras vestidas duma roupagem

52 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 151.


53 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 178.

196
celeste, branca como a neve e reluzente como prata polida. Seus
rostos pareciam três sóis, apresentando as cabeleiras como de fibras
de ouro, caídas sobre os ombros. [...]. A gente ficou absorta, mirando
e contemplando sua formosura e linda disposição de corpos [...],
Alguns meninos, ali presentes, tiveram o seu amor tão ardente
que, vazios de todo o medo e cheios de simplicidade, com caminho
fraternal achegavam-se a elas [...]”54.

Os relatos sobre o céu, com a presença de anjos e de Deus, e a


informação dada pelos ressuscitados de que os indígenas convertidos
já falecidos nele se encontravam, gozando de grande glória vinham
ao encontro dos comportamentos que os missionários pretendiam
introduzir e/ou manter entre os indígenas nas reduções55.

“Dali […] levou-me o Anjo à visão da glória dos bem-aventurados. Vi


o próprio Deus num assento e trono formosíssimo, rodeado de infinitos
bem-aventurados. [...]. Era um ser que resplandecia infinitamente mais
do que o fogo, mas não queima [...]. Pude conhecer ali muitíssima gente
destas reduções e, entre ela, os três padres que morreram no Guairá,
tendo grande glória. [...]. Padre, não te canses a ensinar o caminho do
céu [...]. Oh, se não cometessem pecado! Oh, se amassem a Deus de
todo o coração! Oh, se cumprissem a todos os seus mandamentos!
Como haveriam de estar contentes na hora da morte!”56.

A adoção pelos indígenas das recomendações feitas pelos


ressuscitados fica comprovada nas ações que se seguiam e que foram
registradas pelos não menos impressionados missionários: “de
noite, viam-se pelas ruas disciplinantes, e mesmo à porta da igreja
açoitavam-se ou flagelavam-se não poucos. Foi, em suma, um grande
estímulo para todos, principalmente para os congregados [...]”57.
Mais do que comprovar a construção de um discurso que atribui a
conversão dos guaranis à dedicação e à habilidade dos missionários,

54 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual. ... Op.cit., p. 75.


55 - Ainda em relação a estas visões que condenam comportamentos e enfatizam outros, deve-se ressaltar a sig-
nificativa influência das concepções dos missionários jesuítas em relação à morte e ao pecado: “Antes da morte
pode-se sair do pecado, superar os maus hábitos, reparar as desordens, pagar dívidas […] chegado o momento
da morte, acabou tudo […] Os desregramentos causados pelos pecados provêm de não considerarmos pratica-
mente a nossa vida como uma preparação para a eternidade […] A morte nos ensina expressamente […] que só
tem valor a virtude […] A vida que levamos indicará o lugar que havemos de ocupar. Vida conforme os manda-
mentos, direita! Vida contrária aos mandamentos, esquerda!”. (Apud Alexandrino, MONTEIRO. Exercícios de
Santo Inácio de Loyola…. Op. cit., pp. 101–105)
56 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 154.
57 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 156. Para os jesuítas, o espírito se encon-
trava preso dentro do corpo, daí a necessidade de controlar e restringir a ação física, os sentidos, os desejos e as
vontades, a fim de que a alma se desenvolvesse da forma considerada a mais adequada.

197
acreditamos que estes relatos atestam a conformação de uma
peculiar sensibilidade religiosa nas reduções jesuítico-guaranis, na
medida em que determinadas práticas e funções sociais tradicionais
guaranis foram ressignificadas, como se pode constatar nos sonhos
e na importância dada àquele que sabia divulgá-los e interpretá-los.

SOBRE MARTÍRIOS, FUNERAIS, APÓSTOLOS E SANTOS:


A MEMÓRIA A SERVIÇO DA ORDEM

É importante destacar que para os membros da Companhia


de Jesus, a memória “se configurava enquanto uma das exigências
institucionais para ‘ajuda das almas’. As Constituições da Companhia
de Jesus exigiam do candidato à Companhia que além das faculdades
da inteligência e da vontade fosse incluída a memória como ‘a
capacidade de aprender e fidelidade para reter o que se aprende’. [...]
Ademais, ao referir o uso da memória por um padre jesuíta no século
XVI, deve-se considerar que o cristianismo, assim como o judaísmo,
fundamenta-se na memória e na recordação [...]”58. Além disso,
como bem lembrado por Fernando Torres Londoño, “A Companhia
de Jesus nasceu e se estendeu, no século XVI, a quatro continentes
sob o domínio da escrita. No momento em que a primeira dúzia de
‘companheiros’ se colocou a serviço do papa, compreendeu-se que a
dispersão poderia ameaçar sua união e para se manterem unidos em
Jesus Cristo nasceu o Instituto”59.
Para a finalidade desta conferência, destaco uma produção do
padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya60 – supostamente de 1617
– intitulada Relación (manuscrita) sobre el Apóstolo Santo Tomás,
que viria a ser transcrita, em 1755, pelo Padre Lozano, em sua obra
Historia de la Compañía de Jesus en la Província del Paraguay. Nela
encontramos a seguinte informação: “Conservam os bárbaros tão
fresca a memória de São Tomé e de seus prodígios, como se eles
mesmos o tivessem visto e conhecido. Os índios traziam defuntos
para que os missionários os restituíssem a vida, porque assim diziam havia
feito Pay Zumé para provar que era a Palavra de Deus que ele predicava”61.
58 - Socorro de Fátima Pacífico VILAR. A Invenção de uma escrita: Anchieta, os Jesuítas e suas Histó-
rias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006, p. 176.
59 - Fernando Torres LONDOÑO.” Escrevendo Cartas. Jesuítas, Escrita e Missão no Século XVI”. Revis-
ta Brasileira de História (São Paulo), v. 22 nº 43, 2002, p. 13.
60 - Montoya nasceu a 13 de junho de 1585, na cidade de Lima, Peru. Orfão de pai e mãe, ele chegou a freqüentar
a Real Escuela de San Martin. Adolescente, abandonaria os estudos, dedicando-se à vida cortesã. Estimulado pelo
Padre Gonzalo Suarez entraria no noviciado em 1606, após onze meses de estudos preparatórios. É ordenado padre
pelo Bispo Trejo y Sanabria, em Santiago Del Estero, em 02 de março de 1611. Em setembro do mesmo ano, chega-
ria a Assunção, onde esperou seis meses para seguir até o Guairá, onde daria início à atividade apostólica.
61 - Pedro LOZANO. História de la Compañía de Jesús de la Província del Paraguay. Madrid: Imprenta de la
Viuda de Manuel Fernandez, 1755, p. 719.

