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ete ore peas eam bes ARQ| Z 0 neater COLETIV IVAW xii Ce Um O PROCESSO DE INDIVID| CMe akira chy a CQ iia al 7 rN PSICOLOGIA ANALITICA E O RESGATE DO SAGRADO Cronologia 1875: Carl Gustav Jung nasce no dia 26 dejuilho em Kesswil, Suica, filho do pastor protestante Johann Paul Achiles Jung ¢ Emil le Preiswesk 1895: Entra no curso de medicina da Liniversidade de Basiléia 1900: Especializa-se em psiquiatriaetrabalha maci- nica psiquistrice Burgholz, em Zurique, como assis tente de Eugen Bleuler 1902: Defende a tese de ddoutoramento Sabre pico- toga ea patloia dos chamados fesineres cits Estuda com Pierre Janet no Hospital de la Salpetriére, em Paris 1903: Casa'secom Emma Rauschenbach, com quem terd cinco filhos 1906: Inicasuacorespon: dénciacom Sigmund Freud 1907: Primeiro encontro com Sigmund Freud, em Viena 1908: Passa a atender no consultério particular de sua casa, em Kasnacht perto de Zurique 1909: Viaja com Freud e Ferenczi para os EUA, onde profere conferéncias na Universidade de Clark (Massachusetts) 1910: A Associacéo In- ternacional de Psicanélise (IPA) € fundada durante congresso em Nuremberg, «Jung é eleito seu primei- ro presidente 1913: Rompe definitiva mente com Freud, mas € reeleito presidente da IPA 1914: Renunciaao cargo abandona a IPA 1917: Serve o exército e trabalha comomédico co- mandante de um campo de prisioneicos inglés em Chiteau-D'Oex 1918: Comega a estudar 0s escritos gndsticos 1920: Viaja ao norte de Africa 1921: Publica Tipes psco- legos WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR 1923: niciaa construgio datorre de Bollingen, que durard até 1955 1924: Viajaaos EUA, on: deestuda osindios pueblos 1925: Vai Africa Orien. tal para pesquisar a tribo dos elgonis, no Quénia 1928: Estuda alquimia com Richard Wilhelm 1933: Torna-se presen te da Sociedade Médica Geral de Psicoterapia, subs. tituindo Emst Kretschmer, «que se exonerou por pres s80 dos nazistas. Partic paregularmente das Con- feréncias de Eranos, em ‘Ascona 1937: Viaja’ India, onde recebe o titulo de doutor honoris causa da Univer: sidade de Caleuté 1940: Psicologia e religio, edicdo em livro das Terry Lectures (Yale, EUA} 1943: Toma-se professor regular de psicologia da Universidade de Basilia 1944: Sofre um infarto renuncia as atividades docentes. Langa Psicologia alquinia 1945: Em homenagem a seus 70 anos, recebe 0 ftu- lode doutorhovoriscausa da Universidade de Genebra 1948: Fundagao do Inst tuto Carl Gustav Jung, em Zarique 1951: Pronuncia sua dlti- ma conferéncia em Eranos 1952: Publica Sinboles da transformagi, versdo reela- borada de Metamorfsesesin- boos da tid (1912) 1955; Morre Emma jung 1957: Trabalhaem Mené- ries, sonbos, rflexées, com Aniela Jaffe 1961: Morre em sua casa de Kasnacht, no dia 6 de junho VIVER MENTE&CEREBRO 5 JUNG ABRIU UM NOVO CAPfTULO NA HISTORIA DA INVESTIGAGAO. DA PSIQUE, DESLIGANDO-SE DA PSICANALISE E FUNDANDO UM PENSAMENTO ESTRUTURADO SOBRE O CONCEITO DE ARQUETIPO ascido na Suiga em 1875, Carl Gustav Jung formou-se em medicina e apresentou, em 1902, sua tese de psiquiatria sobre Os chamados forémenos ocltes. Nesse estudo, ele jScita trés vezes a Interpretagto dos sonbos, de Freud, livro publicado em 1900. ‘Ao sernomeado chefe de clinica do Hospital Burghalli, «em Zurique, dirigido pelo eminente Bleuler, que cunhou termo esquizofrenia, Jung dedicou-se a experimentos de associagao de palavras, que provaram objetivamente a existéncia do inconsciente reprimido ¢ a partir dos quais criou 0 conceito de complexo. Os simbolos presentes nos complexos foram as sementes para mais tarde conceituar as imagens como expresses de arquétipos, matrizes do inconsciente coletivo da humanidade No encontro com Freud —a relagio entre ambos durou de 1907 a 1912 —e no tema “fenémenos ocultos'’, j4 esto as duns vertentes da longa caminhada que 0 tomaria um dos ‘humanistas mais importantes do século XX. Da psicanalise, ele herdou as fabulosas descobertas do inconsciente reprimido ¢ da formacio simbélica da pewonalidade pela relagies primétias desde o inicio da vida. No entanto,foino estudo dos “fenémenos ocultos” que Jung. cencontrou 0 filio de ouro da cratividade inesgotével dos arquétipos, que nos permite conhecer a fonte psicolégica e neuroldgica da civilizagio, ‘© PENSADOR SuICO Cari Gustav Jung (1875-1961), criador da psicologia analitica WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR ox Carios Amapeu BoTELHo ByINGTON A transcendéncia € a chave para avaliar a genialidade de Jung €, a0 mesmo tempo, o veneno para reduzir sua obra ao esoterismo. A dificuldade para compreender suas idéias € que, lado a lado com uma esmerada formagio racional cientifica, Jung tinha, em grau também muito Intenso, 0 chamado mistico para a totalidade. Os dons privilegiados da f€ e da razao geraram incompreensio de ambos 0s lados da cultura tradicional UM OCULTISTA HERETICO O positvismo cientifico materialstade Freud nao perdoou co discpulo que buscou o fundamento criativo da religiao, Por cutro lado, muitos eslogosconsideraram blasfémiaum médico psiquiatra formular a base neuropsicolégica, ¢ portanto cientifica, da f. Até hoe, cientistas