Você está na página 1de 87

Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

Charlise Paula Colet Gimenez


Fabiana Marion Spengler
Karina Schuch Brunet

O PAPEL DO
TERCEIRO E AS
INTERROGAÇÕES
DO CONFLITO
SOCIAL

1
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Charlise Paula Colet Gimenez


Fabiana Marion Spengler
Karina Schuch Brunet

O PAPEL DO
TERCEIRO E AS
INTERROGAÇÕES
DO CONFLITO
SOCIAL
1ª edição

Santa Cruz do Sul

2015
2
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil
Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia
Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil

COMITÊ EDITORIAL
Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil

3
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Essere nel Mondo


Rua Borges de Medeiros, 76
Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul
Fones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269
www.esserenelmondo.com.br

Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste


livro poderá ser reproduzida por qualquer meio impresso,
eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e ex-
presso consentimento da Editora. A utilização de citações
do texto deverá obedecer as regras editadas pela ABNT.

As ideias, conceitos e/ou comentários expressos na presen-


te obra são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es),
não cabendo nenhuma responsabilidade à Editora.

Prefixo Editorial: 67722


Número ISBN: 978-85-67722-34-4

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406


Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Correção ortográfica: Rodrigo Bartz
Diagramação: Daiana Stockey Carpes

4
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

Sumário

PREFÁCIO 5

INTRODUÇÃO 8
11
1 AS ALIANÇAS SOCIAIS BASEADAS NA AMIZADE: É POSSÍVEL LIDAR
COM O CONFLITO SEM A PRESENÇA DO TERCEIRO?
1.1 A privatização da relação pública da amizade: é necessária a intervenção 11
do Estado?
1.2 A philia grega era disposição de caráter que desejava o bem do outro? 16
1.3 A vontade individual dos amigos era subordinada as regras do Estado na 21
amicitia romana?
1.4 As relações entre philia, amicitia, confiança e justiça: do moral ao legal? 25

2 O JUDICIÁRIO EM UM CONTEXTO DE DEMOCRATIZAÇÃO DE DIREI- 31


TOS: QUAL O PAPEL DO JUIZ COMO TERCEIRO NA RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS?
2.1 Do conflito interpessoal ao conflito do próprio Judiciário: por onde passamos? 31
2.2 Basta dizer o direito para resolver o conflito? 37
2.3 A atuação judicial independente e responsável é suficiente para a resolu- 43
ção da diversificada conflituosidade social?

3 O TERCEIRO MEDIADOR NO TRATAMENTO DO CONFLITO: QUAL É O 56


SEU PAPEL?
3.1 O Papel Social na relação irritante entre indivíduo e sociedade. Onde está 56
o conflito?
3.2 O Papel Sociológico do Terceiro. Como fazer com que um conflito seja 61
construtivo?
3.3 A Mediação no Brasil a partir da Resolução 125/2010 do Conselho Nacio- 70
nal de Justiça. Há tratamento do conflito?

CONCLUSÕES 75

REFERÊNCIAS 77

5
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

PREFÁCIO
A atuação dos poderes de Estado, incluindo o Judiciário, tem sido alvo de
agudas críticas nas últimas décadas. Parte dessas críticas é pertinente, parte
não. Parte, delas, têm base em razões fundadas, outra não.
Entre as infundadas estão aquelas alinhadas a partir das premissas ul-
traliberais (neoliberais) de que a sociedade não seria outra coisa senão um
aglomerado de unidades individuais, cada qual interessada em minimizar a dor
e maximizar o prazer. Nesse viés, a ação do Estado deveria limitar-se às fron-
teiras estabelecidas pelas liberdades individuais e ser útil para o alcance das
expectativas e desejos individuais. O Estado não passa de um mal necessário,
sendo “excessos” a pretensão dos poderes públicos tentar induzir o proces-
so de desenvolvimento, buscar regular e intervir na economia, e oferecer um
amplo leque de serviços públicos à custa de significativa carga de impostos.
O alvo do ultraliberalismo, como se sabe, é o Estado de Bem Estar (welfare
state). A retórica ultraliberal reproduz um conhecido dualismo: explica a política
e a sociedade com base na bipolaridade Estado x mercado e público x privado,
conferindo prioridade ao segundo polo. Esse enfoque dá sustentação a parce-
la importante das críticas aos insucessos estatais. É uma via que não oferece
alternativas plausíveis para a democracia, a inclusão social, o empoderamento
e a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
As críticas pertinentes ao Estado são de outra ordem. Miram o estatismo,
ou seja, a exacerbação do estatal na vida social, assim como o seu oposto, o
privatismo, a exacerbação dos valores do mercado. Parte-se aqui da premissa
de que a vida social não pode ser resumida à bipolaridade Estado x mercado,
até porque ambos são fenômenos recentes na história da humanidade. As raí-
zes do Estado atual (dos Estados nacionais modernos) remontam ao século
XV, enquanto a economia capitalista de mercado assenta-se no processo da
Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. Interligados, Estado e
mercado são polos constituintes da vida das sociedades ocidentais nos últimos
séculos, mas a vida em sociedade não se resume a esses polos. Há aspectos
fundamentais da vida humana – facetas que se revelaram ao longo da evolução

6
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

da vida humana por muitos milhares de anos – que dizem respeito a outra esfera.
Estima-se que o homo sapiens tenha surgido há cerca de 80.000 anos
e nossos ancestrais mais remotos, há mais de 4 milhões de anos. Ou seja:
em 99% da trajetória humana não houve nem Estado nem mercado. Por isso,
o foco exclusivo nas estruturas estatais ou na dinâmica do mercado não al-
cança o essencial à vida em sociedade. Amizade, solidariedade, fraternidade,
cooperação, comunidade, entre outros princípios, reportam-se a outra esfera da
vida humana, a esfera comunal. Trata-se de um âmbito que abrange relações
interpessoais não redutíveis à lógica dos poderes instituídos (Estado) nem do
interesse privado (mercado). A esfera comunal está articulada à esfera estatal e
à mercantil, contudo distinta. Juntas formam o tripé das sociedades ocidentais
atuais, nas quais vêm se assistindo o excesso ora de um polo (estatismo) ora de
outro (privatismo). Estamos diante do desafio de construir o equilíbrio do tripé, o
que requer fortalecer o polo comunitário.
O equilíbrio das três esferas (Estado, comunidade e mercado) exclui qual-
quer excesso do comunitário, que seria uma espécie de revanche ao estatismo e
ao privatismo. A noção de equilíbrio, das esferas sociais, leva ao esforço de pen-
sar os serviços públicos e o atendimento das necessidades coletivas para além
das duas alternativas usuais – a prestação direta pelo Estado ou a privatização.
Esse novo olhar (assentado em clássicas lições, que remontam a Aristóteles e
passam por uma grande variedade de tradições do pensamento social) nos leva
a considerar formas alternativas de Justiça, como a mediação e a conciliação;
a recuperar a importância dos serviços de saúde, de educação e de assistência
social prestados por instituições comunitárias; a prestar atenção nas formas co-
munitárias de comunicação; a reconhecer a relevância política e econômica do
terceiro setor, constituído por organizações cooperativas e associativas.
Sob esse pano de fundo, a contribuição do livro “O papel do terceiro e as
interrogações do conflito social” transborda o âmbito do Direito e ajuda a pen-
sar as transformações do Judiciário no contexto mais amplo do Estado e das
políticas públicas. O livro, de maneira evidente, é mais uma bem sucedida obra
de pesquisadoras e pesquisadores orientados pela Profª Fabiana Spengler a
evidenciar o vigor das formas comunitárias, especialmente a mediação, no pro-
cesso de renovação do Judiciário. Conforme se mostra, não se trata apenas de
desafogar o Judiciário, submetido a um conjunto impressionante de demandas
da sociedade: trata-se de conceber “outra cultura, mediante práticas consen-
suadas e autônomas que devolvem à pessoa e à comunidade a capacidade de
lidar com o conflito inerente a sua existência”. O lento processo de renovação do
Judiciário requer, de muitos operadores do Direito, a inteligência, a capacidade
e o comprometimento demonstrados pelas autoras da presente obra.

Prof. Dr. João Pedro Schmidt

7
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

INTRODUÇÃO
A amizade assume importância na organização, manutenção e coesão
dos grupos sociais, porém, não existem histórias detalhadas dos vínculos gera-
dos a partir dela em nenhuma grande civilização, ocidental ou oriental. Todavia
conhecermos textos que refletem grandes amizades como aquela entre Mon-
taigne e la Boétie (1999), no qual a relação diz respeito a um sentimento com-
plexo e desordenado o que dificulta sua delimitação exata.
Porém, mesmo desordenada, a amizade vem sendo usada, politicamen-
te, como pacto ou contrato que ultrapassa os limites emocionais e opera como
meio de manutenção das alianças sociais firmadas, gerando hipóteses mais
adequadas para lidar com os conflitos nascidos de tais relações. Essa seguran-
ça quanto ao pactuado se dá especialmente em função de sentimentos correla-
tos a amizade como, por exemplo, a fidelidade, a confiança e a gratidão.
Porém, aqui se fala de uma fidelidade, uma confiança e de uma gratidão
que não são normatizados ou legalizados, que nem mesmo são mencionados,
porque compõe o mundo dos sentimentos e não o mundo da justiça. Tudo isso
porque, conforme Aristóteles (2004), onde existe amizade não precisamos de
justiça. Onde impera a amizade, a boa-fé e a confiança não precisam ser po-
sitivadas, garantidas legalmente. Elas fazem parte de um contexto vivido e ex-
perienciado pelos amigos. Se amizade deixa de ser argamassa, cimento social,
então precisamos das garantias do direito.
É nesse sentido que o primeiro capítulo teve como objetivo investigar a
amicitia romana e a philia grega como possibilidade de lidar com o conflito pres-
cindindo da figura de um terceiro (mediador ou juiz) em função da capacidade
existente entre os contendentes (capacidade essa baseada na amizade) de lidar
com a desordem conflitiva de maneira mais adequada .
Finalmente, a amizade e os seus aspectos políticos foram visitados en-
tremeando sua conotação histórica com outras categorias como a justiça e a
confiança.
Acontece, entretanto, que quando a amizade não é suficiente para a neu-
tralização ou tratamento do conflito, faz-se necessária a presença do terceiro

8
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

juiz ou mediador, sendo o primeiro excessivamente demandado eis que se apre-


senta como uma figura coercitiva que se coloca no papel de decidir pelas partes,
impondo seus comandos aos conflitantes que lhe transferem a responsabilidade
pela resolução dos conflitos que não foram capazes de resolver. E vive-se, hoje,
em uma época em que o juiz teve de assumir o papel de instância moral da so-
ciedade, como afirma Garapon (1999).
Esta transferência de responsabilidades não é novidade. Tem sua origem
histórica, caso resgatado, no direito greco-romano, mas que, nesta obra, será
retomada a partir do Estado Moderno para que se possa compreender a ideia
do juiz que diz a lei em nome do Estado e toma para si o monopólio da violência
legítima com a pretensão de decidir conflitos.
Há de se observar, assim, que não se desconhece a carga etimológica do
“resolver” e sua distinção em relação ao “tratar” quando se trabalha com o tema
de terceiro e conflitos, mas no capítulo em que se propõe a discutir o papel do
juiz na relação conflituosa, faz-se a opção linguística pelo uso da terminologia
“resolução de conflitos”. Em termos de sentido, resolver significa justamente de-
cidir uma questão, solucionar um problema, o que revela exatamente aquilo que
as partes esperam do juiz em relação aos seus conflitos e, não raro, o que o juiz
pensa que efetivamente faz ao “entregar” a jurisdição no afastamento ideológico
entre mundo fático e mundo jurídico.
Em decorrência das pressões centrífugas, da desterritorialização da pro-
dução e da transnacionalização dos mercados, percebe-se que o Poder Judiciá-
rio tem enfrentado o desafio de alargar os limites da sua jurisdição, modernizar
as suas estruturas organizacionais e rever seus padrões funcionais para perma-
necer com o status de poder autônomo e independente.
Nesse rumo, o Conselho Nacional de Justiça propôs novos mecanismos
de tratamento de conflito, fundamentados em uma nova ideia de jurisdição, de
uma autorregulação dos conflitos pelo sistema social, na qual se inserem a con-
ciliação1 e a mediação.
A Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça instituiu a
Política de Tratamento adequado de Conflitos, primando pela qualidade da pres-
tação jurisdicional como garantia de acesso à ordem jurídica justa. A referida
resolução tem por escopo assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por
meios adequados à sua natureza e peculiaridade.
A concretização do reconhecimento, pelo Brasil, de métodos de tratamen-
to de conflito como resposta adequada ao conflito decorre da ineficiência das

1 Consoante dispõem Morais; Spengler (2012), a mediação e a conciliação são institutos afins,
porém diferentes. A conciliação tem por objetivo chegar voluntariamente a um acordo neutro a
partir da participação de um terceiro que intervém, inclusive com sugestão de propostas aos
litigantes. A seu turno, a mediação, conforme será abordada neste trabalho, tem natureza auto-
compositiva e voluntária, no qual um terceiro imparcial facilita a comunicação entre as partes,
dando espaço para que estas apresentem a resolução adequada ao seu conflito.

9
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

práticas tradicionais, vislumbradas pelo monopólio do Estado, por meio do Poder


Judiciário, o qual enfrenta uma crise de efetividade – qualitativa e quantitativa.
Por essa razão, no terceiro capítulo, dedica-se ao estudo do mediador, em
especial, do terceiro mediador e seu papel no desenvolvimento de uma cultura
de paz, pautada pelo diálogo, comunicação, responsabilização e empoderamen-
to das partes.

10
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

1
AS ALIANÇAS SOCIAIS
BASEADAS NA AMIZADE:
É POSSÍVEL LIDAR COM O
CONFLITO SEM A
PRESENÇA DO TERCEIRO?

1.1 A privatização da relação pública


da amizade: é necessária a intervenção
do Estado?
Não é por acaso que Cícero (2001, p. 24) dá início ao seu texto intitulado
“Da Amizade” afirmando “eu só posso exortar-vos a antepor a amizade a todas
as coisas humanas, pois nada há que tanto se conforme à nossa natureza, nem
convenha mais à felicidade ou à desgraça”.
O fato é que a palavra amizade é difícil de ser definida, porque não possui
um único significado, todavia diversos. Tal realidade data das civilizações gregas
e romanas. Há dois mil anos Aristóteles já se angustiava e escrevia sobre a dis-
tinção entre os tipos de amizade objetivando identificar, entre eles, aquela que
fosse “verdadeira”.
Desse modo, o que se percebe é que embora o núcleo da amizade - ex-
pressado por la Boètie (1999), dentre tantos outros – bondade, naturalidade e
reciprocidade – permaneça o mesmo, sua aparição é proteiforme, podendo con-
fundir-se com aquilo que a imita e a nega. Afinal, entre os corsários também há

11
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

alguma fé na partilha do roubo porque são pares e companheiros.


Numa primeira análise, a amizade parece confinar-se ao momento em
que a natureza, operando sozinha, cria e conserva os companheiros numa
espécie de natural sociabilidade e, ao findar sua obra com o advento da
sociedade política, só restam alguns que guardam na lembrança a instante
anterior, como se, no presente, a amizade fosse apenas memória do que pre-
cedeu a desnaturação. Sob o efeito das ilusões necessárias que presidem a
cisão da vontade e a criação e mantimento da sociedade, parece mudar de
forma (confundida com adulação e cumplicidade), de qualidade (de natural
vira cultivo), de quantidade (de todos sobraram alguns), de tempo (de pre-
sente se fez memória) e de lugar (do centro da sociabilidade ruma para a
periferia). (LA BOÉTIE, 1999).
Mas, se a amizade é assim difícil de ser definida e possui esse aspecto
poliforme, o que se poderá, então, esperar de um amigo? Que compartilhe a
imagem que tenho de mim mesmo ou, pelo menos, que não se afaste demais
dela? Sim, porque se é favorável demais, dá a impressão de bajulação. Se é
muito negativa pode trazer a sensação de injusta contradizendo uma exigência
básica da amizade. Assim, os amigos devem ter imagens recíprocas semelhan-
tes.2 Não idênticas, naturalmente, pois então não haveria nada para descobrir,
mas sem excessivas dissonâncias.
Durante muito tempo a humanidade conviveu com relações de amiza-
de sólidas, com vínculos estreitos e duradouros, na real acepção do termo.
Nesse período não estavam positivadas (até porque era desnecessário) leis
e regras sobre a organização e a manutenção do liame social. A amizade
era o cimento que unia e fortalecia essas relações. Ela se mantinha median-
te um código binário dividido entre amigo/inimigo que era o suficiente para
apontar as relações que deviam ser tuteladas e aquelas que eram objeto de
repulsa.
Atualmente, verificamos a permanência do jogo político que envolve o có-
digo binário amigo/inimigo. Porém, a amizade perdeu a capacidade de coesão e
fortalecimento dos laços sociais e foi substituída pelas leis e regras positivadas,
que preveem, necessariamente, a figura de um terceiro que diz o direito (juiz) ou
que intermedia o diálogo (mediador).3
Nessa linha, a amizade se distancia da esfera pública (organização e coe-
são social, sentido de pertencimento) e se aproxima da esfera privada (laços de

2 “Contemplar-se no espelho do olhar amigo é a condição da sabedoria, pois somente o Uno


se conhece a si mesmo sem a mediação de outro. Se o amigo é ‘Um outro nós mesmos’ e se
para os homens sábios e virtuosos é impossível a auto-suficiência do Um, a amizade, suprindo
a carência, imita a perfeição. ‘Substituindo a contingência do encontro pela inteligibilidade da
escolha refletida, a amizade introduz no mundo sublunar um pouco daquela unidade que Deus
não pode fazer descer até ele’”. (CÍCERO, 1999, p. 203).
3 O mesmo se deu com a confiança que passou a ser juridicizada e se dividiu em boa e má-fé.

12
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

parentesco e consanguíneos, vínculos inerentes as relações de trabalho e de


lazer). Porém, em ambas as esferas conta-se com a intervenção estatal para sua
manutenção e inclusive na resolução de conflitos dela advindos (se possuírem
um viés legal, positivado). O fato é que perdemos amigos na acepção verdadei-
ra, legítima do termo e ganhamos conhecidos4 ou companheiros.5 Convivemos
com eles de maneira harmônica ou conflituosa, todos sob o jugo do olho impla-
cável do Estado que institui e aplica as regras determinando nossas relações
públicas e privadas.
A importância das relações verdadeiras de amizade se perdeu. Atual-
mente, mesmo quando as pessoas se referem a um amigo, já não o fazem na
acepção grega ou romana do termo. Assim, contemporaneamente “os amigos
são também desconhecidos, não vistos, não avizinhados”, desse modo “eles
se furtam ao vínculo da reciprocidade quotidiana, construída a partir de um ar
comum que se respira. Pode-se compartilhar a vida sem compartilhá-la”. (RES-
TA, 2005, p. 4).
A mola propulsora desse processo de particularização da amizade acon-
tece com a familiarização6 da sociedade e o, consequente, esvaziamento do
espaço público.7 Nesse ínterim, o destino da amizade desemboca na absorção
de toda forma de sociabilidade na estrutura familiar. Isto posto, o processo de
“desaparecimento da sociabilidade pública, de esvaziamento do espaço públi-
co, corresponde o surgimento da família moderna, a qual monopolizou outras
formas de sociabilidade”. Por conseguinte, segundo Ortega (2002, p. 107) esse
processo conjugado a outros fatores como o surgimento da categoria de “ho-
mossexuais”, a conjugalização do amor e a incorporação da sexualidade no
matrimônio, constituiu os principais determinantes do declínio das práticas de
amizade no século XIX.
Segundo Ortega (2002) três fatores fundamentais teriam condicionado o
processo de privatização e de empobrecimento do tecido relacional das socie-

4 “Un conoscente, direi, è uma persona che si conosce anche da molto tempo, ma che in genere
non ci si propone mai di incontrare senza alcuna ragione precisa”. (EPSTEIN, 2008, p. 14).
5 “Un compagno è, come dice il termine, qualcuno con cui capita di essere em compagnia; un
accompagnatore può essere qualcuno che viene impiegato a pagamento, per esempio qualcuno
che una persona anziana paga perché stia con lei durante una convalescenza. A volte compagno
e accompagnatore vengono utilizzate come parole in codice per amante, altra cosa che non ci
aiuta molto...” (EPSTEIN, 2008, p. 14-15).
6 Esse movimento de transformação das ligações familistas não será objeto de análise na pre-
sente pesquisa em função de questões de espaço e tempo. Sobre o assunto é importe a leitura
de ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001; ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução de
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2 v. ARENDT, Hannah. Condição humana.
Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
7 Não é mais o “público” que tende a colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado
que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser ex-
presso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, das angústias e iniciativas
privadas. (BAUMAN, 2001).

13
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

dades ocidentais:
a) o fato de que o Estado passou a desempenhar um novo papel a
partir do século XV, intervindo cada vez com mais frequência no espaço so-
cial antes entregue às comunidades. O processo de formação dos Estados
modernos e de centralização da sociedade, que tem como correlato a reor-
ganização e mudança histórica da economia psíquica, apontam na mesma
direção ao sublinhar o papel decisivo exercido pelo Estado na conformação
da vida privada e da sociabilidade, a qual segue um caminho de crescente
privatização e intimização. Como principal consequência desse movimento o
Estado passou progressivamente a interferir e a gerenciar mais diretamente
a vida dos indivíduos;
b) um segundo fator importante nesse processo foi o desenvolvimento
da alfabetização, assim como a difusão da leitura favorecida pela invenção da
imprensa, que permite uma forma de reflexão solitária; a própria solidão mudará
de status, não se associando mais com o tédio e passando-se a desenvolver, a
partir do século XVII, um gosto pelo retiro solitário;
c) por fim, as novas formas de religião permitiram o desenvolvimento de
maneiras de devoção privadas e de meditação solitária. Evidentemente, esse
processo de privatização nas sociedades ocidentais desde os séculos XVI e XVII
condicionou as formas de sociabilidade e a amizade em particular.
Na Grécia, a philia se colocava acima da família, estava ligada ao
espaço público, à ação em liberdade, à política. Provavelmente a tradição
cristã fraternalista contribuiu, historicamente, para essa primazia das ima-
gens familiares sobre as da amizade. Da mesma forma, o ideal romano de
confiança e lealdade ao amigo, a fides, se transformou na confiança total em
Deus. Consequentemente, o cristianismo substituiu a intimidade dos amigos
por um laço de amor e caridade que abraça todos sem restrição. Assim, tem-
se o alargamento da amizade e o seu esvaziamento político. A amizade que
anteriormente se voltava para a polis agora é caridade (caritas), voltada ao
amor divino e ao paraíso.
A caritas significa o amor ao próximo e a uma totalidade, um amor co-
munitário amplo, descolado da singularidade e da particularidade de um amor
“a dois”. Então, conclui-se que a Amicitia não é ágape, e essa substituição leva
a despersonalização de tal sentimento tornando o caridoso mas sem afeto. A
amizade cristã enquanto amizade perfeita é aquela que torna sem qualidades
as amizades vividas, aquelas reais. É inerente ao cristianismo a substituição da
amizade pelo ágape, considerado uma forma de amizade perfeita.
Desenha assim a ambivalência entre amizade e amor no cristianismo.
A amizade tornou-se uma relação suspeita e o amor (a Deus e ao próxi-
mo) era o meio de se libertar. Assim como a amicitia romana, a philia grega
também é rejeitada por seu caráter egoísta e instrumental, ao passo que o
agape representa amizade verdadeira, por não manifestar uma atração inter-

14
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

pessoal. Dizendo de outro modo, o amigo não deve mais ser amado por si
mesmo, mas por Deus.
A philia torna-se assim caritas christiana, o amor de Deus que une todos
os homens. Caritas constitui a essência do amor do amigo no cristianismo. (OR-
TEGA, 2002).
Possível perceber, assim, como as concepções das relações de amizade
enquanto pertencentes à intimidade, desconectadas e distanciadas do público,
e, muitas vezes, incorporadas nas relações de parentesco – o que atualmente
parece natural e inquestionável –, são, na realidade, um fenômeno recente, ini-
ciado no século XIX.
Essa nova forma de ver a amizade - agora conhecida e reconhecida
como fraternidade, embalada pelo amor divino - inclui por que exclui, avizinha
por que distancia, reconstrói tecidos vitais enquanto destrói outros; parece,
como o amor, uma improbabilidade normal. Este é o grande divisor de águas
entre a philia do mundo antigo e a amizade dos sistemas sociais modernos;
ao passo que a primeira é o que cimenta a cidade, sendo, portanto, pressu-
posto de qualquer vida política que generaliza o privado, reproduzindo-o na
vida pública, a segunda não reitera o próprio modelo comunitário, mas o se-
para, o diferencia dele quase se imunizando da condição de estranhamento,
senão da inimizade, que atravessa a esfera pública. Por isso, está exposta
aos riscos de interferência e, quando vence, inserindo-se na esfera pública,
está pronta a transformar-se, na melhor das hipóteses, em incidente trans-
versal, quando não em confusão a ser eliminada, em dimensão irrelevante a
ser deixada de lado em virtude da separação entre a vida privada e afetiva e
a vida pública, quando, até mesmo, não seja identificada com a familiarida-
de e a particularidade; de resto, não é raro que os detentores do poder não
escolham os competentes, mas os que lhe são leais, delegando confiança à
amizade e perpetuando a desconfiança da luta política. (RESTA, 2005).
Essa trajetória abre caminho, na modernidade, por intermédio de uma clara
separação, impensada no mundo antigo, entre a amizade e o amor. Contra o risco
de uma expansão demasiado pessoal e, por conseguinte, egoística, da amizade,
foi recomendada charitas generalizada que impõe amar a Deus em cada um do
outros homens. Enquanto a amizade mundana deixa campo livre à qualidade dos
indivíduos (“perché sei tu”), a amizade caridosa lhe é estranha e escolhe a impes-
soalidade. (RESTA, 2005).
Nesse caminho, e dando continuidade ao debate que compara philia gre-
ga, amicitia romana e amizade moderna (fraternidade) o item a seguir investiga-
rá a philia grega.

15
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

1.2 A philia grega era disposição de caráter


que desejava o bem do outro?