198
Dez anos depois, Montoya voltaria a fazer referência a São Tomé
em uma carta que integraria a Décima Segunda Carta Ânua que
seria assinada pelo Provincial da Província Jesuítica do Paraguai,
Padre Nicolás Mastrilli Durán:

[...] a princípio dei pouco crédito a uma profecia que me contavam


os índios: a de que o Santo havia profetizado a nossa vinda a estas
partes. Como isto foi ouvido em distintas nações e tão distantes
umas das outras, de maneira alguma pode haver suspeita de haverem
se comunicado os índios entre si a ponto de concordar em tantos
aspectos e não haver discrepâncias. Me parece oportuno aqui referir-
la porque a ouvi de novo entre os índios desta nação. Tem eles por
tradição – que se tem passado de pais para filhos – que em tempos
futuros chegariam a suas terras uns padres que lhes ensinariam a
Palavra de Deus, os juntariam e grandes povoados, lhes fariam
viver em ordem e observando os princípios cristãos, ensinando-lhes
a amar uns aos outros e orientando-os a não terem mais de uma
mulher. Recordam eles aquilo que ouviram de seus avós sobre as
promessas feitas por Santo Sumé ou Tomé”62.

Esta menção – feita por Montoya – à necessidade de


constantemente renovarem a memória da tradição mítica parece ter
sido seguida à risca pelos missionários jesuítas, empenhados numa
conversão que se fez com pegadas, promessas e curas. À página
101 de sua obra Conquista Espiritual, o padre Montoya63 faria uma
curiosa recomendação, antevendo, de certa forma, a importância que
os historiadores dariam ao mito de São Tomé: “Com isso concluí o
assunto relativo à cruz, aos rastros e vestígios que existem no ocidente
quanto ao glorioso Apóstolo. Voltar-me-ei agora às minhas reduções
e faço-o desejoso de que alguém (um dia) tome este rascunho, para
tratar desta história com (mais) fundamento.”
Mais do que ver atendido o desejo de que – com mais
fundamento – os seus rascunhos sobre São Tomé fossem
retomados, Antônio Ruiz de Montoya foi – ele próprio – alvo de
uma memória, após seu falecimento em 1652. Na Carta Ânua da
Província Jesuítica do Paraguai, referente aos anos de 1659-1662,
encontramos os seguinte relato do Provincial Andrés de Rada:

62 - MCA - Manuscritos da Coleção de Angelis. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951, tomo I, p. 274.
63 - Antônio Ruiz de MONTOYA. Conquista Espiritual.... Op. cit., p. 101.

199
“[…] pois se cobriram as tampas do ataúde do apostólico Padre
Antonio Ruiz de Montoya de um copioso suor que parecia indicar os
grandes sofrimentos e humilhações pelas quais tiveram que passar
os nossos padres junto à missão entre os calchaquís, ocasião em que
foram vergonhosamente e injustamente expulsos de sua morada. Os
primeiros da Província do Guairá convertidos pelo padre Antônio
Ruiz de Montoya foram precisamente os habitantes do povoado de
Loreto. Por isto, eles guardam os restos daquele padre em sua Igreja,
como um tesouro de inestimável preço. A memória daquele Padre
encontra tanta veneração entre eles, que a ele fazem pedidos e
promessas com bons resultados. Assim que havendo esta crença bem
fundada, três enfermos do povoado, já desenganados, recobraram a
saúde por intercessão do padre Antônio”64(grifo nosso).
De acordo com Carlos Teschauer, a vida de Montoya foi repleta
de “atos de heróica virtude” marcados pelo uso de cilícios, jejum,
penitências e disciplinas para conservar a pureza da alma e do corpo
e vencer a lascívia, tendo tido como divisa de seu apostolado: “Ou
padecer ou morrer”. Falecido em Lima, em abril de 1652, teve seu
pedido atendido - de que queria repousar entre os índios que tanto
havia amado e defendido. Trasladado ao Paraguai em imponente
cortejo, o trajeto constitui-se em verdadeira apoteose. Sua fama de
santidade era tão grande que “fue necesario defenderlo y enterrarlo
a prisa porque no lo acabaran de desnudar y cortarle los dedos y
baellos para relíquias”65. Segundo Carlos Teschauer, ao ser aberta
a sepultura, após meses de seu falecimento, constatou-se que o
corpo estava consumido, restando intactos e brancos os dois pés,
como se tivessem acabado de ser enterrados. Após esta revelação
surpreendente, difundiu-se a fama de milagreiro.
Estes relatos nos revelam que em torno de Montoya, assim como já
ocorrido com São Tomé, funda-se uma memória que se assenta sobre
promessas de cura e de restituição à vida daqueles que a ele foram
enviados. Ao ser acionada por missionários e indígenas, a memória
de Montoya parece evocar uma retomada metafórica do mito de São
Tomé e da busca pelo martírio e explicar o muito papel e a muita tinta já
utilizados para justificar a atuação da Companhia de Jesus na América66.
64 - Carlos LEONHARDT. Cartas ânuas de la Compañía de Jesús .... Op. cit., p. 28.
65 - Efraim CARDOZO. Historiografia Paraguaya. México: Instituto Panamericano de Geografia e Historia,
1959, p. 231.
66 - Eduardo Viveiros de CASTRO (A inconstância da alma selvagem e outros ensaios antropológicos. São Pau-
lo: Cosac&Naify, 2002) afirma que os empréstimos cristãos revelam a propensão da sociedade indígena de “se ver
como Outro”, isto é, de assimilar os signos de alteridade. Já Serge GRUZINSKI (A Colonização do Imaginário.
Sociedades Indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003, p. 305) defende que a apropriação dos símbolos cristãos representava uma incorporação sem que a
estrutura simbólica indígenas fosse desfeita.

