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O PAPEL DO
TERCEIRO E AS
INTERROGAÇÕES
DO CONFLITO
SOCIAL
1
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
O PAPEL DO
TERCEIRO E AS
INTERROGAÇÕES
DO CONFLITO
SOCIAL
1ª edição
2015
2
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil
Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia
Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil
COMITÊ EDITORIAL
Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
Sumário
PREFÁCIO 5
INTRODUÇÃO 8
11
1 AS ALIANÇAS SOCIAIS BASEADAS NA AMIZADE: É POSSÍVEL LIDAR
COM O CONFLITO SEM A PRESENÇA DO TERCEIRO?
1.1 A privatização da relação pública da amizade: é necessária a intervenção 11
do Estado?
1.2 A philia grega era disposição de caráter que desejava o bem do outro? 16
1.3 A vontade individual dos amigos era subordinada as regras do Estado na 21
amicitia romana?
1.4 As relações entre philia, amicitia, confiança e justiça: do moral ao legal? 25
CONCLUSÕES 75
REFERÊNCIAS 77
5
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
PREFÁCIO
A atuação dos poderes de Estado, incluindo o Judiciário, tem sido alvo de
agudas críticas nas últimas décadas. Parte dessas críticas é pertinente, parte
não. Parte, delas, têm base em razões fundadas, outra não.
Entre as infundadas estão aquelas alinhadas a partir das premissas ul-
traliberais (neoliberais) de que a sociedade não seria outra coisa senão um
aglomerado de unidades individuais, cada qual interessada em minimizar a dor
e maximizar o prazer. Nesse viés, a ação do Estado deveria limitar-se às fron-
teiras estabelecidas pelas liberdades individuais e ser útil para o alcance das
expectativas e desejos individuais. O Estado não passa de um mal necessário,
sendo “excessos” a pretensão dos poderes públicos tentar induzir o proces-
so de desenvolvimento, buscar regular e intervir na economia, e oferecer um
amplo leque de serviços públicos à custa de significativa carga de impostos.
O alvo do ultraliberalismo, como se sabe, é o Estado de Bem Estar (welfare
state). A retórica ultraliberal reproduz um conhecido dualismo: explica a política
e a sociedade com base na bipolaridade Estado x mercado e público x privado,
conferindo prioridade ao segundo polo. Esse enfoque dá sustentação a parce-
la importante das críticas aos insucessos estatais. É uma via que não oferece
alternativas plausíveis para a democracia, a inclusão social, o empoderamento
e a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
As críticas pertinentes ao Estado são de outra ordem. Miram o estatismo,
ou seja, a exacerbação do estatal na vida social, assim como o seu oposto, o
privatismo, a exacerbação dos valores do mercado. Parte-se aqui da premissa
de que a vida social não pode ser resumida à bipolaridade Estado x mercado,
até porque ambos são fenômenos recentes na história da humanidade. As raí-
zes do Estado atual (dos Estados nacionais modernos) remontam ao século
XV, enquanto a economia capitalista de mercado assenta-se no processo da
Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. Interligados, Estado e
mercado são polos constituintes da vida das sociedades ocidentais nos últimos
séculos, mas a vida em sociedade não se resume a esses polos. Há aspectos
fundamentais da vida humana – facetas que se revelaram ao longo da evolução
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
da vida humana por muitos milhares de anos – que dizem respeito a outra esfera.
Estima-se que o homo sapiens tenha surgido há cerca de 80.000 anos
e nossos ancestrais mais remotos, há mais de 4 milhões de anos. Ou seja:
em 99% da trajetória humana não houve nem Estado nem mercado. Por isso,
o foco exclusivo nas estruturas estatais ou na dinâmica do mercado não al-
cança o essencial à vida em sociedade. Amizade, solidariedade, fraternidade,
cooperação, comunidade, entre outros princípios, reportam-se a outra esfera da
vida humana, a esfera comunal. Trata-se de um âmbito que abrange relações
interpessoais não redutíveis à lógica dos poderes instituídos (Estado) nem do
interesse privado (mercado). A esfera comunal está articulada à esfera estatal e
à mercantil, contudo distinta. Juntas formam o tripé das sociedades ocidentais
atuais, nas quais vêm se assistindo o excesso ora de um polo (estatismo) ora de
outro (privatismo). Estamos diante do desafio de construir o equilíbrio do tripé, o
que requer fortalecer o polo comunitário.
O equilíbrio das três esferas (Estado, comunidade e mercado) exclui qual-
quer excesso do comunitário, que seria uma espécie de revanche ao estatismo e
ao privatismo. A noção de equilíbrio, das esferas sociais, leva ao esforço de pen-
sar os serviços públicos e o atendimento das necessidades coletivas para além
das duas alternativas usuais – a prestação direta pelo Estado ou a privatização.
Esse novo olhar (assentado em clássicas lições, que remontam a Aristóteles e
passam por uma grande variedade de tradições do pensamento social) nos leva
a considerar formas alternativas de Justiça, como a mediação e a conciliação;
a recuperar a importância dos serviços de saúde, de educação e de assistência
social prestados por instituições comunitárias; a prestar atenção nas formas co-
munitárias de comunicação; a reconhecer a relevância política e econômica do
terceiro setor, constituído por organizações cooperativas e associativas.
Sob esse pano de fundo, a contribuição do livro “O papel do terceiro e as
interrogações do conflito social” transborda o âmbito do Direito e ajuda a pen-
sar as transformações do Judiciário no contexto mais amplo do Estado e das
políticas públicas. O livro, de maneira evidente, é mais uma bem sucedida obra
de pesquisadoras e pesquisadores orientados pela Profª Fabiana Spengler a
evidenciar o vigor das formas comunitárias, especialmente a mediação, no pro-
cesso de renovação do Judiciário. Conforme se mostra, não se trata apenas de
desafogar o Judiciário, submetido a um conjunto impressionante de demandas
da sociedade: trata-se de conceber “outra cultura, mediante práticas consen-
suadas e autônomas que devolvem à pessoa e à comunidade a capacidade de
lidar com o conflito inerente a sua existência”. O lento processo de renovação do
Judiciário requer, de muitos operadores do Direito, a inteligência, a capacidade
e o comprometimento demonstrados pelas autoras da presente obra.
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
INTRODUÇÃO
A amizade assume importância na organização, manutenção e coesão
dos grupos sociais, porém, não existem histórias detalhadas dos vínculos gera-
dos a partir dela em nenhuma grande civilização, ocidental ou oriental. Todavia
conhecermos textos que refletem grandes amizades como aquela entre Mon-
taigne e la Boétie (1999), no qual a relação diz respeito a um sentimento com-
plexo e desordenado o que dificulta sua delimitação exata.
Porém, mesmo desordenada, a amizade vem sendo usada, politicamen-
te, como pacto ou contrato que ultrapassa os limites emocionais e opera como
meio de manutenção das alianças sociais firmadas, gerando hipóteses mais
adequadas para lidar com os conflitos nascidos de tais relações. Essa seguran-
ça quanto ao pactuado se dá especialmente em função de sentimentos correla-
tos a amizade como, por exemplo, a fidelidade, a confiança e a gratidão.