positivstaso desqualificam como ocuitista,€ religiosos repuciam, como heréticos, seus estudos sobre o crstianismo, que inclutram o simbolismo da mmissa catdlica, da Trindade, da figura divina e histérica do Cristo ¢ do gnosticismo. E preciso reconhecer, porém, que a gerialidade de Jung, a0 formular o conccito de arquétipo ¢ cenraizar na psicologia todos os stores criativos e doentes da cultura, chegou a uma descoberta essencial, que afrontou radicalmente cientistas¢ religiosos a0 torné-los para sempre inseparéve's. ata-se da descoberta do Arquetipo Central ou Self, responsével na mente pela representacio da totalidade, VIVER MENTES&CEREBRO ‘mats Gus cts Mes oe Aux Ho Fain Now You tanto através da imagem de Deus, quanto da imagem do Universo, da fisica tedrica Essa extraordindria descoberta reunitua emocio earazio nna busca da totalidade, caracteristca do fend meno humano em todas as expressbes da cultura. Entrincheiredos com @ vverdade nos seus bunkers ideolégicos, cientistas positivistas ¢ religiosos dogmaticos nao perdoaram Jung por convocé- losareunira éc arazio ea caminhar juntos como peregrinos em busca da totalidade. OTRAUMASACRIFICIALDARUPTURA COM FREUD O humanismo junguianoéum desafio diftcil paraacultura, pois transcende permanentemente a unilateralidade para vivenciara dualdade na unidade. Foia descoberta da natureza bipolar da consciéncia que nos permitiu abordar psicologicamente os grandes paradoxos do conhecimento como o photon, que é, ao mesmo tempo, enengia ¢ matéria dentro da unidade da luz ¢ 0 Cristo, que € alfa e émega, Jumildadeeforga,expressio do Pant, 0Tado-poderoso, ‘Ao perceber no Ido instinto de individuacio que buscaa totalidade, a criatividade de Jung transbordou a moldura \VIVER MENTE&CEREBRO DESENHO NAVAJO. Feito com areia e pigmentos, evoca o poder do Deus Negro e faz parte da ceri: Conhecida como “caminho da noite” ~mostrando a fungo sagrada e "terapéutica” das representagGes mitolégicas jada “cura dos nove dias”, materialista pansexual da psicandlise. Em 1912, ung publicou colivro Siuboes de ansfomagba, no qual expandiu o conceito de libido para tomé-lo sinénimo de energia psiquica, ex- pressio de todo e qualquer simbolo © ndo somente da senualidade, Signficativamente, oxikimo capitulo desse iro intiula-se"o sacrifcio’, onde Jungdemonstra que. transicio deum simbolo para outro é uma vivéncia que inclui a perda éemocional do que passou, Como grande intitivo que era, Jung certamente previu que sua nova concepgio da libido seria incompativel com a presidéncia da Sociedade Internacional de Psicanslise e, pior ainda, com sua filitude” cientifica de Freud. O inevitével aconteceu. O filho cresceu ‘mais que o pai, dai em diante caminhou sozinho para fundar sua propria psicologia analitica, centrada na realizagao arquetpica da personalidade traumatismo sacrificial da separacio de Freud repetiu navvida de Jung a incompreensio eo distanciamento que teve cdoseu pripro pai, Pastor protestante, honesto, trabalhador e dedicado a familia, mas incapaz de corresponder ao que seu filho mais queria dele: a transcendéncia do cotidiano, do formal ‘edo tradicional na relagio com a totalidade, Damesma forma ESPECIALJUNG qucFreud tudo explicava pela sexuaidace através do Complexo de Edipo, seu pai reduzia a transcendéncia da vivéncia religiosa 205 textos biblicos, 3s explicagtestradicionais da Igreja ou a “coisas misteriosas que nio temos capacidade de saber". A vvocacio paraa vivéncia de transcendeéncia logo cedo permit a Jung perceber que a regio formal do pai, que asfxiava as emogées misticas do filho, no era pessoal, mas da prépria Tereja. No entanto, esas percepgbes,queo levaram mais tarde acompreender o poder criativo dos arquétipos, nao ocorreram por alguma deducio racional, mas foram o resultado da compreensio tedrica de intensas experiéncias emocionais de fatos, imaginacbes e sonhos. Junto com a riqueza da sua extraordindria imaginacio oriunda da intuigio, que inclufa em alta dose o dom da mediunidade, Jung era um sonhador prédigo. Acompreensio do cerceamento que 0 dogmatismo das personalidades de se pai ede Freud trowxe® sua critividade foi muito favorecida pelo significado simbélico deum sonho ede uma visio. O sonho ocorreu por volta dos 4 anos de idade, Um homem morrera afogado no Reno, perto de sua casa, € alguém dissera que 0 Senhor Jesus o receheria. Muito impressionado com esse Jesus, Jung sonhou com um enorme phalis subterrneo sobre um altar. Esse sonho oacompanhou durante toda a vida como expresso do arquétipo da fertilidade representado pelo phalus sagrado, imagem arquetipica reunindo sexo e religiao, carne e espfrito. ‘Trinta anos depois desse sonho, Freud lhe expés a teoria materialista do instinto sexual reduzido & atracao incestuosa pelamaccomo a explicagio do desenvolvimento psicolbxico. Conhecendo a personalidade de jung, €fécil imaginar hoje a aversio que tal reducionismo provocaria nel. Para Jung, Jesus ¢ 0 plus sagrado eram, como o deus grego Dioniso, expresses arquetipicas da fertilidade humana que trans- WWWLVIVERMENTECEREBRO.COM.BR TUNICA ENVERGADA na danga dos fantasmas, ritual de inspiragio onirica celebrado por diversas ttibos