200
15- PELO MANTO DA MISERICÓRDIA:
AS OBRAS DAS SANTAS CASAS
NO BRASIL COLONIAL.
Véra Lucia Maciel Barroso*

Reportar-se à Idade Média é possibilidade de recortar cenários que


remetem a signos identitários de um tempo de longa duração, aqui
demarcados pela evocação da pobreza, da religiosidade e da caridade.
Estas três marcas atravessam espaços europeus, chegando a Portugal,
onde traços da modernidade prematuramente se instalaram.
No espaço português, sobretudo entre os séculos XIV e XV,
manifestou-se uma grande depressão, como também em outras
partes da Europa, que, desde o século XI, já vinha atravessando sérios
reveses. Os sintomas de penúria eram visíveis pela desorganização
social e econômica, que − alastrada pelas pestes e epidemias, além
das perdas agrárias, impostas pelo despovoamento rural, causado
pela expansão ultramarina − gerou a proliferação de marginais
nas cidades lusitanas. Com populações abandonando o campo e a
ocorrência de surtos de fome, seguiram-se conflitos, com intensa
movimentação popular, emergindo os “vadios” e “vagabundos”
que passaram a viver na mendicidade1. Entretanto, a ameaça maior
se fazia sentir no restante da Europa, onde o feudalismo se esvaía
em crise, forçando os indivíduos a uma vida mais errante e sem
rumo. Já em Portugal, onde para alguns historiadores a estrutura
social não era, de fato, feudal2, a precocidade da formação do
estado monárquico orientou um poder central mais forte3, que

*
Faculdade Porto-Alegrense: FAPA; Centro Histórico-Cultural Santa Casa de Porto Alegre.
1 - O Império Colonial foi o “ergástulo dos deliquentes”, segundo o historiador português Costa Lobo, (cf. Laura
de Mello e SOUZA. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.
57.): “[...] as conquistas marítimas tiveram um papel muito importante na absorção dos mendigos e vagabundos
da metrópole, muitas vezes recrutados à força para fazerem serviço militar nas possessões de além mar”.
2 - Não há unanimidade na historiografia, quanto ao modo de produção em Portugal durante a Idade Média.
Embora o feudalismo português tivesse começado a organizar-se, não chegou a completar-se, como refere Edu-
ardo França, quando fala em “feudalismo frustro”. Ver Eduardo de Oliveira FRANÇA. Apud, Ricardo MARA-
NHÃO e outros. Brasil História: Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1982, vol. 1, p. 44.
3 - Posição compartilhada por Moreno: “Quebrados os vínculos sociais numa Europa em que o feudalismo
se apresenta agonizante, tornam-se os homens mais livres de praticarem um modo de existência errante. Já em
Portugal, a situação apresenta-se mais esbatida, no período em questão, em virtude de o poder central ser mais
forte e a vontade do rei se fazer sentir com um peso muito mais significativo. Ver Humberto BAQUERO MO-
RENO. Marginalidade e conflitos sociais nos séculos XIV e XV: estudos de História. Lisboa: Presença, 1985,
pp. 26-27. O mesmo autor, em outra obra, chama a atenção: “Em Portugal, os reis usufruíam de uma autoridade
incontestada que se pautava por uma extrema firmeza.” Ver Humberto BAQUERO MORENO. “O princípio da
época moderna”. In: José TENGARRINHA (Org.). História de Portugal. 2. ed., rev. ampl.. Bauru: EDUSC; São
Paulo: UNESP; Lisboa: Instituto Camões, 2001, p. 77.

201
buscou frear os desvalidos, com o socorro dirigido pela realeza,
sobretudo através da criação da Santa Casa de Misericórdia4.
A historiografia brasileira sobre a época colonial, e mesmo a
historiografia portuguesa no trato da sua história social, ainda não
dimensionaram, com largueza e alcance devidos, a importância
daquela instituição pia, criada em 1498, no ano da descoberta do
caminho marítimo para as Índias5. Ambos os acontecimentos teceram
uma fase nova para Portugal, inaugurando teias do tempo Moderno,
para o país que iniciava a formação de seu império intercontinental.
Papel proeminente nesse processo histórico, indiscutivelmente foi
desempenhado pelas Misericórdias. Elas sinalizam a presença e a
marca portuguesa onde se inscreveram, indicadas pela geografia
das Santas Casas, espalhadas em cidades do Extremo Oriente ao
Ocidente, com destaque na América6.
Tratar de Santa Casa é, sem dúvida, dar foco a uma persistência
medieval lusa, em terras brasileiras, de todos os quadrantes de
seu espaço continental, evidente no tempo presente. A estrutura
assistencial desenvolvida na Baixa Idade Média é uma das
permanências legadas à modernidade, sobretudo o modelo de
assistência praticado em Portugal. Ele associou a caridade de
caráter religioso ao poder monárquico, sinal e evidência da nova
configuração sociopolítica que se desenhou a contar do século XVI.

CRISE SOCIAL E FILANTROPIA EM PORTUGAL:


A CRIAÇÃO DA MISERICÓRDIA

Haveis de saber que nesta terra e em todos os mais lugares de


cristãos há uma companhia de homens muito honrados, que têm cargo
de amparar toda a gente necessitada, assim aos naturais cristãos como
aos que novamente se convertem.
Esta companhia de homens portugueses se chama Misericórdia; é
coisa de admiração ver o serviço que estes bons homens fazem a Deus
Nosso Senhor em favorecer a todos os necessitados”. (Carta de São
Francisco Xavier a Santo Ignácio de Loyola, Goa, 28 de setembro de
1542). (Grifo nosso).

4 - Na Idade Média, a assistência era articulada por três atores: a Igreja, as Irmandades laicas e as autoridades
municipais. Destaque deve ser dado à atuação das muitas confrarias e irmandades leigas no período.
5 - Todavia, chama atenção o crescente interesse de estudo sobre o papel das Santas Casas, no Brasil e em Portu-
gal. Por consequência, a historiografia vem sendo enriquecida, com o destaque dado ao papel das Misericórdias
na formação cultural brasileira, bem como na consolidação do vasto império colonial português.
6 - A bordo das naus da empresa marítima portuguesa, seguiram “homens bons” que fundaram Misericórdias,
desde o Brasil até África, Índia, China, Filipinas e Japão. A Santa Casa espalhou-se e tornou-se uma marca da
colonização portuguesa.