Porém, aqui se fala de uma fidelidade, uma confiança e de uma gratidão
que não são normatizados ou legalizados, que nem mesmo são mencionados,
porque compõe o mundo dos sentimentos e não o mundo da justiça. Tudo isso
porque, conforme Aristóteles (2004), onde existe amizade não precisamos de
justiça. Onde impera a amizade, a boa-fé e a confiança não precisam ser po-
sitivadas, garantidas legalmente. Elas fazem parte de um contexto vivido e ex-
perienciado pelos amigos. Se amizade deixa de ser argamassa, cimento social,
então precisamos das garantias do direito.
É nesse sentido que o primeiro capítulo teve como objetivo investigar a
amicitia romana e a philia grega como possibilidade de lidar com o conflito pres-
cindindo da figura de um terceiro (mediador ou juiz) em função da capacidade
existente entre os contendentes (capacidade essa baseada na amizade) de lidar
com a desordem conflitiva de maneira mais adequada .
Finalmente, a amizade e os seus aspectos políticos foram visitados en-
tremeando sua conotação histórica com outras categorias como a justiça e a
confiança.
Acontece, entretanto, que quando a amizade não é suficiente para a neu-
tralização ou tratamento do conflito, faz-se necessária a presença do terceiro
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
1 Consoante dispõem Morais; Spengler (2012), a mediação e a conciliação são institutos afins,
porém diferentes. A conciliação tem por objetivo chegar voluntariamente a um acordo neutro a
partir da participação de um terceiro que intervém, inclusive com sugestão de propostas aos
litigantes. A seu turno, a mediação, conforme será abordada neste trabalho, tem natureza auto-
compositiva e voluntária, no qual um terceiro imparcial facilita a comunicação entre as partes,
dando espaço para que estas apresentem a resolução adequada ao seu conflito.
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
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AS ALIANÇAS SOCIAIS
BASEADAS NA AMIZADE:
É POSSÍVEL LIDAR COM O
CONFLITO SEM A
PRESENÇA DO TERCEIRO?
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
4 “Un conoscente, direi, è uma persona che si conosce anche da molto tempo, ma che in genere
non ci si propone mai di incontrare senza alcuna ragione precisa”. (EPSTEIN, 2008, p. 14).
5 “Un compagno è, come dice il termine, qualcuno con cui capita di essere em compagnia; un
accompagnatore può essere qualcuno che viene impiegato a pagamento, per esempio qualcuno
che una persona anziana paga perché stia con lei durante una convalescenza. A volte compagno
e accompagnatore vengono utilizzate come parole in codice per amante, altra cosa che non ci
aiuta molto...” (EPSTEIN, 2008, p. 14-15).
6 Esse movimento de transformação das ligações familistas não será objeto de análise na pre-
sente pesquisa em função de questões de espaço e tempo. Sobre o assunto é importe a leitura
de ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001; ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução de
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2 v. ARENDT, Hannah. Condição humana.
Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
7 Não é mais o “público” que tende a colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado
que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser ex-
presso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, das angústias e iniciativas
privadas. (BAUMAN, 2001).
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
dades ocidentais:
a) o fato de que o Estado passou a desempenhar um novo papel a
partir do século XV, intervindo cada vez com mais frequência no espaço so-
cial antes entregue às comunidades. O processo de formação dos Estados
modernos e de centralização da sociedade, que tem como correlato a reor-
ganização e mudança histórica da economia psíquica, apontam na mesma
direção ao sublinhar o papel decisivo exercido pelo Estado na conformação
da vida privada e da sociabilidade, a qual segue um caminho de crescente
privatização e intimização. Como principal consequência desse movimento o
Estado passou progressivamente a interferir e a gerenciar mais diretamente
a vida dos indivíduos;
b) um segundo fator importante nesse processo foi o desenvolvimento
da alfabetização, assim como a difusão da leitura favorecida pela invenção da
imprensa, que permite uma forma de reflexão solitária; a própria solidão mudará
de status, não se associando mais com o tédio e passando-se a desenvolver, a
partir do século XVII, um gosto pelo retiro solitário;
c) por fim, as novas formas de religião permitiram o desenvolvimento de
maneiras de devoção privadas e de meditação solitária. Evidentemente, esse
processo de privatização nas sociedades ocidentais desde os séculos XVI e XVII
condicionou as formas de sociabilidade e a amizade em particular.
Na Grécia, a philia se colocava acima da família, estava ligada ao
espaço público, à ação em liberdade, à política. Provavelmente a tradição
cristã fraternalista contribuiu, historicamente, para essa primazia das ima-
gens familiares sobre as da amizade. Da mesma forma, o ideal romano de
confiança e lealdade ao amigo, a fides, se transformou na confiança total em
Deus. Consequentemente, o cristianismo substituiu a intimidade dos amigos
por um laço de amor e caridade que abraça todos sem restrição. Assim, tem-
se o alargamento da amizade e o seu esvaziamento político. A amizade que
anteriormente se voltava para a polis agora é caridade (caritas), voltada ao
amor divino e ao paraíso.
A caritas significa o amor ao próximo e a uma totalidade, um amor co-
munitário amplo, descolado da singularidade e da particularidade de um amor
“a dois”. Então, conclui-se que a Amicitia não é ágape, e essa substituição leva
a despersonalização de tal sentimento tornando o caridoso mas sem afeto. A
amizade cristã enquanto amizade perfeita é aquela que torna sem qualidades
as amizades vividas, aquelas reais. É inerente ao cristianismo a substituição da
amizade pelo ágape, considerado uma forma de amizade perfeita.
Desenha assim a ambivalência entre amizade e amor no cristianismo.
A amizade tornou-se uma relação suspeita e o amor (a Deus e ao próxi-
mo) era o meio de se libertar. Assim como a amicitia romana, a philia grega
também é rejeitada por seu caráter egoísta e instrumental, ao passo que o
agape representa amizade verdadeira, por não manifestar uma atração inter-
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
pessoal. Dizendo de outro modo, o amigo não deve mais ser amado por si
mesmo, mas por Deus.
A philia torna-se assim caritas christiana, o amor de Deus que une todos
os homens. Caritas constitui a essência do amor do amigo no cristianismo. (OR-
TEGA, 2002).
Possível perceber, assim, como as concepções das relações de amizade
enquanto pertencentes à intimidade, desconectadas e distanciadas do público,
e, muitas vezes, incorporadas nas relações de parentesco – o que atualmente
parece natural e inquestionável –, são, na realidade, um fenômeno recente, ini-
ciado no século XIX.