do oeste dos EUA cendem até mesmo a finitude da vida e nao poderiam ser recluzidas & sexualidade inces- : 5 ‘tuosa nem com todo o esforgo } do mundo. i Essas vivéncias emocionais, c a = cram muito crativas, mas, por isso mesmo, muito contesta- doras e transgressoras das normas sociais, o que Ihe trazia angiistiae sofrimento. A outra experiéncia foi uma imaginagdo que teve aos 12 anos, voltando da escola, € que muito hocou. Ao olhar para a catedral de Basil, talvez 0 maior simbolo do protestantismo suico, viu Deus defecando sobre cla, espatifando-a, Abalado pela culpa e pela vergonba, sofreu muito, em ainda poder perceber que aquilo era uma imagem arquetipica do repdidio existencial que germinava em seu Arquétipo Central contra tudo 0 que era dogmatico, formal, reducionista, em cratividade, sem simbologia relacionada com o Todo, sem transcendéncia. Claro que, para um psica- nalista, esse sonho do filho de um pastor, exatamente no inicio da puberdade, mostraria a tendéncia parricida de um_ Complexo de Edipo mal sublimado, E ele teria uma parcela de razio, De fato, 0 antagonismo a0 pai ndo pode passar despercebido neste simbolo, S5 que essa reprovacao, longe de significar simplesmente uma agressividade espectfca a0 pai pessoal, abrangia também o pai simbslico espiritual, que Jung havia projetado em seu pai. A incapacidade de este ccorresponder a essa projeqio, devido &literalidade com que vivia 0s simbolos religiosos, destrufra e reduzira a p6 a admiragio do filho. © simbolo dessa desidealizagio catas- trofica€ ainda mais significativo quando vemos que a atitude do paie freqientemente da Igreja & qual ele pertencia eram iguaisnoculto dareligifo formal eestagnada,repudiada pelo Deus vivo que Jung amava ¢ que, na visio, destrufa 0 seu préprio templo, Asvivéncias desse sonho e dessa visio acompanharam Jung. durantea vida, junto com intimeras outras experiénciasimpor- tants, foram, aos poucos, revelando para ee dois componentes fundamentais da transcendéncia. O primeiro € que os com plexos e simbolos importantes so a expressio da atividade Brith yh Hef are fpr fie alpine ange a i gf De mate Ian pam (8 ur ees nb mak St parma me aig gna pater VIVER MENTE&CEREBRO u 12 terme Come P Para compreender melhor o impacto desse texto, € im- portante perceber que 0 método tracado realiza-se pela construgio metaférica do ouro e da pérola espirituais, ou seja, pela transformagao simbdlica da matéra, A psicologia de Jung nao se restringe & fala, 0 corpo ou a conduta, mas €, sobretudo, um processo de cura ¢ de desenvolvimento pela transformacio da alma e do mundo & sua volta. Desde cedo Jung expressou em imagens suas Fantasias e os significados que atributa& vida es coisas. Foiaos poucos desenwvolvendo sua aptido estética através da pintura e da escultura. Poderia, certamente, ter seguidoa carreira artistica, mas preferiu usar esse dom a servigo das técnicas expressivas para 0 desenvolvimento simbélico dentro da ciéncia Jung gostava também muito de esculpir formas signifi cativas de suas vivencias e de seus sonhos. Espalhava as esculturas no jardim, Velejava muito no lago de Zurique, ‘em frente & sua casa, eum dia resolveu comprar um terreno em Bollingen, na extremidade do lago oposta a Zurique. Léconcebew uma casa de peda, com quatro torres medie: vais, que expressam 0 quatérnio, niimero que representa @ totalidade do Self. Ele participou intensamente da cons- trucio, talhando as pedras horas a fio e ali construiu 0 sew templo, onde queria viver, imaginar, sonhar ¢ escrever em contato com a Natureza, como seestivesse na [dace Média. Nao havia cletricidade nem gés. le mesmo cozinhava num fogio alenha. Seus convidados sempre o consideraram um grande cozinheiro, No rigoroso inverno, aquecia-se com A PSICOLOGIA DE JUNG E UM PROCESSO DE CURA PELA TRANSFORMACAO DO MUNDO A SUA VOLTA psicalégica. Pintava'seus sonhos e mandalas para expressar vivéncias de totalidade, que reuniu num livro de figuras ‘emolduradas por letras géticas douradas, 0 famoso Lioro Vemelbo que, em breve, seré publicado pela Fundagio Philemon. Essa editora foi recém-fundada para publicar os eseritos de Jung que nao foram inclufdos em suas obras completas oficiais publicadas pela Funda¢ao Bollingen. VIVER MENTESCEREBRO lenha que ele proprio cortava com um machado ¢, & noite, escrevia a luz de lamparina. Trabalhava muito no consultério, que ficava na casa «em que morava, em Kitsnacht—3s vezes, até 16 horas por dia, para atender pacientes que o procuravam do mundo. inteiro. Dormia pouco ¢ gostava de acordar de madrugada para escrever Em vez de s6 interpretar verbalmente os simbolos, preferia estimular a vivéncia simbélica pedindo a seus pacientes que pintassem as imagens para melhor experi- menté-las. Sua originalidade no emprego das técnicas expressivas levou-o & grande descoberta do método da Imaginagao Ativa, no qual o Ego dialoga dramaticamente com 0 Outro imaginado, para permitir melhor compreender ¢ integrar os significados dos simbolos. Ao ter essa disposigio no s6 para falar, mas também para expressar ¢ ‘fazer’ os sfmbolos, 0 impacto causado pela Flor de owo da China antiga abriu seus olhos para a alquimia européia, Até Jung, os alquimistas eram consi- derados quimicos pré-hist6ricos, bruxos que misturavam supersticio ¢ magia com rudimentos da quimica Freqtientemente eram charlatdes, que exploravam mecenas ‘gananciosos,iludindo-os com uma Suposta capacidade de fabricar ouro a partir de outros metais. Inspirado pela busca de totalidade da alquimia chinesa, Jung compreendeu 0 lema central da alquimia européia: ‘O LEITOR COMPULSIVO E ERUDITO, Jung constituiu uma "piblioteca alquimica” em sta cara de Kiisnacht, as margens do lago de Zurique ESPECIALJUNG £DIPO EA ESFINGE, de Jean-Auguste-Dominique Ingres (cerca ‘de 1826). 