202
Até a Baixa Idade Média, cabiam à Igreja os encargos sociais.
Afinal, ela era a única instituição de estrutura sólida, concebida
como centro prioritário de refúgio dos acometidos pelos males
materiais e espirituais. Ela hegemonizou esse cenário, até que a crise
lhe impôs a perda do monopólio e da centralização das formas de
pensamento e interpretação da realidade. Assim, outro tempo se
mostrou, com o crescimento da iniciativa laica da caridade, que
passou a ser promovida por novos agentes sociais, como a realeza e
alguns setores da emergente burguesia.
Diante das vicissitudes que Portugal atravessava na Baixa Idade
Média europeia, sobretudo os monarcas e segmentos da sociedade
portuguesa acabaram por cultivar uma consciência de solidariedade
e de assistência social, que resultou na criação de instituições
empenhadas na prática da piedade e da filantropia.
Inicialmente foram instaladas as albergarias ou hospedarias, e até
mesmo esmolarias reais, à beira das estradas na rota dos peregrinos.
Sustentadas pela Coroa, ou por mosteiros ou ordens religiosas,
muitas delas tinham espécies de hospitais anexos, os quais poderiam
ser considerados sementes das futuras Santas Casas de Misericórdia.
A palavra misericórdia, de origem latina – miserere e cordis
– significa doar seu coração a outrem. Em realidade, “dar amor
aos carentes” passou a indicar o seu sentido, firmado na ideia de
compaixão e piedade, que traduzem a caridade. Eis as finalidades
da Misericórdia: piedade e caridade. E, na Idade Média, a principal
fonte de caridade era a Igreja, que a praticava como um dever moral.
Ao largo ou junto às casas monásticas foram feitas à semelhança
de hospitais, enfermarias para os próprios doentes, como também
pousadas para os viajantes. Assim, a capela e seu entorno foram, no
conceito medieval, o lócus da prática da caridade, ligada com a fé e a
esperança, duas virtudes cristãs.
As obras de Misericórdia, citadas no Evangelho de São Mateus
(cap. 25, versículos 35 a 40) como dever espiritual dos cristãos,
foram disseminadas pelas ordens religiosas, na conjuntura da crise
europeia. Às populações divulgaram-se as sete obras espirituais e as
sete obras corporais, que atravessaram os oceanos com a expansão
marítima, durante os séculos XV e XVI, espalhando-se a pregação
pia pelos continentes. São elas:

* Sete obras espirituais: 1) ensinar os ignorantes; 2) dar bom


conselho; 3) punir os transgressores com compreensão; 4) consolar os
infelizes; 5) perdoar as injúrias recebidas; 6) suportar as deficiências
do próximo; 7) orar a Deus pelos vivos e pelos mortos.
203
* Sete obras corporais: 1) resgatar cativos e visitar prisioneiros; 2)
tratar dos doentes; 3) vestir os nus; 4) alimentar os famintos; 5) dar
de beber aos sedentos; 6) abrigar os viajantes e os pobres; 7) sepultar
os mortos7.

À luz do cristianismo, tais obras assumidas por fiéis “em


compromisso” iriam socorrer os irmãos em estado de atribulações e
misérias, para melhorar a ordem temporal.
A esse respeito, Caio Boschi, historiador de Minas Gerais,
estudioso no assunto, destaca:

“A Baixa Idade Média presenciou o desabrochar (das) sociedades


fraternais. [...] Gênero de agremiação voltada para o exercício
da caridade para com o próximo, as Misericórdias cuidavam dos
doentes desassistidos, de defuntos carentes de recursos, de presos
e de condenados. As inseguranças e incertezas do homem medieval
levaram-no a unir-se em associações voluntárias.
Enquanto as corporações de ofício atendiam aos interesses
profissionais de seus integrantes, as irmandades, e de modo especial
as Misericórdias, encarregavam-se dos encargos assistenciais e
espirituais”8.

Em Portugal, esses encargos se solidificaram com a prática


da solidariedade e do amor cristãos ao próximo, especialmente
no atendimento aos carentes, sinalizando a criação da primeira
Irmandade da Confraria de Nossa Senhora da Misericórdia, em
Lisboa. Sua patronesse foi a Rainha Leonor de Lencastre, viúva de D.
João II e irmã de D. Manoel, “o rei Venturoso”, que deu total apoio
à ideia por ela proposta. Contou com a assessoria de seu confessor,
Frei Miguel de Contreiras e de alguns irmãos leigos. No dia 15 de
agosto de 1498, a cerimônia ocorreu na Catedral da Sé da capital
portuguesa, em capela anexa, então conhecida como de Nossa
Senhora da Terra Solta (por ser a capela de pavimento térreo) ou
Nossa Senhora da Piedade9.

7 - A. J. R. RUSSEL-WOOD. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia (1550-1755). Brasília:


Ed. da UnB, 1981, p. 15. No Compromisso de Lisboa, de 1516, constam, em sumário, as listas das obras de cari-
dade a serem praticadas por todos os irmãos.
8 - Caio César BOSCHI. O clero e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São
Paulo: Ática, 1986, p. 13.
9 - Alguns autores defendem a tese de que o Hospital de Santa Maria Nova, de Florença/Itália, teria sido o mo-
delo para a Santa Casa de Lisboa e de que seu estatuto ajudara, em parte, na definição da Misericórdia da capital
portuguesa.

204
Efetivamente, Lisboa se via assolada por muitos enfermos,
famintos, esfarrapados, órfãos e viúvas que vagavam pela rua. A
mendicidade era degradante em todo o país. Mas a capital estava
em situação pior. Esse é o cenário que moveu a “Princesa Perfeita” à
criação da Santa Casa.
Ao projeto da rainha, além do irmão rei, aderiram o alto clero, a
nobreza e a burguesia, ganhando grande e notável prestígio os que
integravam as Irmandades das Misericórdias.
Com o beneplácito do Estado e de seus privilégios, a sede da
Misericórdia de Lisboa, mandada edificar por D. Manoel, ganhou
grandeza e relevância real; sua conclusão deu-se em 1534.
Tratava-se efetivamente de ação do Estado frente à necessidade de
regulamentar a estrutura caritativa vigente, que se mostrava incapaz,
diante das dificuldades da sociedade lusa. Nessa direção, através das
Ordenações Afonsinas, e depois com as Manuelinas, se encaminhou
o fortalecimento das irmandades leigas sobre as eclesiásticas.
A Misericórdia tomou como seu símbolo identitário a imagem
da Virgem Maria com seu manto maternal aberto, representando a
proteção aos poderes terrenos (reis, rainhas, príncipes, etc.) e aos
poderes espirituais (papas, cardeais, bispos, clérigos ou membros de
ordens religiosas). Por extensão, a proteção estendia-se a todos os
necessitados: crianças abandonadas, pobres, doentes, presos, velhos,
loucos e outros. Esta representação passou a ser a marca encontrada
nos compromissos, azulejos, telas, bandeiras, estandartes e brasões
que cada Misericórdia mostrava.
Pela Idade Média, a iconografia do véu, ligada à exortação e
prática da proteção misericordiosa vai confundir-se com uma que
lhe é sinônima, a do manto, que se invocara fora do cristianismo
e, mais particularmente do culto mariano. [...] A apropriação desta
invocação do pano protetor percorre toda vivência medieva, entre
cistercienses, dominicanos, franciscanos, carmelitas, cartuxos,
trinitários, Ordens Terceiras e confrarias laicas, [...]10.
Os fundos de sustentação das Santas Casas eram obtidos a partir
da caridade privada e de legados pios, o que veio a transformar

10 - Santa Casa de Misericórdia de Aveiro. Disponível em: http://www.scmaveiro.pt/PageGen.aspx?WMCM_Pa-


ginaId=102 (acesso em 03/06/2010). No começo do século XV, devido à peste, multidões aterrorizadas, sentindo
a necessidade da proteção sobrenatural, lembraram-se de recorrer à proteção da virgem Maria. A partir daí
surgiram os primeiros quadros de Nossa Senhora a acolher as flechas pestilentas, com o seu manto, pessoas de
todas as classes sociais, desde o papa e o imperador aos mais humildes, pois do contágio não escapava ninguém.
Essa representação mostra que a virgem Maria protegia as pessoas das várias esferas sociais, sem exceção, consi-
derando a todos como irmãos, dentro do espírito de fraternidade que presidia a criação das irmandades. Assim,
impulsionados pela fé, a imagem da Virgem Maria do Manto Protetor, ou Virgem da Misericórdia, se difundiu
por toda a Europa, vindo a ser o signo da Misericórdia de Lisboa.