O conceito e a delimitação grega de philia8 aparece em Heródoto no sécu-


lo V a.C. Porém, Phílos9 (palavra descendente de philia) foi utilizado por Homero
com sentido possessivo (predominante) e afetivo. Na acepção possessiva, phí-
los não se refere a uma relação de amizade, constitui sim uma marca de posse
sem referência a pessoa, dizendo respeito ao: “seu” ou “meu”, poderia também
designar animais, objetos ou partes do corpo, etc. (ORTEGA, 2002).
Já no sentido afetivo, philos é expressão de relações próximas ou de pa-
rentesco. “O significado do verbo philein é também ambíguo, designando a ação
da influência sobre as pessoas que são protegidas: mulheres, crianças, paren-
tes, escravos. Philein também possui o sentido de exprimir a hospitalidade, de
receber estrangeiros, e de se beijar, como um sinal de reconhecimento entre os
phíloi, como aparece em Heródoto referindo-se ao comportamento entre os per-
sas”. (ORTEGA, 2002, p. 17-18).
É importante salientar que a philia foi tema filosófico bastante discutido
na antiguidade clássica. A estrutura social da Grécia, dessa época, reservava
um “lugar” muito especial para a amizade, o qual, nos dias de hoje, infelizmente,
não mais existe. Pelo menos não com aquela significância pessoal e intensidade
ético-política. (ALBORNOZ, 2010).
Na Grécia clássica a amizade e a hospitalidade (xenia) são relações muito
próximas a tal ponto de definirem os amigos e os estrangeiros.10 A instituição da
xenia é uma maneira de se relacionar com o estrangeiro, através de um vínculo

8 O “Vocabulário grego de filosofia” (traduzido para o italiano) conceitua philia como “legame af-
fetivo tra due esseri umani. Deriva del verbo philo. L’amicizia è considerata daí filosofi greci uma
virtù, o per lo meno, come scrive Aristotele ‘essa è acompagnata dalla virtù’ [...] Essi considerano
il termine nel senso stretto di affezione reciproca, mentre la philia possiede un significato ben piú
ampio”. (COBRY, 2004, p. 167).
9 “Antes de definir o conceito de philia, “amizade”, há que definir concretamente o que significa
philos, “amigo”, termo ambíguo que implica, por exemplo, a distinção entre amante, aquele que
sente amor ou amizade, no qual, digamos, se inicia o desejo de posse do objeto do seu amor,
e amado. Podemos usar, respectivamente para cada um, as expressões termo o ativo e termo
passivo”. (PLATÃO, 1995. p. 23).
10 “A tradição do pensamento político sobre a hospitalidade, desde Platão a Kant e Hegel, pensa
hospitalidade nas categorias jurídicas do pacto, do contrato, do juramento, etc, isto é, exclusiva-
mente, como hospitalidade condicional. [...] Lévinas [...] ao deslocar a categoria da hospitalidade
para o centro de sua reflexão ética e definir a relação com o outro como hospitalidade, repre-
senta uma exceção significativa. Pois o contrato da hospitalidade restringe a hospitalidade ao
reconhecimento do estatuto social, familiar e político dos contratantes, ao controle da residência
e do período de estadia e deixa fora aquele que chega anonimamente, que não possui nome,
patrimônio, linhagem, estatuto social, ou pátria; ou seja, esse indivíduo que os gregos não trata-
vam como estrangeiro, mas como bárbaro, como outro sem nome, ou nome de família.” (ORTE-
GA, 2002, p. 20).

16
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

de longa distância que inclui obrigações e benefícios recíprocos. Se comparado


ao vínculo dos philói, a xenia se diferenciava por que era uma relação na dis-
tância. Tal fato implicava a separação física dos participantes, pois essas redes
aristocráticas se estendiam para além das cidades e até do mundo grego. Desse
modo, a instituição da xenia possuía e cumpria uma “função político-estratégica
definida: as comunidades da época se encontravam em uma situação de des-
confiança e hostilidade entre elas, de “paz armada”, a xenia era uma forma de
garantir proteção, apoio e armamento ao estrangeiro”. A partir do momento em
que as polis11 se formaram as redes de xenias continuaram existindo, o que con-
tribuiu para a manutenção de um forte componente de ritualização e institucio-
nalização nas relações afetivas predominantes na polis. (ORTEGA, 2002, p. 22).
Além da philia, a Grécia antiga possuía também outra espécie de asso-
ciação entre amigos chamada de heteria que era a relação política de camara-
dagem militar, uma espécie de fraternidade em armas ou de um “clube político”,
no qual os homens da mesma idade e camada social ingressavam na juventude
e permaneciam até a velhice. A heteria constituía um elemento indispensável da
vida política na polis. Uma relação que se articulava como vínculo de amizade.
Além disso, ela perpassava horizontalmente as estruturas básicas de parentes-
co, ligando e unificando os diferentes centros de poder. A heteria representava
um forte vínculo afetivo, uma “amizade expressiva”. Justamente por isso era
uma das instituições sociais mais fortes e persistentes do mundo grego, a qual
conseguiu manter-se através de numerosas mudanças de governo e revoluções.
(ORTEGA, 2002).
Assim, na Grécia homérica a amizade não aparece definida de uma forma
clara e única, existindo numerosos tipos e noções. Muitas relações de amizade
eram relações institucionalizadas que deixavam pouco espaço para a liberda-
de de escolha, espontaneidade e preferências pessoais. Esse tipo de amizade
exercia as funções de coesão social e proteção em um mundo descentralizado,
que não podia garantir a vida dos indivíduos, representando uma possibilidade
de assegurar a existência e a manutenção da sociedade. (ORTEGA, 2002).
Porém, com a evolução do conceito de philia, as relações de parentesco
vinculadas à amizade se enfraqueceram até se dissociar completamente. A amiza-
de passou a ser definida pelo seu caráter de livre escolha e afeição pessoal trans-
formando-se em uma instituição independente. A principal consequência quanto
as relações interpessoais foi a separação dessas das relações institucionalizadas.
Porém, tal não ocorreu quanto a relação de philia. Esta manteve, durante toda
época grega clássica uma forte dimensão institucionalizada e ritualizada.
Desse modo, era possível observar que as relações de afeto eram esta-
belecidas normativamente e as tarefas da amizade eram institucionalizadas. Tal

11 “Comunità urbana alla quale occorre dare uma costituzione, che sarà la politeia; lo stesso
termine polis può significare Stato, poiché ogni città greca costituiva anche uno Stato.” (GOBRY,
2004, p. 178).

17
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

se deu porque na polis grega, as relações de amizade desempenhavam um pa-


pel considerável, mas existia um enquadramento institucional suplementar que
implicava um sistema de obrigações, deveres e tarefas recíprocos, o estabeleci-
mento de uma hierarquia entre amigos, etc. As relações de amizade formavam
os átomos da polis, a condição de sua sobrevivência. (ORTEGA, 2002).
Nesse contexto, Platão12 debate a amizade como base da busca pela
verdade característica própria da filosofia. Em Lísis, o diálogo ressalta a ideia de
que a amizade implica comunhão de bens materiais e espirituais, tornando-se,
assim, uma coisa útil. Também salienta que existe distinção entre “aquele que
ama” e “aquele que é amado”. Desse debate também cria a diferença entre o
amigo e o inimigo.
Na verdade, antes de definir o conceito de philia, “amizade”, há que definir
concretamente o que significa philos, “amigo”, termo ambíguo que implica, por
exemplo, a distinção entre amante, aquele que sente amor ou amizade, no qual,
digamos, se inicia o desejo de posse do objeto do seu amor, e amado. Podemos
usar, respectivamente, para cada um, as expressões termo ativo e termo pas-
sivo. Assim, Platão afirma: “amigo não é o que ama, mas sim o que é amado”.
(PLATÃO, 1995, p. 47).
Percebe-se na obra de Platão uma forte conotação erótica na análise da
amizade.13 Tal se dá em função da “ausência de fortes vínculos maritais e de
amor conjugal, assim como a separação estrita dos sexos – designando luga-
res específicos para cada um -, levou a polis clássica a concentrar a paixão e a
ternura nas relações entre homens”. (ORTEGA, 2002, p. 25). Avista-se assim o
privilégio do culto da amizade e do amor masculino.
Como ao sexo feminino era atribuída pouca importância (as mulheres
eram afastadas da esfera pública, relegadas ao espaço doméstico), as relações
masculinas (entre homens) eram marcadas pela afeição e pelo significado emo-
cional. Desse modo, os discípulos, tradicionalmente rapazes belos, eram os
substitutos das mulheres por possuírem semelhança física com elas, sendo con-
siderados objetos de desejo.
Assim, as relações de amizade (que se estabeleciam necessariamente
entre homens, pois as mulheres eram consideradas incapazes de mantê-las)
eram relações erotizadas. Tais relacionamentos pressupunham a liberdade dos
indivíduos envolvidos que vinha visivelmente expressa no jogo da sedução, na

12 Importa dizer que a base para o debate aqui se iniciado foram os diálogos de Platão nos quais
o filósofo aborda a philia diretamente: no Lísis, no Banquete e no Fedro. O primeiro deles (Lísis)
foi aquele que centralizou o interesse do presente texto. Tal se deu porque, apesar do caráter
aporético do texto, é, todavia, aquele que mais se aproxima da definição do conceito de amizade.
13 Tal conotação erótica exposta na obra platônica pode vir ilustrada pela referência expressa a
eros no Banquete: “... de todos os lados Eros é considerado extremamente antigo. Sendo o mais
antigo, é Também a causa de nossos maiores bens; por mim, não saberia dizer nada melhor para
o jovem, no seu primeiro crescimento, que um verdadeiro amante, nem, para um amante nada
melhor que seus amores”. (PLATÃO, 1977, p. 178c-178b).

18
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

possibilidade de dizer “não” e na recusa do cortejo. Apenas homens livres pode-


riam ser destinatários dessa relação erótica. As relações heterossexuais eram,
fortemente, codificadas. Pertenciam ao matrimônio ou aos prostíbulos e perma-
neciam proibidas fora dessa regulamentação. O papel feminino nesse contexto
era aceitar os desejos masculinos, pois as mulheres dependiam deles economi-
camente, satisfazendo sua sexualidade, garantindo a procriação e administra-
ção do patrimônio.
No entanto, Ortega (2002) salienta que existia uma dificuldade na moral
grega do eros. Originada do isomorfismo existente na sociedade helênica entre
as relações sexuais e o comportamento social, o que impedia, que o rapaz, de
comportamento passivo na relação sexual, como objeto do prazer do homem
mais velho, pudesse desempenhar uma função ativa como cidadão da polis. As-
sim, a “antinomia dos rapazes” consistia em serem considerados como objetos
de prazer, e, no entanto, não poderem identificar-se com esse estatuto como
futuros cidadãos, uma vez que apenas as mulheres e os escravos eram objetos
de prazer.
Consequentemente, a reflexão platônica da philia surge como uma tenta-
tiva de resposta a essa antinomia, isto é, como uma possibilidade de dotar o eros
de uma forma moralmente aceita.14 Nesse sentido, a estratégia consistiu em
transformar o eros na relação de philia, excluindo o elemento sexual (sublima-
do), o que lhe permite manter os elementos “pedagógicos” do amor dos rapazes,
sem cair nas antinomias implicadas na erótica tradicional.
Finalmente Ortega conclui que Platão nem tinha muito interesse em dis-
tinguir a relação amor e amizade nos diálogos que tratam do tema, dado que é
precisamente dessa fluidez conceitual que se originam os importantes desloca-
mentos que conduzirão à amizade como uma espécie de eros sublimado.
Nessa mesma linha de raciocínio, Aristóteles dissocia, completamente,
a noção de amor erótico da noção de philia criando uma incompatibilidade defi-
nitiva entre ambos. Essa noção aristotélica permanecerá constante na história
da amizade.
Desse modo, a partir do raciocínio aristotélico a amizade se exclui da
passividade platônica tornando-se uma atividade, a própria atividade filosófica;
o amor, por outro lado, é considerado um impulso não-filosófico. Assim, é pos-
sível resumir dizendo que Eros é uma paixão e philia um ethos, o amor passa a
ser visto como uma emoção; a amizade, por sua vez, é interpretada como uma
disposição de caráter.
Segundo a construção aristotélica a philia é caracterizada pelo hábito,

14 Isso se dá porque o próprio Platão no diálogo intitulado “Lísis” deixa claro que a base da
amizade é o desejo. Assim: - “Então, de fato, a causa da amizade é, como há pouco dizíamos,
o desejo. O que deseja é amigo daquilo que deseja, e isso sempre que deseja. O que de início
dizíamos ser amigo era uma futilidade, como um poema que se alonga demasiado”. (PLATÃO,
1995, p.60).

19
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

expressando-se como uma atitude moral e intelectual com objetivo principal de


amor recíproco entre os amigos, cuja base é a liberdade de vontade e de esco-
lha na qual cada um deseja o bem para o outro.15 Com sua dissociação de eros
e philia, Aristóteles pretendia afastar a possibilidade desse “mau uso” do eros.
Para Aristóteles, as pessoas são amigas por três razões principais: pela
utilidade que buscam, pelo prazer que esperam e pelo bem que os indivíduos
desejam um ao outro. Assim, o filósofo salienta que: “os amigos cuja afeição é
baseada no interesse não amam um ao outro por si mesmo, e sim por causa de
algum proveito que obtêm um do outro”. (ARISTÓTELES, 1996, p. 259). O mes-
mo se dá quando a base da relação é o prazer obtido.
Logo, afirma que amizades assim são apenas acidentais, pois não é por
ser quem é que a pessoa é amada, mas por proporcionar à outra algum proveito
ou prazer. Tais amizades se desfazem facilmente se as pessoas não perma-
necem como eram inicialmente, pois se uma delas já não é agradável ou útil a
outra cessa de amá-la. E a utilidade não é uma qualidade permanente, mas está
sempre mudando. Portanto desaparecido o motivo da amizade esta se desfaz,
uma vez que ela existe somente como um meio para chegar a um fim. (ARISTÓ-
TELES, 1996).
Por conseguinte, as duas primeiras formas de amizade são perecíveis e
circunstanciais, isto é, não estão referidas à essência de uma autêntica amizade.
Porém, a terceira forma de amizade é caracterizada por desejar o bem
ao outro. A amizade perfeita é existente entre as pessoas boas e semelhantes
em termos de excelência moral; neste caso, cada um das pessoas quer bem à
outra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas em si
mesmas.16
Nessa linha de raciocínio, Aristóteles aponta a felicidade, a virtude e a ami-
zade como categorias vinculadas. Tal se dá, especialmente, quando se visualiza
o amigo como um “segundo eu” ou um “outro eu”. Na base do amor ao amigo
está o amor de si. Assim, Aristóteles afirma que a consciência de si, a identidade
pessoal, se dá através do outro, na contemplação do outro, como nossa imagem
especular. Na amizade, o indivíduo se faz outro, sai de si, se objetiva; é preciso
tomar consciência do pensamento e da atividade do outro para ter consciência
do próprio pensamento e da própria atividade, condição da eudaimonia. A cons-
ciência de si é precedida da consciência do outro, a percepção do amigo é a

15 Assim: “cabe-nos examinar a natureza da amizade, pois ela é uma forma de excelência moral
ou concomitante com a excelência moral, além de ser extremamente necessária a vida.” (ARIS-
TÓTELES, 1996, p. 257).
16 “No entanto, o bem ou ser bom não constituem a essência do humano (ou qualquer outra
realidade). Dizendo diferentemente: o ser bom não identifica essencialmente os humanos. Ou:
não nascemos bons. Ou, ainda: o homem não é bom por natureza. Ser bom, deveras, é um aci-
dente para um indivíduo. Assim com ser mau. Ninguém nasce mau. Podemos querer ser bons
ou ser maus. Podemos nos tornar bons ou maus. Podemos nos aperfeiçoar na bondade ou na
maldade.” (ALBORNOZ, 2010, p. 22).

20
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

forma privilegiada da percepção e consciência de si. (ORTEGA, 2002).


É nesse sentido que o Ortega evidencia que essa noção de consciência
de si via consciência de outro constitui uma noção de subjetividade diferente da
nossa. Para construir tal afirmativa o autor cita Vernant (1989) cujos textos de-
monstram como, para os gregos, o “eu” não era nem delimitado nem unificado,
constituindo um “campo aberto de forças”. Desse modo, o indivíduo projeta-se
e objetiva-se nas atividades e obras que realiza e que lhe permitem apreen-
der-se; trata-se de uma experiência voltada para fora, o indivíduo se encontra
e se apreende nos outros.17 Isso ocorre, porque os gregos desconheciam a in-
trospecção. O sujeito é extrovertido; a consciência de si não é “reflexiva”, mas
“existencial”. A consciência está voltada para fora; a autoconsciência, no sentido
moderno do termo, não existe, ou somente sob a forma de um “ele” e não de um
“eu”. (ORTEGA, 2002).
Porém, para fins de delimitar a gênese e as transformações da amizade
no decorrer do tempo é necessário investigar a amiticia romana delineando suas
semelhanças e diferenças com a philia grega. É esse, pois, o objetivo que se
desenvolve adiante.

1.3 A vontade individual dos amigos era su-


bordinada as regras do Estado na amicitia
romana?

A sociedade romana tinha manifestações de amizade aparentemente da


mesma forma e muito semelhantes àquelas encontradas na sociedade grega. É
possível verificar que os termos latinos amicitia (amizade), amicus (amigo), ama-
re (amar) parecem encontrar correspondência aos termos gregos, philia, philos,
philein. Porém, não obstante tais semelhanças, existem diferenças importantes.
A amicitia romana é uma relação que se baseia na afeição livre, excluindo asso-
ciações econômicas, comunidades religiosas e jurídicas e ainda relações de pa-
rentesco. Eram consideradas como formas de amicitia romana as associações
políticas existentes entre os nobres cujo objetivo era o apoio mútuo em assuntos
de política interna e externa e nas eleições de cargos públicos. Além disso, e
principalmente, a amicitia romana é um conceito de política externa, constituído
através das trocas mútuas.
Devido a essa importância adquirida pela amicitia a “influência e as rela-

17 A relação com o outro, que foi na presente pesquisa nomeada “alteridade” será abordada no
próximo capítulo. Sobre o assunto é importante a leitura de LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós:
ensaios sobre a alteridade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

21
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

ções pessoais do chefe de família eram indispensáveis para o sucesso na polí-


tica”. Ocorrência provinda das extensões horizontais dos chefes de família que
eram constituídas pelas relações de amicitia, alianças com pessoas da mesma
classe e status social. (ORTEGA, 2002, p. 47). Da mesma forma, as relações
amicitia e patrocinium não eram formadas por grupos da mesma idade, por isso
não apresentavam o grau de convivialidade e de envolvimento emocional das
heterias gregas, sem mencionar a perda de significado pedagógico do eros pai-
dikon. Essas funções eram desempenhadas na sociedade romana pela família.
(ORTEGA, 2002).
Consequentemente, a amizade romana não possuía a mesma importân-
cia que a amizade grega. Essa afirmativa se dá em todos os sentidos: cultural,
erótico e emocional. Para os romanos não havia mistura/relação entre eros e
philia. Os romanos confinaram eros no vínculo conjugal.18
Essa alteração de costumes se dá, especialmente, com o fim da polis,
momento no qual a pederastia perde sua função pedagógica e militar (herança
do mundo helênico) e sua fundamentação filosófica, tornando-se, aos olhos de
todos, uma perversão desprezível. As regras da Roma republicana, que valori-
zava a família como uma instituição moral e não só econômica, condenavam e
viam com repugnância a homossexualidade.
As famílias nobres dominavam a vida pública romana. Os romanos re-
conheciam três formas de atingir a glória: a família, o dinheiro e as relações
pessoais, nas quais a amicitia é a mais importante, junto às relações de patro-
cinium. Determinava-se, assim, pelo número e importância de clientes e amigos
o sucesso de um político. Sob essas circunstâncias, a amicitia tornava-se uma
relação estritamente utilitária e interesseira, objetivando alcançar vantagens re-
cíprocas. Nessas relações as motivações éticas e emocionais eram substituídas
por considerações práticas, e na qual a hipocrisia, o egoísmo e o fingimento
ocupavam o lugar da confiança e da honestidade. (ORTEGA, 2002).
Em Roma, segundo Ortega (2002), a distância existente entre o discurso
filosófico sobre a amicitia e a prática social da amizade é maior do que na Grécia,
onde a teoria filosófica da philia – especialmente com Aristóteles que visava uma
descrição fenomenológica, uma tipologia das formas da philia na polis – estava
em correlação com a prática da amizade na sociedade helênica. Nessa mesma
linha, o autor salienta que é possível encontrar em Cícero (1993) o primeiro

18 Sobre o assunto é importante a construção de Foucault que aponta para uma “nova/outra eróti-
ca”, substituidora da erótica grega dos rapazes. Essa erótica se apoia e apresenta o matrimônio
como forma de vida, relegando o Eros ao vínculo conjugal. Essa nova realidade erótica se constitui
em torno da relação recíproca e simétrica do homem e da mulher, apontando a virgindade como
valor crescente, como estilo de vida e forma de existência mais elevada, e da união perfeita que
pretendem atingir. Sobre o assunto é importante a leitura de FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade
e política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2004; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Tradução de Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005.

22
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

discurso sobre a amizade, no qual a distância existente entre reflexão teórica


e prática social é quase incomensurável. Posteriormente, os grandes discursos
sobre a philia/amicitia são personalizados (discursos epitafiais do luto pela perda
do amigo, como encontramos em Cícero, Agostinho e Montaigne, entre outros),
existindo um abismo insuperável entre eles e a prática social da amizade, o que
leva a hiperbolizar o caráter utópico-idealista desses discursos.
Assim, não obstante o caráter de “benefício mútuo” da amizade romana,
com seus consequentes resquícios de obrigação para o cumprimento de regras
e para a manutenção da paz social, ela teve, até o fim da República, a função de
regular os conflitos canalizando-os em vias pacíficas. Cumprindo essa missão a
amicitia preservou o status da patria potestas, assim como estabeleceu vínculos
entre as diferentes famílias. Para alcançar tal intento foram definidas regras e
valores, no interior do sistema de confiança (fides) e favor (officium), parte funda-
mental da virtude (virtus) e da dignidade (dignitas) do senhor romano. O código
da virtus impunha uma regra de reciprocidade, na qual cada ato de amizade
devia ser correspondido no futuro. (ORTEGA, 2002).
Assim, na base da teoria da amizade ciceroniana se encontrará a con-
córdia,19 dando relevo à philia grega no papel de fundamento do Estado. A con-
córdia se constituiria na harmonia resultante da rivalidade cuja principal função
de regulação e facilitação era atribuição da Amicitia. Porém, se a concórdia vira
discórdia, como acontecerá no fim da República, a amicitia já não serve como
instância pacificadora, tornando-se fonte de conspiração. É nesse contexto que
se deve situar a teoria da amicitia de Cícero. (ORTEGA, 2002).
Para Cícero os tipos de amizade estão divididos da mesma maneira que
em Aristotéles. Assim, também na teoria ciceroniana o prazer e a utilidade apa-
recem como causa primeira da amizade. Em um segundo plano, como uma re-
lação ideal e perfeita vem a amicitia vera, ou amicitia perfecta, que corresponde
à teleia philia aristotélica. Nesse sentido Cícero (1993, p. 26) ressalta que “só
entre os bons pode haver amizade”. E completa: “nisso não exagero, como o
fazem aqueles que tratam de tais questões com sutileza, verdadeira talvez, mas
pouco útil ao bem de todos: negam, de fato, que um homem possa ser bom se
não for sábio. Seja assim, mas consideram uma sabedoria que nenhum mortal
pode alcançar”.
Nessa mesma linha de raciocínio, Cícero afirma que a Amicitia vera exis-
te só entre homens bons e pode ser definida como “o acordo perfeito de todas
as coisas divinas e humanas, acompanhado de benevolência e afeição, e creio
que, exceto a sabedoria, nada de melhor receberam os homens dos deuses”.
(CÍCERONE, 1993, p. 27) Esse “acordo perfeito” nada mais é que o consensio.

19 Quando prestamos um serviço ou nos mostramos generosos, não exigimos recompensas,


pois um préstimo não é um investimento. A natureza é que inspira a generosidade, por isso acr-
editamos que não se deve buscar a amizade com vistas ao prêmio, mas com a convicção de que
esse prêmio é o próprio amor que ela desperta. (CÍCERONE, 1993).

23
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

A noção de consensio, acordo ou consenso, é importante para o presente


debate, pois já evoca uma noção de amizade com um forte embasamento polí-
tico e moral mais do que metafísico, que se adapta à realidade sociopolítica da
sociedade romana. Essa amizade só é possível entre “homens bons” [...]; ele
acrescenta que não se refere aos sábios como faziam os estoicos, mas aos bons
homens no sentido da experiência concreta na sociedade romana, possuidores
de uma sabedoria político-prática ligada à responsabilidade no Estado. Ou seja,
homens reconhecidos como virtuosos (virtus) na sociedade romana. (ORTEGA,
2002, p. 51-52).
Ortega vai além ao enfatizar que o fundamento da amizade romana reside
na virtus dos parceiros que possui, porém, um caráter diferente da virtude grega
(arete), manifestando-se na obtenção de excelência pessoal e na glória pela rea-
lização de grandes ações ao serviço do Estado romano. O nobre romano pratica
as grandes ações para a República, que o reconhece pública e eternamente
através da gloria. A virtude civil está, na base da noção ciceroniana da amicitia,
subordina a vontade individual dos amigos aos interesses do Estado.
A noção romana de virtude muito bem expressada nos textos de Cícero
o levam a colocar o Estado, a patria, acima da amizade. Essa afirmativa pode
ser corroborada na observação da questão do conflito entre os deveres com o
Estado e com o amigo, tema introdutório dos limites da amizade.20 Ao contrário
dos filósofos gregos que colocavam os deveres com o amigo acima dos deve-
res com a polis (tal se dá pela análise e pela verificação da posição superior
que desfrutava a philia em relação a justiça), Cícero defende os deveres com o
Estado como sendo superiores aos deveres com o amigo. Sua noção de virtus
e de bom implica concordar com o Estado: é imoral, “desonroso”, apoiar um
amicus contra patriam, a lei ciceroriana da amizade exige que os amigos façam
o que é “honroso” (honesto).21 Isso se traduz, segundo seu ideal de virtude, na
realização de grandes ações para o Estado. Um vir bonus nunca se oporia à res
publica. (ORTEGA, 2002).
Consequentemente, pode-se avistar na amicitia romana a preponderân-
cia dos interesses do Estado sobre o interesse dos amigos, o que por si só difere
essa da philia grega. Nesse sentido é possível afirmar que foi talvez a primeira
mudança nas relações de amizade: o conceito de “outro” se subordina ao con-
ceito de Estado. A amizade começa a perder terreno e seu princípio ético aos
poucos é substituído pelas garantias oferecidas pelo direito positivado. Desse
assunto se ocupará o próximo item.

20 Nesse sentido é importante a leitura de CICERONE, Marco Tulli. I doveri. Saggio introdutivo
e note di Emanuele Narducci. Traduzione di Anna Resta Barrile. 1º ed. Milano: Libri e Grandi
Opere, 2004.
21 “[...] uma vez que os laços da amizade nascem da estima pela virtude, é difícil que a amizade
sobreviva se não permanecermos na virtude.” (CICERONE, 1993, p. 59).

24
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

1.4 As relações entre philia, amicitia,


confiança e justiça: do moral ao legal?