0 Complexo de Edipo, um dos pilares da teoria psicanalitia, foi também um dos pivés das divergéncias que levaram & ruptura de Freud com jung oso auro nio é o ouro vulgar" como significando que a busca do ouro alquimico é a busca da sabedoria subjetiva e objetiva da pedra filosofal. O dragao, principal metéfora da ‘matéria-prima, morree €dissolvido no forno alquimico para gerarosopestos. O processo alquimico, denominado oopns, a obra, consiste na reunigo de intimeras substincias repre: sentada, no final, pelo casamento sagrado do Sol e da Lua, que prenunciaa descoberta das combinagies das substncias na quimnica modema. Dessa unio milagrosa nasce a peda filosofal, sindnimo do Cristo, como a expressio da busca de auto-realizagdo psicol6gica através da matéria no Processo de Individuacio. Ao percebertantossignificados psicol6gicos projetados pelos alquimistas nos seus experimentos, Jung retomou outro lema central da milenar sabedoria alquimica a virtude da busca de uniao dos opostos,atribufda & figura lendéria de Hermes Trimegist. A LINGUAGEM DOS ALQUIMISTAS O significado da alquimia medieval como uma corrente esotérica que levou as ciéncias modernas ¢, a0 mesmo tempo, expressou o Proceso de Individuacio que Jung descobriu e descreveu na psique humana, transformou a linguagem cifrada e propositadamente oculta dos alquimistas numa fonte inesgotivel de significados psicolégicos, que ele estudou nos anos que se seguiram e que culminou no seu iltimo grande livro O mistéri da conjungdo. Durante esse processo, formou-se, em 1946, uma pérola de raro valor: a Psicologia da transferéncia. Comple- mentando a descoberta genial de Freud da transferéncia patolégica do Complexo de Edipo mal resolvido do paciente para o analista, que € a maior defesa da terapia, Jung descreveu nessa obra a transferéncia normal. Nela, Jung postula que a transferéncia tem uma matriz arquetipica, que permeia os relacionamentos e permite a ntegragdo criativa dos seus simbolos, inclusive no casamento, nas grandes amizades e também na relaczo terapéutica, Essa obra extraordinéria estéilustrada porum texto alquimico denominado Rosério des filésoos. Ela é também da maior importancia para todos aqueles que trabalham com relagées humanas, pois retine no mesmo processo de transformago a relacio pedagdgica mestre- discfpulo e a relac3o Conscincia-Sombra na interacao entre a satide ¢ a patologia. A compreensio psicolégica do processo descrito em O. segredo da flor deouro continuoua percepgio de Jung dos mitos ¢ fen6menos culturais como arquetipicos, para neles incluir \WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.ER a alquimia. O conceito de arquétipo trouxe uma conse- aiiéncia grandiosa, que foi a abertura dos estudiosos das culturas antigas da {ndia, da China, do Tibete ¢ do Japao para a psicologia do Ocidente. A reducio feita pela psi canélise do fentdmeno religioso a uma defesa para esconder ‘odesejo patticida portrés do amora Deus havia provocado a retragio dos guardides dos tesouros das culturas antigas da humanidade diante de tamanha incompreensao da dimensao do sagrado. A revelacfo de um denominador comum da transcendéncia cultivada nas tradigdes do Ocidente © do Oriente, permitida pelo conceito de arquétipo e iniciada no encontro de jung com Wilhelm, tomou-se hoje. ponte para o congracamento espiritual das culturas no processo de globalizacao. Essa perspectiva foi fundamental para que eu pudesse compreender e estudar a identidade arquetipica da sociedade multicultural latino- americana e brasileira, quando retornei ao Brasil depois de ‘minha formagao como analista no Instituto Jung de Zurique ¢, junto com colegas brasileiros, contribuit para a fundacao. da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, que forma analistas junguianos no Brasil VIVER MENTE&CEREBRO B 4 Na década de 50, Nise da Silveira desenvolveu técni- ‘cas expressivas no tratamento de pacientes psicéticos internados no Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, empregando principaimentea pintura. Com o passar do tempo, observou quemuitos pacientes pintavam imagens circulares. Buscando o seu significado, encontrou um traba- Tho de Jung sobre a mandala e escreveu para ele solicitando sua interpretacio em casos de psicose. Jung respondeu interessado.e pedindo fotos dos quadros. Nise enviou, junto com as fotos de mandalas, outras fotos de figuras extraor dinétias que os pacientes pintavam a partir dos seus deli- rios, explicando que eram de pacientes com muito pouca escolaridade, a maioria analfabetos. Jung interessou-se ainda