205
muitas delas em fonte de crédito, especialmente no mundo colonial,
carente de recursos da metrópole.
A Irmandade de Lisboa, inicialmente constituída por cem irmãos,
passou a atuar junto aos pobres, presos e doentes. Além de socorrer
os que necessitavam de amparo, dava-lhes roupas, alimentos e
medicamentos. Foi então feita a centralização dos hospitais e a criação
de outros. Em 1485, D. Leonor já fundara o Hospital de Caldas. E seu
marido, o Príncipe Perfeito, através de bula papal, teve a permissão
para agregar os 43 hospitais de Lisboa e arredores, mandando
edificar o Hospital Real de Todos os Santos. Sua construção foi
iniciada em 1492 e concluída em 1502. Tinha por fim concentrar
todos os hospitais e hospícios da capital. Constituiu-se como um
estabelecimento hospitalar modelo e o mais antigo hospital termal
de que se tinha notícia então − sem dúvida, uma expressão efetiva
da profunda reforma da assistência pública em Portugal, a que a
população denominou de “Santas Casas”. Elas vinham responder a
necessidades da conjuntura que impunham agir frente à exclusão
social no país, que se mostrava evidente e ameaçadora, como destaca
Magalhães Basto:

“Viam-se continuamente, arrastando-se pelos adros das igrejas ou


sob os arcos do Rossio, dezenas de enfermos no mais triste abandono,
e muita gente morria sem qualquer consolação corporal ou espiritual.
Numerosíssimos mendigos, pavorosos de andrajos, aleijões e chagas,
percorriam as ruas, rezando ladainhas: à hora da distribuição das
esmolas do caldo e do pão, encontravam-se reunidos à portaria dos
conventos verdadeiras assembleias gerais de miséria. Os mortos que
o mar ou o Tejo lançavam às praias ficavam empestando o ar, por
não ter quem tivesse obrigação de lhes dar sepultura; e os cadáveres
dos suplicados na forca de Santa Bárbara, não eram dali removidos
– o tempo, os abutres e os cães encarregavam-se de os destruir”11.

Laima Mesgravis, em seu clássico estudo sobre a Misericórdia do


Rio de Janeiro, chama a atenção para o objetivo da criação da Santa
Casa. Diz ela:

“Criada com o objetivo de prover assistência aos necessitados,


a ‘Misericórdia’, instituição tipicamente portuguesa de assistência e
caridade, atendia aos pobres e doentes, os presos, os alienados, os

11 - A. de Magalhães BASTO. História da Santa Casa de Misericórdia do Porto. Porto: Santa Casa da Misericórdia
do Porto, 1934, p. 4.

206
órfãos desamparados, os inválidos, as viúvas pobres e os mortos sem
caixão, predominando a prática de recolher contribuições dos mais
afortunados para dar assistência aos pobres e desvalidos, exceto os
escravos. A esses, cabia o cuidado dos seus donos”12.

Paralelamente, como as suas seguidoras, a Irmandade de Lisboa


também promovia ações de caráter religioso: junto a grupos de
oração, nas celebrações de missas e procissões, nas cerimônias dos
enterros, no acompanhamento de condenados à morte ou nos atos
de penitência.
O Compromisso (estatuto ou regulamento) originário da
Misericórdia de Lisboa, aprovado pelo rei D. Manuel e confirmado
pelo Papa Alexandre VI, foi reproduzido, e serviu de matriz para a
rápida criação de Misericórdias por todo o território do reino e do
além-mar.
Resultado dos interesses da política econômica e social da Coroa
portuguesa, e das necessidades das populações em dificuldades,
ainda no mesmo ano, multiplicaram-se filiais da Misericórdia
lisboeta pelo território lusitano − tanto continental quanto insular.
Quando D. Leonor faleceu, em 1524, as cidades e muitas das vilas de
Portugal possuíam, pelo menos, uma Santa Casa de Misericórdia,
somando-se 6113, todas elas regulamentadas pelo Compromisso de
Lisboa.
Nessa altura, o Império Português se estendera, pelos mares,
ao oriente e ao ocidente. A tendência centralizadora da Coroa
articulou o interesse comercial com a expansão das Misericórdias,
que constituíram como que um esteio do processo colonizador,
quer nas Índias, na Ásia ou na América. De fato, as Santas Casas
transformaram-se em um dos maiores símbolos de poder do
período colonial. É interessante observar que, em alguns lugares,
elas chegaram antes da instalação da estrutura administrativa.
No Brasil, com o processo colonizador inaugurou-se, sem demora,
a sua primeira Misericórdia, que, somada a outras, sucessivamente
foram configurando um cenário de assistência, aos povoadores que
chegavam à Terra de Santa Cruz.
Na historiografia alusiva às Misericórdias do Brasil, a palavra de
consenso é a de que o fidalgo Brás Cubas (neto de Nuno Rodrigues,
fundador e mantenedor da Santa Casa do Porto/Portugal), criou a

12 - Laima MESGRAVIS. A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599-1884): contribuição ao estudo da
assistência social no Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1974, p. 13.
13 - Yara Aun KHOURY (Coord.). Guia dos Arquivos das Santas Casas de Misericórdia do Brasil (fundadas entre
1500 e 1900). São Paulo: Imprensa Oficial; PUCSP/CEDIC/FAPESP, 2004, vol. 1, p. 10.