Nesse contexto, não se pode perder de vista que durante toda a Antigui-
dade grega se manteve, como foi ressaltado, um vínculo estreito entre amiza-
de e justiça embasador da configuração da philia como um fenômeno político.
Na Grécia arcaica, é possível encontrar uma noção de justiça (dike) própria de
uma sociedade aristocrática, que poderia ser traduzida como ajudar/beneficiar
os amigos e prejudicar os inimigos. Essa forma de justiça era regulada e admi-
nistrada pelos hetairoi.22
Porém, com a passagem para a era clássica e com o surgimento da de-
mocracia, tanto a justiça como a amizade sofreram transformações e foram re-
definidas. A partir desse momento, os sentimentos de amizade, a igualdade de
direitos e a comunidade da justiça existente nos pequenos grupos constituídos
como heterias, são deslocados para a sociedade (demos) como um todo. Como
consequência, cada cidadão torna-se um amigo e a igualdade (isonomia), restri-
ta até esse momento às heterias, pertence ao conjunto dos cidadãos.
Assim, na transição da velha noção de justiça para a nova (descrita por Pla-
tão como harmonia e proporção na alma e na polis), a noção de amizade fornecia o
elemento de igualdade de direitos (isonomia). Com isso, a amizade é coextensiva
da cidadania, e todos os cidadãos são, em princípio, amigos entre si. Ou irmãos?
Pois, Aristóteles estabelece, como já visto, uma proximidade entre fraternidade e
camaradagem (heteria) por um lado, e entre fraternidade e democracia pelo outro.
A amizade entre irmãos é próxima da camaradagem precisamente pela igualdade.
Igualdade política é igualdade entre irmãos. (ORTEGA, 2002).
Justamente nesse sentido, Aristóteles afirmava que os verdadeiros ami-
gos não têm necessidade de justiça. Mas o que ele quer dizer com isso? Da
análise do texto se depreende que a afirmação aristotélica diz respeito ao fato
de que a virtude da justiça existe para resolver as diferenças (os conflitos) entre
os homens. Desse modo, a vida na polis abre uma série de possibilidades dife-
renciais: diferenças de comportamentos, de ideias, quanto à propriedade ou a
distribuição dos bens, diferenças étnicas, etc.
Nestes casos, se faz necessário a resolução das diferenças/conflitos e a
justiça pode ser acionada enquanto virtude do meio-termo, ou seja, possibilidade
de equilibrar as diferenças entre o excesso e a falta. Assim, o recurso à justiça
acontece enquanto meio de reconhecimento das diferenças ou da desproporcio-
nalidade.

22 Os hetairoi constituíam a cavalaria de elite do exército de Alexandro Magno. Eram formados


por esquadrões de 200 a 300 soldados e conhecidos por suas interessantes e bem organizadas
estratégias de guerra.

25
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Porém, a verdadeira amizade não se constitui pelas diferenças e sim pe-


las semelhanças. O similar entre os indivíduos considerados entre si verdadeiros
amigos é o ser bom de ambos. Claro que pode haver indivíduos de bondades
concretas diferenciadas, assim como há muitos triângulos concretos diferentes
entre si. Isso, todavia, não abala a semelhança que caracteriza a vontade ou
a triangularidade. Tanto um atributo quanto outro se assemelha, porquanto se
instituem por aquilo que há de comum em meio às diferenças – a bondade ou a
triangularidade. A bondade não se apresenta nem como excesso nem como falta
e também não é meio-termo. Por isso, certamente, a bondade não se situa no
campo da justiça. (ALBORNOZ, 2010).
Sem sombra de dúvidas, existe uma relação entre amizade e justiça, uma
vez que ambas se dão entre as mesmas coisas, referem-se às mesmas pes-
soas, e aumentam e diminuem na mesma proporção.23
O mesmo se dá quanto a amizade e a política. Considerando que em
Aristóteles o objetivo da política é “produzir amizade” é possível observar a exis-
tência de uma relação fundamental entre amizade e política, expressa igualmen-
te no conceito de amizade civil (politike philia), que uniria todos os cidadãos da
polis. Assim, segundo Aristóteles, o modelo familiar e, por conseguinte, pré-po-
lítico oferece a base, o fundamento, a origem, a estrutura e a forma às relações
políticas e de amizade. A família, o oikos, no entanto, pertence à esfera privada,
que é regida pela necessidade e a violência, em paralelo a esfera política, ao
mundo público como espaço da liberdade, da contingência, da ação. O mesmo
movimento que politiza a amizade, ao ligá-la à justiça e à política, a despolitiza,
ao vinculá-la às estruturas pré-políticas da família. (ORTEGA, 2002).
Essa lógica aristotélica que vincula a amizade e a política também é em-
pregada para tratar da amizade nas relações de fraternidade, uma vez que ba-
seada na consagração da amizade à democracia. Nesses termos, a politeía é um
assunto de irmãos (tôn adelphôn), porém a fraternidade não é política, quando
adota como condição a supressão das diferenças e da pluralidade (consideran-
do todos os indivíduos como iguais), pois nesses casos se anulam as condições
do político. Por outro lado, a amizade se encontra mais voltada para o mundo e
por isso é considerada um fenômeno político.
A lógica aristotélica aproxima a amizade entre irmãos das mencionadas
relações de camaradagem (heteria). Tal se dá por que essas relações de heteria
possuem grandes chances de se desenvolverem entre irmãos, visto que, eles
são iguais, normalmente estão na mesma faixa etária, e são semelhantes em
seus sentimentos e em seu caráter. Assim, existe uma relação na polis entre

23 Em todas as espécies de amizade entre pessoas diferentes é o principio da proporcionali-


dade, como dissemos, que igualiza as partes e preserva a amizade; na forma política de am-
izade, por exemplo, o sapateiro obtém pelos sapatos que faz uma retribuição proporcional ao
valor de seu trabalho, e o mesmo principio se aplica ao tecelão e a todos os artesões de um
modo geral. (ARISTÓTELES, 1996).

26
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

política-amizade-democracia-fraternidade-camaradagem, que em uma pretensa


repolitização da amizade, a despolitizaria. (ORTEGA, 2002).
Por outro lado, no epicurismo, a amizade representa um afastamento da
política. A amizade se desenvolve num contexto individual e se constitui antes
como fenômeno moral do que político. A perda do significado político da philia
é resultado da diminuição da importância da polis. A ideia de amizade como fe-
nômeno político só pode ser possível em um mundo em que a ação política dos
indivíduos é eficaz, o que não acontecia na época helenística, com a passagem
da polis para o império. (ORTEGA, 2002).
Já na sociedade romana, a amicitia deixa de ser o vínculo social por exce-
lência passando a designar um tipo de relação social entre outras. Desse modo,
o lugar da philia é ocupado pelo consenso, vínculo político básico. A política não
é mais baseada na amizade e até, em algumas relações e em determinados
momentos, pode ser sua antítese. O consenso torna possível a existência da
amicitia e o exercício da virtude; sem consenso a amizade só pode existir como
um afastamento da política. Com consenso o lugar/papel do terceiro enfraquece.
Porém, se faz necessária a criação de mecanismos como a confiança24
(a fides) para fins de garantir o cumprimento das obrigações advindas da rela-
ção com um mínimo de honestidade. Nesse sentido, Resta (2009, p. 52-53) de-
monstra como ocorre essa ruptura no texto aristotélico fixando o ponto exato no
qual a amizade perde sua importância na estruturação das relações fazendo-se
necessário o uso de outras categorias, dentre elas e principalmente a confiança
(fiducia). Assim:

un noto testo di Aristotele, tratto dall’Etica nicomachea (1162b, 20-35),


ci mostra meglio di qualsiasi saggio di teoria sociale il gioco della fidu-
cia e ci aiuta a disverlarne la patina di opacità. Aristotele racconta di
quando l’amicizia si dissipa in più dimensioni e comincia a rappresenta-
re dentro di sé tutte le forme delle relazioni sociali; accade ad esempio
che l’amicizia scopra l’utile concreto degli amici; quando si è amici in
funzione dell’utilità (e non il contrario) accade che la dissimmetria in-
tervenga a deludere quella quota, spesso crescente, di utile che ci si
aspetta dall’amico. La delusione travolge l’amicizia e la trasforma nel
luogo del conflitto e della re-criminazione.

O mesmo autor salienta que o texto guia pelo lado opaco da vida cotidiana
no qual os sentimentos são expostos a possibilidade de riscos. Nesse interregno

24 Numa tentativa de definir a amizade Donolo (2009, p. 2), afirma: “fidúcia prima de tutto è
um richiamo a stare attenti, a non abassare la guardia. La concessione di fiducia è un esercizio
rischioso, quindi la concedono facilmente i fessi difficilmente i furbi. Così intanto il mondo si ordi-
na intorno a questa razionalità di scopo di bassa lega. In un certo paese, che conosciamo bene
perchè ci abitiamo, questa dicotomia è basilare: come se fiducia stesse le vertice del monte i cui
due versanti dividono i furbi dai fessi.”

27
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

a amizade e a confiança se distanciam e a ética deixa lenta e silenciosamente o


seu lugar ao Direito (e por conseguinte, o papel do terceiro juiz nasce e se forta-
lece). Tal se enfatiza na constatação de que amizade e Direito têm uma relação
complexa no discurso aristotélico:25 “si può pensare che, come il giusto è di due
specie, non scritto (àgraphon) e scritto nella legge (katà nòmon), anche l’amicizia
che tende all’utile sia di due specie, morale (etikè) e legale (nomikè)” . (RESTA,
2009, p. 54).
Na amizade moral não temos um “pacto explícito”, nela a confiança existe
e é subentendida.26 A confiança, aqui, tem a função de “mediação moral”, não
sendo necessária uma terceira “parte” para garantir que a comunicação entre os
amigos flua de modo tranquilo. O risco de desilusão quanto às expectativas não
cumpridas a partir da relação é zero e por isso, como já dizia Aristóteles (2005),
referindo-se a amizade moral: se os homens são amigo não há existe necessi-
dade de justiça.
O êxito do discurso aristotélico nos mostra que entre a amizade e Justiça
existe uma relação de inclusão no sentido de que a segunda torna-se supérflua
quando a primeira é verdadeira e desinteressada. Por conseguinte, quando exis-
te amizade o papel desempenhado pelo terceiro desapareceria. Infelizmente,
isso não basta: a ética da amizade é aquela ética de intenções, de postura ética
adotada por um amigo que dá e recebe. A confiança se coloca na intenção e ela
diferencia a amizade verdadeira27 daquela dita interesseira. Quando a confiança
se esvai, quando as expectativas não são cumpridas o Direito entra em ação e
a confiança se tornará influente para as questões a ele pertinentes, mas apenas
um detalhe no concernente a relação de amizade. Assim,

25 Essa também é a opinião de Ota Leonardis quando salienta: “il diritto intrattiene rapporti com-
plicati com la fiducia”. (LEONARDIS, dicembre 2009, p. 121).
26 “Depois de concedida a amizade, é preciso haver confiança; é antes que se deve fazer um
julgamento. [...]. Alguns contam ao primeiro quem veem o que deveria ser confiado apenas aos
amigos, e despejam em ouvidos alheios o que lhes queima a língua. Outros, ao contrário, temem
abrir-se até mesmo com os amigos mais caros e, como se não pudessem eles mesmos com os
amigos ser os seus próprios confidentes, mantêm encerrados no fundo da alma todos os seus
segredos. É preciso rejeitar ambas as atitudes: é um erro não confiar em ninguém. Bem como
confiar em todos; direi que, num caso nós agimos da maneira segura, e no outro da maneira mais
honesta.” (Sêneca, 2007, p. 31).
27 “[...] um modelo ideal de amizade perfeita, teleia philia/ vera amicitia, em que o amigo aparece
como um outro eu, um ideal de perfeita unanimidade, de completa união espiritual e moral, de
aperfeiçoamento recíproco. Essa noção de amizade se define pelo seu caráter particularista,
pela sua raridade (só é possível entre poucos), quase pela sua impossibilidade, constituindo
antes um ideal regulativo do que uma relação real, o que sem dúvida, a afasta da sociedade
sociopolítica concreta.[...] Quanto mais íntima, constante e afetiva é uma amizade, menos são
as pessoas com as quis podemos ter tal relação. É, afinal de contas, uma questão de tempo e
energia, ambos objetos escassos. Quanto mais exclusiva e íntima é uma amizade, em outras
palavras, quanto mais se aproxima do ideal aristotélico de amizade perfeita, mais transcende a
estrutura social circundante e menos se adapta para fornecer a base da sociedade”. (ORTEGA,
2002, p. 55-56).

28
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

sembrerebbe in tal caso che si affidi al diritto perchè si è persa la fiducia


in altre istanze di controllo della correttezza dei comportamenti e del
rispetto degli accordi – istanze morali, di deontologia professionale, di
reputazione ecc. – e faccia presa un senso diffuso di irresponsabilità,
tale per cui chiunque, individuo e sopratutto organizzazione, appena
può ne approfita [...] (LEONARDIS, dicembre 2009, p. 122).

É nesse sentido que na amizade legal relegamos ao Direito e ao terceiro


a garantia do cumprimento das obrigações fixadas o que na amizade moral não
se faz necessário, pois o descumprimento está fora de cogitação pela implicação
ética e, moralmente, aceita pelos amigos. Nesse momento que a amizade passa
a ser juridificada e iniciamos a trabalhar com a noção de confiança. Quando a
expectativa de confiança no cumprimento das obrigações do outro não se con-
cretiza o Direito intervêm para fins de tornar suportável a desilusão e resolver
os conflitos dela proveniente.28 Desse modo, confiar na palavra do outro é se
autoexcluir do sistema jurídico.29
Luhmann (2002) afirmava que o Direito se implanta numa sociedade que
já conheceu o gosto da confiança moral. Portanto, assim como a amizade é um
conceito político integrante da comunidade a confiança também o é. Trata-se de
dois elementos importantes que tornam possível a existência comunitária. A cri-
se que envolve a presente afirmativa se dá, justamente, por que tanto um quanto
outro já não possuem como base a ética e a moral e sim a lei, o direito positiva-
do.30 Desse modo, a amizade vem traduzida, atualmente, como solidariedade
e confiança. Ambas se fazem garantir especialmente no âmbito contratual pela
boa-fé.31 Por isso é possível afirmar que “la fiducia giuridificata avrà bisogno di
codici binari: diventerà bona perchè, e mentre, dovrà rapportarsi alla mala fides.”
(RESTA, 2009, p. 60).
O que se percebe é que nem a amizade e, por consequência, nem a
confiança se mantém tal como concebidas nas sociedades gregas e romanas
de outrora e sim como princípios jurídicos cuja segurança e garantia de respeita-

28 “in sintesi, in particolare per gli usi della sociologia, la fiducia può essere definita come
‘n’aspettativa di esperienze con valenze positive per l’attore, maturata sotto condizioni di
incertezza ma in presenza di un carico cognitivo e/o emotivo tale da permettere di superare
la soglia della mera speranza’”. (BAGNASCO, 2 0 11 , p . 4 7 ).
29 Sobre o tema é importante a leitura de RICCOBONO, Francesco. Fidúcia, fede, diritto. In:
Parolechiave: nuova serie di problemi del socialismo. Roma: Carocci Editore, v. 42, dicembre
2009, p. 134.
30 “La visione di uma società priva di diritto poichè costruita interamente sulla fiducia e sulla
solidarietà, pur nel suo inegabile fondo di verità, è evidentemente un espediente teorico per far
affiorare la contraddizione tra l’apertura dei rapporti fiduciari e la determinatezza dei rapporti giu-
ridici. Essa, però, detiene pure il merito di fissare le precondizioni sociali per l’instaurarsi di una
pratica giuridica.”(RICCOBONO, dicembre 2009, p. 134).
31 Boa fé significa “reciproca lealtà, chiareza, correteza” habilidades necessárias para implantar
uma congruente comunicação lingüística antes de ser jurídica além de satisfazer “uno spirito di
cooperazione per l’adempimento delle reciproche aspettative”. (BETTI, 1971, p. 390-391).

29
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

bilidade não se dá mais com base em relações éticas/morais, mas pela garantia
estatal do judiciário. Nesse ínterim, nasce a necessidade de uma terceira parte
que determine o direito aplicado ao caso concreto ou então que auxiliem os con-
flitantes a se comunicarem.
A confiança está em crise. Essa crise possui dois aspectos fundamen-
tais: primeiramente, verificamos uma crise de confiança horizontal observada
nas relações existentes entre os cidadãos de modo a identificar o desmantela-
mento de laços comunitários, dentre eles e, por exemplo, os laços de amizade
e de solidariedade; posteriormente se verifica uma crise de confiança vertical,
ou seja, um descrédito evidente e crescente entre o cidadão e as instituições as
quais ele se conecta, dentre elas a jurisdição. O primeiro aspecto, pertinente as
relações horizontais e a confiança moral/ética somente poderá ser recuperado
a partir da implantação de um novo paradigma nas relações entre os indivíduos.
Já o segundo aspecto, quanto as relações de verticais observa-se a busca pela
aplicação da lei e do Direito para ver garantidos os seus princípios.
A principal consequência da perda de confiança enquanto relação ética/
moral é o recurso ao Direito e ao judiciário (o terceiro). Assim, o abuso do direito
e a juridificação do social contribuem fortemente para a entropia da confiança.
Uma comunidade que usa preferentemente o Direito para resolver seus conflitos
é menos confiável e menos capaz de produzir confiança.
Perdeu-se a conotação antiga da amizade e da confiança, mas a relação
política delas nascida se manteve ainda que garantida por códigos e leis. Mo-
dernamente, existem movimentos que buscam resgatar essa conotação ética da
amizade e de todos os seus derivados: confiança, solidariedade, fraternidade,
alteridade. Quando esses movimentos falham, o recurso é se voltar para o
Judiciário e partir ao juiz que, desenvolvendo seu papel de terceiro na relação
conflituosa, decide e diz a última palavra. Esse é o debate que se desenvolve a
seguir.

30
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

2
O JUDICIÁRIO EM UM
CONTEXTO DE
DEMOCRATIZAÇÃO DE
DIREITOS: QUAL O PAPEL
DO JUIZ COMO TERCEIRO
NA RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS?
2.1 Do conflito interpessoal ao conflito
do próprio Judiciário: por onde passamos?

O convívio social reiterado naturalmente oportuniza situações de discor-


dâncias ou desentendimentos, que podem resultar, muitas vezes, em um conflito,
entendido como a frustração de expectativas. Como observa Dahrendorf (1991),
o conflito surge quando as expectativas em relação aos papéis que devemos de-
sempenhar na sociedade e que o próprio Estado tem para com os cidadãos não
são atendidas. Assim sendo, a realização dá lugar à frustração, o que permite à
ascensão do conflito.
Salienta-se, porém, que, conforme ensinamento de Freund (1995), há
que se atentar para a diferença das espécies de conflito, quais sejam a luta e o
combate, haja ou não o emprego de meios violentos ou regras para se chegar

31
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

ao vencedor. Para o autor Freund (1995), o conflito consiste no enfrentamento


de dois indivíduos ou grupos da mesma espécie, os quais se chocam proposi-
talmente a fim de afirmar, manter ou restabelecer um direito. Faz menção, tam-
bém, a alguns requisitos essenciais para a sua caracterização, tais como a) o
enfrentamento é voluntário; b) os antagonistas dever ser da mesma espécie; c)
a intencionalidade conflitiva implica em uma vontade hostil de prejudicar o outro
(diferenciando-a de agressividade); d) o objeto do conflito é, em regra, um di-
reito; e) o conflito trata de romper a resistência do outro e, f) há uma relação de
forças que podem ser simbólicas.
Note-se que para se configurar o conflito não basta que exista discordância
de opiniões entre dois indivíduos ou grupos. É necessário que os envolvidos quei-
ram impor ao outro a sua vontade, o que cada um entende como sendo o melhor
desfecho ou mais adequado como solução para o conflito. Há a intenção de rom-
per com a resistência da outra parte intencionalmente, a fim de impor a sua vonta-
de. O conflito é marcado, assim, pela dualidade amigo/inimigo, em que o terceiro
é excluído, pois as relações sociais se estabelecem no âmbito desta bipolaridade
em que as vontades são dirigidas diretamente para um e outro apenas.
E aqui se pode inserir o processo jurisdicional, pois a lide, tradicional-
mente conceituada como conflito qualificado por pretensão resistida, gera um
combate no seu aspecto sociológico, sendo o choque de vontades entre autor e
réu. Não há terceiros em conflito, apenas como intervenientes. No processo há
dois adversários que lutam sem o emprego da violência física (embora possa ser
simbólica), observando regras antes definidas, com a pretensão de fazer valer a
sua vontade sobre a do outro.
Assim sendo na dualidade amigo/inimigo que se configura no processo,
o juiz é o terceiro exterior chamado a intervir para resolver o conflito. Freund
(1995) distingue três tipos de terceiro em relação ao conflito: imparcial, que in-
tervém para julgar ou mediar; tertius gaudens, não está envolvido diretamente
no conflito, mas dele tira proveito; divide et impera, intervém e alimenta o conflito
para manter uma posição exterior, porém dominante. Ao se fazer a passagem
do estado de natureza para o estado agonal, que se caracteriza como aquela
situação em que se visa eliminar a violência da luta e do combate por formas
conflitivas mais civilizadas, tais como a competição e o concurso, chega-se a
um Estado de juízes que subordina o conjunto da vida dos indivíduos a leis e re-
gras e busca o procedimento jurisdicional para a solução das rivalidades Freund
(1995). Evidencia-se, então, o papel do juiz na resolução de conflitos, que tem o
monopólio legítimo da decisão vinculante, porém como lembra Spengler (2010,
p. 285)

o lugar do juiz entre o conflitantes é uma questão complexa, uma vez


que ele não se deixa encerrar na fácil formula da lei que assegura a
distancia das razões de um e do outro. Ele vive no conflito e do conflito
que ele decide, pronunciando a ultima palavra, entretanto um Sistema

32
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

Judiciário chamado a decidir sobre tudo e com poderes muitas vezes


discricionários e pouco controláveis, é o lugar que ocultas cotas altas
de irresponsabilidade.

Enquanto terceiro interveniente no conflito, o juiz deve ser imparcial, bem


como atuar no processo como instrumento de democracia, a ponto de Garapon
(1997) afirmar que a democracia suscita o conflito, sendo essa uma das diferen-
ças que a distingue do sistema totalitário. No mesmo sentido, Spengler; Biten-
court; Turati (2012), dizem que somente em uma sociedade democrática é pos-
sível que existam conflitos, uma vez que em um sistema de governo totalitário
não haveria como se disseminar qualquer tipo de movimento ou embate gerado
pela autonomia e liberdade de expressão entre os indivíduos da sociedade, pois
qualquer divergência ou discordância entre os grupos seria reprimida por meio
de força, haja vista que representaria uma ameaça ao sistema.
Assim sendo, a expansão dos regimes democráticos e a transacionaliza-
ção dos mercados possibilitou uma conscientização de direitos que, numa so-
ciedade de conflito e embate, sempre que não são atendidos são reivindicados.
No caso brasileiro, a reivindicação ocorre perante o Poder Judiciário, especifi-
camente, uma vez que não se tem a cultura jurídica de meios complementares
para o tratamento de conflitos.
Acontece, porém, que o Estado, no seu processo de democratização con-
feriu aos cidadãos uma gama de direitos que não tem condições de efetivar inte-
gralmente, o que gera uma frustração de expectativas em relação às promessas
da democracia. Neste sentido, o próprio ente estatal que confere direitos e que
deve garanti-los, gera o conflito ao frustrar a sua concretização.
Dessa forma, o que se viu – e ainda se vê - no Brasil em relação à frustra-
ção de expectativas, é o que Santos (2007) chamou de curto-circuito histórico.
Ao mesmo tempo em que se procurou constitucionalizar e positivar direitos, não
houve o lapso temporal suficiente para a adaptação social e estatal das medidas
necessárias a concretizá-los. O que aconteceu foi uma democratização instan-
tânea de direitos, um momento pontual na história do país em que foram garan-
tidos direitos a uma sociedade não adaptada, acostumada, até então, a uma
realidade política e jurídica oposta, pelo menos, formalmente. De outro lado,
porém, um Estado despreparado para lidar com a reação dos cidadãos a esse
novo modelo, resultando assim em um desajuste jurídico-social.
Em contrapartida, conforme ensina o autor Santos (2007), em países cen-
trais, nos quais a mesma democratização ocorreu de forma natural, ou seja, ao
longo do tempo na história, essas garantias e novos direitos não impactaram
a sociedade e os entes estatais da mesma forma como nos países periféricos.
Assim, nesse novo cenário de democratização brasileira, ocorreu o inverso do
que normalmente ocorre quando há um lapso de tempo natural, e, portanto, uma
transição não tão impactante. O que ocorreu foi que a sociedade teve que se

33
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

adaptar ao novo modelo democrático e não o contrário, trazendo consequências


para a atuação jurisdicional.
A par dessa questão do alargamento dos direitos democráticos, a comple-
xidade social é marcada ainda pela transnacionalização do mercado que gera
conflitos a níveis globalizados, evidenciando a ineficácia do Poder Judiciário
para o tratamento desses conflitos. Como refere Faria (2001), ele foi organizado
para atuar dentro de limites territoriais precisos e no contexto da centralidade da
atuação estatal, bem como em tempo diferido e ritualizado, o que é incompatível
com a economia globalizada em que a produção32 e o consumo têm proporções
massificadas e transnacionais, gerando igualmente a massificação da tutela ju-
rídica. Fica, assim, espaço para formas de atuação não-oficiais para a resolução
de conflitos que tratem de questões supra-estatais e/ou coletivas. O Poder Ju-
diciário não mais se identifica como poder estatal para atuação nestes conflitos,
colocando-se em xeque suas funções instrumental e política,33 evidenciando-se,
sua ineficiência. Tais circunstâncias são apontadas por alguns autores como a
crise do Poder Judiciário, que pode ser identificada como crise de identidade e
de eficiência. A primeira por que há certo embaço do papel judicial enquanto me-
diador central de conflitos, conforme Spengler (2010) e a segunda em razão do
descompasso entre a oferta e procura pelos serviços judiciais, tanto em termos
quantitativos quanto qualitativos, segundo Faria (1995). E isto remete ao proble-
ma do acesso à justiça na forma como abordado por Cappelletti; Garth (1988,
p.13), ao referirem que o “o acesso não é apenas um direito social fundamental,
crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central
da moderna processualística”.
Assim sendo, cabe ao Estado e ao Poder Judiciário a missão multifa-
cetada de possibilitar o acesso à justiça e dirimir conflitos do mercado global,
concretizar direitos fundamentais positivados internamente com o advento da
democratização política, a partir de uma cadeia normativa que tem dificuldades
de compreender e interpretar, uma vez que a racionalidade hermenêutica é di-
versa daquela com a qual estava acostumado a trabalhar.
O Estado, ao legislar, está cada vez mais obrigado a levar em conta as
variáveis internacionais que se cruzam em cadeias normativas com as legisla-
ções internas, regulamentadoras dos conceitos abertos da constitucionalização
dos direitos democráticos. As regras do jogo do Estado Liberal Ditatorial são,

32 A respeito do modo de produção no século XX, Juan Ramón Capella diz que: “Há surgido el
mundo de la ciencia al servicio de la producción y el mundo del crecimiento cuantitativo de la
producción as servicio del capitalismo. O, por no decirlo al revés: la expansión y el reforzamiento
de las relaciones de domínio en su forma capitalista han exigido la masificación de la producción,
y ello, a su vez, há puesto el esfuerzo cientifico directamente al servicio de las actividade produc-
tivas, orientándolo e impulsándolo para garantizar tal expansión y tal reforzamiento” (CAPELLA,
2006, p. 160).
33 São funções do Poder Judiciário: instrumental, política e simbólica. Sobre o assunto ver FAR-
IA, 2006.