mais, pois nfo s6 as mandalas, como outras pintures, mostravam claramente tratar-se de imagens arquetipicas, que podiam perfcitamente ser mitolégicas. Por nio te- rem cultura, esses pacientes desconheciam esse material. Delitios com o phallus do Sol, gerador do vento, ¢ com a mulher ameagada por uma figura masculina que se trans- forma em érvore, ilustrando o mito de Dafne ¢ Apolo da mitologia grega, eram temas arquetipicos auténomos in- questionaveis Jung convidou Nise para ira Zurique e analisar-se com sua principal discipula e colaboradora, Marie-Louise von Franz ea ter sesses de andlise também com ele, Além de expressar imagens arquetipicas na psicose, a obra pioneira de Nise da Silveira, através dos anos, mostrou claramente ‘que mesmo psicdticos graves, consideradoscasos perdidos amontoados como dementes nas enfermarias, quando solicitados a expressar suas fantasias, nao s6 podem fazé-1o VIVER MENTES&CEREBRO eauberantemente, como, até mesmo, demonstrarum desen: volvimento simbolico criativo caracteristico do Processo de Individuacéo, Em 1957, no Congresso Internacional de Psiquiatria realizadoem Zurique, jung foi homenageado como o mais ilustre psiquiatra vivo. Trés salas do Congresso apre- sentaram em sttas paredes dezenas de quadros dos pacientes da dra. Nise, enviados pelo Ministério da Saddle do Brasil, que ilustravam, sem sombra de diévida, a teoria junguiana dos arquétipos A obya de jung tem hoje grande influéncia em todos os setores da cultura. No mundo inteiro, os especialistas reconhecem 0s componentes arquetipicos dos simbolos como denominadores comuns das culturas © aqueles que cstudam a interpretacio dos significados dos mitos e das obras de arte freqiientemente ja os relacionam com 0 Processo de Individuagao, ARQUETIPO E SISTEMA NEUROPSIQUICO. O desenvolvimento extraordindrio das neurociéncias ‘nos tltimos anos tem questionado e aprofundado muito 0 conceito de arquétipo. J4 sabiamos, com a genética ‘moderna, que as imagens aprendidas nao sio herdadas, mas nunca antes haviamos pesquisado, como agora, o que o sistema nervoso tem para organizar 0 processo neuro- fisioldgico tfpico da espécie humana. Lim dos mais desta- cados estudiosos das neurociéncias na comunidade junguiana 0 psiquiatra Mario Eugénio Saiz, lider da Escola Junguiana Unuguaia. Sua posiglo, apresentada no Congres so Internacional de Psicologia Analitica em Barcelona, em 2004, &a de que o arquétipo é uma forma genética muito arcaica de organizacio neuropsiquica, caracteristica do sistema netvoso humano, como Jung pensava, mas muito mais indiferenciada do que ele imaginou. Pessoalmente, acredito quea descoberta mais espetacular das neurociéncias, que consagraré finalmente a genialidade de Jung na academia cientifica e nos templos religiosos, sera 2 localizacio do Arquétipo Central do Self no sistema neuropsiquico. Nesse da, o esforco crativo de sua vida e de sua obra daré um fruto excepcional. Que eu saiba, a busca da imagem de Deus no sistema nervoso humano ainda no consta oficialmente de nenhum projeto de pesquisa das neurociéncias, Sua proposta seria certamente um cscindalo para a mentalidade positivista que, infelizmente, ainda domina a universidade e chocaria certamente também 0 dogmatismo das instituigées religiosas. No entanto, estou ELOHIM CRIANDO ADAO, de William Blake (cerca de 1795) Jung comegou a estudar a obra do poeta, pintor ¢ visionério inglés em 1948, colocando-o no mesmo patamar de Dante, Goethe, Wagner e Nietzsche ESPECIALJUNG. CASA DE JUNG EM BOLLINGEN. O proprio pensador concebeu a arquitetura desse refigio a beira do lado de Zurique, onde cozinhava num fogdo a lenha e podia viver em contato com a Natureza, como se estivesse na Idade Média, certo de que, em algum lugar do planeta, no fundo de algu- ma instituicdo de pesquisa, em algum labor + orator, poss velmente na calada das noites, um alquimista, como em séculos ja hé muito passados, continua perscrutando 0 mistério da pedrafilosofale, brevemente, nos traré noticias dessa descoberta, Deo concede Médico recém-formado, eu fazia meu terceito ano de andlise de orentacao psicanalitica quando entrei para grupo deestudos junguianos de Nise, na Casa das Palmeiras, no Rio. ‘Comegamios pela primeira partedo volume 9 das Obras Com pletas.Jé nas primeiras paginas senti que encontrara meu ca- minho na psiquiatiee na minha vide espiritual Cheguei a Zurique em abril de 1961 e, por orientacso de Nise da Silveira, também fui fazer anélise com Maric- Louise von Franz. Ela visitava Jung diariamente e, em cada sessio, comentava como ele estava cada vez mais combali- do, Em 6 de junho, ele faleceu, um més antes de completar 86 anos. A familia abriuas portas de sua casa para que cole- 25, discipulos ¢ amigos visitassem o seu corpo, que repou- sava entre dois candelabros, A emocio fortissima e indes WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR citivel daquele momento acompanha-me até hoje, ao re- lembrar-me da entrada naquele castelo encantado, repleto de livros, dentre os quais uma fantéstica biblioteca alqui- mica com exemplares rarissimos, em meio a pinturas ¢ es- cculturas que representavam as vivéncias mais intimas de tum génio, No