Essa nova forma de ver a amizade - agora conhecida e reconhecida
como fraternidade, embalada pelo amor divino - inclui por que exclui, avizinha
por que distancia, reconstrói tecidos vitais enquanto destrói outros; parece,
como o amor, uma improbabilidade normal. Este é o grande divisor de águas
entre a philia do mundo antigo e a amizade dos sistemas sociais modernos;
ao passo que a primeira é o que cimenta a cidade, sendo, portanto, pressu-
posto de qualquer vida política que generaliza o privado, reproduzindo-o na
vida pública, a segunda não reitera o próprio modelo comunitário, mas o se-
para, o diferencia dele quase se imunizando da condição de estranhamento,
senão da inimizade, que atravessa a esfera pública. Por isso, está exposta
aos riscos de interferência e, quando vence, inserindo-se na esfera pública,
está pronta a transformar-se, na melhor das hipóteses, em incidente trans-
versal, quando não em confusão a ser eliminada, em dimensão irrelevante a
ser deixada de lado em virtude da separação entre a vida privada e afetiva e
a vida pública, quando, até mesmo, não seja identificada com a familiarida-
de e a particularidade; de resto, não é raro que os detentores do poder não
escolham os competentes, mas os que lhe são leais, delegando confiança à
amizade e perpetuando a desconfiança da luta política. (RESTA, 2005).
Essa trajetória abre caminho, na modernidade, por intermédio de uma clara
separação, impensada no mundo antigo, entre a amizade e o amor. Contra o risco
de uma expansão demasiado pessoal e, por conseguinte, egoística, da amizade,
foi recomendada charitas generalizada que impõe amar a Deus em cada um do
outros homens. Enquanto a amizade mundana deixa campo livre à qualidade dos
indivíduos (“perché sei tu”), a amizade caridosa lhe é estranha e escolhe a impes-
soalidade. (RESTA, 2005).
Nesse caminho, e dando continuidade ao debate que compara philia gre-
ga, amicitia romana e amizade moderna (fraternidade) o item a seguir investiga-
rá a philia grega.
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
8 O “Vocabulário grego de filosofia” (traduzido para o italiano) conceitua philia como “legame af-
fetivo tra due esseri umani. Deriva del verbo philo. L’amicizia è considerata daí filosofi greci uma
virtù, o per lo meno, come scrive Aristotele ‘essa è acompagnata dalla virtù’ [...] Essi considerano
il termine nel senso stretto di affezione reciproca, mentre la philia possiede un significato ben piú
ampio”. (COBRY, 2004, p. 167).
9 “Antes de definir o conceito de philia, “amizade”, há que definir concretamente o que significa
philos, “amigo”, termo ambíguo que implica, por exemplo, a distinção entre amante, aquele que
sente amor ou amizade, no qual, digamos, se inicia o desejo de posse do objeto do seu amor,
e amado. Podemos usar, respectivamente para cada um, as expressões termo o ativo e termo
passivo”. (PLATÃO, 1995. p. 23).
10 “A tradição do pensamento político sobre a hospitalidade, desde Platão a Kant e Hegel, pensa
hospitalidade nas categorias jurídicas do pacto, do contrato, do juramento, etc, isto é, exclusiva-
mente, como hospitalidade condicional. [...] Lévinas [...] ao deslocar a categoria da hospitalidade
para o centro de sua reflexão ética e definir a relação com o outro como hospitalidade, repre-
senta uma exceção significativa. Pois o contrato da hospitalidade restringe a hospitalidade ao
reconhecimento do estatuto social, familiar e político dos contratantes, ao controle da residência
e do período de estadia e deixa fora aquele que chega anonimamente, que não possui nome,
patrimônio, linhagem, estatuto social, ou pátria; ou seja, esse indivíduo que os gregos não trata-
vam como estrangeiro, mas como bárbaro, como outro sem nome, ou nome de família.” (ORTE-
GA, 2002, p. 20).
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
11 “Comunità urbana alla quale occorre dare uma costituzione, che sarà la politeia; lo stesso
termine polis può significare Stato, poiché ogni città greca costituiva anche uno Stato.” (GOBRY,
2004, p. 178).
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12 Importa dizer que a base para o debate aqui se iniciado foram os diálogos de Platão nos quais
o filósofo aborda a philia diretamente: no Lísis, no Banquete e no Fedro. O primeiro deles (Lísis)
foi aquele que centralizou o interesse do presente texto. Tal se deu porque, apesar do caráter
aporético do texto, é, todavia, aquele que mais se aproxima da definição do conceito de amizade.
13 Tal conotação erótica exposta na obra platônica pode vir ilustrada pela referência expressa a
eros no Banquete: “... de todos os lados Eros é considerado extremamente antigo. Sendo o mais
antigo, é Também a causa de nossos maiores bens; por mim, não saberia dizer nada melhor para
o jovem, no seu primeiro crescimento, que um verdadeiro amante, nem, para um amante nada
melhor que seus amores”. (PLATÃO, 1977, p. 178c-178b).
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
14 Isso se dá porque o próprio Platão no diálogo intitulado “Lísis” deixa claro que a base da
amizade é o desejo. Assim: - “Então, de fato, a causa da amizade é, como há pouco dizíamos,
o desejo. O que deseja é amigo daquilo que deseja, e isso sempre que deseja. O que de início
dizíamos ser amigo era uma futilidade, como um poema que se alonga demasiado”. (PLATÃO,
1995, p.60).
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
15 Assim: “cabe-nos examinar a natureza da amizade, pois ela é uma forma de excelência moral
ou concomitante com a excelência moral, além de ser extremamente necessária a vida.” (ARIS-
TÓTELES, 1996, p. 257).
16 “No entanto, o bem ou ser bom não constituem a essência do humano (ou qualquer outra
realidade). Dizendo diferentemente: o ser bom não identifica essencialmente os humanos. Ou:
não nascemos bons. Ou, ainda: o homem não é bom por natureza. Ser bom, deveras, é um aci-
dente para um indivíduo. Assim com ser mau. Ninguém nasce mau. Podemos querer ser bons
ou ser maus. Podemos nos tornar bons ou maus. Podemos nos aperfeiçoar na bondade ou na
maldade.” (ALBORNOZ, 2010, p. 22).
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
17 A relação com o outro, que foi na presente pesquisa nomeada “alteridade” será abordada no
próximo capítulo. Sobre o assunto é importante a leitura de LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós:
ensaios sobre a alteridade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
18 Sobre o assunto é importante a construção de Foucault que aponta para uma “nova/outra eróti-
ca”, substituidora da erótica grega dos rapazes. Essa erótica se apoia e apresenta o matrimônio
como forma de vida, relegando o Eros ao vínculo conjugal. Essa nova realidade erótica se constitui
em torno da relação recíproca e simétrica do homem e da mulher, apontando a virgindade como
valor crescente, como estilo de vida e forma de existência mais elevada, e da união perfeita que
pretendem atingir. Sobre o assunto é importante a leitura de FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade
e política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2004; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Tradução de Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005.
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
20 Nesse sentido é importante a leitura de CICERONE, Marco Tulli. I doveri. Saggio introdutivo
e note di Emanuele Narducci. Traduzione di Anna Resta Barrile. 1º ed. Milano: Libri e Grandi
Opere, 2004.
21 “[...] uma vez que os laços da amizade nascem da estima pela virtude, é difícil que a amizade
sobreviva se não permanecermos na virtude.” (CICERONE, 1993, p. 59).
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
Nesse contexto, não se pode perder de vista que durante toda a Antigui-
dade grega se manteve, como foi ressaltado, um vínculo estreito entre amiza-
de e justiça embasador da configuração da philia como um fenômeno político.