34
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

implicitamente, modificadas pela complexidade normativa do Estado Liberal De-


mocrático de Direito, sendo necessário um exercício construtivo da interpreta-
ção e aplicação da lei, o que fragiliza o papel do Poder Judiciário na resolução
de conflitos, pois nem sempre pode concretizar direitos autonomamente. Para
Faria (1998), esta impossibilidade de eficácia plena de muitas sentenças e, por
conseguinte, das próprias normas e leis em que se fundamentam, depende tanto
do empenho quanto da eficiência com que o Executivo cumpre suas obrigações,
em matéria de políticas públicas, o que pode reduzir o Judiciário a uma posição
secundária não independente se acaso essas políticas não forem formuladas e
implementadas a contento.
Na tentativa, então, de cumprir suas funções, o Poder Judiciário se vê na
contingência de buscar outras formas de atuação, chegando ao que se costuma
chamar do fenômeno da judicialização da política que decorre da incapacidade
do Executivo e do Legislativo em legislar e desenvolver políticas públicas ade-
quadas às exigências da crescente globalização econômica.
A redefinição das relações entre os Poderes estatais, colocando o Ju-
diciário no espaço da política é, segundo Vianna et. al. (1999), facultada pelo
próprio Estado ao lhe confiar a guarda da vontade geral, encerrada de modo
permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica. O autor,
inclusive, faz uma distinção nesta forma de intervenção do Judiciário na política
em judicialização da política e judicialização das relações sociais. Entende que
a primeira ocorre por meio do controle abstrato da constitucionalidade das leis,
conforme Vianna et. al. (1999) e a segunda por um contexto em que o social
desestruturado, na ausência estatal, se identifica com a bandeira do direito, que
procura organizá-lo.
A posição de Vianna (1999) sobre a judicialização das relações sociais
remete ao que Garapon (1999), ao discutir as interações entre o juiz e a demo-
cracia, afirma a respeito do Estado provedor. Toda vez que ele se faz mais mo-
desto, os cidadãos buscam justificativa para sua ação nas referências do direito
e não do Estado. As questões de família e diversidade sexual são exemplo para
isto. No Brasil, a ausência estatal quanto às uniões homoafetivas as conduziu ao
Poder Judiciário que de modo gradativo as foi reconhecendo e atribuindo direitos
até se chegar à possibilidade de casamento.34
Vê-se, assim, que o contexto de democratização e expansão de direitos
e de globalização econômica passou a exigir novos contornos para a atividade
jurisdicional, pois o seu modo de produção, vinculado a uma tradição oriunda
dos dogmas do Estado Moderno, vive uma exaustão paradigmática na qual o
juiz, assim como toda a estrutura do Poder Judiciário, estão em conflito.
Conflito este que não se limita, no entanto, às novas formas de produção
do próprio direito, mas sim ao alcance de sua intervenção. Enquanto poder esta-

34 Conforme Resolução n. 175 do Conselho Nacional de Justiça de 14 de maio de 2013.

35
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

tal, o Judiciário tem presenciado a ineficiência da prestação jurisdicional, a qual


deixa espaço livre para outros meios de se tratar os conflitos sociais, na qual
inexiste a figura do juiz.
Trata-se de um direito não-oficial - o direito de produção e a Lex Mercato-
ria, como bem classificou Faria (2001), os quais têm como procedimentos a me-
diação, conciliação e a arbitragem. Assim sendo, da ausência do Estado surge o
pluralismo jurídico. Acontece, porém, que pelo caráter não oficial dessas formas
de tratamento do conflito,35 deve-se observar a questão da eticidade e da coer-
ção. O direito inoficial só é legítimo se for ético e se a coerção não se efetivar
por meio da violência, pois do contrário haverá o que se chama de direito
marginal, ou seja, a manifestação da lei do mais forte que usa da força para
fazer suas regras e interesses.
O direito que assim se estabelece é, na verdade, um antidireito, pois o
monopólio da violência legítima36 é conferido ao Estado e só a ele é dado fazer
uso de instrumentos de coerção. Tais instrumentos podem ser mais ou menos
poderosos, dependendo do tipo de ações violentas que podem acionar ou pelo
tipo de condicionamentos a que tal acionamento está sujeito. (SANTOS, 1988).
Veja-se que no direito oficial o juiz, por meio de sua decisão, realiza o poder polí-
tico de regulamentação da sociedade com o uso da violência legítima do Estado,
de modo que todo o sistema punitivo do direito se justifica desta forma.
O fato é que por meio da atividade jurisdicional, transfere-se o conflito
para o Estado para que o juiz profira uma decisão que, pretensamente, irá re-
solver o problema dos conflitantes. Eis, aqui, a jurisdição, compreendida como a

35 O novo Código de Processo Civil Brasileiro, Lei n. 13.105/2015, contempla a mediação e a conciliação
como etapas do procedimento comum de conhecimento. A positivação destas formas alternativas de trata-
mento de conflitos na codificação processual, no entanto, não garante a sua eficácia enquanto aplicação,
pois se tratam de métodos que demandam cultura específica de aplicação (quem serão os mediadores e con-
ciliadores? Como trabalharão? com que qualidade serão realizadas as sessões de mediação e conciliação?)
e consciência social dos cidadãos e juízes para a necessidade de repensar o conflito em si.
36 Importante observar que foi com o Estado Moderno que se concretizou o processo civilizador
e o monopólio estatal da violência legítima. O Estado monárquico impôs uma forte repressão
à violência privada e difusa, determinando regras de convivência na corte, domínio das emo-
ções e ocultamento do corpo que contribuíram de maneira significativa para a estruturação da
personalidade em termos de civilidade. Dessa forma, há a contenção da agressividade pela
transferência ao Estado do monopólio da violência legítima, que se exerce por meios repressivos
institucionalizados na lei e na atuação do poder pela imposição de penas. Elias (1994, p. 200),
ao tratar da mudança da agressividade, explica por meio de exemplos concretos do dia a dia
que o Estado foi assumindo o papel de conter os impulsos humanos agressivos, demonstrando
sua força, inicialmente de forma explicita com os enforcamentos em praça pública, depois com
paradas militares, hoje com policiamento ostensivo, de modo que o individuo foi internalizando
o refreamento da violência privada e, como afirma o autor “hoje essa regra é aceita quase como
natural. É altamente característico do homem civilizado que seja proibido por autocontrole so-
cialmente inculcado de, espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia.”. Ainda,
Capella (2006, p. 46), afirma que “el estado detenta a suprema capacidad de violencia; sostiene
la reglamentación social y puede incluso inovarla, mediante la amenaza de la coerción – el dere-
cho es originariamente uma reglamentación coercitiva - ;y subordina a la suya la capacidade de
la reglamentación y de violencia de la sociedad.”.

36
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

outorga ao juiz de dizer qual a melhor solução para a situação conflitiva, o que,
em determinados momentos históricos teve sua justificativa ideológica e, até
certo ponto, efetividade, todavia que se mostra superada como única forma de
tratamento de conflitos, como se verá ao longo desta obra.

2.2 Basta dizer o direito para resolver


o conflito?

Para uma análise histórica do papel do juiz na resolução de conflitos,


faz-se um recorte a partir do Estado Moderno, momento que em se publicizou a
jurisdição. Neste período, nos sistemas jurídicos de tradição romano-canônicos,
manteve-se a antiga ideia romana de separação entre julgamento e decisão.
O que não se observou, no entanto, foi que naquela época o direito era regido
pelo sistema do ordo iudiciorum privatorum, um sistema estritamente privado,
em que não se concebia que o juiz – cidadão romano – tivesse poderes para
emitir ordens aos seus concidadãos. A jurisdição era privada e desprovida de
qualquer imperium.
Equívoco histórico que se disseminou na tradição jurídica e que
comprometeu a atividade jurisdicional, colocou o juiz na condição de quem julga,
mas não decide, pois a decisão é um ato de vontade. Assim sendo, perpetuou-
se a ideia de que o juiz pode dizer o direito,37 mas nem sempre pode satisfazê-
lo, principalmente quando a satisfação depende de medidas executivas e
mandamentais.
Entendeu-se que o juiz estava limitado ao ato intelectivo do julgamento,
subtraindo-lhe o ato de vontade inerente à decisão. E, por isso, só podia dizer o
direito, por meio de uma atividade intelectual de subsunção do fato à norma. O
juiz, no entanto, não é mais que a boca que pronuncia a vontade da lei, numa
visão bastante Montesqueniana e errônea do exercício da jurisdição. Montesquieu
restringiu a atividade do magistrado à porta-voz de uma vontade da lei, como se
ela tivesse vontade e o juiz, ser humano que é, fosse capaz de se despir de toda
sua cultura e querer ao exercer sua atividade profissional.
Mas a lei não tem vontade. A lei sequer tem univocidade de sentido. O
juiz, este sim, com toda sua cultura, por intermédio de uma atividade intelectual,
confere sentido à lei e, então, decide. Conhecimento e vontade estão juntos
no exercício da atividade jurisdicional. Mas esta lógica era incompatível com o
absolutismo característico do Estado Moderno, no qual para garantir a legitimidade

37 Judges ought to remember, that their office is jus dicere, and not jus dare; to interpret law, and
not to make law, or give law. (Francis Bancon, on line).

37
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

das medidas adotadas em favor dos monarcas e, depois, dos burgueses, era
preciso que os atos estatais estivessem chancelados pelo Direito, sendo que
a lei, pretensamente unívoca, passou a ser o verdadeiro reflexo da vontade
absoluta do soberano.
Assim, consolidou-se a centralização do poder, aliada ao processo de
racionalização e formalização do Direito, na qual se pôde identificar a inércia
criativa do magistrado, restrito a fiel aplicador da lei soberana. A este respeito,
Merrymann, em obra que trata da tradição jurídica romano-canônica e delimita
um traço comparativo com a tradição anglo-saxônica, esclarece que:

la descripción apropiada del juez es la de un operador de una máquina


diseñada y construida por los legisladores. Su función es mecánica...
Su imagem es el de un servidor público de desempeña funciones
importantes, pero falta creatividad.
[...]
En parte el juez del sistema de derecho civil contemporáneo hereda
una posición y realiza una serie de funciones determinadas por la
tradición que se remonta hasta el iudex romano. Esta tradición en
que el juez nunca ha sido considerado como parte de una actividad
creadora se vio influida por la ideologia de la revolución europea y por
las consecuencias lógicas de la doctrina racionalista de una estricta
separación de poderes. (MERRYMANN, 1979, p.70-71).

Estabelecida a ideia do direito como produção da vontade do soberano


e o juiz como porta-voz desta vontade, numa visão hobbesiana da atividade
jurisdicional, surgiu no cenário filosófico da modernidade Leibniz (1991) com
uma visão do Direito a partir da lógica aritmética. Em sua teoria, exclui-se
totalmente a ideia de probabilidade do Direito. Considerando, então, que as
verdades jurídicas são tão demonstráveis quanto as verdades matemáticas, o
juiz devia buscá-las sempre, não se satisfazendo com a verossimilhança que a
probabilidade poderia oferecer.
A modernidade trouxe, assim, a exigência da verdade e da certeza para o
universo da prestação jurisdicional, como forma de se atribuir segurança jurídica à
mesma. Em não sendo mais possível qualquer argumentação de viés aristotélico,
o juiz ficou vinculado a uma ideologia política de manutenção do Estado, sem
qualquer comprometimento com os cidadãos, pois houve a separação do mundo
jurídico e do mundo fático, uma das falácias do Direito que ainda hoje se luta
para superar. Sobre o tema, Becker (2002, p. 56) diz que “o processo produz
uma fantasia a que chamamos candidamente de “mundo jurídico”, isto é, um
mundo fora da realidade social, asséptico, “limpinho”, supostamente ideal para
garantir a neutralidade do julgamento”.
Com o racionalismo filosófico e político dos séculos XVII e XVIII e
a idealização de um estado de segurança, manteve-se definitivamente o
afastamento de qualquer atividade criativa da prestação jurisdicional. Conforme
Calamandrei (1999), a argumentação e a retórica não mais eram necessárias

38
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

ou mesmo desejadas, pois possibilitavam a discussão e toleravam pontos de


vista diferentes.38 O magistrado não podia decidir sobre o melhor direito no
caso concreto, porque estava limitado a uma atividade de subsunção do fato à
lei. Atividade esta que devia ser exercida com neutralidade para a garantia da
segurança, sem o risco de qualquer distorção conceitual ou valorativa. A atividade
de interpretar, ponderar e valorar os fatos sociais emergidos a categoria de
jurídicos era tarefa exclusiva do Poder Legislativo, enquanto os atos de execução
e mandamento eram, por sua vez, de competência do Executivo.
A justiça, nesses termos, ficou relegada à legalidade, pois era determinada
previamente nos preceitos legais que competiam ao juiz aplicar, por via de
declaração. Acontece, porém, que a legalização da justiça garantia apenas seu
aspecto formal, pois a lei continha elementos universais a respeito das situações
que pretendia tutelar. Primeiro, porque esta é uma característica da legalidade,
segundo, porque se estava, ainda, sob a forte influência do racionalismo que
procurava, com Thomas Hobbes e Gottfried Leibniz, imprimir características
geométricas ao direito. Assim sendo, os cidadãos ficavam submetidos
integralmente a ideologia política e econômica expressa na legislação sem que
o Poder Judiciário pudesse fazer qualquer valoração do caso concreto face às
discriminações e distorções que a lei pudesse conter.
Assim sendo, acreditou-se na possibilidade de uma neutralidade inerente
ao juiz como reflexo da neutralidade do próprio Estado e dos ideais oriundos da
Revolução Francesa, aliados ao racionalismo político que vinha desde o século
anterior. O Estado devia ser neutro quanto às relações que se estabeleciam na
sociedade, como forma de garantir aos indivíduos a sua liberdade e igualdade,
nada se referindo sobre a questão da fraternidade. Neste sentido, o Direito
e a magistratura deviam ser coerentes com a política estatal, não podendo
ir além dos limites legais impostos pelo Estado legitimamente constituído.
Desta forma, mantinha-se o poder político burguês que se apoiou na farsa
revolucionária para conquistar um Estado e um Direito que privilegiasse seus
interesses sob a aparência de uma sociedade livre e igualitária. O processo,
neste contexto, dispunha-se a tratar, igualmente, as partes, sem, no entanto,
atentar que nem sempre autor e réu estavam em igualdade de condições.
Supervalorizou-se, assim, de forma conveniente aos detentores do poder político
e econômico um procedimento que atendesse a todos estes ideais de certeza,
segurança, neutralidade e igualdade formal sem levar em considerações que os
jurisdicionados e as causas são diferentes.

38 A esse respeito, Calamandrei (1999, p. 225) diz que: “Ao choque das espadas se tem sub-
stituído, com a civilização, a polêmica dos argumentos, mas existe ainda neste contraste, o
ensinamento de um assalto. A razão se dará a quem melhor saiba raciocinar: se ao final o juiz
outorga o triunfo a quem melhor consiga persuadi-lo com sua argumentação, se pode dizer que o
processo, de brutal choque de ímpetos de guerreiros, tem passado a ser jogo sutil de raciocínios
engenhosos.”.

39
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Becker (2002) traz uma interessante abordagem a respeito da capacidade


processual na manutenção de igualdades meramente formais, numa perspectiva
de análise de preconceitos processuais. Assim sendo, estabelece uma relação
entre processo e estereótipos, entendendo que o procedimento se presta muito
bem a classificação generalizada de pessoas (autor, réu, vitima, denunciante,
exequente...), de modo a fazer uso de clichês para ocultar as desigualdades
materiais existente entre as partes (todo autor é igual a todo autor, e todo o réu
é igual a todo o réu). Lembra-se, neste sentido, que a adoção de estereótipos
facilita a manipulação e que esta é um sinal de personalidade autoritária
caracterizada pela ausência de valores como a dignidade humana e pela crença
cega na técnica processual, padronizados e universais.
Já no século XIX, sob a égide do liberalismo como fundamento de
sustentação do Estado industrial, mais uma vez, a neutralidade do juiz se impôs,
devendo apenas aplicar as leis que a liberdade do mercado havia determinado
através de um procedimento universal, porém cheio de exceções,39 conforme
as necessidades desse mesmo Estado e mercado que o universalizaram. Os
homens eram todos iguais e livres e, assim, não cabia ao magistrado discutir ou
corrigir esses limites de liberdade e igualdade. A tutela legal era bastante restrita
justamente porque os cidadãos não podiam ser perturbados em sua liberdade.
Conferir este poder ao juiz era algo inaceitável. Preservava-se, nestes termos, o
direito de imposição do economicamente mais forte, ou seja, dos burgueses que
haviam ascendido ao poder e instaurado a ideologia do Estado industrial.
A certeza era, nesta época de liberalismo exagerado, uma necessidade do
empresário burguês. Tinha condições de suportar o ônus de qualquer processo,
pois passava os prejuízos que poderia ter para o consumidor. Não podia, no
entanto, suportar a dúvida em relação à garantia de seu direito. Destarte, a
verdade passou a ser uma exigência do processo civil liberal, não importando que
tipo de custo ou procedimento seria necessário para garanti-la. Universalizou-
se, então, a ordinariedade. Acreditava-se que através do procedimento ordinário
era possível garantir a verdade e, assim, a certeza do direito. Suprimiu-se,
nessa crença, qualquer possibilidade de uma atividade jurisdicional baseada na
probabilidade, na verossimilhança e da tutela diferenciada e adequada ao caso
concreto. Esta ideia equivocada, no entanto, continua a vigorar, mesmo numa
época em que já não é mais possível se conviver com as teorias liberais do
século XIX, em que, como já visto, o Judiciário se vê em um momento de crise
de identidade e eficiência.

39 Sobre este assunto, Zanetti Junior (2004, p. 28) diz que o “o jurista do direito material, em razão
da incompreensão ou, talvez, da má aplicação dos institutos processuais, imagina o processo
como uma quimera formalista. O mais notável fruto desta visão é o mito que se desenvolveu no
curso da historia recente: o de que o processo é algo complexo, sofisticado, inatingível e de duvi-
dosa logicidade, visto que rodeado de exceções. Bom processualista seria, neste entendimento,
aquele que, com mais agudeza, consegue decorar as exceções da lei, sua peculiaridade.”

40
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

Oportuno referir que a própria concepção do direito processual como


ciência autônoma deu-se sob a égide do liberalismo do século XIX, no qual se
consolidava o Estado industrial. E, mais uma vez, a neutralidade do juiz se impunha,
neste contexto de preservação das liberdades individuais, garantia da livre
concorrência e, consequentemente, de uma universalização de procedimentos.
Merryman (1979), ao tratar da ciência jurídica, refere-se a características que se
aplicam também ao direito processual como ciência autônoma. Comenta que o
cientista do direito preocupa-se mais em desenvolver e elaborar uma estrutura
científica teórica do que em resolver problemas concretos, descuidando-se dos
resultados do direito, de valores como a justiça, uma vez que dirige sua atenção
a fenômenos e valores jurídicos puros, como o valor jurídico da certeza da lei.
Fala-se, assim, da instrumentalidade do processo, muitas vezes,
descuidando-se da coerência e adequação deste instrumento para a efetivação
de direitos. Observa-se que, histórica e tradicionalmente, nas poucas situações
em que a lei processual foge da universalizada oridinariedade, ela está a serviço
de uma ideologia liberal capitalista.40 Há casos, porém, que as demandas sociais
exigem evolução legislativa, mas que não raro ficam apenas no âmbito do direito
material, sem o correspondente instrumento eficiente para atendê-la em termos
jurisdicionais. E o juiz, em uma ou outra situação, fica sempre relegado à uma
neutralidade inexistente, imposta pela ideologia política do racionalismo e,
posteriormente, do liberalismo, mantidas convenientemente até os dias atuais.
Neste sentido, Becker; Santos (2002, p. 46-47) afirma que:

a instrumentalidade do processo, ideologicamente contraposto a


suposta materialidade do direito substantivo, como um meio racional
de garanti-lo, visa fazer uma apologia do Estado – e da sua manutenção
enquanto tecnocracia – e a reforçar a suposta neutralidade de seus
agentes – do Judiciário, é claro. Na qualidade de instrumento, ignora-
se completamente que, na vivencia política – e o processo não
se exclui dela -, qualquer pessoa faz opções que se traduzem da
defesa de interesses, sejam eles dos empresários ou dos favelados,
das industrias ou dos consumidores, e assim sucessivamente – e o
Estado não é exceção.
[...]
Tal posicionamento do direito processual oculta o fato de que o direito
material, apesar do nome, também é instrumento de perpetuação das
injustiças e das desigualdades defendidas pelo próprio senso comum,

40 Veja-se o caso da execução de títulos de crédito, procedimento que foge da tão aclamada
ordinariedade, mas que beneficia a classe de comerciantes e empresários que negociam tais
documentos. A respeito da questão ideológica do processo, Portanova (1997, p.67) afirma que
“...a ordem brasileira está centrada na obrigatoriedade, generalidade e neutralidade, está em
verdade a serviço do capitalismo e privilegiando minorias”. Ainda sobre esta questão da ideolo-
gia dominante no processo, Gonçalves (2005, p. 239) refere que “o Direito, a Lei e o processo
especificamente não podem ser enfocados como se não possuíssem uma determinada carga
ideológica, que serve sim aos interesses de uma classe dominante, que através de seu controle
dos meios de produção e de comunicação, do sistema econômico, impõe sua ideologia, numa
própria manipulação do inconsciente coletivo”.

41
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

sob o manto da legalidade, da formalidade, da igualdade e de outras


ingenuidades altissonantes.

Tratando dessa perspectiva ideológica do processo e da atividade jurisdicional,


Pereira Filho; Oliveira (2005), abordam o tema em conjunto com uma análise da
igualdade e do tempo no Código de Processo Civil Brasileiro, de 1973, chegando a
questionar sua constitucionalidade. Afirmam que a ideologia que permeia o código
quanto ao processo de conhecimento é mitológica, pois no procedimento comum
exige-se um juiz neutro, imparcial e despido de império, sendo-lhe defeso impor
ordem às partes, em contrapartida ao procedimento especial, no qual por um passe
de mágica, confere-se ao magistrado amplo poder de mando, capaz de condenar e,
na mesma relação jurídica processual, executar. A cognição e o tempo também são
distintos nos procedimentos comum e especial, ambos do processo de conhecimento,
o que confere atroz desigualdade às partes. Assim, o tempo é um presente para o réu
no procedimento comum e uma dádiva para o autor no procedimento especial, de
modo que os autores demonstram ficar evidenciada a preferência pelo patrimônio,
em detrimento dos valores inerentes à condição humana, o que consideram macular
o código de processo civil de inconstitucionalidade, pois totalmente estruturado com
procedimentos que cultuam a desigualdade.
Acontece, porém, que a evolução da sociedade em termos globais
como visto anteriormente, o fim dos regimes totalitários e ditatoriais e as
novas tecnologias, entre outros fatores, acabaram por impor ao Estado uma
nova configuração, que tem se tornado um desafio constante para a atividade
jurisdicional. Tem-se, hoje, um Estado Democrático de Direito, com perspectivas
constitucionais de democratização e garantia das liberdades e dos direitos
fundamentais, individuais e sociais.
Hoje, não cabem mais os parâmetros jurisdicionais liberais determinantes
da criação legislativa do século XIX e, até mesmo, do XX. O Direito, agora, deve
ter preocupações com a inclusão social,41 sendo o instrumento de que os cida-
dãos dispõem para a salvaguarda de seus direitos, sejam individuais ou coleti-
vos, inclusive contra o próprio Estado que deveria protegê-los. E esta nova con-
figuração estatal repercute necessariamente no processo e no modus operandi
do juiz, que deve evoluir independentemente da manutenção de uma legislação
liberal, com contornos ideológicos, facilmente, identificáveis.
Mas ainda há juristas tão imbuídos do sentimento racionalista e liberal que
consolidou a ordinariedade no século XIX, que não conseguem compreender as
dimensões da problemática que se coloca, muitas vezes se limitando a buscar
alternativas para a questão da dicotomia morosidade/celeridade. Inseridos

41 A partir do momento que o Estado elenca direitos e liberdades fundamentais ele deve fornecer
meios para a proteção dos mesmos e faz isto através do Direito. Assim sendo, quando pela tu-
tela jurisdicional tais direito e liberdades têm seu exercício assegurado, seus titulares, ao poder
desfruta-los, são incluídos na dinâmica social como cidadãos.

42
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

no senso comum teórico,42 não reavaliam criticamente os contextos sociais,


a necessidade de diálogo, o poder simbólico da linguagem jurídica, a falta de
autoridades tradicionais, entre outras que acabam por gerar uma crise identitária
do juiz e, assim, comprometem o exercício de sua atividade enquanto julgador.

2.3 A atuação judicial independente e res-


ponsável é suficiente para a resolução da
diversificada conflituosidade social?