207
primeira delas, em Santos/São Paulo, no ano de 1543, cujo hospital
foi chamado de Todos os Santos, inspirado no de Lisboa. Há autores
que indicam ser a de Olinda/Pernambuco, anterior, com fundação
em 153914. Em sequência foram instaladas as Misericórdias em
Salvador/BA (1549); Vitória/ES (1545, para alguns autores; para
outros, 1551-1606); São Paulo/SP (1560 ou 1599-1603); Ilhéus/BA
(1564 – desaparecida); Rio de Janeiro/RJ (1567 ou 1582, por José
de Anchieta); João Pessoa/PB (1585 ou 1602-1618); Itamaracá/PE
(1611); Belém/PA (1619 ou 1650-1687); São Luiz/MA (1622 ou
1657); Ouro Preto/MG (1730); Santo Amaro/SP (1778); São João
Del Rei/MG (1783); Florianópolis/SC (1789) e Campos/RJ (1792). A
de Porto Alegre/RS foi criada, já no século XIX, em 19 de outubro de
1803,15 dois anos após a incorporação definitiva do Rio Grande do
Sul, ao Brasil, através do Tratado de Badajós, assinado por Portugal
e Espanha, depois de mais de século de confrontos militares de
fronteira, no mediterrâneo do Prata.
E a orientação traçada no Compromisso de Lisboa é a que vai
ser dada a todas as Misericórdias que foram fundadas no Império
Português. Depois, pouco a pouco, cada uma foi tomando rumo
próprio, a partir das condições locais.
A análise da atuação destas Santas Casas permite verificar o
proeminente papel que elas exerceram na formação da sociedade
brasileira, constituindo-se em peça fulcral de sua trajetória. Impõe-
se agora verificar traços balizadores de seu significado e importância,
desde o século XVI.

AS MISERICÓRDIAS:
O “CIMENTO SOCIAL” NA COLÔNIA

Temos em Portugal uma instituição que nos honra que tem sido
louvada, invejada por todos os povos, que é a melhor instituição que
eu conheço, que nasceu com a monarquia ou antes veio à luz na sua
virilidade e robustez, que a acompanhou por todas as partes do mundo,
que a seguiu aos mais remotos confins do globo, onde ela foi levar a cruz
e a civilização, o evangelho e o comércio, a liberdade e as suas colônias.
Em nenhum país da terra há instituição filantrópica superior, nem igual!
Nenhuma nação teve ainda reis ou leis que fizessem de iguais instituições
14 - Yara Aun KHOURY (Coord.). Guia dos Arquivos das Santas Casas de Misericórdia do Brasil (fundadas entre
1500 e 1900). São Paulo: Imprensa Oficial; PUCSP/CEDIC/FAPESP, 2004, vol. 1, p. 10.
15 - Sobre sua trajetória, ver Sérgio da Costa FRANCO; Ivo STIGGER. Santa Casa 200 anos: caridade e ciência:
crônica histórica da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da ISCMPA, 2003. Para a San-
ta Casa de Porto Alegre há três datas significativas de sua formação: 1803 (criação da Santa Casa); 1814 (criação
da Irmandade) e 1826 (inauguração do 1º hospital).

208
uma condição social tão genérica, tão uniforme, e por consequência tão
“fácil de vigiar e fiscalizar” (Almeida Garret, em discurso proferido na
Câmara dos Pares em 10 de fevereiro de 1854). (grifo nosso).

Insiste-se que o modelo assistencial português inserido no


cotidiano de suas colônias tem na Santa Casa de Misericórdia o seu
expoente máximo. Ela foi, até o século XIX, instituição fundamental
na manutenção do Império colonial português. É o que afirma Boxer:

“Entre as instituições que foram características do império


marítimo português e que ajudaram a manter unidas as suas
diferentes colônias contavam-se o Senado da Câmara e as irmandades
de caridade e confrarias laicas, a mais importante das quais era a
Santa Casa de Misericórdia. A Câmara e a Misericórdia podem ser
descritas, apenas com um ligeiro exagero, como os pilares gêmeos
da sociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau”16.

O autor, na mesma obra, ainda acrescenta que as Misericórdias


cumpriram o papel de refúgio de todas as classes sociais, tornando
possível a construção de uma identidade portuguesa, ao ligar os
indivíduos e grupos diversos através de territórios distantes e
dispersos entre si.
É reconhecido também que as confrarias desempenharam um
papel de acomodação da sociedade colonial, como se lê na obra O
Império Luso-Brasileiro (1620-1750):

“Manifestação de fé, posição defensiva, face à autorização da Igreja,


refúgio na vida e segurança face à morte, gosto da ostentação e prova
manifesta de uma posição social, as confrarias foram tudo isso ao
mesmo tempo. [...] Para a Igreja, serviram para o desenvolvimento
do culto e para seu apoio material, permitindo sempre certa unidade
espiritual, estas associações foram o reflexo da diversidade social
e cultural dos brasileiros. Para o Estado, mostrando-se o melhor e
mais seguro meio de conservar a tranqüilidade e a subordinação
necessárias. Para os fiéis, a entrada numa confraria evitava a
marginalização e garantia, depois da morte, um lugar na eternidade.
Para os negros, enfim, fazer parte de uma confraria, era um penhor
de proteção e de defesa face os rigores da escravatura. [...] Fazer parte

16 - C. R. BOXER. O império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 198. p. 263. O autor, na mesma
obra, ainda acrescenta que as Misericórdias cumpriram o papel de refúgio de todas as classes sociais, tornando
possível a construção de uma identidade portuguesa, ao ligar os indivíduos e grupos diversos através de territó-
rios distantes e dispersos entre si.

209
de uma confraria era sinal de honorabilidade estreita dos confrades
para enfrentar a vida e o além [...]”17.

Laurinda Abreu, estudiosa portuguesa do papel das Misericórdias,


também chama a atenção sobre o significado das Santas Casas para o
Império Colonial Português:
“No ultramar, as Misericórdias foram instituições fundamentais
como instâncias de garantia do sistema de assistência pública,
instrumentos moralizadores das comunidades, núcleos de poder e,
portanto, estruturas homogeneizadoras de um império espacialmente
descontínuo e com especificidades tão diversas como as que se
refletem nos modelos institucionais e administrativos adotados”18.
Ampliando o entendimento sobre o tema, Isabel dos Guimarães de Sá
indica três vetores que balizaram a instalação das Misericórdias, a saber:

“[...] a (sua) formação seguiu os tempos de implantação das


comunidades portuguesas nas áreas de expansão, ou seja, a criação das
Santas Casas pressupunha a formação de vilas coloniais estruturadas
e variava de acordo com as diferentes configurações do Império ao
longo do século XVI ao XVIII. Em segundo lugar, a instalação das
Misericórdias nos territórios administrados pelos portugueses em
consequência da expansão ultramarina foi simultânea à difusão
das Misericórdias na Metrópole. Nesse sentido, não formaram um
sistema testado no Reino e, em seguida, exportado para as colônias.
A sua difusão se alastrou de forma simultânea. Em terceiro, registra-
se que a cronologia da implantação das Misericórdias seja difícil de
precisar com rigor porque não há documentação de apoio ficando
impraticável a definição de datas precisas”19.