Na Grécia arcaica, é possível encontrar uma noção de justiça (dike) própria de
uma sociedade aristocrática, que poderia ser traduzida como ajudar/beneficiar
os amigos e prejudicar os inimigos. Essa forma de justiça era regulada e admi-
nistrada pelos hetairoi.22
Porém, com a passagem para a era clássica e com o surgimento da de-
mocracia, tanto a justiça como a amizade sofreram transformações e foram re-
definidas. A partir desse momento, os sentimentos de amizade, a igualdade de
direitos e a comunidade da justiça existente nos pequenos grupos constituídos
como heterias, são deslocados para a sociedade (demos) como um todo. Como
consequência, cada cidadão torna-se um amigo e a igualdade (isonomia), restri-
ta até esse momento às heterias, pertence ao conjunto dos cidadãos.
Assim, na transição da velha noção de justiça para a nova (descrita por Pla-
tão como harmonia e proporção na alma e na polis), a noção de amizade fornecia o
elemento de igualdade de direitos (isonomia). Com isso, a amizade é coextensiva
da cidadania, e todos os cidadãos são, em princípio, amigos entre si. Ou irmãos?
Pois, Aristóteles estabelece, como já visto, uma proximidade entre fraternidade e
camaradagem (heteria) por um lado, e entre fraternidade e democracia pelo outro.
A amizade entre irmãos é próxima da camaradagem precisamente pela igualdade.
Igualdade política é igualdade entre irmãos. (ORTEGA, 2002).
Justamente nesse sentido, Aristóteles afirmava que os verdadeiros ami-
gos não têm necessidade de justiça. Mas o que ele quer dizer com isso? Da
análise do texto se depreende que a afirmação aristotélica diz respeito ao fato
de que a virtude da justiça existe para resolver as diferenças (os conflitos) entre
os homens. Desse modo, a vida na polis abre uma série de possibilidades dife-
renciais: diferenças de comportamentos, de ideias, quanto à propriedade ou a
distribuição dos bens, diferenças étnicas, etc.
Nestes casos, se faz necessário a resolução das diferenças/conflitos e a
justiça pode ser acionada enquanto virtude do meio-termo, ou seja, possibilidade
de equilibrar as diferenças entre o excesso e a falta. Assim, o recurso à justiça
acontece enquanto meio de reconhecimento das diferenças ou da desproporcio-
nalidade.
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
O mesmo autor salienta que o texto guia pelo lado opaco da vida cotidiana
no qual os sentimentos são expostos a possibilidade de riscos. Nesse interregno
24 Numa tentativa de definir a amizade Donolo (2009, p. 2), afirma: “fidúcia prima de tutto è
um richiamo a stare attenti, a non abassare la guardia. La concessione di fiducia è un esercizio
rischioso, quindi la concedono facilmente i fessi difficilmente i furbi. Così intanto il mondo si ordi-
na intorno a questa razionalità di scopo di bassa lega. In un certo paese, che conosciamo bene
perchè ci abitiamo, questa dicotomia è basilare: come se fiducia stesse le vertice del monte i cui
due versanti dividono i furbi dai fessi.”
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
25 Essa também é a opinião de Ota Leonardis quando salienta: “il diritto intrattiene rapporti com-
plicati com la fiducia”. (LEONARDIS, dicembre 2009, p. 121).
26 “Depois de concedida a amizade, é preciso haver confiança; é antes que se deve fazer um
julgamento. [...]. Alguns contam ao primeiro quem veem o que deveria ser confiado apenas aos
amigos, e despejam em ouvidos alheios o que lhes queima a língua. Outros, ao contrário, temem
abrir-se até mesmo com os amigos mais caros e, como se não pudessem eles mesmos com os
amigos ser os seus próprios confidentes, mantêm encerrados no fundo da alma todos os seus
segredos. É preciso rejeitar ambas as atitudes: é um erro não confiar em ninguém. Bem como
confiar em todos; direi que, num caso nós agimos da maneira segura, e no outro da maneira mais
honesta.” (Sêneca, 2007, p. 31).
27 “[...] um modelo ideal de amizade perfeita, teleia philia/ vera amicitia, em que o amigo aparece
como um outro eu, um ideal de perfeita unanimidade, de completa união espiritual e moral, de
aperfeiçoamento recíproco. Essa noção de amizade se define pelo seu caráter particularista,
pela sua raridade (só é possível entre poucos), quase pela sua impossibilidade, constituindo
antes um ideal regulativo do que uma relação real, o que sem dúvida, a afasta da sociedade
sociopolítica concreta.[...] Quanto mais íntima, constante e afetiva é uma amizade, menos são
as pessoas com as quis podemos ter tal relação. É, afinal de contas, uma questão de tempo e
energia, ambos objetos escassos. Quanto mais exclusiva e íntima é uma amizade, em outras
palavras, quanto mais se aproxima do ideal aristotélico de amizade perfeita, mais transcende a
estrutura social circundante e menos se adapta para fornecer a base da sociedade”. (ORTEGA,
2002, p. 55-56).
28
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
28 “in sintesi, in particolare per gli usi della sociologia, la fiducia può essere definita come
‘n’aspettativa di esperienze con valenze positive per l’attore, maturata sotto condizioni di
incertezza ma in presenza di un carico cognitivo e/o emotivo tale da permettere di superare
la soglia della mera speranza’”. (BAGNASCO, 2 0 11 , p . 4 7 ).
29 Sobre o tema é importante a leitura de RICCOBONO, Francesco. Fidúcia, fede, diritto. In:
Parolechiave: nuova serie di problemi del socialismo. Roma: Carocci Editore, v. 42, dicembre
2009, p. 134.
30 “La visione di uma società priva di diritto poichè costruita interamente sulla fiducia e sulla
solidarietà, pur nel suo inegabile fondo di verità, è evidentemente un espediente teorico per far
affiorare la contraddizione tra l’apertura dei rapporti fiduciari e la determinatezza dei rapporti giu-
ridici. Essa, però, detiene pure il merito di fissare le precondizioni sociali per l’instaurarsi di una
pratica giuridica.”(RICCOBONO, dicembre 2009, p. 134).
31 Boa fé significa “reciproca lealtà, chiareza, correteza” habilidades necessárias para implantar
uma congruente comunicação lingüística antes de ser jurídica além de satisfazer “uno spirito di
cooperazione per l’adempimento delle reciproche aspettative”. (BETTI, 1971, p. 390-391).
29
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
bilidade não se dá mais com base em relações éticas/morais, mas pela garantia
estatal do judiciário. Nesse ínterim, nasce a necessidade de uma terceira parte
que determine o direito aplicado ao caso concreto ou então que auxiliem os con-
flitantes a se comunicarem.
A confiança está em crise. Essa crise possui dois aspectos fundamen-
tais: primeiramente, verificamos uma crise de confiança horizontal observada
nas relações existentes entre os cidadãos de modo a identificar o desmantela-
mento de laços comunitários, dentre eles e, por exemplo, os laços de amizade
e de solidariedade; posteriormente se verifica uma crise de confiança vertical,
ou seja, um descrédito evidente e crescente entre o cidadão e as instituições as
quais ele se conecta, dentre elas a jurisdição. O primeiro aspecto, pertinente as
relações horizontais e a confiança moral/ética somente poderá ser recuperado
a partir da implantação de um novo paradigma nas relações entre os indivíduos.