Tratando da problemática da prestação jurisdicional nas sociedades


contemporâneas, em um contexto de transnacionalização do mercado43 e expansão
dos direitos democráticos, Cappelletti (1992) traz alguns temas de reflexão, dentre
os quais está a politização da justiça, refletida na responsabilidade do juiz por suas
escolhas e decisões, bem como a participação das partes, do juiz e do povo.
Nesse contexto, uma vez superada as amarras da ordinariedade e
da neutralidade, a magistratura precisa balisar sua atividade em dois valores
fundamentais: a independência e a responsabilidade. O juiz deve, assim, ter autonomia
para decidir-se de forma imparcial e com certo grau de abertura e sensibilidade à
sociedade e aos indivíduos que a compõem. (CAPPELLETTI, 1989). A prestação
jurisdicional deve ser concebida em função dos consumidores do sistema judiciário.
Vê-se que, hoje, exige-se que o juiz de mero aplicador da lei seja um
ativista de direitos, agindo onde o Estado inflacionado legislativamente, porém
ineficiente, não consegue agir, o que remete ao que se chama de ativismo judicial,
judicialização da política ou judicialização das relações sociais. Garapon (1999)
faz uma abordagem sociológica da democracia contemporânea, analisando este
fenômeno a partir de uma visão externa ao direito. Com isto, tem o entendimento
do que a democracia é um fenômeno social em que se investe mais no direito
enquanto imaginário democrático do que no direito em si mesmo. Esta análise é
feita pelo autor usando exemplos específicos do contexto francês, mas que se

42 “O sentido comum teórico dos juristas como parte da visão de mundo jurisdicista poderia ser
caracterizado, em uma nova aproximação, como “o superego” da cultura jurídica; uma instância
de julgamento e censura que impede os juristas de produzir decisões autônomas em relação a
esse nível censor”. (WARAT, 1994, p. 82).
43 Ao se falar da transnacionalização do mercado, oportuno referir a obra de Allard; Garapon (2005,
p. 15) sobre os juízes no contexto de mundialização, na qual apresentam o direito como um bem in-
tercambiável, como se fosse um produto de exportação. Afirmar que “a comunicação entre os juízes
intensificou-se nestes últimos anos e as fronteiras políticas já não limitam tão facilmente a circulação
do direito. [...] O novo comércio entre juízes não é um espaço legislativo à revelia, mas sim um fórum
informal de intercâmbios situado, na maior parte da vezes, à margem dos mecanismos institucionais”

43
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

podem identificar igualmente na realidade brasileira, na qual o Judiciário também


ocupa um papel central e simbólico, bem como é conduzido para o centro do
palco das questões políticas.
Neste sentido, pode-se afirmar que Garapon (1999) trata da crise valorativa
e moral (simbólica) nas sociedades contemporâneas, sendo esta a principal
causa do imenso volume e diversidade de pleitos submetidos ao Judiciário. Os
cidadãos transferem para o juiz os conflitos para que ele, com o peso da caneta
que assina a sentença, possa resolver tudo aquilo que eles, nem o Executivo,
nem o Legislativo conseguiram resolver. Evidencia-se a falta de responsabilidade
e de responsabilização, pois transferindo ao magistrado o poder de decisão, o
cidadão se exime da responsabilidade sobre a decisão que é tomada. E o mesmo
acontece com os demais poderes do Estado.
A jurisdição, então, passa a ser a última instância moral de sociedade,
uma vez que a igualdade de condições forjada pela democracia aniquilou as
autoridades tradicionais.44 Nas palavras do autor, “a instabilidade crescente dos
laços familiares, a mobilidade profissional e a diversidade cultural modificaram
a demanda de justiça, convertendo o direito na ultima instancia moral comum
numa sociedade desprovida dela.” (GARAPON, 1999, p. 141).
Diante desta constatação de consciência popular democrática, inflação de
processos judiciais e crise de autoridade tradicional, reforça-se a necessidade de
atuação do Judiciário, pois é preciso julgar acima de tudo, em especial diante da
dificuldade do legislador em regulamentar e do Executivo em executar políticas
públicas de concretização de direitos.
Assim sendo, a partir do diagnóstico do enfraquecimento da moralidade
social, eleva-se a justiça à condição de autoridade moral e simbólica
reguladora dos conflitos sociais. Fazendo referências a contextos de bioética,
transexualismo, eutanásia ou mesmo medicina preventiva, Garapon (1999)
evidencia como os juízes se defrontam a cada caso com um problema
metafísico para cuja solução o direito positivo pouco pode oferecer auxílio,
pois o legislador é omisso em razão de não se sentir suficientemente informado
e temer que sua legislação possa tornar-se rapidamente obsoleta devido à
velocidade no progresso da ciência. .
Pereira Filho e Moraes fazem um estudo sobre o juiz do (código) Estado
e Direito Liberal, identificando-o com um historiador, por ser magistrado neutro e
equidistante, postura adotada pelo Código de Processo Civil Brasileiro de 1973,
com exceção em um ou outro procedimento especial. Contrapõem, no entanto,
este modelo, com a necessidade de um juiz do (direito) Estado Constitucional.
Afirmam, então, que:

44 Conforme Garapon (1999), o paradoxo da justiça na democracia é justamente a incerteza das


autoridades ditas tradicionais, tais como o professor, os pais, os religiosos, os sindicatos, pois a
igualdade de condições e a liberdade fragilizam os laços sociais e paralisam a influência de uns
sobre os outros.

44
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

o juiz do Direito não é o juiz do Código. Este é o historiador, aquele o


“interventor”. Em outras palavras, essa intervenção é o contraponto ao
juiz “neutro”, “sem poder”, simplesmente reproduzindo “a vontade da lei”,
ou seja, “a boca da lei”. Precisamos de um juiz e não de um historiador! A
dinamicidade do direito e os valores que permeiam a vida na sociedade
não coadunam com a insensibilidade e com a indiferença. (...) Um novo
modelo de Estado e de Direito, por lógica, exige, igualmente, outro mo-
delo de juiz. (PEREIRA FILHO; MORAES, 2012, p. 49).

Esta intervenção (ou ativismo,45 ou protagonismo) do juiz, embora necessária


face à ausência do Estado, pode ser perigosa, pois o que está em jogo é a justiça e
a democracia. Como já visto com Garapon (1999), o magistrado ocupou o espaço
deixado pelas autoridades tradicionais, pois representa a consciência moral da vida
social, política e econômica numa sociedade desorientada. Acontece, porém, que
há um limite a ser observado. O juiz não pode, sob o manto do monopólio estatal da
violência legítima, exercer indistintamente e sem critérios bem definidos a atividade
de julgar e decidir, sob o risco de convertermos autoridade em autoritarismo,46 pois
quando a “justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da
sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social”. (MAUS,
2000, p. 186-187).
Garapon (1999, p. 56) afirma que o ativismo evidencia-se quando, dentre
muitas opções, “a escolha do juiz é alimentada pela vontade de acelerar a trans-
formação social ou, ao contrário, de travá-la”. Legitima-se, portanto, a teoria das
teses ou correntes jurídicas, dentre as quais o juiz faz um exercício de escolha
para alterar a realidade social.
Acontece, porém, que a atividade de intervenção deve ser pautada na inter-
pretação47 ou na criação,48 numa construção de teses e correntes fundamentadas
e vinculadas e não na escolha arbitrária de uma ou outra, devendo ser compatí-

45 Gervasoni; Leal (2013, p. 112) tratam do tema da judicialização da política e do ativismo


judicial, chegando a afirmar que a “própria judicialização constitui-se elemento propulsor do ativ-
ismo na medida em que reúne uma série de condições favoráveis a uma atuação ampliativa da
jurisdição constitucional.”
46 É bom lembrar que Arendt (1992, p. 129) explica que “a autoridade sempre exige obediência, ela
é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo a autoridade exclui a
utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, autoridade em si mesmo fracassou.
47 Conforme Neves (1995, p. 48), “a interpretação jurídica não é mais fim em si mesma, mas
momento normativa e metodologicamente subordinado, ao serviço de aplicação do direito”. As-
sim sendo, a atividade interpretativa tem a função metodológica de aplicação concreta do di-
reito, o que o juiz deve fazer com autonomia e independência. Segue o autor afirmando que
“as soluções de juridicidade se não obtém num impessoal deduzir, antes impõem um esforço
de fundamentado construir” (p. 50), no qual o sentido histórico e dinâmico do Direito devem se
encontrar com a eticidade humana.
48 Cappelletti (1993, p. 42) diz que “é manifesto o caráter acentuadamente criativo da atividade
judiciária de interpretação e de atuação da legislação de dos direitos sociais. Deve retirar-se, é
certo, que a diferença em relação ao papel mais tradicional do juízes é apenas de grau e não de
conteúdo: mais uma vez impõe-se repetir que, em alguma medida, toda interpretação é criativa
e que sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional”.

45
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

vel com as bases do constitucionalismo democrático.49 Uma coisa é certa, o juiz é


chamado a intervir quando há espaço marcado pela ausência e daí dizer que pelo
menos com o legislador a sua relação é dinâmica e não se faz em sentido único,
sendo atravessada pela tensão entre a aptidão de lançar uma jurisprudência criativa
e construir seus próprios limites de atuação. (RIGAUX, 1997). Limites esses que
devem ser resguardados pela preferência pela lei e pela regra, conforme preceitua
Barroso (2009, p. 392), pois “a Constituição não pode pretender ocupar todo o espa-
ço jurídico em um Estado democrático de direito”, sob o risco de que a discriciona-
riedade jurídica conduza a um decisionismo judicial ofensor à segurança e à justiça.
Assim sendo, em contraposição à uma passividade do juiz moderno, juiz
do código, o que se espera do juiz constitucional é que assuma um protagonismo
diante de casos extremos de violações de direitos fundamentais, sem, no
entanto, agir arbitrariamente, sob pena de se configurar uma tirania do Judiciário.
A atividade jurisdicional fica, então, “controlada pelos direitos e garantias
fundamentais que compõem o direito ao justo processo”. (CAMBI, 2009, p. 248).
Nesse contexto, a democratização brasileira ao mesmo tempo em que trouxe
direitos e garantias fundamentais aos cidadãos, gerou também a necessidade
de adaptação dos poderes estatais para implementá-los, uma vez que o Poder
Executivo, visando cumprir as garantias constitucionalizadas passou a ver a
necessidade de promover políticas públicas nesse sentido. Já o Poder Judiciário, em
meio a uma infinita demanda de novos litígios, gerados por essa democratização,
se viu assoberbado cada vez mais, precisando responder a estas demandas, num
verdadeiro protagonismo judicial. Nessa linha, Santos (2007, p.15) afirma que:

as pessoas, tendo consciência dos seus direitos, vendo colocadas em


causa as políticas sociais ou de desenvolvimento do Estado, recorrem aos
Tribunais para protegerem ou exigirem sua efetiva execução. Como me re-
feriu um magistrado brasileiro, uma boa parte do seu trabalho é dar medica-
mentos. As pessoas vão a tribunal exatamente para poderem ter acesso a
medicamentos ou a tratamentos médicos que de outra maneira não teriam.
Essa informação é facilmente corroborada em qualquer breve análise que
se faça dos noticiários jurídicos no Brasil onde, cada vez mais, são publici-
tadas vitórias de cidadãos que, através do poder judiciário, obtêm o acesso
a tratamentos especializados e a exames médicos gratuitos. Temos assim,
o sistema judicial a substituir-se ao sistema da administração pública, que
deveria ter realizado espontaneamente essa prestação social.

Nota-se, portanto, a fragilidade do Poder Executivo no que tange à promo-


ção de políticas públicas, acarretando assim um problema que reflete na pres-

49 A respeito deste tema, interessante a leitura de Lênio Luiz Streck em O que é isto – decido
conforme a minha consciência?. Na obra, o autor (2010, p. 106) diz que a “a decisão se dá, não
a partir de uma escolha, mas, sim, a partir do comprometimento com algo que se antecipa. No
caso da decisão jurídica, esse algo que se antecipa é a compreensão daquilo que a comunidade
jurídica constrói como direito”, sendo que a “resposta correta (adequada à Constituição e não à
consciência do intérprete) tem um grau de abrangência que evita decisões ad hoc” (p. 107), pois
os mesmos princípios que foram aplicados nas decisões devem ser aplicados em casos idênticos

46
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

tação de serviços públicos precários à sociedade, a qual, por sua vez responde
negativamente a isso, litigando cada vez mais, gerando assim um ciclo vicio-
so de judicialização das relações políticas e sociais. O juiz passa, então, a ser
agente positivo na definição de políticas públicas e dotação orçamentária, ainda
que às avessas, o que fere, inegavelmente, princípios de representatividade e
legitimidade política, colocando o magistrado num dilema ético e de identidade50
quanto à sua função de julgador.
Dilema este que se agrava no universo de um Judiciário esgotado pelas de-
mandas oriundas da democratização de direitos, em que os processos se multiplicam,
gerando um descontentamento social em virtude da morosidade na tramitação proces-
sual. Demora que decorre da falta de estrutura do setor Judiciário para atender a essa
sociedade ansiosa por resolver seus conflitos advindos dos novos direitos constitucio-
nalizados, bem como da falta de iniciativa dos magistrados em usar os instrumentos
de que já dispõem na técnica processual, numa atitude de pro-atividade. No primeiro
caso, tem-se o que se chama de morosidade sistêmica, a qual decorre da sobrecarga
de trabalho, excesso de burocracia, do positivismo e do legalismo (SANTOS, 2007).
No segundo, observa-se a morosidade ativa, tida como aquela em que os obstáculos
são impostos pelos operadores do sistema judicial (magistrados, funcionários ou par-
tes), para impedir a sequencia normal dos procedimentos que levem ao desfecho do
caso, recusa em enfrentar a questão, casos de não decisão, por exemplo, engaveta-
mento, ações protelatórias, recursos desnecessários, etc..
O tempo, assim, é fator fundamental da atividade do juiz enquanto tercei-
ro que tem a missão de resolver conflitos, pois o tempo do processo não é um
tempo ordinário, mas sim prolongado e recuado por sessões e audiências, por
prescrições e decadências, por suspensões e antecipações de tutela.51 O tempo
do processo é um tempo impossível de se reproduzir, é um tempo único, em que
o procedimento consagra o caráter irreversível do processo. (GARAPON, 1997).
Reflete, então, uma questão de poder na relação ganha-perde, pois “a concepção
de poder passa hoje pela temporalidade, na medida em que o verdadeiro detentor
do poder é aquele que está em condições de impor aos demais o seu ritmo, a sua
dinâmica, a sua própria temporalidade” (LOPES JUNIOR, 2007, p. 134).
O tempo é, nesse sentido, um custo processual que deve ser distribuído
harmonicamente no procedimento. Esta distribuição é fundamental para que não
se discrimine uma das partes em função do lapso temporal posto à disposição da

50 Azevedo (2009), ao tratar do perfil do juiz na experiência portuguesa, diz que a crise de iden-
tidade da magistratura surge do aparecimento de novos atores no cenário judiciário, do declínio
de referências históricos, do esfacelamento de normas comportamentais e da desagregação de
discursos sólidos e fixos.
51 Nas relações entre tempo e direito, para Ost (2005) o passado se prolonga na atualidade,
sendo o juiz o guardião das promessas, pois aplica aos fatos históricos a norma previamente
estabelecida (passado), sendo que sua decisão dada no presente se reveste de segurança ju-
rídica, o que faz com que as promessas conectem-se com o futuro por meio dos compromissos
normativos da jurisprudência consolidada.

47
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

outra52. Desafio que se coloca para o magistrado enquanto terceiro que conduz
o processo com vistas à decisão. O tempo é essencial ao procedimento, porém
não se pode agir precipitadamente, sob pena de não se respeitar as exigências
mínimas de segurança e garantia do contraditório, de modo que:

[...] la dilazione processuale può comportare una oculta negazione


del diritto fondamentale alla tutela giurisdizionale, ma perché il diritto
soggettivo del quale si pretende la protezione soffre, sovente, un
indubitabile deterioramento nella misura cui passa il tempo senza
ottenere la stessa. (LOPEZ, 1983, p. 1102)

Em relação aos prejuízos sociais da excessiva duração do processo, também


a sociedade em geral suporta o ônus da demora na prestação jurisdicional, excedendo
os limites do individual. O processo longo traz efeitos econômicos bastante relevantes
à medida que não só imobiliza bens e capital, bem como fortalece a discriminação
social pelo fato de que apenas um pequeno grupo de pessoas tem condições de
suportar este tipo de processo. Lopez (1983) acrescenta a essas razões a falta de
prestígio e de aceitação social dos órgãos jurisdicionais que, em face do atraso da
prestação, reduz a importância da função que lhes é atribuída.
Assim sendo, a questão do tempo procedimental, ainda que com vistas
à garantia constitucional do devido processo, leva a jamais se saber o que se
perde e o que se ganha, ou quem perde e quem ganha, considerando que no
processo o juiz trata o conflito com a lógica da dicotomia ganha-perde. Assim,
do ponto de vista da racionalidade social há um empobrecimento coletivo, pois o
direito anula a intertemporalidade das identidades individuais, o que traz danos
sociais incalculáveis. (RESTA, 2014).
Nesse contexto, não se pode negar que o processo tem uma função social
centrada na efetividade dos direitos tutelados pela prestação jurisdicional. À vista
disso , toda a sistemática processual deve se direcionar a este entendimento,
inclusive a questão temporal e a forma como o juiz lida com ela:

a doutrina contemporânea vem se posicionando, portanto, no sentido


de que o juiz, mesmo sem possuir o juízo de mérito terminado, adote
medidas urgentes para satisfazer a tutela dentro da temporalidade
material, real, e não de acordo com o tempo jurisdicional, a qual
poderia implicar em danos que levassem até mesmo na perda do
objeto do litígio. O tempo real torna-se, para tanto, um direito subjetivo
fundamental na formação da decisão jurisdicional, em oposição ao
tempo jurisdicional, o qual acaba se apresentando como verdadeiro
violador de direitos fundamentais (DUARTE, 2007, p. 107).

52 Sobre este assunto, Baptista da Silva (1993, p.7) diz que “A sabedoria do legislador de processo
reside na partilha harmoniosa e justa desse custo necessário e que não se pode suprimir, repre-
sentado pelo tempo, de tal modo que ele não sobrecarregue apenas um dos litigantes para gáudio
de seu adversário, que sempre terá no tempo, que onera o outro litigante, o grande aliado com que
haverá de contra durante a longa travessia representada pelo Processo de Conhecimento.”

48
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

Exige-se, então, uma postura mais atuante do juiz dentro do próprio


processo, como expressão do Estado Democrático de Direito, com fundamento
constitucional para a concretização dos direitos de cidadania outorgados pelo
processo de democratização, até mesmo como forma de minimizar os danos
do tempo do direito. Assim, no esteio dessa perspectiva mais ativa do juiz, há
que se refletir sobre a sua iniciativa na condução do processo. Os contextos
processuais contemporâneos e democráticos apresentam uma tendência em
se admitir que o magistrado tenha uma postura mais positiva, pois negá-la é
a expressão da ficção da neutralidade do juiz oriunda da dogmática arcaica do
Estado Liberal Moderno clássico. A respeito desta situação, cumpre lembrar as
palavras de Gozaíni (2007, p. 65):

la responsabilidad, prudencia, equidad, atención, etc., son valores que


no estuvieron encolumnados en la independencia imparcialidad que
tradicionalmente fue bastante para estimar la idoneidad. Hoy, la figura
del juez tiene y necesita evaluarse bajo estas consignas novedosas.
La prevención estará en los límites que se quieran encontrar para esta
aventura de la confianza. Porqué un juez que se extralimita es peligroso
por el exceso discrecional o la arbitrariedad de sus decisiones; mientras
un juez desinteresado que potencia su neutralidad padece y hace sufrir
a los demás la ineficacia de sus propias aptitudes.

Destarte, o juiz passivo e excessivamente formalista pode conduzir a


exclusão por gerar um distanciamento entre o processo e o cidadão, o que,
inevitavelmente, fere um direito humano, que é o acesso a justiça.53 Desta forma,

53 Neste sentido, a Corte Europeia de Direitos Humanos julgou o caso GARCIA MANIBARDO c.
ESPANHA, conforme acórdão proferido em 15 de Fevereiro de 2000, disponível em http://www.
gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/sumariosTEDH.pdf: PROCESSO CIVIL – DIREITO
DE ACESSO AOS TRIBUNAIS –CONDIÇÕES DE INTERPOSIÇÃO DE REURSO – DEPÓSITO
DO MONTANTE DA CONDENAÇÃO.
I – O direito de acesso aos tribunais não é um direito absoluto, admitindo, por isso, restrições,
designadamente no que respeita à admissibilidade de recursos, cuja regulamentação cabe ne-
cessariamente no âmbito da margem de apreciação que é concedida aos Estados contratantes.
II – Todavia, tais restrições não podem ser de molde a afectar na sua substância o direito de
qualquer cidadão a aceder aos tribunais, e para que sejam conformes ao art. 6º § 1 da Conven-
ção têm que visar um fim legítimo, numa relação de razoável proporcionalidade entre os meios
empregues e o fim visado.
III – O fim prosseguido pela norma que impunha a consignação em depósito do montante da
condenação em 1ª instância, porque visava evitar uma sobrecarga excessiva da instância de
recurso, é em si mesmo legítimo.
IV – Atendendo, porém, às circunstâncias do caso, a não admissão do recurso da requerente por
falta da consignação em depósito do citado montante, porque não pôde beneficiar, em tempo
útil, da decisão que lhe viria a conceder o benefício de apoio judiciário, por negligência da auto-
ridade judicial, privou-a do exercício do direito de recurso, que se poderia ter revelado decisivo
na resolução do litígio.
V – Assim, a obrigação de consignação imposta pelo tribunal nacional, porque impediu a reque-
rente de se valer de um recurso legalmente previsto e disponível, constituiu um impedimento
desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais, pelo que houve violação do artigo 6º § 1
da Convenção.

49
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

ao se excluir o cidadão do acesso ao Poder Judiciário, há, também, uma exclusão


do próprio exercício da cidadania e democracia, de modo que o processo passa a
ser um agente de contrariedade aos objetivos do Estado Democrático de Direito.
O ritual judiciário, neste sentido, embora necessário, pode ser por si só um
agente de afastamento do cidadão leigo, pois contém simbologias, linguagens,
espaços e tempos que não são facilmente compreensíveis àqueles que não têm
formação jurídica, podendo-se afirmar com Garapon (1997, p. 19), que:
o primeiro gesto da justiça não é intelectual nem moral, mas sim
arquitectural e simbólico: delimitar um espaço sensível que mantenha à distância
a indignação moral e a cólera pública, dedicar tempo a isso, estipular as regras
do jogo, estabelecer um objectivo e instituir actores.
Desta forma, contemporaneamente atribui-se ao juiz a tarefa de fazer a
aproximação com uma estrutura que distancia, pois no contexto do movimento
de acesso à justiça preconizado por Cappelletti; Garth (1988), a simplificação
também diz respeito à tentativa de tornar mais fácil que as pessoas satisfaçam
as exigências para a utilização de determinado remédio jurídico. Porém,
aproximação e simplificação, não significam a negação total da forma e do
rito, pois é preciso que se tenha cuidado com a falta de transparência e com a
pessoalização da decisão, o que é negado ao juiz, que se deve manter imparcial,
ainda que não seja neutro.
Conforme Garapon (1997, p. 327), na construção da democracia, o
“combate pela justiça não passa por um combate contra qualquer rito, mas sim
por uma luta por símbolos mais verdadeiros”, o que se pode buscar com técnicas
adequadas da prestação jurisdicional para se alcançar a efetividade dos direitos
fundamentais, colocando aos magistrados mais um desafio, qual seja, o de não
mais se vincular apenas às leis, mas sim à análise crítica de seu significado,
como meio de legitimidade constitucional. (CAMBI, 2009).
A efetividade é, assim, garantida pela adequação do procedimento, pela
busca de símbolos verdadeiros à democracia, de modo que o paradigma da
ordinariedade, nesses termos, dificulta essa adequação, pois universaliza o
procedimento. Marinoni (1994) entende que deve haver um pluralismo processual,
a fim de se verem tutelados os diversos direitos carentes de proteção, o que se
observa, em especial com relação aos direitos sociais.
Observa-se que há uma incapacidade de representação dos direitos
sociais pelos mecanismos tradicionais da dogmática jurídica, de modo que o
instrumento de trabalho da magistratura, qual seja, o direito processual positivo,
passa a ser ele mesmo objeto de conflito social e os tribunais deixam de ser pal-
co de resolução de contendas para ser arena de luta por reivindicações políticas.
(CAMPILONGO, 1994).
Coloca-se, então, a questão de se o Judiciário e, por conseguinte, os
juízes, estão em condições de assumir a condição de terceiro interveniente
na resolução de conflitos de direitos fundamentais, sobretudo os de segunda

50
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

dimensão. Acredita-se que, apesar do esforço de alguns, os procedimentos


formais de natureza individualista ainda estão muito arraigados na cultura
jurídica, de modo que impedem uma atuação mais efetiva do magistrado na
concretização de direitos humanos e coletivos.
Aliado às dificuldades culturais, Abramovich; Courtis (2004, p. 129-130)
referem a falta de instrumentos processuais aptos a tutela processual de direitos
sociais,54 tendo em vista que as ações judiciais foram pensadas para a proteção
de direitos civis e políticos clássicos. Assim sendo, apontam que o processo não
está apto a tutela de interesses sociais pelas seguintes razões:

- la incidencia colectiva de la mayoría de los derechos económicos


sociales y culturales provoca problemas de legitimación activa, que no
se limita a la etapa de formulación de la acción, sino que se prolongan
durante las diferentes etapas del proceso...
- las violaciones de los derechos económicos sociales y culturales
requieren al mismo tiempo satisfacción urgente y amplitud de prueba,
pero estas dos cuestiones son excluyentes para la elección de los
mecanismos tradicionales de tutela.
- las sentencias que condenan el Estado a cumplir obligaciones de
hacer no cuentan con resguardos procésales suficientes y resultan por
ello de dificultosa ejecución.

Essa inaptidão da técnica processual para a tutela de interesse social,


por sua vez, é reflexo de um contexto sociopolítico que pode paralisar o próprio
Judiciário se o seu protaginismo ficar adstrito a decisões individuais proferidas
em processos clássicos. Faria (1994, p. 50) afirma que:

preparado somente para lidar com questões rotineiras e triviais, nos


planos cível, comercial, penal, trabalhista, tributário e administrativo,
por tratar o sistema jurídico com um rigor lógico-formal tão-intenso que
inibe os magistrados de adotar soluções fundadas em critérios de ra-
cionalidade substantiva, o Judiciário se revela tradicionalmente hesi-
tante diante das situações não-rotineiras; hesitação essa que tende a
aumentar à medida que, obrigados a interpretar e aplicar os direitos
humanos e sociais estabelecidos pela Constituição, os juízes enfren-
tam o desafio de definir o sentido e o conteúdo das normas programáti-
cas que expressam tais direitos ou considerar como não-vinculante um
dos núcleos centrais do próprio texto constitucional. É aí, justamente,
que se percebe como os direitos humanos e sociais, apesar de canta-
dos em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídicos de
natureza normativa e formalista, nem sempre são tornados efetivos por
uma Justiça burocraticamente inepta, administrativamente superada e
processualmente superada; uma Justiça ineficiente diante dos novos
tipos de conflito – principalmente os “conflitos-limite” para a manuten-
ção da integridade social; ou seja, os conflitos de caráter inter-gru-
pal, inter-comunitário e inter-classista; uma Justiça que, revelando-se

54 Os autores referem o problema da justiciabilidad dos direitos econômicos, sociais e cult-


urais, pois a entendem como “la possibilidad de reclamar ante um juez o tribunal de justicia el
cumplimiento al menos de algunas de las obligaciones que se derivan del derecho” (Abramovich;
Courtis, 2004, p. 37)

51
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

incapaz de assegurar a efetividade dos direitos humanos e sociais,


na prática acaba sendo conivente com sua sistemática violação. É aí,
igualmente, que se constata o enorme fosso entre os problemas so-
cioeconômicos e as leis em vigor.