Uma vez instalada a Santa Casa, o passo seguinte seria definir os


responsáveis por sua direção. À medida que a Irmandade constituía
fortuna e prestígio, a primitiva sala de oração e sede da confraria dava
lugar ao seu edifício, destacando-se junto à praça central, próximo
da Câmara e do Pelourinho, local privilegiado que demarcava a
condição social e política do espaço urbano da vila ou da cidade.
17 - Joel SERRÃO; A. H. DE Oliveira MARQUES (Dir.). Nova História da expansão portuguesa: o império luso-
-brasileiro (1620-1750). Lisboa: Estampa, 1991, vol. 7, pp. 397-398, 402.
18 - Laurinda ABREU. Apud Jovanka Cavalcanti SCOCUGLIA; Marieta Dantas TAVARES. “História e memória
da Igreja da Santa Casa de Misericórdia da Paraíba”. Patrimônio: lazer & Turismo. V. 6, n. 8, 2009, p. 14. Dispo-
nível em: <www.unisantos.br/pos/revistapatrimonio> (acesso em 03/06/2010).
19 - Jovanka Cavalcanti SCOCUGLIA; Marieta Dantas TAVARES. História e memória da Igreja da Santa Casa
de Misericórdia da Paraíba. Art. cit., p. 12. Efetivamente, as datas de criação das Santas Casas, em Portugal, no
Brasil e em outros lugares do Império Colonial Português, não são precisas, nem há consenso entre os autores,
confundindo-se, muitas vezes, a data da criação da Irmandade com a da criação do Hospital.

210
No Brasil, as Santas Casas atuaram com amplos poderes:
políticos, religiosos e administrativos. Ao cumprirem a sua missão
compromissal, cuidando da assistência aos pobres e desamparados,
articularam e resguardaram a manutenção e o equilíbrio do sistema
colonial. Em outras palavras, elas representavam uma espécie
de amortecedor das tensões sociais na colônia, e também de
instrumento moralizador das comunidades. Através da atuação da
rede de Misericórdias, se afirmou uma lógica unificadora do espaço
continental do Brasil, ao homogeneizar o tecido social.20 Aliás,
Foucault orienta essa reflexão no sentido de verificar a disciplina
como um mecanismo de controle social, cabível ao papel exercido
pelas Santas Casas nos lugares onde elas foram instaladas. Diz ele:

“A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem


com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para
exercê-lo, que comporta um conjunto de instrumentos, de técnicas,
de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos [...] E pode ficar
a cargo seja de instituições especializadas [...], seja de instituições
que dela se servem como instrumento essencial para um fim
determinado”21.

Aqui estão os hospitais, em essência os das Santas Casas, com suas


enfermarias de alienados – os loucos, as casas da roda dos expostos,
as vigílias aos presos sob os cuidados das Misericórdias, e todos os
desamparados, que na colônia deviam se integrar na formação de
uma sociedade disciplinar.
Mas também, por outro lado, a historiografia é consensual ao
destacar que as Misericórdias foram o contraponto diante dos abusos
da estrutura oficial, bem como um braço forte de representação do
paternalismo monárquico cristão português. A sua importância foi
tão substantiva a ponto de ser observada a sua localização, levando
em conta a importância estratégica das vilas, dentro dos objetivos da
colonização portuguesa.22 E é interessante observar que as Irmandades
foram criadas, a maioria delas, em vilas e cidades, impulsionadas
por orientação régia. Ou seja, as Misericórdias acompanhavam a
fundação das cidades. E, sem demora, as elites locais e a Câmara se

20 - Esta é a tônica do trabalho de Laurinda Abreu, da Universidade de Évora, Portugal, ao abordar sobre o papel
das Misericórdias na formação do Império Português. Ver Laurinda ABREU. O papel das Misericórdias dos ‘lu-
gares de além-mar’ na formação do Império Português. História, Ciência, Saúde (Manguinhos), V. 8, n. 3, 2001,
p. 591-611.
21 - Michel FOUCAULT. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 8 ed.. Petrópolis: Vozes, 199, p. 189.
22 - As Misericórdias de maior poder no Brasil, a do Rio de Janeiro e a da Bahia, foram os principais centros do
projeto colonizador português.

211
agregavam para a sua instalação e o estabelecimento de condições
de funcionamento, para o que Arno e Maria José Wehling chamam
a atenção:
“[...] os cargos administrativos das Misericórdias eram ocupados
por pessoas de projeção social, além de serem muito disputados.
Exigia-se para a sua investidura a apuração de “pureza de sangue”,
pela qual eram excluídos aqueles que tivessem ascendentes judeus
ou mouros até determinada geração”23.

E adiante os autores, ao destacarem o papel das Santas Casas na


colônia, retomam a origem social dos seus dirigentes, chamando a
atenção de que a tendência foi permitir a entrada como membros
da entidade apenas a “nobres” ou àqueles que dessa condição se
aproximassem, pela riqueza ou pelo prestígio social. Eles enfatizam:

“Na Colônia, as Misericórdias tiveram influência efetiva e ampla.


Além de manter diversos hospitais, ficavam responsáveis pelo serviço
funerário – sem distinção de condição social –, pela alimentação
e vestuário dos presos, pelo sustento ou auxílio a viúvas, órfãos,
velhos e indigentes e pelo recebimento de crianças enjeitadas em
sua “roda dos expostos”. Os recursos eram inteiramente privados e
se originavam de subsídios de sócios ricos e legados testamentários.
Esta situação fez com que, para aumentar seus rendimentos e
movimentar o capital, as Misericórdias muitas vezes atuassem como
entidades financeiras, emprestando dinheiro a juros, sobretudo no
século XVIII. A ausência de bancos no Brasil, como em Portugal,
e a necessidade de crédito fizeram com que os empréstimos
das Misericórdias – embora às vezes proibidos – fossem muito
procurados, embora nem sempre bem administrados”24.

Efetivamente, a Misericórdia foi, durante a fase colonial, um


espaço de poder, status e fidalguia, que organizava a administração
da caridade nas cidades e vilas.
E os irmãos da Misericórdia eram os representantes da
comunidade que tinham a condição econômico-financeira de
efetivamente fazer o atendimento das necessidades do serviço de
Deus e atender as motivações da Coroa portuguesa. Era praxe colocar
pessoas influentes, os “homens bons”, à frente da administração das
Santas Casas. Pessoas abastadas do meio rural ou comerciantes do
23 - Arno WEHLING; Maria José C. de WEHLING. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
l994, p. 264.
24 - Idem, pp. 264-265.