Já o segundo aspecto, quanto as relações de verticais observa-se a busca pela
aplicação da lei e do Direito para ver garantidos os seus princípios.
A principal consequência da perda de confiança enquanto relação ética/
moral é o recurso ao Direito e ao judiciário (o terceiro). Assim, o abuso do direito
e a juridificação do social contribuem fortemente para a entropia da confiança.
Uma comunidade que usa preferentemente o Direito para resolver seus conflitos
é menos confiável e menos capaz de produzir confiança.
Perdeu-se a conotação antiga da amizade e da confiança, mas a relação
política delas nascida se manteve ainda que garantida por códigos e leis. Mo-
dernamente, existem movimentos que buscam resgatar essa conotação ética da
amizade e de todos os seus derivados: confiança, solidariedade, fraternidade,
alteridade. Quando esses movimentos falham, o recurso é se voltar para o
Judiciário e partir ao juiz que, desenvolvendo seu papel de terceiro na relação
conflituosa, decide e diz a última palavra. Esse é o debate que se desenvolve a
seguir.
30
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
2
O JUDICIÁRIO EM UM
CONTEXTO DE
DEMOCRATIZAÇÃO DE
DIREITOS: QUAL O PAPEL
DO JUIZ COMO TERCEIRO
NA RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS?
2.1 Do conflito interpessoal ao conflito
do próprio Judiciário: por onde passamos?
31
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
32
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
33
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
32 A respeito do modo de produção no século XX, Juan Ramón Capella diz que: “Há surgido el
mundo de la ciencia al servicio de la producción y el mundo del crecimiento cuantitativo de la
producción as servicio del capitalismo. O, por no decirlo al revés: la expansión y el reforzamiento
de las relaciones de domínio en su forma capitalista han exigido la masificación de la producción,
y ello, a su vez, há puesto el esfuerzo cientifico directamente al servicio de las actividade produc-
tivas, orientándolo e impulsándolo para garantizar tal expansión y tal reforzamiento” (CAPELLA,
2006, p. 160).
33 São funções do Poder Judiciário: instrumental, política e simbólica. Sobre o assunto ver FAR-
IA, 2006.
34
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
35
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
35 O novo Código de Processo Civil Brasileiro, Lei n. 13.105/2015, contempla a mediação e a conciliação
como etapas do procedimento comum de conhecimento. A positivação destas formas alternativas de trata-
mento de conflitos na codificação processual, no entanto, não garante a sua eficácia enquanto aplicação,
pois se tratam de métodos que demandam cultura específica de aplicação (quem serão os mediadores e con-
ciliadores? Como trabalharão? com que qualidade serão realizadas as sessões de mediação e conciliação?)
e consciência social dos cidadãos e juízes para a necessidade de repensar o conflito em si.
36 Importante observar que foi com o Estado Moderno que se concretizou o processo civilizador
e o monopólio estatal da violência legítima. O Estado monárquico impôs uma forte repressão
à violência privada e difusa, determinando regras de convivência na corte, domínio das emo-
ções e ocultamento do corpo que contribuíram de maneira significativa para a estruturação da
personalidade em termos de civilidade. Dessa forma, há a contenção da agressividade pela
transferência ao Estado do monopólio da violência legítima, que se exerce por meios repressivos
institucionalizados na lei e na atuação do poder pela imposição de penas. Elias (1994, p. 200),
ao tratar da mudança da agressividade, explica por meio de exemplos concretos do dia a dia
que o Estado foi assumindo o papel de conter os impulsos humanos agressivos, demonstrando
sua força, inicialmente de forma explicita com os enforcamentos em praça pública, depois com
paradas militares, hoje com policiamento ostensivo, de modo que o individuo foi internalizando
o refreamento da violência privada e, como afirma o autor “hoje essa regra é aceita quase como
natural. É altamente característico do homem civilizado que seja proibido por autocontrole so-
cialmente inculcado de, espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia.”. Ainda,
Capella (2006, p. 46), afirma que “el estado detenta a suprema capacidad de violencia; sostiene
la reglamentación social y puede incluso inovarla, mediante la amenaza de la coerción – el dere-
cho es originariamente uma reglamentación coercitiva - ;y subordina a la suya la capacidade de
la reglamentación y de violencia de la sociedad.”.
36
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
outorga ao juiz de dizer qual a melhor solução para a situação conflitiva, o que,
em determinados momentos históricos teve sua justificativa ideológica e, até
certo ponto, efetividade, todavia que se mostra superada como única forma de
tratamento de conflitos, como se verá ao longo desta obra.
37 Judges ought to remember, that their office is jus dicere, and not jus dare; to interpret law, and
not to make law, or give law. (Francis Bancon, on line).
37
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
das medidas adotadas em favor dos monarcas e, depois, dos burgueses, era
preciso que os atos estatais estivessem chancelados pelo Direito, sendo que
a lei, pretensamente unívoca, passou a ser o verdadeiro reflexo da vontade
absoluta do soberano.
Assim, consolidou-se a centralização do poder, aliada ao processo de
racionalização e formalização do Direito, na qual se pôde identificar a inércia
criativa do magistrado, restrito a fiel aplicador da lei soberana. A este respeito,
Merrymann, em obra que trata da tradição jurídica romano-canônica e delimita
um traço comparativo com a tradição anglo-saxônica, esclarece que:
38
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
38 A esse respeito, Calamandrei (1999, p. 225) diz que: “Ao choque das espadas se tem sub-
stituído, com a civilização, a polêmica dos argumentos, mas existe ainda neste contraste, o
ensinamento de um assalto. A razão se dará a quem melhor saiba raciocinar: se ao final o juiz
outorga o triunfo a quem melhor consiga persuadi-lo com sua argumentação, se pode dizer que o
processo, de brutal choque de ímpetos de guerreiros, tem passado a ser jogo sutil de raciocínios
engenhosos.”.
39
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
39 Sobre este assunto, Zanetti Junior (2004, p. 28) diz que o “o jurista do direito material, em razão
da incompreensão ou, talvez, da má aplicação dos institutos processuais, imagina o processo
como uma quimera formalista. O mais notável fruto desta visão é o mito que se desenvolveu no
curso da historia recente: o de que o processo é algo complexo, sofisticado, inatingível e de duvi-
dosa logicidade, visto que rodeado de exceções. Bom processualista seria, neste entendimento,
aquele que, com mais agudeza, consegue decorar as exceções da lei, sua peculiaridade.”
40
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
40 Veja-se o caso da execução de títulos de crédito, procedimento que foge da tão aclamada
ordinariedade, mas que beneficia a classe de comerciantes e empresários que negociam tais
documentos. A respeito da questão ideológica do processo, Portanova (1997, p.67) afirma que
“...a ordem brasileira está centrada na obrigatoriedade, generalidade e neutralidade, está em
verdade a serviço do capitalismo e privilegiando minorias”. Ainda sobre esta questão da ideolo-
gia dominante no processo, Gonçalves (2005, p. 239) refere que “o Direito, a Lei e o processo
especificamente não podem ser enfocados como se não possuíssem uma determinada carga
ideológica, que serve sim aos interesses de uma classe dominante, que através de seu controle
dos meios de produção e de comunicação, do sistema econômico, impõe sua ideologia, numa
própria manipulação do inconsciente coletivo”.