dia seguinte, fomos.a Bollingen. Cada cent metro quadrado das quatro torres exalava arte ¢ ciéncia em meio & simplicidade do sagrado. Dias depois, estava em uma sessio de anélise com Marie-Louise von Franz, quando tocou trés vezes o sino da pardquia de Kiisnacht para a Missa em Aco de Gracas Intetrompemos a sessdo e caminhamos até 2 igrejinha para assistr & homenagem ao espirito de nosso mestre. ame CARLOS AMADEU BOTELHO BYINGTON é médlco psiquiatra, ‘educador,historiador e anata junguiano graduado pelo Instituto C.G. Jung de Zurique: membro fundador da Sodedade Brasileira, de Psicologia Analtica e membro da Sociedade Internacional de Psicologia Analitica, ‘VIVER MENTESCEREBRO- 15 ESPECIAL JUNG VIVER MENTESCEREBRO ‘© HOSPICIO DE LA SALPETRIERE, reproduzido acima por ‘Armand Gautier, € um simbolo da humanizagao dos tratamentos psiquidtricos, mas, ao mesmo tempo, das limitacdes de uma ciéncia que Freud e jung viriam revoluclonar | WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.ER or Rooney GaLaN TasoaDa © fim do século XIX, a cigncia psiquidtrica encon- trava-se em uma espécie de beco sem saida. Tinha progredido muito desde que Pinel lutara por um tratamento humano do doente mental (iteralmente desa correntando os pacientes nos hospitais de Bicétre ¢ La Sal péiriére de Paris) e desde a publicacao do Tratépilasopbidue sur laligvation mentale (1791), corn © qual seu pensamento se tomou vigente. Durante todo o século XIX construiu-se uma psiquiatria preocupada com a observacao cientifica dos pacientes, com aa busca das causas das doengas mentais e com 0 desenvolvi- mento de métados terapéuticos que suprimissem os sinto- ‘mas ou, pelo menos, minorassem os seus soimentos. ‘Muitos nomes se destacam nessa tarefa, pertencentes as duas grandes escolas desenvalvidas na Franga e na Ale- manha. Coube ao psiquiatra alemio Emil Kracpelin a mé: Fito deum grande trabalho de sistematizaco desse conhe- Cimento, na tentativa de colocar a psiquiatria nos moldes de uma medicina cientifico-natural, Kraepelin procurou isolar entidades clinicas fundamentando-as na anatomia patol6gica, na busca de um etiologia especifica e em seus modos de evolucio particulares. Nese perfodo constroem- se sistemas nosograticos que, atendendo a um modelo fe- nomenolégico-clinico, deveriam formar a base para que a psiquiariaalcancasse o mesmo patamar de desenvolvimen- to das demais especialidades clinicas, tendo como postula do central que o cérebro € a sede da vida mental. (O"beco sem saida’ consistia no fato de que um niimero muito reduzido de doengas, portanto de doentes, podia ser precisamente enquadrado em um modelo etiolégico VIVER MENTES&CEREBRO 7 18 [AS PESQUISAS DE JUNG 0 puseram em contato com os estudos do neurologista Jean Martin Charcot (1825-1893), retratado 20 lado por André Brouilet claramente reconhecido. O modelo ideal de doenca mental, segundo essa concepcio, era 0 da sls ce- rebral, pots possufa um agente causal especifico, 0 Treponema palldun (identiicado em 1903), que ca saya lesdes cerebrais especificas e um quadro sin- tomético razoavelmente constante ~ muito em- bora um tratamento de fato eficaz 6 surgisse na metade do século XX, com a penicilina O grande problema para uma psiquiatria enquadrada no modelo das ciéncias naturais era, e ainda hoje é, a questo da determinagio. das causas das doengas mentais, As neuroses, em particular a histeria, ¢ a “deméncia preco- ce’, hoje reclasificada e nomeada de esquizo- frenia, desaliavam o modelo cientifico. E nesse contexto, como cientistas tipicos do século XIX, preocupados com a determinacéo das causas das doencas mentais, que se inserem primeiramente Freud e depois Jung ‘A genialidade de Freud consistu em ter langado as pedras fundamentais do edificio conceitual da psi- ccogénese das doencas meniais. Isso implicou um. salto epis- temol6gico formidével, levando 3 mudanga do foco de observagao do cérebro para a psique. A observacdo de que 0s sintomas, histéricos princi palmente, eram plenos de significados, expresses das vicissitudes de um processo histérico-pessoal de desen volvimento emocional, e que poderiam ser manifesta bes atuais de fatos ocorridos no passado, abre uma nova perspectiva de investigacio na direcio das causas. Freud desenvolve um novo método de investigagio, a psica nilise, que consistia em deixar falar o doente, ou me- thor, deixar falar a psique. Utilizando esse método, ele alirma de modo categ6rico que a etiologia das neuroses repousa em um trauma infantil de natureza sexual ¢ to- talmente inconsciente para o paciente. Esse é 0 panora- ma no fim do século XIX. Em 1900, mesmo ano da publicagdo de A interpretagao dos sonhos, Jung forma-se em medicina na universidade de Basiléia, na Suiga, e decide especializar-se em psiquiatria, ingressando no servigo do prof, Eugen Bleuler, no hospi RODNEY GALAN TABOADA é médico psiqulatra, membro analsta da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica e da International Association for Analytical Psychology. VIVER MENTE&CEREBRO tal cantonal de Zurique, o Burgh que por essa €poca_ cera um dos principais centros de pesquisa em psiquiatria da Europa ‘Aescolha do tema de sua