Nesse sentido, Redenti (1957, p. 195) fala de um princípio de adaptabilidade


do procedimento às exigências da causa, chegando a admitir uma certa dose
de arbitrariedade, à medida em que as partes e o juiz podem determinar o
procedimento de acordo com os fins substanciais de justiça, dentro de certos
contornos legais:

no se cae así en los peligros que se seguirían de dejar al juez arbitrio


absoluto del procedimiento, puesto que el procedimiento está fijado de
antemano por la ley; pero ésta, en vez de construirlo todo él de una pieza,
lo ha construído como un mecanismo compuesto de piezas desmontables
y diversamente combinables entre sí, que corresponde a la sensibilidad de
las partes y a la prudencia del juez de montar en cada caso de la manera
más en consonancia con los fines substanciales de la justicia.

Ao tratar da instrumentalidade55 do processo, Cappelletti (1981), entende


que ela está na capacidade de adequação dos meios à natureza do direito
subjetivo que se quer ver tutelado. Vê-se, assim, que a adaptação e a adequação
do procedimento ao direito material e aos interesses sociais são essenciais ao
processo que pretende ser efetivo e justo, sendo que o juiz deve ter papel ativo
neste processo de efetivação do direito. É fundamental se compreender que
o magistrado deve ser e é capaz de emitir provimentos sumários executivos e
mandamentais, pois tem a prerrogativa da decisão, do decidir-se.56 O juiz, antes
de qualquer atividade cognitiva e decisória, deve sentir o direito e o processo.
Nesse sentido Calamandrei (1960, p. 77) diz que:

la verdad es que el juez no es un mecanismo, no es una máquina


calculadora. Es un hombre vivo, y su función de individualizar la ley y
de aplicarla al caso concreto, que in vitro puede representarse como
un silogismo, es en realidad una operación de sínteses que se cumple
misteriosa y calurosamente en el crisol sellado del espíritu, en el cual
la mediación y la soldadura entre a ley abstracta y el hecho concreto
tienem necessidad, para realizarse, de la intuición y del sentimiento
ardiente de una conciencia laboriosa.

55 “A instrumentalidade do direito processual e, portanto, da técnica do processo, impõe, toda-


via, uma consequência de grande alcance. Como qualquer instrumento, também aquele direito
e aquela técnica devem realmente adequar-se, adaptar-se, conformar-se o mais estreitamente
possível à particular natureza de seu objeto e de sua finalidade, ou seja, à natureza particular
do direito substancial e à finalidade de tutelar institutos do mencionado direito. Tanto mais um
sistema processual será perfeito e eficaz, quanto mais for capaz de adaptar-se sem incoerên-
cias, sem discrepâncias, àquela natureza e àquela finalidade.” (CAPELETTI, 1981, p 18).
56 La decisión se impone al juez con la necesidad de la acción...En suma, al final, para decidir
es necesario decidirse. Lo que se encuentra en la decisión, más allá del juicio, es la elección.”
(CARNELUTTI, 1981, p. 251).

52
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

Assim sendo, a consciência e o bom senso do juiz devem ser usados


para se imprimir uma característica mais democrática à prestação jurisdicional,
uma vez que o sistema processual ainda está atrelado às teorias modernas de
certeza e de segurança. A ousadia e o ativismo da magistratura é, hoje, uma
das formas mais iminentes de se alcançar a efetividade do processo, à medida
que a jurisprudência está aí para confirmar o poder criativo dos juízes. Os juízes
têm sido, em muitos casos, verdadeiros representantes de lutas sociais pela
concretização e democratização de direitos humanos e fundamentais.57
Nesse sentido, Capella (2006), ao tratar do Estado intervencionista,
diz que o juiz passa a exercer uma função de ajuste social ou ajuste político
econômico, realizada pela via administrativa à margem da via jurisdicional,
sendo necessário, em certos casos, criar o direito. Admite, no entanto, a atuação
de outros agentes não jurisdicionais para a resolução de conflitos, face à
complexidade das relações, tais como o árbitro privado ou o jurista administrador
público, o que demonstra a insuficiência da jurisdição para o tratamento dos
conflitos na sociedade cosmopolita.
O problema da ritualização e do tempo da jurisdição também aparecem
quando Capella (2006, p. 271) sugere a mediação privada como alternativa a
esta ineficiência, pois afirma que:

los instrumentos estatales de mediación, y fundamentalmente la


jurisdición, que exigen tiempo y formas - condicíon de las garantías
– para conocer y decidir, resultan inoperantes y obsoletos para los
grandes agentes económicos actuales, los cuales recurren a instancias
de mediación privadas.

O fato é que, no contexto de democratização de direitos e maior acesso


ao Judiciário, vê-se o exaurimento da atividade jurisdicional tradicional como
única e exclusiva forma de resolução de conflitos, estando o juiz erigido a uma
condição de terceiro interveniente na resolução do conflito que, no entanto, não
tem condições estruturais, funcionais e emocionais de suportar.
É urgente, assim, se reconhecer que pode haver outras formas de se tratar
os conflitos, que assim como no próprio Judiciário se deve buscar o procedimento

57 Sobre este assunto, Gonçalves (2005, p. 233-234) diz que “Os operadores do Direito, em
especial os Juizes poderiam refletir acerca do poder político contido no processo, cientes da
importância do mesmo com um instrumento de satisfação das necessidades da coletividade, e
do papel do processo e do Poder Judiciário para tanto. Este poder não pode ser um instrumento
de afirmação de novos déspotas, mas sim de cidadãos comprometidos com um processo de
redução de desigualdades” Continua afirmando que “...os operadores do Direito não podem ser
colocar em um ambiente de “assepsia” ideológica. E justamente esta postura acaba por velar
os pensamentos mais conservadores, nocivos, justamente por se apresentarem como “neutros”,
“isentos”, quando “não o são”. Então, o juiz tem papel fundamental na construção de um novo pa-
radigma do Direito e do processo, vez que sendo a “boca da lei”, tem a seu favor a possibilidade
de estabelecer novas concepções, novos referenciais teóricos, sempre consciente da ideologia
do Direito e do estado que poderia advir de suas decisões.

53
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

adequado conforme o direito a ser tutelado em juízo; para os diferentes conflitos,


deve-se buscar o tratamento adequado, resgatando-se, precipuamente, o
esquecido ideal de fraternidade, pois como afirma Resta (2014), na história do
constitucionalismo moderno, a ele foi reservado o papel de parente pobre, de
primo do interior se comparado à liberdade e à igualdade. E talvez esse resgate
seja imprescindível tanto para que juiz possa exercer com efetividade o seu
papel de terceiro na resolução de demandas, quanto para que se concretizem
alternativas mais eficientes de tratamento de conflitos.
No sistema tradicional em que o juiz fica equidistante às partes e decide, de
modo que os indivíduos não se percebem em relação de amizade e fraternidade,
mas sim de adversidade e inimizade, o que é reforçado pelo poder simbólico da
autoridade judicial.58 O que a sentença proferida pelo magistrado faz é separar
as partes em conflito, reconhecendo o espaço que cada um ocupa na sociedade
na condição de ganhador e de perdedor no processo. Nesse sentido, Ricoer
(1995) apresenta o ato de julgar como um horizonte de equilíbrio frágil em que
divide a parte de um em relação ao outro, bem como faz com que ambos tomem
parte na sociedade.
Nesse sentido, discute-se a relação entre o Direito e a fraternidade, se
são excludentes ou coexistentes, o que depende da concepção que se tenha
daquele. Spengler (2012) explica que somente a partir de uma visão simplista de
que a natureza do direito é sempre conflituosa e de que a fraternidade é sempre
harmônica é que se pode falar em exclusão.
Acontece, porém, que as interações entre ambos deve ocorrer pelo pró-
prio reconhecimento histórico da fraternidade nos ordenamentos jurídicos posi-
tivados, inclusive na Constituição Federal Brasileira de 1998, o que faz com que
o grande desafio contemporâneo, tanto no âmbito político quanto jurídico, seja
estabelecer uma articulação dialética dos três princípios integrantes da tríade da
Revolução Francesa, superando uma lógica meramente identitária e caminhan-
do em busca de um reconhecimento efetivo e eficaz da alteridade, diversidade e
reciprocidade (SPENGLER, 2012).
Importante, então, se conceber um Direito cosmopolita que se preocupe
com os direitos fundamentais (civis, políticos e sociais) e que busque um desen-

58 Bourdieu (2012) trabalha com o poder simbólico como um poder invisível que se legitima
pelo uso da linguagem, precipuamente, e com a cumplicidade inconsciente daqueles que estão
sujeito aos poder e mesmo daqueles que o exercem, podendo gerar uma violência simbólica,
dissimulada e não percebida a olhos vistos. No campo jurídico, em razão da cientificidade que
sistematiza e racionaliza as regras do jogo, teríamos uma violência simbólica controlada e, por
conseguinte, ordem e eficácia (simbólica). No entanto, o monopólio do recurso linguístico no
campo jurídico afasta os interlocutores não letrados e exclui da compreensão e da legitimação da
lei e da decisão o seu maior interessado que é o cidadão jurisdicionado. Assim, há violência pela
exclusão da ignorância praticada pelo detentor do poder que, devendo proteger, não percebe
que está cada vez mais excluindo ao institucionalizar espaços que deveriam ser popularizados
para efetivamente ser acessíveis.

54
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

volvimento universal, ultrapassando fronteiras e superando a lógica do perten-


cimento para proteger a lógica do humano. Deve-se, a partir das experiências
vividas no direito e na práxis judiciária, construir soluções emancipadoras para
uma sociedade futura que se pretenda fraterna e plural, pois como refere Mone-
dero (2012, p. 266):

la soluciones no pueden venir de un presente que sólo mira al pasado


(conservadurismo), ni de un presente que mira sólo al presente (refor-
mismo) ni de un presente que mira y espera a un supuesto futuro (re-
beldía). Mucho menos, pese a las apariencias, de un futuro que mira al
pasado (reacción). Se trata de buscar en el pasado aquellos aspectos
que ayudan en el presente a construir un futuro emancipatorio.

Desta forma, a alteridade é vista como uma alternativa para esta proposta
de um cosmopolitismo jurídico, eis que permite uma revalorização do outro
no conflito em detrimento dos privilégios outorgados pelos modos tradicionais
de dizer e fazer o Direito, possibilitando-se, inclusive, a intervenção de outros
terceiros na resolução de conflitos que não apenas o juiz decida pelas partes que
não se responsabilizam pela composição de seus próprios dilemas, o que será
estudado na sequência.

55
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

3
O TERCEIRO MEDIADOR NO
TRATAMENTO DO
CONFLITO59: QUAL É
O SEU PAPEL?
3.1 O Papel Social na relação irritante entre
indivíduo e sociedade. Onde está o conflito?

Os problemas da sociologia reduzem-se a um fato tão acessível à expe-


riência humana ingênua, como os fatos naturais do mundo em que vivem, razão
pela qual denomina-se de fenômeno sociedade, também descrita como fato irri-
tante, eis que não é permitido ao ser humano andar ou falar sem que entre ele e
o mundo se interponha um terceiro, o qual vincula o mundo com os indivíduos, a
sociedade. (DAHRENDORF, 1991)
O ponto de intersecção entre os indivíduos e a sociedade se dá nos gru-
pos sociais. No grupo, desaparece o indivíduo. Da mesma forma, nesse ponto
de intersecção entre o indivíduo e a sociedade encontra-se o homo sociologicus,
o homem enquanto portador de papéis sociais pré-constituídos. Ou seja, consis-
te no indivíduo formado pelos seus papéis sociais que, a seu turno, se materiali-
zam no fato irritante da sociedade. (DAHRENDORF, 1991)

59 A adoção do termo “Tratamento de Conflitos” justifica-se pela compreensão de que os con-


flitos sociais não são solucionados pelo Judiciário no sentido de fazê-los desaparecer. Dessa
forma, substituir por tratamento é mais adequado por apresentar-se como tratamento terapêu-
tico que discute o conflito e busca uma resposta satisfatória. Para uma leitura acerca do tema,
sugere-se SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra cultura no
Tratamento de Conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010b.

56
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

A sociedade é necessária para que pessoas diferentes possam criar insti-


tuições comuns a fim de garantir a sua sobrevivência e melhora de vida. As suas
diferenças têm importância porque os vários interesses se inserem uns nos ou-
tros, bem como alguns têm a capacidade de impor a sua vontade a outros, seja
por meio da força ou do mau-olhado. (DAHRENDORF, 1992)
Na tentativa de determinar o ponto de intersecção entre o indivíduo e a
sociedade, verificam-se palavras que neste conceito sempre se repetem - más-
cara, pessoa, caráter e papel. Dessa forma, papel, pessoa, caráter e máscara
são palavras que embora originárias de estágios diversos do desenvolvimento
linguístico, têm uma área de significado comum: o teatro, o qual é considerado
uma metáfora do mundo e da vida. Se considerado que o mundo como um todo,
ou pelo menos o mundo humano, tem sua representação em uma peça teatral
de dimensões gigantescas, ao indivíduo somente compete uma única máscara,
uma pessoa, um caráter e um papel no todo.
Portanto, na projeção do teatro, e suas partes, transmite-se para a vida do
indivíduo a atribuição de diversos papéis sociais. Nessa ótica, salienta-se que o
próprio dicionário registra as palavras caráter, papel e pessoa como sinônimos
de persona. (DAHRENDORF, 1991)
A categoria papel social, por sua vez, apresenta-se como o significado
de uma forma de comportamento preestabelecido para uma regra de comporta-
mento individual, passando de um conceito sociológico para um conceito psicos-
sociológio elementar.
Como manifesta Dahrendorf (1991), o mundo é um palco no qual o indiví-
duo surge, e desaparece novamente. Entretanto, não se trata somente de uma
apresentação, pois o indivíduo aparece diversas vezes e, em cada uma delas,
com máscaras diferentes. Deixa o palco definitivamente com a sua morte quan-
do novas e outras pessoas habitam-no, oportunidade em que desempenham os
seus papéis.

Para cada posição que uma pessoa possa ocupar – seja a posição de
sexo, idade, família, profissão, nacionalidade ou classe social ou ainda
de outra natureza – a sociedade possui atributos e modos de compor-
tamento, com os quais o portador de tais posições se defronta e em
relação aos quais precisa tomar uma posição. Aceitando e cumprindo
as exigências que lhe são impostas impostas, o indivíduo renuncia à
sua individualidade, mas merece a benevolência da sociedade na qual
vive. (DAHRENDORF, 1991, p. 48).

Se resistir às exigências da sociedade, poderá conservar uma indepen-


dência abstrata, mas inútil, expondo-se porém à ira e às sanções da sociedade.
Ou seja, percebe-se que o ponto de mediação entre indivíduo e sociedade se
concretiza, bem como quando nasce o homem, como ser social, o homo socio-
logicus, é o momento de aparição no palco da vida. Ao assumir um papel social,
o desempenha.

57
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Nesse sentido, verifica-se que embora inerente à existência humana e a


sua relação com a sociedade, estar em sociedade implica em exercer papéis so-
ciais, os quais requerem o cumprimento das expectativas das demais pessoas in-
tegrantes dessa sociedade. Ao romper com a expectativa, surge o conflito, o qual,

[...] consiste en un enfrentamiento por choque intencionado, entre dos


seres o grupos de la misma especie que manifiestan, los unos respecto
a los otros, una intención hostil, en general a propósito de un derecho,
y que para mantener, afirmar o reestablecer el derecho, tratan de rom-
per la resistencia del otro eventualmente por el recurso a la violencia,
la que puede, llegado el caso, tender al aniquilamiento físico del otro.
(FREUND, 1995, p. 58).

Nessa ótica, o conflito pode se apresentar enquanto manifestações total-


mente diferentes, desde a luta confusa e desordenada até os mais reprimidos,
porque estão submetidos a regras ou ritos, deixando de ser apenas uma simula-
ção de enfrentamento.
Para que exista um conflito, necessita-se de no mínimo duas pessoas ou
objetos; o conflito não somente corresponde ao outro, pois cada um modifica sua
tática em razão das flutuações da ação do outro, da mesma forma não é produto
objetivo de uma situação, porém consequência do desejo subjetivo das pessoas,
de grupos ou de coletividades, as quais tratam de romper a resistência do outro
opõe as suas intenções ou o seu projeto. (FREUND, 1995).
Há muitos pontos a serem destacados a partir de um conflito: a) as carac-
terísticas das partes em conflito (valores, motivações, objetivos, ambições, re-
cursos físicos, intelectuais e sociais, etc.); b) os relacionamentos prévios de um
com o outro (concepções, crenças e expectativas com o outro); c) a natureza da
questão que dá origem ao conflito; d) o ambiente social em que o conflito ocorre;
e) os espectadores interessados no conflito; f) a estratégia e a tática emprega-
das pelas partes no conflito; g) as consequências do conflito para cada parte e
para os interessados. (DEUTSCH, 2004).
Da reflexão acima, extraem-se algumas conclusões a partir do viés sócio
-psicológico:

1. Cada participante de uma interação social responde ao outro


conforme suas percepções e cognições deste; elas podem ou não
corresponder à realidade do outro.
2. Cada participante de uma interação social, estando ciente da
capacidade de percepção do outro, é influenciado por suas próprias
expectativas referentes às ações do outro, bem como pelas suas
percepções da conduta daquele. […]
3. Uma interação social não é somente iniciada por motivos, mas
também gera novos motivos e pode alterar os já existentes. Não é
apenas determinada, como também determinante. […] a interação
social expõe os atores como modelos e exemplos que devem ser
imitados e com os quais se deve identificar.
4. A interação social realiza-se em um ambiente social – uma família,

58
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

um grupo, uma comunidade, uma nação, uma civilização – que


desenvolveu técnicas, símbolos, categorias, regras e valores relevantes
para as interações humanas. […]
5. Apesar de cada participante de uma interação social, indivíduo ou
grupo, ser uma unidade complexa composta por vários subsistemas
interativos, pode agir unificadamente em algum aspecto de seu
ambiente. […] (DEUTSCH, 2004, p. 33).

O conflito é potencialmente de valor pessoal e social (DEUTSCH, 2004),


razão pela qual se estuda a ideia de posição social, cujo significado refere-se a
todo local em um campo de relações sociais, tomando-se o conceito em dimensão
tão ampla, a ponto de abranger não somente as posições sociais X e Y, porém
também as demais que um homem possui. Por exemplo, não abrangem somente
o fato de ser professor e presidente, mas também pai, alemão e esportista. Em
princípio, as posições são algo imaginável independentemente do indivíduo.
Por isso, afirma-se que o indivíduo, não somente pode, mas deve, via de
regra, ocupar uma pluralidade de posições, supondo-se que o número de posi-
ções que cabe a cada um cresce com a complexidade das sociedades. A cada
posição que uma pessoa ocupa correspondem determinadas formas de compor-
tamento, esperadas do portador dessa posição, pois tudo que é, decorre de atos
que faz ou tem. (DAHRENDORF, 1991).
Portanto, cada posição social corresponde a um papel social. Ocupando
posições sociais, o indivíduo apresenta-se como uma pessoa do drama escrito
pela sociedade em que vive. A partir de cada posição, a sociedade lhe atribui um
papel que precisa desempenhar, o qual se traduz em feixes de expectativas que
se ligam em uma determinada sociedade ao comportamento dos portadores de
posições. Da mesma forma que as posições, também os papéis são imagináveis
independentemente do indivíduo.
Assim como as posições, recaem sobre cada indivíduo, diversos papéis
sociais que, de acordo com as possibilidades, incluem uma pluralidade de seg-
mentos de papéis considerados como o comportamento esperado, ou seja, o
comportamento do indivíduo que se vê face às reivindicações existentes fora
dele, ou seja, provenientes da sociedade que se dirige ao indivíduo com deter-
minadas reivindicações.

Os papéis sociais implicam em uma coerção exercida sobre o indiví-


duo, podendo a mesma ser vivenciada como uma privação de seus
desejos particulares, ou como um ponto de apoio que lhe fornece se-
gurança. Este caráter das expectativas de papéis baseia-se no fato de
que a sociedade dispõe de sanções com auxílio das quais é capaz de
coagir. Aquele que não desempenha o seu papel será punido; quem o
desempenha, será recompensado; na pior das hipóteses, não castiga-
do. (DAHRENDORF, 1991, p. 57).

Ocorre que o efeito das sanções se verifica nas expectativas dos papéis,
cuja responsabilidade da manutenção é do poder da lei e das instituições jurídi-

59
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

cas. A maioria dos papéis sociais contêm expectativas obrigatórias, mas também
a maioria conhece expectativas preferenciais, sendo a sua obrigatoriedade coer-
citiva dificilmente menor do que a das expectativas obrigatórias.
As expectativas de papéis podem multiplicar o conhecimento, porém po-
dem obrigar o indivíduo a repressões, conduzir a conflitos e com isso atingi-lo
profundamente. O fenômeno da internalização dos papéis sociais é a individua-
lização paralela das sanções que, como leis e costumes, controlam o comporta-
mento dos indivíduos. (DAHRENDORF, 1991)
Nesse contexto, deve-se compreender que o conflito não é um fenômeno
anormal, mas uma condição inevitável de desenvolvimento das sociedades. Em-
bora provoque uma irregularidade, também introduz uma situação excepcional.
Destaca-se que qualquer que seja a área, seja ela econômica-social (greve), reli-
giosa (heresia) ou política (guerra), o conflito gera uma situação excepcional, mais
acentuada ou explosiva, introduzindo uma ruptura do curso normal das coisas. Isto
é, situa-se acima do direito vigente, no sentido de que a decisão de recorrer ao
conflito não se refere a uma autorização prévia da lei. O que a caracteriza funda-
mentalmente é a ruptura que introduz no curso das coisas, e não é desmedido ou
excessos próprios de uma situação extrema. (FREUND, 1995).
O homem é um ser social, e em todas as suas ações, por mais simples e
naturais que sejam, a sociedade se envolve, motivo pelo qual o homem se sub-
mete às regras estabelecidas, aceitando posição, papel, expectativa e sanção,
fazendo que, dessa forma, sejam cumpridos os papéis, bem como que o homem
se conforme com o seu papel. (DAHRENDORF, 1991). Ao deixar de cumprir com
suas obrigações, conforme manifestado anteriormente, surge o conflito. Porém,
destaca-se que não há sociedade sem conflito, da mesma forma como conflito
não pode ser dissociado da ideia de Democracia.
Os vínculos restam estremecidos (com a retirada da liberdade dos indi-
víduos) e a consequente imposição de condutas a serem exercidas, provocam,
por conseguinte, o surgimento dos conflitos. Reconhece-se, portanto, que não
há como projetar sociedade sem conflito, pois o conflito social é indispensável à
Democracia, considerado enquanto motor e regulador dos sistemas e mudanças
sociais.
Como se percebe, um conflito pode ser negativo ou positivo, e as suas
consequências decorrem da legitimidade das suas causas. Todas as sociedades
têm sua evolução marcada por conflitos, sendo elas resultado da interação entre
os dois aspectos de conflito. Ou seja, o conflito, desde que controlado, acarreta
na produção de conhecimento e crescimento social. Portanto, não há como eli-
miná-lo, mas deve-se conviver com ele. Por essa razão, como bem refere Freu-
nd (1995), é preciso renegociar constantemente a paz, pois viver em paz é viver
em segurança. Assim, segurança e concordância, condições fundamentais para
garantir a paz, são indissociáveis.

60
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

3.2 O Papel Sociológico do Terceiro. Como


fazer com que um conflito seja construtivo?

A partir da abordagem realizada no tópico anterior, verifica-se que o con-


flito pode ser construtivo ou destrutivo. Assim, será destrutivo quando as par-
tes estão insatisfeitas com as conclusões do conflito, sentindo-se perdedoras.
Por sua vez, o conflito será construtivo quando as partes sentem-se satisfeitas
com o resultado obtido, ou seja, comportam-se como ganhadoras. Dessa forma,
questiona-se: como fazer com que um conflito seja construtivo? Como evitar um
conflito destrutivo? (DEUTSCH, 2004).
Ademais, o conflito não pode ser confundido com a competição ou con-
corrência. Estas traduzem uma rivalidade normal em uma sociedade e afetam a
todos os campos, tanto da economia, arte, ou, ainda, religião. Isto é, a rivalidade
consiste na competição, porém não utiliza a violência. O Estado, ao reivindicar
o monopólio do uso legítimo da violência, implica que não desapareça e que
permaneça uma espécie de suspensão ao nível do poder. Significa que a com-
petição simula o conflito, e a rivalidade que lhe é própria comporta tensões e
também uma vitória e uma derrota, sem que se recorra, em princípio, à violência.
Portanto, não há aqui a exclusão do recurso violência. (FREUND, 1995).
Para compreensão desse processo, Freund (1995) apresenta uma distin-
ção entre situação polêmica e situação agonal. Por estado polêmico, entende-se
que é a violência aberta e direta ao combate regulado. Ou seja, representa uma
situação conflitiva ou que corre o risco de sê-la, não importando a forma ou grau
de violência. A característica principal está no fato de que os protagonistas se
enfrentam como inimigos, o que significa que com ou sem razão, de forma legíti-
ma ou ilegítima, há o direito de extinguir fisicamente o oponente, pois no estado
polêmico centraliza-se na intenção hostil dos oponentes, pouco importando se a
origem se dá no ódio, no medo ou na própria política.
Da mesma forma, no estado polêmico há a oposição de dois lados com
exclusão da participação do terceiro, razão pela qual se afirma que o antagonis-
mo se constituiu em um duelo, um relação amigo-inimigo. Ademais, quaisquer
que sejam os aspectos, cruéis ou mais moderados, neste estado o conflito está
no centro, pois supõe a existência de conflitos francos e qualificados, desenca-
deando provocações e intimidações de acordo com a evolução das circunstân-
cias que concorrem.
A seu turno, o estado agonal consiste na situação em que de desati-
vam os conflitos e os substituem por outra forma de rivalidade, denominada de
competição. Na situação agonal, não é aceito o simples jogo, pois se caracte-
riza também por atividades que não são, fundamentalmente, lúdicas como a
economia, a administração, a rivalidade entre religiões e as escolas artísticas.