41
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
41 A partir do momento que o Estado elenca direitos e liberdades fundamentais ele deve fornecer
meios para a proteção dos mesmos e faz isto através do Direito. Assim sendo, quando pela tu-
tela jurisdicional tais direito e liberdades têm seu exercício assegurado, seus titulares, ao poder
desfruta-los, são incluídos na dinâmica social como cidadãos.
42
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
42 “O sentido comum teórico dos juristas como parte da visão de mundo jurisdicista poderia ser
caracterizado, em uma nova aproximação, como “o superego” da cultura jurídica; uma instância
de julgamento e censura que impede os juristas de produzir decisões autônomas em relação a
esse nível censor”. (WARAT, 1994, p. 82).
43 Ao se falar da transnacionalização do mercado, oportuno referir a obra de Allard; Garapon (2005,
p. 15) sobre os juízes no contexto de mundialização, na qual apresentam o direito como um bem in-
tercambiável, como se fosse um produto de exportação. Afirmar que “a comunicação entre os juízes
intensificou-se nestes últimos anos e as fronteiras políticas já não limitam tão facilmente a circulação
do direito. [...] O novo comércio entre juízes não é um espaço legislativo à revelia, mas sim um fórum
informal de intercâmbios situado, na maior parte da vezes, à margem dos mecanismos institucionais”
43
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
45
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
49 A respeito deste tema, interessante a leitura de Lênio Luiz Streck em O que é isto – decido
conforme a minha consciência?. Na obra, o autor (2010, p. 106) diz que a “a decisão se dá, não
a partir de uma escolha, mas, sim, a partir do comprometimento com algo que se antecipa. No
caso da decisão jurídica, esse algo que se antecipa é a compreensão daquilo que a comunidade
jurídica constrói como direito”, sendo que a “resposta correta (adequada à Constituição e não à
consciência do intérprete) tem um grau de abrangência que evita decisões ad hoc” (p. 107), pois
os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões devem ser aplicados em casos idênticos
46
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
tação de serviços públicos precários à sociedade, a qual, por sua vez responde
negativamente a isso, litigando cada vez mais, gerando assim um ciclo vicio-
so de judicialização das relações políticas e sociais. O juiz passa, então, a ser
agente positivo na definição de políticas públicas e dotação orçamentária, ainda
que às avessas, o que fere, inegavelmente, princípios de representatividade e
legitimidade política, colocando o magistrado num dilema ético e de identidade50
quanto à sua função de julgador.
Dilema este que se agrava no universo de um Judiciário esgotado pelas de-
mandas oriundas da democratização de direitos, em que os processos se multiplicam,
gerando um descontentamento social em virtude da morosidade na tramitação proces-
sual. Demora que decorre da falta de estrutura do setor Judiciário para atender a essa
sociedade ansiosa por resolver seus conflitos advindos dos novos direitos constitucio-
nalizados, bem como da falta de iniciativa dos magistrados em usar os instrumentos
de que já dispõem na técnica processual, numa atitude de pro-atividade. No primeiro
caso, tem-se o que se chama de morosidade sistêmica, a qual decorre da sobrecarga
de trabalho, excesso de burocracia, do positivismo e do legalismo (SANTOS, 2007).
No segundo, observa-se a morosidade ativa, tida como aquela em que os obstáculos
são impostos pelos operadores do sistema judicial (magistrados, funcionários ou par-
tes), para impedir a sequencia normal dos procedimentos que levem ao desfecho do
caso, recusa em enfrentar a questão, casos de não decisão, por exemplo, engaveta-
mento, ações protelatórias, recursos desnecessários, etc..
O tempo, assim, é fator fundamental da atividade do juiz enquanto tercei-
ro que tem a missão de resolver conflitos, pois o tempo do processo não é um
tempo ordinário, mas sim prolongado e recuado por sessões e audiências, por
prescrições e decadências, por suspensões e antecipações de tutela.51 O tempo
do processo é um tempo impossível de se reproduzir, é um tempo único, em que
o procedimento consagra o caráter irreversível do processo. (GARAPON, 1997).
Reflete, então, uma questão de poder na relação ganha-perde, pois “a concepção
de poder passa hoje pela temporalidade, na medida em que o verdadeiro detentor
do poder é aquele que está em condições de impor aos demais o seu ritmo, a sua
dinâmica, a sua própria temporalidade” (LOPES JUNIOR, 2007, p. 134).
O tempo é, nesse sentido, um custo processual que deve ser distribuído
harmonicamente no procedimento. Esta distribuição é fundamental para que não
se discrimine uma das partes em função do lapso temporal posto à disposição da
50 Azevedo (2009), ao tratar do perfil do juiz na experiência portuguesa, diz que a crise de iden-
tidade da magistratura surge do aparecimento de novos atores no cenário judiciário, do declínio
de referências históricos, do esfacelamento de normas comportamentais e da desagregação de
discursos sólidos e fixos.
51 Nas relações entre tempo e direito, para Ost (2005) o passado se prolonga na atualidade,
sendo o juiz o guardião das promessas, pois aplica aos fatos históricos a norma previamente
estabelecida (passado), sendo que sua decisão dada no presente se reveste de segurança ju-
rídica, o que faz com que as promessas conectem-se com o futuro por meio dos compromissos
normativos da jurisprudência consolidada.
47
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
outra52. Desafio que se coloca para o magistrado enquanto terceiro que conduz
o processo com vistas à decisão. O tempo é essencial ao procedimento, porém
não se pode agir precipitadamente, sob pena de não se respeitar as exigências
mínimas de segurança e garantia do contraditório, de modo que:
52 Sobre este assunto, Baptista da Silva (1993, p.7) diz que “A sabedoria do legislador de processo
reside na partilha harmoniosa e justa desse custo necessário e que não se pode suprimir, repre-
sentado pelo tempo, de tal modo que ele não sobrecarregue apenas um dos litigantes para gáudio
de seu adversário, que sempre terá no tempo, que onera o outro litigante, o grande aliado com que
haverá de contra durante a longa travessia representada pelo Processo de Conhecimento.”
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53 Neste sentido, a Corte Europeia de Direitos Humanos julgou o caso GARCIA MANIBARDO c.
ESPANHA, conforme acórdão proferido em 15 de Fevereiro de 2000, disponível em http://www.
gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/sumariosTEDH.pdf: PROCESSO CIVIL – DIREITO
DE ACESSO AOS TRIBUNAIS –CONDIÇÕES DE INTERPOSIÇÃO DE REURSO – DEPÓSITO
DO MONTANTE DA CONDENAÇÃO.
I – O direito de acesso aos tribunais não é um direito absoluto, admitindo, por isso, restrições,
designadamente no que respeita à admissibilidade de recursos, cuja regulamentação cabe ne-
cessariamente no âmbito da margem de apreciação que é concedida aos Estados contratantes.