tese de doutoramento, Sobre apsicologiaepatologia dos assim chamados fenémenos acultos, Cujo objeto sd0.as manifestagies espfritas" produzidas por uma menina de 15 anos, que recebia o "espirito de seu avd j& falecido", revela o interesse de Jung pela investigacao dos fendmenos de dissociacao da consciéncia ¢ dos estados sonambsilicos. Suas pesquisas 6 puseram em contato com os estudos de Charcot e Janet, bem como com 0 método de investigacéo da hipnose € certamente com os estudlos sobre a histeria de Freud, Nessa mesma época, Jung en- gajou-se na principal linha de pesquisa do instituto, omé- iodo de associagio de palaoras, visando 0 estudo das associa- gdes do pensamento. ‘ung buscava um acesso objetivo aos fendmenos irra- cionais da psique. A leitura de A interpreta dos sonbos teve importancia decisiva no desenvolvimento de sua admira- ESPECIALJUNG io por Freud, por ele ter aberto 3 ciéncia um campo tio ‘obscuro como o dos sonhos. Para Jung, Freud tinha tido a coragem de levarem contaas emogdes ¢ osafetos ¢, sobre: tudo, de consideré-los guias através das profundezas do inconsciente, numa época em que 0 ideal vigente, na visio ientifca, consistia precisamente na sua exclusdo Como sabemos, as reagées do meio cientifico as idéias de Freud foram em sua maioria negativas. A quebra do pa dao metodolégico e, principalmente, a teoria do trauma sexual infantil foram fortemente criticadas e ridicularizadas, co que levou Freud ao isolamento. Jung foi um dos poucos que viram nas contribuigdes te concordlancia entre as idéias de Freud e suas préprias observacoes 1) Ambos estabeleciam uma relagio interior entre pro: cessos associativos alterados e fendmenos psicopatol6gicos. 2) Para eles, a causa residia em um fator inconsciente, carregado afetivamente, que exercia influéncia sobre a vida psfquica e sobre o comportamento dos individuos 3) Ambos percebiam que fatos retidos no inconsciente podiam permanecer ativos por muito tempo ¢ desencadear perturbacdes da vida mental Ao lado das concordncias, surgem também as primeiras discordincias. Para Freud, os contetidos inconscientes rele- DISTURBIOS ASSOCIATIVOS A FENOMENOS PSICOPATOLOGICOS [ JUNG CHEGOU A TEORIA DOS COMPLEXOS AO RELACIONAR de Freud 0 valor heuristico ali contido e saiu em sua defesa, no sem se reservar o direito de manter uma cons ciéncia critica e de permitir-se aprofundar as pesquisas, visando confirmar ot refutar os postulados de forma cien- tifica e no emocional: “S6 poderé refutar Freud aquele que tiver utilizado 0 método psicanalitico em miiltiplas Jes ¢ investigac6es do modo como Freud inves- tiga’, afirma ele, Em seus primeiros anos de especializas gholzli, Jung aprofundou-se nos estudos do mado de as ciagio, tal como desenvolvido por Wundt e Aschaffen burg, visando estudar a conexio entre associagao e as al teragdes da atencio. Ele percebeu que certos fenémenos, considerados falhas irrelevantes, eram na verdade inter- feréncias emocionais sobre o padrao de resposta. As in vestigagées sobre o contetido € 0 aspecto afetivo subja- cente levavam a contetidos inconscientes com forte carga emacional. Disso, Jung extraiu uma importante conclu so: 'No inconsciente existem complexos carregados de forte carga afetiva e as perturbacées das assaciagées s30 sinais indicadores dos complexos’. Jung denominou de complexes de carga aftiva os contetidos inconscientes que, associados a outros contetidos psiquicos, formavam areas de concentrago de carga emocional que tanto interfe aplica 10 no Bur- rem na vida normal como participam na estrutura de for- macao dos sintomas nas doencas mentais. Essas conclusdes, obtidas por um método objetivo € reconhecido cientificamente, apontavam para uma for EM SEUS ANOS DE ESPECIALIZACAO no hospital de Burghélal, Jung aprofundou-se no método de associagio desenvolvido por Aschaffenburg e pelo fisiologista alemao Wilhelm Wundt (ao lado) WWWVIVERMENTECEREBRO.COM.BR vantes eram sempre de contetidos trauméticos, de origem sexual, que no tinham sido elaborados pela consciéncia, Jung, por sua vez, reservou-se o direito de afirmar que nem sempre a carga afetiva dos complexos derivava da VIVER MENTE& CEREBRO 19 20 |ACASA DE JUNG em Bollingen. jung construirla seu refigio em quatro etapas: em 1923 construiu o pavilhao principal, que ‘costumava chamar de “Torre”; em 1927 fer uma nova ampliagao e, em 1935, edificou o patio ¢a loggia vistos em primeiro plano a partir do lago superior de Zurique. A versio definitiva, que vemos abalxo, ficou pronta em 1955 | Leia abalxo depoimento de jung sobre o simbolismo de sua casa em Bollingen, : ‘“Trabalhando muito consegui, a0s poucos, apeiar terra firme minhas fantasias © os contetdos do_ " inconsciente. As palavras e os escritos nao eram bastante reais para mim; era preciso outra coisa. Ne- cessitava representar meus pensamentos mais inti- mos € meu saber na pedira, nela inscrevendo, de al- gum modo, uma profissdo de fé. Foi assim que come- 2 ) Desde 0 princi- 0 A ‘era necessério construir a - beira da 4gua. O encanto particular da margem do " largo superior de Zurique me fascinau sempre e por ‘isso comprei, em 1922, um terreno no distrito de St. ‘Meinrad, que pertencera