61
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Neste estado, a característica principal é que os rivais não se comportam como


inimigos, mas como adversários, motivo pelo qual a violência e a intenção hostil
estão excluídas, pois não se trata de impor a qualquer custo a própria vontade,
mas de triunfar a partir de meios previamente estabelecidos, os quais renunciam
ao ataque físico ou moral do outro.
Portanto, no estado agonal utilizam-se regulamentos, instituições ou di-
reito, utilizando-se o papel do elemento dissuasivo. Tais regras são fixadas não
somente no sentido de orientar a ação das pessoas, mas também para determi-
nar o desenlace da rivalidade, definindo-se as condições da vitória, ou impondo
proibições quando a competição é de duração ilimitada. Ou seja, no estado ago-
nal há uma ordem reconhecida por todos, não sendo estabelecida pela vontade
discricionária do vencedor, como ocorre no conflito violento.
Por isso, no estado agonal rechaça-se a entrada da dualidade polêmica
reconhecendo-se o direito do terceiro, visto que somente se realiza quando sub-
mete toda a vida à regulamentação do direito, inclusive a decisão política. Se a
paz for mantida a partir da violação da consciência e os direitos fundamentais,
trata-se de um estado polêmico.
Nesse contexto, deve-se compreender que o conflito não é um fenômeno
anormal, mas uma condição inevitável de desenvolvimento das sociedades. Em-
bora provoque uma irregularidade, também introduz uma situação excepcional.
Destaca-se que qualquer que seja a área, quer econômica-social (greve), religio-
sa (heresia), política (guerra), o conflito gera uma situação excepcional, conside-
rada no estado polêmico mais ou menos acentuado ou explosivo que o conflito
provoca, introduzindo uma ruptura do curso normal das coisas. Isto é, situa-se
acima do direito vigente, no sentido de que a decisão de recorrer ao conflito não
se refere a uma autorização prévia da lei. O que a caracteriza, fundamentalmen-
te, é a ruptura que introduz no curso das coisas, e não é desmedido ou excessos
próprios de uma situação extrema. (FREUND, 1995).

O conflito previne estagnações, estimula interesse e curiosidade, é


o meio pelo qual os problemas podem ser manifestados e no qual
chegam as soluções, é a raiz da mudança pessoal e social. O conflito
é freqüentemente parte do processo de testar e de avaliar alguém e,
enquanto tal, pode ser altamente agradável, na medida em que se
experimenta o prazer do uso completo e pleno da sua capacidade.
De mais a mais, o conflito demarca grupos e, dessa forma, ajuda a
estabelecer uma identidade coletiva e individual; o conflito externo
geralmente fomenta coesão interna. (DEUTSCH, 2004, p. 33)

Como forma de resolver os conflitos, ou terminá-los, em consonância com


Freund (1995), as sociedades, em primeiro lugar, possuem o desenlace amorfo
a partir da utilização de mecanismos sociais, capazes de desintegrar e pulverizar
os conflitos que ocorrem. Trata-se de fazer fracassar o conflito pela intervenção
do terceiro mediador hábil no uso da palavra, o qual dissolve os impulsos pas-

62
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

sionais, filtra os motivos do conflito e expurga as ameaças que possuem os an-


tagonistas. Há, também, a segunda forma de desenlace amorfo denominada de
conflitos brandos, aqueles que as pessoas conflitam em decorrência da rotina ou
porque se deixaram arrastar por opiniões e não possuem o desejo de evitá-los,
aceitando-se o seu fim como o término de uma fadiga. A terceira forma funda-se
na luta de classes ou, mais adequado, nos antagonismos de classes.
Assim, percebe-se que a vitória, a qual significa a derrota do outro, é o
desenlace que responde à lógica interna do conflito. Eis que se fixa com o fim de
romper com a resistência do inimigo para impor a sua própria vontade.

[...] um problema é suprido somente por um novo, e um conflito, por


outro. Mas assim se realiza a verdadeira predestinação da vida, que
é uma luta em sentido absoluto, abrangendo a oposição relativa entre
luta e paz; já a paz absoluta, que talvez inclua igualmente essa oposi-
ção, permanece um segredo divino. (SIMMEL, 2013, p. 142)

A guerra se constitui na oposição à atitude psíquica incutida pelo processo


de civilização, e por essa razão não se pode evitar de se rebelar contra ela. Os
pacifistas têm uma intolerância constitucional à guerra, porém pode ser utópico
esperar dentro de um espaço curto de tempo que o restante da humanidade po-
nha fim à ameaça de guerra. (EINSTEIN; FREUD, 2005)
Como visto, uma das características principais do conflito é a aparição da
dualidade amigo-inimigo ou a bipolaridade, o que produz a dissolução do tercei-
ro, motivo pelo qual se pode definir o conflito como a relação marcada pela ex-
clusão do terceiro. Dessa forma, se analisado unicamente o problema do confli-
to, percebe-se que não se pode ignorar o terceiro, pois em virtude da polaridade
ele elimina o início e recobra durante o desenlace, além de poder romper com a
dualidade conflitiva. O terceiro, portanto, apresenta-se como a noção correlativa
por contraste ao conflito. (RESTA, 2014).

Todo conflito termina ou com a vitória de um dos dois rivais, ou então


com a intervenção de um Terceiro, ou acima, ou no meio, ou contra os
dois rivais. Em outras palavras, se um conflito deve ser solucionado
por meio da força, um dos dois deve ser eliminado. Se deve ser solu-
cionado pacificamente, é preciso que surja um Terceiro no qual as par-
tes confiem ou ao qual se submetam. Costuma-se dizer: “Duas únicas
pessoas não constituem uma sociedade”. Mereceria passar à história
um outro ditado: “Duas únicas pessoas não estabelecem um acordo
duradouro”. (BOBBIO, 2009, p. 280).

Nesse sentido, o direito é o maior terreno da racionalidade procedimental.


E no caso do procedimento judiciário, não é sem significado que tudo seja cone-
xo e finalizado por uma decisão que diga a última palavra sobre a lide. O juiz é o
ator que deve dizer a última palavra sobre a lide, ou seja, deve decidir, em nome
da comunidade, para não propagar a violência. (RESTA, 2014).

63
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Percebe-se que o resultado final será o veredicto, outra bela história,


aquela de um dito que esteja ali como verdadeiro, a decretar a verdade ou a as-
sumir-lhe a importância. A partir desse momento, as palavras afetarão destinos,
os quais terão outras histórias, outras linguagens, outros vocábulos.
Portanto, o conflito se gera na sociedade sob as vestes mais diferentes,
e sempre novas, que a mesma traduz e delega ao direito. Nos sistemas sociais
que suportam as soluções de conflitos, elas são confiadas a outros dispositivos
como, por exemplo, religioso, vingança privada, sorte, etc. Isto significa que o
Poder Judiciário não é o único remédio, mas o mecanismo social se deu como
adequado por certo tempo e em um determinado segmento da sociedade, mas
não de forma universal. (RESTA, 2014).
Nessa esteira, além dos direitos próprios à personalidade jurídica, a jus-
tiça, com frequência, pronuncia-se mais sobre a pessoa do que sobre seus di-
reitos, isto é, sobre sua liberdade, autonomia, etc., solicitando-se, assim, mais
a função tutelar do juiz do que sua função arbitral, colocando o juiz no lugar de
autoridade faltosa para autorizar uma intervenção nos assuntos particulares de
uma pessoa.
Por isso, paga a pessoa o preço do seu individualismo pela sua crescente
tutelarização, enquanto que o juiz corre o risco de ser confundido com terapeuta
ou amigo em razão de que maneja tanto os afetos como os conceitos. Ademais,
percebe-se que a transposição dos problemas humanos e sociais em termos
jurídicos compromete os vínculos sociais, pois o que era solucionado pelos cos-
tumes, de forma espontânea e implícita, atualmente submete-se à formalidade
da justiça. (GARAPON, 1999).
Em adição, defende o autor que a justiça é ao mesmo tempo “bombeiro”
e piromaníaco, pois em um mesmo movimento ela afasta as pessoas umas das
outras, desqualificando a autoridade tradicional, e se apresenta como autoridade
paliativa a essa ausência, a qual ela mesma contribui. Igualmente, afirma-se que
o direito invade a moral, a intimidade, o autogoverno, vendo-se a justiça obrigada
a prover os sujeitos de uma identidade social.
Nesse contexto de alargamento da atividade judicial, verifica-se também a
mudança que trouxe a modernidade na escala das questões apresentadas à jus-
tiça como, por exemplo, nos crimes contra a humanidade e bioética, casos esses
que não constituem o cotidiano do juiz e desafiaram as capacidades humana e
intelectual da justiça.
Por ser a justiça um dos últimos espaços de visibilidade, percebe-se, as-
sim, que sua função tem sido cada vez mais solicitada sob o fundamento de que
o problema será comentado e discutido no mérito, acarretando uma existência
pública. Ademais, recorre-se à justiça para que tome o lugar do fator político,
exatamente, porque ela não pode deixar de decidir, correndo o risco de se expor
à condenação da comunidade científica ou da opinião pública, risco tal que o
poder político evita enfrentar. (GARAPON, 1999).

64
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

A partir de Garapon (1999), vislumbra-se que se atribuiu ao juiz a qualida-


de de última instância moral na sociedade em razão da perda de referências de
autoridade tradicional como, por exemplo, de pai/esposo/patrão, etc., transferin-
do do indivíduo ao magistrado a responsabilidade de tomada de decisão acerca
da sua própria vida.
Tal descrição constitui a própria leitura da sociedade contemporânea,
marcada por ideais individualistas, incapaz de reassumir a autonomia e respon-
sabilidade de seus ações/conflitos, requerendo a um terceiro a imposição de
uma decisão ao invés de assumir seu papel na sociedade de sujeito de direito,
e não do direito.
Além disso, percebe-se que os operadores do Direito não revelam ne-
nhum excesso de sensibilidade, ao contrário, demonstra-se que as formas domi-
nantes de conceber o Direito formam operadores do Direito insensíveis, sem a
capacidade de relacionar com o outro e com o mundo.
Ou seja, os juristas mostram um desazo de escutar os sentimentos das
pessoas, os quais se encontram encobertos por camadas de representações
ideológicas que são escutadas, porém, de fato, ninguém os escuta. Os juristas
somente escutam as vozes e crenças de sua ideologia funcional ou institucional.
As escutam e ficam fascinados por elas a ponto de gerar um processo em que
terminam devorando-se a si mesmos por conta de suas ideologias. (WARAT,
2010).
O terceiro tem diversos papéis no conflito: pode ser parte ativa no conflito
ou não ser parte interessada. Enquanto parte ativa, o terceiro pode realizar o
jogo das alianças; portar-se enquanto protetor de uma das partes no conflito; ou
pode ser quem se aproveita do conflito, denominado de terceiro na discórdia. Por
sua vez, em sendo parte interessada, o papel principal é de um terceiro mode-
rado que se esforça em solucionar um conflito no qual está implicado. Trata-se,
neste caso, do mediador. O terceiro é um fator capital para a concordância inte-
rior, tanto na forma de associações como de instituições que participam dos ci-
dadãos ativos e de partidos contrários. Dessa forma, o terceiro é a configuração
elementar de uma sociedade, pois condiciona o equilíbrio, faz as mais diversas
combinações sociais e ao mesmo tempo é um fator de dissuasão de conflitos
internos. (FREUND, 1995).

A passagem do estado agonístico tem início com a primeira das várias


formas de Terceiro ativo, o Mediador, aquele que se coloca entre as
partes, não ainda acima delas, para obrigá-las a comunicar-se uma
com a outra, mas sem tomar o lugar delas na solução da controvérsia.
(BOBBIO, 2009, p. 289).

Ao falar-se em mediador, deve-se compreender como um estar no meio


entre dois polos diferentes, mas cúmplices e rivais nos quais um depende do
outro. Dessa forma, mediação indica um completo de atividades voltada a ligar

65
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

dois termos distantes, mas conexos entre si. Mediar significa religar aquilo que
está desconexo justamente pelo fato de que compartilham exatamente aquilo
que os separa.
Nesse contexto, o mediador é isto ou aquilo, não equidistante, mas equi-
próximo. Por isso, deve escolher a proximidade, sujando as mãos, pois enquanto
as partes litigam e enxergam somente o seu próprio ponto de vista, cada uma
de maneira simétrica e contrária em relação à outra, o mediador pode ver as
diferenças comuns aos litigantes e partir, novamente, daqui para que as partes
restabeleçam a comunicação. (RESTA, 2014).
A seu turno, o juiz é aquele estranho ao conflito, que diz a última pa-
lavra devido a uma metalinguagem capaz de compreender a julgar sobre as
linguagens. Na mediação, vive-se no mesmo ambiente em que os conflitos
se produzem, estando-se entre as divergências e não estranha ou separada-
mente. Ainda, afirma-se que indica entre os valores extremos o ponto de igual
proximidade, de iguais intersecções de um e de outro. Representa aquilo que
os extremos compartilham, estando no meio, no ponto de compartilhamento,
no lugar comum. Se o espaço do meio for de paz ou de guerra, depende dos
participantes do jogo, os quais não podem, nem mesmo na contenda, fazer
menos um do outro.
Portanto, Resta (2014) define mediação como a arte da interpretação por
excelência, preside a decifração das mensagens, decide sobre a compatibilida-
de linguística, significando a tradução de uma língua para a outra.
Na mediação, a verdade do conflito é uma posta em comum, uma verdade
é uma ação cooperativa, pois as pessoas se transformam juntas dentro de seus
próprios conflitos. Cabe ao mediador auxiliar as pessoas a redescobrir a co-
munidade, a reencontrar-se com a paixão de estar-em-comum. A modernidade
impôs às pessoas a necessidade de fazer tudo sozinhos, e agora necessitamos
aprender a fazer tudo em comum.
O mediador, por conseguinte, caracteriza-se por ser um terceiro elemento
que se encontra entre as duas partes, auxiliando-as a encontrar uma resposta
consensuada e estruturada de forma que permita a continuidade da relação
entre as partes. Assim, o mediador consiste no terceiro que catalisa o conflito
através do posicionamento no meio das partes, partilhando um espaço comum e
participativo. “Isso se dá porque a mediação é uma arte na qual o mediador não
pode se preocupar em intervir no conflito, oferecendo às partes liberdade para
tratá-lo.” (SPENGLER, 2014, p. 52).
A figura do mediador não possui um papel central, ou seja, posiciona-se de
forma secundária, eis que seu poder de decisão é limitado, não podendo intervir ou
impor decisões. Seu papel é mediar e conciliar os interesses conflitivos, conduzindo
as partes na solução mais adequada para as necessidades e desejos delas.

66
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

A mediação é a melhor fórmula até agora encontrada para superar


o imaginário do normativismo jurídico, esfumaçando a busca pela
segurança, previsibilidade e certeza jurídicas para cumprir com objetivos
inerentes à autonomia, à cidadania, à democracia e aos direitos
humanos. Portanto, as práticas sociais de mediação configuram-se em
um instrumento de exercício da cidadania, na medida em que educam,
facilitam e ajudam a produzir diferenças e a realizar tomadas de
decisões, sem a intervenção de terceiros que decidem pelos afetados
em um conflito. (SPENGLER, 2010a, p. 52).

Para ilustrar o papel do mediador no tratamento do conflito, utiliza-se Ost


(2004), o qual apresenta Moisés como mediador diante da doação da lei pelo
próprio Deus ao povo judeu, o que conduz a um deslocamento significativo do
mito da lei perfeita.
Na sua reflexão, o autor refere que uma vez instituída a comunidade e
promulgada a lei, começa, inevitavelmente, o processo de desinstituição que
vê multiplicarem-se manobras e facções, enquanto a lei se compromete com
todo o tipo de vilania, seja ela pequena ou grande. Também, às vezes as leis
são corrompidas, feitas por ricos e poderosos para a conservação do poder e
da riqueza. Por isso, enquanto a sociedade estiver fundada sobre a injustiça,
as leis defenderão tal injustiça e parecerão tão mais respeitáveis quanto mais
injustas forem.
Nesse contexto, Ost (2004) resgata o episódio do Sinai, o qual alimenta a
ideia de um direito autoritário e unilateral, e sugere a figura de um deus castra-
dor, onipotente que aniquila a personalidade dos sujeitos.

Disse o Senhor a Moisés: Tenho visto que este povo é um povo


obstinado.
Deixe-me agora, para que a minha ira se acenda contra eles, e eu os
destrua. Depois farei de você uma grande nação.
Moisés, porém, suplicou ao Senhor, o seu Deus, clamando: Ó Senhor,
por que se acenderia a tua ira contra o teu povo, que tiraste do Egito
com grande poder e forte mão?
Por que diriam os egípcios: “Foi com intenção maligna que ele
os libertou, para matá-los nos montes e bani-los da face da terra”?
Arrepende-te do fogo da tua ira! Tem piedade, e não tragas este mal
sobre o teu povo! (Ex. 32, 9-12)

Por outro lado, percebe-se que os homens, ao se reconhecer mutuamente


endividados, podem então assumir sua parte de lei, num gesto que se mostra mais
como de libertação do que de alienação. Assim, a história da lei negociada começa
com a libertação, sendo o faraó, Moisés e o povo judeu como os protagonistas.
Verifica-se que ao mesmo tempo em que o Senhor, sobre o monte, dá
a Moisés a Lei, o povo o transgride, dizendo-se incapaz de esperar e diante
da ausência de seu mediador, pediram a Aarão que fizesse seu deus, para
marchar à sua frente, pois Moisés, que o tirou do Egito, não se sabe do que
é feito. Assim, o povo, cansado de um Deus invisível, com Moisés ausente,

67
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

clama pela presença concreta do Senhor, encontrando um bezerro de metal


fundido confeccionado por Aarão, o deus palpável, visível por todos. (ÊXO-
DO, 32, 1-6).
Adiciona-se, nesse rumo, que o Sinai é o processo do direito em proces-
so. O processo do direito tornado consciente a si mesmo; um debate explícito
acerca das regras do jogo jurídico sob o pano de fundo de uma aliança prévia.
Ademais, compreende-se que todo o direito consiste nesse jogo do vínculo e do
limite, sendo o vínculo que cimenta uma comunidade e o limite que preserva da
confusão.
Salienta-se, ainda, que o jogo do direito a várias vozes é mais complicado,
da mesma forma que toda formulação unilateral da lei se expõe a um fracasso.
Ou seja, o texto da lei somente se corporifica quando é derivado de várias for-
mulações, escrito por várias mãos e podendo ser revisado.

Então Moisés desceu do monte, levando nas mãos as duas tábuas da


aliança; estavam escritas em ambos os lados, frente e verso.
As tábuas tinham sido feitas por Deus; o que nelas estava gravado fora
escrito por Deus.
Quando Josué ouviu o barulho do povo gritando, disse a Moisés: “Há
barulho de guerra no acampamento”.
Respondeu Moisés: “Não é canto de vitória, nem canto de derrota; mas
ouço o som de canções!”
Quando Moisés aproximou-se do acampamento e viu o bezerro e as
danças, irou-se e jogou as tábuas no chão, ao pé do monte, quebrando-
as. (Ex. 32, 15-19).

Como se percebe, toda formação unilateral da lei está fadada ao fracasso,


da mesma forma, todo conflito necessita de um terceiro neutro, como Moisés que
permitiu a comunicação entre Deus e o povo fazendo nascer um novo povo e um
novo Deus, capaz de reunir-se na tenda do encontro, na qual está depositada
a arca sagrada com as palavras. Toda lei será respeitada quando for precedida
pelo diálogo e pela negociação. (OST, 2004).

No dia seguinte Moisés disse ao povo: “Vocês cometeram um grande


pecado. Mas agora subirei ao Senhor, e talvez possa oferecer
propiciação pelo pecado de vocês”.
Assim, Moisés voltou ao Senhor e disse: Ah, que grande pecado
cometeu este povo! Fizeram para si deuses de ouro.
Mas agora, eu te rogo, perdoa-lhes o pecado; se não, risca-me do teu
livro que escreveste.
Respondeu o Senhor a Moisés: Riscarei do meu livro todo aquele que
pecar contra mim.
Agora vá, guie o povo ao lugar de que lhe falei, e meu anjo irá à sua
frente. Todavia, quando chegar a hora de puni-los, eu os punirei pelos
pecados deles. (Ex. 32, 30-34)

Por essa razão, o mediador deve apresentar os seguintes requisitos,


consoante destaca Spengler (2014): a) capacidade de aplicar diferentes

68
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

técnicas autocompositivas em conformidade com a necessidade de cada litígio;


b) capacidade de escutar a exposição de cada pessoa/parte, fazendo uso
da técnica da escuta ativa; c) capacidade de inspirar respeito e confiança; d)
capacidade de administrar situações em que os ânimos estejam acirrados; e)
estimular as partes a desenvolverem soluções criativas, as quais permitam a
compatibilização dos interesses aparentemente contrapostos; f) examinar os
fatos sob uma nova ótica, afastando as perspectivas litigiosas para aproximar
as perspectivas conciliatórias; g) motivar os envolvidos para atingir um resultado
sem atribuição de culpas; h) estimular o desenvolvimento de condições que
permitam reformular questões diante de eventuais impasses; i) abordar com
imparcialidade todas e quaisquer questões que estejam influenciando a relação
entre as partes.
Assim, as principais funções do mediador incluem:

presidir a discussão; esclarecer as comunicações; educar as partes;


traduzir as propostas e discussões em termos não polarizados;
expandir recursos disponíveis para o acordo; testar a realidade das
soluções propostas; garantir que as soluções propostas sejam capazes
de ser anuídas; servir como um bode expiatório para a veemência
e frustração das partes; e assegurar a integridade do processo de
mediação. (STULBERG; MONTGOMERY, 2003, p. 115).

Assim, os autores acima afirmam que o mediador deve ser imparcial,


objetivo, flexível, inteligente, paciente, persistente, enfático, ouvinte eficaz,
imaginativo, respeitado no seu contexto social, honesto, confiável, não
superprotetor, perseverante, persuasivo, enérgico e otimista.
O terceiro, portanto, pode auxiliar a resolver disputas construtivamente,
desde que seja acessível, prestigioso, hábil, imparcial e discreto. (SPENGLER,
2014).
Ademais,

o trabalho do mediador é assistir as partes a elaborarem termos


conciliatórios que elas considerem aceitáveis. O fato de que a
resolução possa ser ineficiente, limitada ou egoísta é irrelevante, e o
mediador aprovar os termos conciliatórios também não é importante. O
objetivo do processo de mediação é facilitar o processo democrático de
elaboração de decisão no qual as partes em disputa estão envolvidas.
(STULBERG; MONTGOMERY, 2003, p. 113).

As estratégias podem ser resumidas em: a) suporte às partes; b) controle


do processo; e c) resolução do problema. Salienta-se, entretanto, que não é de
competência do mediador a oferta da resposta ao conflito, apenas a manutenção
e orientação do seu tratamento. (SPENGLER, 2014).
O mediador apresenta-se, dessa forma, como facilitador, educador
ou comunicador, cujo objetivo é esclarecer as questões, identificar e manejar
sentimentos, gerar opções e, por conseguinte, alcançar um acordo sem a

69
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

necessidade de uma batalha judicial. (CALMON, 2007).


Nesse rumo, a partir da história narrada, compreende-se que a mediação
seria uma resposta ecopolítica de resistência às formas jurídico-institucionais do
poder, pois as formas atuais pretendem submeter os homens a condições infer-
nais: o estado de guerra permanente, como a política totalitária. (WARAT, 2010).

A mediação, como ética da alteridade, reivindica a recuperação do


respeito e do reconhecimento da integridade e da totalidade de todos
os espaços de privacidade do outro. Isto é, um respeito absoluto pelo
espaço do outro, e uma ética que repudia o mínimo de movimento
invasor. É radicalmente não invasora, não dominadora, não aceitando
dominação sequer nos mínimos gestos. (SPENGLER; SPENGLER
NETO, 2013, p. 100).

A mediação, enquanto procedimento democrático, acolhe a desordem


(conflito) como forma de evolução social. Aposta na diferença entre o tratamento
do conflito de forma tradicional para uma estratégia partilhada e convencionada
a partir de um Direito inclusive. Assim, fundamenta-se em uma matriz autônoma,
cidadã e democrática. (SPENGLER, 2010a).
A partir do exposto, verifica-se o avanço do Brasil pela implementação de
uma Política Pública de tratamento de conflitos, a qual concretiza a mediação
enquanto expressão de uma nova cultura, bem como reconhece a importância
de um terceiro entre as partes, e não acima delas.

3.3 A Mediação no Brasil a partir da


Resolução 125/2010 do Conselho Nacional
de Justiça. Há tratamento do conflito?

No Brasil, vislumbra-se que a adoção de métodos complementares de


tratamento de conflitos faz parte da agenda dos Três Poderes: no Legislativo,
há projetos de leis em tramitação;60 no Executivo, por meio de Políticas Públicas
para implantação de métodos de autocomposição dos conflitos; e no Judiciário,
a partir da Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, a qual insti-
tuiu uma Política Nacional de Tratamento de Conflitos. (GABBAY, 2013).
Nesta investigação, o objeto de análise concentra-se nas medidas ado-
tadas pelo Poder Judiciário de criação e implementação de uma política pública
de mediação e conciliação, a partir da Resolução n. 125 de 29 de novembro de

60 Atualmente, estão em tramitação quatro projetos de lei referente à regulamentação da media-


ção: PL 8046/2010; PLS 517/2011; PLS 434/2013; e PLS 405/2013. (SPENGLER, 2014)

70
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

2010, com emenda em 31 de janeiro de 2013.


Ao Judiciário é atribuída a tarefa de instalar e fiscalizar as centrais de
mediação e conciliação, sendo compromisso do CNJ a gestão de recursos hu-
manos e estruturais relacionados à implementação da política pública. Ainda, a
Resolução prevê a possibilidade de firmar parcerias com entidades públicas e
privadas.
Ademais, a fim de atingir o objetivo de disseminação de uma cultura de
pacificação social, determina-se a centralização das estruturas judiciárias, com
adequada formação e treinamento dos servidores, mediadores e conciliadores,
bem como acompanhamento estatístico específico. (MORAIS; SPENGLER,
2012).
Destaca Gabbay (2013) duas novidades trazidas pela referida Resolução:
a criação de Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Conflitos e Ci-
dadania e a instalação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidada-
nia para auxiliar os Juízos, Juizados ou Varas com competência nas áreas cível,
fazendária, previdenciária e família.

Um dos focos da Resolução n. 125/2010 é criar uma disciplina mínima


e uniforme para a prática dos meios consensuais de solução de con-
flitos no Judiciário, que funcionam como um importante filtro da litigio-
sidade, além de estimular em nível nacional a cultura da pacificação
social, estabelecendo diretrizes para implantação de políticas públicas
que tracem caminhos para um tratamento adequado de conflitos. (GA-
BBAY, 2013, p. 195).