II – Todavia, tais restrições não podem ser de molde a afectar na sua substância o direito de
qualquer cidadão a aceder aos tribunais, e para que sejam conformes ao art. 6º § 1 da Conven-
ção têm que visar um fim legítimo, numa relação de razoável proporcionalidade entre os meios
empregues e o fim visado.
III – O fim prosseguido pela norma que impunha a consignação em depósito do montante da
condenação em 1ª instância, porque visava evitar uma sobrecarga excessiva da instância de
recurso, é em si mesmo legítimo.
IV – Atendendo, porém, às circunstâncias do caso, a não admissão do recurso da requerente por
falta da consignação em depósito do citado montante, porque não pôde beneficiar, em tempo
útil, da decisão que lhe viria a conceder o benefício de apoio judiciário, por negligência da auto-
ridade judicial, privou-a do exercício do direito de recurso, que se poderia ter revelado decisivo
na resolução do litígio.
V – Assim, a obrigação de consignação imposta pelo tribunal nacional, porque impediu a reque-
rente de se valer de um recurso legalmente previsto e disponível, constituiu um impedimento
desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais, pelo que houve violação do artigo 6º § 1
da Convenção.
49
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57 Sobre este assunto, Gonçalves (2005, p. 233-234) diz que “Os operadores do Direito, em
especial os Juizes poderiam refletir acerca do poder político contido no processo, cientes da
importância do mesmo com um instrumento de satisfação das necessidades da coletividade, e
do papel do processo e do Poder Judiciário para tanto. Este poder não pode ser um instrumento
de afirmação de novos déspotas, mas sim de cidadãos comprometidos com um processo de
redução de desigualdades” Continua afirmando que “...os operadores do Direito não podem ser
colocar em um ambiente de “assepsia” ideológica. E justamente esta postura acaba por velar
os pensamentos mais conservadores, nocivos, justamente por se apresentarem como “neutros”,
“isentos”, quando “não o são”. Então, o juiz tem papel fundamental na construção de um novo pa-
radigma do Direito e do processo, vez que sendo a “boca da lei”, tem a seu favor a possibilidade
de estabelecer novas concepções, novos referenciais teóricos, sempre consciente da ideologia
do Direito e do estado que poderia advir de suas decisões.
53
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
58 Bourdieu (2012) trabalha com o poder simbólico como um poder invisível que se legitima
pelo uso da linguagem, precipuamente, e com a cumplicidade inconsciente daqueles que estão
sujeito aos poder e mesmo daqueles que o exercem, podendo gerar uma violência simbólica,
dissimulada e não percebida a olhos vistos. No campo jurídico, em razão da cientificidade que
sistematiza e racionaliza as regras do jogo, teríamos uma violência simbólica controlada e, por
conseguinte, ordem e eficácia (simbólica). No entanto, o monopólio do recurso linguístico no
campo jurídico afasta os interlocutores não letrados e exclui da compreensão e da legitimação da
lei e da decisão o seu maior interessado que é o cidadão jurisdicionado. Assim, há violência pela
exclusão da ignorância praticada pelo detentor do poder que, devendo proteger, não percebe
que está cada vez mais excluindo ao institucionalizar espaços que deveriam ser popularizados
para efetivamente ser acessíveis.
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
Desta forma, a alteridade é vista como uma alternativa para esta proposta
de um cosmopolitismo jurídico, eis que permite uma revalorização do outro
no conflito em detrimento dos privilégios outorgados pelos modos tradicionais
de dizer e fazer o Direito, possibilitando-se, inclusive, a intervenção de outros
terceiros na resolução de conflitos que não apenas o juiz decida pelas partes que
não se responsabilizam pela composição de seus próprios dilemas, o que será
estudado na sequência.
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
3
O TERCEIRO MEDIADOR NO
TRATAMENTO DO
CONFLITO59: QUAL É
O SEU PAPEL?
3.1 O Papel Social na relação irritante entre
indivíduo e sociedade. Onde está o conflito?
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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
Para cada posição que uma pessoa possa ocupar – seja a posição de
sexo, idade, família, profissão, nacionalidade ou classe social ou ainda
de outra natureza – a sociedade possui atributos e modos de compor-
tamento, com os quais o portador de tais posições se defronta e em
relação aos quais precisa tomar uma posição. Aceitando e cumprindo
as exigências que lhe são impostas impostas, o indivíduo renuncia à
sua individualidade, mas merece a benevolência da sociedade na qual
vive. (DAHRENDORF, 1991, p. 48).
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
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Ocorre que o efeito das sanções se verifica nas expectativas dos papéis,
cuja responsabilidade da manutenção é do poder da lei e das instituições jurídi-
59
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
cas. A maioria dos papéis sociais contêm expectativas obrigatórias, mas também
a maioria conhece expectativas preferenciais, sendo a sua obrigatoriedade coer-
citiva dificilmente menor do que a das expectativas obrigatórias.
As expectativas de papéis podem multiplicar o conhecimento, porém po-
dem obrigar o indivíduo a repressões, conduzir a conflitos e com isso atingi-lo
profundamente. O fenômeno da internalização dos papéis sociais é a individua-
lização paralela das sanções que, como leis e costumes, controlam o comporta-
mento dos indivíduos. (DAHRENDORF, 1991)
Nesse contexto, deve-se compreender que o conflito não é um fenômeno
anormal, mas uma condição inevitável de desenvolvimento das sociedades. Em-
bora provoque uma irregularidade, também introduz uma situação excepcional.
Destaca-se que qualquer que seja a área, seja ela econômica-social (greve), reli-
giosa (heresia) ou política (guerra), o conflito gera uma situação excepcional, mais
acentuada ou explosiva, introduzindo uma ruptura do curso normal das coisas. Isto
é, situa-se acima do direito vigente, no sentido de que a decisão de recorrer ao
conflito não se refere a uma autorização prévia da lei. O que a caracteriza funda-
mentalmente é a ruptura que introduz no curso das coisas, e não é desmedido ou
excessos próprios de uma situação extrema. (FREUND, 1995).
O homem é um ser social, e em todas as suas ações, por mais simples e
naturais que sejam, a sociedade se envolve, motivo pelo qual o homem se sub-
mete às regras estabelecidas, aceitando posição, papel, expectativa e sanção,
fazendo que, dessa forma, sejam cumpridos os papéis, bem como que o homem
se conforme com o seu papel. (DAHRENDORF, 1991). Ao deixar de cumprir com
suas obrigações, conforme manifestado anteriormente, surge o conflito. Porém,
destaca-se que não há sociedade sem conflito, da mesma forma como conflito
não pode ser dissociado da ideia de Democracia.
Os vínculos restam estremecidos (com a retirada da liberdade dos indi-
víduos) e a consequente imposição de condutas a serem exercidas, provocam,
por conseguinte, o surgimento dos conflitos. Reconhece-se, portanto, que não
há como projetar sociedade sem conflito, pois o conflito social é indispensável à
Democracia, considerado enquanto motor e regulador dos sistemas e mudanças
sociais.