212
meio urbano vinham a ser também as que compunham o quadro de
doadores, os que promoviam os legados pios. Transformaram-se em
beneméritos a serviço dos pobres e refrigério dos doentes. Assim,
civis, militares e eclesiásticos foram seus provedores. Não poucos
mordomos eram generais. Para além de serem homens de virtude,
prudência e autoridade, deviam ter reputação. A eles cabia acudir
com o “manto de amparo material” a todos que necessitavam de
socorro em suas vicissitudes. O que é notório na política beneficente
praticada pelas Misericórdias é a fisionomia do cristianismo medieval
que promovia a caridade em troca do perdão dos pecados e, por
consequência, a salvação dos que ajudavam os pobres. Nesse escopo,
é evidente o ideário da lógica conservadora do projeto colonizador,
em que a pobreza cumpriu diferentes papéis, seja político, social ou
também religioso.
Sobre a formação dessa elite filantrópica no Brasil, o brasilianista
Russell-Wood tem um estudo interessante, referência na
historiografia do tema. Chama atenção para o fato de que a renda da
Misericórdia provinha sobretudo da caridade privada e de legados
em forma de bens alienáveis. Ao estudar com afinco a Santa Casa de
Salvador, o mesmo autor pontua sua posição proeminente:

“Entre seus membros estavam os mais eloquentes cidadãos


da Bahia. Por tradição, o Provedor era pessoa de posição social e
financeira suficiente para defender a irmandade contra a crítica e
a intervenção por parte do conselho municipal, do arcebispo ou
até mesmo do vice-rei. A participação no corpo de guardiães era
aguerridamente disputada. Os nomes dos irmãos representavam
um ‘Quem é quem’ não apenas na aristocracia rural e dos principais
funcionários públicos, mas também dos mais importantes artesãos.
[...] a irmandade era verdadeiramente representativa da sociedade
baiana e da ideologia colonial”25.

E nas suas conclusões acerca da fidalguia e da filantropia


relacionadas com a história das várias Misericórdias espalhadas
pelos lugares onde elas se instalaram, ele é enfático: a trajetória
das Santas Casas esclarece as condições econômicas e sociais das
respectivas comunidades que a sediaram.26 Isso significa dizer
que, sob a proteção real, a Santa Casa foi o espaço em que os mais
abastados, exerceram sua caridade, assegurando assim, em nome do
rei, a ordem colonial. Ao seu lado estavam as Câmaras Municipais.
25 - A. J. R. RUSSEL-WOOD,. Op. cit., 1981, p. 275.
26 - Idem, pp. 274-275.

213
Leila Rocha afirma que a Coroa, ao conceder à nobreza
prerrogativas para a administração da Misericórdia, estava
transferindo à fidalguia a responsabilidade pelo financiamento
do exercício da assistência pública, que ela não tinha meios para
prover.27 Ela reforça essa tese:

“Na maioria das vezes, essa elite econômica confundia-se com


o poder político colonial e, portanto, independentemente da
região a que pertencia a Santa Casa, nas provedorias revesavam-se,
constantemente, capitães-mores, vice-reis, governadores, ministros
de Estado, dignatários da Igreja e outros expoentes de destaque na
economia colonial. Essa associação entre o poder econômico e a
administração da Santa Casa atendia, principalmente, ao interesse
da Coroa que, à distância e sem incorrer em gasto algum, transferia
o ônus da assistência social às elites do mundo colonial”28.

Mas é interessante observar que tanto Mesgravis como Russell-


Wood entendem que “ainda que fossem um dos pilares do Império
Colonial Português, as Misericórdias também representavam uma
contrapartida à exploração colonial.29

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da Misericórdia se confunde com a da consolidação


da monarquia portuguesa, constituindo-se em pilar da estrutura, da
largueza e do fortalecimento do seu Império Colonial. Através de
suas Irmandades, acomodaram-se interesses das elites locais onde
estiveram presentes.
As Santas Casas, no Brasil, fizeram assistência pública sem ônus
para o erário, disciplinaram mazelas sociais, incluíram degredados
e pobres envergonhados, promoveram a inclusão da elite a favor
dos excluídos e aliviaram almas de caridosos fidalgos. Assim, ao
assistir e articular os diferentes extratos da sociedade brasileira, elas
constituíram-se em instrumento mantenedor da ordem colonial.
A assistência hospitalar que as Misericórdias prestavam foi, em
muitos lugares, a única oferecida no Império Português, e por isso seu
papel foi singular entre as irmandades, sobretudo no Brasil colonial.

27 - Leila ROCHA. Caridade e poder: a irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Campinas (1871-1888).
Dissertação de mestrado em História. Campinas: Universidade Estadual de Campinhas, 2005, p. 18.
28 - IDEM, p. 30.
29 - IDEM, p. 21.b.

214
É o que se pode observar com a assistência dada aos expostos, por
exemplo. Ela desempenhava duplo papel: situava as crianças e jovens
sem família no projeto colonizador e, de outro lado, tirava da Coroa
o ônus de sustentação e proteção material dessas crianças.
A abrangência de sua atuação no tocante ao controle social, na
dispersa sociedade colonial, ao cuidar da pobreza, submetida à
Coroa portuguesa, a Santa Casa de Misericórdia, foi no Brasil um
verdadeiro esteio da colonização e representante legítima e eficaz
do poder e dos interesses da metrópole. Conjugou as necessidades
de colonização, em que comércio e evangelização andaram juntos,
sustentados por alianças com as elites locais. Promovendo a caridade,
“como irmãos”, desoneraram a Coroa do custo da preservação da
ordem − aliás, necessária para o sucesso da consecução do projeto
colonizador.
Sob o manto da Misericórdia, uma rede de solidariedade se
implementou, favorecendo a unidade territorial, e, através das obras
de inserção social, acomodou tensões, organizando os espaços e as
comunidades por onde irradiou a sua atuação no Brasil. E, no tempo
presente, são visíveis as cidades que se fizeram protegidas pelo manto
protetor das Santas Casas.
Enfim, costurar reminiscências das Misericórdias em Portugal e
no seu Império Colonial, sobretudo no Brasil, é ressignificá-las como
experiência histórica do medievo lusitano. Na sua colônia americana
elas deitaram raízes, cumprindo papel significativo de alicerce na
conformação da futura nação e estado nacional brasileiro.

215
ISBN 978-85-62077-07-4

9 788562 077074

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