Como vantagens da política pública instituída, podem ser elencadas


as seguintes: a) melhor equacionamento da justiça, a partir da valorização
da via pré-processual; b) acesso a uma ordem jurídica justa, por meio da
disponibilização de várias hipóteses de tratamento do conflito, permitindo a
escolha pelas partes do método mais adequado; c) qualidade dos serviço,
alcançada pela capacitação de todos os envolvidos nos procedimentos. (MO-
RAIS; SPENGLER, 2012).
Por outro lado, a observação da Resolução expõe fragilidades quanto à
estrutura física e de pessoal; quanto à capacidade financeira do Judiciário bra-
sileiro em suportar os custos da implantação da política pública; quanto à resis-
tência social, em especial, aceitação e utilização desses mecanismos. (SPEN-
GLER, 2014).
Nessa ótica, verifica-se que a mediação, embora instrumento que permita
o restabelecimento da harmonia e da comunicação entre os conflitantes, encon-
tra resistência da sua aceitação e aplicação. Compreende-se que as dificuldades
encontradas decorrem de que: a) se trata de um procedimento relativamente
novo; b) é um procedimento não disciplinado em muitos países; c) a perspectiva
de uma verdade consensual se opõe à verdade processual, ou seja, substitui-se
a figura do juiz enquanto quem toma a decisão para a possibilidade de escolha

71
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

das partes. (SPENGLER, 2014).


Para visualizar a possível mudança no cenário jurídico-social no Brasil
a partir da implantação da mediação, serão utilizados os dados coletados pelo
Conselho Nacional de Justiça, cujo relatório é anual, sendo denominado de “Jus-
tiça em Números”. A fim de atingir o propósito da pesquisa, optou-se pela análise
dos dados da Justiça Estadual nos anos de 2010 a 2012.
A Justiça Estadual está estruturada em dois graus de jurisdição: o primei-
ro é composto por juízes de Direito, enquanto que o segundo é formado por 27
Tribunais de Justiça, um em cada estado do Brasil, cuja competência é julgar
recursos das decisões dos juízes de primeiro grau.
No gráfico abaixo, estão expostos os dados referentes aos casos novos,
somados primeiro e segundo graus da Justiça Estadual, exceto a área criminal.
Justifica-se a exclusão pelo fato de que a análise realizada neste estudo dedica-
se a verificar a concretização da mediação como meio adequado de tratamento
de conflito.
A partir dos dados coletados, verifica-se que no ano de 2010 foram
ajuizados mais de 12 milhões de casos novos, seguido por 2012 com 11 mi-
lhões 887 mil e 269 casos. A seu turno, 2011 teve um número reduzido em
comparação com os demais anos, totalizando 7 milhões, 427 mil e 435 casos
novos.

Fonte: Conselho Nacional de Justiça

Com relação ao número de casos pendentes, o ano de 2010 também


ultrapassou os demais utilizados como base na presente análise, conforme se
verifica no gráfico que segue:

72
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

Fonte: Conselho Nacional de Justiça

Em análise ao número de processos baixados e decisões prolatadas pe-


los magistrados, o ano de 2010, como nos demais parâmetros, atingiu os índices
mais elevados em comparação aos anos de 2011 e 2012.

Fonte: Conselho Nacional de Justiça

Ainda, importa referir que a taxa média de congestionamento, em 2010,


atingiu 54% (aqui considerados primeiro e segundo graus); enquanto que, em
2011 foi de 59,4% e, em 2012, 73%.
Assim, com base nos dados relatados acima, verifica-se que a Jurisdi-
ção, na sua forma tradicional, não possui capacidade para atender de forma
satisfatória toda a demanda recebida, bem como pelo alto número de casos

73
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

novos por ano, percebe-se que ainda se requer muito avanço da sociedade no
reconhecimento de métodos complementares de tratamento de conflitos, a fim
de perpetuar uma nova cultura de responsabilização das partes acerca dos seus
conflitos, e capacitação para apresentar uma resposta adequada.
A mediação, bem como os demais meios complementares à Jurisdição
tradicional, opõem-se à explosão de litigiosidade decorrente da quantidade e
qualidade das lides que chegam ao Poder Judiciário. (SPENGLER, 2014).
Nesse sentido, buscam-se mudanças e transformações no relacionamen-
to do Poder Judiciário com a sociedade em razão da grande insensibilidade que
sentem em face de seus problemas, dos seus direitos, da interpretação que
deles o sistema faz. É necessário que os Tribunais se vejam como parte de uma
coalização política que leve a Democracia a sério, acima dos mercados e da
concepção possessiva e individualista de direitos.
Nessa ótica, verifica-se que a experimentação social com concepções al-
ternativas do exercício do(s) direito(s) e da cidadania que atualmente se vive,
inclusive no Brasil, indica uma contribuição decisiva e criativa para a renovação
da teoria crítica do direito. (SANTOS, 2011).
A Resolução n. 125/2010, embora apresente deficiências na sua propos-
ta, corrobora com a construção de uma cultura jurídica que leve os cidadãos a
sentirem-se mais próximos da justiça, por meio do reconhecimento da ineficiên-
cia da prestação jurisdicional atual e instituição de meios complementares mais
adequado às necessidades das partes.

74
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

CONCLUSÕES
Na discussão apresentada, aborda-se uma nova possibilidade de olhar e
estabelecer relações na sociedade a partir do Direito Fraterno. Assim, busca-se
um modelo de sociedade na qual a Justiça não seja a aplicação de regras frias,
mas esteja atrelada a uma moral compartilhada entre iguais, ou seja, um modelo
de sociedade na qual a amizade seja entendida como relação pessoal e como
forma de solidariedade.
Dessa maneira, verifica-se que o Direito Fraterno constitui-se em um me-
canismo de promoção dos direitos humanos, pois valoriza o ser humano na sua
relação com iguais, defendendo um espaço em que as pessoas compartilham
sem diferenças, porque respeitam todas elas. São postulados éticos e primários
de toda ordem moral e jurídico-positiva de cujos limites nenhum poder político
pode afastar-se. São balizadores de todo poder político da sociedade organi-
zada, fundados na natureza racional do ser humano, portanto universais. São,
portanto, princípios e valores.
Compreende-se, nesse rumo, que o Direito Fraterno é um direito jurado,
em conjunto, por irmãos, homens e mulheres, com um pacto em que se ‘decide
compartilhar’ regras mínimas de convivência. Destarte, o olhar fraterno é, antes
de tudo, um olhar para os direitos humanos, e não para o direito de cidadania
(sempre lugar de exclusão individualista); é para a humanidade como um lugar
comum e universal, mas não universal no sentido de homogêneo, que mascara
as diferenças.
Dessa forma, fundamenta-se no processo comunicacional, no tratamento
alternativo e efetivo de conflitos, no diálogo e consenso, bem como no respeito
absoluto aos direitos humanos e na dignidade de pessoa humana, revelando-
se, portanto, preconizador do Estado Democrático de Direito e assecuratória de
seus princípios e valores.
Nesse sentido, a resolução dos conflitos pela intervenção estatal pode
acentuar/reconhecer as diferenças e desproporcionalidades, conforme vislum-
brado na relação triádica tradicional.
Por sua vez, a mediação caracteriza-se por propor uma outra cultura, me-

75
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

diante práticas consensuadas e autônomas que devolvem à pessoa e à comuni-


dade a capacidade de lidar com o conflito inerente a sua existência.
A mediação se apresenta como meio voluntário, compartilhado, eficien-
te e adequado de tratar conflitos, razão pela qual a Resolução n. 125 de 2010
do Conselho Nacional de Justiça reconheceu-a como forma complementar de
tratamento adequado de conflito, demonstrando um avanço tardio do Brasil no
reconhecimento da incapacidade do Poder Judiciário de responder a todos os
conflitos que batem à sua porta de forma satisfatória.
Ao contrário do magistrado, o qual está acima das partes e profere uma
decisão para por fim ao conflito, o mediador está entre as partes, atuando en-
quanto catalisador do conflito, facilitando a comunicação, o diálogo e a constru-
ção pelos próprios conflitantes de uma solução adequada ao litígio.
No entanto, conforme já explanado, a referida resolução apresenta fragili-
dades, em especial, no tocante à concretização da política pública. As dificulda-
des dizem respeito, principalmente, à estrutura física e de pessoal, à capacidade
financeira do Poder Judiciário em arcar com os custos de implantação da política
pública e à resistência social, quanto à aceitação e utilização de tais mecanismos.
Destaca-se, ainda, que o instituto da mediação não pode ser visto como
meio direto de desafogar o Judiciário, mas como formas de tratar adequada-
mente o conflito, cuja consequência a longo prazo será a redução de demandas
judiciais. Reconhece-se o avanço do Poder Judiciário no Brasil ao implantar as
formas complementares de tratamento de conflito, porém peca ao institucionali-
zá-las, transformando-as em mera fase do processo, com um rito a ser seguido,
inviabilizando-as pela forma de capacitação dos terceiros mediadores e concilia-
dores, bem como pelos procedimentos a serem adotados. E, também, corrompe
o papel de emancipação e autonomia das partes ao apresentá-las como meio
de diminuir o congestionamento do Poder Judiciário, fazendo com que sejam
consideradas enquanto formas de redução quantitativa das demandas judiciais,
a curto prazo.
Trata-se a mediação de política pública que garante o acesso à justiça no
sentido amplo e fortalece a participação social do cidadão, concretizando uma
ordem consensuada e inclusiva. Muito além de uma resolução, deve-se antes
compreender e fomentar uma cultura de paz, de alteridade e de tratamento de
conflitos de forma qualitativa.

76
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

REFERÊNCIAS
ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como dere-
chos exigibles. Madrid: Trotta, 2004.

ALBACAR LOPEZ, José Luis. La durata e il costo del processo nell’ordinamento


spagnolo, in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Anno XXXVII, nº. 3,
Milano: Dott A. Giuffré Editore, settembre, 1983.

ALBORNOZ, S.; GAI, E. P. Ó Meus Amigos, Não Há Amigos! Reflexão sobre


amizade. Santa Cruz do Sul: Editora Movimento/Edunisc: 2010.

ALLARD, J.; GARAPON, A. Os juízes na mundialização. A nova revolução do


direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

ARENDT, Hannah. Condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2004.

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad.: Mauro W. Barbosa de


Almeida. São Paulo: Perspectiva, 5º ed, 1992.

ARISTÓTELES, L’amicizia. Siena: Lorenzo Barbera Editore S.r.l, 2005.

ARISTÓTELES, Os pensadores. Nova Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

AZEVEDO, José Luís. Perfil do juiz: da modelação à crise de identidade, in Ins-


tituto de História do Direito e do Pensamento Político da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa - Conselho Superior da Magistratura (org). O perfil
do juiz na tradição ocidental – Seminário Internacional. Lisboa: Almedina, 2009.

BACON, Francis. Essays. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/


download/texto/gu000575.pdf, acesso em 28 Jul. 2014.

77
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

BAGNASCO, Arnaldo. Comunità: definizione. In: http://www.fondazionebas-


so.it/site/itIT/Menu_Principale/Risorse_online/Parolechiave/Archi-
vio_parole_chiave/comunita’.html, acessado em Modernidade líquida.
07.02.2011.

BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Processo de Conhecimento e procedimen-


tos especiais, in Ajuris. Ano XX, nº. 57, Porto Alegre, março, 1993.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os


conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: 2009.

BAUMAN. Zygmunt. Comunidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2001.

BECKER, Laércio Alexandre; SANTOS, Edson Luís Silva. Elementos para uma
teoria critica do processo. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.

BETTI, E. Interpretazione della legge e degli atti giuridici (teoria generale e dog-
mática). 2. ed. Milano: Giuffrè, 1971.

BÍBLIA. Êxodo. Bíblia Sagrada. Disponível em: http://biblia.com.br/novaversaoin-


ternacional/exodo/ex-capitulo-32/. Acesso em: 28 Ago. 2014.

BOBBIO, Norberto. O Terceiro Ausente. Ensaios e Discursos sobre a Paz e a


Guerra. Barueri: Manole, 2009.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução de Fernando Ferraz. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil. Tradução de Luiz Abezia e San-


dra Drina Fernandez Barbiery. Vol. III, Campinas: Bookseller, 1999.

CALAMANDREI, Piero. Proceso y democracia. Traducción de Hector Fix Zamu-


dio. Buenos Aires: Ediciones juridicas Europa-America, 1960.

CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro:


Forense, 2007.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Direitos funda-


mentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009.

78
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

CAMPILONGO, Celso. Magistratura, sistema jurídico e sistema político, in FA-


RIA, José Eduardo (org.) Direito e Justiça: a função social do Judiciário. São
Paulo: Ática, 1994.

CAPELLA, Juan Ramón. Fruta Prohibida. Una aproximación histócico-teorética


al estudio del derecho y del estado. Madrid: Editorial Trotta, 2006

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen


Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

CAPPELLETTI, Mauro. A ideologia no processo civil, tradução de Athos Gusmão


Carneiro, in AJURIS. Ano VIII, nº 23, Porto Alegre, novembro, 1981.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Irresponsáveis? Tradução de Carlos Alberto Álva-


ro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1989.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Alvaro


de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1993.

CAPPELLETTI, Mauro. Problemas de reforma do processo civil nas sociedades


contemporâneas, tradução de José Carlos Barbosa Moreira, in Revista de Pro-
cesso. Ano 17, nº. 65, São Paulo: Revista dos Tribunais, janeiro-março, 1992.

CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, ideologias e sociedad. Traduccion de Santiago


Sentis Melendo y Tomás A. Banzhaf, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa
-America, 1974.

CARNELUTTI, Francesco. Derecho y proceso. Traducción de Santiago Sentis


Melendo. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1981.

CÍCERO, Marcos Túlio. Da amizade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

CÍCERONE, Marcos Tullio. L’amcizia. Cura e versione di Emma Maria Gigliozzi.


Roma: Newton Compton editori s.r.l., 1993.

COBRY, Ivan. Vocabolario greco della filosofia. Traduzione e cura dell’edizione


italiana di Tiziana Villani. Milano: Bruno Modadori, 2004.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números. Disponível em:


http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/eficiencia-modernizacao-e-transparen-
cia/pj-justica-em-numeros/relatorios. Acesso em: 25 Ago. 2014.

79
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 125 de 29 de novembro de


2010. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presi-
dencia/resolucoespresidencia/12243-resolucao-no-125-de-29-de-novembro-
de-2010. Acesso em: 25 Ago. 2014.

CORTE EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS. GARCIA MANIBARDO c. ES-


PANHA. Disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/su-
mariosTEDH.pdf. Acesso em 28 de Janeiro de 2008.

DAHRENDORF, Ralf. Homo Sociologicus: ensaio sobre a história, o significado e


a crítica da categoria social. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.

DAHRENDORF, Ralf. O Conflito Social Moderno. Um ensaio sobre a política da


liberdade. Trad. Renato Aguiar e Marco Antonio Esteves da Rocha. São Paulo:
Edusp, 1992.

DEUTSCH, Morton. A resolução do conflito: processos construtivos e destruti-


vos. In: Estudos de Arbitragem, Mediação e Negociação. Vol. 3. André Gomma
de Azevedo (org.) Brasília: Grupos de Pesquisa, 2004.

DONOLO, Carlo. Fiducia: un bene comune. In: Parolechiave: nuova serie di pro-
blemi del socialismo. Roma: Carocci Editore, v. 42, dicembre 2009.

DUARTE, Francisco Carlos. Tempo e decisão na sociedade de riso: um estudo


de direito comparado, in Revista de Processo, ano 32, n. 148, São Paulo: Revis-
ta dos Tribunais, jun./2007.

EINSTEIN, A.; FREUD, S. Um diálogo entre Einstein e Freud – por que a guerra?
Santa Maria: FADISMA, 2005.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução de


Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2 v.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Vol. I: uma História dos Costumes. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1994.

EPSTEIN, Joseph. Amicizia. Traduzione di Giulianna Ravviso. Bologna: Il Muli-


no, 2008.

80
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

FARIA, José Eduardo. A crise do Judiciário no Brasil: notas para discussão,


in SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Jurisdição e Direitos Fundamentais: anuário
2004/2005. Vol. I, Tomo I. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

FARIA, José Eduardo. As transformações do judiciário em face de suas respon-


sabilidades sociais, in FARIA, José Eduardo (org.) Direitos Humanos, Direitos
Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 1998.

FARIA, José Eduardo. O poder judiciário no Brasil: paradoxos, desafios e alter-


nativas. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1995.

FARIA, José Eduardo. O poder Judiciário nos universos jurídico e social: esboço
para uma discussão de política judicial comparada, in Revista Serviço Social e
Sociedade. Ano. XXII, n. 67. set. 2001. São Paulo: Cortez, 2001.

FARIA, José Eduardo. Os desafios do Judiciário. Revista USP. São Paulo, n. 21,
p. 47-57: Coordenadoria de Comunicação Social (CCS) / USP, 1994. file:///C:/
Documents%20and%20Settings/Usuario/Meus%20documentos/Download-
s/26935-31280-1-SM%20(1).pdf, acesso em 28 de julho de 2014.

FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Tradução de Elisa Monteiro e


Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2004.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Tradução de Maria Thereza da


Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Graal,
2005.

FREUND, Julien. Sociologia del conflito. Traducción de Juan Guerrero Roiz de


la Parra. Madrid: Ministerio da Defesa, Secretaría General Técnica. D.L., 1995.

GABBAY, Daniela Monteiro. Mediação & Judiciário no Brasil e nos EUA. Condi-
ções, Desafios e Limites para a institucionalização da Mediação no Judiciário.
Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.

GARAPON, Antoine. Bem julgar. Ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto
Piaget, 1997.

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. O guardião de promessas. Trad.


Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

GERVASONI, T. A.; LEAL, M. C. H. Judicialização da política e ativismo judicial


na perspectiva do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Multideia, 2013.

81
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

GONÇALVES, Rodrigo. Ideologia e processo: a dificuldade de construção de


uma teoria crítica, in Revista da Escola Superior de Advocacia (ESA – OAB/RS),
ano 2, n. 2, Porto Alegre: Nota Dez, Jul/Set., 2005.

GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Los cambios de paradigmas en el derecho procesal


el “neoprocesalismo”, in Revista de Processo, n. 151, São Paulo: Revista dos
Tribunais, setembro/2007.

LA BOÉTIE, Etienne de. O Discurso da servidão voluntária; (Comentários) Pierre


Clastres, Claude Lefort, Marilena Chauí; Tradução: Laymert Garcia dos Santos.
São Paulo: Brasiliense, 1999.

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Los elementos del Derecho natural. Estudio preli-
minar, traducción y notas de Tomás Guillén Vera. Madrid: Editorial Tecnos S. A.,
1991.

LEONARDIS, Ota. Appunti su fiducia e diritto. Tra giuridificazione e dirito infor-


male. In: Parolechiave: nuova serie di problemi del socialismo. Roma: Carocci
Editore, v. 42, dicembre 2009.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2 ed. Petrópolis:


Vozes, 2005.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual pena e sua conformidade constitucio-


nal, vol. I Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007

LUHMANN, Niklas. La fiducia. Bologna: Il Mulino, 2002.

MARINONI, Luiz Guilherme. A técnica da cognição e a construção de procedi-


mentos adequados à tutela de direitos, in Revista Forense, nº. 325, Rio de Ja-
neiro: Forense, 1994.

MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade


jurisprudencial na “sociedade órfã”. Tradução de Martônio de Lima e Paulo Albu-
querque, in Revista Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, nº 58. nov. 2002.

MERRYMAN, John Henry. La tradición jurídica romano-canonica. Tradución de


Carlos Sierra. México: Fondo de Cultura Económica, 1979.

MONEDERO, Juan Carlos. El gobierno de las palabras: política para tiempos de


confusión. Caracas: Centro Internacional Miranda, 2012.

82
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

MORAIS, J. L. B. de; SPENGLER, F. M. Mediação e Arbitragem. Alternativas à


Jurisdição! Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

NEVES, A. Castanheira. Digesto. Escritos acerta do Direito, do pensamento jurí-


dico e da sua metodologia e outros. vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.

ORTEGA, Francisco. Genealogias da Amizade. Coleção Políticas de Imanência.


São Paulo: Iluminuras, 2002.

OST, François. Contar a Lei. As Fontes do Imaginário Jurídico. Tradução Paulo


Neves. São Leopoldo: editora Unisinos, 2004.

OST, François. El tiempo del derecho. Traducción de Maria Guadalupe Benitez.


México: Siglo XXI, 2005.

PEREIRA FILHO, B. C.; MORAES, D. M. de. A tutela dos direitos e a remo-


delação do papel reservado ao juiz como corolário principiológico do acesso
à justiça. Pensar, Fortaleza, v. 17, n. 1, p. 33-56, jan./jun. 2012, disponível em
file:///C:/Documents%20and%20Settings/Usuario/Meus%20documentos/Down-
loads/2276-7490-1-PB.pdf, acesso em 17 de agosto de 2014.

PEREIRA FILHO, B. C.; OLIVEIRA, E. A. B. de. A estrutura do Código de Pro-


cesso Civil: uma afronta à igualdade, in http://www.conpedi.org/manaus/arqui-
vos/Anais/Benedito%20C.%20P.%20Filho%20e%20Emerson%20A.%20B.%20
de%20Oliveira.pdf Acesso em 15 de janeiro de 2008.

PLATÃO, Lísis. Brasília: UnB, 1995.

Platão. Diálogos. Banquete. Sintra: Publicações Europa-América, 1977.

PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria


do Advogado, 1997.

REDENTI, Enrico. Derecho Procesal Civil. Traducción de Santiago Sentís Me-


lendo y Marino Ayerra Redín, tomo III. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Euro-
pa-America, 1957.
RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005.

RESTA, Eligio. Le regole della fiducia. Roma: Laterza, 2009.

RESTA, Eligio. Tempo e Processo. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2014.

83
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

RICCOBONO, Francesco. Fidúcia, fede, diritto. In: Parolechiave: nuova serie


di problemi del socialismo. Roma: Carocci Editore, v. 42, dicembre 2009.

RICOEUR, Paul. O justo ou a essência do justiça. Tradução de Vasco Casimiro.


Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

RIGAUX, François. A lei dos juízes. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder. Ensaio sobre a sociologia


da retórica jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris,1988.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3.


Ed. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3


ed. São Paulo: Editora Cortez, 2007.

Sêneca, As relações humanas: A amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitu-


de perante a morte. São Paulo. Landy, 2007.

SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra cultura


no Tratamento de Conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010b.

SPENGLER, Fabiana Marion. Fundamentos Políticos da Mediação Comunitária.


Ijuí: UNIJUÍ, 2012.

SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação: um retrospecto histórico, conceitual e


teórico. In: Mediação enquanto política pública [recurso eletrônico] : a teoria, a
prática e o projeto de lei / organizadores: Fabiana Marion Spengler, Theobaldo
Spengler Neto. - 1.ed. - Santa Cruz do Sul : EDUNISC, 2010a.

SPENGLER, Fabiana Marion. Retalhos de Mediação. Santa Cruz do Sul: Essere


nel Mondo, 2014.

SPENGLER, F. M.; SPENGLER NETO, T. A Mediação como Prática Comunicativa


dos Conflitos. In: A Resolução 125 do CNJ e o papel do terceiro conciliador e
mediador na sua efetivação [recurso eletrônico] / organização de Fabiana Marion
Spengler, Theobaldo Spengler Neto – Curitiba: Multideia, 2013.

SPENGLER, F. M.; SPENGLER NETO, T. A Mediação e a Conciliação Propostas


pelo Projeto 8.046/2010 (Novo Código de Processo Civil Brasileiro - CPC)
como Mecanismos Eficazes de Tratamento de Conflitos. In: Acesso à justiça,

84
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

jurisdição (in)eficaz e mediação: a delimitação e a busca de outras estratégias


na resolução de conflitos [recurso eletrônico] / organização de Fabiana Marion
Spengler, Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Curitiba: Multideia, 2013.

SPENGLER, F. M. et. al. Políticas Públicas no tratamento dos conflitos: um novo


olhar para a jurisdição. Editorial Académica Española, Alemanha: 2012.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência? 2ª


ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

STULBERG, J. B.; MONTGOMERY, B. R. Requisitos de Planejamento para


Programas de Formação de Mediadores. In: Estudos em Arbitragem, Mediação
e Negociação Vol 2 / André Gomma de Azevedo (org.) - Brasília: Grupos de
Pesquisa, 2003.

VERNANT, Jean-Pierre. L’individu, la mort, l’amour. Soi-même et l’autre em


Grèce ancienne. Paris: Gallimard, 1989.

VIANNA, L. W., et al. A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil.


Rio de Janeiro: Renavan, 1999.

WARAT, Luis Alberto. A Rua Grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade,


Surrealismo e Cartografia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito I - Interpretação da lei: temas


para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.

ZANETTI JUNIOR, Hermes. Introdução ao estudo do processo civil: primeiras


linhas de um paradigma emergente. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabirs, 2004.

85
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL

Charlise Paula Colet Gimenez


Doutoranda em Direito e Mestre em Direito pela UNISC – Universidade de Santa
Cruz do Sul e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNIJUÍ – Universida-
de Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Professora de Direito Penal
e Estágio de Prática Jurídica pela URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uru-
guai e Missões (Santo Ângelo/RS). Membro do Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas
no Tratamento dos Conflitos” vinculado ao CNPq. Bolsista CAPES. Advogada. E-mail:
charliseg@santoangelo.uri.br

Fabiana Marion spengler


Possui graduação em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, mestrado
em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul. É doutora em
Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e pós-doutora pela Universidade de-
gli Studi di Roma Tre. Atualmente é professora adjunta da Universidade de Santa Cruz
do Sul lecionando na graduação as disciplinas de Direito Civil - Família, Processo Civil I,
Mediação e Arbitragem, e na pós-graduação junto ao Programa de Mestrado e de Douto-
rado em Direito as disciplinas de Políticas Públicas no Tratamento de Conflitos e Políticas
Públicas para uma nova jurisdição. É professora colaboradora da Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, lecionando na graduação as disciplinas de
Direito de Família e Direito da Mediação e da Arbitragem e na Pós-graduação junto ao
Programa de Mestrado em Direitos Humanos a disciplina de Sistemas de Justiça e suas
Instituições. Publicou diversos livros e artigos científicos. Desenvolveu atividades de con-
sultora junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, no âmbito do pro-
jeto BRA/05/036 executado pela Secretaria de Reforma do Judiciário ligada ao Ministério
da Justiça. É líder do grupo de pesquisa “Políticas Públicas no Tratamento dos conflitos”,
certificado pelo CNPQ. É também presidente do núcleo municipal de Santa Cruz do Sul
do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Recebeu Menção Honrosa no Prêmio Capes
de Teses 2008. Recebeu o primeiro lugar no Prêmio SINEPE/RS 2010 na categoria “Res-
ponsabilidade Social” pelo projeto de extensão em Mediação.

Karina Schuch Brunet


Licenciada em Letras – Português/Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras Imaculada Conceição, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFSM, Espe-
cialista em Pesquisa pelas Faculdades Franciscanas, Especialista em Direito Processual
Civil pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogada atuante, sócia de Brunet
Advogados Associados, escritório com sede em Santa Maria – RS. Docente e coordena-
dora do Curso de Direito da Faculdade Metodista de Santa Maria. É membro da Cátedra
de Direitos Humanos da Faculdade Metodista de Santa Maria.

86
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet

87

Você também pode gostar