Como se percebe, um conflito pode ser negativo ou positivo, e as suas
consequências decorrem da legitimidade das suas causas. Todas as sociedades
têm sua evolução marcada por conflitos, sendo elas resultado da interação entre
os dois aspectos de conflito. Ou seja, o conflito, desde que controlado, acarreta
na produção de conhecimento e crescimento social. Portanto, não há como eli-
miná-lo, mas deve-se conviver com ele. Por essa razão, como bem refere Freu-
nd (1995), é preciso renegociar constantemente a paz, pois viver em paz é viver
em segurança. Assim, segurança e concordância, condições fundamentais para
garantir a paz, são indissociáveis.
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
dois termos distantes, mas conexos entre si. Mediar significa religar aquilo que
está desconexo justamente pelo fato de que compartilham exatamente aquilo
que os separa.
Nesse contexto, o mediador é isto ou aquilo, não equidistante, mas equi-
próximo. Por isso, deve escolher a proximidade, sujando as mãos, pois enquanto
as partes litigam e enxergam somente o seu próprio ponto de vista, cada uma
de maneira simétrica e contrária em relação à outra, o mediador pode ver as
diferenças comuns aos litigantes e partir, novamente, daqui para que as partes
restabeleçam a comunicação. (RESTA, 2014).
A seu turno, o juiz é aquele estranho ao conflito, que diz a última pa-
lavra devido a uma metalinguagem capaz de compreender a julgar sobre as
linguagens. Na mediação, vive-se no mesmo ambiente em que os conflitos
se produzem, estando-se entre as divergências e não estranha ou separada-
mente. Ainda, afirma-se que indica entre os valores extremos o ponto de igual
proximidade, de iguais intersecções de um e de outro. Representa aquilo que
os extremos compartilham, estando no meio, no ponto de compartilhamento,
no lugar comum. Se o espaço do meio for de paz ou de guerra, depende dos
participantes do jogo, os quais não podem, nem mesmo na contenda, fazer
menos um do outro.
Portanto, Resta (2014) define mediação como a arte da interpretação por
excelência, preside a decifração das mensagens, decide sobre a compatibilida-
de linguística, significando a tradução de uma língua para a outra.
Na mediação, a verdade do conflito é uma posta em comum, uma verdade
é uma ação cooperativa, pois as pessoas se transformam juntas dentro de seus
próprios conflitos. Cabe ao mediador auxiliar as pessoas a redescobrir a co-
munidade, a reencontrar-se com a paixão de estar-em-comum. A modernidade
impôs às pessoas a necessidade de fazer tudo sozinhos, e agora necessitamos
aprender a fazer tudo em comum.
O mediador, por conseguinte, caracteriza-se por ser um terceiro elemento
que se encontra entre as duas partes, auxiliando-as a encontrar uma resposta
consensuada e estruturada de forma que permita a continuidade da relação
entre as partes. Assim, o mediador consiste no terceiro que catalisa o conflito
através do posicionamento no meio das partes, partilhando um espaço comum e
participativo. “Isso se dá porque a mediação é uma arte na qual o mediador não
pode se preocupar em intervir no conflito, oferecendo às partes liberdade para
tratá-lo.” (SPENGLER, 2014, p. 52).
A figura do mediador não possui um papel central, ou seja, posiciona-se de
forma secundária, eis que seu poder de decisão é limitado, não podendo intervir ou
impor decisões. Seu papel é mediar e conciliar os interesses conflitivos, conduzindo
as partes na solução mais adequada para as necessidades e desejos delas.
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novos por ano, percebe-se que ainda se requer muito avanço da sociedade no
reconhecimento de métodos complementares de tratamento de conflitos, a fim
de perpetuar uma nova cultura de responsabilização das partes acerca dos seus
conflitos, e capacitação para apresentar uma resposta adequada.
A mediação, bem como os demais meios complementares à Jurisdição
tradicional, opõem-se à explosão de litigiosidade decorrente da quantidade e
qualidade das lides que chegam ao Poder Judiciário. (SPENGLER, 2014).
Nesse sentido, buscam-se mudanças e transformações no relacionamen-
to do Poder Judiciário com a sociedade em razão da grande insensibilidade que
sentem em face de seus problemas, dos seus direitos, da interpretação que
deles o sistema faz. É necessário que os Tribunais se vejam como parte de uma
coalização política que leve a Democracia a sério, acima dos mercados e da
concepção possessiva e individualista de direitos.
Nessa ótica, verifica-se que a experimentação social com concepções al-
ternativas do exercício do(s) direito(s) e da cidadania que atualmente se vive,
inclusive no Brasil, indica uma contribuição decisiva e criativa para a renovação
da teoria crítica do direito. (SANTOS, 2011).
A Resolução n. 125/2010, embora apresente deficiências na sua propos-
ta, corrobora com a construção de uma cultura jurídica que leve os cidadãos a
sentirem-se mais próximos da justiça, por meio do reconhecimento da ineficiên-
cia da prestação jurisdicional atual e instituição de meios complementares mais
adequado às necessidades das partes.
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CONCLUSÕES
Na discussão apresentada, aborda-se uma nova possibilidade de olhar e
estabelecer relações na sociedade a partir do Direito Fraterno. Assim, busca-se
um modelo de sociedade na qual a Justiça não seja a aplicação de regras frias,
mas esteja atrelada a uma moral compartilhada entre iguais, ou seja, um modelo
de sociedade na qual a amizade seja entendida como relação pessoal e como
forma de solidariedade.
Dessa maneira, verifica-se que o Direito Fraterno constitui-se em um me-
canismo de promoção dos direitos humanos, pois valoriza o ser humano na sua
relação com iguais, defendendo um espaço em que as pessoas compartilham
sem diferenças, porque respeitam todas elas. São postulados éticos e primários
de toda ordem moral e jurídico-positiva de cujos limites nenhum poder político
pode afastar-se. São balizadores de todo poder político da sociedade organi-
zada, fundados na natureza racional do ser humano, portanto universais. São,
portanto, princípios e valores.
Compreende-se, nesse rumo, que o Direito Fraterno é um direito jurado,
em conjunto, por irmãos, homens e mulheres, com um pacto em que se ‘decide
compartilhar’ regras mínimas de convivência. Destarte, o olhar fraterno é, antes
de tudo, um olhar para os direitos humanos, e não para o direito de cidadania
(sempre lugar de exclusão individualista); é para a humanidade como um lugar
comum e universal, mas não universal no sentido de homogêneo, que mascara
as diferenças.
Dessa forma, fundamenta-se no processo comunicacional, no tratamento
alternativo e efetivo de conflitos, no diálogo e consenso, bem como no respeito
absoluto aos direitos humanos e na dignidade de pessoa humana, revelando-
se, portanto, preconizador do Estado Democrático de Direito e assecuratória de
seus princípios e valores.
Nesse sentido, a resolução dos conflitos pela intervenção estatal pode
acentuar/reconhecer as diferenças e desproporcionalidades, conforme vislum-
brado na relação triádica tradicional.
Por sua vez, a mediação caracteriza-se por propor uma outra cultura, me-
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