a Igreja. No principio, nao _pensel em fazer uma verdadeira casa, mas apenas uma " construsio de um andar, com lareirano centro e be- VIVER MENTE&CEREBRO TORRE DE JUNG; UMA’ REPRESENTACAO DA INDIVIDUACAO liches a0 longo das paredes, 8 maneira das moradas primitivas. (..) Durante os primeiros trabathos, 0 pla- no modificou-se, por me parecer demasiadamente primitive. Compreendi que era necessatio construlr ‘uma verdadeira casa de dois andares e nao apenas “uma cabana de chao batido. Foi assim que nasceu, ‘em 1923, a primeira casa de plano circular. Uma vez construida, vi que se tornara uma habitasao em for: made torre. (...) Desde 0 inicio, a torre foi para mim tum lugar de amadurecimento - um seio materno ou uma forma materna na qual podia ser de novo como '30u, como era e como serei. A torre daya-me a im- pressdo de que eu renascia na pedra. Nela via a rea- lizacao do que, antes, era um vago pressentimento: uma representaco da individuasao.” : Carl Gustav Jung, Memorias, sonhos, reflexées (tradugao de Dora Ferreira da Silva, Nova Frontelra).. ESPECIAL JUNG SIGMUND FREUD (com um de seus cles da raga chow-chow) publicou A interpretagao dos sonhos em 1900, ‘mesmo ano em que Jung se formou em medicina na Universidade de Basiléia, na Sulga sexualidade € que o elemento traumético apontado por Freud nem sempre estava evidenciado. Embora néo negas- se a importincia de cargas emocionais ligadas & sexualida de nem 0 poder patogénico dos traumas, acrescentava que suas observacies mostravam que, para que o trauma exer- patogénica, era necessério que houvesse uma ipredisposicao interior especifica’ De qualquer modo, em suas pesauisas com o teste de associacao de palavras, Jung havia criado um instrumento dic acesso objetivo aos fenémenos inconscientes, havia corroborado experimentalmente — vale dizer, cientifi. camente ~ as afirmagées de Freud, Criow uma base ex perimental que permitia a emissio de jufzos objetivos, independentes de critérios pessoais, sobre a existéncia de complexos de carga emocional no substrato incons- ciente da psique humana Cabe lembrar que, por essa época, 0 periodo com preendido entre 1900 1906, quando se deu o primeiro encontro entre ambos, Jung era um jovem médico re cém-formado Gracas.ao experimento de associagio, Jung teve sem- pre presente a idéia de uma sélida conexao entre a tona- lidade emocional e a representagao. Para ele, um com- plexo, em principio, era sempre completo e total, Esse conceito se mostrou fecundo em sua obra posterior Jung, viu na nocao de complexo o fundamento das unidades «straturas da psique. Posteriormente, em Tiansformagdes ein bolos da libido (1912), desenvalveu as noces de ids pri- initinas ou protopensamentos e imagens primordias. Esses con ceitos séo derivagdes da observacio da necessidade de uma predisposicdo interior especifica para a efetividade da agio traumstica. Com o conceito de pattems of behavior, deu expressao conexdo interna entre imagem de situa- Gio € instinto Estudando o componente instintivo da psique, Jung descreve as imagens arcaicas € os contetidos arquetipi. cos. Os complexos resultam de uma colisio entre rea- lidade externa e interna. O nticleo dos complexos con- tém tanto elementos da experiéncia emocional vivida (trauma) como elementos da condicao imanente instin- tiva (arquétipos). Ateoria dos complexos ¢ 0 seu desenvolvimento so as pedras fundamentais de um pensamento junguiano propria- mente dito, que relaciona a vivéncia hist6rico-pessoal com ‘um conjunto de representagées inatas € especificas da es pécie humana, que sd0 os correspondentes psiquicos dos instintos, os arquétipos. cesse sua a WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR A formulacio de um extrato coletivo do inconsciente, caujos contetidos s2o as imagens primontiais, é 0 desdobra mento conseqiente do enorme estudo transcultural em preendido por Jung a partir da observacao da repeticao dos padrées universais de estruturacio dos complexos. A ruptura das relagdes pessoais ecientificas entre Jung, e Freud, ocorrida de forma abrupta € precoce, permitiu que Jung pudesse continuar sua propria linha de investi gaco, que tanto contribuiu para o alargamento do conhe- cimento sobre a psique individual ¢ coletiva. A medida que avangam os conhecimentos, principalmente no cam- po das neurociéncias, comprovam-se mais € mais os acer- tos das suas concepcdes. me Psicoganese das doengas mentais. C. G.jung. Vozes, 1986. Freud e a psicanalise. C. G. jung, Vozes, 1989. Elyoy el inconsciente. C. G. Jung, Edtora Luis Miracle, 1972. Entrevistas com Carl G. Jung e as reagbes de Ernest Jones... Evans. Eldorado, sd. De Freud a jung. Frey-Rohn, Fondo de Cultura Econdmica, 1991 VIVER MENTE&CEREBRO 21 22 _VIVER MENTE&CEREBRO ESPECIALJUNG CONDENSACAO, SOBREDETERMINAGAO, COMPLEXIDADE s relagies estabelecidas entre Freud ¢ jung consti tuem um dos eixos cruciais da histéria da psicané- lise, certamente. Nio obstante 0 fato de terem sido tecidas apenas nos primérdios dessa, na primeira década do século até 1912, essas relagdes marcaram a ferro e fogo co imaginario do movimento psicanalitico, com ressonan:

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